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13 A Ética de Friedrich Nietzsche


Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 e faleceu em 21
de agosto de 1900; era membro de uma família de religiosos protestantes pretendia ser
pastor, o que o levou a estudar a bíblia (mais tarde ele diria, que quem abre uma bíblia
está buscando um falso consolo, para sua miséria pessoal).
Friedrich Nietzsche é o pensador contemporâneo, que uniu a filosofia com a
psicologia; a sua psicologia é apresentada pela primeira vez na fase intermediária dos
seus escritos, na qual analisa a cultura livre e discute a liberdade de espírito focalizando
a superficialidade dos conceitos e o seu efeito imediato – os sentimentos morais:
Humano Demasiado Humano (1876-1880); Aurora (1881); A Gaia Ciência (1882).
Para ele a origem da Psicologia se encontra no ócio; seguindo esta linha faz uma
crítica à consciência, à Razão, uma vez que se opõem ao corpo. Tal atitude a
encontraremos nos erros em que se fundou a civilização ocidental: a confusão entre
causa e consequência; a causalidade falsa; as causas imaginárias; a vontade livre.
Nesta perspectiva afirma que toda a psicologia antiga fixou o seu olhar na noção de
responsabilidade e, por extensão, ao seu corolário necessário: o instinto de punir e
julgar, ao qual Nietzsche denomina de moralização da vida. A partir desta perspectiva
pode concluir, que estes erros tornaram os homens “profundos” a tal ponto que criaram
“as religiões e as artes”. Elas são necessárias à vida dos homens, entretanto não são o
mundo como desejam os metafísicos, por este motivo é preciso questioná-los, a fim de
que possamos corrigir o desvio causado pela metafísica tradicional, que os condicionou
à Verdade una.
O método utilizado por Friedrich Nietzsche para estudar a moral é a genealogia,
pois somente assim, pensa ele, é possível ultrapassar a psicologia antiga e
compreender a origem e as consequências da moral.
Para conseguir isso ele utiliza o conceito de vontade potência, cujo objetivo é
questionar os valores existentes: esta estratégia é interessante, uma vez que o
genealogista não pretende discutir a verdade ou mentira sobre o mundo, sem embargo
deseja analisar quais são as forças, que se manifestam em determinada perspectiva de
mundo.
Ele joga a genealogia contra os portões do espírito na psicologia cristã, visto que
ela é fruto do ressentimento.
Desse modo, quer Nietzsche nos fazer ver que a psicologia da consciência é uma
defesa do ideal ascético e o seu corolário niilista.
Usando o seu método psicológico Nietzsche analisará a história ocidental em
busca da criação dos sentimentos morais.
Como hipótese de pesquisa ele admite que o erro fundamental se encontra na
crença da existência de ações morais, por conseguinte questionará a possibilidade de
valoração das ações: quem cria os valores? Quem julga as ações? Existe uma liberdade
na avaliação?
A sua resposta em Aurora (1881) é límpida: aqueles que desejam conhecer o
mundo ignoram a si próprios, tanto no que se relaciona ao bem e ao mal como no é que
essencial à vida: o erro em que eles se encontram se funda no intelectualismo moral
socrático, pois acreditam que existe “uma essência do ato correto”, a qual poderia ser
conhecida.

1
Não se deve aceitar a psicologia como uma análise dos sentimentos morais,
contudo ela deve ser vista como uma fonte, para se transmutar todos os valores: a
psicologia nietzscheana mais do que uma ciência é a derrocada da cultura platônica (da
moral, da consciência, do espírito, do Eu e da mente) defendida pelos
irremediavelmente pervertidos.
Ao se usar o método genealógico é preciso percorrer três momentos: deve
começar por analisar a tragédia grega, pois ela apresenta a vida, lado a lado com a
própria psicologia grega, como reflexo da luta entre as forças dionisíacas e apolíneas;
após este momento é necessário mostrar as bases da metafísica: esta perspectiva serve
como ponto de ataque à moralidade, uma vez que a metafísica criou os filósofos da
moral; por fim, é possível trazer à tona as motivações inconscientes e com isso
questiona a epistemologia que é o fundamento do pensamento consciente.
É neste momento que o corpo surge como característica da análise psicológica
nietzscheana: o corpo não como aquilo que contém o Eu, mas como local de impulsos.
Ao tratar do pensamento humano ele afirmava, que o mais importante não era o
pensamento consciente, contudo o pensamento inconsciente.
A partir da Genealogia da Moral ele se oporá aos psicólogos ingleses (Stuart Mill,
1806-1873, e Herbert Spencer, 1820-1903), os quais não conseguiram ultrapassar, nas
suas análises psicológicas, o fundamento metafísico e a moralização da conduta
humana. Os psicólogos ingleses são os únicos, que tentaram construir uma história da
origem da moral: eles buscaram evidenciar “a parte vergonhosa do nosso mundo
interior”, ao mesmo tempo que procuraram o seu princípio ativo.
Ele inicia o ensaio questionando as análises feitas por esses pensadores a
respeito da moral, para Friedrich Nietzsche é possível que eles sejam.
Os psicólogos ingleses estudam a alma humana como se utilizassem um
microscópio, tentando transformar os seus preconceitos morais em ciência; eles
analisam os “fenômenos morais”, entretanto o que existe é uma moralização das
interpretações desses fenômenos.
Falta a esses psicólogos a perspectiva histórica e podemos ver isso, quando
tratam da origem do conceito bom: para eles num primeiro momento o altruísmo foi
louvado por ser útil; depois por esquecimento, e devido ao costume de linguagem,
chamaram de boas as ações altruístas. Nesta procura pela origem do bom Friedrich
Nietzsche percebe um claro esquema dos psicólogos ingleses: utilidade – esquecimento
– costume – erro.
Na concepção nietzschiana a origem do bom se encontra nos homens poderosos,
que admitiam ser as suas ações boas: “O que é bom? - Perguntais? Ser valente é bom.”1
A origem do conceito bom ocorreu a partir de um sentimento e não de uma utilidade
qualquer, do mesmo modo que foi: “a consciência da superioridade [...] de uma raça
superior [que] determinou a origem da antítese entre bom e mau.”2
No início não havia altruísmo na bondade foi a decadência da aristocracia que
propiciou na consciência humana a antítese entre egoísmo e altruísmo e desse
momento em diante: “O instinto de dominar acabou por encontrar a sua expressão.”3

1
NIETZSCHE, F. Zaratustra. São Paulo: Escala, 2009, p. 42.
2
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. 4a ed. Lisboa: Guimarães, 1983, p. 19.
3
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. 4a ed. Lisboa: Guimarães, 1983, p. 20.

2
Herbert Spencer (1820-1903) ligou o conceito bom a utilidade, donde deduziu que
a humanidade considerou bom tudo aquilo que lhe era útil; entretanto admite Friedrich
Nietzsche que esta explicação, apesar de ser quase convincente, está equivocada:
assim, de acordo com Herbert Spencer (1820-1903) o bom e o útil são semelhantes em
essência: bom é aquilo que é útil. Nietzsche considera a explicação “errônea, mas
sensata e psicológica.”4
A fim de se contrapor ao método dos moralistas ingleses ele fez uso de outro
método, para pesquisar a origem da moral: ao buscar o sentido etimológico da palavra
bom em diversas línguas percebeu, que o seu significado se ligava à distinção e
desenvolveu-se até a ideia de nobre, significando “privilegiado quanto à alma”.
O motivo alegado por ter demorado tanto, para se descobrir este aspecto foi o
preconceito democrático, o qual impede a pesquisa sobre as origens.
A etimologia da palavra bom remetia aos homens da classe superior; ao passo
que a palavra grega εσθλος significa “alguém que é” verdadeiro em contraposição ao
homem da plebe que é falso. Na mesma linha encontramos a palavra latina bonnus
significa o guerreiro, para os romanos um homem bom deveria ser um guerreiro. Nestes
exemplos encontramos a regra de criação da moral dos fortes: a transformação do
conceito político de proeminência em um conceito psicológico. A oposição entre puro (o
homem que se lava, etc.) e impuro num primeiro momento serviu, para distinguir as
castas e mais tarde desenvolveu-se em bom e mau que não se limitava mais à casta.
Isto não pode ser aplicado às aristocracias sacerdotais e o seu desejo de poder,
porque eles não desejam a ação e sim que os seus sonhos fossem engrandecidos. O
remédio que eles receitavam aos que os procuravam faziam muito mal à saúde.
O perigo da metafísica sacerdotal não se encontra somente na sua dietética e
terapêutica, mas também no orgulho, na vingança, no amor à virtude, à doença e à
depravação. Os sacerdotes tornaram o homem um animal interessante dando-lhe
profundidade e maldade à sua alma: foram estes atributos que asseguraram o domínio
destes leprosos metafísicos sobre os demais homens: não dominaram pela força como
um guerreiro, contudo pela fé, esperança e amor.
Nietzsche percebeu que nos últimos séculos tanto a filosofia como a psicologia
ficaram sob domínio da moral: isto pode ser visto com os psicólogos ingleses que ao
discutirem os conceitos bom e mau os aproximaram da utilidade da ação para a vida:
bom é aquilo que conserva a vida e mau o que prejudica. Ao tratar estes conceitos sob
este ponto de análise eles evitaram a crítica a estes valores; o que eles conseguiram foi
apenas fazer uma história da origem dos sentimentos e dos valores.
Este posicionamento não foi aceito por Nietzsche, pois para ele o papel da
Psicologia seria a crítica à moralização dos valores e dos sentimentos do homem.
Compete ao psicólogo combater a inocência desses moralistas e denunciar a verdade
e a mentira imanentes a eles; por isto não devemos esquecer que é preciso desconfiar
dos primeiros impulsos, porque quase sempre são bons.
Não podemos esquecer que a moral é primeira intelecção de Nietzsche, que a vê
como algo negativo ao afirmar que “não há absolutamente nenhum fato moral”, por isso
“é preciso alvejar a moral.”

4
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. 4a ed. Lisboa: Guimarães, 1983, p. 21.

3
Falar em juízo moral é falar um absurdo: o juízo moral e o juízo religioso têm em
comum crer em realidades, que não são realidades. Para ele a pergunta mais difícil é:
“O que significa, sob o ponto de vista da vida, — a moral? [...]”5
O juízo moral deseja destruir as paixões: a igreja as castra; com isso ela não
destrói as paixões, mas destrói a própria vida. O ódio com que ela trata a sexualidade
manifesta todo ódio que ela tem pela vida.
O homem torna-se moral, porque naturalmente ele não é moral; a moral é fruto de
indizíveis crimes: os homens a aceitam por frouxidão de caráter.
A moral é tão somente um discurso de signos e nada mais; ela é uma tentativa de
sacerdotes doentios de salvar o homem, entretanto eles nada sabem sobre a natureza
humana: eles tentam amansar a besta humana utilizando o medo, as chagas, a fome
não porque estejam pensando no bem estar daquele que foi domesticado, pelo contrário
a moralização da besta humana é uma das diversas formas dos doentes imporem a sua
vontade de poder.
O homem dominado pela moral torna-se um pecador, o qual por não ter coragem
de praticar a maldade para com os demais volta-a para si mesmo e enche-se de ódio à
vida: torna-se um insípido, vingativo e indecoroso cristão.
A moral dos sacerdotes se desenvolve em oposição à moral da aristocracia
guerreira. Nietzsche considera aqueles como os inimigos mais malignos, porque são os
mais impotentes: “Os judeus, com uma lógica formidável, atiraram por terra a
aristocrática equação dos valores ‘bom’, ‘nobre’, ‘poderoso’, ‘formoso’, ‘feliz’, ‘amado de
deus’. E, com encarniçamento do ódio afirmaram: ‘Só os desgraçados são bons; os que
sofrem, os necessitados, os enfermos, são os piedosos, são os benditos de deus; só a
eles pertencerá a bem-aventurança; pelo contrário, vós, que sois nobres e poderosos,
sereis por toda a eternidade os maus, os cruéis, os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios,
os réprobos, os malditos, os condenados [...]’.” 6
A vingança dos judeus contra os seus dominadores ocorreu por intermédio de uma
vingança espiritual (devido à falta de um exército forte): com eles os escravos se
tornaram livres na moral. O ódio dos judeus transmutou os valores e criou-se um novo
amor que “persegue os mesmos fins que o ódio: a vitória, a conquista, a sedução.”7
Esta rebelião teve início, quando o ódio dos fracos “começou a produzir valores”,
entretanto como eram escravos a sua vingança não poderia ser física, pois senão os
seus senhores os aniquilariam, por isso toda a vingança dos fracos tornou-se imaginária:
é a moral que nega toda afirmação da vida e coloca um não em tudo aquilo que não
pode alcançar.
Os escravos ao criarem não partem da afirmação dos seus valores, contudo
iniciam a partir da negação de tudo o que é humano. Por serem vingativos os escravos
não tinham um ato criador, todavia eles negavam tudo que para eles era impossível ter.
A força deseja manifestar-se dominando os mais fracos: não aceitar isto é tão insensato
como querer que os fracos dominem. A uma determinada quantidade de força
encontramos a mesma quantidade de instinto, vontade e ação: nós não percebemos

5
NIETZSCHE, F. A Origem da Tragédia Proveniente do Espírito da Música. EbooksBrasil, 2006,
p. 13.
6
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Moraes, p. 09.
7
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Moraes, p. 10.

4
assim devido aos erros de linguagem que deseja identificar em cada efeito uma causa
eficiente, um “sujeito”. Nietzsche, em síntese, ao falar sobre os instintos desejava
afirmar que as motivações humanas são aspectos superficiais.
O equívoco cometido pelos plebeus está em separar a força dos seus efeitos
identificando um substratum neutro, cuja liberdade pode agir com uma determinada
força: este é o erro, pois somente existe a ação e não há nada por trás da ação,
buscando, assim, uma relação de causa e efeito.
Por serem fracos eles necessitam acreditar neste substratum possuidor de livre
arbítrio, entretanto esta atitude é apenas uma técnica de sobrevivência, uma justificação
da sua insignificante existência, porque toda mentira tende a se justificar.
Contra essa reação Nietzsche apresenta a moral dos aristocratas, que para serem
felizes não construíram um mundo artificial como os rancorosos o fizeram. Para o
aristocrata a noção do “mau” veio tardiamente, ao passo que o “maligno” do rancoroso
foi o ponto de partida para a moral dos escravos.
Diante da moral, como de qualquer outra autoridade, devemos nos calar: esta é
uma das dificuldades de se fazer uma crítica à moral, uma outra seria os seus
instrumentos de tortura, contudo a sua mais eficiente estratégia é a sedução. Além
disso, a moral é irrefutável, uma vez que os seus resultados devem ser interpretados, o
que na maioria das vezes é feito de modo impreciso. Desde Platão (427-347 a.C.) até
Immanuel Kant (1724-1804) os filósofos edificaram as suas filosofias sobre o vento, isto
porque foram seduzidos pela moral. A conclusão a que chega Nietzsche ao olhar para
esse pusilânime cristão foi que depois de Kant a filosofia morreu.
Os filósofos têm duas idiossincrasias: negar os sentidos; afirmar a existência de
um deus. Eles acreditam que ao tornarem a coisa eterna estão honrando-a, todavia o
que eles fizeram nos últimos milênios não foi nada de vital: Ao defenderem o Ser (uma
ficção vazia) negaram a sensibilidade, o corpo, a vida.
A moralidade nada mais é do que a obediência aos costumes, pois quando não
há uma tradição se impondo a moralidade desaparece. Neste sentido o homem livre
depende de si mesmo e não da moralidade, por isso ele é considerado imoral.
O homem antigo obedece à tradição não porque seja útil, mas porque ela ordena:
este homem antigo age moralmente, pois, em primeiro lugar, cumpre a lei; em seguida
é aquele que lhe obedece em todas as circunstâncias árduas.
Os moralistas, os seguidores de Sócrates, pregam o domínio de si como o
interesse e a felicidade mais pessoal, por este motivo eles são excluídos por serem
imorais e maus na perfeita acepção do termo. Aquele que vive sob o domínio da moral
passa a desprezar: as causas; as consequências; a realidade. E por divagações várias
põe os sentimentos elevados “num mundo “imaginário”, o qual o considera como
superior ao mundo em que se vive.
Crer em um mundo no além é apenas sofrimento e humilhação: este deus que
vive no além é um delírio daqueles que mais sofrem. O além-mundo não fala do Ser,
porém do próprio homem.
Friedrich Nietzsche ao negar o mundo platônico apresenta o mundo pré-socrático
como aquele que os homens deveriam seguir. São dois mundos antagônicos, os quais
valorizam os aspectos distintos da vida: dionisíaco; socrático.
O mundo dionisíaco é pré-socrático, ama a vida e vive o prazer de modo ilimitado:
é uma vivência estética, que tem a arte como experiência (a base da arte é a imprecisão

5
da vista); além disso, é vivida por um pequeno grupo de corajosos (aristocráticos) que
valoriza a emoção da vida presente constituída de caos e liberdade.
É por esse motivo que ele brada que toda e qualquer tentativa de justificação do
mundo deve partir da estética e não da moral platônica que desvaloriza a vida.
A questão que move Friedrich Nietzsche na sua maturidade intelectual é relativa
ao bem e ao mal: valor; humanidade; vida. Entretanto, este problema foi vislumbrado
por ele na sua “meninice”, o qual foi denominado por ele como o seu primeiro a priori:
qual a origem das ideias do bem e mal? Um pouco mais tarde, aos treze anos, surge o
seu segundo a priori, imoralista e antikantiano: a origem do mal se encontra em deus.
Um pouco mais velho Friedrich Nietzsche percebeu que o seu preconceito teológico não
poderia se misturar com o preconceito moral, por isso abandonou a resposta metafísica.
Por isso, com relação à moral e à religião a reflexão nietzscheana defende que as
propriedades humanas não são algo dadas ao homem (como queriam os maiores
doentes que a natureza se indignou de criar: Platão e Immanuel Kant). Não há nenhum
responsável pela existência do homem tal como ele é: a sua existência nada mais é do
que as suas experiências, pois não existe uma causa, muito menos uma vontade ou
uma finalidade para sua existência.
É inútil procurar um ideal do homem ou de felicidade ou de moralidade, pois não
há finalidade alguma: “Esta oficina onde se ‘constrói o ideal’, cheira-me a mentira e a
embuste.”8 O conceito finalidade foi inventado pelo próprio homem, assim percebemos
que falta finalidade à sua vida.
Ao tentar encontrar uma finalidade os moralistas passaram a julgar os homens,
contudo adverte Nietzsche que não se pode julgar o homem, porque isso implicaria em
julgar o todo, entretanto aquele que julga deveria ficar fora do todo e não existe nada
fora do todo, portanto não há necessidade de se ser responsável frente a uma causa
prima, pois o mundo não é uma unidade: reconhecer isto é reconhecer-se livre.
Tanto a moral como a religião nos remetem a uma psicologia do erro, pois ambas
confundem causa e efeito; ou a verdade é confundida com a crença; ou um estado de
consciência é confundido com a causalidade de tal estado. A moral e a religião se
encontram no reino das causas imaginárias.
Devemos negar a moral e isto pode ser feito por duas maneiras: “negar a
moralidade”; “negar que os juízos morais repousam sobre verdades.” No primeiro caso
afirma-se que a moral é um erro e existe somente em palavras.
No segundo, o qual Friedrich Nietzsche defende, admite-se que os juízos morais
são motivos para as ações, ao mesmo tempo em que aceita que são erros os seus
fundamentos. Ele nega os postulados dos juízos morais, bem como a imoralidade: no
sentido de que não existe motivo algum para os imoralistas sentirem-se assim. É preciso
encorajar o comportamento moral, não no sentido da aceitação atual, pois é preciso
mudar os nossos julgamentos: “mudar nossa maneira de sentir.”9
No Segundo Ensaio de A Genealogia da Moral ele discute a capacidade do
homem de esquecer e a criação da memória por ele mesmo: a capacidade do homem
em fazer promessas é consequência da educação e da disciplina, por esse motivo essa
transformação deveria ser o verdadeiro problema a ser estudado.

8
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Moraes, p. 19.
9
NIETZSCHE, F. Aurora. Porto: Rés, 1983, p. 67.

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O esquecimento não é uma violenta ignorância, contudo um poder ativo o qual
nos fornece todas as coisas, que nos acontecem na vida, desse modo a felicidade se
ligaria umbilicalmente à capacidade que o homem tem de esquecer. A felicidade é a
felicidade na aparência.
Não obstante, o homem criou para si a memória, a qual é uma vontade “ativa” de
guardar impressões.
A mnemotécnica foi implantada ao homem por meio da violência, cuja pedagogia
que o submeteu pode ser resumida na máxima: “A letra com sangue entra”. A criação
da memória se fez por meio de cruéis holocaustos (o sacrifício do primogênito, as
castrações feitas pelas religiões, que são os mais perfeitos sistemas de crueldades),
porque desde muito sabemos, que a dor auxilia na memória.
É aí que encontramos o ascetismo, cujas ideias se fixam a tal ponto na memória
que devem impedir o funcionamento do sistema nervoso e intelectual.
O efeito mais geral do intelecto é a ilusão: ele é uma forma que o indivíduo
encontrou, a fim de preservar a sua vida, para tanto o intelecto utiliza a dissimulação.
Nesse ponto Nietzsche introduz a discussão sobre a origem da responsabilidade:
ao domesticar a fera humana foi necessário torná-la moral e deste modo tornou-a
sociável10. O homem tornou-se apreciável, por intermédio da moral e da socialização: o
homem autônomo, com vontade própria é o homem forte, que por ser “livre” pode
prometer, pois está fundado nos seus próprios instintos e como tal, por admirar os seus
semelhantes julga-os respeitando-os ou desprezando-os.
É a consciência do homem a última fase da evolução e, por extensão, a parte mais
fraca do sistema, porquanto dela têm origem os erros que levam o homem à perecer
cedo demais.
A humanidade somente não é destruída totalmente, porque o instinto é mais forte
do que a superficialidade da consciência11; não obstante o instinto pode ser destruído
bastando, para tanto colocar em prática um dos métodos a seguir.
A psicologia da atribuição da responsabilidade anda lado a lado com o instinto de
querer-castigar-e-julgar. O devir perde a sua inocência, quando se lhe atribui uma
vontade, uma intenção, uma responsabilidade.
O conceito vontade livre é uma criação dos tirânicos teólogos, cujo objetivo é
tornar a humanidade responsável de acordo com o critério que eles inventaram, a fim
de que ela passe a depender deles, por conseguinte a doutrina do livre arbítrio é a
doutrina do castigo, do desejo de encontrar culpados.
A psicologia da vontade livre tem origem no desejo de punição que os sacerdotes
desejavam impor aos demais: eles afirmavam que esse direito de punir foi-lhes dado
por deus, mas sabemos que ele surgiu ou por medo e prudência, ou por dádiva e
renúncia.
Os sacerdotes consideraram a humanidade livre, a fim de que pudessem julgá-la
e puni-la tornando-a culpável. A origem de toda esta ação se encontrava na consciência,
a qual de pia fraus se tornou o próprio princípio da Psicologia: “a piedade é desprezível
e indigna de uma alma forte e temível; [...].”12

10
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Moraes, p. 29.
11
NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. Lisboa: Guimarães, 2002, p. 48.
12
NIETZSCHE, F. Aurora. Porto: Rés, 1983, p. 20.

7
A piedade é um sentimento dos fracos, cujo desejo de dominar é pequeno: os
piedosos desejam dominar os sofredores, por serem eles presas fáceis 13, contudo não
devemos esquecer: “Não foi vossa piedade, mas vossa bravura que até hoje salvou os
desafortunados.”14
Ao se opor a esta doutrina do livre arbítrio Friedrich Nietzsche deseja extirpar o
conceito de culpa e castigo do mundo, assim será possível depurar “a psicologia, a
história, a natureza, as instituições sociais e as sanções sociais”: de todos os inimigos
os mais perigosos são os sacerdotes, que com o seu conceito de “ordem moral do
mundo” tornaram turva a cristalinidade do vir a ser, manchando-o com o chicote da
consciência: o pecado, o sustentáculo da metafísica do carrasco – o cristianismo.
É devido a este aspecto, que defende ser a Psicologia a única ciência em
condições de criticar a moral, pois ela é questionadora dos sentimentos na sua origem
e história expondo e resolvendo os “problemas sociológicos”.
A moral como atividade metafísica do homem é apresentada no prólogo a Richard
Wagner; isso pode ser visto nas diversas vezes em que a existência do mundo é
justificada como fenômeno estético: por trás dos acontecimentos encontra-se um artista
(um deus-artista) indubitável e imoral, cujo único objetivo é permanecer o mesmo no
prazer e na magnificência em todas as circunstâncias.
Esta metafísica do artista se oporá à moralização da existência: ela é a
manifestação, talvez, pela primeira vez de um pessimismo “além do bem e do mal”.
Eis a perversidade moral à qual Arthur Schopenhauer (1788-1860) lançou-se
inúmeras vezes contra ela: eis o momento em que Nietzsche degrada a moral ao mundo
das ilusões. Neste livro o cristianismo é tratado de maneira hostil, todavia silenciosa
porquanto seja o cristianismo a desfiguração da moral.
É o cristianismo o elemento que justifica a interpretação estética do mundo,
porquanto ao se tornar somente moral exila a arte ao campo da mentira.
Essa religião ao odiar a arte está rejeitando a vida, pois que a vida é erro,
perspectiva e arte. O ódio à beleza e ao sensual fez com que o cristianismo criasse um
além, a fim de que pudesse maldizer o hic et nunc.
Como “inclinação para o nada”, o cristianismo, se atém à moral como valor
absoluto e como “vontade para o desaparecimento”, isso é um sinal de fraqueza da vida,
porquanto tenta negar a vida por ela ser imoral.
A vida no cristianismo torna-se negada como sem valor: a moral (“perigo dos
perigos”), portanto, afirma Friedrich Nietzsche, deveria ser vista com a negação da vida.
Ao defender a vida ele voltou-se contra a moral por intermédio da arte: a esta revolução
anticristã ele denominou de doutrina dionisíaca.
A fim de exprimir o seu desprezo pela moral cristã ele utilizou argumentos
kantianos e schopenhauerianos contrapondo-se a Immanuel Kant (1724-1804) e Arthur
Schopenhauer (1788-1860), para este a tragédia é o reconhecimento de que a vida não
poderia nos dar satisfação, por isso deveríamos nos resignar.
Não foi este posicionamento schopenhaueriano que mais causou desprezo ao
pensamento, ao seu pensamento, não obstante o fato dele ter misturado aspectos
modernos com o mundo grego: pensar os helenos através da esperança; quão longe

13
NIETZSCHE, F. Gaia Ciência. Lisboa: Guimarães, 2002, p. 52.
14
NIETZSCHE, F. Zaratustra. São Paulo: Escala, 2009, p. 42.

8
ele se colocou dos gregos, os quais a consideravam como pérfida e violenta como bem
coloca Hesíodo.
Assim, ele percebeu que o alemão, bem como a música alemã, não tinha nada
mais de grego, porquanto se tornara romântica. Ah! O cristianismo! Prefere crer no nada
a crer no agora.
O cristianismo pôs fim à comédia da virtude e no seu lugar colocou o pecado, a
culpa: “A castidade da religiosa: com que olhar vingativo contempla as mulheres que
vivem diferentemente!”15 Ele ameaça a vida com um perigo inteiramente novo: a
salvação eterna.
O cristianismo abandonou o entusiasmo refinado e a grosseria da humilhação,
para se tornar uma religião mais espiritual.
Desse modo, tornou as paixões más e pérfidas: todas as excitações sexuais
tornaram-se signo de infelicidade interior. Tudo aquilo que deve ser expulso do
pensamento deve ser considerado uma má consciência: “E enquanto a boa consciência
se chama rebanho, só a má diz: Eu.”16 O Eu astuto não é o nascimento do rebanho,
contudo seu declínio.
Nós não aceitamos nenhum tipo de tortura, seja para com os animais, seja para
com os homens; contudo quando se trata da tortura da alma imposta pelo cristianismo
nós ainda nos torturamos.
No mundo trágico grego a infelicidade e a falta fazem parte da vida dos homens;
no caso do cristianismo eles se tornaram a mesma coisa: o grego via a falta como um
sinal de que deveria se comportar com mais circunspecção e menos arrogâncias, sem
embrago somente o cristianismo foi capaz de defender que a infelicidade indicava uma
grande falta. O mundo grego havia uma infelicidade em toda a sua inocência, ao passo
que no cristianismo tudo se torna punição.
Podemos entender a honestidade do cristianismo ao lermos os escritos dos seus
sábios: eles não ficam perplexos ao defenderem e interpretarem os seus dogmas, pois
admitem estarem certos uma vez que “está escrito”.
O filósofo frente a este comportamento tem de se conter, para não cair na
gargalhada: “É isto honestidade? É sequer decente?”17 O pastor ensina o povo a ler mal:
somente não percebe isso quem não vai à igreja ou vai constantemente.
A educação cristã é uma educação do erro, pois o homem deve ser ensinado a
não se esconder nas coisas celestes e sim a voltar-se para a terra: o corpo sadio e
perfeito fala o sentido da terra; enquanto os doentes e degenerados platônicos desejam
o mundo do além.
O psicólogo ao buscar a origem do bem no mal18 deve ultrapassar toda moral e
se colocar além do bem e do mal. Tal situação exige, que ele não seja mais culpado,
pecador (pois para o cristianismo duvidar é pecado19), pois isto o torna mais pesado
mais “cheio de espírito”: evitar as crenças, a moralidade e a metafísica torná-lo-ia mais
leve e mais forte na sua transvalorização de todos os valores. É preciso que na sua

15
NIETZSCHE, F. Aurora. Porto: Rés, 1983, p. 27.
16
NIETZSCHE, F. Zaratustra. São Paulo: Escala, 2009, p. 51.
17
NIETZSCHE, F. Aurora. Porto: Rés, 1983, p. 57.
18
NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal, § 23.
19
NIETZSCHE, F. Aurora. Porto: Rés, 1983, p. 60.

9
nova interpretação da exuberância da vida o psicólogo tenha como meta uma vontade
de potência.
A transvaloração de todos os valores é a tentativa nietzschiana de negar o mundo
perfeito platônico, para ele devemos aceitar a vida como ela é (amor fati), portanto é
preciso negar a esperança indicada pelo cristianismo e pela ciência.
A destruição destes valores, por parte de Friedrich Nietzsche, não é apenas a
destruição pela própria destruição (niilismo negativo), contudo tem a intenção de criar
novos valores, os quais valorizam a efemeridade da vida (niilismo positivo): esse é o
momento em que ele apresenta o seu insight mais caro: o eterno retorno do mesmo –
não só precisamos aceitar a vida como ela é, contudo é indispensável que admitamos
a eterna repetição de cada instante.
Friedrich Nietzsche se opõe à compaixão, porque ela é uma falsidade travestida
em verdade: “Não será simplesmente porque vossa sensualidade se disfarçou e tomou
o nome de compaixão?”
Ele também se opõe à moral altruísta por percebê-la como feminilidade,
sentimentalismo e decadência: há algo de novo na história do conhecimento: a moral
como sintoma da decadência de um povo. Por este motivo admoesta que quem se
dedicar a uma análise mais detalhada não aceitará os valores existentes e exigirá um
novo conjunto de valores, para tanto é preciso fazer três questionamentos: primeiro
devemos fazer uma crítica aos valores morais; depois questionar o valor dos valores;
por fim buscar a origem, o desenvolvimento e a deformação causada pela moral.
O valor dos valores torna-se um postulado com o qual se atribui um valor superior
ao bem em relação ao mal, por isso ele questiona se não poderia ocorrer o contrário: o
homem bom talvez fosse um retrocesso, visto que abandona o presente e busca o
futuro, deseja uma vida agradável, porém quanto mais busca essa fantasia mais ele se
torna mesquinho. Sendo assim, Friedrich Nietzsche propõe os seguintes problemas:
não é a moral a responsável pelo homem não atingir o seu máximo poder? Não é a
moral o perigo por excelência?
O ato de dar valor a alguma coisa tem origem ou no indivíduo ou é adquirido por
ele: nós seguimos determinada regra moral por medo que devido à dissimulação
constante torna-se uma segunda natureza. A apreciação do valor vem desde a nossa
infância, apesar de não termos coragem de voltar a ela, entretanto “somos, geralmente,
por toda a vida, guiados por juízos adquiridos enquanto criança, [...].” 20
Os indivíduos agem mais por influência daqueles que lhe são próximos do que por
“egoísmo”. É comum ouvir dizer que “o objetivo da moral seria a conservação e o avanço
da humanidade; [...].”21 Isto revela apenas o desejo de se encontrar uma fórmula,
contudo devemos fazer duas perguntas: conservar o quê? Avançar para onde? O que
nos leva a um terceiro questionamento: por que deveria ser a moral que nos conduziria?
A cultura tem como objetivo fazer da besta humana um animal manso e civilizado:
os seus instrumentos foram os instintos de reação e de rancor, por intermédio dos quais
puderam domar as raças aristocráticas: “Os instintos precisam ser combatidos – esta é

20
NIETZSCHE, F. Aurora. Porto: Rés, 1983, p. 67.
21
NIETZSCHE, F. Aurora. Porto: Rés, 1983, p. 68.

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fórmula da décadence. Enquanto a vida está em ascensão, a felicidade é igual aos
instintos.”22
O homem da moral vingativa (o platônico e o seu caso particular o cristão) aquele
que abandonou os valores da terra, para se perder em nuvens e em teias de aranha,
deve ser superado pois ele “existe para ser superado.”
Com a morte do homem moderno o Übermensch (o sentido da terra) deve ocupar
seu lugar; aquele ainda traz consigo muito da sua origem nos vermes, por isso ele deve
ser superado deve se tornar o Übermensch: superar o homem não é ir para as alturas
como deseja os envenenadores da vida, contudo é voltar e fixar os seus pés à terra; por
conseguinte o maior ultraje não é blasfemar contra deus, pois ele está morto é dizer não
à vida.
O culto à alma, a alma como superior ao corpo, foi o modo que os sacerdotes
encontraram, para desprezar a vida (como não podiam viver intensamente os desejos
e vontades do corpo preferiram destruí-la criando a moral): humilhar o corpo esta era a
alegria da alma. É preciso ultrapassar a tirania da alma com toda a sua imundície e
somente o Übermensch é capaz de entrar em contato com esta sujeira e não se poluir.
O homem é uma corda que se estende sobre um abismo entre o animal e o
Übermensch: o homem não é uma meta a ser alcançada, todavia é apenas uma ponte
entre os extremos (é a isso que se deve amar no homem): é digno de amor aquele que
vive em declínio, pois ele pode alcançar o alto e o além; os desdenhadores devem ser
amados, porquanto eles são como flechas disparadas à outra margem.
Para se chegar ao Übermensch é preciso o espírito passar por três metamorfoses:
primeiro ele se transforma em camelo; depois o camelo em leão; por fim o leão em
criança.
O espírito do camelo é pesado e sedento do deserto: ele se rebaixa, se
enlouquece, abandona a vitória iminente, deixa a alma padecer de fome por causa da
verdade, é amigo daqueles que nunca o ouvem. Assim, o camelo se sobrecarrega e
foge para o deserto, onde se resigna e respeita os valores morais.
Sozinho no deserto o espírito se torna leão, a fim de se tornar livre e rei de si
mesmo: deseja lutar contra o seu último dragão, quer ser inimigo do seu último deus. É
o momento em que o espírito se afasta da mais antiga moral do tu deves (o camelo
Immanuel Kant), pois o seu o espírito de leão diz eu quero; contudo o dragão tu deves
tenta impedir a criação de novos valores: o leão não tem condições de criar esses novos
valores, contudo ele pode alcançar a liberdade que fará o leão dizer não ao dever moral:
esta é a tarefa mais difícil a ser alcançada.
Na terceira e última metamorfose o espírito se torna criança: inocência, recomeço
e afirmação. É o espírito que perdeu o seu mundo e quer conquistar o mundo pela sua
própria vontade.

22
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 23.

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