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CIÊNCIA E IDEOIOGIA*

PAUL RICOEUR

Unívenidade de Nantene, Flança

Permitam-me prestar homenagem â memória do Doutor Angélico iniciando este


estudo sob a inspiração daquele a quem Santo Tomás chamava de o Filósofo. No
prólogo da Étics a Nicômaco, encontramos a æguinte passagem: 'Nossa tarefa terá
sido satisfatoriamente executada se fornecermos os esclarecimentos que comporta a
natureza do tema de que tratamos. Não se deve, com efeito, procurar indiferentemente
o mesmo rigor em todas as discussões, assim como tampouco o exigimos nas produções
da arte. As coisas belas e as coisas justas que constituem o objeto da política, dlo
margem a tais divergências e incertezas que alguns chegaram a acredilar que essas
coisas só existem por convençâ'o e não por naturezå... Assim, quando tratamos de
temas como esses e quando partimos de tais princípios, deve¡rros nos contentar em
mostrar a verdade de maneira grosseira e aproximada... É, nesse nìesmo espfrito, por-
tanto, que deverão ser acolhidas as diversas opiniões que emitimos aqui, pois é carac-
terfstico de um homem cultivado só procurar o rigor para cada gdnero de coisa na
medida ern que o admite a naturezå do tema... Assim, pois, julga bem num domfnio
determinado aquele que recebeu uma educaçlo apropriada, ao passo que, enì matérias
que excluenr qualquer especializaçã-o, é bom juiz aquele que recebeu uma cultura
geral..."(1094 B, I I - 1095 A 2).
Por que introduzi esse texto? Não pela comodidade da epígrafe e do exórdio, mas
em funçâ'o da disciplina mesma do raciocfnio. Pretendo mostrar, com efeito, que o
fenômeno da ideologia pode receber uma apreciação relativamente positiva se obser-
varmos a tese especificamente aristotélic¿ da pluralidade dos nfveis de cientificidade.
Aristóteles, com efeito, nos diz várias coisas na passagem transcrita; que a polftica
trata de coisas variáveis e instáveis, que o ponto de partida dos raciocínios nesse
domrnio são fatos geralmente verdadeiros, mas nem sempre verdadeiros; que o juiz
nessa matéria é o homem cultivado e não o especialista; que é necessário, por con-
seguinte, contentar-se em mostrar a verdade de maneira gosseira e aproximada (ou,
segundo uma outra tradução, "grosso modo e esquematicamerrte"); e, fìnalmente,
que assim é porque o problema é de natureza prática.

* ra vez em francês na Revue


p. 328-356, sob o títuìo de
publicado em comemolaçâo

Cadernos de História e Filosofia da Ciência I (1980), pp. 2l-4?


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Esse texto tem função de advertdncia no limiar da nossa investigaçâ'o. Poderá nos
preteger,com efeito, das armadilhas múltiplas com que nos ameaça o tema da ideologia
(tema esse que, diga-se de passagem, eu jantais teria escolhido esPonlaneamente; ao
contrário, ele me foi dado e cu o aceitei sob a forma de um desafìo). Ora, acabo de
mencionar armadilhas muJtiplas. Elas são de dois tipos e a sua identificaç5'o servlrá de
introduçao às duas primeiras parles propriamente críticas da minha exposição.
O primeiro problema com que nos defrontamos é, antes de mais nada, a definiç5o
inicial do fenómeno que pretcndemos investigar. E já aqui surgem várias armadilhas. A
primeira consiste em considerar conlo eyidente e não problemálica uma análise em
termos de classes sociais. lsso lrojc nos parece inteiramenle natural, tal é a força da
marca qr¡e o marxismo imprirniu ao problema da ideologia, embora tenha sido
Napoleão o primeiro a fazer desse termo uma arma de combate (fato que, qomo
veremos adiantc, lalvez não deva ser definitivamente esquecido). Adotar de imediato
a análise da ideologia em [ermos de classes sociais signilìca ao mesmo tempo aprisio
nar-se numa polérnica estéril a favor ou contra o marxismo. Ora, necessitamos hoje
de um pensamento que se mantenha livre diante de qualquer operação de intimidação
que esses adversários exercem uns sobre es outros, de um pensamento que tenha a
audácia e a capacidarJe de atravesvr Marx, sem segui-lo nem combatéJo. Creio que
Merleau-Ponty fala, em algum lugar, de um pensamento a-marxista: é exatamente isso
que tambénr procuro praticar.
Para evitar essa primeira armadilha, contudo, é necessário esquivar uma segunda,
que consiste em definir inicialmente a ideologia pela sua funçã-o de justificação, não
apenas em relaçâ'o a uma classe qualquer, mas em relação a uma classe dominunte.
Parece-me necessário escapar ao fascínio exercido pelo problema da dominaçã-o e con-
siderar um fenômeno mais amplo, o da integraçã'o social, do qual a dominação é cer-
tamente uma dimensão, mas não a condição única e essencial. Ora, só admitimos sem
questicinamento que a ideologia é uma função da dominação porque também já admi-
timos sem crltica que ela é um fenômeno essencialmente negativo, primo do erro e da
mentira e irmã'o da ilusão. Na literatura contemporánea que trata da questâ'o, os auto-
res já nem mais sequer examinam a idéia, que passou a ser absolutamente natural, de
que a ideologia é uma representação falso, cuja funçâ'o consiste em dissimular a per-
tinéncia* * dos indivíduos, pertinência essa professada por um indivíduo ou por um
gupo e que esses tém interesse em não reconhecer. Ora, se nÍo quisermos esquivar
essa problemálica da distorção interessada e inconsciente, nem, tampouco, aceitá-la
como dada, torna-se necesvário, me parece, afrouxar os laços entre teoria da ideolo-
gia e estratégia da suspeita, ainda que venhamos a mostrar mais adiante, através da
** Por razões de econonria, o termo "pertinôncia"traduzi¡á a exprcssâo francesa "oppørtetunce",
que significa "o fato (ou a propriedade) de pcrlencer a", "o fato (ou a propriedade) de ser (ou
fazer) parte de" e, mais especificamente, "o fato para unì indivíduo ou grupo de pertencer a
uma coletividade qualqucr (raça, país, classe, parlido, cultura, tradiçao, etc)". O conceilo que
a expressão veicula ncsse arliqo é apresentado claramente na página 41. (Noto tlo tradufor).
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descriçâ-o e da análise, por que o fenómeno da ideologia requer a suspeição como res-
posta.
Ora, esse primeiro questionamento das idéias adquiridas jd incorporadas à deûnição
inicial do fenómeno, é solid¡irio de um segundo questionamento, cujo objeto é o esta-
tuto epistemológico da própria teoria ideologias. O nreu tema: ideologia e verdade,
das
se refere mais especifìcamente a essa segunda linha de interrogação. Ora, uma série de
armadilhas também nos espera nessa direção. Para conreçar, admite-se apressadamente
que o homem da suspeita não está, ele próprio, contaminado pela tara que ele denun-
cia; a ideologia é o pensamento do meu adversário, é o pensamenlo dooutro.Ele não
sabe disso, mas ø1, sei.
Ora, o problema é saber se existe um ponto de vista sobre a ação capaz de desligar-
se da condiçâ'o ideológica do conhecimento engajado na praxis. Há uma outra pre-
tensão vinculada a essa primeira: certos autores afirmanr que não apenas existe um
lugar não ideológico, mas que esse lugar é o lugar de uma ciêncio, compardvel à ciéncia
deEuclidesparaageometriaeâdeGalileuedeNewtonparaafísicaeacosmologia.
É r¡m falo notiível que essa pretensão, particularmente viva nos marxistas mais eleatas,
seja exalanrenle a mesnra que Aristóteles, em matéria de ética e de polftica, condenava
nos platônicos da sr¡a época, e à qual ele opunha o pluralismo dos métodos e o plu-
ralisnlo d<ts grarrs de rigor e de verdade.
Ora, lroje crn dia lcmos razões novas para justifìcar esse pluralismo, resultantes de
toda a reflcxão mode¡na sobre a condição especificamente histórica da compreensão
da hislória. lisvr simples observação, que já antecipa todo unr desenvolvimento ulte-
rior, indica r¡uc a naturez.a dzr tclação enlre ciëncia e ideologia depende tanto do
sentido que podcnros dar à noção de ciéncia nas malé¡ias práticas e polfticas quanto
do sentido t¡ue conferimos à própria ideologia.
As duas linhas de discr¡ssão discriminadas acima deverão convergir para uma questâo
que constilrri, rle certa nraneira, a questão de confiança; ela será objeto de exame na
terceira parte desle artigo. Se nâo há ciéncia capaz de fugir à condiçã'o ideológica do
saber prálico, é rrccessário renunciar pura e simplesmente â oposição entre cidncia e
ideologia?
Apesar das sólidas razões que indicam essa conclusão, tentarei salvar a oposiçã'o,
renunciando, enlretanto, a formulá-la nos termos de uma alternativa e de uma disjun-
ção. Para tanto, lentarei atribuir um sentido mais modesto - isto é, menos taxativo,
e menos pretencioso â noçâ'o de uma crt'tíca das ideologias, localiz¿ndo tal crftica no
quadro de uma interpretação que sabe estar ela própria historicamente situada, mas
qu'e se esforça, apesar disso, por introduzir, na medida do seu possível, um fätor de
distanciaçâ'o no trabalho que permanentemente retomamos a fim de reinterpretarmos
as nossas heranças culturais.
Este é o horizonte do presente ensaio: só a busca de uma relação intimamente dia-
lética entre ciéncia e ideologia me parece compatfvel com o grau de verdade ao qual,
como nos dizia Aristóteles, podemos pretender nas coisas práticas e poUticas.
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LAruÍlise dos critérios do fenômeno ideológico

Assim, minha tentativa de descrição do fenônpno ideológico não será feita, inicial-
mente, no nível de uma análise em termm de classes sociais e de classe dominante. Em
lugar de partir do conceito de ideologia que coneslnnde a essa análise, pretendo, ao
contrário, chegar a ele. Será essa a minha maneira de "atravessar" o marxismo.
Esse trabalho será executado em três etapas.
Meu ponto de partida é dado pela análise weberiana do conceito de ação social e
de relação social. Para Max Weber, há ação social quando o comportamento humano é
significante para os agentes individuais e quando o comportanìento de um está orien-
tado em função do comportamento do outro. A ese duplo fenômeno de sigrifìcação
da ação e de orientação mútua, a idéia de relação social vem acrescentar a idéia de Uma
certa estabilidade e previsibilidade de um sistema de significações. Ora, é nesse nível do
carâler significante, mutuamente orientado e socialmente integrado da ação, que o
fenômeno ideológico aparece enr toda a sua originalidade. Ele está ligado à necessidade
que tern um grupo social de se dar a si mesmo uma imagem de si próprio, de se
representar, no sentido teatral da palavr4 de se pôr em jogo e em oena. Esse é o
prirneiro traço do qual pretendo partir.
Por que é assim? Num artigo que muito nr impressionou e inspirour , Jacques Ellul
considera como primitiva, a esse respeito, a relação que uma determinada comunidade
histérica mantém com o ato fundador que a instaurou: Declaração Americana dos
Direitos, Revolução Frances4 Revolução de Outubro, etc. A ideologia é função da
distância que separa a rnemória social de um surgimento que, no entanto, é preciso
repetir. Seu papel não consiste apenas em difundir a convicção para além do clrculo
dos pais fundadores, a fim de torná-la o credo de todo o gupo; consiste tambémem
perpetuar, além do período de efervescênci4 a energia inicial dessa convicção. É nessa
distância, característic¿ de todæ as situações posteriora, que intervêm as imagens e æ
interpretações; é sempre numa interpretação que o modela retroativamente, através de
uma representação de si mesmo, que urn ato de fundação pode ser retornado e reatuali
zado. Talvez não exista grupo social sem essa relação indireta com o seu próprio
surgimento. É por isso que o fenômeno ideológico começa bem cedo, pois, com a
domesticação pela lembrança, começa, sem dúvida, o coff¡enso, mas também a conven
ção e a racionalização. Nesse momento, a ideologia deixa de ser mobilizadora para se
tornar justificadora; ou melhor, ela só continua a ser mobilizadora sob a condição de
ser justificadora.
Daí o segundo traço da ideologia que aparece nesse primeiro nível: o seu dinamismo.
A ideologia faz parte do que poderíamc chamar de uma teoria da motivação social.
Ela é para a prariis social o que é um motivo para um projeto individual: um motivo é
ao rn€smo tempo aquilo que justifìca e aquilo que arrasta. Asim como um motivo,
rp"gu"¡.Ellu.l,
"re 1ô^19-médialgrg d_e_t'idéologie",em'Dëmythivtbn et ldëologie. pubticado por
E. C:stclli, Aubier, 1973, pp. 335-354.
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também a ideologia argumenta: ela é movida pela vontade de demonstra¡ que o grupo
que a professa tem razão de ser o que é. Nâ'o devemos, contudo, tirar dal um argu-
mento precipitado contra a ideologia, pois seu papel mediador permanece insubstituí-
vel. Esse papel se exprime nisto que a ideologia, na medida em que é também iustificø-
çäo e projeto, é sempre mais do qu,e umreflexo. Esse cuâter "gerador" da ideologia se
expressa no poder fundador de ægundo grau que ela exerce em relação aos empreendi-
mentos e instituições que dela recebem a crença no caráter justo e necessário da açâ'o
institufda,
Como, porém, a ideologia preserva o seu dinamismo? Um terceiro traço æ apresen-
ta aqui: toda ideologia é simplificadora e esquemática . Ela é um escþerna de interpre-
tação, um código deslinado a fornecer uma visão de conjunto, não apenæ do próprio
grupo, mas da história e, no limite, do mundo. Ese caráter "codificado" da ideologia é
inerente à sua função justificadora; sua capacidade de transformação só se mantém na
medida em que as idéiæ que ela veicula tornam-se opiniões, na medida em que o
pensamento perde o rigor para aumentar a zua eñcácia social, como se só a ideologia
fosse capaz de mediatizar, não só a memória dos atos fundadores, mas os próprios
sistemas de pensamento. Assim, tudo pode se tornar ideológico: a ética, a religião, a
filosofia. "Essa t¡ansformação de um sistema de pensamento em sistema de crença",
diz Ellul, i o fenômeno ideológico. A idealização da imagem que um grupo tem de si
mesmo nada mais é do que um corolário dessa esquemalização. Corn efeito, é através
de uma imagenr idealizada que um grupo auto-representa a sua própria existência, e
é essa imagem que, por um efeito retroativo, reforça o código interpretativo. Podemos
constatá-lo a partir do fato de que, desde as primeiras celebrações dos acontecimentos
fundadores, já aparecem os fenômenos de ritualização e de estereotipia; um vocabulá-
rio já nasceu e, junto com ele, uma ordem de "denominações corretas": é o reinado
dos ¡srzos. A ideologia é por excelência o reinado dos ismos: liberalismq socialismo,
etc. Talvez só existam isrnos, mesrno para o pensamento especulativo, por assimilação a
esse nível de discurso: espiritualismo, materialismo, etc.
Esse terceiro traço permite perceber o que chamarei de caráter dóxico da ideologia:
o nível epistemologico da ideologia é oda opinião, da doxu'dos gregos. Ou, se preferir-
mos a terminologia freudiana, é o momento da racionalização. É por isso que ela se
exprime habitualmente em máximas, slogans, e formas lapidares. E é por isso também
que nada se aproxima mais da fórmula retôrica - arte do pr<lvável e do persuasivo - do
que a ideologia. Essa aproximação sugere gue a coesão sociai sô poderá ser ass€gurada
se não for ultrapassado o optirnum dóxico correspondente ao nível cultural médio do
grupo considerado. Mais uma vez, contudo, não devemos denunciar precipitadamente a
fraude ou a patologia: o esquematismo, a idealizrylo,a retórica são o preço a pagar
pela efìcácia social dæ idéias.
Com o quarto traço que passo agora a apresentar, começam a se precisar os caracte-
res negativos geralmente associados a uma ideologia. A característica em questão,
porém, não é comprometedora em si mesma. Ela consiste niSto que o códþ interpre-
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tativo de uma ideologia é muito mais algo em (Ne os homens habitam e Pensam do que
uma concepção que eles formulam.
Ernpregando outra linguagem, direi que uma ideologia é qeratôria e não temática.
Não a temos como um tema diante dm olhos; ao contrário, ela opera às nossas costas.
Não pensamos sobre ela; anteg é apartir dela que pensamm. Vemdaíapæsibilidade
de dissimulação, de distorçã'o que, a partir de Marx, ligou-se à kléia de imagem inverti
da da nossa prôpria posição na sociedade. Ora, talvez seja impossível, paraumindiví-
duo e mais ainda para um gfupo, formular tudo, tematizar tudo, pôr tudo como objeto
de pensamento. É essa impossibilidade - e a ela voltarei detalhadamente ao criticar a
idéia de reflexão total - que îaz com que a ideologia seja por natrreza uma instância
não crítica. Ora, parece certo que a não transparência de rrcssos codigos culturais é
uma condição da produção das mensagens sociais.
O quinto traço complica e agrava esse estatuto não reflexivo e não tranryarente da
ideologia. Refiro-me à inércia, ao atraso que pareoe cuacteizat o fenômeno ideológi-
co. Essa característica parece constituir o aspecto teryorol específico da ideologia. Ela
significa que o novo sô pode ser recebido a partir do típico, ele próprio proveniente da
sedimentação da experiência social. É aqui çe a função de dissimulação poderá æ
inserir. Essa função s€ exerce de maneira particular em relação a certas realidades que,
embora efetivamente vividas pelo grupo, são inassimiláveis pelo esquema direta. Todo
grupo apresenta traços de ortodoxia, de intolerância com a marginalidade. Talvez
nenhuma sociedade radicalmente pluralista, radicalmente permissiva seja possível. Em
algunr ponto sempre há algo intolerável. Algo intolerável a partir do qual há intolerân-
cia. O intolerável começa quando a novidade ameaça gravemente a possibilidade para o
grupo de se re-conhecer, de se re-encontrar. Esse traço pareoe, portanto, contradizer a
primeira função da ideologia, que consiste em prolongar a onda de impacto do ato
fundador. \
Ora, essa energia inicial, justamente, poszui uma capacidade limitada; ela obedece à
lei de usura.
A ideologia é, ao mesmo tempo, efeito de usura e resistência a ela- Esse paradoxo
está inscrito na própria função inicial da ideologia, a qual consiste em perpetuar um
ato fundador inicial sobi as espécies da "representação". É por isso que da é simulta-
neamente interpretação do real e obturação do possfvel. Toda interpretação æ prodrz
num campo limitado; mas, em relação às possibilidades de interpretação que perten-
cem ao elã inicial do acontecimento, a ideologia efetua um maior estreitamento de
campo. É nese sentido que se pode falar de fechamento ideológico e até de cegueira
ideológica. Mesmo quando o fenômeno se torna patológico, contudo, ele ainda guarda
alguma coisa da sua funçã'o inicial. É impossfvel que uma ûomada de consciência se
realne de outro modo que nÍio através de um códþ ideológico. Assim, a ideologia é
afetada pela inelutável esquematização que lhe está ligpda; ao afetar a si mesma, a
ideologia se sedimenta, ao passo que mudam os fatos e as situações. É esse paradoxo
que nos conduz ao limiar da tão crifatizada função de dissùruloçõo.
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Nesse ponto, nossa análise atirrge o segundo conceito de ideologia. Penso que há um
predomínio nítido da função de dissimulação quando se produz a conjunção entre a
função geral de integraçõo, que consideramos até agora, e a função particular de
dominaçõo,ligada aos aspectos hierárquicos da organização social.
Se insisti em apresentar a análise do segundo conceito de ideologia depois da análise
prececlente, foi conr o objetivo de chegar a esæ segundo conceito em lugar de dele
partir. Corn efeito, para compreender a cristalização do fenôneno ideológico diante do
problema cla autoridade, é necessário compreender antes as demais funções da ideolo'
gia. Aquilo que a ideologia interpreta e justifìca é, por exceléncia, a relação com as
autoridades, o sistenra de autoridade. Para explicar esse fenômeno, recorrerei nova-
mente a Max Weber nas suas conhecidas análises sobre a autoridade e a dominação.
Toda autoridade, observa ele, procura se legitimar e os sistemas políticos se distin'
guem segundo os tipos respectivos'de legitimação. Ora, a análise mostra que, se é
verdade que toda pretensâo à legitimidade é correlativa a urna crença, por parte dos
indivíduos, nessa mesma legitfunidade, é essencialmente dissimétrica, contudo, a rela-
çâo entre a ¡rretensã'o emitida pela autoridade e a crença que lhe corresponde. Direi
que sempre há mais na pretens¿io que vem da autoridade do que na crença dada à
autoridade. Vejo aí um fenômeno irredutível de maiyvalia, no sentido de um excesso
da demanda de legitimação em relação à oferta de crença- Talvez seja essa a verdadeira
maisvalia, no sentido de que toda autoridade sempre exige mais do que a nossa crença
pode carregar, no duplo sentido de dar e de suportar. É aqui que a ideologia se afirma
como o amplificador da mais-valia e, ao mesmo tempo, como o sistema justificador da
dominação.
Esse segundo conceito de ideologia está estreitamente ligado ao Precedente, na
medida em que o próprio fenômeno de autoridade é coextensivo à constituição de um
grupo. O ato fundador de um grupo, que se autorepresenta ideológicamente, é políti-
co na sua essência mesma. Urna comunidade histórica, como Éric Weil tantas vezes
mostrou, só se torna realidade política ao tornar-se capaz de decisão; nasce daf o
fenômeno da dorninação. É por essa razão que a ideologia-dissimulaçã'o interfere em
todos os dernais traços da ideologia-integraçâ.o e, de forma especial, no caráter de não
transpareñcia que se vincula à fungão mediadora da ideologia. Max Weber nos ensinou
que nâo existe legitirnação inteiramente transparente. Embora não se possa identificar
toda autoridade com a sua forma carismática, há uma opacidade essencial no fenôme-
no de autoridade: na realidade, nós não o quersmos, antes, é nele que queremos.
Finallnente, nenhurn fenômeno ratifica tão integralmente o ca¡áter de inércia da ideo-
logia quanto o fenórneno da autoridade e da dominação. Pessoalmente, sempre rE-
intrigou e inquietou algo que gostaria de chamar de a repetitividade do político;ca-
da poder imita e repete um poder anterior: todo príncipe quer ser César, todo Cé'
sar quer ser Alexandre, todo Alexandre quer helenizar um déspota oriental.
Assim, o caráter de distorção e de dissimulação da ideologia só passa a predominar
quando o seu papel mediador encontra o fenõmeno da dominação. No entanto, na
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medida mesma em que a integração de um grupo jamais se reduz inteiramente ao


fenômeno da autoridade e da dominação, nenr lodos os traços da ideologia que vincu-
lamos acima ao seu papel mediador são totalmentc absorvidos na função de dissimula-
ção, à qual muitas vezes, contudo, se procura rcduzi-la.
Chegamos assim ao limiar do terceiro conceito de ideologia, o conceito propriamen-
te marxista. Gostalia de mostrar que ele assume toda a sua importância quando inte-
grado aos dois conceitos anter¡ores. O que traz ele de novo? Essencialmente, a idéia de
uma distorção, de uma defonnação por inverúo: "E se, em todas as ideologias, escreve
. Marx, os homens e as stras relações nos aparecem colocados de cabeça para baixo,
conro numa comero obscurü, esse fenômeno decorre do seu processo de vida histórica,
exatamente como a inversão dos objetos na retina 'decorre de seu processo de vida
diretamcnte físico." Deix¿uei de lado, por enquanto, o caráter metafórico dessa passa-
gem, pois.voltarei a esse aspecto na segunda parte do artigo, consagrada âs condi-
ções do sher sobre a ideologia. O que me i¡lteressa no nromento é o novo conteúdo
descritivo presente na citaçâ'o acima. O fato decisivo é que a ideologia, nesse texto, é
definida simultaneamente pela sua função e pelo seu conteúdo. Se há inversão, é
porque uma determinada produçâ'o dos homens é enquanto tal, inversão. Para Marx
(que, nesse ponto, segue Feuerbach), essa função é a religião; essa não é sirnplesmen-
,te um exemplo de ideologiE mas a ideologia por exceldncia. É ela, corn efeito, que
, realua a inversão entre céu e terra e faz com que os homcns caminhem sobre a cabeg.
O que Marx tenta pensar a partir desse modelo é um processo geral através do qual a
atividade real, o processo de vida real deixa de ser a base para ser substituído por
. aquilo que os homens dizern, inraginam e representanr. A ideologia é este engano que
nos faz toma¡ a imagem pelo real, o reflexo pelo original.
Como se pode þerceber, essa descrição se apôia na crítica genealógica das produções
qtre passanr do real para o imaginiírio, críltcaque efetua, por sua vez, uma inversão da
inversão. A descrição, portanto, não é inocente: ela dá por adrnitida a redução, em-
preendida por Feuerbach, tie todo o idcalismo alemão e de toda a fiiosofia à religião e
da religião a um reflexo invertido. Isso não significa, é claro, que Marx se limite a
repetir Feuerbach, já que, à redução ern idéias, ele acrescenta a redução na prática,
redução essa destinada a revolucionar a base da ideologia.
Meu problema, neste nível da,análiæ, consiste em apreender o potencial descritivo
gue nos é apresentado por essa genealogia; quanto à própriagenealogia, nós a questio
naremos mais adiante do ponto de vista das suas pretensões à cientificidade. Antes de
mais nada, parece-me que o que Marx,trouxe foi uma especificaçõo do conceito de
ideologia, a qual supõe os dois outros conceitos já analisados acima. De que maneira,
com efeito, ilusões, fantasias ou fantasmagorias poderiam ter uma efìcácia histôrica
qualquer se a ideologia não possuisse um papel mediador já incorporudo, enquanto sua
constituiçõo simbólica (no sentido dado por Mauss e llvi-Strauss), ao laço social mais
elementar? Ora, isso nos impede de falar de uma atividade real pré-idcológica ou não
ideológica. Além disso, se a relação entre don-rinação e ideologia não fosse mais primiti-
Ciêncía e ldeologia 29

dominante, mas do fato de definir a ideologia por um conteíldo específico - a religião -


e não peia sua função. Essa limitação é herança de Feuerbach, como o atesta a quarta
tese sobre Feuerbach. Ora, a extensâ'o potencial da tepe mafxista é bcm maior do que
sua aplicação à religião na fase mo, aplicação que, diga-se de
passagem, patece-me perfeitament a religião constitua o seìr senti-
do autêntico numa outra esfera discuno' Na reali<iade, a tese
marxista se aplica de direito a todo sistema cle pensamento que tem uma mesrna
função; esse aqpecto foi muito bem percebido por Horkfieimer, Adomo, Marcuse,
Habermas e outros autores <la escola de Frankfurt. A ciência e a tecnologia podem
também funcionar como ideologias numa determinada fase da história.É, necessário,
por cons ó ideológico'
d
O fato o ões entre o
céueat , Palavrano
mundo, mas de urna imagem invertida da vida. Nese caso, ela nada mais é do que a
ideologia denunciada por Marx. A mesma coisa, entretarito, pode ocorrer' e certamente
ocorre, com a ciência e com a teCnologia a partir do rnomento em que' sob sua
prétensão à cientifìcidade, elas dissimulam sua função de justifìcaçâ'o frente ao sistema
militar-industrial do capitalismo avançado.
Assim, a conþnção do critério marxista com os outros critérios da ideologia pode
liberar ó potencial crítico contido no primeiro e evenfualmente aplicá-lo contra os usos
ideológicos do marxismo que logo adiante examinarei.
Essas consequênciæ secundárias, contudo, não nos devem fazer gsqueCer a tese

sccial.
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Ora, com isso, nosso segundo problema se apresenta imediatamente em toda a sua
intensidade: qual é o estatuto epistemológico do discurso sobre a ideologia? Existe
algum lugar não ideolôgico de onde seja pæsível falar cientifìcamente da ideologia?

ll.Ciências sociais e ideologia

Todas as querelas atuais sobre a ideologia partem da rejeição, implícita ou explícita,


do argumento de Aristóteles sobre o caráter grosseiro e esquemático da argumentação
o Filósofo ainda englobava sob o nome de política e que os
naquelas ciências que
modernos passaram a chamar sucessivamente de: Moral Sciences,
Geisteswissenschaften, cióncias humanas, cióncias sociais, ciéncias sociais cn'ticas, fara
culminar, finalmente, na crítica das ideologias da escola de Frankfurt.
Or4 o que me surpreende nas discussões contenporâneas nÍ[o é apenæ - não é tanto
o que nelas se diz sobre a ideologia, mas a pretensão de dizê-lo a partir de um lugar
não ideolôgico chamado ciência. Assin¡ tudo o que se dZ sobre a ideologia passa a ser
dominado por aquilo que se presuflre ser ciência e ao qual se opõe a ideologia. Na
minha opinião, são os dois termos, na antítese ciência-ideologia, que devem ser simul-
taneanrcnte repostos em questão. Se a ideologia, nesses debates, perde o seu papel
mediador, retendo apenas o seu papel mistificador de consciência falsa, é porque ela é
contraposta a uma ciência ela mesma definida pelo seu estatuto não ideológico. Ora,
existe tal ciência?
lIá duas etapas a distinguir na discussão dessa questão, segundo o sentido - positiviv
ta ou não - em que se toma a palavra ciência.
Comecemos pela acepção positivista. Minha tese, aqui, é a de que essa é a única,
acepção que permitiria dar um sentido claro e inequívoco à oposiçlio ciência-ideologia
mas que, infelizmente, a ciência social não satisfaz, pelo merros no nível das teorias
englobantes eÍÌ que se situa o debate, ao critério positivo de cientifìcidade. Com
efeito, foi ao se tornar positiva que a física matemática de Galileu conseguiu excluir
definitivamente do campo científico o impetus da física pré-galileana, assim como a
astronomia de Kepler, de Copérnico e de Newton corseguiu encerïar definitivamente a
carreira da astronomia ptolomaica. A teoria social gfobal estaria numa mesrna relação
com a ideologia se fosse capaz de satisfazer aos níesmos critérios que essas ciências
positivas. Or4 a ftaqueza epistemológica de uma teoria social global é diretamente
proporcional à força com a qual ela denuncia a ideologia Não encontramos, com
efeito, nenhuma teoria social que tenha alcançado o estatuto de cientificidade capaz de
autorizá-la a emPtegar de forma taxativa, para rnarcar a zua distância da ideologia, o
termo de corte epistemológico. Corno escrevia recentemente um jovem filósofo do
Québec, Maurice I-aguex, autor de um notável artigo intitulado: "l) uso abusivo da
relação ciência'ideologia'a: só devem ser considerados como cientffïcos "os resultados

'ffö;äHtïlä;;;H5Ëffååå:iilr:îîllïrryf/idéorogie"' em cutture et Langage'Ghiers


Ciêncis e Ideologia 31

intelectuais que, ao mesmo tempo, permitem uma explicação satisfatória de fenôme


nos que permaneciam até então ininteliglveis (no nível superficial em que se tentava
em vão explicá-los) e que resistem com êxito às tentativas de falsifìcaçâ'o a que se tenta
zubmetê-los sistemática e rigorosarnente (verifìcação no sentido popperiano de não-fal-
sificação)" (p. 202). O ponto importante aqui não está na formulação separada desses
dois critérios, mas, ao contrário, no seu funcionamento conjunto. Uma teoria pode ter
grande força explicativa e, no entanto, estar debilmente apoiada em tentativas rigoro'
sas de falsificação. Ora, é justamente essa coincidência dos dois critérios que ainda não
se encontra, e que talvez jamais se encontre,nas teorias globais em ciências sociais. Ou
encontramos, nesse domínio, teorias unifïcadoras mas não verifìcadas, ou então conta-
mos com teorias parciais bem verificadas (como em demoglafia e, em geral, em todos
os segmentos teóricos com base matemática ou estatística), mas que, por essa razão
mesma, renunciam à ambição de serem integradoras. Via de regra, os que denunciam
com maior arrogância a ideologia de seus adversários são aqueles que defendem teorias
que, embora unificadoras, são pouco exigentes em matéria de verificação e de falsifica-
algumas ciladas em que podemos iacilmente
ção. Gostaria agora de tentar demonstrar
cair ao tratar desse problema.
Um argurnento corente consiste em dizer que a ideologia é um discurso de superfí-
cie que ignora as suas próprias motivações reais. Esse argumento torna-se mais impres-
sionante ainda quando os que o defendem opõenr o caráter inconsciente dessas motiva-
ções reais ao caráter simplesmente consciente das motivações públicæ ou ofieiais. Ora,
é importante observar que o simples fato de invocar o real, ainda que inconsciente, não
é algo que constitua, em si mesmo, uma garantia de cientificidade. Sem dúvida, mudar
de plano, passando do ilusório para o real, do consciente para o inconsciente, é uma
operação que possui por si mesma uma gfande força explicativa. Mas é justamente esa
força explicativa que constitui ela própria uma verdadeira armadilha epistemológica. A
mudança de plano, com efeito, é algo que apresenta de imediato uma grande satisfação
de ordem intelectual levando-nos a acreditar que a simples abertura do campo incons-
ciente e a transferência do discurso explicativo para esse campo já constituem, por si
mesmas e enquanto tais, uma operação de cientifìcidade.
Essa ingenuidade epistemolôgica é reforçada pela convicção de que já reduzimos o
fator de subjetividade na explicação quando a deslocamos do plano das racionalizações
conscientes para o da realidade inconsciente. E, de fato, se compararmos o marúsmo
de Althusser com a sociologia de Max Weber, encontramoe uma explicação por motiva-
ções subjetivas dos agentes sociais substituída pela consideração de conjuntos estrutu-
rais de onde foi eliminada a subjetividade. No entanto, essa eliminação da subjetividade
no que se refere aos agentes históricos não garante em absoluto que o sociólogo mesmo
que faz a ciência tenha ele próprio acedido a um discurso sem sujeito. Ora, é aqui que
opera o que charho de armadilha epistemológica. Mediante uma confusão semântica
que constitui um verdadeiro sôfìsma, passa-se a considerar a explicação efetuada por
estruturas e não por subjetividades como um discurso sem nenhum sujeito específ
32 Pøti Ricoeur

como portador. Com iso, afrorxa-se também a vigilância na ordem da verificqão e da


falsifìcação. Tal cilada é tanto mais perigosa que, no limite, a satisfação alcançada na
ordem na como obstáculo e máscara emrelação à exigencia de
verifica sto que a teoria denuncia como ideologia: uma raciona-
lização
Várias táticas foram empregadas a fìm de esconder a ftaquezaepistemolqgica dessa
posição; menciona¡ei apenas duas dentre elas.
De um lado, alguns autores procuraram oompensar a ausência de verifìcações empí-
ricas com um reforço do aparelho formal. Ora, tal expediente ainda é uma manei¡a de
fortalecer o critério explicativo às custas do critério veri-fìcacionista. E mais, tenho a
impressão de que um pensamento desmistifìcador como o de Mam perde as suas ar¡nas
mais efìcazes quando reduzido ao plano do formalismo. com efeito, sua principal
acusação ao perisamento econômico da sua época nâ'o consiste, justamente, no fato de
ele se redrzi¡ a conceber "rnodelos esvaeiados de qualquer densidade autêntica"3?
For outro lado, procurou-se no reforço mútuo de vá¡ias disciplinas críticas uma
compensação para as insuficiências epistemológicas de cada uma delas. Assim é, por
exemplo, que assistinns a uma espécie de cruzamento entre a teoria social das ideolo-
que s€
mdhor

:":tr,i;
nega
são critérios de explicação e de falsificação que estão em
questão inado a dizer que, no caso em exame, perdemos de
um lado
Com efeiûo, o proço a. pAE^r pelo reforço mútuo do poder explicativo das duas

3lrgu"ux,
op.,p.219. atb¡d- p-2t1.
Ciência e ldeologia 33

rnodelo positivista da ciência a fim de dar um sentido aceitável à idéia de teoria social
e, ao mesmo tempo, ret€r as vantagens do modelo a fim de instituir um verdadeiro
corte epistemológico entre a ciência e a ideologia. E é isso, infelizmente, o que muitas
vezes ocorre nos discunos contemporáneos sobre a ideologia.
Exploremos, pois, esta segunda vi4 reservando para a terceira parte do artigo a
questão de saber que nova relação emerge entre ciência e ideologia quando abandona-
mos os critérios positivistas da teoria social.
A ægunda acepção çe podemos conferir à palavra ciência na sua relaça'o com a
ideologia é uma acepçâo cntica. Essa denominação está em conformidade com o
requisito dos hegelianos de esquerda que, ao modificarem o termo kantiano de crftica,
exigiam uma crítica verdadeiramente crftica. O próprio Marx, aliás, mesmo no período
quehoje se afirma estar situado depois do corte episterirológico dos anos 47, não hesita
em dar ao Cøpital o sub-título de: "Crítica da economia política".
A questão que se põe, então, é a seguinte: concebida como crítica, pode a teoria
social aceder a um estatuto inteiramente nãoideológico, segundo os seus próprios
critérios de ideologia?
Essa pergunta apresenta três difìculdades e é a terceira delas que engirá atenção
especial, pois da zua resolução depende a possibilidade de atribuir um estatuto zceitâ-
vel à dialética ciência-ideologia.
A primeira difìculdade que encontro no problema é a seguinte: ao atribuir à crítica o
'estatuto de uma cidncia combatente, como evitar abandoná-la aos fenómenos quase:
patológicos denunciados no adversário? Qu¿ndo falo de ciência combatente, refiro-me
sobretudo à interpretação leninista do marxismo, retomada com tanto vigor por
Althusser'no seu ersaio intitulado Lénine et la phílosopllle.. Nesse trabalho, Althusser
sustenta duas teses simultâneas. De um lado, que o marxismo representa o terceiro
grande corte radical na história do pensamento, encontrandose o primeiro no nasci-
mento da geometria com Euclides e o segundo no nascimento da física matemática
com Galileu; da mesma maneira, Marx teria, segundo Althusser, inaugurado os contor-
nos de um novo continente dramado História. Vamos admiti-lo, ainda que a História
como saber e saber de si tenha certamente outros ancestrais. Mas não é esse o ponto
que apresenta dificuldade: o problemático está na pretensão simultânea de traçar o que
I¡nin chamava a linha do partido entre essa ciência e a ciência burguesa e, dessa
mÂneira, de conceber uma ciência partidâria, no sentido forte da expressão. Aqui
reside o perigo de que a ciência marxista se tranbforme em ideologia segundo os seus
próprios critérios. Sob esæ aspecto, o destino posterior do ma¡xismo ccrrobora 6 tenp-
res mais pessimistas. Assir¡ para citar apenas um exemplo, a análise em clæses sociais e
em especial a tese segundo a qual só existem fundamentalmente duas classes, depois de
ter sido uma hipótese de trabalho extremâmente fecunda, tornou-se um dogma que
impede de considerar sem preconceitos as novæ estratifìcações sociais das sociedades
industriais avançadas ou as formações de classes, num sentido novo clo termo, nas
sociedades socialistas, para não mencionar os fenômenos nacionalistas, que dihcilmen-
34 Paul Ricoeur

te se prestam a uma andlise sem termos de classes sociais.


,nin¿a mais grave que essa cegueira diante do real, a oficialtzação dt doufiina efetua-
da pelo partidop ideologização: æsim
c,omo se pode acu dorninante, tambem
o marxismo funci ao poder do partido
enquanto vanguarda da clæse operária e em relação ao poder do grupo dirþente no
interior do prôprio partido. Essa função þstifìcadora com referência ao poder de um
grupo dominante explica o fato de que a esclerose do nu¡xismo ofereça o mais impres
sionante exemplo de ideologia nm tempos modefnos. O paradoxo é que o maDdsmo
depois de Man< tornou-se a mais extraordinária exemplifìcação do seu próprio conc.eito
de ideologia enquanto expressão continuada da relação com a realidade e enquanto
ocultação dessa relação. É nesse momento preciso que talvez seja relevante lembrar que
foi Napoleão quem transfortnou o respeitável termo de ideologia e de ideólogo em
expressão de polêmica e de escámio.
Essas observações æveras não signifìcavam que o marxismo seja falso. Ao contrário,
signifìcam que a funçâ'o crítica do ma¡xismo só poderá ser liberada e evidenciada se a
utilização da obra de Mam for totalmente dissociada do exercício de um poder ou de
uma autoridade e das bulas de ortodoxia; se suas análises forem submetidas ao teste de
uma aplicação direta à economia contemporânea, como o próprio Marx o fez com
referência à economia de meados do século pasado; se, fìnalmente o marxismo voltar
a sef um instrumento de trabalho entre outros; em suma, se o Capital tornar'se como o
Ziønøiustra de Nietzsche que, como dizia seu autor, era "um livro para todos e para
ninguém".
A ægunda difìculdade se refere am obstáculos que se opõem à explicação da forma'
ção das ideologias em termos não ideológicos.
Como veremos, minhas observações a esse respeito coincidem com os de Jacques
Taminiaux *** , embora não me arrisque, corno ele, ao ponto de situar Man< na
linguagem da ontoteologia. Visto que os termos de origem, de fìm e de zujeito apre'
sentam tamanha polisemia e que recebem sigrrificações contextuais tão diferentes,
hesito em rcalizar tais aproximações. Insistirei antes, na linha de uma obserrração
anterior deixada em suqpenso, no papel mediador que os conceitos hegelianos e
feurbachianos exerceram na conceitualização marxista. Mam, é claro, acrescenta muito
à crítica feurbachiana, mâs, quando fala de ideologi4 ele ainda Permanece na sua
dependência.
É preciso, inicialmente, conoeber toda a filosofia alemã como um oomentário da
religião e esta gomo uma inversão da relação entre o céu e a terra, para que se por¡sa, a
seguir apresentar a crltica como uma inversão da inversão. Ora, é algo que chama a
aterção o fato de Man encontrar dificuldades irnensas em pensar essa relação em
***Ricoeur se refe¡e aqui ao artigo de Jacques Taminiaux intitulado"Sur Marx, I'art et Ia véité,
publicado no mesnxr núme¡o da Rewe Philosophíque de Lqpoh (v. nota*), às píginas
3ll-327. (Nota do tradutor)r
Ciëncia e ldeologiø 35

termos não metafóricos: metáfora da inversão da imagem retiniana, metáfera da cabeça


e dos pés, do solo e do céu, metáfora do reflexo e do eco, metáfora da sublimação no
sentido químico da palavra, isto é, da volatilização de um corpo sólido em um resíduo
etéreo, metáfora da fixação nas nuvens, e assim por diante. Como observa Sa¡ah
Kofman num ensaios ma¡cado pela influência de Derrida, essas metáforÍili permanecem
aprisionadas numa rede de imagens especulares e num sistema de oposições: teoria-prá-
tica, real-imaginário, luz-obscuridade, que atestam que o conc€ito de ideologia enquan-
to inversão de uma inversão ainda pertence à metafísica. Poder-se-ia, no entanto, dizer
que a ideologia, depois do corte epistemológico, não mais sen4 pensada ideológicamen-
te? O texto do Capital sobre o fetichismo da mercadoria não deixa esperanças a esse
respeito; a forma fantasmagôrica de que a relação de valor <los produtos do trabalho se
reveste ao se tomar mercadoria, é algo que permanece um enigma que, longe de
explicar a ilusão religiosa, apóia-se ao contrá¡io sobre el4 pelo menos sob forma
analógica. Além disso, a religião - forma mãe da ideologia - fornece bem m¿is do que a
simples analogia, pois é ainda ela o "segredo" da própria mercadoria. Como diz Sarah
Kofman, o fetiche da mercadoria não é "o reflexo das relações reais, mas o reflexo de
um mundo já transformado, já encantado. Reflexo de reflexo, fantasma de fantas-
ma"6. Ess€ fracasso em pensar de modo não metafôrico a produção da ilusão apresenta
como que às avessas- estamos, afinal no terreno das inversões de inversão!- a dificulda-
de tão enfatizada por Aristóteles de pensar a participação emPlatão. A¡istóteles dizia
que a participação não passava de metáfora e de discurso vazio. No caso que nos
ocupa, a participação funciona às avessas, não da idéia em relação à sua sombra, mas da
coisa em relação a seu reflexo. Nos dois casos, porérn, é a mesma dificuldade que
encontramos.
Ora, a primeira a¡ráLlise que apresentamos neste trabalho pode elucidar a razã.o do
fracasso apontado. Se é verdade que as imagens que um grupo social forma acerca de si
mesmo são interpretações que pertencem de imediato à constituição do laço social; em
outros termos, se o vínculo social é ele próprio simbólico - é absolutamente inútil,
então, tentar derivar iais imagens de alguma coisa anterior que seria o real, a atividade
real, o processo de vida real, dos quais haveria secunda¡iamente reflexos e ecos. Um
discurso não ideológico sobre a ideologia encontra aqui a impossibilidade de atingir um
real social anterior à simbolização. Esa difìculdade confuma a minha idéia de que não
se pode partir do fenômeno da inversão para explicar a irleologia; é necessário, ao
contrário, concebêlo como especificação de um fenômeno muito mais fundamental,
ligado à representação do laço social que se dá imediatamente depois da sua constitui-
ção simbólica. O disfarce é um episôdio secundário da símbolização. Daí decorre, a
meu ver, o fracasso de qualquer tentativa de definir uma realidade social que seria
inicialmente transparente e, a seguir, secundariamente obscurecida, e que poderíamos
apreender na sua transparência original, aquém do reflexo idealizante. o que me parece
ssarah
Kofnran, Camera Obscura. De I'icléologie,Editions Galilée, 1973.
óKof-un, op. cit., p. 25.
36 P. øul Ricoeur

bem mais fecundo em Mam é a idéia de que a transparência não está atrás de nós, na
origem, mas à nossa frente, no termo de um processo histórico talvez interminável.
It*tS condições, porém, devemos ter a coragem de concluir que a prépria separação
da ciencia e da ideologia é a idéia-lirnite, o limite de um trabalho irrterno de diferenciaçãcr,
e que não contamos atualmente comuma noçâ'o não-ideológica da gánese da ideologia.
Ainda näo enfrentamos, contudo, a dificuldade rnais fundamental, ligada à impossi-
bilidade de exercer uma crítica absolutamente radical. Uma consciência radicalmente
crítica, com efeito, só poderia resulta¡ de uma reflexão total.
Permitam-me desenvolver um pouco mais detalhadamente esse argrlnento, o qual
não atinge os t¡abalhos de ciências sociais que não têrn a pretensão de constihúrem
uma teoria total, afeta¡do diretamente, no entanto, toda teoria sociai, inclusi,ve o
marismo, com pretensão totalizante.
Para elaborar meu ÍIrgum€nto sobre esse ponto, começarei por consideriu os dois
modelos de explicação que Jean Ladrière distingue num importante texto metodológr-
co reprorluzido no seu livto L'urticulation du sensl Não é difícil reconhecer a
operação desses rnodelos nos dois tipos fundamentais de interpretaçâo do préprio
ma¡xismo que hoje circularn Pretendo nnstrar que a pressuposição de uma reflexão
total é tão inelutável num modelo quanto no outlo.
"Podern¡s propor dois modelos de explicaçäo, diz ladrière, a explicação em terrnos
de projetos e a explicação em termos de sjstemas"
@. aÐ.
c-onsideremos o primeiro modelo. É evidente que a sociologia compreensiva de Max
Weber faz parte desse nndelo, mas é igualmentc ãvidente que também faz parte dele o
marvismo segrrndo Gramsci, Lukåcs, Ernst Bloch e Goldmann. ora" esse primeiro
modelo torna extremamente difícil a posição de "neutralidade axiolôgica" reivindicada
por Max Webert' A explicação em termm de projeto é necessariamente urna explica-
ção na qual o próprio teórico está implicado, exigindo. portanto que ele esclareçaã sua
própria situação e o seu projeto ern relação à sua situação. E aqui intervém u ptãr*po-
sição tácita da reflexão total.
o seg'ndo modelo de explicação escaparia a essa pressuposição possível? À primci
ra,vista, poderia parecer que sim: já que, nesse caso, não nos propomos a explicar a
ação em termos de projetos, não estamos obrigados a elucidar cornpietamente
a nature.
za do projeto,' nâ'o estando, portanto, obrigados a efetuar uma reflexão tot¿l. Não
obstante æ aparências, entretanto, na medida em que uma explicação desse lipo pre-
tende ser total, o cientista também se encontra inelutavelmente nelã implicadoitravés
do seu instrumento de interpretação. O ponto crítico da teoria dos sistemas reside,
como moslra Ladrière no ensaio mencionado, rra necessidade de elaborar urna teoria
relativa à evolução dos sistemæ. ora, "nesse trabalhq observa ele, o cientista será
?Jean l¿d¡ière,
"signes et ooncepts en science", em: L'articulotion du sens (Bibliothèque des
Sciences Religieuses), 1970, pp, 4G50.
ôMu* Weber, "Le sens de la
neutralité axiologique dans les scrences sociologiques et économiques",
em: Esrøis sur la thëorie de la scìence, traduçaio franceu, Plon, l9ó5, pp. 399-478.
Ciência e ldeologiø i7

levado, seja a inspirar-se em teorias relativæ aos sistemas físicos ou biolôgicos (servin-
dose, por exemplo, de um modelo cibernético), seja a apoiar-se em teorias de caráter
filosôfico (e,portanto, não científico), baseando-se, pof exemplo, numa filosofÌa de
tipo dialético' (p.42). Ora, seja qual for o caminho adotado, encontraremos em
ambos uma exigência de completude correspondente à exigência de reflexão totai já
encontrada no caso da explicação em ternþs de projetos. Pressupõe-se tacitamente
toda uma fìlosofia, "segundo a qual existe efetivamente, a cada instante, um ponto de
vista da totalidade e segundo a qual, além disso, é posslvel explicitar e descrever esse
ponto de vista num discurso apropriado. Somos novamente obrigados, conclui
I¿drière, a invocar um discurso de outro tipo" (p, 43).
Assirq a explicação em termos de sistemas não tem melhor sorte do que a explica'
ção em termos de projetos. Esa última só consegue isentar a história de qualquer
condição ideológica por supor tacitamente a possibilidade de efetuar uma reflexão
total. Embora sob outra forma, a explicação em termos de sistemæ também supõe que
o cientista possa aceder a um ponto de vista definido como capaz de exprirnir a
totalidade. Oïa, isso equivale à reflexão total nahipôtese anterior.
Essa é a razão fundamental pela qual a teoria social jamais pode fugir totalmente da
condição ideológica: ela não pode nem efetuar a reflexão total, nern aceder a um ponto
de vista capaz de exprimir a totalidade, ponto de vista ese que poderia liberta-la da
mediação ideológica a que estão submetidos os outros membros do grupo social.

llL A dialëtica da ciência e da ideoloyia

tta
A pergunta que, na introdução, chamei de questão de confiança", apresenta-se
agora nos seguintes termos: o que se pode fazer da oposição - mal pensada e talvez
-
impensável da ciência e da ideologia?
Devemos abandoná-la pura e sirnplesmente? Confesso que muitas vezes, ao refletir
sobre esse quebra-cabeç4 estive bem perto de pensar assim No entanto, se não quiser-
mos perder os benefícios de uma tensão que não se pode reduzir nem a uma simples
antítese sem movimento nem a uma oposição que am¡inaria os gêneros, creio que não
devemos renunciar à opmição em questão.
Túvez seja necessário, porém, num trabalho que pode apresentar um glande valor
terapêutico, que nos aproximemos inicialmente das fronteiras da nãodistinção. Pelo
menos foi esse o benefício que encontrei ao reler a obra jâ antiga e injustamente
esquecida (pelo menos no continente europeu) que Karl Manheim, jâ em l929,havra
escrito enr alemão sob o título de ldeologie und Utopie. A virtude desse livro está em
tirar todas as consequências da descoberta do cuâlerrecorrente da acusação de ideolc>
gia e assumir até o fim o impacto retroativo, o transbordamento da ideologia sobre a
posição própria de todo aquele que tenta aplicar ao outro a crítica ideolôgica.
Karl Manheim atribui ao marxismo o mérito da descoberta de que a ideologia não
constitui um erro local, explicável psicológicamente, se.ndo, ao contrário, uma estrutu-
38 Pøul Ricoatr

ra de pensamento que se pode atribuir a um gruIxl, a uma clæse ou a uma nação. I-ogo
a seguir, porén¡ ele critica o manrismo por ter parado a meio caminho e por não ter
aplicado a si mesmo a manobra da desconfìaça e da suspeita. Or4 segundo Manheim, o
marxismo não pode rnais impedir a reação em cadeia, dado o fenômeno fundamental
de desintegração da unidade cultural e espiritual que faz com que todo discurso entre
em guerra com todo discurso. O que aæntece, porén¡ quando assim passamos de uma
suspeição restrita para uma suspeição generalizada? Karl Manheim responde: Passamos
de uma ciência combatente para u¡na ciência pacífica, a saber, a sociologia do conheci-
mento, fundada por Troeltsdr, Max Weber e Max Sdreler. O çe antes fora uma arma
de proletariado torna-se agora um método de pesquisa visando trazer àluz o condicio-
namento social de todo pensamento.
Ka¡l Manheim genenlna o conceito de ideologia nos seguintes termm. Para ele, æ
ideologias se defìnem esencialmente pela sua não-congruência, pela zua discordância
com relação à realidade social. Elas diferem das utopias apenas por traços secundáriæ.
As ideologias são, via de regra, professadas pela classe dirigente e são æ classes subpri-
vilegiadas que as denunciaíL As utopias são, em geral, professadas pelas classes æcerr
dentes. As ideologias se voltam para trás, æ utopias se voltam para a frente. As
ideologias se aþstam à realidade que elas justificam e dissimulam; as utopias atacam de
frente a realidade, fazendoa explodir. Embora certamente consideniveis, essas qnsi
ções entre uûopia e ideologia nunca são decisivæ e totais, como se pode constatar no
próprio Mam, que clæsifica os socialismos utôpicos entre os fantasmas ideologicos.
Além disso, só a história ulterior decidirá se urna utopia era o que pretendia ser,isto é,
uma visão nova capaz de mudar o cun¡o da história. O ponto inportante, contudo, é
que a oposição entre utopia e ideologia não pode ser total; ambas se destacam apartir
de um fundo comum de não-congruência (por atraso ou por antecipação) em relaçäo a
um conceito de realidade que só vem a s€ revelar na prática efetiva. A ação só é possf-
vel æ essa distllncia não torna irnpossível a constante adaptação do homem a wna reali"
dade em fluxo permanente.
t/ Admitamos conn hþóæse de trabalho esse conceito generaluado de ideologia,
æsociado de forma bastante complexa ao conceito de utopi4 o qual se apresenta às
vezes oomo uma de suas espécies e às vezes oomo um gênero contrário.
Minha pergunta - lancinante pergunta - é a seguinte: de que lugar fala o investigador
instalado numa teoria da ideologia genenlr;ada? É forçoso admitir que tal lugar não
existe, que ele existe menos ainda do que numa teoria da ideologia restrita, na qual só
o outro está imerso na ideologia. Dessa vez, no entanto, o cientista sabe que ele
próprio também está preso na ideologia. Sob ese aspecto, o debate de Karl lvlanheim
consþ Íresmo é exemplar pela sua honestidade intelectual sem limites. Ka¡l Manheim
sabe, com efeito, que a pretensâ'o weberiana a uma sociolog¡awertfrei, axiologicamen-
te neutra, é uma ilusão. Ela é apenas um estágio, embora necessário: "É necessário,
escreve ele, uma disposição permanente a reconhecer que todo ponto de vista é parti-
cula¡ a uma determinada situação e a procur¿u através da análise em que consiste essa
Ciência e ldeologia 39

particularidade. Um reconhecimento claro e explícito das pressuposições metafísicar


impllcitas que tornam o conhecimento possível é algo que promove muito mais a
clarifìcação e o avanço da pesquisa do que a mera negação verbal da existência dessas
pressuposições acompanhada pela sua reintrodução subreptícia pela porta dos fundos"
(p. 80). A fìcar nesse ponto, porém, caimo,s em pleno relativismo, em pleno historicis- ,.
mo, e liquidamos com a própria pesquisaX Com efeito, observa Karl Manheim, qu.-
I

não tem pressuposições não propõe questões; quem não propõe questões não pode
formular hipóteses e, por isso mesmo não procura mais nada. Ocorre aqui com o
investigador o mesmo que se passa com as próprias sociedades: as ideologias são distân-
cias, discordância em relação ao curso real das coisas. A morte das ideologias, no
entanto, redunda¡ia na mais estéril lucidez, pois um grupo social sem ideologia e sem
utopia seria um grupo sem projeto, sem distanciamento de si próprio, sem representa-
ção de si mesmo. Seria uma sociedade sem projeto global, abandonada a uma história
fragmentada em acontecimentc idênticos entre si e, portanto, insignificantes.
Mas como, então,fazer preszuposições quando se sabe que tudo é relativo? Como
tomar uma decisão que não seja um golpe de sorte, um golpe de força lógico, um
movimento puramente fìdeísta?
Repito o que já disse anteriormente; é com exemplar coragem de peruamento que
Karl Manheim enfrenta essa difìculdade. Sua tentativa consiste em procurar distinguir,
a qualquer preço, um relacionismo de um relativismo. O preço, porérg é uma exigência
impossível: re-situar todas as ideologias parciais numa visão total que lhes confìra uma
significação relativa, passando assim de uma concepção não avaliativa de puro especta-
dor para uma concepção avaliativa que se arrisca a duq que esta ideologia é congruen-
le e aquela não. Mais uma vez, vemo-nos reduzidos à impossr'vel exigéncia de um saber
total: "Dar ao homem moderno, diz Manheim, uma visão corrigida de um processo his-
tórico total" (p. 69). Assim, é um hegelianismo encabulado que estabelece a diferen-
ça entre o ¡elacionismo e o relativismo: "a tarefa, afirma ele, consiste em descobrir,
através da modifìcaçã'o de normas, de formas e de instituições, um sistema cuja unida-
de e significaçâ'o nos cabe compreender" (p.82).E ele continua mais adinate: "Desco-
brir, na totalidade do complexo histórico, qual é o papel, a significação e o sentido de
cada componente elementar" (p. 83). "É com esse tipo de abordagem sociológica da
história que nós mesmos nos identificamos" (p. B3).
Esse é o preço a pagar para que o investigador possa escapar ao ceticismo e ao
cinismo e para poder avaliar o presente ousando dizer: tais idéias são válidas em tal
situação determinada, tais outras constituem um obstáculo à lucidez e à mudança. Para
administrar esse critério de acomodação a uma situação determinada, no entanto, é
necessário que o pensador já tenha terminado a sua ciência. Seria necessário, com
efeito, já conhecer a realidade social total para poder medir as distorções em relação a
ela. ora, é no termo do processo,.justamente, que se determina o se¡rtido mesmo do
real: '"Tentar escapar à distorção ideológica e utópica significa, em última análise,
pôr'se em busca do real" (p. 87). Mais uÍra vez, encontramo-nos em círculos, como no
40 Paul Ricoeur

caso de Marx, que afirma que o real, ao qual inicialmente opomos a ilusão ideológica,
só será conhecido no final, quando as ideologias forem disolvidas naprática- Também
em Manheim tudo é circular: "Só quem tem plena consciênci4 diz ele, do alcance
limitado de todo ponto de vista encontrou o caminho que leva à procurada compreen-
são do todo' (p. 93). E o inverso þalmente se impõe: "Uma visâo total implica
simultaneamente em assimilar e superar as linútações dos pontæ de vista particulares'
(p.%).
Desse modo, Karl Manheim se impôs a obrigação infinita de vencer o historicismo
pelos seus próprios excessos, conduzindo-o de um historicismo parcial para um histori-
cismo total. É signifìcativo, a esse respeito, o interesse que Karl Manheim tambem
manifestava em relação ao problema social da intelligentsia. A síntese dos pontos de
vista, com efeito, supõe um portador social; ora, tal portador não pode ser uma classe
média, mas um estrato relativamente sem classe, não situado de maneira muito rígida
na ordem social. Ora, é a isso que corresponde a intelligenfsr¿ relativamente dewincula-
da de Alfred Weber, a freíschwebende Intelligeinz. Asirr¡ a própria teoria da ideologia
¡epousa sobre a utopia de um "espírito totalmente escla¡ecido do ponto de vista
sociológico" (p. I 75).
É necess¡irio confessar, porém, que a tarefà de uma síntese total é impossível.
significa isso que ficamos reduzidos, sem nenhum progresso de pensamento, à críti-
ca da reflexão totai? Saimos simplesmente vencidos desse extenuante combate com as
condições ideológicas de todo ponto de vista? Devemos renunciar a qualquer juízo
r¡eritativosobre a ideologia? Creio que não.
Já disse acima que considero a posição de Karl Manheim corno o pon to de retorno a
partir do qual podemos perceber a direção de uma solução viável.
As condições da solução me parecem estar contidas num discurso de caráter hsme
nêutico sobre as condições de toda e qualquer compreeruão de ca¡áter å¡'.sró¡¡co. Nesse
ponto, torno a encontrar, através de longo caminho de uma discussão sobre as condi-
ções de possibilidade de um saber sobre a ideologia, as análises que eu havia realizado
no colóquio de Castelli sobre a ideologiae. Nessas análises eu me situava de imediato,
sob a conduta de Gadamer, numa reflexão de tipo heideggeriano, com o propósito de
abordar o fenômeno central da pré-compreensão, cuja estrutura ontológica precede e
comanda todas as dificuldades propriamente epistemológicas que as ciências sociais
encontram sob o nome de preconceito, de ideologia ou de círculo hermenêutico. Essas
dificuldades epistemológicas - que são, de resto, diferentes e irredutíveis entre si -
possuem uma mesma origern- Todas elas decorrem da estrutura mesrna de um ser que
jamais ocupa a posição soberana de um sujeito c¡lpæ, de põr à distância de si prôprio a
totalidade dos seus condicionamentos. No presente estudo, entretanto, decidi renun-
ciar à comodidade de um discurso que se instala de imediato nurna ontolqgia da
pré-compreensão e gue julg de cima as dificuldades da teoria das ideologias. Preferi.
9Paul
Ricoc'l "H-erméneutiqyg-eÌ critique_des idéologies,,,em :Démythistbn et kléologie,publi-
cado por E. Castelli, Aubier, l9?3, pp. N-64.
Ciência e ldeologia 41

antes, o caminho longo e diflcil de umâ reflexão de tipo epistemológico sobre æ


condições de possibilidacle de um saber sobre a ideologia e, de maneira mais geral,
sobre as condições de validação do discurso explicativo nas ciências sociais. Isso me
levou a tenta¡ reencontrar desde dentro, através do fracasso do projeto de reflexão
total ou de saber total das diferençæ ideológicas, a necessiclade de um outro tipo de
discurso, o da hermenêutica da compreensão histórica.
Nlio pretendo refazer aqui a análise desse outro discurso. Como conclusão, límitar-
-me-ei a formula¡ ølgumas proposições suscetlveis de conferir um sentido aceitável ao
par ciência-ideologia.
Primeira proposiçâ'o: todo saber objetivante sobre a nossa posição na sociedade,
numa classe social, numa tradição cultural ou numa história, é precedido por uma
relação de pertinência que jamais poderernos refletir integralmente. Antes de qualquer
distância crftica, já pertencemos a uma história, a uma clæse, a uma naçio, a uma
cultura, a uma ou a várias tradições. Ao assumir essa pertinência que nos precede e nos,
carrega, assumimos tanlbém o primeiro papel da ideologia, descrito acima como funçâ'o
mediadora da imagem, da representação de si; e, pela função mediadora das ideologias,
participamos igualmente dæ suæ outras funções, de dissimulação e de distorçâ'o. Agora
já sabemos, porérn, que a condição ontologica da pré-compreensão exclui qualquer
reflexão total que nos colocaria na condição privilegiada do saber não-ideologico.
Segunda proposisão: embora o vber ohietivante seja sempre posterior à relação de
pertinência, ele pocle, no entanto, constituir-se numa relqtivs øttonomis. Com efeito, o
momento crí1ico que o constitr¡i é fundamentalmente possível em virtude do fator do
distanciaç:ão gue pertence à relação de historicidade. ljrnbora o prfiprio Heideggernão
tenha explicitadt¡ esse terna, a sua ittcalizaçã-o fìca assinalarla quarrdo o fìlósolo cleclara:
"O cl'rculo caraclerístico da conrpreensão... guarda ern si r¡ma possibilidade autêntica
dó conlecel' ulais originário: só o apreendemos colretamenle se a explicitaçâ'o
(Auslegung) assr¡rDe coilro sua tarefa primeira, perûìanetìle e última, a de jamais permi.
tir que aqrtilo que ela própria já possui, as suas visões prévias e as suas antecipações lhe
æjam inrposlirs por quaisquer itléias fa4tasiosas (Einfalle) e noções populares, mas, ao
contrário, a tle assegurar seu tema científico pelo desenvolvimento de suas antecipa.
ções segundo as coisas mesmas"l0. Esse texto afìrma a necesidade, em seu princípio
mesmo, de incluir a instância crítica no moyimento de retomo à própria estruturada
pré-cornpreensÍÍo que nos constitui e que nós somos. Assim, a própria hermenêutica da
pré-compreensão exige uma separação crítica entre pré-compreensão e preconceito.
É esse tema, rapidamente aflorado em Heidegger (que talvez o tenha reprimido pela
própria preocupação de radicalidade do seu empreendimento), que Gadamer desenvol-
ve um pouco mais, embora sem lhe conferir a amplitude que talvez mereça. Apesar
disso, entretanto, Gadamer tocou diretamente no problem4 que me parece capital, da
distanciação, que não é simplesmente dist¡incia temporal, como na interpretação dos
toH.id"gg"r, L'Être et le Temps,Íaduçâo francesa, p. (cf. p.
187. 153 do original alemalo ,seir
und Zeít.).
42 Paul Ricoeur

textos e monumentos do pasado, mas um positivo pôr-à-distância; é da condição de


uma consciênciø øcposta à eÍicdci¿ da histórfu o fato de sô compreender sob a ændi-
ção da distância, de um pôr-à-distância.
Quanto amim, também tenho procurado avançar um Pouoo mais nessa mesma dire
ção. A esse respeito, a mediação dos textos poszui, na mirùra opinião, úm incomparável
valor exemplar. Compreender um dtzet ê, antes de tudo, opðlo a nós oomo algo dito, é
recolhèlo no seu texto, desligado do seu autof; esse pôr-à-distância é parte íntima de
toda leitura, a qual só na distância e pela distância pode fazer com que se torne
próxima a coisa do texto. A meu ver, essa hermenêutica dos textæ, sobfe a qual venho
tentando refletir, contém indicações preciosæ para uma aceitação correta da crítica
das ideologias. Com efeito, todo pôr-à-distância é - como Karl Manhein¡ generalizando
Marx, nos ensina - é um pôr-seà distância de si, uma distanciação de si em relaçäo a si
mesmo. Assim, a crítica das ideologia.s pode e deve ser aszumida num trabalho da
compreensäo sobre si mesma, trabalho esse que implica organicamente numa crltica das
ilusões do suþito. É esta, então, a minha segunda proposição: a distanciação, dialeticæ
mente oposta à pertinêncta, ê a condição de possibilidade de uma crítica dæ ideolo
gias, não fora da hermenêutica ou oontra el4 mas dentro da própria hermenêutica.
Terceira proposição: ainda que a crftica das ideologias possa libertar-se parcialmente
da sua condição inicial de en¡aizamento na pré-compreensão, podendo, portanto, orga'
nizar-se conÐ um saber e, assim, entrar no âmbito daçilo que Jean I¿drière indica
como passagem à teoria - tal saber jamais Pode, no entanto, tornar-se total. Ele está
condenado a permanecer saber parcial, fragmentário e insular; sn nãoconpletude
funda-se hermeneuticamente na condição originária e irsuperável que faz oom ql¡e a
própria distanciação ainda seja um momento da pertinência. No esquecimento dessa
condição absolutamente insuperável ræide a orþm de todas as dificuldades, elas
mesmas inzuperáveis, que estão ligadas ao feapatecimento dâ ideologia no prôprio
saber da ideologia" A teoria da ideologia encontrase aqui afetada de uma necessidade
epistemológica de nãocompletude e de nãototølizaçilo cuja razão hermenêutica reside
na própria condição da compreensão.
E sob essa forma çe endosso, no que me conoeme, a tes€ de llabermas segundo a
qual todo saber permanece conduzido por um interesse e segundo a qual a própria
teoria crftica das ideologias também é conduzida por um interesse: o interese pela
emancipação, isto é, pela comunicação sem limites e sem entraves. É necessário, corr
tudo, perceber daramente que tal interesse fi¡nciona oomo uma ideologia ou como
uma utopia. E mais, não sabemos æ funciona corm uma coisa ou outra, pois sô a
histôria ulterior decidirá entre as discordâncias estéreis e as discordânciæ criadoras.
Além disso, é necessário não apenas ter presente o caráter indistintamente ideolôgico
ou utópico do interesse que conduz e sustenta a crítica das ideologias; é necessário
também e principalmente ter presente que esse interesse está organicamente ligado aos
outros interesses que a própria teoria descreve por outro lado: interesse na dominação
material e na manipulação aplicada às coisas e aos homens - interesse na comunicação
Ciênciø e Ideolagia 43

histórica, conduzido pela compreensãr¡ dæ herançæ culturais, O interesse pela emanci-


pação, por conseguinte, jamais realna um corte total no sistema dos intercsses, corte
que, no nível do saber, poderia introduzir um corte epistemoiógioo nltido.
A minha terceira propmição é, então, a seguinte: conduzida por um inl.eresse especí-
fico, a crítica das ideologias jamais rompe os seus vínculos com o fundo de pertinência
que a sustenta. Esquecer esse laço ínicial é sucumbir à ilusão de uma teoria crítica
promovida ao nível de saber absoluto.
Minha quarta e última proposição será de natureza sìmplesrnente deontológica, refe-
rindose ao bom uso da crítica das ideologias.
De toda essa meditação, resulta que a crítica das ideologias é uma tarefa que é
sempre necessário começar, mas que, por princípio, é impossível te¡minar. O saber está
sempre e a cada insta¡te se desligando da ideologia. A ideol.ogia, porém, pennanec€
sempre o esquema ou o código de interpretação, constituinclo aquilo qu*faz comque
jamais sejanros intelectuais sem amarras nem laços e, ao øtntrárìo, que restenlos condu-
zidos e zustentados por aquilo que Hegel chamava de a "sul¡stância ética", a
Sittlichkeit.. Qualifiçei a minha última proposição de deontológica porque nada nos é
mais necessário hoje em dia do que renunciar à arrogância da crítica e efetuar com
paciência o trabalho, que permanenternente retomamos, de pôr-à-distância e de reto
mar a nossa substância histórica.

Traduçño sob a responsabilidade de


BALTHAZAR BARBOSA FILHO

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