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Coleção Pensamento Criminológico

Dario Melossi e
Massimo Pavarini

Cárcere e fábrica
As origens do sistema penitenciário
(séculos XVI - XIX)

Tradução
Sérgio Lamarão

~
Instituto
Carioca de
Criminologia

Editora Revan
:Il!!!IiiSPensarnento
Criminológico
Sumário
Direção
Prof. Dr. Nilo Batista

© 2006 Instituto Carioca de Criminologia Prefácio à edição brasileira ............ ,............................................. 5


Rua Senador Dantas, 75 - Cob. 02 - Centro Apresentação .. .... .... .... ...... ....... ...... ........ .. ..... ..... ... .... .... .... .......... 11
Rio de Janeiro - RJ - Brasil
CEP 20031-204 Introdução . ... ... ... ... ... ... .. ... ... .... ..... ... ...... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ..... .... 19
Tel.: (5521) 2221-1663 Primeira parte - Dario Melossi
Fax.: (5521) 2224-3265
A gênese da instituição carcerária moderna na Europa .................... 29
Email:criminologia@icc-rio.org.br
I. A criação da instituição carcerária moderna na Inglaterra
e na Europa continental entre a segunda metade do século XVI
Edição e distribuição
e a primeira metade do século XIX ................................................. 31
Editora Revan S.A.
Rua Paulo de Frontin, 163 1. "Bridewells"
, e "workhouses" na Inglaterra elisabetana ...... 33
Rio de Janeiro - RJ 20260-01 O 2. A Rasp-huis de Amsterdã e a manufatura ..... ,................... 39
tel. (21) 2502-7495 3. Gênese e desenvolvimento da instituição carcerária
fax (21) 2273-6873 nos outros países da Europa ................................................. 48
editora@revan.com.br
4. Acontecimentos posteriores da instituição
www.revan.com.br
na experiência inglesa .......................................................... 60
Projeto gráfico 5. A construção da moderna práxis carcerária
Luiz Fernando Gerhardt na Europa continental entre o Iluminismo
Revisão e a primeira metade do século XIX ....................................... 79
Sylvia Moretzsohn II.A gênese da instituição carcerária na Itália ................................ 101
Diagramação
lida Nascimento Melossi, Dario e Pavarini, Massimo. 1. Os séculos XVI e XVII ...................................... ...... ...... 103
Cárcere e fábrica-As origens do sistema penitenci- 2. O Século XVIII . ........ ............. ... ................... .. ............ ... 109
ário (séculos XVI-XIX)-Dario Melossi e Massimo
Pavarini. - Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2006. 3. Do período napoleônico à situação pré-Unificação ........... 127
(Pensamento criminológico; v. 11). 2-ª-edição, agosto Segunda parte - Massimo Pavarini
de 2010, !'reimpressão, setembro de 2014.
A invenção penitenciária:
272p. A experiência dos Estados Unidos
Inclui bibliografia na primeira metade do século XIX .............. ... ............................... 149
ISBN85-7106-335-4 I. A era jacksoniana: desenvolvimento econômico, marginalidade
1. Direito penal e política do controle social ........................................................... 151
1. Propriedade imobiliária e instituição familiar na origem
do controle social no período colonial ................................... 153
2. O quadro estrutural: de uma sociedade agrícola
Prefácio à edição brasileira
a uma economia industrial .... ... ....... ........... ......... ..... ..... ....... 166
a. O período pós revolucionário: processos de acumulação
e economia mercantil . . . . . . ............... ........................ .. ..... 166
O livro Cárcere e fábrica - as origens do sistema penitenciário (séculos
b. A decolagem industrial (1820-1860) ............................... 172 XVI - XIX), de Dario Mel os si e Massimo Pavarini - composto de dois ensaios
3. Processos desagregadores e a nova política do controle social: individuais independentes, mas com pressupostos metodológicos e objetivos
a hipótese institucional ........................................................ 177 científicos comuns, apresentados ao público brasileiro na excelente tradução
4. O nascimento da penitenciária: de Sérgio Lamarão, historiador do Centro de Pesquisa e Documentação de
de Walnut Street Jail à Auburn Prison .................................. 184 História Contemporânea do Brasil (Cpdoc), da Fundação Getúlio Vargas, Rio
5. As formas da exploração de Janeiro -, retoma uma linha de pesquisa aberta por Rusche e Kirchheimer
e a política do trabalho carcerário ........................................... 192 em Punishment and Social Structure (1939), que demonstrou a relação mercado
de trabalho/prisão e propôs a tese de que cada sistema de produção descobre
II. A penitenciária como modelo da sociedade ideal ........................ 209 o sistema de punição que corresponde às suas relações produtivas. Em
1. O cárcere como "fábrica de homens" ............................... 211 Criminologia, essa linha de pesquisa é critica porque insere as questões do
2. A dupla identidade: "criminoso-internado" crime e do controle social na estrntura econômica e no sistema de poder político
e "não proprietário-internado" ............................................. 212 e jmidico das sociedades contemporâneas, pensadas com as categorias teóricas
3. "The Penitentiary System": desenvolvidas pela tradição marxista, fundadas no conceito de modo de produção
o novo modelo de poder disciplinar ......................................... 217 da vida social, que exprime a integração das forças produtivas materiais em
detenninadas relações de produção históricas, nas quais se manifesta a luta de
4. O produto da máquina penitenciária: o proletário ............... 231
classes da formação social capitalista.
Apêndice 1 Nessa perspectiva, o ensaio de Dario Melossi (Cárcere e trabalho na
A subordinação do ser institucionalizado · Europa e na Itália, no período de formação do modo de prod11ção capitalista)
(pesquisa na penitenciária de Filadélfia, outubro de 1831) ................. 237 define a relação capital/trabalho assalariado como a clave para compreender
a instituição carcerária, elegendo a formação do proletariado - o aspecto
Apêndice2
sübordinado das relações de produção capitalistas - como objeto do interesse
A soberania administrativa em regime de "silent system" científico da pesquisa: expropriados dos meios de produção e expulsos do
(conversas com G. Barrett, B. C. Smith e E. Lynds) ....................... 249 campo - o violento processo de acumulação primitiva do capital nos séculos
III. Conclusões XV e XVI-, os camponeses se concentram nas cidades, onde a insuficiente
absorção de mão-de-obra pela manufatura e a inadaptação à disciplina do
Razão contratual e necessidade disciplinar trabalho assalariado originam a formação de massas de desocupados urbanos.
nas origens da pena privativa da liberdade ....................................... 259
O estudo mostra a população de mendigos, vagabundos, ladrões e outros
delinqüentes dos centros urbanos - então conhecidos como as classes
perigosas -, produtos necessários de determinações estruturais, 1nas
interpretados como expressão individual de atitudes defeituosas, tangidos
para as workhouses - uma invenção do século XVI para resolver problemas

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de exclusão social da gênese do capitalismo. A transformação do castelo de que situa o nascimento da moderna penitenciária na transição da prisão de
Bridewell (Londres) em casa de trabalho forçado de camponeses Walnut Street, em Filadélfia (1790) para a prisão de Auburn, em Nova York
expropriados, com a finalidade de disciplina para o trabalho assalariado na (1819), origem dos modelos de penitenciária de Filadélfia e de Auburn,
manufatura, é emblemática da política de controle das massas marginalizadas éoncebidos corno instituições de controle social da sociedade capitalista
do mercado de trabalho, sem função na reprodução do capital - mas obrigadas mais desenvolvida da era moderna.
a aceit~r empregos por salários miseráveis para evitar a internação nas O texto situa a gênese do modelo de Filadélfia na decadência das work-
workhouses. No início do século XVII, a estrutura celular do aparelho houses americanas, igualmente dedicadas à reclusão de pequenos delin-
carcerário de Rasp-huis (Amsterdã) seria o modelo de disciplina da força qüentes, vagabundos, devedores e pobres em geral - afinal, também nos
de trabalho ociosa formada por camponeses expropriados dos meios de United States of America ser pobre é crime, como disse Disraeli sobre a
subsistência material, em toda Europa continental: raspar troncos de pau- Inglaterra: a crise das workhouses americanas seria desencadeada pela
brasil para produzir tintura com o pó da serradura - nossa involuntária produção manufatureira, que reduziu as casas de trabalho a instituições de
contribuição para o sistema penal moderno -, além de disciplina para o terror, com trabalho manual repetitivo e sem função de adestramento da
trabalho assalariado, cumpriria funções de prevenção especial e geral, segundo força de trabalho encarcerada.
o princípio de menor elegibilidade, pelo qual a eficácia da prisão pressupõe
A pesquisa de Pavarini demonstra que o modelo de Filadélfia, criado
condições carcerárias piores do que as condições do trabalho livre - outra
pela inspiração religiosa Quaker, com celas de isolamento em forma panótica
descoberta de Rusche e Kirchheimer.
para oração, arrependimento e trabalho individual em manufaturas, é a solução
Definir a disciplina da força de trabalho pela instituição carcerária, primeiro para a crise da política de controle: os reduzidos custos administrativos da
para a manufatura, depois para a fábrica, reforçando o trabalho da fann1ia, vigilância carcerária explicam sua rápida difusão nos EUA. Mas novas
da escola e de outras instituições sociais, é um dos grandes méritos do texto transformações estruturais da sociedade americana produzem nova crise: a
de Melossi. Na sociedade de produção de mercadorias, a reprodução ampliada natureza antieconômica do trabalho individual isolado e a impossibilidade do
do capital pela expropriação de mais-valia da força· de trabalho - a energia trabalho coletivo em condições de isolamento celular colocam o modelo de
produtiva capaz de produzir valor superior ao seu valor de troca (salário), Filadélfia na contramão das mudanças do mercado de trabalho - e a solução
como ensina Marx-, pressupõe o controle da classe trabalhadora: na fábrica, da crise aparece no modelo de Auburn, mais tarde conhecido como o sistema
instituição fundamental da estrutura social, a coação das necessidades penal americano, caracterizado pelo trabalho comum durante o dia, sob a
econômicas submete a força de trabalho à autoridade do capitalista; fora da lei do silêncio.
fábrica, os trabalhadores marginalizados do mercado de trabalho e do processo
A tese da dependência do sistema punitivo em face dos processos eco-
de consumo - a chamada superpopulação relativa, sell\ utilidade direta na
nômicos do mercado de trabalho reaparece nos parâmetros de execução
reprodução do capital, mas necessária para manter os salários em níveis
penal do modelo de Auburn, orientados menos para a correção pessoal e
adequados para valorização do capital -, são controlados pelo cárcere, que
mais para o trabalho produtivo; assim corno a manufatura produz o
realiza o papel de instituição auxiliar da fábrica. Assim, a disciplina como
confinamento solitário do modelo de Filadélfia, a indústria engendra o
política de coerção para produzir sujeitos dóceis e úteis, na formulação de
trabalho coletivo do modelo de Auburn, com o silent system para isolar e
Foucault, descobre suas determinações materiais na relação capital/trabalho
controlar- abrindo novas possibilidades de exploração do trabalho carcerário
assalariado, porque existe como adestramento da força de trabalho para
por empresários privados. Mas o conluio do capital com a prisão para explorar
reproduzir o capital, processo definido por Dario Melossi como fenômeno
o trabalho do preso também entra em crise, como mostra Pavarini: por um
de economia política - e não simples investimento do corpo por relações de
lado, a exploração destruidora da força de trabalho, o emprego do preso
poder, na linguagem de Foucault.
como força de trabalho escravo na agricultura sulista, a brutalidade dos
A segunda parte do livro é o ensaio de Massimo Pavaríni ("A invenção castigos corporais por razões de ritmo de trabalho e o compromisso entre
penitenciária: a experiência dos EUA na primeira metade do século XIX"), empresários e juízes de transformar penas curtas em penas longas de prisão

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para maior extração de mais-valia; por outro lado, a luta de sindicatos e esqueceram o fracasso histórico da exploração lucrativa do trabalho carcerário
organizações operárias contra os custos inferiores e maior competitividade e iniciaram novo programa de prisões/empresas: a indústria do encarceran1ento
do trabalho carcerário (salários menores, ausência de tributos etc.) e as privado cresceu de 3.100 presos em 1987 para 276.000 presos em 2001,
dificuldades de industrialização do aparelho carcerário em época de renovação sob o sistema de fitll-scale management, de gestão total do estabelecimento
tecnológica acelerada - tudo isso contribui para decretar o fim da prisão penitenciário pela empresa privada, segundo Loic Wacquant, em A ascensão
como empresa produtiva nos Estados Unidos da América, já no começo do do Estado penal nos EUA.
século XX. Afinal, na definição de Pavarini, a penitenciária não é uma célula Em poucas palavras, a relação cárcere/fábrica evoluiu para a sin1biose
produtiva, mas uma fábrica de homens para transformar criminosos em fábrica/cárcere, que fundiu essas instituições em uma unidade arquitetônica
proletários, ou uma máquina de niutação antropológica de sujeitos reais, punitiva/produtiva, com a fábrica construída como cárcere, ou o cárcere
agressivos e violentos, em sujeitos ideais, disciplinados e mecânicos, segundo erigido em forma de fábrica, a realização definitiva do ideal de exploração do
Foucault. A tese do crinzinoso encarcerado como não-propn.etário encarcerado trabalho pelo capital, na perspectiva da intuição de Pavarini: os detidos devem
ilumina a tarefa do cárcere na sociedade burguesa, instituição coercitiva para ser trabalhadores; os trabalhadores devem ser detidos.
transformar o criminoso não-proprietário no proletário não-perigoso, um
sujeito de necessidades reais adaptado à disciplina do trabalho assalariado.
Curitiba, dezembro de 2004.
Entre os aspectos comuns dos ensaios de Melossi e de Pavarini aparece
a valorização do conceito de Pasukanis (A teoria geral do direito e o marxismo,
1929) da pena como retribuição equivalente da sociedade capitalista, no Prof. Dr. Juarez Cirino dos Santos
sentido de troca jurídica que realiza o princípio da igualdade do Direito, Professor de D.ireito Penal da Universidade Federal do Paraná
correspondente à troca de força de trabalho por salário no mercado de trabalho, Presidente do Instituto de Criminologia e Política Criminal (Curitiba, PR)
que exprime a redução de toda riqueza social ao trabalho abstrato medido
pelo tempo, o critério geral do valor na economia e no Direito. Assim, a pena
como retribuição equivalente representaria o momento jurídico da igualdade
formal, que oculta a submissão total da instituição carcerária, como aparelho
disciplinar exaustivo para produzir sujeitos dóceis e úteis, que configura o
cárcere como fábrica de proletários; por outro lado, o salário como retribuição
equivalente do trabalho, na relação jurídica entre sujeitos "livres" e "iguais"
no mercado, oculta a dependência substancial e a desigualdade real do processo
de produção, em que a expropriação de mais-valia significa retribuição
desigual e a subordinação do trabalhador ao capitalista significa dependência
real, determinada pela coação das necessidades econômicas, que configuram
a fábrica como cárcere do operário.
Todavia, o último capítulo da história da relação cárcere/fábrica ainda
está Pílra ser escrito. A política americana de criminalização da pobreza,
promovida pelo desmonte do Estado social e sua substituição pelo Estado
penal - iniciada por Reagan e continuada por Bush (agora com apoio do
exterminador.do futuro Schwarzenegger, governador da Califórnia) -,
quintuplicou a população carcerária daquele país em vinte anos: de 500 mil
presos em 1980 para 2,5 milhões em 2000. Governo e eleitorado americanos

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Apresentação

Para o estudioso italiano que quer se aprofundar na pesquisa histórica sobre


as origens das instituições penitenciárias, este é um momento certamente muito
interessante. Em novembro de 1976, foi finalmente publicado na Itália o texto
de Foucault Vigiar e punir. E hoje aparecem reunidos organicamente num volume
dois ensaios importantes de Dario Melossi e Massimo Pavarini, um dedicado às
relações entre cárcere e trabalho na Europa e na Itália, entre o século XVI e a
primeira metade do século XIX, e o outro às experiências penitenciárias dos
Estados Unidos da América, na primeira metade do século XIX.
O interesse, evidentemente, não é apenas histórico. Revisitar as origens do
sistema penitenciário na Europa e nos Estados Unidos significa, na realidade,
buscar as razões de fundo que explicam a crise do sistema carcerário nos dias
de hoje e colocar-se o problema da homogeneidade entre as instituições
carcerárias e os modelos econômicos e políticos da nossa sociedade. Não se
pretende dizer com isso que a pesquisa histórica deva ter ou tenha sempre
como fmalidade uma melhor compreensão do presente. Porém, tantos os ensaios
de Melossi e de Pavarini quanto, embora de uma maneira diversa, a obra de
Foucault, servem a essa finalidade, pois o método que utilizam fornece modelos
de investigação suscetíveis de serem aplicados, em seus pressupostos de ordem
geral, também a sociedades e períodos históricos diversos daqueles examinados.
A reflexão sobre o presente é, pois, uma conseqüência obrigatória, o que atribui
a essas pesquisas uma indiscutível atualidade.
O dado comum - que se faz presente tanto na obra de Foucault quanto na
extensa e em muitos aspectos original sistematização que Melossi e Pavarini
fizeram de um material bibliográfico pouco conhecido ou até mesmo
desconhecido na Itália - é a inversão de um certo modo de considerar o cárcere
como uma instituição isolada e separada do contexto social. É bem verdade que
o cárcere e as demais instituições de confmamento são locais fechados e por
isso mesmo fisicamente isolados e separados da sociedade livre, porém essa
separação é mais aparente que real, uma vez que o cárcere não faz mais do que
propor ou levar ao paroxismo modelos de organização social ou econômicos
que se deseja impor ou que já existem na sociedade.

li
Foucault, de um lado, e Melossi e Pavarini, do outro, seguem posturas e tribuição de grande valia, que estimula a análise das relações entre o cárcere
métodos ideológicos muito diferentes para chegar a uma mesma conclusão, diferentes situações socioeconômicas, bem como do papel que a instituição
que pode ser considerada, desde já, como o ponto de partida da atual pesquisa ,~ 1utemciária desempenha atualmente.
histórica sobre as instituições penitenciárias. Para Foucault, o cárcere é o Esse método de trabalho emerge com clareza desde as primeiras páginas
emblema do modelo de organização do poder disciplinar exercitado no texto de Melossi, "Cárcere e trabalho na Europa e na Itália no período da
contexto social de quem detém o próprio poder, um modelo que assume .fõ'tmação do modo de produção capitalista". Os bridewells e workhouses na
aspectos quase metafísicos e que perde, exatame~te devido à sua generalização ·fílglaterra elisabetana, da mesma forma que os rasp-huis de Amsterdam, são
e abstração, uma dimensão histórica precisa. E bem verdade que Foucault . enfocados e examinados à luz de precisas exigências econômicas e de
examina o nascimento da instituição carcerária e de outras instituições de :!liercado, numa visão que, ao menos no que concerne à bibliografia carcerária
confinamento a ela afins na França, no período compreendido entre o final füiliana, é completamente nova.
do século XVIII e os primeiros anos do século XIX. Porém, o alcance que
As origens do internamento compulsório na Inglaterra na segunda metade
ele atribui à descoberta do modelo de organização penitenciária é tamanho
•do século XVI, para recolher ociosos, vagabundos, ladrões e autores de delitos
que faz dele um esquema universal, que parece destinado a reproduzir-se
i!e: menor importância, e submetê-los ao trabalho obrigatório e a uma rígida
sem modificações, malgrado as mudanças ocorridas na sociedade francesa
·11isciplina, e a difusão, tendo como referência o primeiro experimento feito no
dos primeiros anos dos Oitocentos até os dias de hoje.
· ·•castelo de Bridewell, de casas de correção em diversas partes da Inglaterra, são
Em outras palavras, parece que a Foucault interessa mais a descoberta deste i"êlacionadas às hipóteses avançadas por Marx sobre a necessidade de enfrentar,
modelo de controle disciplinar e dos seus mecanismos abstratos de cõm instrumentos repressivos, as grandes massas de ex-trabalhadores agrícolas
funcionamento do que as modalidades concretas de gestão do sistema penitenciário . ede desenraizados que, em conseqüência da crise irreversível do sistema feudal,
e dos outros instrumentos análogos de controle social (escola, hospital, hospício, ãfluem para a cidade e não podem ser absorvidas pela nascente manufatura
quartel, fábrica etc.) no período histórico considerado. Por conta disso, não é . d()m a mesma rapidez com que abandonam os campos. Mas na realidade, nesta
de todo injustificado perguntar se os organogramas de controle disciplinar :fíümeira fase a segregação não se deve tanto a exigências de destrnição ou de
colocados em prática pela sociedade burguesa funcionaram efetivamente e que êliminação física, mas sim à utilização de força de trabalho e, mais ainda, à
exigências concretas de poder, e não apenas de uma organização social abstrata, · "nê~essidade de se adestrar para o trabalho manufatureiro os ex-camponeses
corresponderam a eles. Cabe perguntar, enfim, se foram alcançados os resultados .Yque se recusam a se submeter aos novos mecanismos de produção.
que se propunha obter. Este processo é seguido, de maneira mais analítica, nas casas de trabalho
Bem diferente é o método seguido por Melossi e Pavarini na individualização .. holandesas da primeira metade dos Seiscentos. Da organização dessas casas de
das conexões entre cárcere e organização econômica e política da sociedade. ·'trabalho emerge, de forma particularmente evidente, que o seu propósito era o
Aqui, a preocupação de situar o cárcere num contexto histórico preciso constitui · "áprendizado forçado da disciplina da fábrica. Demonstra-se, com toda a
0 fio condutor da pesquisa; ao mesmo tempo, os autores procuram 'objetividade, que esta finalidade prevaleceu sobre o controle do mercado de
constantemente comparar os esquemas teórico-interpretativos que propõem ttabálho, não fosse por outro motivo senão pela importância relativamente limitada
para explicar primeiro a gênese e depois o desenvolvimento dos distintos sistemas que essas instituições tiveram naquele período histórico.
penitenciários e a incidência concreta que as instituições penitenciárias têm na A precisão é importante porque, quando se cede a uma excessiva
organização econômica e social que estão analisando. Supervalorização e generalização do fenômeno, corre-se o risco, uma vez
Veremos como tampouco este método está isento de um certo encontrada uma fórmula interpretativa, de se estender o seu alcance até aplicá-
mecanicismo, especialmente em relação àqueles períodos históricos e àquelas la mecanicamente a situações em que o cárcere, ou casa de trabalho ou o que
realidades nacionais, entre as quais a Itália, em que as hipóteses de trabalho quer que seja, tenha urna dimensão tão reduzida a ponto de não ser possível
e as tentativas de explicação propostas para outras situações encontram menor átribuir-lhe nenhuma função real de controle social ou alguma incidência sobre
correspondência na realidade concreta. De todo modo, trata-se de uma o mercado de oferta e demanda de trabalho.

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Devemos ser ainda mais cautelosos quando nos deparamos com .De fato, é nesse período que deixam de ser praticadas no cárcere formas de
afirmações do tipo "o segredo das workhouses ou das rasp-huis ( ... ).consiste :; it@balho produtivo e competitivo, passando a prevalecer um sistemaintimidatório
em representar, em termos ideais, a concepção burguesa da vida e da '":~.ierrorista de gestão, destinado a perpetuar-se no decorrer do século XIX e
sociedade, em preparar os homens, em particular os pobres, os proletários, \.iiesmo posteriormente. Aqui.' a correlação entre os sistemas de organização
a aceitar uma ordem e uma disciplina que os tomem dóceis instrumentos da Óarcerária e as exigências do avanço industrial e do controle terrorista sobre o
exploração", ou quando se afirma tout court - é esta a con.c~usão a que pi;qletariado tem um fundamento indiscutível e se baseia em situações de fato,
chegam Rusche e Kirchheimer - que "a primeira forma de pnsao moderna ])IÍS como o notável desenvolvimento quantitativo da instituição carcerária e as
está( ... ) estreitamente ligada às casas de correção-manufaturas". Proceder terríveis condições de vida das prisões, descritas por reformadores do século
desse modo significa atribuir à nascente burguesia manufatureira e à sua XVUI. em primeiro lugar por Howard.
organização social uma importância e uma capacidade que, na realidade, A tentação de resolver, de acordo com estes esquemas interpretativos, também
permanecem confinadas a experiências certamente emblemáticas, mas de ás situações en'l que estão ausentes os pressupostos econômicos e produtivos
circunscrito alcance quantitativo e territorial. para ligar o cárcere às linhas de desenvolvimento da economia capitalista toma
A relação entre o cárcere e o mercado de trabalho, entre confinamento e menos convincente a investigação da realidade italiana. E isso ocorre não tanto
adestramento à disciplina da fábrica não pode, após os resultados da pesquisa porque na segunda parte do ensaio Melossi se proponha a aplicar estas concepções
de Melossi e Pavarini, ser colocada em questão, mas ao lado desta lógica às primeiras experiências italianas dos séculos XVI e XVII, mas sim porque, na
economieista existem provavelmente outras, que não constituem simplesmente ·ausência dos pressupostos econômicos e sociais que tornam plausível a
coberturas ideológicas ou justificativas moralistas. A chave para uma reconstrução éxplicação do cárcere em função das exigências do mercado de trabalho e do
da função global desenvolvida pelas instituições segregacionistas no longo período modo de produção capitalista, não são buscadas outras tentativas de explicação.
da sua gestação, que se estende do século XVI ao século XVIII, deve ser Tem-se, assim, a necessidade de se fazer referências genéricas a exigências de
buscada numa abordagem que também leve em conta outros componentes, ordem e controle social, as quais por isso mesmo são reavaliadas, posto que,
certamente contraditórios e menos racionais, que encontramos nas atuais ainda que seja de forma extremamente reduzida e com uma incidência quantitativa
instituições penitenciárias e que abarcam uma vasta esfera de motivações, às íníI1irna, as experiências de confinamento também existem na Itália.
vezes abertamente mistificadoras, mas às vezes reais, que vão desde as exigências Essas limitações estão em parte presentes também nas investigações sobre
de defesa social até o mito da recuperação e da reeducação do desviante, desde os períodos posteriores, do Setecentos até as experiências dos estados que
o castigo punitivo como um fim em si mesmo até os modelos utópicos de .precederam à unificação italiana. É necessário, porém, ter-se consciência da
perfeitos microcosmos disciplinares. enorme dificuldade de padronizar um material tão fragmentado, por causa das
É certo, porém, que a análise interpretativa que des(<lca as relações .entre o .diversas experiências políticas e dos diferentes níveis de desenvolvimento
nascimento das instituições segregacionistas, a difusão da pena detentiva e o econômico dos vários estados e regiões italianas e da carência de qualquer
modo de produção capitalista contribui de maneira determinante para a .tentativa de sistematização e de avaliação crítica. Diante desse quadro, deve-se,
compreensão do fenômeno e para o desmantelamento de mitos e lugares comuns em primeiro lugar, recorrendo às poucas fontes existentes, completar as
sobre a imutabilidade do cárcere ao longo dos séculos. Nesse sentido, é informações necessárias para fazer a descrição da situação das instituições
particularmente convincente a relação de interdependência entre as condições penitenciárias e de confinamento existentes.
do mercado de trabalho, sempre em mutação, a brusca queda da curva de Malgrado estas dificuldades, na parte final do ensaio emergem algumas linhas
incremento demográfico, a introdução das máquinas e a passagem do sistema seguras de interpretação, com base nas quais pode-se chegar à conclusão de
manufatureiro para o sistema fabril propriamente dito, de um lado, e a súbita e que na Itália nunca existiu a fase histórica em que a instituição penitenciária
sensível deterioração das condições de vida no interior do cárcere, do outro, a funcionou como adestramento para a fábrica ou como controle do mercado da
partir da segunda metade dos Setecentos na Inglaterra e nos outros países força de trabalho. Na Itália, o cárcere, nascido mais tarde do que em outros
europeus de industrialização mais rápida. países devido ao atraso com que se iniciou o desenvolvimento das manufaturas

14 15
e por conseguinte das fábricas, imediatamente adequou-se à função repressiva nciária: a experiência dos Estados Unidos da América na primeira metade
e terrorista que foi atribuída, no início do século XIX, ao internamento nas culo XIX". Esses resultados são mais seguros porque a história
nações européias mais avançàdas. Saltou-se assim a passagem, ou a ilusão, rária dos Estados Unidos pode contar não apenas com uma vasta
se se preferir, de utilizar a instituição no quadro das exigências produtivas da ';aboração crítica, totalmente inexistente para a situação italiana, mas também
nascente economia capitalista. , ..}~q'J'Il um desenvolvimento lógico e com uma articulação dos sistemas
•' • :t:·~~nitenciários que permitem colocar em evidência indiscutíveis conexões
Esta hipótese, que poderia ser uma convincente explicação do crônico atraso
'.:~111re 0 cárcere e o desenvolvimento econômico da América do século XIX.
do cárcere na Itália, desde as suas origens até os nossos dias, apóia-se sobre
algumas considerações sem dúvida importantes, tais como a permanência de As conexões entre as formas de controle social e o tipo de econonúa agrário-
relações pré-capitalistas no Mezzogiorno, e a função assunúda pelo proletariadà . 'fàmiliar do período colonial, entre as primeiras experiências de internamento do
meridional de exército industrial de reserva da econonúa do norte do país e dos ;período pós-revolucionário e o seu progressivo aperfeiçoamento em função das
países estrangeiros mais avançados mediante o recurso maciço ao fenômeno ·exigências produtivas do avanço industrial, estão amplamente documentadas e
migratório. As funções de regulador do mercado e de adestramento para o 'ê()nstituem um esquema exemplar de subordinação da ideologia punitiva e
trabalho produtivo que, pelo menos em certos períodos históricos e ern nível · J~enítenciária às leis do mercado de trabalho.
mais emblemático que real, o cárcere desempenhou em países que possuíam Assim, não é por acaso que foi nos Estados Unidos, em fins do século
uma estrutura econôrrúca mais homogênea, teriam sido assumidas na Itália por · ..•'.'){VIII e no começo do século seguinte, que se inventaram e experimentaram,
outros instrumentos de controle, entre os quais, em primeiro lugar, a núgração ,.numa rápida sucessão histórica, os dois sistemas penitenciários clássicos de
interna e a enúgração. Quando, na segunda metade do século XIX, algumas : . ,fiJadélfia e de Auburn, nos quais o trabalho se reveste, respectivamente, de
regiões italianas alcançaram os níveis de produção de outros países europeus, o 'Uma mera função punitiva ou é organizado segundo padrões produtivos e
cárcere se adequará, em toda a nação, ao modelo de instrumento terrorista de 'competitivos. Tampouco é por acaso que, enquanto nos Estados Unidos os
controle social, sem que seja possível destacar nenhuma diferença de gestão ·'dois sistemas entram efetivamente em funcionamento e são aplicados até as
entre as zonas industrializadas do norte e as mais atrasadas do sul, já unificadas .suas últimas conseqüências (basta pensar na intervenção direta da indústria
pela mesma administração centralizada das instituições penitenciárias. privada na organização e na gestão do trabalho carcerário no esquema do
Conviria antes perguntar se esta tentativa de sistematização da origem e çontract system), na Europa, como bem destaca Melossi, o debate sobre os
do constante atraso do sistema carcerário italiano teve também lugar em méritos e os defeitos dos dois sistemas tem lugar num terreno predonúnan-
outros países da bacia do Mediterrâneo, nos quais registrou-se um atraso no temente ideológico e moralista. Na verdade, na Europa da primeira metade
desenvolvimento econômico sinúlar ao da Itália, como Espanha, Grécia ou do século XIX, não estavam presentes os pressupostos econômicos e de
Turquia. Se essas analogias ocorreram, elas poderiam teforçar a hipótese de mercado para qualquer utilização ou instrumentalização produtiva do trabalho
uma linha de desenvolvimento do cárcere característica de países econômica carcerário.
e politicamente subdesenvolvidos (o discurso vale, obviamente, para as Todavia, também nos Estados Unidos, como documenta o próprio Pavarini,
primeiras décadas do século XIX) e induzir a um aprofundamento, em a relação direta entre cárcere e trabalho produtivo teve uma incidência quantitativa
perspectiva comparada, da investigação sobre a situação italiana, até agora e temporal muito linútada, pelo que, mais do que falar do cárcere como fábrica
muito incipiente se confrontada com o nível sensivelmente mais avançado de mercadorias, dever-se-ia falar do cárcere como produtor de homens, no
das pesquisas conduzidas em países em que o cárcere desenvolveu funções sentido da transformação do crinúnoso rebelde em sujeito disciplinado e adestrado
econômicas e sociais que não têm correspondência ou comparação (ou se ·ao trabalho fabril.
tiver é muito tênue), com a realidade italiana. Esta conclusão leva Pavarini a traçar, na segunda parte do seu trabalho,
Essas conclusões problemáticas referidas aos acontecimentos históricos dedicada à penitenciária como modelo de sociedade ideal, uma comparação
das instituições carcerárias italianas encontram uma confirmação indireta articulada entre cárcere e fábrica, entre detento e trabalhador, entre contrato
nos resultados a que Massimo Pavarini chega no seu ensaio "A invenção de trabalho e pena retributiva, entre subordinação no trabalho e subordinação

16 17
do preso, entre organização coativa carcerária e organização coativa eco-
nômica do trabalho.
A tese é indubitavelmente sugestiva, mas nos parece pecar por um certo
dogmatismo e por uma tendência à generalização abstratizante que constitui o ·~~~··1···
...• ntrodução
limite da obra de Foucault. Se este tipo de comparação entre cárcere e fábrica
pode ter fundamento para o período histórico examinado, isto é, para os anos
de formação do modo de produção capitalista, que conclusôes poderemos tirar i,;·~~.1. O início do interesse pela história da instituição carcerária coincide,
dela para fundamentar a tese no momento histórico atual, e em especial na . ·Ji!lfa nós, com a explosão, no final dos anos 1960, da gravíssima crise na
realidadeitaliana?. /•~!la! a instituição se ~ncontrava (e se encontra até hoje).Como sempre acontece
Assistimos há mais de meio século - e sobretudo naqueles países em que o , ;~qs momentos de cnse, fomos levados a nos colocar algumas perguntas que
modelo cárcere/fábrica alcançou aplicações mais amplas e mais concretas - a . Jliziam respeito à natureza mais profunda, à essência mesma do fenômeno
um constante processo de transformação da sanção detentiva em outros , .~arcerário. Surpreendeu-nos então constatar, e essa constatação incluía
instrumentos de controle em liberdade do transgressor e do delinqüente. E • '.iambém o modo de pensar que até então nos movia, que, para além das
certamente não se pode afirmar, como faz Foucault, que se trata simplesmente :.;a\ferentes posturas de cunho reformista ou mesmo subversivo do fenômeno
de um estreitamento e de uma atomização dos conteúdos da pena carcerária, :>.lf!rrcerário 1, ninguém colocara com bastante clareza um problema que nos
que continuaria assim a manter intacto o seu papel e a sua função de instrumento · ''.i•·,'~~ecia cada vez mais crucial: por que o cárcere? Por que motivo, em todas
totalizante de poder disciplinar. Em outros países, como a Itália, o cárcere, ·.0~~sociedades industrialmente desenvolvidas, essa instituição cumpre, de modo
devido às suas conhecidas deficiências organizativas, nunca foi um modelo de ·. . ~t~dominante, a função punitiva, a ponto de cárcere e pena serem considerados
controle disciplinar e muito menos de adestramento ao trabalho produtivo, mas <':-_':j~bmumente quase sinônimos?Pareceu-nos que a crítica prática da instituição,
sim constituiu um modelo de mau governo e de anarquia, entendido aqui em , '::,:);;,,-~tte nesses anos se manifestava radicalmente com motins, fazendo emergir
termos de gestão e administração. _; -_;f~~da vez mais seu caráter irracional, sugeria a necessidade de inventar os
3
::'//:Jllstrumentos da crítica teórica. Esses instrumentos deveriam ser capazes de
A estrutura do trabalho fabril certamente sofreu algumas modificações no
curso dos últimos 150 anos e, embora o princípio da exploração da força de .,'.'J'êsponder à pergunta, simples e ingênua, que a crise profunda de um
trabalho ainda continue de pé, a condição do trabalhador subordinado não pode '<,: fehômeno social sempre coloca com relação ao dito fenômeno: a quem serve
ser comparado àquele existente no período do avanço industrial. Enfim, nos ;·:e para que serve? Diante desse fenômeno, qual deve ser a postura de quem,
países socialistas, o problema da repressão penal e da organização penitenciária .....· ",~m seu trabalho intelectual, se interessa pela classe operária e utiliza a análise
seguiu e segue esquemas que em parte são calcados nos 1do mundo ocidental. · · ,,Jmtrxista?Também nos parecia que o projeto de reforma penitenciária - que
Estes dados, sumária e desordenadamente oferecidos aqui à atenção do leitor, •C•fdepois de ter sido proposto há décadas, era retomado naquelas dias agitados
exigem uma sistematização teórica e uma tentativa de conciliação com a hipótese "•>·no Parlamento, sob o peso dos motins e do temor que estes provocavam na
· \'lpinião pública - estava muito longe, se não nas fórmulas legislativas, pelo
totalizante do modelo carcerário do século XIX.
ínenos na colocação teórica do debate, de responder de modo minimamente
Trata-se de uma verificação que se toma urgente, se é certo que, como
'• ,ádequado à radicalidade com que o problema era colocado. Essa radicalidade,
dizíamos no início, a reflexão teórica sobre uma matéria como a das instituições
. ·.vale dizer, era mais estrutural do que política, e estava intimamente conectada
penitenciárias deve ter como objeto urna maior compreensão dos processos em
com a própria razão de ser da instituição.Em resumo, era justo perguntar por
curso no momento histórico atual. Trata-se de uma verificação que, esperamos,
que e de acordo com que critérios políticos, racionais, econômicos (aqueles
os autores deste livro possam, em breve, cumprir.
Guida Neppi Madona 1
-- Sobre a recente produção italiana sobre o cárcere, ver G. Mosconi, "II carcere
nella recente pubblicistica italiana'', in La questione criminale, 1976, pp. 2-3.

19
18
ialmente o nosso objeto de maneira bastante precisa: a sua área temporal
que são usados - ou que se espera sejam usados -para qualquer outro problema
acial coiucidia com a da formação de uma determinada estrutura social
social}, o indivíduo que comete um crime deve cumprir a pena no cárcere (ainda
ídia nela). Tratava-se de um aspecto particular da estrutura global. Este
que esta pergunta, formulada várias vezes, faça surgir muitas interrogações
~zjjjpecto particular, expresso em. term?s defin'.dores, é o obj~to que vem
sobre os conceitos de "delito" e "pena"; mais adiante, veremos por que é mais
;~ltl\strado neste texto. Mas para isso e necessano fazer previamente uma
produtiva uma análise da ''pena concreta'', do cárcere).Assim, tomava-se essencial
.•;:~itpla advertência: sobre o que precedeu e o que sucedeu tal objeto.
colocar como objeto precípuo da própria pesquisa a origem da instituição (afinal
de contas, ela devia ter uma origem! Fazer por si só a pergunta já destruía a ·.· 2. Num sistema de produção pré-capitalista, o cárcere como pena não
concepção sagrada de que o cárcere sempre existiu, objeto dado in rerum natura). .. :i::xiste. Essa afirmação é historicamente verificável, advertindo-se que a
E isso não acontecia por um amor visceral ao historicismo (do qual, na nossa . ,,~dade feudal não ignora propriamente o cárcere como instituição, mas
cultura, é difícil nos livrar), mas porque, na medida em que colocávamos o . .. . sjm a pena do internamento como privação da liberdade.
problema histórico da gênese, aparecia cada vez mais em primeiro plano o aspe'.:to Pode-se dizer que a sociedade feudal conhecia o cárcere preventivo e o
estrutural: a investigação histórica, retirando, camada por camada, as mcrustaçoes •;•~:;:iíárcere por dívidas, mas não se pode afirmar que a simples privação da
que as diversas ideologias jurídica, penalística e filo~ófica haviam deposit.ado ·. iillberdade, prolongada por um determinado período de tempo e não
sobre a estrutura da instituição, revelava seu reticulado mtemo, sua Bau marxista. .',;acompanhada por nenhum outro sofrimento, fosse conhecida e portanto
Demo-nos conta, então, que nem de longe éramos os primeiros a trilhar ~·:prevista como pena autônoma e ordinária.
este caminho. Estávamos seguindo, sobretudo, as pegadas de dois autores :';·;••.: ;. Esta tese, que tende a sublinhar a natureza essencialmente processual do
2
da Escola de Frankfurt dos anos 1930: George Rusche e Otto Kirchheimer • ..';s;;;~ãrcere medieval, é acolhida quase unanimemente pela ciência histórico-penal.
No interior do nosso texto esclarecemos nossa posição com relação ao trabalho '.ci\o~esmo aqueles que não aceitam esta interpretação, como Pugh5, são obrigados
de Rusche e Kirchheimer e de Michel Foucault3 , na. nossa opinião os pontos .,;'.:yiueconhecer que as primeiras hipóteses historicamente aceitáveis de pena
mais altos da investigação teórica sobre a instituição carcerária. :: z;~íl'cerária devem ser localizadas no final do século XIV, na Inglaterra, num
A perspectiva desta maiêutica inicial foi, por conseguinte, colocar o (i.;iF.~·[npmento em que o sistema socioeconômico feudal já dava mostras de
problema da construção de uma teoria materialista (no sentido m.a~x1sta) do 1,:,:·~~tofunda desagregação.
fenômeno social chamado cárcere, ou melhor, de estender os crlter1os e as ~!··::,•:·;;: Sem querer enfrentar - dada a natureza introdutória destas páginas - o
suposições de base da teoria marxista da sociedade à compreensão deste ;';••~:.q~bate historiográfico em torno da natureza de algumas penas atípicas (cárcere
fenômeno 4 . "!{\zgro-correctione, cárcere para prostitutas e sodomitas etc.), pode-se propor
Chegamos assim a estabelecer uma conexão entre o surgimento do modo . '',J~!llª hipótese teórica capaz de justificar, ainda que apenas em termos gerais,
de produção capitalista e a origem da instituição carcerária moderna. Este é o · •a'ausência da pena carcerária na sociedade feudal.
objeto dos dois ensaios que se seguem. Essa conexão definia temporal e ":':.:~:·:2, Uma abordagem correta do tema aponta como momento nodal a definição
.:tjj~º papel da categoria ético-jurídica do talião na concepção punitiva feudal.
2 G. Rusche & O. Kirchheimer, Punishment and social structure (1939), Nova ';•'.pis;~ode ser que, na origem, a natureza de equivalência, própria deste conceito,
Iorque, 1968. (N. do T.: edição brasileira Punição e estrutura social, ~ia de ,,·,,~~o tenha sido mais do que a sublimação da vingança, e que tenha se baseado
Janeiro, Freitas Bastos/ICC, 2004, 2ª ed., tradução e apresentação de Gtslene \iOJlicima de tudo num desejo de equilíbrio em favor de quem tivesse sido vítima
Neder). '. <.'CÍô delito cometido.
J Michel Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris, 1975 (N. do
O delito, para citar a conhecida tese de Pasukanis, pode ser
T.: edição brasileira Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes,
considerado como uma variação particular da troca, no qual a relação
2002, 26' ed., tradução de Raquel Ramalhete). .
4 Sobre a metodologia de aproximação ao problema, ver D. Melossi, "Crimonologia
de troca, como a relação por contrato, se instUüra post factum, isto
e marxismo: alle origini della questione penale nella società de 'II capitale'", in La
>s R. B.Pugh, Imprisonment in Medioeval England, Cambridge, 1970.
questione criminale, 1976, 2, p. 319.
21
20
é, em seguimento a uma ação arbitrária de uma das partes ( ... ) a · eretamente ameaçados pelo ato ilícito cometido, mas sim para evitar
pena, portarto, atua como equivalente que equilibra o dano sofrido (veis - porém não previsíveis e por isso socialmente fora de controle -
pela vítima . é.itos negativos que pudessem ter estimulado o crime cometido. Daí derivava
A passagem da vingança privada à pena como retribuição, isto é, a \i·~J/~necessidade de reprimir o transgressor, porque só deste modo se poderia
passagem de um fenômeno quase "biológico" a categoria jurídica impõe, <<. ;;·x,:;:~yitaruma calamidade futura capaz de colocar em perigo a organização social.
como pressuposto necessário, o domínio cultural do conceito de equivalente, ·· · ·. •·•$;.por causa desse temor de uma ameaça futura que o castigo deveria ser
medido como troca de valores. '2\i:'.,êl!Petacular, cruel, capaz de provocar nos espectadores uma inibição total de
A pena medieval certamente conserva esta natureza de equivalente, mesmo : \jmitá-lo.
quando o conceito de retribuição não é mais diretamente conectado ao dano :·%,>.•i.c;E:" Se ajustiça divina deveria ser o modelo com o qual se mediam as sanções,
sofrido pela vítima do delito, mas sim com a ofensa a Deus. Por isso, a pena ,:~:·--:--·:f-:~~:{'.$_e--o sofrimento era socialmente considerado como um meio eficaz de expiação
adquire cada vez mais o sentido de expiatio, de castigo divino. ;,>:::~--:_:;-:;-;''.'.:~_<--_~I"de catarse espiritual como ensinava a religião, não havia mais nenhum
Essa natureza um tanto híbrida - retributio e expiatio - da sanção penal ;,:; ·'s;Jimíte à execução da pena. De fato, esta se expressava na imposição de
na época feudal não pode, por definição, encontrar no cárcere, ou seja, na <':,'g;.sofrimentos tais que pudessem de algum modo antecipar e igualar os horrores
privação de um quantum de liberdade, sua própria execução. "'.+;<Jfa pena eterna. Nessa perspectiva, o cárcere como pena não se mostrava
· :t itomo um meio idôneo para tal objetivo.
Com efeito, no que concerne à natureza de equivalente,
:~;:;~_:::-;;;><:::_- Há, ademais, uma hipótese - em certos aspectos, alternativa ao sistema
Para que pudesse aflorar a idéia da possibilidade de expiar o delito
:s•s'\punitivo feudal - na qual está claramente presente uma experiência
com um quantum de liberdade abstratamente predeterminado, era
§'{o penitenciária. Referimo-nos ao direito penal canônico.
necessário q· ue todas as formas da riqueza fossem • reduzidas à forma
7
mais simples e abstrata do trabalho humano medido no tempo . s A afirmação não é contraditória com o caráter teocrático do estado feuclal.
gJom efeito, é certo que, embora não completamente, em certos setores
Por conseguinte, na presença de um sistema socioeconômico como o
feudal, no qual ainda não se historicizara completamente a idéia do "trabalho
{'.'<;:'. .~articulares e em alguns períodos determinados, o sistema penal canônico
humano medido no tempo" (leia-se, trabalho assalariado), a pena-retribuição,
_;:~'.~c:::i',::'~:onheceu formas originais e autônomas, que não eram encontradas em ne-
';;.';*•;nhuma experiência de tipo laico. Estes momentos e estes setores específicos
como troca medida pelo valor, não estava em condições de encontrar na
privação do tempo o equivalente do delito. O equivalente do dano produzido
;ç,y.são de difícil individualização por causa do estado de profunda compene-
<.,•s:c:;tração do poder eclesiástico na organização política medieval. A importância
pelo delito se realizava, ao contrário, na privação daqueles bens socialmente
considerados como valores: a vida, a integridade física1 o dinheiro, a perda
:'.:e,;'ªº pensamento jurídico canônico no sistema punitivo medieval variou de
· ·· · ;·,i.intensidade em função do grau de concorrência exercitado pelo poder
de status. · 'êélesiástico em relação ao poder laico.
Pelo lado da natureza da expiatio (vingança, castigo divino), a pena só
podia esgotar-se numa finalidade meramente satisfatória.
' Si',:''· A Igreja implementou as primeiras e embrionárias formas de sanção em
:,·.relação aos clérigos que, desta ou daquela maneira, haviam cometido alguma
Através da pena se operava, assim, a perda do medo coletivo do contágio, ,,falta. Na verdade, é muito problemático chamar-se essas faltas de delitos.
provocado originariamente pela violação do preceito. Nesse sentido, o juízo ,,,Tratava-se, provavelmente, de infrações religiosas que, porém, provocavam
sobre o crime e o criminoso não se fazia tanto para defender os interesses , ,,, um reflexo mais ou menos direto sobre as autoridades eclesiásticas, ou que
· despertavam um certo alarme social na comunidade religiosa. Essa natureza
__,:-,-necessariamente hfbrida, ao menos num primeiro momento, explica satis-
6 E. B.Pasukanis, La teoria generale del diritto e il marxismo, Bari, 1975, pp. 177-
·'fatoriamente porque essas ações desviantes condicionaram o poder eclesiás-
178 (N. do T.: edição brasileira A teoria geral do direito e o marxismo. Rio de
tico a ter uma reação de natureza ainda religiosa-sacramental. Compreende-
Janeiro, Renovar, 1989). se também por que esta reação se inspirava no rito da confissão e da penitência,
7 Ibidem, p. 189.

22 23
acompanhado, porém - o que é próprio da índole particular destes um quantum de tempo necessário à purificação segundo os critérios
comportamentos desviantes - de um elemento posterior, ou seja, a forma >próprios do sacramento da penitência; portanto, não era tanto a privação da
pública. Nascia assim a sanção de cumprir a penitência numa cela, até o ""'1iberdade em si que constituía a pena, mas sim a ocasião, a oportunidade
momento em que o culpado se arrependesse (usque ad correctionem). ·:pára que, no isolamento da vida social, pudesse ser alcançado aquilo que era
Essa natureza terapêutica da pena eclesiástica foi depois englobada e mesmo o objetivo ideal da pena: o arrependimento. Essa finalidade devia ser entendida
desnaturalizada pelo caráter vingativo da pena, já sentida socialmente como como correção, ou possibilidade de correção, diante de Deus, e não como
satisfactio; esta nova finalidade, este tempo forçado usque ad correctionem, regeneração ética e social do condenado-pecador. Nesse sentido, a pena não
acentuou necessariamente a natureza pública da pena. Esta sai então do foro .. podia ser mais do que retributiva, fundada por isso na gravidade do delito e
interno para assumir as roupagens de instituição social e, por conseguinte, a .não na periculosidade do réu.
sua execução será tornada pública, se tomará algo exemplar, com o intuito A natureza essencialmente penitencial do cárcere canônico refletia-se
de intimidar e prevenir. Todavia, alguma coisa da finalidade original, seja e' clirrmne1nte na possibilidade de ser utilizado diretamente com fins políticos. A
mesmo em termos de valor, sobreviveu. A penitência, quando se transformou 'Osua existência, ao contrário, teve sempre um sentido religioso, compreensível
em sanção penal propriamente dita, manteve em parte sua finalidade .únicamente no interior de um rígido sistema de valores, teleologicamente
correcional; esta se transformou, de fato, em reclusão nun1 mosteiro por um orientado para a afirmação absoluta e intransigente da presença de Deus na
tempo determinado. A separação absoluta do mundo externo, o contato mais vida social, portanto, uma finalidade essencialmente ideológica.
estreito com o culto e a vida religiosa dava ao condenado a oportunidade, 3. A segunda advertência a ser feita é, ao contrário, para depois do texto.
através da meditação, de expiar a própria culpa. ·· · Não é uma conclusão, mas antes a premissa para uma outra pesquisa, que
O regime penitenciário canônico conheceu formas diversas. Além de . diz respeito à crise da instituição e não à sua origem. Ela tem a ver mais com
diferenciar-se pelo fato de que a pena podia ser cumprida mediante a simples a desagregação da estrutura carcerária do que com a construção dessa
reclusão no mosteiro, mas também pela reclusão na cela ou mesmo na prisão estrutura, que é o objeto do trabalho que se segue.
episcopal, ele se caracterizou pela diversidade de modalidades de execução: à Este trabalho se desenvolve a partir do ponto de vista do capitalismo
privação da liberdade se acrescentaram sofrimentos de ordem física, outras competitivo do final do século XIX e do início do século XX (e se detém
vezes o isolamento celular (celta, carcer, ergastulum) e sobretudo a obrigação · éxatamente aí). No período que se estende das últimas décadas dos Oitocentos
do silêncio. Os atributos aqui sublinhados, próprios da execução penitenciária , até a primeira metade dos Novecentos, assistimos progressivamente, em
canônica, têm origem no modo de organização da práxis conventual, toda a área capitalista, a profundas mudanças do quadro econômico-social
especialmente em suas formas de misticismo mais acentuado. O influxo que de fundo'. Essas mudanças dizem respeito a elementos fundamentais da nossa
a organização religiosa de tipo conventual exerceu sobre a,realidade carcerária situação atual: a composição do capital, a organização do trabalho, o
foi de um tipo particular; a projeção no terreno público institucional do rito surgimento de um movimento operário organizado, a composição das classes,
sacramental original da penitência encontrou sua real inspiração na alternativa o papel do Estado, a relação global Estado-sociedade civil.
religioso-monacal de tipo oriental, de natureza contemplativa e ascética. O
A circulação e o consumo caem sob o domínio direto do capital: as decisões
que deve ser sublinhado, o elemento fundamental para avaliação, é que o
sobre os preços, a organização do mercado, mediante um consenso, tomam-
regime penitenciário canônico ignorou completamente o trabalho carcerário
se uma coisa única. Não apenas se potencializam os instrumentos tradicionais
como forma possível de execução da pena.
de controle social, aquelas "áreas da esfera de produção" fora da fábrica,
A circunstância da ausência da experiência do trabalho carcerário na que existem desde os primórdios do capitalismo, como também criam-se
execução penal canônica pode esclarecer o significado que a organização
eclesiástica veio a atribuir à privação da liberdade por um período determinado
8
de tempo. Parece-nos, de fato, que a pena do cárcere - da forma como teve As observações que se seguem são mais amplamente desenvolvidas em D.
lugar na experiência canônica- atribuiu ao tempo de internamento o significado Melossi, "Istituzioni di controllo sociale e organizzazione capitalistica del lavoro:
alcune ipotesi di ricerca", in La, questione criminale, 1976, 2-3.

24 25
novos instrumentos. O novo critério que rege é o da capilaridade, da extensão réus (sobretudo nos momentos de crise política). Os períodos em que
e da invasão do controle. Os indivíduos não são mais encarcerados, eles , tende a esvaziar os cárceres e a introduzir regimes mais benignos e de
continuam lá onde normalmente estão reclusos: fora da fábrica, no território. daptação social sobrepõem-se, de forma cada vez mais compulsiva, aos
A estrutura da propaganda e dos mass media, uma nova e mais eficiente rede ríodos em que o puxar das rédeas e o regime duro tornam-se novamente
policial e de assistência social são os portadores do controle social :~fuecessários" (típico, deste ponto de vista, é a história da reforma carcerária
neocapitalista. Deve-se controlar a cidade, a área urbana, este é o motivo de ·:·,jfa Inglaterra, desde o final da Segunda Guerra Mundial até a década de
fundo que faz nascer, nos anos 1920, a moderna sociologia dos "desvios" no 197010).
melting pot americano. ;.•··,J.~ii'· . Tudo isso se torna particularmente evidente, porém, com a crise dos
Se o modo de produção capitalista e a instituição carcerária (assim como (•z;;ílllºs 1960, com a crise atual. Desta vez, o problema carcerário explode não
outras instituições subalternas) surgiram ao mesmo tempo numa relação {c?for si só, mas sobretudo na Itália, concomitantemente com um nível altíssimo
determinada que é objeto do presente trabalho, as modificações tão profundas •"\~;<'.·. ~e lutas operárias e, contemporaneamente, com uma crise social profunda,
que ocorreram ao nível estrutural não podem, por outro lado, deixar de ter ··;'.·•~.·g~e i~,v~ste contr~. uma s~rie de outras instituições (escola, hospitais
provocado alterações igualmente radicais naquelas instituições e no conjunto · ~; ~··Fps1qmatncos, quarteis e a propna estrutura familiar burguesa). Não podemos
dos processos de controle social e de reprodução da força de trabalho. As :>;.z;c.J1ºs deter neste ponto, o que exigiria uma discussão geral que vai muito além
relações entre controle social primário e controle social secundário, assim °5:'4,lc·.tl.º objeto específico que abordamos. Basta observar que - dado que todo 0
como a própria gestão das diversas formas de controle, foram também «:';;Si;s1stema de controle se fundamenta sobre relações de produção (historicamente
·,.,, ;;.:determinadas~, e.dado que é neste nível, nos anos 1960, que 0 equilíbrio se
abaladas. 1
S'if);.í'ºmpeu ~as fabncas - ~erá só a partir da tentativa de restabelecer 0 poder
Rusche e Kirchheimer nos mostram como desde o final do século XIX
até por volta dos anos 1940 a população carcerária diminui sensivelmente na ·.·.!·'.;f;j\:Jias relaçoes. de produçao que o capital jogará as cartas de um novo tipo de
.;•'i•;,,<~ontrole social e se colocará em condições de enfrentar radicalmente do seu
Grã-Bretanha, na França, na Alemanha. Na Itália acontece basicamente o
mesmo desde 1880 até a década de 1970, com uma (ligeira) exceção no
"'i';l;,j1ponto .de vi~ta, a ~uestão carcerária. Assim, um elemento fundament;l para a
:;;.;;f;pesqmsa hoje- e e a respeito deste ponto que importa concluir- é exatamente
período fascista. A diminuição da população nas prisões é acompanhada pela
'. • tentar individuali~ar, com base na nova composição da relação capital-trabalho
adoção cada vez mais ampla (fora da Itália) de medidas penais de controle 3
em liberdade, como a probation, extensamente praticada nos Estados Unidos. .~i;'.;c<,CJ~e emerge ~a cnse (~ naturalmente a primeira tarefa é justamente mostrar a
•'•:.:>çnse), qual e o movimento· do controle social. Será que nos encontramos
É o surgimento de um profundo mal-estar, cujos sintomas já se percebiam
··;;.diante da ten:ati~a d~ reconstruir uma nova correspondência entre produção
no final do período da nossa pesquisa'. O sistema carcerário oscila cada vez
''.';e controle, tao hmp1damente representada, no capitalismo clássico, pelo
mais entre a perspectiva da transformação em organismo efetivamente
modelo do Panopticum de Bentham?
produtivo, com base no modelo da fábrica externa - o que significa, porém,
no regime moderno de produção, mover-se rumo a uma abolição do cárcere É somente a partir de uma efetiva clareza de análise que se tomará possível
enquanto tal - e a de caracterizar-se como mero instrumento de terror, inútil o movimento operário, p~ojetar uma linha própria de intervenção n~
para qualquer finalidade ressocializante. • Cárce:rn- mas, sobretudo, e mais em geral, no problema do controle social_
que. não sej.a cegamente subalterna, mas que se enquadre no interior de um
Assim, durante todo o século XX, variando de acordo com as situações
projeto social abrangente.
político-econômicas particulares, as perspectivas de reforma assumem um
andamento tipicamente "a fórceps", no sentido da progressiva diminuição
(para cada réu e no conjunto da população) das penas carcerárias, por um
lado, e, por outro, do aumento da repressão para certas categorias de delitos
ro:'e~ R. Kinsey, "Risocializzazione e controllo nelle carceri inglesi", in La questione
9 Ver, mais adiante, p. 71. crimmale, 1976, 2-3.

26 27
Primeira parte
Dario Melossi

A gênese da instituição carcerária


moderna na Europa
1
A criação da instituição carcerária moderna
na Inglaterra e na Europa continental
entre a segunda metade do século XVI
e a primeira metade do século XIX
1. ''Bridewells" e "workhouses" na Inglaterra elisabetana
O processo que cria a relação capitalista não pode( ... ) ser outro senão
o pmcesso de separação do trabalhador da propriedade das próprias
condições de trabalho, processo que, por um lado, transfonna em capital
os meios sociais de subsistência e de produção, e que, por outro,
transforma os produtores diretos em operários assalariados. Por
conseguinte, a chamada acunzulação primitiva outra coisa não é senão
o processo histórico de separação do produtor dos nzeios de produção.
Ela aparece como "primitiva" porque constitui a pré-história do capital
e do modo de produção que lhe é correspondente. A estrutura econômica
da sociedade capitalista é derivada da estrutura econômica da sociedade
1
feudal. A dissolução desta libertou os elementos daquela .

Esta famosa passagem marxista, na qual se descreve o significado essencial


"chamada acumulação primitiva", r_epresenta a chave para ler os aconte-
entos históricos que constituem o objeto desta investigação. O próprio
cesso de separação do produtor dos meios de produção encontra-se na
e do duplo fenômeno da transformação dos meios de produção em capital,
'rum lado, e da transformação do produtor direto, ligado à terra, em operário
'vre, do outro. O processo se manifesta fenomenologicamente na dissolução
econômica, política, social, ideológica e dos costumes - do mundo feudal.
Não interessa aqui o primeiro aspecto da questão: a criação do capital. Na
!idade, o horizonte mais amplo da pesquisa é constituído pelo segundo: a
hnação do proletariado'. "O licenciamento das manumissões feudais, a
ssolução dos mosteiros, os cercamentos das terras para a criação de ovelhas
:as mudanças nos métodos de cultivo ( ... ) cada um desses fatores

arl Marx, II Capita/e, Roma, 1970, !, 3, pp. 172-173 [ N. do T.: edição brasileira
capital: critica da economia politica. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
'<!':3;!:970-71, 74. 6v.]. Vale a pena, porém, examinar todo o capítulo XXIV do Livro!.
er Maurice Dobb, Proble1ni di storia dei capitalismo, Roma, 1972 [N. do T.:
ção brasileira A evolução do capitalis1no. Rio de Janeiro, LTC Editora, 1987, 9ª
-, tradução de Manuel do Rego Braga], em particular os capítulos centrais "O
cimento do capital industrial'', "A acumulação capitalista e o mercantilismo" e,
"A formação do proletariado".
33
desempenhou o seu papel"' na grande expulsão das terras que se verificou na requer muit~s braços ( ... ) E quando, andand~ de lá pra cá, eles
Inglaterra nos séculos XV e XVI. Porém, a ineficiência própria ao modo de gastaram _rapidamente tudo o que tinham, que outra coisa lhes resta
produção feudal era, acima de tudo, a base, segundo a tese clássica de Dobb4, fazer senao roubar, e ser en~orcados, entende-se, ou ir mendigando
da carga cada vez mais pesada de trabalho que incidia sobre as massas por esses mundos de Deus?
camponesas, as quais só podiam livrar-se dela através da vagabundagem
Marx descreve com. clareza a maneira pela qual • num pr1me1ro
· · momento
pelos campos ou da fuga para as cidades. É a mesma rudeza que as relações
o poder estatal reagm a este fenômeno social de proporções inéditas: '
sociais assumem no modo de produção feudal - com o aprofundamento da ·
luta de classe nos campos, que 'encontra sua expressão primeira na fuga de Não era possí~el que os homens expulsos da terra pela dissolução
uma situação doravante insustentável - que detennina o seu fim •
5 dos laços feudms e pela expropriação violenta e intennitente se tornas-
sem fora da lei, fossem absorvidos pela manufatura no seu nascedouro
Os campos, mas sobretudo as cidades, que já representavam, com o
com a mesma rapidez com a qual aquele proletariado era posto no
desenvolvimento da atividade econômica e, em particular, do comércio, um ·
mundo. Por outro lado, tão pouco aqueles homens, lançados subita-
pólo de atração notável, começaram a povoar-se com milhares de
mente p~ra f~ra da órbita habitual de suas vidas, podiam adaptar-se
trabalhadores expropriados, convertidos em mendigos, vagabundos, às vezes
de maneira tao repentina, à disciplina da nova situação. '
bandidos, porém, em geral, numa multidão de desempregados.
Eles se transformaram, por isso, em massa, em mendigos, barididos
Mais do que qualquer outro fenômeno, a impiedosa ferocidade de classe vagabundos, em parte por inclinação, mas na maior parte dos caso~
com a qual o capital, com a rapina, incrementa a si mesmo, penetfando nos premidos pelas Clfcunstâncias. Foi por isso que, no final do século
campos, expulsando de lá as primeiras levas do futuro proletariado industrial XV e durante todo ~ século XVI, proliferou por toda a Europa Oci-
das cidades, faz-se presente nas enclosures of commons (cercamentos das dental uma legtslaça~ ~anguinária contra a vagabundagenz. Os pais
terras comunais), cuja sanção legislativa ocorrida no século XVIII Marx da atual classe operana foram punidos, num primeiro tempo 1
definirá como "decretos de expropriação do povo"6 • Já em 1516, Thomas transformação forçada em vagabundos e miseráveis. A legisla~ã~eo:
Morus, em Utopia, descrevia lucidamente o fenômeno: tratou como delmqüentes voluntários e partiu do pressuposto que
As ovelhas ( ... ) costumavam ser mansas e comiam pouco, mas dependia da boa vontade deles continuar a trabalhar sob as velha
8
agora, segundo comentam, tomaram-se tão vorazes e indomáveis a condições não 111ais existentes s
ponto de comer até os homens ( ... ) Com efeito, nos locais onde Na seqüência, as ~áginas de Marx oferecem vários exemplos da legislação
nasce uma lã mais fina e, por isso, mais apreciada, os nobres e os • ?nsta que, nos seculos XIV, XV e XVI, vai-se desenvolvendo contra os
senhores (... ) rodearam toda a terra com cercas para usá-la como ·• •• eno~~nos da v~gabu~dagem, da mendicância e - ainda que de forma se-
pastagens, e não deixaram nada para o cultivo 1( ... ) E assim, de um •~l;.,Eundan~ - da cnmmahdade, em relação aos quais as estruturas tradicionais
modo ou de outro, têm que abandonar a terra aqueles pobres "••·>Ined1evms, ba~eadas na candade privada e religiosa, são impotentes. Ademais
desgraçados, homens, mulheres, maridos, esposas, órfãos, viúvas, seculanzaçao dos bens eclesiásticos que se seguiu à Reforma, quer n~
pais de família ricos em filhos, mas não em bens, porque a agricultura. uropa C_?ntmental quer na Inglaterra, teve o duplo efeito de contribuir para
~xpulsao dos camponeses dos te1Tenos de propriedade da Igreja e para
Maurice Dobb, op. cit., p. 263 (cf. Karl Marx, li Capita/e, cit., !, 3, pp. 174 ss.).
3
e1xar sem su~tento algum aqueles que viviam da caridade dos mosteiros e
4 A propósito dos termos do d~bate sobre a crise do modo de produção feudal, cf.
ordens ~ehg10sas. Por ~sse motiv.o, à medida que o processo de prole-.
· a introdução de R. Zanghieri ao trabalho de Maurice Dobb, na tradução italiana, e
;,y~arhrnção avançava, as medidas terronstas tinham cada vez menos eficácia';
a bibliografia aí citada.
5 Ver Maurice Dobb, op. cit., pp.
~Th~mas Mo.rus, Utopia o la miglioreforma di Repubblica, Bari 1971 [ N do T.
6 Karl Marx, II Capita/e, cit., !, 3, p. 183. Sobre os enclosures, ver G. E. Mingay,
'Ti 1çao bras1le1ra A utopia. São Paulo, Abril Cultural, 1972], pp. 42-43. · ..
· Enclosure and the Sn1all Farmer in the Age of the Industrial Revolution, Londres,
•.;Karl Marx, li Capita/e, cit., I, 3, pp.192-193.
1968, e.a ampla bibliografia aí citada. , _ Ver Thomas Morus, op. cit.' p. 52.
34 35
por outro lado, o desenvolvimento econômico e em particular o da manufatura alidade, ao passo que aos "rogues and vagabonds" seria oferecido
requeria cada vez mais força de trabalho dos campos. balho 14 . Todavia, visto que a esse último objetivo era destinado apenas 0
eira que sobrava do reliefpara os incapazes 1', a segunda finalidade acabou
No início do século XVI, Thomas Morus indicava a única solução lógica,
• " esta turbad~ desocupadosHIQ . ,,,;não sendo alcançada e os desempregados continuaram sendo objeto de
defendendo a necessidade de ocupar ulllmente - 16
Um estatuto de 1530 obriga o registro dos vagabundos, mtroduzmdo uma ;fepressao .
rimeira distinção entre aqueles que estavam incapacitados para o trabalho Quatro anos depois, no entanto, o problema foi enfrentado através da
p . - d ·.,,extensão a todo o país das casas de correção que deviam fornecer trabalho
(impotent), a quem era autorizado mendigar, e os demais, que n~o po rn:;i
receber nenhum tipo de caridade, sob pena de serem açmtados ate sangrar . ;~os desempregados, ou obrigar a trabalhar quem se recusasse a fazê-lo 17 •
o açoite, 0 desterro e a execução capital foram os principais instrumentos da .'J'ratava-se de instituições que, calcadas no modelo da primitiva Bridewell,
política social inglesa até a metade do século, quando os tempos s~ mostraram ;.,!atendiam a uma população bastante heterogênea: filhos de pobres "com a
maduros, evidentemente, para uma experiência que sé revelana exemplar. +·.:·;intenção de que a juventude se acostume a ser educada para o trabalho",
Por solicitação de alguns expoentes do clero inglês, al~rmados com as ;'.·&·:·;·desempregados em b.usca de trabalho e aquelas categorias que, como já foi
proporções alcançadas pela mendicância em Londres, o rei. autonzo.u o ~so ·".'visto, povoaram as pnmeiras bridewells, ou seja, petty offenders, vagabundos,
do castelo de Bridewell para acolher os vagabundos, os oc1~sos'. os 1'.'droes rõezinhos, prostitutas e pobres rebeldes que não queriam trabalhar". A
os autores de delitos de menor importância 12 • O objetivo da mslltmçao, que renciação de t~atamento, se havia alguma, era interna à instituição, através
~ra dirigida com mão de ferro, era reformar os. internos atr.avés do trabalho diversas gradações da rudeza do trabalho. A recusa ao trabalho parece
obrigatório e da disciplina. Além disso, ela devena ,desencorajar outras pe~so~s sido o único ato ao qual se atribuía uma verdadeira intenção criminosa,
a seguirem 0 caminho da vagabundagem e do oc10, e assegmar o propn~ vez que na lei de 1601- considerada equivocadamente como o estatuto
auto-sustento através do trabalho 13 , a sua principal meta. O trabalho que ah incipal da Old Poor Law, quando de fato ela não fez mais do que completar
se fazia era, em grande parte, no ramo têxtil, como o exigia a época. A egislação anterior - era facultado ao juiz enviar para a prisão comum
experiência deve ter sido coroada de sucesso, pois, em pou~o tempo, houses pmmon gaol) os ociosos capazes de trabalhar 19 •
of correction, chamadas indistintamente de bridewells, surgiram em diversas Convém, porém, esclarecer o real significado da "recusa ao trabalho" no
partes da Inglaterra. culo XVI. Uma série de estatutos promulgados entre os séculos XIV e
Todavia, foi apenas com as diversas disposições da Poor Law da '.ainha VI estabelecia uma taxa máxima de salário acima da qual não era lícito ir (o
Elisabeth, em vigor de forma praticamente inalterada até 1834, que fm ~ada e implicava sanção penal); não era possível nenhuma contratação de trabalho,
uma primeira orientação, unívoca e geral, ao proble,"".ª· Com ~ma lei de uito menos coletiva; e até se chegou a detenninar que o trabalhador aceitasse
1572, organizou-se um sistema geral de reliej (subs1d10), que tmha como
base a paróquia, pelo qual os habitantes desta, mediante o pagamento de um,
Ver F. M. Eden, The State of the Poor, Londres, 1928, p. 16; G. Rusche e O.
imposto para os pobres, deviam manter "the inipotent Poor" que vivam na-,
'rchheirner, Punishment and Social Structure, Nova Iorque, 1968, p. 41 {N. do T.:
ção brasileira: Punição e estrutura social, Rio de Janeiro, Revan/ICC, 2004, 2ª
., tradução e apresentação de Gislene Neder]; F. Piven e R. A. Cloward, op. cit.,
w Ibideni, pp. 45 ss. . 15-16; Max Grünhut, op. cit., p. 16; A.Van der Slice, op. cit., p. 55.
Ver F. Piven e R. A. Cloward, Regulating the Poor, Londres, 1972, P· 15.
11
Ver F. M. Eden, op. cit., p. 16.
Ver A.Van der Slice, "Elisabethan Houses of Correction", in Journal of American
12
Ver A. Van der Slide, op. cit., p.54.
/nstitute of Criminal Law and Criminology, XXVll (1936-1937), p. 44;.. A. J.
Copeland, "Bridwell Royal Hospital", in Past &Present, 1888: Max Grunhut, Ve: F. M. Eden, op. cit., p. 17; Se B. Webb, op. cit., p. 13: G. Rusche e O. Kirchheimer,
Penal Reform, Oxford, 1948, p. 15; S & B. Webb, English Prisons under Local; . c1t., p. 51; A. Van der Slice, op. cit., p. 55; Max Grünhut, op. cit., p. 16.
Ver F. M. Eden, op. cit., p. 17.
Governnient, Londres, 1963, p. 12.
"Ver Max Grünhut, op. cit., pp. 15-16, e A. Van der Slice, op. cit., p. 51. Ibidem, p. 19.

37
36
a primeira oferta de trabalho que lhe fizessem'°. Ou seja, o trabalhador era o o da manufatura, que lhe é absolutamente estranho. Como observam
obrigado a aceitar qualquer trabalho, nas condições estabelecidas por quem '~;F. Piven e R. A. Cloward:
lhe fazia a oferta. O trabalho forçado nas houses of correction ou workhouses . Acostumados a trabalhar no ritmo solar e das estações, por mais que
era direcionado, portanto, para dobrar a resistência da força de trabalho e esta disc1plma possa ser severa, eles resistem à disciplina da fábrica
fazê-la aceitar as condições que pernútissem o máximo grau de extração de e da máquina, que, se não é mais dura, aparece como tal porque é
mais-valia. estra~ha. O processo de adaptação humana a estas transformações
É interessante considerar, a esse respeito, a hipótese avançada por G. Rusche econom1cas compreendeu, em geral, longos períodos de desemprego
23
e O. Kirchheimer, segundo a qual a introdução do trabalho forçado na segunda de massa, mal estar e desorganização •
metade do século XVI e sobretudo, como se verá, na primeira metade do século Voltarei mais adiante a esta problemática, que é fundamental para a
XVII, na Europa continental, corresponde ao declínio demográfico que caracteriza . . . . . . _da função que, hist~ricamente, o trabalho forçado desempenhou
a população européia após o século XVII, e que deve ter contribuído em muito :~~s mst1tmçoes segregadoras, tais como as houses of correction do período
para aumentar a "rigidez" da força de trabalho21 . Se, como sustenta esta hipótese, •• êlisabetano. B~sta por o~a observar como este tipo de instituição foi 0 primeiro
no período entre o século XV e a primeira metade do XVI a repressão sanguinária ,;:•. ~x:emplo, e mmto s1grnf1cativo, de detenção laica sem a finalidade de custódia
e sem escrúpulos do desemprego em massa corresponde a uma situação de •que se pode observar na história do cárcere e que os traços que a caracterizam
grande oferta de trabalho no mercado, à medida em que nos aproximamos do ?º qu~ di~ respeito à~ c~asses a quem foi destinada, sua função social e ~
século XVII a oferta dinúnui e o capital nascente vai necessitar da intervenção rgamzaçao mterna ia sao, grosso modo, aquelas do clássico modelo car-
do Estado para continuar a lhe garantir os lucros altíssimos que a chamada cerário do século XIX.
"revolução dos preços" do século XVI lhe proporcionou''. Se isso for verdade, 2. A Rasp-huis de Amsterdã e a manufatura
é necessário considerar também que, como observava Marx no trecho citado,
a oferta e a demanda de trabalho não canúnham no mesmo ritmo, sobretudo É na Holanda da primeira metade do século XVII24 que a nova instituição
neste período "prinútivo" do capitalismo, e é só mais lentamente que se casa d~ trabalho atmge, no período das origens do capitalismo, a sua
consegue prover uma massa de capitais suficiente para valorizar toda a força ma mais desenvolvida. A criação desta nova e original modalidade de
de trabalho que havia sido liberada. regação punitiva responde mais a uma exigência conexa ao desenvol-
••hV})llento geral da sociedade capitalista do que à genialidade individual de algum
Por conseguinte, na segunda metade do século XVI, não obstante a oferta
fi(;!~~formador - como freqüentemente uma história jurídica entendida com
•.2;J\istória das idéias ou "história do espírito" tenta convencer-nos. Isso fie~
de trabalho continue a crescer, esse crescimento é insuficiente para atender,
na medida das necessidades, a demanda que o rico e. borrascoso período
elisabetano produz. Para que este novo proletariado nãb se aproveite da si- ~/;•;,;~vidente~? fato de que, ao que parece, nenhuma influência direta foi passada
tuação, recorre-se, pois, ao trabalho forçado, que assume, desde o início, a ~,•'"•das expenencrn~ mglesas anteriores (bridewells) para as holandesas do século
função de regulação frente ao preço do trabalho no mercado livre. Não se
•;.','<'VII". A cnaçao holandesa do Tuchthuis corresponde ao mais alto grau de
5i\ij•.··~esenvolvimento atingido pelo capitalismo neste período.
deve esquecer igualmente, como lembra Marx, que este proletariado, de cons-
tituição extremamente recente, reluta bastante a entrar num mundo do trabalho '.o.;; , Na Holanda da transição do século XVI para o século XVII, dois fatores
.~e somam para estimular o uso do trabalho forçado, que se tornará modelo

20 Ver F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 37. Sobre o mesmo tema, cf. também Karl

Marx, li Capita/e, cit., 1, 3, pp. 197-201, e Maurice Dobb, op. cit.


;;;:.;;,,, F. Piven e R. A. Cloward, op. cit. 6.
14
21 Sobre o problema demográfico, ver o ensaio de A. A. Bellettini, "La popolazione ,.·· Karl Marx define a Holanda como "a nação capitalista modelo do século XVII"
italiana dall'inizio della era volgare ai giorni nostri. Valutazioni e tendenze", in Capita/e, cit., 1, 3, p. 211. .
Storia d'ltalia, vol. V, 1, Turim, 1973, p. 489. O ensaio relaciona o comportamento Ver T. T. Sellin, Pioneering in Penology, Filadélfia, 1944, p. 20; Max Grünhut,
demográfico italiano ao da Europa em geral. clt., P· 17; R. von H1ppel, "Beitrtige zur Geschichte der Freiheitsstrafe'', in
22 Cf. Maurice Dobb, op. cit., pp. 274 ss.
>·•>!eit.rch. f gesamteStrafrechtswissenschaft, XVIII (1898), p. 648.
39
38
para toda a Europa reformada (protestante) da época. De u'.11 lado, a luta P~!ª "í"ía plenitude do seu significado, que é o do controle da força de trabalho, da
independência, guiada pela classe mercantil urba~a e sancionad_a pela Un,iao educação e domesticação desta.
de Utrecht de 1579, que fez com que as províncias setentnonrus dos Pmses •• ••• Como afirmava Marx num trecho já citado 30 , o aprendizado "da disciplina
Baixos recolhessem a herança do já então secular desenvolvimento de Flandres, i:là nova situação" - isto é, da transformação do ex-trabalhador agrícola
agora empobrecido e estagnado pela repressão de Felipe Il (os a~os que se
26
.. expulso do campo em operário, com tudo aquilo que isso significa - é uma
seguiram foram a idade de ouro de Amsterdã). Por outro lado, o impetuoso · ·· · das finalidades fundamentais às quais, em suas origens, o capital teve que se
desenvolvimento do tráfico mercantil veio a incrementar a demanda de trabalho ;7 '•.;; propor. A instituição das casas de trabalho e de tantas outras organizações
num mercado no qual não havia uma oferta tão grande como na Inglatena, e •.J7.( ~imilares responde, antes de tudo, a esta necessidade. É evidente que esse
num momento em que toda a Europa estava atravessando um grave declínio ;:;s;J•;. problema não está separado do problema do mercado de trabalho. Através
demográfico". Isso representava, para o nascente capital holandês, o perigo 'í~?<.:. ~a institucionalização, nas casas de trabalho, de um setor, ainda que limitado,
de encontrar-se diante de um alto custo do trabalho e de um proletanado que . '~··'~ªforça de trabalho, tem-se, contemporaneamente, um resultado duplo: com
fosse capaz de, apesar das medidas repressivas, contratar a venda de sua ; 11;y relação ao trabalho livre, no sentido já enunciado, em direção ao trabalho
própria força de trabalho. Esta é a ~ituação ec~nômica e social - segu?d? a ·;'terçado, em geral o mais rebelde, no que tange ao aprendizado da disciplina,
hipótese interpretativa de Rusche e Kirchheimer' -que levou aio vem rep~bhca c.\ílªs tamb~m porque a docilidade ou a oposição da nascente classe operária
holandesa a mudar os próprios módulos punitivos, tentando desperdiçar a ·~s condiçoes de trabalho depende da força que tiver no mercado de trabalho.
menor quota possível de força de trabalho e de c?ntr?lá-la e r~gular a sua ,·.é evidente que, na medida em que a oferta de trabalho é escassa, aumenta
utilização de acordo com as necessidades de valonzaçao do capital. acapacidade de oposição e de resistência da classe, e sua possibilidade de
É preciso esclarecer, naturalmente, que essa hipótese, baseada sobretudo · !~ta para não se deixar abater. Isso, ainda que não expresse formas conscientes
na relação entre mercado de trabalho e trabalho forçado (entendido como 0rganizadas de luta, tende, de qualquer modo, a colocar em perigo a ordem
trabalho não-livre), não esgota toda a complexa temática da work/wus~. Ela ci~l ~o seu conjunto e a tornar-se uma ação objetivaniente política,
não é, de modo algum, como já se viu em relação à Inglaterra, o umco pnmmdo-se espontaneamente no delito, numa crescente agressividade,
instrumento através do qual se busca manter baixos os salários e controlar a revolta31 •
força de trabalho, nem tampouco as casas de trabalho têm este como único Seguindo a trilha dos trabalhos de von Hippel e de Hallema, Thosten
objetivo. No que diz respeito ao primeiro ponto.' já vi~os como na Inglatena llin nos deu, em Pioneering in Penology 32 , a mais rica e importante
_ mas, nesse período, isso é válido num sentido mais geral - as casas de nstrução da função e da estrutura de uma casa de trabalho do século
trabalho são acompanhadas de tetos salariais estabelecidos por lei, do II. O caráter intimamente burguês do movimento que começa a se ma-
prolongamento das jornadas de trabalho, da proibição da 1livr~ assodaç~o dos 'festar em torno da questão penal no período do Renascimento, e que tem
trabalhadores e assim por diante". Na realidade, a relativa exiguidade
quantitativa que sempre caracterizou estas experiências induz a considerá-la•
mais como uma amostra do nível geral alcançado pela luta de classes do que
Este aspecto é o mais destacado, particularmente por F. Piven e R. A. Cloward
como um dos fatores que a impulsionam. A função da casa de trabalho é, p. cit., cap. !).
sem dúvida, mais complexa do que simplesmente tabelar o salário livre. Ou, "J' .
· a citamos o trabalho de T. Sellin. Ver também R. von Hippel, op. cit., pp. 437 ss.
ao menos, pode-se dizer também que este último objetivo deve ser entendido. numerosas também as contribuições do holandês A. Hallema sobre o tema
_Jtemos deste autor a obra ln eni 01n de Gevangenis, Van vroeger Dagen ;,~
26 Ver T. Sellin, Pionnering in Penology, cit., PP· 1, 2. ~derland em Nederlandsch-Indie. Haia, 1936, pp. 174-176. As casas de trabalho
21 Cf. G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 42, e A. Bellettini, op. cit. landesas são le?1b~adas, em geral, em todas as pesquisas históricas sobre penologia.
28 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 42. tre os autores 1tahanos, ver C. I. Petitti di Roreto, "Della condizione attuale delle
" Ver Karl Marx, II Capita/e, cit., !,. 3, pp. 192 ss e capítulo Vlll: "A jornada de . ri e dei mezzi di migliorarla", in Opere scelte, Turim, 1969, p. 369; M. Beltrani-
caha, Sul govenio e sulla rifonna delle careri in Italia, Turim, 1867, p. 393.
trabalho", ibidem, !, 1, p. 251.
41
40
trabalho ou casa de correção não substituiu completamente toda a gama de
no humanismo inglês e sobretudo no holandês dos séc~los XVI e X~~b~: punições até então vigentes. Ela se situava numa posição intermediária entre
suas primeiras expressões, aparece claramente na tese prmc1pal ~e um 1567 a multa simples ou uma leve punição corporal e a deportação, o desterro e a
d D V Co omhert sobre a vagabundagem. Este autor, escreven o em ,
pena de morte. O que importa é que a casa de trabalho estava destinada ao
e · · tante próximo ao de Morus na · que se na
Ut opza,
sustenta d e mo do bas . h r "tipo criminológico" característico desse período, que nasce ao mesmo tempo
Es anh; os escravos valem de cem a duzentos flo~r1_ns, os . omens ivr~s
u~ ~fic~~iad;:~:70 ~~!:~~:~~
que o capitalismo, e que tende a se desenvolver simultaneamente com ele.
hofandeses, a maior parte dos quais c?nhecia A instituição tinha base celular, porém em cada cela conviviam diversos
vivos do que mortos, e portanto o mais conven1en e s
detidos. O trabalho era praticado na cela ou no grande pátio central, segundo
quando cometessem um de l i·to33 · O modo de pensar de Coomhert (e de outrosd
reformadores que o seguiram) não ficou muito te1npo se~ ser co 1oca o e~ a estação do ano. Tratava-se de uma aplicação do modelo produtivo então
. uma vez que emju . lho de 1589 os magistrados da cidade de Amsterda dominante: a manufatura. A casa de trabalho holandesa era conhecida por
prática,
toda a parte pelo termo Rasp-huis, porque a atividade de trabalho fundamental
decidiram instituir uma casa
que ali se desenvolvia consistia em raspar, com uma serra de várias lâminas,
onde todos os vagabundos, malfeitores, fanfarrões e seus pares pu-
um certo tipo de madeira até transformá-la em pó, do qual os tintureiros
dessem estar presos como punição e pudessem estar o~upados no
retiravam o pigmento usado para tingir os fios. Esse processo de pulverização
trabalho pelo tempo que os magi~tra4rs julgassem convementes, con-
da madeira podia ser feito, basicmnente, de dois modos: com uma pedra de
siderado os seus delitos e malfeitos . .
f>xc ,1no1.nno, e este era o método comumente usado por quem empregava trabalho
A , várias discussões o novo estabelecimento foi inaugurado num antigo
1596 Com~ trabalho dos internos, a instituição devena reumr
ou, na maneira já descrita, na casa de trabalho. A duríssima madeira,
pos
convento, em · . . ~ h veria lucro ~x d1np<Jrt;1da da América do Sul, era colocada sobre um cavalete e dois traba-
condições para assegurar seu própno funcionamento, mas nao a d lhadores internos a pulverizavam, manejando as duas extremidades de uma
iretores cuJ· a nomeação seria honorífica, nem dos guar as,
pessoa1nem dos d ' . · · - d esma Txtserrn muito pesada. O trabalho era considerado particularmente adequado
ue receberiam um salário. Isso diferenciava a nova 1nshtu1çao, a m ~ . :para os ociosos e os preguiçosos (os quais, como conseqüência dessa ativi-
~aneira que havia ocorrido na Inglaterra, dos antigos cárceres de c~stod.rn, ,;,,Jade, às vezes literalmente quebravmn a espinha dorsal). Era esse também o
nos quais. a possiºbºl'dade
1i de os guardas extorquirem continuamente , dmheiro
· - ~;'x:;motivo com o qual se justificava a escolha do método de trabalho mais can-
dos risioneiros era uma das causas mais importantes para a terr1ve~1s1_tuaçao ''': sativo. É interessante notar que aqueles que compravam o pó de madeira da
dos ~ounty gaols na Idade Média tardia. A composição da populaçao mte~na >Rasp-huis reclmnavmn da sua má qualidade se comparada com o pó produzido
era bastante semelhante à encontrada na Inglaterra: jovens autores de mfr~ç~~s . ·no moinho.
enoresJs mendigos, vagabundos, ladrões, adm1t1dos na casa de tra a o
m . d, m mandado J·udicial ou administrativo. As rsentenças eram em . O fato é que foi assegurado à casa de trabalho de Amsterdã o monopólio
por me10 e u d'fº d d deste tipo de trabalho, e em diversas ocasiões ocorreram embates legais
geral breves e porum peno , do determinado , que podia ser mo i ica o segun o
· entre a municipalidade desta cidade e as de outras nas quais se tentava implantar
0comportamento do detido. . .
um sistema de trabalho mais moderno. Este sistema, ligado à concessão de
Naturalmente, e isso valia também para a Inglaterra e para o desenvol~­ , ,privilégios e monopólios, é típico da concepção mercantilista, de uma época
mento posterior que terá em toda a Europa, durante mmto tempo a casa e
;'xi·''em que a debilidade do capital nascente requeria uma intervenção ativa por
jx1,v~parte do Estado para afirmar-se36 • A mesma iniciativa pública com relação à
. Peno 1ogy, c1t.,
Ver T. Sellin, Pioneering 111 . · Todas as informações
· PP· 23 -24 . que ~.j2fgestão do problema do pauperismo através da política da assistência e das
ê'!S:~; :casas de trabalho é parte integrante dessa visão particular das relações
33
se seguem sobre a Rasp-huis são retiradas da pesquisa de T. Sellln.
34
:/'.'~econômicas. Mas o que interessa aqui é examinar a relação particular que se
Ibidem, p. 26. - d
No momento em que a casa foi inaugurada, calculava-se ~ue a pop~laç~o e
35

Amsterda- ehegasse a 100·000 habitantes ' dos quais 3.500 eram Jovens delmqlientes 36
Ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 213 ss.
(ibidem, p. 41).
43
42
instaura entre a escolha da técnica produtiva e a função e o objetivo da casa !Pitalistas excluídos do privilégio. A escolha do processo produtivo mais
de correção. Isso enquanto se manifesta, como se vê, desde o início, a e cansativo
. depende,
. portanto, da possibilidade de obter alto s 1ucros
problemática da relação, em termos econômicos, entre trabalho livre e trabalho '"' ,g:an des rnves!Imentos de capital numa situação na qual 0 clássico mo-
forçado, problema que se mostrará cada vez mais evidente, à medida que, p9polto ~o mercant1hsmo protege da concorrência externa. Essa escolha
com o desenvolvimento do capital, crescerá a sua parte fixa. ;·tlÍ!ll• porem, um~ o~tra funçã~, que está escondida nas meias-verdades
Durante o período que poderíamos chamar de "estudos preparatórios", "~nuncrndas pelos 1deologos da epoca acerca do caráter puniti'vo do t b Ih
·• d d " · . , ra a o
que antecedeu a abertura da instituição, o doutor Sebastian Egbertszoon, ;iie,~a o e a pouca mte 11gencia" da força de trabalho que povoava a Rasp-
cujas propostas foram as aceitas pela administração de Amsterdã, havia cri- ~!!'s. A manufatura recrutava sua força de trabalho essencialmente em dois
ticado alguns pontos do programa do utopista Spiegel, em relação particular- ·.~º?ºs saciam q~e trnham sido arruinados pelo desenvolvimento do
mente à questão do trabalho. Para Egbertszoon, os prisioneiros só seriam 'e~p1ta!Ismo, dms tipos de pequenos produtores: os ex-artesãos e os ex-cam-
eficientemente empregados se lhes fosse confiado um único ofício, porque ,_/oneses.. Eram
P.

_ basicamente estes últimos - menos acostumados a tra b aIhar


muitos deles tinham uma inteligência limitada e aprender um ofício compor- -'.-'Z~:':una situaçao que era muito mais parecida, obviamente, com a do artesão
tava tempo e dinheiro. Além disso, a indústria praticada no estabelecimento .·.go que com a do camponês - que povoavam as casas de correção. Ademais
deveria garantir o mínimo de inversão de capital e o máximo de lucro. O
.:a manufatura havia desenvolvido, como afirma Marx, '
pagamento, por sua vez, não deveria ser fixado da mesma maneira para uma classe de trabalhadores que a indústria artesanal excluía por
todos, mas sim deixado a critério dos diretores, qu~ deveriam regulá-lo de· completo, os chamados operários não qualificados. É certo que a
acordo com o "comportamento" dos prisioneiros37 . E significativo que já na ma~ufatura desenvolve até o virtuosismo, às expensas da capacidade
forma da manufatura- na qual, não existindo ou quase não existindo máquinas, ' coniunta de trabalho, a especialização tornada totalmente unilateral
o investimento de capitais limita-se, mais do que em qualquer outra coisa, ao mas começa tamb~1~ a faz~~ da ausência de todo e qualquer aprimora~
consumo de matéria-prima -, o trabalho forçado se caracterize pela baixa menta uma espec1altzação .
inversão de capital, pela produção escassa e de baixa qualidade, enquanto a • Estes "operários não_qualificados" são justamente aqueles que trabalham
manutenção dos lucros é assegurada pela excepcional compressão dos sa- aspect.os da produçao como os que estamos examinando aqui, aqueles
lários. É o próprio caráter protegido deste tipo de indústria que lhe permite· const1;uem, em geral, as pnmeuas operações do processo produtivo.
sobreviver no mercado livre. Os contrastes com quem tentava introduzir o ses operanos representam, porém, na produção manufatureira, uma minoria,
trabalho no moinho são, nesse sentido, evidentes. Estes tendiam a responder .Pª~so que aquele: q~e conservam habilidade artesanal dispõem de uma
à situação de escassez de força de trabalho, à qual em grande parte a casa de. ~cidade de res1stencia e de insubordinação no confronto com a produção
trabalho devia a sua existência, com a introdução das máquinas - nesse caso 1tahsta manufature1ra que as máquinas ainda não podem destruir'1. Assim
1
uma das máquinas mais antigas, o moinho 38 - , isto é, com a intensificação do a_claro o motivo pelo qual, quando se trata de colocar 0 problema d~
processo de extração da mais-valia39 • stao de ~m setor da força de trabalho que é necessário disciplinar e inserir
A contenção da luta de classes através dos laços forçados da segregação mpulsonai:iente no mundo da manufatura, tende-se a escolher aquele pro-
institucional manifesta-se assim, desde o início, como um freio para o próprio, so produtivo que tornava o operário mais dócil e menos munido de um
desenvolvimento do capital e opõe ao princípio do trabalho na casa de correção ber e de uma habilidade próprios que lhe fornecessem meios de resistência.
não apenas - por motivos óbvios - os operários livres, mas também setores Em todo caso, portanto, quer se tratasse de força de trabalho proveniente
campo, quer de ongem urbano-artesã, a monótona e pesadíssima prática

31 Ver T. Sellin, Pioneering in Penology, cit., pp. 29-30.


38 Ver Karl Marx, II Capita/e, cit., !, 2, p. 43.
J(arl Marx, II Capita/e, cit., !, 2, p. 49.
39 Para uma discussão teórica deste ponto, ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 316 ss,
Ibidem, pp. 68-69.
e pp. 322 ss.

44 45
do rasping respondia melhor do qualquer outra ao que já então apare_ce com · !)alho ou no cárcere. O regime interno da casa de trabalho tende, assim,
a função fundamental da instituição correciona'., ou sep, o apr~n~1zado d_ m da absoluta proeminência conferida ao trabalho, a acentuar o papel
disciplina capitalista de produção. Como lambem observa _Sellm , as pro Weltanschauung burguesa que o proletariado livre nunca aceitará
posições que estavam contidas no programa elaborado o~gmal":'e~te po pletamente. A importância que se confere à ordem e à limpeza, ao vestuário
Spiegel no sentido de um adestramento e de uma preparaçao profis~10nal ~â\úforrne, à comida e ao ambiente saudáveis (o que certamente não diz respeito
ser ministrada aos internos foram completamente rechaçadas. Sublmhava ci)quilo que se relaciona ao processo de trabalho), a proibição de blasfemar e
se ao contrário, que o objetivo da instituição era preparar os seus hóspede JÍ!lo uso do jargão popular e obsceno, de ler livros ou cartas ou de cantar
p;ra levar depois "uma vida de laboriosa honestidade"''. objetivo a s ;\;!aladas que não fossem aqueles ordenadas pelos diretores (num país e num
alcançado através do comportamento regrado e da submissão à autorida ',~éculo em que as baladas são manifestação da luta pela liberdade de
Esse comportamento devia manifestar-se sobretudo na atividade de trab~l~ .pensamento!), a proibição de jogar, de usar apelidos, tudo isso constituía
não é por acaso que a infração mais grave ao regulamento da casa, a um · a tentativa de representar, concretamente, na casa de trabalho, o novo
que merecia não uma sanção interna ou um simples prolongamento da pen sí!lltilo de vida há pouco descoberto, para despedaçar uma cultura popular
mas sim o envio do infrator de novo perante o tribunal, era negar-se a trabalh 1~ubterrânea que lhe é radicalmente oposta, que é contemporaneamente uma
pela terceira vez. cruzilhada das velhas formas de vida camponesa recém-abandonada com
formas novas de resistência que o ataque incessante do capital impõe ao
Isso estava ligado a uma visão ascética da vida, típica do calvinismo
oletariado.
jovem república holandesa44 , destinada, na função que desempenhava na s?c
dade em seu conjunto, a reforçar o dogma do trabalho e, portanto, a subm1ss Se não se compreende o estreito nexo que liga o operário - primeiro na
ideológica, dentro da manufatura, mas que na casa de correção tinha co anufatura e depois na fábrica - ao conjunto das relações sociais externas,
objetivo próprio, antes de mais nada, a aceitação da ideologia, da W~lta , ão se compreende o cuidado com o qual, numa época ainda embrionária
schauung burguesa-calvinista, e só num segundo momento a exploraçao e seu desenvolvimento, o capital procura, a todos os níveis, construir seu
extração da mais-valia. Parece, assim, que já desde estas prim:iras experiê_'.lci rio proletariado e garantir para si as condições ótimas para a extração da
ficam patentes a ineficiência e o atraso da forma em que se da a exploraçao IÍ ·s-valia, não será possível perceber como uma série de elementos e fatos
interior da casa de trabalho. Esse atraso - que só pode subsistir enquanto iais, longe de _serem insignificantes, revela ao contrário uma direção e um
violência do Estado permitir um regime salarial extraordinariamente baixo tido que os ligam, neste período, ao processo da manufatura. Marx des-
comparado com o que vigora do lado de fora - não significa uma disfuncionalida ve bem o significado geral desta relação, quando define a situação do
da casa de trabalho com respeito ao sistema em seu conjunto, porque na verda rário manufatureiro:
ela não é efetivamente um lugar de produção, mas sim umrlugar onde se apre ( ... )a manufatura revoluciona este modo de trabalhar de cima abaixo
a disciplina da produção. Nesse sentido, os baixos salários são muito úte e o prende à raiz da força de trabalho individual. Mutila o trabalhador:
porque tornam o processo de trabalho particularmente opressivo e preparam converte-o numa aberração ao estimular sua habilidade parcializada,
trabalhador para a obediência fora da instituição. como numa estufa, sufocando nele um sem número de impulsos e
A particular dureza das condições de trabalho no interior da casa de disposições produtivas, do mesmo modo que nos países do Prata
45
correção tem, pois, um outro efeito sobre o lado de fora, aquele que se sacrifica um animal inteiro para retirar-lhe o couro ou a gordura •
juristas chamarão de "prevenção geral", isto é, uma função_in!imidadora pa Assegurar a supressão de uni sem nú1nero de Ílnpulsos e de disjJosições
com 0 operário livre, já que é preferível aceitar as cond1çoes impostas dutivas para valorizar apenas aquela parte infinitesimal do indivíduo que é
trabalho e, de forma mais geral, à existência, do que acabar na casa ao processo de trabalho capitalista é a função confiada pelos bons burgueses
vinistas do século XVII à casa de trabalho. Essa função será mais tarde
42 Pioneering in Penology, cit., p. 59. 'buída à instituição carcerária. O lugar onde o empobrecimento conjunto do
43 Ibidem, p. 63.
44 Sobre este ponto, ver infra o terceiro item desta parte. 'Karl Marx, li Capitale, cit., !, 2, pp. 60-61.

46 47
indivíduo tem lugar é a manufatura e a fábrica, mas a preparação, o adestramento, ''urna classe despossuída, sem terra, formada por vagabundos que
é garantido por uma estreita rede de instituições subalternas à fábrica, cujas vam entre si, desesperadamente, por empregos"" e de um já vasto estrato
balhadores proletários excluídos das corporações, como, por exemplo,
características modernas fundamentais estão sendo construídas exatamente neste
momento: a farrúlia mononuclear, a escola, o cárcere, o hospital, mais tarde o-~ /::u:tiompi" florentinos 50 .
quartel, o manicômio. Elas garantirão a produção, a educação e a reprodução ·•·No século XVI, na França, em Flandres, na Alemanha, a queda dos salários
da força de trabalho de que o capital necessita46 • Frente a isso, se erguerá a · s, correspondente à chamada "revolução dos preços", foi acompanhada
resistência, inicialmente espontânea, inconsciente, criminosa, e depois cadá urna grande abundância de força de trabalho51 • A "repressão sanguinária da
vez mais organizada, consciente, política, que o proletariado saberá opor, bundagem" é acompanhada poruma repressão complementar, e igualmente
na fábrica e no interior de todas as diversas instituições mencionadas. sumana, das massas ocupadas. A associação, a greve, o abandono do posto
· trabalho eram punidos de forma extremamente severa; fazia-se largo uso da
Uma vez que a nova sociedade nasceu e que foram colocados os novo ·
termos da luta de classe, capital e trabalho, da evolução desta relação depender
ada galera, multiplicavam-se as casas de correção. Em Paris, onde havia
o criado um verdadeiro royaume des truands [reino de bandidos], os
a evolução geral da sociedade. Algumas das últimas observações de Selli
gabundos chegavam a representar um terço do total da população.
sobre a Rasp-huis holandesa parecem apontar nessa direção, quando s
referem aos castigos coletivos impostos àqueles que se recusam a trabalhar'': Diante dessa situação, uma das reações imediatas é a substituição do velho
É interessante notar como desde os primeiros anos de vida da casa até tema de cmidade privada e religiosa por uma assistência pública, coordenada
segunda metade do século XVIII o número de lâminas da serra para pulveriz Estado. Este é um dos êxitos socialmente mais relevantes do processo de
a madeira progressivamente se reduz de 12 para 8, 6 e 5. Reduz-se, conco isco dos bens eclesiásticos que acompanha a Reforma. O próprio Lutero,
mitantemente, a quantidade de pó que deve ser produzida semanalmente p sua Cana à nobreza cristã, faz-se intérprete e difusor das novas idéias sobre
cada interno: de 300 para 200 libras. Naturalmente, isso devia estar ligado ' idade, afirmando claramente que a mendicância deve ser abolida e cada
obsolescência de um método produtivo que já era atrasado nos seus pri 'óquia deve prover aos seus próprios pobres52 • Ele mesmo elaborou um
mórdios, e ao desenvolvimento mais geral que a instituição experimento. hado esquema de assistência que, mais tarde, foi estendido por Carlos V a
nos séculos seguintes. Porém, a oposição que teve lugar no interior da Rasp o império53 • Medidas para retirar a assistência aos pobres das mãos privadas
huis, e à qual Sellin (que não está particularmente interessado em reconstruitl . foram tomadas apenas nos países protestantes, mas também em países
este aspecto do problema) também acena, desempenhou um papel nada des"•. tólicos, como a França, onde o desenvolvimento de uma burguesia comercial
prezível nesse processo.
;ao Estado nacional colocava o mesmo problema e a mesma solução. É típico
êaso da cidade de Lyon, centro de comércio e de tráfico, que dobrou sua
3, Gênese e desenvolvimento da instituição carcerária
1
nos outros países da Europa
Consideremos agora a situação mais geral. Antes do que na Inglaterra,
_lbidenz, p. 193. Sobre os "Ciompi", ver V. Rutenberg, Popolo e n1oviomenti
algumas formas de produção capitalista se desenvolveram em certas regiões
48 olari nell'ltalia dei '300 e '400, Bolonha, 1971, pp. 157-329.
da Itália, Alemanha, Holanda e, embora mais tarde, da França . Não é o caso;
'Ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 273 ss e bibliografia aí citada.
de se examinar aqui mediante quais complexos acontecimentos históricos o
Mencionado por G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 36; F. Piven e R. A.
precoce desenvolvimento dessas regiões tornou-se, mais tarde, muito inferior;:: _oward, op. cit., p. 9; Max Grünhut, op. cit., p. 14.
ao inglês, ou, como no caso italiano, até mesmo involutivo. O que importa é\ ln F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 9.
apontar como, a esse primeiro desenvolvimento, corresponde o surgiment~--: biden1, p. 11. Sobre o caso de Lyon, ver também: J. P. Gutton, La Société et Zes
vres. L' exemple de la généralité de Lyon, 1534-1789, Paris, 1971; N. z.
46 Sobre esse assunto, ver mais adiante o item 4 desta parte. vi.s, "Poor Relief, Humanism and Heresy: The case of Lyon", in Studies in
41 Ver T. Sellin, Pioneering in Penology, cit., p. 68. ed1eval and Renaissance History, 1968, p. 217; R. Gascon, "Immigration et croissance
uXV!e siecle: l'exemple de Lyon (1529-1563)", inAnnales, 1980, p. 988.
48 Ver Maurice Dobb, op. cit., p. 187ss.
49
48
.,, omia urbana, o trabalhador ~'fora da lei" experimentou a situação
população na primeira metade do século XVI54 • Após as contínuas agitações de
@pcional de ser "livre", "sem vínculos", como observa Marx. Tratava-
pobres, artesãos e jornaleiros miseráveis terem posto em perigo a ordem social
:é certo, de um~ liberdade fictícia de morrer de fome e que, freqüen-
da cidade nos anos de 1529, 1530 e 1531, decidiu-se criar urna política de
ente, era resolvida pelas autondades com drásticas medidas terroristas.
assistência orgânica e centralizada. Dois anos depois, o sistema foi estendido,, ,flavia, vai-se desenvolvendo neste período uma relação social na qual era
por um decreto de Francisco I, a todas as paróquias da França. Concomitan"
_...~locada para o trabalhador uma série de alternativas, alternativas muitas
temente, criou-se a figura francesa da workhouse, o Hôpital, uo qual, porém,
:~~zes dramMicas, desesperadas, completamente inexistentes na estrutura
coutinuava prevalecendo o princípio do internamento simples, em detrimento.
;~0 cial antenor.
do internamento com trabalho, típico nas instituições dos países protestantes.:
<•s• Não é por acaso que este é o momento da vagabundagem, do banditismo,
Por outro lado, só na segunda metade do século seguinte, com um notável
> . roubo nos campos, das revoltas camponesas e, nas cidades, dos primórdios·
atraso em relação à Inglaterra e aos países protestantes, e com os limites que s ·
'.;íl~- um confront~ de classe. Embora a violência ainda exerça um papel deter-
verão, o internamento foi generalizado na França. Isso deve ter dependid . · ante na gestao, por parte do poder monárquico-burguês, das classes subal-
seguramente, mais do que da influência religiosa, do desenvolvimento capitalista 0 as, o mundo a ser construído deverá lançar mão, de forma cada vez mais
mais avançado de outras regiões, corno Flandres, os Países Baixos, o norte dâ
(~~~pcional, desse recurso. Essa "liberdade" do trabalhador será expressa pelo
Alemanha, onde as casas de trabalho e de correção se multiplicaram bem antes.
'.<yre1t? do Il_urn1?1smo no conceito de contrato. Mes1no quando, co1no a crítica
É verdade também que, seja o movimento reformador, seja o novo modo d sta deixara claro, esta aparente liberdade não seja outra senão a sanção de
entender a pobreza, encontram nestas sociedades dinâmicas e em transformaçã · a força. diferente,
. não mais jurídico-militar, não mais política , e Slffi·
a própria razão de ser e o seu próprio alimento. As religiões protestantes e e nôm1ca, a diferença na _organização de uma sociedade em que 0 aluguel
particular o calvinismo forneceram sem dúvida, muito mais do que a religi-
~orça de trab~lho d1spomvel deve passar através do instrumento impessoal
católica, uma visão abrangente do mundo e da vida baseada na ética do trabalh .
ainda. que_temvelmente concreto do mercado, que permite 0 controle e a
a religião do capital, que animará por si mesma as primeiras instituiçõe~:
. ordmaçao pessoal e perpétua do explorado ao seu explorador -, é
segregadoras 55 • gavelmente grande e comporta uma série de problemas completamente novos.
Na passagem da sociedade camponesa medieval para a sociedade burguesa·
Esta é a base estrntural sobre a qual repousa todo o movimento da dialétic
industrial, o trabalhador não está mais sujeito a um vínculo direto e imedia! ·
com o senhor, vínculo esse jurídica e militannente garantido e justificado, ao
~e o princípio de liberdade e o princípio de autoridade que se inicia com :
1edade burguesa e que enwntra na Reforma o seu momento primeiro e
nível ideológico, por uma visão teocrática abrangente da vida. Ele deve se
~enta1: A autondade no sistema medieval constitui o tecido conectivo das
conduzido, doravante, por uma força muito mais indireta, a da coação econômica~
açoes sociais_ de ~m~ co~unid~de camponesa indiferenciada que encontra,
Porém, só quando o capitalismo alcançar seu comple\o desenvolvimento,
c~-p~netraçao h1:rarqmca eJUstente entre as ordens religiosa, política e
com a garantia da sua hegemonia material e ideológica sobre toda a sociedade;
:o~om1ca, a sua_ propna estrutura, coesa e abrangente. Com a problemática e
é que a força da necessidade se tornará uma forma realmente eficiente d ·
letzca lzbertaçao. da~ ma.ssas camponesas e sua transformação em proletariado,
regulação social. No longo período de transição que agora examinamos, n ordenamento h1erarqmco desaparece e 0 pdncípio de autoridade, que se
decorrer do qual subsiste uma co-penetração de economia camponesa a a base i:iesma do processo de produção capitalista dentro da fábrica, se
uz e ~e r~f~gta em algumas zonas da vida social externa. É na medida em
55 Sobre esse tema específico, ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 33-52i.
,° pnnc1p10 de autoridade progride e dirige a organização da exploração
Sobre a questão em termos mais gerais, ver J. B. Kraus, Scholastik, Puritanis1nu fabnca que, do lado de fora, avança a luta pelo liberalismo e pela democracia
und Kapitalisn1us, Munique, 1931; P. C. Gordon Walker, "Capitalism and th lo menos enquanto valerem os cânones do capitalismo "clássico" do século
refonnation", in Econofnic History Review, VIII (1937), p. 18, e naturalmente Ma ?· fasa representa o começo de uma profunda contradição entre 0 mundo
Weber, L'etica protestante e lo spirito dei capitalis1110, Florença, 1965 (N. do T>': -:~- fab:1c~ e ?mundo exterior, contradição que não por acaso se tornará um
edição brasileira: 'A ética protestante e o espírito do capitalisn10. São Paulo-;_ os principais terrenos de luta do proletariado organizado.
Martin Claret, 2003, tradução de Pietro Nassetti).
51
50
Além disso a autoridade na fábrica é uma autoridade muda e impessoal, os de tudo, separados entre eles, que lhes fosse retirada a espada, e que
que perdeu aq~ele rico caráter ideológico que o mundo religioso medieval · · sem jogados no cárcere"". A luta pela liberdade de consciência e de religião,
possuía. Por isso, ela deve ser necessariamente acompanhada por um controle '!eítura "pessoal" dos textos sagrados, a relação direta entre o homem e a
externo da força de trabalho, o qual começa a ser aplicado exatame~te ~este ·vindade, o desprezo das obras e do mundo diante da fé são transformações
período e que se desenvolve em diversos níveis. Trata-se de c~nst1tmr, .no 'ofundas do indivíduo que tendem a interiorizar a autoridade e a violência, a
trabalhador uma tendência natural e espontânea a se submeter a d1sc1plma substituir, ao menos na maior parte dos casos, as correntes bem visíveis do
da fábrica, ;eservando 0 uso da força apenas para uma minoria .de rebeldes. ·servo da gleba pelas correntes psicológicas do homem pio.
Tal controle, e aqui se revela a importância da reforma rehg10sa e a sua Contemporânea e funcionalmente a esse processo, confere-se uma enor-
conexão com as primeiras formas de internamento, move-se de ~cardo\ '·''meímportância aos instrumentos "educativos''. ln primis à família. É notável
com duas linhas diretrizes: a interioridade do indivíduo (e da família)~ a 'como neste período, e sob o efeito das doutrinas protestantes, a forma da
instituição segregadora56. Marx, num escrito de juventude, expressou muito'., -~lássica família patriarcal burguesa assume um vigor novo e singular. É
bem tudo isso em poucas linhas: .•neste momento que o pai se toma uma figura social e de controle de grande
Lutero na verdade, venceu a servidão pela devoção, porque a •}iutoridade, a quem os poderes públicos delegam a regulação da educação
substit~iu pela servidão à convicção. Ele despedaçou a fé na autorid~; s filhos e do controle da esposa".
de restaurando a autoridade da fé. Ele libertou o homem da rehg1os1- Não acaso nesse período a socialização dos jovens foi um dos primeiros
dade exterior, fazendo da religiosidade a interioridade do h~mem:' 1etivos das casas de trabalho e das demais instituições examinadas. O caso
Ele desvinculou o corpo das correntes, acorrentando o coraçao ( ... deu origem à famosa Rasp-huis de Amsterdã foi exatamente o de um jovem
Não se trata mais da luta do laico contra o padre, ou seja, qualque oi a preocupação com a delinqüência juvenil a causa última que levou à
coisa de externo, mas ~im contra o seu próprio padre interior, contr~­ strução da referida instituição. Casas de correção para jovens, precisamente
a sua natureza curiaf . 6rrecionais", surgiram por toda a parte simultaneamente com as casas para
À fragmentação da coletividade camponesa e ao isolamento de cad~ bres. Muitas vezes havia nas casas de trabalho comuns seções para jovens,
operário em relação a cada capitalista corresponde agora a luta contra êsmo de boas fmru1ias, que eram mandados para lá por vontade patema60 •
~greja Católica e as suas formas comunitá~i:s "externas" e pnva~as ~e fi _ ,_ isso era assim, obviamente, porque se tinha perfeita consciência do fato
interior, a substituição desta relação pela sohdao dos homens entre s1 e diante, que a nova ordem de idéias, esta "espiritualidade" nova de ordem e de
de Deus. Quando Lutero narra a atividade divina, ele está falando na reahd.ad ressão, experiência sem paralelo nos séculos anteriores (ao menos ao
do capital: "De fato, Deus dispôs que os inferiores, os súditos, fossem iso" e! das massas), devia ser ensinada e inculcada desde a infância, mais
1 icularmente na infância. Para Lutero e para Calvino, "Deus, pai e senhor"
56 Ver mais adiante, item 4. A influência do metodismo na Grã-Bretanha, durante
Revolução Industrial, se desenvolverá nesse mesmo sentido. Para ess~ assunto. 'Martin Lutero, Scritti politici. Turim, 1949, p. 566.
ver E.P.Thompson, The Making of the English Working Class, ;engum Book~
·Esta posição é expressa por Herbert Marcuse no seu ensaio L 'autorità e la
pp. 385 sS (N . do T"· edição brasileira: A fiormação - , inglesa. Ri
. da classe. operarta miglia (Turim, 1970, pp. 46 ss.) (primeira tradução italiana da parte redigida por
de Janeiro, Paz e Terra, 1987, tradução de Denise Bottmann). Nao e por acaso.q
arcuse da pesquisa publicada em 1936 pelo Instituto de Ciências Sociais de
Karl Marx se referirá ao "sistema metodista do cárcere celular" em La sacrafam1gl
:ankfurt sobre autoridade e família; a obra completa encontra-se traduzida em
(Rorna,· 1969' p. 42) (N. do T.: edição brasileira A sagrada ·
fami?ia. São Paulo
· · 1 ente i sull'autorità e lafamiglia, Turim, 1974). Basta apenas lembrar o fato de que
Boitempo, tradução de Marcelo Backes), aind~ que esse sistema, on.g1na m .
ta a estrutura familiar que estará na base da teoria freudiana, de uma teoria que
seja, como se verá, mais quaker do que metodista. Sobre esse assunto, ver D~
ge eminentemente como consciência burguesa da crise, neste século, desta
Melossi, "Criminologia e marxismo: alle origini della questione penale nella soctet
determinada de família ..Ver, mais adiante, nota 134.
de 'II capitale'", iri La questione criminale. 1975, 2, p. 319. .
,,~Sobre este assunto, ver adiante, parte II, item 2.
s1Karl Marx, "Critica della filosofia del diritto de Hegel. Introduzione", in Scritt.
··.Ver Herbert Marcuse, op. cit.. pp. 46 ss.
politici giovanili, Turim, 1950, p. 404.
52 53
era a tríade perfeita". Porém, ao lado da família, outras instituições vão se Çicidade e todos podem se tornar sacerdotes da nova religião. Assim,
formando. A primeira de todas, nessa época, foram as casas de trabalho e ~e ilo que era experiência própria apenas à organização eclesiástica torna-se
correção, que apresentavam a ambivalência de serem lugares de..produç~? eriência comum a todos. O isolamento, que é antes de tudo isolamento da
propriamente ditos, de um lado, e instrumentos educativos de ttpo paterno , \>!/; . a comunidade camponesa, da propriedade dos próprios instrumentos de
do outro. Veremos como, pouco a pouco, o segundo aspecto prevaleceu. A J!;odução, já é em Lutero um dos valores máximos da nova sociedade.
ambigüidade, contudo, permaneceu. ·' Se o cárcere é o modelo da sociedade, e aqui se trata ainda de uma metáfora
A Reforma também mudou completamente o modo de entender a pobreza, ·~Óucos anos depois será a concepção protestante e sobretudo calvinista d~
que deixou de possuir a "positividade mística" do cristianismo medieval para 'sociedade a modelar a forma do futuro cárcere moderno na casa de trabalho.
tornar-se 0 indicador da maldição divina. Com a Reforma, "pobreza s1gmflca 'iflbís séculos mais tarde, numa época e numa região plena de promessas para 0
punição", observa Foucault62 , e é compreensível que seja .excluído e p~nido •t;,,,senvolvimento do capitalismo e do seu espírito - as ex-colônias inglesas da
pelos homens quem é excluído da predileção ~ivina e pum~o por sua colera. , ~~érica do Norte-, nos primeiros anos do século XIX, os colonos quakers da
Isso é tão mais verdadeiro se ele, o pobre, nao pode ou nao quer parttc1par · ·~ensilvânia traduzirão rigorosamente as palavras de Lutero no seu cárcere celular
a finalmente descoberta da punição burguesa. Porém, já desde o início, ~
63
das obras terrenas destinadas a uma maior glorificação de Deus • Obras que '·
não têm nenhum .valor em si mesmas. A total desvalorização do mundo da do da workhouse ou da rasp-huis reside na interpretação, em termos ideais65 ,
práxis expressa a irracionalidade de uma sociedade no qual a produção te:!1 ..l\Cºncepção burguesa da vida e da sociedade, na preparação dos homens - em
como fim a acumulação e não o uso e o consumo dos bens produzidos . "'àl:ticular, os pobres, os proletários- a aceitar uma disciplina que os transforme
Mas exatamente por isso, pela absoluta indiferença da atividade terrena com dóceis instrumentos da exploração. Os pobres, os jovens, as mulheres
respeito ao único fim que tenha um valor, a obtenção .do estado de graça, a stitutas enchem, no século XVII, as casas de correção. São eles as categorias
comunhão com Deus, o homem é livre para atuar e viver no mundo co~ o iais que devem ser educadas ou reeducadas na laboriosa vida burguesa, nos
objetivo de aumentar a glória de Deus e com ele o signo de sua eterna saude. s costumes. Eles não devem aprender, mas sim ser convencidos. Desde 0
Não há nenhuma justificativa racional para se respeitar a ordem e o trabalho:. o, é indispensável ao sistema capitalista substituir a velha ideologia religiosa
a ideologia protestante tem a visão pessimista de um mundo submerso no novos valores, por novos instrumentos de submissão. A espada não pode
pecado, absurda epifania divina na qual os homens cantam louvores a Deus usada contra as multidões e o temor de que uma nova solidariedade, uma
trabalhando, acumulando e - alguns - poupando. a comunhão surja para romper com o isolamento das classes subalternas é
Lutero representa a situação humana como um cárcere, o ~uai ele co~c~be' desde o início, uma realidade concreta.
a partir do que tem diante de si, ou seja, provavelmente um carcere ~a~on1co,, Depois de ter proclamado a vontade divina do isolamento humano, Lutero
já que ele fora monge e fala de isolamento. Ademais, uma yez ~ui:_nm1do~ o. escenta: "Porém, quando se sublevam, quando se unem aos outms, quando
sacerdotes, Lutero chega à "natureza sacerdotal" de todos. A rehgiao substttm nfurecem e sacam a espada, aos olhos de Deus eles são merecedores de
denação e de morte"66 • Aqui, Lutero não apenas define a prática penal
62 Michel Foucault, Storia della follia, Milão, 1963 (N. do T.: edição brasileira : 1do seu tempo (se o "cárcere" é para todos, é justo que o pobre, exatamente
História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1987). lo fato de ser pobre, acabe no cárcere; e se se rebela, que o enforquem, o
63 Cf. Max Weber, op. cit., pp. 259 ss, e Herbert Marcuse, op. cit., pp. 27-31. e efetivamente acontecia), como também toma posição contra aquele
64 Como Karl Marx vai esclarecer esplendidamente, esta desvalorização do signifi~ado--,­ · vimento que as suas próprias palavras ajudaram a fazer nascer- a revolta
das obras enquanto tais em relação ao seu valor para a ?ivindade, con:o sign~i_> camponeses. Revolta que aparece, nas palavras do seu líder Thomas
corresponde perfei~amente à situação das obras numa soc1edad: na qual elas nao> tintzer, como a rebelião dos expropriados contra o processo multiforme
são mais produzidas imediatamente para o consumo (como na sociedade camponesa),_,_
mas sim para 0 mercado, para a troca (aí reside a diferença e~tre valor de uso e valor>
de troca): a obra não vale por aquilo que ela é, mas por aquilo que po~e representar ,.~'An ideal house of terror", ver adiante item 4, nota 105.
(para a religião do capital, não há grande diferença entre acun1ulaçao e graça). Martin Lutero, op. cit., p. 566 (o itálico é meu).

54 55
. .d M rx como "acumulação primitiva","_: <pancada e do trabalho, pode ter ainda alguma possibilidade de sucesso (vai
acima descnl'to e {ute foi ad;!~~li~:::su~e um significado político, que vai: depender da demanda existente de força de trabalho num determinado
Com a revo ta coe iva, do banditismo e é muito >momento), porém, se a rebelião se dirige- ainda que sob formas mistificadas,
bem além da resposta ime~iat~ do furto ~:~:~~ Müntzer, é d1aríssima.'
0

mais perigoso. A consc1en.crn, nas pa 1 'f;:-:,:não claras - contra as próprias relações sociais, contra a autoridade, é
Referindo-se a Lutero, ele afirma: , . evidente que não há nada a fazer. Quem se revoltou contra a própria disciplina,
livro do con1ércio diz-se continuamente_ que os pnn~1pes_
· .·. e não contra alguma aplicação particular dela, não é passível de correção:
· ·:-inerece a morte.
( ... ) no d "'l mente entre os ladroes e os bandidos,
devem poder an ar tranqm a . ( )
- d'
Mas nao se iz qua 1 e' a origem de todos os furtos e da~ rapma
. ... 0 o exemplo da casa de trabalho de Amsterdã foi seguido em muitas outras
.iores usurar10
, . s , ladrões e bandidos são os nossos pnnc1pes, que . ·eidades européias, especialmente de língua alemã 69• Também aqui a expansão
P ~ ~ ds >,
a oderam de tudo o que ex1s e. . t Os peixes da agua, os passaras . o!
i da experiência advém, não por acaso, daquelas regiões onde já havia um
P d (! , s V) E depois têm a coragem de ensmar grande desenvolvimento de tipo mercantil-capitalista, ou seja, nas cidades da
ar, tudo deve ser e1es saia · - en uanto eles' Liga Hanseática (as Zuchthiiuse), em Lubeck e Bremen (1613), Hamburgo
b andame nto de Deus - nao roubar -, q ,.
aosporesom d d · •' (1622), Dantzig (1630). Uma outra região na qual a casa de trabalho se
mesmos na -o obedecem a este mandamento. Devastam tu o, espoJ,am,
· -<
e sangram o pobre camponês, o artesão e todos os seres vivos . '<Jifundiu bastante poucos anos após a experiência holandesa foi a Suíça, em
~ema (1614), na Basiléia (1616) e em Freiburg (1617). Diferentemente da
Esta rebelião é para Lutero a coisa mais grave. Citando Lutero, Marcus
'Çe!ação entre as casas de correção inglesas e a de Amsterdã, entre as quais
afirma: · de-se apenas avançar uma influência indireta, a rasp-huis holandesa foi
.
O bandid.o e o assassino e dem ao chefe ' que pode
- o1en
nao . - puni-los
" e
'sitada muitas vezes por enviados das diversas cidades onde seriam
Portanto abre a possibilidade do castigo, mas a sediçao ataca t.:.· plantadas instituições semelhantes 70 • Também deste ponto de vista é inegável
ró rio 'castigo" e, por conseguinte,
· - apenas
ataca nao . uma cer
~arie da ordem vigente, mas sim esta ordem em s1 mesma,. que s. e o mesmo tecido conectivo econômico e religioso, em especial calvinista,
e ligava estas diversas regiões, exerceu um peso notável no favorecimento
baseia essencialmente na possibili?ade do seu poder pumt1vo, n expansão da experiência.
reconhecimento da sua autoridade .
Todas essas instituições apresentavam características semelhantes.
Ao longo de todo o período das monarquias absolutas, aumelntarat spedavam em geral mendigos, ociosos e vagabundos, prostitutas, ladrões,
. t t' ue comportavam, gera men
continuamente os crimina lesae ni~ies a is, q .b.rd d de "correção" ,ttyoffenders,jovens criminosos ou que deviam corrigir-se, loucos. Também
a ena ca ital; para estes, não havia nenhuma po~si i i a e_ ui o trabalho consistia, principalmente para os homens, em raspar a madeira
p top a rebelião se expressa numa simples madaptaçao, mesmo qu a tintura; para as mulheres, em geral prostitutas ou vagabundas, em
:;a~~~~s relações sociais dominantes, a domesticação, alcançada na base d r. A razão imediata do sucesso da instituição foi sobretudo a sua capa-
ade de assegurar lucros que, para a casa de Amsterdã, por exemplo,
tegida pelo monopólio, eram descritos como excepcionais. Em geral, a
67Em Herbert Marcuse, op. clf.,. p. 35 (3) . É sintomático como
d os estratos
. m "osocia
pob idade da instituição era dupla: por um lado, havia uma tentativa puramente
indicados por Müntzer como vítimas dos prílnecsipqeuse pp:~!:i::~f:;r:m de fo .. ciplinar e é este, como já foi sublinhado, o elemento que dará continuidade
" - " 1· sto é exatamente aque . ''.instituição; por outro lado, a escassez de mão-de-obra na primeira metade
carnpones, o artesao ' •. _ . da transformação em proletar1ad
mais dura o peso da expropnaçao, ~~epo1~ ver o clássico de Friedrich Enge
0 ,o século XVII levava a enfatizar a necessidade de fornecer aos internos
Sobre a revolta 4os c~n:~oneses na. ~man
La guerra dei contadtnt in Gennan1a, orna, 949..
ªi(N. do T.: edição brasileira:
1977)
uerras canlponesas na Alemanha. São Paulo: Grtjalbo, . . "Cf. G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 42, em particular nota 84; Max Grünhut,
g . 36 Este autor faz referência a Lutero, op. cit., p ; cit:, pp. 18 ss .. Ver sobretudo a cuidadosa reconstrução das experiências
68 Herbert Marcuse, op. cu., p. . " . base da teoria pe seáticas em von Hippel, op. cit., pp. 429 ss.
522-524. Esta concepçao - estara, pre sente , em essenc1a , na .
Ver R. von Hippel, op. cit., p. 648.
hegeliana.
56 57
uma preparação profissional (motivo pelo qual as municipalidades que dirigiam ;·,: ~íngu~ alemã.~ hospital de Paris, resulta~o da reunião de diversas instituições
as casas muitas vezes tiveram de entrar em choque com as corporações ; , Já ~x~ste~t~s, apresenta uma caracter1st1ca 1nu1to mais pronunciada de
artesanais) 71 • asststenc1a a pobreza, que na capital francesa atingia números impressio-
Cada vez mais, no curso do desenvolvimento da instituição, foram nela nantes, do que o aspecto corretivo e produtivo, presente nas workhouses e
internados condenados por delitos mais graves e a penas mais longas; assim, · nas Zuchth~its; Viúvas e órfãos são abrigados em grande número nos hospitais.
progressivamente os outros tipos de punição foram sen~o s~bstituídos, em A populaçao e vasta e heterogênea76 • Muito embora aqui também se insista
grande parte, pelo cárcere. Por muito tempo, entretant~, nao fm feita nen~~ma forte?'ente na imp,ortância do trabalho, dez anos após a sua inauguração 0
classificação rígida ou separação das diversas categonas humanas e 1und1cas hospital de Pans Jª apresenta pesados prejuízos econôrrúcos".
dos iuternados. Como observam Rusche e Kirchheimer, pode-se supor uma . Rusche e Kirchhe,im~r ins,i~tem na tese de que a diferença religiosa não
certa distinção entre as Zuchthaus, entendidas como o cárcere propriamente tmha nenhuma relevancia prallca na difusão da instituição. No entanto, os
dito, e as Arbeithaus, destinadas aos vagabundos, aos pobres e aos prisioneiros dado~ apresentados por ~sses mesmos autores revelam como a situação
para ali levados por razões policiais, mas seriam diferenças formais que nunca :econom~ca na qual ~s~ 1nsena a experiência francesa era diferente da holandesa
encontraram respaldo na realidade"- .ou da Liga Hanseat1ca. E é sobre a base desta que tanto a casa de trabalho
Os séculos XVII e XVIII foram criando, pouco a pouco, a instituição como, em especial, a nova visão de vida própria do capitalismo espera afirmar-
que primeiro o Iluminismo e depois o~ reformador~~ do século. xyc _se. Para
. os
. outros
. _ países católicos,
. . . isso será ainda mais evidente 1s . A despeito
·
completariam, dando-lhe a forma fmal do carcere. Assim, a forma ongmarrn •.·.de
. a mstitmçao dos
, . hospitais ter sido sobretudo uma iniciativa régia , é co mo
d
do cárcere moderno era solidamente ligada ( ... ) às casas de correção ,___ resu 1ta do a. energ1ca
. ação dos padresi·esuítas Chauraud , Dun od e Guevarre
rnanufatureiras"7 3. No início, a experiência das casas de trabalho foi patrimônio oque os hospitais foram levados para toda a França".
protestante, e, acima de tudo, calvinista. É significativ? que .um livrinho ce. ~m um opúsculo escrito em 1693, Guevarre justifica, de modo claro e
holandês de 1612, em polêmica com as posições católicas, ndiculanze a mgenuo, a oportumdade do internamento para todos os pobres fossem el
t'b " .. ,, , es
crença nos milagres dos santos, confrontando-os com aqueles praticados -~'~- ons ou maus , segundo a teoria então vigente em todas as casas de
por São Raspador, Santa Pena e São Trabalho, os três .santos que efetivamente, ,j trabalho, protestantes e católicas: os pobres bons agradecerão ao internamento
na casa de correção de Amsterdã, conseguem o nulagre, de acordo com o ';;que_ o~ assiste e lhes oferece a possibilidade de trabalho; os pobres maus
74
polemista protestante, de corrigir vagabundos e crirrúnosos • ~erao Justamente privados da liberdade e punidos com 0 trabalho. Guevarre
Todavia, a experiência do internamento logo se generaliza mesmo nos :_-:resolve assim, salomonicamente, a contradição - que então não era sentida
países católicos, sobretudo na França. Viu-se como foi criado um hôpital já ·,·~omo tal - .en.tre cas~ de. tr~balho para pobres e casa de correção para vaga-
na primeira metade do século XVI, em Lyon, mas esse caso permaneceu um '\_-~_l}undos e cn~nosos, 1nstttu1ções que, na prática, eram a mesma coisa, uma vez
tanto isolado. É somente em 1656 que se funda em Paris o Hôpital général, · que o real delito era, no fundo, a pobreza, e a finalidade da instituição era 0
75
instituição que será estendida para todo o reino através de um édito de 1676 •
Mas não é apenas o atraso com o qual a instituição é criada que marca uma
certa diferença entre a situação francesa e as áreas mais desenvolvidas de > :er
76

Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 43; Michel Foucault, Storia della
'folha, cit., pp. 126 ss.
77
-::__ Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 48.
78
11 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 44. \_ Ver item 5 e parte II desta pesquisa sobre a Itália. G. Rusche e O. Kirchheimer
72 Ibide1n, p. 63. oncluem que o "fato de ambas as doutrinas religiosas, a velha e a nova,
73Ibidem, p. 65. Col~b~rarem para º. dese~~olvimento da nova instituição leva a pensar que as
74Ibidenl, p. 51, inclusive nota 139. Em von Hippel, op. cit., é reproduzido um -pos1çoe: p~ramente 1deolog1cas representaram motivações secundárias em relação
amplo trecho da versão alemã do libelo. ~! ec_onom1cas com_o forças causadoras de toda esta mudança" (op. cit., p. 52).
" Ver Michel Michel Foucault, Storia della /o/lia, cit., p. 82. Ibidem, p. 43; Mtchel Foucault, Storia dei/a /o/lia, cit., p. 85 e pp. 95 ss .

58 59
aprendizado de uma disciplina, visto como punição. Como observa Foucault: ·.• À medida
, , · que a produção~ capitalista avança ' desenvolve- seu mac1asse
O internamento é assim justificado duplamente, num equívoco indisso- operana que por educaçao, tradição e hábito reconhece com t .
'b · · " · ona ura1s
e o vias as d exigencias
- daquele
. modo de produção. A orgamzaçao . - do
ciável, a título de benefício e a título de punição. É ao mesmo tempo••
recompensa e castigo, dependendo do valor moral daqueles a quem se• · - · e produçao capitalista desenvolvido quebra toda e qua1quer
processo
resistencia;
, .a constante produção de uma superpopu 1açao _ relativa
.
impõe. Até o final da época clássica, o uso do internamento será pri- ·
mantem a lei. da oferta e da procura de trabalho, e portanto o salano , .
sioneiro deste equívoco; terá a estranha reversibilidade que a faz mudar
80
de significado de acordo com o mérito daquele ao qual se aplica • . . d e tnlhos
d entro . convêm às necessidad es d e va lonzaçao
_ que . - do
capita 1' a coerçao silenciosa das relações econo' . 1
Neste período, na passagem do século XVII para o século XVIII, uma d d · - m1cas co oca 0 selo
ba ommaçao d d do capitalista sobre o operário . C on t"inua-se a usar e,
grande sensibilidade invade o mundo católico no que concerne aos problemas em ver · a1 e, a força extra-econômica • im e d"Ia t a, mas apenas '
do objeto concreto da pena. Num texto do final dos Seiscentos, publicado excepc1ona mente. Para 0 curso usual da 8 . , , , ,
,,, · , " . coisas, e passivei confiar
postumamente em 1724, o padre beneditino francês Jean Mabillon, o operaria as le1s naturais da produção" • 18 . to e.
,, a
, sua dependenc1a
" .
d ·
reconsiderando a experiência punitiva de tipo carcerário que fazia parte dó prod
o capital,
.d que nasce das inesmas condições
85
da uçao, e que e,
-
próprio direito penal canônico, formula uma série de considerações qu garan ti a e perpetuada por essas leis .
antecipam, em várias décadas, algumas das assertivas típicas do Iluminismo
~ão se pod~ria expressar de maneira mais clara e sintética o desen-
sobre a questão penal. A proporcionalidade da pena ao delito cometido e a ólv1mento particular da ,relação de classe ' entre o século XVIII e a pnme1ra
.· .
força física e espiritual do réu e o problema da reintegração na comunidade , 1
81 tade .do secu o XIX.
. E com base nela que d . .
evem ser compreendidos os
encontram em Mabillon um dos seus primeiros defensores .
.ontec1mentos
- d tiveram
d 1 que . _ na I ng 1ate1rn, naquela
lugar na casa de corre çao
4. Acontecimentos posteriores da instituição açao-mo e o as ongens do capital ' que Marx pnv1 . ·1 eg1a
. em suas analises
, .
na experiência inglesa 'Durante
. todo o século XVII e .boa pmte do s,ecu10 XVIII , um dos problemas·
A casa de trabalho é uma das manifestações típicas do modo pelo qual os s ~raves e~frentados pelo capital foi o da escassez de força de trabalho
Estados das jovens monarquias nacionais, na época do mercantilismo, apóiaIIJ:. engo continuam- ente sub"~acente do possível aumento do nível de salários", com
o desenvolvimento de um capital ainda incerto, inseguro, que necessitava de problema nao se apresenta, contudo, com a mesma gravidade dos . . .
d , l XVI pnmeiros
proteção e de privilégios. O nascente modo de produção capitalista te . • os o secu o ~ 1, quer porque já estava começando a ocorrer um certo
necessidade "do poder do Estado, violência concentrada e organizada .rementa demografico, quer porque o processo de expulsão e de expropria ão
sociedade" 82 , não apenas em relação ao proletariado, "para' regular' o salár' , ·s estratos
· r· · camponeses estava em pleno andamento·N·ao obstante, e, s1g . nifi1cat1va ~
(... ) para prolongar a jomada de trabalho e para manter1o próprio operári ns1s encia com que se pede o uso de trabalho forçado" O mod d d -
"t l" · · o e pro uçao
num grau normal de dependência" 83 , mas também nas relações entre Estad .. p1 a 1sta necessita
. de
. um longo período de te .
mpo para terminar de destrmr .
84 .
e Estado e, de modo ainda mais evidente, em relação às colônias • Todavia, 1
~que a capacidade residual de resistência do proletariado qu tinh .
velho modo de produção. ' e a ongem no

"" Michel Foucault, Storia della follia, cit., pp. 98-99. Qu~nto mais _avanç~ a expropriação, menor é a possibilidade de defesa para
siVer G. Rusche e O. Kirchheimer, op cit., pp. 69 ss.; Jean Marbillon, "Reflexio uem e exprop~ad?. ~ a_pe~as com a extensão do mercado que a economia
sur les prisons des ordres religieux", in Ouvrages Posthu111es de D. Jean Mabillo amponesa de subs1stencia e gradativamente destruída" · N"ao causa surpresa,
et de D. Thierri Ruinart... , Paris, 1724, pp. 321-335, publicado em inglês em T.
Sellin, "Dom Jean Mabillon - A Prison Reformer of the Seventeenth Century", in
Joun1al of An1erican lnstitute of Crinlinal la\V and Crin1inology, XVII (1926-27) '"'Ibidem, pp. 196 ss.
5
pp.581-602. :} · Ver Maurice Dobb, op.cit., pp. 26& ss.
" Karl Marx, Il Capita/e, cit., !, 3, p. 196. ·ª7 Jbiden1.
"Ibidem, p. 219 e cap. XXV, pp. 225 ss. ''"Ibidem, p. 264.
84 Ibidem, p. 210.

60 61
portanto, que a lei dos pobres baixada pela rainh~ Elisabeth tenha.sido ~vo de acordo com a Old Poor Law, em número muito menor do que o daquelas
•· · efetivamente construídas".
tantas acusações. Na verdade, críticas e ataques sao dmg~dos ~ontmuadam~nte
contra o sistema elisabetano de relief até que, em 1834, 1medrntamente apos a Como afirma um texto da época, mesmo aqueles condenados ao açoite e
assunção formal do poder por parte da burguesia, a nova Poor Law não acolher~ ao desterro, por serem considerados vagabundos e ociosos, maldiziam
as solicitações tantas e tantas vezes encarrunhadas. A Old Poor Law - como e abertamente os magistrados por não serem capazes de garantir-lhes trabalho".
normalmente chamado o conjunto de disposições examinadas e promulgadas . E tudo isso acontecia num período marcado por uma relativa escassez de
entre 1572 e 1601 - havia transformado o sistema da caridade privada em força de trabalho. É muito difícil distinguir o desenvolvimento da casa de
caridade pública e tinha também imposto a obrigação, para as comunidades correção propriamente dita do da workhouse para pobres ou poorhouse. Como
locais de fornecer trabalho aos pobres em condições de trabalhar. Entretanto, o. já se esclareceu anteriormente, por outro lado essa distinção não estava
lado ~ssistencial prevalecia na prática sobre o lado do trabalho e na opinião incluída na Old Poor Law, que só afirmava que a casa de correção a ser
unânime de seus críticos a lei tendia a reduzir a quantidade de força de trabalho construída em cada paróquia devia se destinar a desempregados, vagabundos,
disponível e, por isso, mantinha os saláiios acima do nível que teria sido possível:, ladrões etc. Por um certo lapso de tempo, o sistema funcionou, mas pouco
sem o relief systen1. a pouco foi se deteriorando. O trabalho nas casas de correção começou a
rarear e recomeçou-se a punir os vagabundos com o açoite e com o ferro em
Esta vergonha dos altos salários pagos aos artesãos deve-se, na Ingla-
brasa, preferencialmente ao internamento. No entanto, a prática da casa de
terra, ao ócio de um número muito grande de pessoas que pertencem a
correção fez com que cada vez mais comumente a punição fosse do tipo
essas condições sociais. Por isso, os industriosos e os que têm vontade
detentivo e esta absorveu, pouco a pouco, a antiga gaol, a prisão de custódia.
de trabalhar se fazem pagar com aquilo que julgam merecer. Mas se o~·
Ainda que formalmente a diferença entre gaol e bridewell tenha sido
Pobres forem encaminhados ao trabalho, esses homens serão obrigados\
89
a abaixar as suas tarifas (... ) . eliminada apenas em 1865, com o Prison Act, em 1720 já era possível
condenar os responsáveis por delitos menores a qualquer uma das duas
Um coro unânime de vozes se levanta para decantar os efeitos benéfico~·
instituições, com base em critérios totalmente discricionários. Desde então,
de uma utilização mais ampla e tendencialmente exclusiva das workhouses"'.
fü~qü,ernten1er1te, a instituição penal, a bridewell, confundia-se com a casa de
Um primeiro resultado é alcançado com o Workhou~e ~u General A=t d trabalho para os pobres, dividida apenas formalmente por ela como uma das
1722-1723, com o qual se permitiu a um grupo de paroqmas a construçao. d
suas seções, ou vice-versa95 . Havia, sem dúvida, e como já foi visto, uma
casas de trabalho para nelas alojar todos aqueles que requeressem algum l!p
contínua pressão para "pôr os pobres para trabalhar" e foram feitas tentativas
de assistência". Como observa Marshall, as disposições da Old Poor La
nessa direção com muita freqüência em todo esse período; concomitan-
eram, em grande parte, impotentes diante de um desemprego cujas origen
temente, a cada vez maior afinidade da casa de correção com o velho cárcere
eram estruturais 92 ; não havia capitais suficientes para dàr trabalho a todos o
de custódia faz a instituição penal, ao menos na Inglaterra, retomar ao período
pobres e as casas de correção que deveriam ter sido construídas eram,
da Idade Média tardia, no que diz respeito ao regime interno%.
O trabalho desapareceu completamente da prisão, voltou-se à prática
s9 Citado em T. E. Gregory, "The Economics of Employrnent in England, 1669'
funesta do lucro privado do guarda, desapareceu todo e qualquer tipo de
1713'', in Econonlica, 1921, 1, p. 44. Para urna resenha das posições sobre est
tema, ver R. Bendix, Work and Authority in Industry, Nova Iorque-Lond~es, 1?56 classificação e de diferenciação, por mais grosseira que pudesse ter sido
pp. 60 ss.: é interessante o texto de D. Defoe, "Giving Alms No Chanty", tn
Select Collection of Scarce and Valuable Econonlic Tracts, Londres, .1859, p. 4 93
o volume de Bendix é bastante interessante para toda a política social inglesa d6,:_,, Ver F. M. Eden, op. cit., pp. 25, 34-35.
94
séculos XVI ao XIX (primeira parte, cap. II). Ibidem, p. 27.
'ºVer F. M. Eden, op. cit., pp. 25 ss. "Ver S. e B. Webb, op. cit., pp. 15-17; L. W. W. Fox, The Modem English Prison,
1934, p. 3; Max Grünhut, op. cit., p. 17.
"Ver J. D. Marshall, The Old Poor Law 1795-1834, Londres, 1968, p. 14. 96
92 Sobre o que se segue, ver S. e B. Webb, op. cit., pp. 18 ss.
Ibiden1, p. 15.
63
62
praticada antes. As seções femininas do cárcere se transformaram em bordéis {ciente do que o do Ancien Régime. Desde o início, o liberalismo significa
regidos pelos carcereiros. Foi essa situação que provocou a intervenção e os •0 capitalismo é livre do Estado, que o Estado é coisa sua- como afirmará
escritos dos reformadores da segunda metade do século XVIII, situação as décadas depois o jovem Marx99 - e deve, portanto, prestar seus serviços
sinistramente representada pelo flagelo da gaol fever, que matava quase a onsieur le Capital. Este fato aparecerá com bastante clareza em toda a
quinta parte dos presos anualmente, não poupando às vezes nem mesmo: stão da assistência e do cárcere. "O delito, as revoltas, os incêndios dolosos"
juízes, guardas, testemunhas e todo o aparato que de um modo ou de outro;: a resposta necessária e espontânea da parcela mais pobre do proletariado a
tinha relação com o cárcere. A tendência histórica que não muda - ao contrário,. a situação diante da qual ainda não aprendeu a reagir através da luta de classe
é consolidada e afirmada nesse período - é a substituição das velhas penas' anizada 1"'- Ao grande incremento do pauperismo, que corresponde, entre
corporais e de morte pela detenção. Uma detenção, todavia, cada vez mais' os, a um aumento do preço do trigo, responde-se, num primeiro momento,
inútil e dolorosa para os internos. os instrumentos renovados da Old Poor Law. Entre 1760 e 1818 os impostos
A raiz dessa progressiva decadência deve ser buscada nas grande os pobres aumentam seis vezes; a assistência deve ser financiada mediante
transformações ocorridas na segunda metade do século XVIII. Uma excep\ ·ação de mais pauperismo.
cional aceleração do ritmo do desenvolvimento econômico, o fenômeno da. Uma série de instrumentos já praticados anteriormente - a deterrent work-
Revolução Industrial97 , rompe com todos os tradicionais equilíbrios sociais se, o roundsn1an syste111, a allowance in aid of wages 101 - é introduzida de
precedentes. Uma repentina inclinação da curva do crescimento demográfic ma mais ampla. Com a nova situação e particularmente com o custo
juntamente com a introdução das máquinas e a passagem do sistem . scente do relief system elisabetano, as críticas que pontualmente eram
manufatureiro para o sistema de fábrica propriamente dito, servem para assinalar · idas contra este nos séculos precedentes chegam agora ao extremo. É
contemporaneamente a idade de ouro do jovem capitalismo, acompanhado pelo i~obretudo a allowance in aid of wages, ou Speenhamland system - uma
período mais escuro da história do proletariado. A incrível aceleração d ~entribuição em dinheiro dada aos mais pobres de acordo com o preço cor-
penetração do capital no campo e, concomitantemente, a expulsão da class . do pão (na realidade uma maneira de evitar a instauração do salário
camponesa, em especial através dos bills for inclosures of commons, as lei& nimo) - que suscita, depois de 1815, as críticas mais ferozes. À crítica
para o cercamento das terras comunais98 , contribui para levar ao mercado de· dicional e reco1rente de que essas formas de assistência incentivavam o ócio
trabalho uma oferta de mão-de-obra sem precedentes. Um novo período de/ recusa ao trabalho e mantinham elevados os salários, sobrepunha-se agora a
grande compressão dos salários se estende na Inglaterra de 1760 a malthusiana da população, aspecto extremo do liberalismo econômico: o
aproximadamente 1815. ;tief permitia a sobrevivência e a reprodução de uma população que se
Os fenômenos do urbanismo, do pauperismo e da "criminalidade" crescem ·ultiplicava, inútil e mesmo danosa para o desenvolvimento econômico. Foi
sa, em essência, a visão do problema manifesta pela Comissão de Inves-
numa intensidade até então desconhecida. A "silenciosa ~oação das relações
gação de 1832-1834, de cujos trabalhos saiu a nova Poor Law 102 :
sociais" substitui a violência do regulamento. Ingressa-se na era do liberalismo,
quando o capital, agora capaz de caminhar sobre suas próprias pernas, proclama.·· Convencidos, como Malthus e os outros partidários da livre con-
se orgulhosamente seguro de si mesmo e, auto-suficiente, zomba do sistema de
corrência, de que a melhor coisa a fazer era deixar a cada um o cuidado
privilégios, desigual e autoritário, que nos séculos anteriores o havia alimentado; •.
Ver Karl Marx, "Dibattiti sulla legge centro i furti di legna'', in Scritti politici
É um lapso que dura pouco. Logo a "violência imediata, extra-econômican · vanili, cit., p. 213.
deverá ser invocada contra as primeiras tentativas de organização do proletariado. .. Ver F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 29. Cf. E.P.Thompson, op. cit., pp. 59 ss.
Os acontecimentos revolucionários na França são bastante claros a esse >~~ 1 Sobre todos esses instrumentos, ver J. D. Marshall, op. cit.
respeito e o novo Estado napoleônico mostra-se muito mais forte, centralizador :/~Sobre a elaboração da nova lei para os pobres, ver ibiden1, p. 17; F. Piven e R. A.
C(oward, op. cit., pp. 33-34; G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 94; Friedrich
'.~ngels, La situazione della classe operaia in Inihilterra, Roma, 1972, pp. 310 ss.
97 Ver Maurice Dobb, op. cit., pp. 296 ss. _:fN. do T.: edição portuguesa A situação da classe operária na Inglaterra. Lisboa,
98 Ver supra nota 6. ;Presença, 1975].

64 65
de si mesmo, que se colocàsse em prática, coerentemente,_ o laissez~ comporta, o trabalhador é levado a evitar, custe o que custar, a cair nas
faire, eles teriam preferido abolir, sem dúvida alguma, as leis sobre os as da instituição. Pretende-se garantir dessa vez um controle do proletariado
pobres. Porém , como não tinham nem a coragem nem . a autondade_
lth · ue não está privado- no período em que a lei é aprovada, após a experiência
para isso, propuseram uma lei sobre os pob~es a m.ais ma us1ana a Revolução Francesa e das primeiras lutas operárias inglesas - de um
possível, que é ainda mais bárbara do que o laissro~-fmre, uma vez que \çtmteúdo imediatamente político.
intervém ativamente, onde este é apenas passivo .
Sir George Nicholls, o principal artífice da nova Poor Law, vê o pobre
Qual foi a solução proposta e adotada por Nicholls e outros reformadores?
'êomo "um jacobino em potencial", "pronto para atentar contra a propriedade
Já em 1770, ainda que este modo de conceber a workhouse fos~~ antenor: ª, -,:do seu vizinho mais rico" ios. Engels descreve com muita pertinência a vida
ideal workhouse era definida como house of terror, casa do terror . A soluçao
casa de trabalho, que em tudo e por tudo é semelhante a uma prisão, tanto
plenamente acolhida pela burguesia inglesa, pouquíssimo tempo depms da.,
:{que o povo a rebatizou de poor-law-bastiles, as Bastilhas da lei sobre os
sua ascensão definitiva ao poder político, foi a deterrent workhouse, a ca.sa
'pbbres 1°'- O regulamento interno da casa, além de garantir um standard de
de trabalho terrorista, que significava a substituição de qualquer forma de ass1S" t::;~ida que é, às vezes, inferior ao do cárcere, impõe uma série de limitações à
tência fora das casas de trabalho (outdoor relief) pelo int~rnamento e o trabalho 'C:iiberdade pessoal, que é típica do cárcere; ademais, e esse aspecto é
forçado no seu interior. Qual era a finalidade desta medida e em que sentido a <)pàtticularmente significativo, o trabalho ali desenvolvido é, em geral, inútil,
workhouse era definida, pelos próprios reformadores, como deterrent? .As'
· · significante, pensado muito mais em função das exigências da disciplina e
condições de vida e trabalho na casa ~ram t~is que ninguém, a não ser premido a domesticação do que em termos de rendimento produtivo 1 w. Em resumo,
5
por uma extrema necessidade, aceitana mternar-se nela. As palavras dos.
mo Disraeli chegou a dizer, a reforma de 1834 "anuncia ao mundo que na
próprios comissários são extremamente reveladoras a e~se respeito: glaterra a pobreza é um delito""'·
Numa casa desse tipo, ninguém entrará voluntariamente; o trabalho'.
Detive-me tão longamente na questão da assistência não apenas porque o
0 isolamento e a disciplina atemorizarão o indolente e o .malvado, e 'cio da instituição carcerária moderna está estreitamente ligado a ela - ou melhor,
nada, senão a extrema necessidade, induzirá alguém~ a~e1tar aq~el~
ela se confunde - , mas sobretudo porque, ainda no período da Revolução
confortos que deverão ser obtidos ao preço da renuncia da .prop
ustrial, essa relação permanece de maneira clara, a despeito da diferenciação
liberdade de contratar-se nor si mesmo, e do sacrifício da gratificaç
• 10~ instituições e da extensão distinta da utilização de ambas. Em todo o período
e das práticas habitua1S . terior, observou-se uma aparente contradição no desenvolvimento de uma
o
objetivo da casa de trabalho era, uma vez mais, forçar o pobre. s ª- lítica de assistência cada vez mais contestada em nome da introdução das
oferecer a qualquer um que se dispusesse a dar-lhe trabalho, nas condiço as de trabalho, juntamente com a retirada do trabalho dos cárceres que decaíam
que fossem'06. Para isso, era necessário que a vida na casr de trabalho of~re; fundamente, decadência que, ao menos no que concerne às casas de correção,
cesse, sob qualquer aspecto, a começar, ~bviamente pelo padrão de VI~! manifestava na crescente degradação das condições de vida do interno. Mas
menos do que 0 trabalhador livre do mais baixo estrato social pudesse obter '· contradição é apenas aparente, e o destino das duas instituições, cárceres e
o internamento na casa de trabalho atua sobre o mercado, mas .nesse cas3í sas de trabalho, não só coincide como registra, no período da Revolução
ao contrário do que acontecia anteriormente, quando um setor da produçao ustrial, uma mudança profunda que afeta a ambas.
funcionava a um custo muito baixo devido ao custo da força de trabalho .se:
forçosamente comprimido, agora, devido ao caráter declaradamente terronst
Em J. D. Marshall, op. cit., p. 30. Sobre a relação entre o que hoje chamamos de
1m Friedrich Engels, La situazione della classe operaia in lnghilterra, c~t., P· 312_,- 'minalidade política" e "crinúnalidade comum" - e que, nesse tempo, eram formas
/'ersas, primitivas e pouco diferenciadas de luta de classe, na Grã-Bretanha da
'°' Ver Karl Marx, II Capita/e, cit., !, l, p. 301. , volução Industrial - ver as belas páginas de E.P.Thompson, op. cit., pp. 61 ss.
'°' F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., pp. 33-34. Ver Friedrich Engels, La situazione de/la classe operaia in Jnghilterra, cit, p. 312.
106
Ibidem. Ibidem, p. 313.
101 Ibidem, p. 35. Este princípio se chamava less eligibility. 11
Citado em F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 35.
66 67
. . . caracten'sticas das casas de trabalho, impostas pela no de filantrópica com relação ao problema da criminalidade e do cárcere,
As prmc1pa1s , · d t , d
b, muns à evolução carcerana es e peno anteriormente havia sido a postura do movimento iluminista, baseada na
Poor Law de 1834, são tarr: em cdo a da Revolução Industrial, cresce a tanto das garantias individuais quanto da reforma do cárcere. O principal
nte paupensmo a er .
Com o cresce . b l'- O grito "pão e sangue" serpenteia pel esentante dessa corrente na Inglaterra foi J. Howard 114 •
· 1 te 0 delito e a re e rno. .
igua men . . . 1 1810'" O espectro jacobino tira o sono n Essa reação, contudo, não levará a um retomo a formas punitivas pré-
distritos industna1s mg eses em . também da burguesia ingles
apenas da aristocra~rn ~ontm::~~, ;':'reação individual do delito e
terárias, mas sim a um endurecimento e a uma intensificação da função
itiva do próprio cárcere. Por outro lado, ao prescindir da racionalização e
Entretanto, ne~se pr1me1ro per1 :, as massas empobrecidas consegue
. 1" . a única arma com as qua1 . 'ntrodução de uma maior decência e dignidade que o movimento iluminista
v10 ~nc:a posiçãom Não é de se estranhar, portanto, que no chma ôs à reforma carcerária, esse processo estabelece uma continuidade com

;:;:~;:~~~:!i:~n:~:l~~~~~~c:~:z~s:;o:~:::t;o~c~a;ap~;~; ~a~~~~d~oasn:i uação dominante no século XVIII. A razão de fundo pode ser encontrada,
0 já foi visto, no aumento excepcional da oferta de trabalho que tornava
me . ~ . s à Revolução Francesa e, entre outros,
motiv dos ataques reac1onar10 ".mpletamente obsoleta a velha formula do trabalho carcerário, em benefício
aspecto intimidatório e terrorista da casa de trabalho e, mais ainda, do
· cere. Não é que não se trabalhasse mais no cárcere; o trabalho no cárcere
112 Ver G Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., PP· 95 ss. , d' era descartado a priori, mas o que emergia no primeiro plano era o
· d d sobre 0 rápido aumento dos in ices áter punitivo, disciplinador, do trabalho, mais do que a sua imediata va-
!13 Ver ibiden1, PP· 96-9?, os adosd em diante. No excelente ensaio
. · ]'d d a Inglaterra sobretu o e 1810 . --·., ·_zação econômica. E isso acontecia porque, com a introdução das máqui-
cnm1na t a e n ' 1844-1845 i'á citado os temas do paupensmo,
· Engels sobre os anos • - ' , .; .. o nível de emprego de capitais em qualquer trabalho produtivo aumentara
JOVem_ . . - do delito não retomam continuamente a cena por aca
alcoolismo, da prost1~u1çao'. - ue En els tinha diante de si, na qual u l forma que o trabalho no cárcere, como informava um relato da época,
Isso tinha suas raízes na sttuaçao refal q. ce~m-superada de luta de classe. Iss podia mais ser promovido, a não ser na perspectiva de grandes perdas 115 •
, . · · l d 1nassa era uma · onna re ,
pratica cnnuna e d fi a· "E quem entre estes 'superflu iA abundância da força de trabalho livre era tamanha que o trabalho forçado
. . t resso por ele quan o a 1nn · • .
s1ntet1camen e exp b e abertamente contra a sociedade
aixão para re e1ar-s ''não era mais necessário para exercer a função de regulador dos salários
tem bastante coragem e P t burguesia que conduz contra ele ü
ara responder com a guerra aberta con ra a ' mos, o que havia ocorrido na era mercantilista. Não havia mais razão para
P l , rouba saqueia e mata" (p. 124). reocupar com a concorrência que o trabalho no cárcere poderia fazer ao
guerra oculta, esse a guem ' t , das qua'1s o proletariado inglês passa
. · d' ante as fases a raves · . ho livre e, por esse motivo, os protestos que a classe operária promovia
Engels Ilustra, mais a I ' fi 1 t a' luta política mediante a conquista
. , 1 ludismo e 1na men e • a ele perderam força 116 • De outra parte, o caráter intimidatório e o tràbalho
dehto a revo ta ~ ª~ ' , ortuno fazer notar, en passant, como
direito de assoc1açao (pp. 244-245). E opb l t r1'ado que ~nseJ'aram uma fa til são caracte1ísticas das workhouses para pobres, lá onde o trabalho deveria
. , d K z Marx sobre o su pro e a .
famosos 1uizos e ar . · úmeros de 16 e 23 de janeiro o seu único fim. Vale a pena conhecer a dimensão do fenômeno do
querela político-filológica (ver a esse res~e1to, os n 't m como os de E erismo e das poorhouses com relação à dimensão do fenômeno carcerário.
6 de fevereiro de 1'!72 do jornal J~u"!ª~~::~i~~::~:~~e:It~apoiítico-social do Segundo a estimativa do casal Webb, a percentagem da população inglesa
qu~ estamos ~~~~1na;_~::;aº~~ movimento socialista do século XIX ~oi exat~. 'stida nas paróquias (ou seja, com base no sistema da Old Poor Law) em
retiram sua v 1 a e. t ·mi'nosos numa prática polttica_
l os comportamen os cn
transformar, b em ou ma ' . . ontinua sendo a característica de
massa, enquanto o comportarne~to ~n:;unos~it~s vezes usado com finalidades a __
setor do proletariado, o subpro etana o, m . l'. Marx e Engels se lan Ver 1. J. Howard, Prisons and Lazarettos, I: The State ofthe Prisons in England
operárias. É claro, portanto, que nessa perspecltiva peo1 l~~:vérn igualmente subliri . Wales, Montc!air, N. J., 1973 (reimpressão da edição de 1792), cf. particularmente
d ento contra o elemento untp 1 · ·

~~~ ;~::~t;o ~~~ubp;o~e~~~~~~iac~~: ~~:~~~~ª~= ;~~~~::n~~a~~e,l;!ºp~~.


ceira seção: "Proposed Improvements in the Structure and Management of
ns", p. 19.
relaçao alguma com a d - f esclarecidos. Sobre esses temas, G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. llO.
conceitos que se tomam absurdos se nao orem Ibidem, p. l 11.
.
Michel Foucault, Surveiller et punu; . pp. 261 ss .
c1t.,
68 69
1820 girava em tomo de 12% al3% dototal 117 • Em 1845, num total de 1.470.97 O princípio formal sobre o qual se baseava o Panopticon consistia na
pessoas assistidas, estimava-se que, de acordo com o que determinava a no combinação de dois recipientes cilíndricos coaxiais, de vários planos,
Poor Law, estivessem internados nas workhouses 215.325 cidadãos ingleses'"' com funções opostas e complementares: as coroas circulares, em
Se considerarmos que no levantamento feito em 1782 J. Howard registrara u correspondência com os planos do cilindro externo, estavam divididas
total de 4.439 detidos nas prisões inglesas (dos quais a metade estava pres por meio de sete radiais em unidades celulares completamente abertas
por dívida) 119 , e que ainda em 1860 foram contabilizados 8.899 detidos''°, para o vão central e iluminadas pelo perímetro externo; esta parte era
supondo que na situação social dos anos 1820-1840 o número possa ter sid reservada aos indivíduos que deveriam ser controlados. No cilindro
sensivelmente mais elevado, damo-nos conta, imediatamente, da eno coaxial interno, oculto por finas paredes opacas, dispostas ao longo de
desproporção entre a magnitude do problema social, que é assinalada pel toda a extensão do perímetro, encontravam-se os locais destinados aos
cifra correspondente aos pobres, e a que poderia ser definida como emergênci carc~r~i.ros - muito poucos, se forem necessários -, os quais, sem
criminal desta situação 121 • Pode-se compreender então a exigüidade absolut poss1b1hdade de serem vistos, poderiam exercer um controle constante
do problema cm·cerário em termos de economia social, bem como o empe e inquisitivo sobre qualquer ponto do cilindro externo, através de espias
123
com que se enfrentava a questão do pauperismo. Por outro lado, porém, perce colocadas nas pm·edes: nada podia fugir do seu olhar •
se bem 0 significado simbólico e ideológico que se tendia a conferir ao cárc ... A vida na "célula elementar" correspondia à introdução, no primeiro projeto
Nas propostas de um dos representantes máximos da burguesia ingles Bentham, datado de 1787, do princípio do isolamento absoluto continuado.
em ascensão, Jeremy Bentham, o cáfcere se apresenta já numa fase inter Poscript escrito quatro anos depois, as celas foram ampliadas e 0 número
diária em que a vocação produtivista e ressocializante - própria das primei e detidos previstos para cada uma passou para quatro 124 • O elemento central
experiências e depois retomada pelo Iluminismo - começa a se sobrepor a projeto era, sem dúvida, o "princípio de inspeção", isto é, a possibilidade
objetivo intimidatório e de puro controle. O problema carcerário é submetid _, com poucos homens, manter sob constante vigilância - ou de fazer crer
neste período, como em toda fase de transição, a contínuas solicitaçõ e se estava sob contínua vigilância - todos os indivíduos encerrados na
políticas, e se trocam teorias, proposições e soluções que têm a ver com stituição. Se este.s dois '.'lementos.- o do isolamento continuado (que depois
alinhamento dos intelectuais ora com uma, ora com outra posição. O Pa• . s~parece) e o da mspeçao- aprmumam o Panopticon das modernas peniten-
nopticon de Bentham 122 é uma tentativa ingênua e nunca concretizada de coot"'- ánas de isolamento celular surgidas nos Estados Unidos'", a postura de
denar um exasperante sistema punitivo e de controle com a eficiência entham pode ser caracterizada pela importância que atribui à produtividade
produtiva, tentativa que já revela a decidida tendência dos anos seguintes ainstituição 126 .
privilegiar o primeiro aspecto. O Panopticon é, ao mesmo tempo, uma idé
.•·. ·.•.•. Bentham é a esse respeito rigorosamente liberal: "Eu faria tudo por
arquitetônica e a materialização da ideologia que a sustenta: .pontrato"127 , d'1z e1e, exclumdo . qualquer concepção punitiva do trabalho.
º~Ste deveria ser administrado segundo critérios puramente capitalistas: "Devo
H 1 Em J. D. Marshall, op. cit., p. 33. O texto fundamental sobre esta problemáti
onfessar qu~ não conheço prova mais clara ou segura de reeducação do
no período da Revolução Industrial para a história inglesa é a obra de S. e B;i
ue a melhona da quantidade e do valor do trabalho (dos internos]''"'· A
Webb, English Poor Law History, volumes VII, VIII e IX da sua English Local
Governn1ent, Londres, 1929.
11s Ver F. Piven e R. A. Cloward, op. cit., p. 35.
'.i_n Ver V. Comoli Mandracci, ll cárcere per la società dei Sette~Ottocento Turim
119 Ver J. Howard, op. cit., p. 492.
g:~4, PP· 36-37. Ver também R. Evans, "Panoplicon", in Controspozio, II, 10, pp. 4~
120 Dados retirados do Prison Repor!, do Home Office daquele ano.
Ver "Poscript", in Jeremy Bentham, op. cit., pp. 67 ss.
12 1 Isso nos faz levar em conta, também, como, passando de uma determinada situação<;
Cf. o ensaio de Massimo Pavarini neste volume.
social para outra, os mesmos resultados podem ser alcançados com outros meios,-:' 16
<:} Ver Jererny Bentham, op. cit., pp. 47 ss.
por exemplo, com outras instituições segregadoras, com a deportação etc.
""Ibidem, p. 47.
122 Ver Jeremy Bentham, "Panopticon", in The Works of Jereniy Bentha111, vo1. IV,: 28
: -"' Ibide111, p. 50.
Nova Iorque, 1962, p. 37.

70 71
essência da pena é constituída, também no que diz respeito à relação dé incorrigíveis,
"' vigiar os loucos, corrigir os viciados• ,·solar 0 s suspeitos
·

trabalho, pela privação da liberdade, entendida sobretudo como privação por para trabalhar os ociosos, socorrer quenz necessita de aiud '
. . • ~m=
liberdade de poder contratar-se: o detido está sujeito a um monopólio os doentes, lnstnur
. enz qualquer ramo de atividade quem quiser · aprend er
oferta de trabalho, condição que torna a utilização da força de trabalh ou mesmo guiar. a nova. geração na estrada da educaçao. - Em uma
palav~a, quer se3a aplicada com o objetivo da prisão perpétua como
carcerária conveniente para o contratante.
substitutivo da pena de morte • ou da pri·sa-0 de e·us to'd'ra, antes do
A privação de liberdade, que constitui a sua pena, impedindo-lhe
processo, ou da penitenciária, ou da casa de correção, da casa de
levar o próprio trabalho a um outro mercado, torna-o sujeito a u
trabalho, da 111anufatura, do 1nanicônzio, do hospital, da escola º.
13
monopólio; o fornecedor de trabalho, o seu patrão, como qualgue
129
outro monopolista, retira o máximo que pode do seu trabalho • Depois, Bentham dedica-se com especial atenção a tratar da aplicação
. s~u projeto a~ .model.o penitenciário, visto que, neste caso, "os
Porém, o princípio do isolamento punitivo, de um lado, e o da pena como
1etJvos
. da
_ custodta,
_ do isolamento • da soli'da-0 ' d o t ra b a Ih.o Jorçado
' e
privação da liberdade, do outro, que ainda convivem no esquema de Bentha
vão se tornar cada vez mais contraditórios entre si. O projeto arquitetônic . ~ . sao buscados ao mesmo tempo" D! · Pod e-se d'1zer, d e maneira
mstruçao ·
;~em smtet1ca, que _as funções específicas das diferentes instituições
benthamiano adapta-se aos objetivos de controle, custódia e intimidação que el
~egregadoras - criadas pela sociedade burguesa pouco ante
mesmo realça, mas não à introdução do trabalho produtivo no cárcere nu
omentoe
em que Bentham escreve essas páginas - foram uni'f'1ca
. , .
s,dno
as,
momento em que as máquinas, de forma cada vez mais maciça, estão presente''
um es1orço umtano e essencial·· o controle do pro Je tar1a · d o nascente.
no ciclo produtivo e este é, cada vez mais, organizado segundo o princípio
cooperação entre os trabalhadores. Talvez seja um indício o fato de que, pouc Essas instituiçõe~ se c~racterizam por estar destinadas, pelo Estado da
anos depois, Bentharn tenha previsto a ampliação da sua unidade celular p c1edade
d burguesa,
- a gestao
. dos diversos momentos da •''ormaçao, - prod uçao -
quatro pessoas. Mas o ceita é que o projeto benthamiano nunca foi completame ;epro uçao do proletanado de fábrica. Elas representam um d . t
' t · · d •. os ms ru-
aplicado na prática, muito embora, nos primeiros anos do século XIX, n men os. essenciais . a po111Ica social do Estado , po l't'
I 1ca que tem como meta
quais ainda prevalecem as instâncias reformadoras, sua proposta de utilizaçã 7anttr ao c_ap1tal.mna força de trabalho que - por atitudes morais, saúde
produtiva da instituição carcerária tenha tido uma boa acolhida. s1ca,
b d"capacidade
· mtelectual, conformidade às regras • ha'bi'to a' d'1sc1p
· l'ma e
•'' o e 1enc1~ etc. - possa facilmente se adaptar ao regime de vida na fábrica
Há ainda um outro elemento a destacar no projeto de Bentham, talvez ci
::~m seu conJ~nto e produzir, assim, a quota máxima de mais-valia passível
mais significativo da época e da sua ideologia. O mesmo frontispício dd
"de
.·.:-- ser extrmda em determinadas circunstâncias · p 0 rem, • • ·
a caracter1st1ca
volume onde o projeto do Panopticon é exposto traz o seguinte título:
,~Ue pr~va1ece sobre q~alquer outra é O inspection principie, O princípio da
"PANOPTICON", or the inspection-house: contai,ning the idea of a .1nspeçao, que constltm a garantia da disciplina.
new principie of construction applicable to any sort of establishment, , O Panopticon, a capacidade de controlar os subordinados em qual uer
in which persons of any description are to be kept under inspection; ;~omento e em qualquer lugar da instituição é, utilizando uma forma gros!ira
and in particular to penitentiary-houses, prisons, houses of industry, :.mas as teonas burguesas deste período são grosseiras isto é simples
,piaras e [quase] sem contrastes), uma extensão do olho d'o pat '- I .;
work-houses, poor-houses, manufactories, mad-houses, lazarettos, y d d · l' rao. sso e
. er ª. e!f~, iteralmente falando, se levarmos em consideração o que era a
hospitais, and schools. ·,brga~1zaçao do trabalho na fábrica neste período, sobre a qual Bentham
Nas primeiras linhas da obra, repete-se que esta idéia é aplicável, " asern a sua utopw do _controle para todas as diferentes instituições
sem exceções, a qualquer estabelecimento no qual (... ) se pretende ::segregadoras. Uma orgamzação do trabalho em que não se podia assegurar
manter muitas pessoas sob controle. Não importa o quão diferentes e.
mesmo opostos possam ser os objetivos: quer se trate de punir os 130
Ibidem, p. 40.
131
129 Ibidem, p. 54. lbiden1.

73
72
s equivalentes: a força de trabalho é efetivame "
a cooperação 132 pelo automatismo do processo de produção, mas sim pel se registra, nesse momento d nte paga pelo seu valor"137.
força e pela autoridade física do capitalista que, produzindo com máquin , . . o processo nenhum f d
e aqm, a ficção Jurídica do contrato f' : ipo e exploração.
que pertencem à pré-história do que é hoje a técnica industrial, coorde põem de suas próprias mercado . ' a icçao da~ pessoas que livremente
com o seu olho, a sua voz, o seu comando (ou o do capataz) o bom andamenf !ores iguais, não existe O en1'g nas para troca-las reciprocamente por
. ma surge porém d 0 f d
do processo produtivo. bora tendo pago por seu J·usto p ' ' ato e que, no final
. reço o que está com d . . '
É útil, a esse respeito, retornar à história da origem do capitalismo, des um valor ma10r do que no princ' . . pran o, o cap!lahsta
. . ip10, e1e possm o qu ·
a acumulação primitiva até a análise da essência do capital em seu mod . /ia. O enigma deve residir porta n to na natureza f e pagou mais a mais
.e ele comprou, na mercadoria força 1
clássico do século XIX, ou seja, desde o capítulo IV até o capítulo V de t b lh p,;r icu ar da mercadoria
primeiro livro de O Capital. Aqui Marx nos explica o que poderíamos eh rcadoria não pertence mais ob .
.
ª
ra
• vrnmente ao seu ve d d
0
· O valor de uso dessa
de eixo de sua teoria, a produção da mais-valia, ou, em outras palavra s sim ao capitalista que a e ' n e or, ao trabalhador
processo de valorização do capital 133 • Imediatamente antes, no final do cadoria é tal que o consumo :mprou~ E a natureza particular dess~
pítulo IV, Marx convida o leitor a acompanhar a análise que faz da tr ,. ,. " e seu v or de uso produz valorl39
extraordinária de equivalentes entre capital e trabalho que tem a propried Isso, porem, so e verdadeiro se o u d .
ente capaz de produzir na J·or d dso essa força de trabalho é efeti-
de criar valor, mais além da esfera da circulação, no "secreto laboratóri ' na a e trabalho u 1 .
leque o capitalista antecipou E . ' m va or ma10r do que
produção" 134 • É aqui que se revela "o mistério da produção da mais-valia' tidade de tempo durante a quai a [ªra ~ue isso aco,nteça, vai depender da
.• mbém da capacidade do capitali~~çad e tr~balho e usada pelo capitalista,
Abandonando essa "esfera", vejamos agora como Marx a descreve:
A esfera da circulação, ou seja, da troca de mercadorias, dentr imento médio horário que na-o f at e o ter da força de trabalho um
cujos limites se efetuam a compra e a venda da força de trabalho, 'd rus re as suas ex t .
c1 ade de usar a força de tr b lh pec ativas, ou seja, da
na realidade, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. a a o segundo os seus 1
. antade (como é, por outro lado d' . P anos, segundo a
imperam somente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham · ' seu ire1to contratual. ,. d
eira que a mercadoria força de trab Ih 'porem, a mesma
A frase de Marx não tem apenas uma intenção irônica. Ele já expli • uzir valor, também tem u ah o tem a característica peculiar de
_ • ma estran a propnedad é
antes como a venda da força de trabalho respeita o princípio geral da elaçao a anterior: a tende'n . b . e, que contraditória
,. eia a su trair se a0 ,. ·
e verdade, portanto e se e' d d - propno consumo). Se
- . ' ver a e que a e t - d .
132 Sobre o conceito de cooperação, cf. Karl Marx, Jl Capitale, cit., I, 2, pp. 18 tao de vida ou de morte . x raçao a mais-valia é
. para o capital aq · d ·
133 Ver ibideni, I, 1, pp. 204 ss. _As teses que se seguem são mais amplamente d_e cm; então, de fato apresenta ' m se ecide a sua própria
' -se como que r- d ·
volvidas em Dario Melossi, "Criminologia e Karl Marxismo: alie origini della o capitalista a sua autorid d s ao e vida ou de morte
tione penale nella società de 'Il capitale'", in La questione cfiminale, I (1975),
, . ª
na fiabrzca, que se identi'fi'c
e no processo de prod -
uçao, a sua autori-
mesmo autor, "lstituzioni <li controllo sociale e organizzazione capita1istica
a com o poder do . l'
qualquer outro comprador d . capita ista de dispor,
voro: alcuni ipotesi di ricerca'', in La questione crbninale, II (1976), 2/3. Neste ú ' a mercadoria que ele comprou140
ensaio, procura-se sobretudo ler o processo aqui descrito do ponto de vista da 'dem, p. 184. ·
das instituições segregadoras (assim, na· nota 60, fazia-se alusão à crise da f:
mononuclear; o mesmo se pode dizer da crise atual da instituição carceráriá e
por diante), isto é, do ponto de vista das transformações que o controle social
capítulo sobre a cooperação M 1
com o desenvolvimento neocapitalista. É oportuno sublinhar como todo o di on'dade é incorporado ao pró• rioarx resc arece perti ·t
. e~ amente como o princípio
desenvolvido nesta obra tem como ponto de chegada o momento de maturida" - ação de muitos operários aspsal p odcesso cap1tahsta de produção: "Com a
sistema carcerário e, portanto, o capitalismo "clássico" do século passado. É ·· anaosocomadd ·
qu1stto para a execução do proc d ' n o o capital se converte
ponto de-vista (que é o mesmo do Livro Primeiro de Il Capitale) que se fala a d - esso e trabalho e · · ,
_ _- pro uçao. Ora, as orden:S do cap1'tal' t m si, isto e, numa condição
134 Karl Marx, Il Capita/e, cit., !, !, p. 193. en, .
- save1s quanto as ordens d
isa no campo da d -
pro uçao tornam-se tão
27 o general no campo d b Ih "
135 Ibidem. p. -28); ver também as página . e ata a (/l Capita/e, cit.
136
s seguintes e as pp. 56 ss). •
Ibideni.
74 75
A história da relação entre capital e trabalho, a história tout court, que é.' rpo (na arte militar, na escola, nas oficinas etc) Em F
história da Juta de classes 141 , torna-se então a história das relações capitalist · ·postnra epistemológica'" as bases desta 1 - . . oucault, enfim, por
. ' re açao correm no .
no interior da fábrica, da autoridade do capital na fábrica e, corresponde perder-se na indeterminação de um t vamente o nsco
. a es rutura de sign -
temente, da disciplina do trabalhador e de tudo que serve para criar, mant · antemente hgados entre si, mas cuja razão d . • . os e re 1açoes,
ou subverter essa autoridade. É justamente o caráter irredutível (de clas e "a econorrúa política do corpo" q e,, ex1stenc1a nos escapa. O fato
dessa mercadoria em particular que faz com que ela não possa ser da ·ca" tout court e ela j'á está enceiTadue nos e ap~esentada é "a economia
. a no conceito de fo d b
como alimento ao capital imediatamente, sem uma série de tratamentos co recordar as já citadas páginas d M b rça e tra alho.
plementares que precedem, acompanham e sucedem a sua utilização no p . d , . e arx so re a manufatura ou tal
am a, as pagmas dos Manuscritos de 1844"'· , , vez,
cesso de produção. Esta é a tarefa específica das instituições segregador Esta construção burguesa do corpo n
inventadas pela burguesia capitalista e citadas por Bentham, instituições q . a esco1a no quartel ,
a, permanece totalmente incom ree ,, ' ' ~o carcere, na
no sentido que estamos explicando, podem ser definidas como suba/te ento da história do espírito _ p n~iv~ - me~os que seja um inefável
ª
fábrica. Elas estão no mundo da produção da mesma maneira que a iguald . • se nao 1 or cons1derad
mzação do trabalho capitalista (e n t . a como parte da
política e civil se reporta à esfera da circulação, como observa Marx na fr . · es e momento da hist, · d · .
necessita estruturar 0 corpo como , . . . ona o capitalismo)
citada. A esfera da circulação, da troca entre equivalentes, é o reino da liberd . . maquina no 1ntenor da , · .
seu conjunto. Em outras palavra d' maquma produttva
e da igualdade, o reino da Declaração de direitos; a esfera da produção . s, a ita construção b d
ser entendida deve-se atentar par t d urguesa o corpo,
reino da exploração, da acumulação e, por conseguinte, da autoridade, ' a o ato e que a 0 · -
assume o corpo como algo estra h . rganizaçao do trabalho
fábrica, e das outra~ instituições segregadoras. n o, mas sim o incorp ,
~l cabeça, reorganizando ao mesmo t ora, nos musculos
É a partir desse ponto que podem ser compreendidos os conteúdos. daqu 'damental do mesmo que é constituíd emlpo o processo produtivo e essa parte
religião do capital'" que é a ideologia dominante nesses anos, sobretndo
·· tu1, em suma nestes anos uma .
ª
pe o corpo-focça de trabalh A , .
_ . o. maqu111a
. ' ' mvençao abrangente
interior das instituições segregadoras. Um grande mérito do texto de Mi morta, inorgânica fixa e uma out . . ' que encerra uma
• • ra v1 va orgânic ·~
Foucault 143 é ter destrinchado as relações entre técnicas e ideologias, mostra ma muito genérica, pode-se dizer , , . • . a, ,vanavel. Falando-se
como a ideologia (obediência e disciplina) não determina a razão prátic 's também as sociais) as ciência qdue as c1enc1as f1s1cas e as morais (e
_ . • s a natureza e as do e , 't
moral, e sim como esta é produzida por técnicas particulares do controle s re1açao biunívoca com as técnicas de fo - spin o, entram
ão", do capital fixo (as "máqu' ,, rrnaçao, de exploração, de "ree-
i!Iho (o corpo h , . mas propnamente ditas) e da força de
, o amem, o espmto etc.).
141 Ver Karl Marx e Friedrich Engels, ll ntanifesto dei Partito Comunista, Tu
história das institnições segregadoras e da ideolo ia . ,
1948, p. 94 [N. do T.: edição brasileira: O ntanifesto do Partido Çomunista. PetrópO ída a partir desta necessidade fundamental d g . qu~ as preside e re-
s:u caráter subalterno em relação à fábrica e valon:aç~o do. capttal. Por
Vozes, 2ª ed., 1989, tradução de Marco Aurélio Nogueira e Leandro Konder).

sao da organização do trabalho capitalista for~ ~ue


142
Ver supra, item 3.
143 Surveiller et punir, já citado. Tivemos a oportunidade de conhecer o texto
?ªº
e ';'ats do que .a
o capital exerce sobre o con,;unto d 1 - . a fabnca, e a hegemoma
Michel Foucault _quando esta pesquisa já estava concluída. Esse trabalho é m • , as re açoes socrnis U h .
deve ser entendida como extensão analógica d t'b. . ma egemorua que
mais um brilhante discurso do sr. Miche1 Foucault sobre o cárcere (ou melhorf a a rica sobre o exterior,
tem o cárcere como pretexto) do que uma história da instituição, para a qu
pouco útil, e se não fosse por outros motivos, o seria pelo extremo francocentri
(qualquer curva, qualquer acontecimento, é cadenciado na história frances .. V.,,C?testa, "Michel Foucault: dall'archeolo ia dei s .
que, se não prejudica em muito o discurso do filósofo, é porém bastante de · ~tere • I~ La questione criminale, II (1976)2/3~ apere alla genealogia
como creio ter demonstrado, para a investigação histórica). Mas, repito, me pa bre a alienação do homem em relação ao seu ró .
que os objetivos de Michel Foucatilt (e isso é o que mais nos interessa no o do homem a operário (pp 209 ) P pno corpo (p. 200), sobre a
·
6 ss.) e das necessidades (pp 236 ss sobre toda t , ·
trabalho) são outros que não "históricos". Para uma discussão sobre este te, s ) .' K a emat1ca dos sentidos
cf. o número 2/3 de La questione crinlinale, II (1976). ici di 1844, in Opere filo :,, h s..• ver. ~rlMarx,Manoscrittieconomico-
so;tc e gtovanllt.
76
77
embora pareça assim num primeiro nível de análise, mas que forma um continuum mais ·numerosas as
, invocações pelo retorno ao b om tempo antigo
que invade cada momento da vida individual, apoderando-se e remodelando (ou terrorismo e ao metodo duro14s. , ao
criando) as instituições sociais no interior das quais tem lugar o processo de
formação. É no cárcere, como observa Foucault, retomando Bentham 4õ, que
1 A contradição entre burguesia e proletariado, que surgira havia sé 1
embora permanecendo secundária à contradiçã
se cria o laboratório experimental deste projeto abrangente; a "máquina panóptica'' ' o en tre aristocracia
. . cu os,
e burguesia
despon t a agora com toda força na cena princi ai E ,
tem a missão de produzir um tipo humano que constitui a articulação fundamental sobre os temas da criminalidade coincide co Pd: ssa_postura reacionária
da máquina produtiva. Repetindo uma vez mais: não se trata de instituições que . m a iscussao que ganha toda
servem para a organização do trabalho capitalista, mas sim desta mesma
Europa, provemente dos Estados Unidos sob
. d 'lf. . '
d · . '
re os ms sistemas· 0 separad
ª
d.e F t1-a e ia;. e o. s1lencioso ' de Auburn 149 · 0 pr1me1ro
· . sistema
. · que º•
organização que, a partir da farm1ia, da escola, do hospital, do cárcere etc.,
sttuaçao social d1.versa1so, tivera pouco sucesso na Amé . .' '_numa
organiza uma componente essencial de si mesma, aquela parte do capital da modo cada vez mais favorável no continente euro eu nca, foi recebido de
qual só é possível extrair mais-valia. As práticas formativas das instituições, as: perfeitamente à exigência de um cárcere punitiv ~ , porque co~respondia
ideologias, as teorias que as regem, só são compreensíveis a partir desta ne- 0
a um trabalho "útil" f - e e terror, que nao recorria
cessidade essencial do capital de reproduzir a si mesmo, passando através dos.· . , em ormaçao na Europa e em especial na ln laterr O
trabalho, no sistema do isolamento celular é um t b Ih g ª·
vários momentos do social, produzindo, portanto, através da sua própria rec; aspecto repetitivo, fatigante, monótono e~ ria a o ~ue cons~~ou o
produção, uma sociedade nova. tr b Ih t ' uma pa avra, ainda pumt1vo do
a a . o ex emo, mas que é completamente inútil. A tread- h l
A contradição que estava na base das hipóteses de Bentham toma-se cad eram mstrumentos simples que pod· . w ee ou o crank
. . • iam ser mstalados numa l ·
vez mais evidente na primeira década do século XIX e, depois, após a RestauraÇ s1gmficado real, embora sendo na a • . . ce a e CUJO
parencrn mstrumentos de trab Ih
A impossibilidade de acoplar o princípio da reforma social e da intimidação c • tormento, a tortura. Entre 1840 e 1865 t . f a o, era o
o da eficiência produtiva e da reforma por meio do trabalho se manifest t . t l nun a na Inglaterra o princípio
. errons a e, com e e, o do confinamento celular'" e do trabalho inútil.
claramente na recusa, operada pelos reformadores dos primeiros anos
Oitocentos, de acolher a idéia do isolamento continuado. A orientação reformado 5. A construção da moderna práxis carcerária
fundamental de J. Howard prevalece na lei de 1810 e depois no Peel 's Gaol A na Europa continental entre o Iluminismo
de 1823 147 • A idéia de classificação por grupos, da divisão entre os sexos, e a primeira metade do século XIX
isolamento celular noturno e da comunhão diurna no trabalho, a abolição
·.: dJohn Howard, nomeado xerife de Bedford em 1773 interessou se 1
lucro privado do carcereiro, das punições corporais e dos piores abusos · ·:na a comum para a época . ' - - a go
1
século anterior, todas elas foram realizações do empenho com o qual
pensadores da era do Iluminismo, de Howard e Bentham ~Sir Samuel Ro ·
i;co:dado. Por conta disso, d~~~:~ ~º~~:;~~; ~= ;:~~dl:~~ipz;~~l::as~u
c>re1orma carcerária Ele realiz d· . a
e a Miss Elizabeth Fry, lutaram pela reforma carcerária. Esse movime c}770 e 1780 Í J OU !Versas viagens ao longo das décadas de
·-:-- .' na ng aterra e no continente. O relato dessas via ens n
reformador esbarrou sempre numa reação em sentido repressivo, cujas ba
me~e a mais ampla visão panorâmica de como a situa ão d . ~g os
localizavam-se na situação econômica e social particular criada pela Revolu · volumdo na segunda metade do século XVIII'" S ç. a~ pnsoes estava
Industrial. O medo do jacobinismo, o aumento extremo do pauperismo e . e a situaçao mglesa era a
criminalidade que acompanhavam o imenso exército industrial de reserva
9 Ver?· Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 95 ss.
nível de vida extremamente baixo do prolétariado, o surgimento de fo
Ver item 5, na seqüência.
criminosas caracterizadas por um conteúdo que, se ainda não era político;
Ver mais adiante, nesta obra, o ensaio de Massimo Pavarini
é, porém, seguramente, de classe, tudo isso faz com que sejam cada Cf W F · ·
', . ox, op. cu., PP'. 14 ss.; G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p . 132 ss
146 Ver Michel Foucault, Surveiller et punir, cit., pp. 197 ss. Também Benth_ :- O titulo completo do pnmeiro volume da obra de John H ., . p , .
como já vimos, op. cit., p. 40. ate of the prisons in England and Wales w 'ti 1· . oward, Jª citada, e The
account of soin fi · . ' 1 1 pre inunary observations, and
·iarangeiros que ée d~;:~~~l~~~sons and_ hospitals, resumo das prisões e hospitais
147 W. Fox, op. cit., pp.6-7; G. C. Marino, Lafornzazione dello spirito borghe

ltalia, Florença, 1974, pp. 353-355. ' o na seçao IV, p. 44.


78
79
de uma grave decadência da instituição, como foi descrito anteriormente, e Spin-huis, com uma presença criminal mais nítida do que no século
nas regiões em que as casas de correção haviam encontrado um clima ade-. ; II, sendo reguladas de acordo com uma organização interna bastante
quado para seu crescimento, os países de língua alemã, as coisas caminhavam , elhante à primitiva. O trabalho mais praticado consiste em raspar a madeira
de maneira bastante diversa. a obter as tintas. Todavia, como advertia Sellin 15 ', os encargos do trabalho
Durante os séculos XVII e XVIII, as casas de trabalho e de correção .diário são reduzidos em cerca de um terço se comparados ao tempo original;
foram se difundindo por países até agora não mencionados aqui, mas par-:' 11.º tempo que_ sobra, os presos fazem pequenos trabalhos de artesanato para
ticularmente na Alemanha. Essa difusão - que coincide muitas vezes com O' yender aos VISltantes, algo que se tornaria comum com a diminuição do
despertar econômico, político e cultural mais geral da idade do Iluminismo. p-abalho produtivo nos cárceres.
(de fato, diversas instítuições visitadas por Howard eram de construção; Por volta do final do século XVIII, existem cerca de 60 casas de trabalho
bastante recente) - corresponde sobretudo a um declínio do uso das velhas' ';fom toda a Alemanha 1
" . Howard visitou muitas delas 157 , em Osnabrück,
formas punitivas, consubstanciadas na pena capital ou em punições corporais>. J:!remen, Hannover, Brunswick e Hamburgo. Ele encontrou as prisons
Por conseguinte, as teses de Rusche e Kirchheimer acerca de uma supostit ~ropriamente ditas, usadas para a detenção de devedores e para a custódia à
decadência generalizada da instituição carcerária neste período devem set (Ílipera do processo ou da pena capital, num estado lastimável: velhas, anti-
consideradas com uma certa atenção crítica 153 . Antes de tudo, convém deixai/ 'igíênicas, muitas vezes com calabouços subterrâneos secfetos, cheias de
claro que estes autores entendem por decadência não uma diminuição do usô strumentos de tortura, porém com pouquíssima população, algumas in-
da pena de detenção, nem a difusão, portanto, das instituições concebid usive vazias. Já as casas de correção ou casas de trabalho reúnem muito
com esse objetivo - as casas de correção, contrapostas às velhas prisões "s gente. Nelas, em geral, os homens raspam a madeira, como no modelo
custódia, que Howard encontra sistematicamente sernidesertas -, mas si Jandês, enquanto as mulheres, os velhos e os jovens fiam e tecem. Réus
uma deterioração do regime interno do cárcere, no qual são abandonadas crimes ~enóres encontram-se encerrados junto com mendigos, vaga-
finalidades econômicas e, por isso, indiretamente, ressocializantes, send ndos ou simples pobres. Muitas vezes a distinção é marcada mediante a
perseguidos, ao contrário, objetivos punitivos e terroristas. oibição, para as duas categorias, de manter relações uma com a outra de
Eles colocam em destaque as conseqüências sociais da Revolução Irt erciar etc. Especialmente em Hamburgo, cidade com muito tráfico e basi:mte
dustrial, que, criando pouco a pouco em toda Europa um enorme exército d senvolvida, a casa de trabalho é florescente. Exatamente nos anos da última
reserva de desempregados, torna o trabalho forçado (sub-remunerado) no. ítade Howard, as autoridades de Hamburgo elaboraram um plano de trabalho
cárceres obsoleto e inútil e explicita cada vez mais a exigência de intimidaçã · a os numerosos pobres da cidade, que tinha por base a internação nas casas
e controle político-social. Se esse processo está conectado, como ele trabalho. Inicialmente, o efeito foi muito positivo, tendo sido proclamado,
mesmos afirmam, com a Revolução Industrial, então não é de se surpreend · orgulho, o desaparecimento da mendicância nas ruas da cidade. Porém,
que ele se verifique principalmente na Inglaterra e que, numa situação m · _as dez anos d~po.is, em 1801, o déficit da administração era gravíssimo. o
atrasada como a alemã, Howard não encontre senão indícios esporádicos ;g~mento das maqumas de fiar havia reduzido em muito a possibilidade de se
deterioração da instituição. Não é de se surpreender também que o process ntlnuar_produz1ndo com os velhos sistemas a um custo competitivoI 58 . Neste
só se torne realmente comum sob o influxo do progresso industrial inglê~ , detivamente, a veloz propagação dos resultados, in primis, daquela tec-
por um lado, e da revolução política francesa, por outro, nos primeiros ano logia da Revolução Industrial inglesa, fez-se sentir também na exploração do
do século XIX e sobretudo depois da Restauração. abalho forçado na Alemanhà. Inclusive, antes mesmo que se produzissem
As prisões holandesas, para as quais Howard tece louvores mais do qu
para quaisquer outras 154 , têm ainda como regra geral de organização a do
Ver T. Sellin, Pioneering in Penology, cit., p. 59.
Ver Max Grünhut, op. cit., pp. 19 ss.
153 Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 84 ss. Ver J. Howard, op. cit., pp. 66 ss.
154 Ver J. Howard, op. cit., pp. 44 ss. Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., p. 91.
80 81
A alimentação também piorou e os pequenos lucros que os presos podiam
mudanças mais amplas no mercado de trabalho - a introduçã? d~s ~áquinas ter se reduziram a pouco ou a nada. As "poucas, inas interessadas, pessoas"
ampliava 0 exército de desocupados-, foi a importação das maquinas m~lesas eram provavelmente produtores que competiam com a produção da instituição.
e das idéias revolucionárias francesas que prov.ocou o retomo ao: metodos Com efeito, é sob essa forma que se manifesta, na maior parte das vezes, o
terroristas de gestão das prisões que vão caractenzar bo~ parte do seculo XIX. ataque ao trabalho carcerário. Enquanto a indústria, no período do mercan-
Howard visitou outras casas de trabalho em Copenhague, em ~stocolmo tilismo, necessitou do sistema de privilégios e dos monopólios para desen-
(fundada em 1750), em São Petersburgo (em construção), na Poloma (onde, volver-se, as autoridades puderam facilmente levar a melhor diante dos pro-
orém, não havia trabalho), em Berlim (fundada em 1758), ei:,i Span?au, em testos e queixas dos concorrentes da instituição, como aconteceu na Holanda,
py·1ena, na su1'ça , em Munique , em Nuremberg (as casas
. alemas e smças_ que no início do século XVII. Porém, na medida em que a nova doutrina do
· ·t m bem antigas) Existiam também mmtas casas de correçao no faissez-faire se desenvolve e se impõe, começa a hostilizar com sucesso
v1S1ouera · d G ·'
Flandres austríaco (Bélgica). A mais conhecida de todas era a e ant, La aquelas empresas que sobrevivem fora da lei do livre mercado, utilizando,
Maison de Force, inteiramente reconstruída em 1775, sob o governo,~: por exemplo, o trabalho forçado. O trabalho no cárcere tende, assim, a desa-
·
impera tr1z
· Man'a Teresa, ' ·segundo o modelo de uma velha casa de 1627 . parecer ou a se tomar um trabalho completamente improdutivo, com finali-
Deve ter sido grande a influência da Maiso1'. de Force. T;ata-se de um dos ..dades puramente disciplinares e terroristas. Além disso, pode cobrir tais ataques
. primeiros grandes estabelecimentos carceranos construidos na for:na de; com belas motivações de cunho social, pois na grave situação de desemprego
estrela octogonal e baseados na separação celular (noturna) dos cnnunosos da qual se aproveita e na qual prospera, pode-se facilmente acusar o trabalho
(o estabelecimento era dividido por sessões, correspondendo cada uma delas. .110 cárcere de estar prejudicando os trabalhadores livres desempregados. E,
a uma classificação específica: as mulheres e os vagabundos, por exemplo: -;J_e fato, as primeiras organizações do movimento operário integrarão esta,
não tinham celas separadas, mas os criminosos sim). O trabalho, em manu~:. ·::hostilidade ao seu patrimônio.
faturas têxteis, era realizado em grandes ambientes comun.s. O ~ntusrnsm~. A relevância da instituição em Portugal 161 e na Espanha 162 é praticamente
de Howard pela ordem, a moderação e a salubridade da casa d1mmurn bastante , <nenhuma. Na França, desde o início, o internamento era visto mais como
por ocasião de sua última visita, em 1783: . , . , ··nstrumento de supressão da mendicância do que de trabalho para os de-
Encontrei aqui uma grande mudança, e para p10c a ut!l e floresc~nt . os 163 • Na França, pesa muito o atraso no desenvolvimento econômico do
· manufatura, arruinada; e as máquinas e os utensíhos, todos vendtd .tincien Régime, durante o qual, e apesar de todos os esforços, de acordo
em consequência da exagerada atenção do imp~rador .às de~a~~ cpm o Comitê sobre a Mendicância da Assembléia Constituinte francesa, a
de umas quantas pessoas interessadas. O que de.via ter ~ido 0 1gnten .Jlíincipal causa do péssimo funcionamento dos hospitais era o ócio que neles
guia de todas essas casas foi exatamente perdido aqm (... ) 164
llnperava • Howard encontra nos vários estabelecimentos que compõem o
1
ôpital Général de Paris milhares de reclusos de toda espécie: devedores,
'minosos (condenados e à espera de julgamento), pobres, prostitutas, loucos,
1s9 Ver J. Howard, op. cit., pp. 145 ss, onde também é reproduzida a pl_anta da e ssoas afetadas por doenças venéreas etc. As revoltas são contínuas, o
de força: Max Grünhut, op. cit., p. 33; L. Stroobant, Le R~sphm~ de ª.ª. curso à tortura, freqüente, muitas pessoas morrem por congelamento nos
"Recherches sur la répression du vagbondage et sur le systeme pe1n1~ent.1a1
vernos rigorosos. O trabalho é. quase inexistente 165 • A análise das prisões
établi en Flandre au XVIIe et au XVIIle siêcle", in Annales de .1ª. s.oc .. d Histoire
d'Archéologie de Gand, III (1900), pp. 191-307. Foi por m1c1,at1va do COI> Ibidem, p. 150.
Hippolyte Vilain que 0 novo edifício pôde ser construído. Ele expos o seu progr Ibidem, p. 153. Sobre a Itália, cf. parte II.
ma em um ensaio, tambéln citado por J. Howard: Mé1noire sur les n1oyens __ Ver Michel Foucault, Storia de/la follia, cit., pp. 109 ss.
corriger les ntalfaiteurs et Ies fainéants a Ieur propre avantage et de les rendrc_ Ibidem, p. 110. G. Rusc.he e O. Kirchheimer, op. cit., p. 91.
·1 , l'Etat Gand 1775 OcárceredeGandfoiconsiderado,emgeral,comoun\
u(1 esa , • · , · d ' e Ver J. Howard, op. cit., pp. 165 ss. Para uma análise das diversas tipologias
das etapas fundamentais para a definição do modelo carcerano mo ~~no e e m
anas encerradas nos "hospitais" parisienses, ver Michel Foucault, Storia
cionado em praticamente todas as resenhas históricas sobre a matena. ellafollia, cit., pp. 126-127.
'"' J. Howard, op. cil., p. 148.
83
82
de Paris é encerrada com a descrição da Bastilha, a prisão de Estado para · 0 descrever as condições de vida nas poorhouses determinadas pela
criminosos políticos. Howard faz essa descrição seguramente de segun lei sobre os pobres, Marx observa como as rações alimentares dos
mão, uma vez que ele foi grosseiramente impedido de visitar a Bastil ,es internos eram piores do que as dos cárceres 167 • Isso ocorre porque,
pessoalmente 166 • uanto na Inglaterra, em 1834, a nova instituição das casas de trabalho
É importante considerar, na narrativa de Howard, como, em geral, pobres é uma iniciativa criada em conformidade com a situação e os
uma correspondência não casual entre trabalho no cárcere e as condições . · tivas que a burguesia se fixa naquele momento, o cárcere - que, cada
vida dos detidos. É falso estabelecer uma correspondência direta entre trab -menos povoado, tem uma eficácia social muito menor - ressente-se
e comportamento socializante, de um lado, e não-trabalho e comportame a do movimento reformador do século anterior, daquilo que, da Restau-
terrorista, de outro, visto que desde o surgimento da instituição os dois co ão em diante, será depreciativamente definido como filantropia iluminista.
portamentos sempre coexistiram, o que fica bem evidenciado na ~o.nce CQCos anos depois, tanto na Inglaterra como no resto da Europa, a instituição
do caráter punitivo do trabalho no cárcere - algo que, segundo a et1ca rá uma brusca mudança de direção, batendo-se contra o princípio do
talista, também é válido para o "trabalho livre"; porém, as condições materi alba produtivo e adotando-se com ferocidade o princípio da intimidação.
de vida no interior do cárcere -condições higiênicas, possibilidade de co No clima de intenso debate ideológico da segunda metade do século
nicação e de solidariedade entre os detidos, alimentação, ~ossibilidade' III, desenvolve-se na França a discussão sobre o pauperismo, 0 delito
dispor de uma pequena soma de dinheiro pessoal etc. - sao diferentes. s seus remédios. Em 1977, a Gazette de Berne organiza um concurso
essas condições são organizadas em torno da hipótese de um trabalho pr _ára "um plano completo e detalhado de legislação criminal". Dele parti-
dutivo ou não. E isso se dá simplesmente pela razão óbvia de que a a 'pa o médico Jean-Paul Marat, o futuro chefe revolucionário, com um
nistração do cárcere tem diante de si uma dupla necessidade: uma exploraç n de législation criminelle, que será publicado em 1780, em Neuchâ-
organizada da maneira mais racional possível, e a reprod~ç~o, dia ~~ós d" 168. Na primeira parte, Dos princípios fundamentais de uma boa legis-
da força de trabalho (essa questão vai além da mera subs1stencrn f1S1ca). ão, depois de enfocar a ordem social e as leis, Marat trata Da obrigação
Isso determina uma situação na qual o teor de vida do detido é sem su bmeter-se as ' 1eis
' 169 . Segmremos
. de perto a sua argumentação para
inferior ao mínimo do trabalhador livre ocupado (de acordo com o dito pr' lhor compreender a consciência e a sensibilidade que esta época tinha a
cípio da /ess eligibility}, mas pode ser superior ao do trabalhador desemp peito dos problemas tratados até aqui. Marat baseia todo o seu raciocínio
gado e pode, paradoxalmente, significar um_: "n_ielhoria", seja em t:~os obrigação de submeter-se às leis, na análise da situação material, concreta,
condições de vida, seja em termos de consciencrn, para~ sub~r~letano .. Is :que essas leis se referem. Após observar como "as riquezas devem ser, em
explica porque, num regime de desemprego elevado, a s1tu~çao rnstltuc10 uco tempo, acumuladas no seio de um restrito número de fanu1ias", com
interna do cárcere se torna mais áspera e se retorna ao ')Jetodo duro, o q conseqüente formação de "uma multidão de pessoas indigentes que deixarão
tende a acontecer em toda a Europa na primeira metade do século XI seus descendentes na miséria" 17º, ele prossegue:
Pode-se observar, em geral, ao menos para o período aqui examinado, qu Numa terra coberta de propriedades de outros e onde não é possível
força de trabalho e a~ condições de vida e de trabalho dos prisioneiros tend apropriar-se de nada, eles estão condenados a morrer de fome. Ora,
a seguir, num grau mais baixo, as da massa proletária no seu co~JU~to. pertencendo à sociedade apenas pela via das desvantagens que esta
isso não acontece, o cárcere corre o risco de perder, para a classe domina comporta, seriam eles obrigados a respeitar suas leis? Certamente
todo o seu poder de intimidação. Não tem sido raro, em época de grand.
transformações sociais e de intenso pauperismo, que os estratos ma . Ver Karl Marx, Il Capitale, cit., I, 3, p. 133.
68
deserdados ganhem força na luta pelo fato de que as condições de vida /- Ver Jean-Paul Marat, Disegno di legislazione criminale, Milão, 1971. Para
prisão ainda são preferíveis àquelas que têm de suportar do lado de fora. Jodas as informações posteriores sobre esta obra, remeto ao prefácio de M. A.
:_Cattaneo e à douta introdução de M. A. Aimo.
169
Ibidem, pp. 71 ss.
10
'"Ver J. Howard, op. cit., p. 174. } Ibidem, p. 72.

84 85
não. Se a sociedade os abandona, eles regressam à sociedade natura[ choupana de camponês; arrancado do arado pela cruel doença que me
e, quando reivindicam com a força aqueles direitos aos quais renun- consome, tomei-me um fardo para o patrão a quem servia. Por isso,
ciaram com o único intuito de garantir maiores vantagens, qualquer não me restou outro recurso para me sustentar senão o de mendigar o
autoridade que se lhes oponha é tirânica e o juiz que os conden~ à meu pão, mas até este triste recurso acabou me faltando (... ) Desesperado
morte não passa de um assassino infame. Se é verdade que a socie- pelas suas negativas, privado de tudo e impelido pela fome, aproveitei
dade, para conservar-se, deve obrigar a respeitar a ordem estabele- da escuridão da noite para arrancar de um transeunte aquela miséria de
cida, é igualmente verdade que está na obrigação de pô-los ~ salvo esmola que a dureza do seu coração me havia recusado. E porque fiz
173
das tentações que nascem do estado de necessidade. A sociedade uso dos direitos naturais vocês me mandam para o cativeiro •
deve, portanto, assegurar-se dos meios de sustento_ adequa,dos e da Qual é a solução?, pergunta Marat. Autoriza o roubo e a anarquia?
possibilidade de vestir-se conveniente1nente, garantindo, alem disso, Certamente que não!
a proteção do modo mais adequado, o soco~ro no mo~ento em que
O mal é conhecido, mas o que se fez para remediá-lo? Os mendigos
aparece a enfermidade e o cuidado na velhice. Eles nao pod:m, de
são tratados como vagabundos e mandados para a prisão. Esta não é a
fato, renunciar aos seus direitos naturais a não ser quando a sociedade
boa política. Não discutirei se o governo tem ou não tem o direito de
lhes tiver organizado um modo de vida preferível ao estad~ de natu,
reza. Por conseguinte, a sociedade não tem o d1re1to de punir aqueles privá-los desta maneira da liberdade, mas o que posso dizer é que estas
casas de detenção onde eles são encerrados só podem ser mantidas às
que violam as suas leis se não cumpriu com suas obrigações para
. 171 expensas do público, e a preguiça que elas alimentam, ao invés de
com todos os membros que a constituem .
remediar a pobreza individual, aumenta a pobreza coletiva. Qual é então
Depois, Marat passa a examinar estes princípios no que ~once~e. a um
o remédio? Ei-lo. Não manter os pobres no ócio, ocupá-los, oferecer-
delito em particular: o roubo. Mas "qualquer roubo pressupoe o d1re1to de lhes a possibilidade de satisfazer as suas necessidades por intermédio
propne· dade"112., assim , depois de refutar as várias teorias correntes
. sobre. ..a de seu trabalho. É necessário ensinar-lhes algum ofício, é necessário
origem de tal direito, dá a palavra "a um desventurado que podena se dmg1r que eles vivam como homens livres. Isso implica a abertura de muitas
aos juízes" dessa maneira: . oficinas públicas onde os pobres sejam acolhidos •
174

Sou culpado? Ignoro. Mas o que eu não ignoro ,é que não fiz;'ª~ª
Esses problemas, nos anos de profunda crise econômica que precedem a
que não tenha devido fazer. Encarregar-se da propna sobrev1vencrn
grande revolução, estavam à vista de qualquer francês. Nas cidades e nos
é 0 primeiro dos deveres do homem e vocês mesmos não. co~:cem campos, um numeroso "exército de reserva" de desocupados era obrigado,
nenhum dever que esteja por cima deste: quem rouba para viver, ia que
para não morrer de fome, a mendigar, vagar, roubar, e, nos casos mais
não pode agir de outra maneira, não faz mais do ql\e lançar mão dos
desesperados, a converter-se em bandidos 175 • No campo, a rebelião dos
seus direitos. Vocês me acusam de ter perturbado a ordem da sociedade.
Porém, como querem que eu me importe com essa suposta or~e~ q~e 173
Ibidem, pp. 174-175.
· sempre me causou tanto mal!? Que vocês pregue°'. ~ subm1ssao as 114
Ibidem, p. 78.
leis, vocês a quem esta submissão assegura o doJillmo sobr~ tantos 175
infelizes, é coisa que em nada ~e surpreende (... ) Era pre~ISO que Cf. Georges Lefebvre, La grande paura dei 1789, Turim, 1953, primeira parte
vocês trabalhassem de verdade. E necessário que isso seia dito. Mas (N. do T.: edição brasileira O grande medo de 1789. Rio de Janeiro: Campus,
1979). A bibliografia em língua francesa sobre estes temas é muito rica. Limito-me
será que eu tenho a possibilidade de fazê-lo? Reduzido à ind'.gência
aqui a recomendar as seguintes obras: C. Paultre, De la répression de la mendicité
pelas injustiças de um vizinho poderoso, em vão procurei refug10 na et du vagabondage en France sous l'Ancien Regime, Paris, 1906; L. Lallemand,
Historie de la charité, tomo IV, Les temps modernes, Paris, 1910 e 1912; Crimes et
criminalité eni France sous l'Ancien Regime, XVIJe-XVllle siécles (volume
171
Ibidem, pp. 72-73. coletivo), Paris, Cahiers des Annales, 33, 1971; A. Vexliard, Introduction à la
172 Ibidem, p. 73. sociologie du vagabondage, Paris, 1956.

86 87
miseráveis contra Os procedimentos que Marx definiu como "acumulaç · ica'. mas também nfo f~i ª.causa menos importante do "grande medo" que
primitiva" ganhava força. Os direitos coletivos, que sempre foram de grau vadm a França na immencrn da revolução de 1789.
ajuda para os camponeses pobres, foram sendo aviltados enormemente, Como resultado, d~ intensa atividade reformadora da segunda metade do
segunda metade do século XVIII, pelos grandes proprietários e arrendatári ulo XVIII, o Cod1go Penal revolucionário de 25 de setembro de 1791
apoiados pelo governo'": !estabeleceu, ao mesmo tempo, a introdução do princípio da legalidade nos
por toda a parte, no final do Antigo Regime, encontra-se gen •.delitos e na~ penas e a supremacia da pena detentiva sobre qualquer outra
procurando desesperadamente por terra; os miseráveis invadem , forma pun1t1va. Contemporaneamente, insistia-se na necessidade de fazer
terrenos comunais e pululam nos bosques, nas charnecas, n~_ m que os hospitais e as prisões fossem lugares nos quais a defesa social
margens dos pântanos; protestam contra os privilegiados e ô 'ves~e _ºtrabalho efetivamente como base 181 • O princípio que postula que a
burgueses que empreeudem a exploração das terras que lh' , efimçao do deht~ e da pena por ele previsto deixe de ficar ao arbítrio do juiz
pertenciam através de encarregados ou chefes de quadrilhas; exig e passe a ser codificado, de forma taxativa, por lei, e a exigência de uma
a venda e até mesmo a distribuição dos domínios do rei e às vez~: justa proporção entre a sanção e a gravidade do fato cometido, exprimem um
dos bens do clero; um violento movimento se manifesta contra à' •~sp~cto não secundário da luta que uma burguesia já desenvolvida e segura
grandes manufaturas~ cujo desmembramento teria dado ocupação. ~e s1 empreende contra a antiga forma estatutária, mas representam também
,,. • 117
numerosas fam1has . formalização da práxis, por quase dois séculos enraizada, de tratar a questão·
'penal. Como observa com agudez o soviético E. B. Pasukanis, em 1924:
Por isso, "pelo menos um décimo da população rural mendigava duran
o ano todo" 178 . Com freqüência, as pequenas comunidades locais não er A privação da liberdade por um arco de tempo estabelecido preven-
hostis a esses vagabundos. Em alguns "cadernos de queixas", protesta- tivamente nas sentenças do tribunal representa a forma característica
contra o seu internamento nas casas de detenção, provavelmente com ar através. da qual o direito penal moderno, isto é, o direito penal burguês-
mentos parecidos com os de Marat. Esses desocupados, mendigos, vag cap1tahsta, coloca em prática o princípio da retribuição equivalente.
bundos, que invadiam campos e cidades, se organizavam em grupos; Trata-se de um meio profundamente ligado, embora inconscien-
medida em que o grupo crescia, aumentava a miséria e, com o maior núme temente; à idéia do homem abstrato e do trabalho humano abstrato
~e.dido pelo tempo( ... ) Para que se levasse adiante a idéia da possi-
e a miséria, crescia o desespero: a mendicância se transformava em banditi
mo. Quem não atendia aos pedidos de esmola corria o risco de ter se b1hdade de expiar o delito com um quantum de liberdade, determi-
càmpos de cultivo arrasados, o gado mutilado, a casa incendiada, quan nad.o de modo abstrato, era necessário que todas as formas da riqueza
social fossem reconduzidas à forma mais simples e abstrata do tra-
não era ameaçado com o chumbo dos arcabuzes 179 • Por outro lado, "quan
os hospícios de mendigos ficavam muito cheios, as portas eram abertas"' balho humano medido pelo tempo (... ) O capitalismo industrial, a
~eclar~ção .dos Direitos do Homem e do cidadão, a economia po-
o que fazia com que todo mundo se desse conta da inutilidade daquel
hllca ncardrnna e o sistema de reclusão por tempo determinado se
instituições, arrancando protestos sobre a contaminação que se produzia en 182
configuram como fenômenos de uma mesma época histórica •
. os pobres e os verdadeiros criminosos. Lefêbvre afirma que esta não foi
Em Hegel, autor que representa o grau máximo de consciência desen-
volvido pela burguesia d.o período "clássico", o princípio de proporcionalidade

176 Ver Georges Lefebvre, op. cit., pp. 13-14.


177
Ibidem, p. 11.
178 Ibidem, p. 17.
"' Cf. G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 81-82; Michel Michel Foucault,
179 Ibidem, pp. 20 ss. O tema do banditismo na Itália, neste período, será tratado dei.··
Stona dellafollia, cit., p. 110.
forma mais detalhada no segundo item da segunda parte. 182
E. B. Pasukanis, La teoria generale dei diritto e il marxismo, Bari, 1975, p. 189.
18 º Georges Lefebvre, op. cit., ·p. 25.
89
88
da pena assume este significado 183 • E é nas casas de trabalho, portanto, n <•.•<iue
. · . a conexão entre a reforma penal e as casas d e trabalh0
práxis concreta das autoridades públicas e dos mercadores que as adminis" ;•~v1dente. Nas obras dedicadas ao direit aparece clara e
.princípios, também se vê claramente a coo, q~e sustentam a validade destes
travam que nasce a recusa do uso da pena de morte e das punições corporais, • nexao entre pobrez d
a idéia de que a um determinado delito deva corresponder um quantum cl •.~entre pobreza e as amplas e numerosa , d . ..~e . esemprego,
. s 'armas e delmquencia.
pena, de que a situação no interior do cárcer~ deva ser mais "humana". ,_ ; Poroutro lado, aformahzação da potestade ·r .
ímpeto revolucionário da burguesia do século XVIII acrescentará a esta práxi~ :--.revolucionários não faz mais do que 1
:'"
, puni iva inerente aos princípios
evar as suas cons ··" · . .
já existente a luta pelo princípio de legalidade e de taxatividade. Cabe observaf: : pconceito expresso por Hegel e Pas k . . . equencias mais ngorosas
·•· . - . u ams. o conceito de t b Ih
que esses princípios - que não correspondiam nem derivavam da luta entré: a hgaçao necessána entre 0 conteu'd d . . . ra a o representa
•;' , . o a ms!Jtmção e a t
a burguesia e o proletariado, mas sim da luta da burguesia contra o Estad çálculo, a medida de pena em termos d sua arma legal. O
>, , 1
evaor-trabalhopor ·dd d
absoluto - se converterão, cada vez mais, numa arma nas mãos desse mes ;$.osetornaposs1velquandoapenae'p reerre h.d i a com esse ·
um.f a e etempo,
proletariado. O grande pensamento iluminista da segunda metade do sécu .·~e trabalha ou quando se adestra para o tr b Ih ( s1gm i.cado, quando
XVIII expressará e retomará esse desenvolvimento, e já não se trata ma1 apitalista). Isso é verdade mesmos
.
-ª a o trabalho assalanado, trabalho
e nao se trabalha no '
apenas de uma enunciação dos princípios que exatamente nesse moment mpo medido, escandido regulado , carcere: o tempo (o
em muitos Estados da Europa, desenvolvem e difundem o modelo da casa eríodo também em outra; instituiç} e u~al das grandes descobertas deste
correção. E, sem dúvida, não é somente aos políticos e reformadores sacia e no tempo transcorrido no ca'roes su - a temas, como a escola1s4. Ainda
. . cere nao se reprod
e3ud1cado com 0 delito _ 0 qual b uza o va 1or do bem
. ' como o serva Hegel
igualdade estabelecida pela lei de t ._ , encontra-se na base
1
. a, da instituição faz com que pa a iato f-:• a natureza propedêutica, suba!-
183 No parágrafo 101 da sua Filosofia del diritto, Hegel afirma, a propósito da . • ra es e 1m baste a ex ·.... ·
do talião: "Esta identidade, que fundamenta o conceito, não é a igualdade n and1do, do tempo medido a , .d , '. . penencia do tempo
. • J.Onna 1 eolog1ca vazi ~
natureza específica da violação, mas sim com o que é e111 si, segundo o valor a, mas que morde na carne e na cabe d . d" ~ a, que nunca e apenas
mesma". E depois: struturando-o com parâmetros 1·1 · , ça. o m IVlduo que se deve reformar,
u 1 1zave1s pelo processo d 1 _
"O valor, enquanto igualdade interna das coisas, que, em sua existênc.· O conteúdo da pena (a "exec - " , e exp oraçao.
específica são completamente distintas, é uma determinação que se apresenta rídica, do mesmo modo qu uçaof~besta, desse modo, ligado à sua forma
nos contratos e também na ação civil contra o delito, e cuja representação • e na a nca a auto ·d d
ploração possa assumir o aspecto d n a e assegura que a
elevada à universalidade, superando a natureza imediata da coisa" (Georg W. . e contrato E nã , d f
e determma, segundo Hegel, tanto ai ualdad . o e, e ato, o valor
Hegi;l, Lineamenti di filosofia dei diritto, Bari, 1954, p. 98-99). s dois termos da lei de talião?ISS U g e da troca contratual quanto a
O jovem Marx desenvolve este conceito em seu texto sobre a lei contra . · · ma vez mais não t t d .
roubo de lenha. Ver Dibattiti sulla legge contra i furti di legna, in Karl M s sim da expressão dos do1·s . ' se ra a e analogia,
. momentos reciproca t . .
Scritti politici giovanili, cit., pp. 183-184. O propósito desta pesquisa excl_ .!rutura capitalista: circulação e rodu ão . men e essenciais da
qualquer discussão sobre teorias penais. Todavia, convém observar a íntima co reito (a circulação dos bens) p bç . Ou seia, uma vez mais o reino do
, que so retudo no ca
tradição que permeia a doutrina hegeliana da retribuição. Ela é, de um lado, u ande orgulho da burguesia revolucionária , . ~po pena1representa o
tradução filosófica ·ao endurecimento da burguesia quando chega ao poder, no q elação de exploração i· e a' t .d d ' est~ mtnnsecamente conectado
• · ·• au on a e e à v1ol" · ·
diz respeito à questão criminal: sua negação do utilitarismá iluminista deriva, ant ção (na fábrica, no cárcere) T . ' . enc1a que remam na pro-
de tudo, da necessidade de afirmar o valor geral e universal da ordem e do respeito nseguinte, muito mais destinad~s ;1s conlqdmstas burguesas são, por
lei. Porém, ao mesmo tempo, e nas palavras do próprio Hegel, ela é o reconhecimen canso 1 ar a hegemon1·a d a propna , .
do criminoso como "ser racional" (ver parágrafo 100 da Filosofia dei diritto). Não-'
por acaso que Marx concebe a sua visão pessoal da questão penal discutindo Ver as brilhantes páginas de Michel F 1 .
teoria hegeliana. Ver Karl Marx e Friedrich Engels, La sacrafanliglia, cit., pp. 233-2 sobre o novo modo de ad . . oucau t, Surveliler et punir, cit., pp. 158
. . m1n1strar o tempo "par d;
e Karl Marx, Capital Punish111ent, in Selected Writings in Sociology and So · at1on, par synthese et totalisat. " S b . ecoupe seg1nentaire, par
Philosophy, Penguin Books, 1963, pp. 233-234. Sobre a função da teoria hegeli ' ver pp. 222 ss. ion . o re o discurso, num sentido mais
ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op: cit., p. 101. Ver supra nota 184.

90 91
classe sobre o conjunto da estrutura social - ·e, portanto, objetivamente, ·_.•_banditismo, a formas primitivas de luta de c 1asse como
0 · " d'
contra o proletariado enquanto tal -do que a lutar contra um Estado absoluto, .·.---campos, a revolta contra as máquinas e ass' 'd. s incen ios nos
. 1m por 1ante.
o qual, por sua vez, na medida em que torna seus esses princípios, encontra- ·•· Diante deste fenômeno por eles mes . d
,. mocnaosocapitl'
se cada vez mais em mãos burguesas. Trata-se, portanto, de conquistas poht1cas que o representam não precisam res onder ~a. a e as 'orças
genuinamente burguesa-revolucionárias, no sentido de que revolucionam a trabalho forçada, que reduza os salários dos ~rabalh d is co;" uma força de
velha gestão da questão punitiva, adotando os novos critérios das relações mesmo tempo, seja adestrada e recu er d a ores ivres e que, ao
capitalistas de produção. instituição carcerária permanece ass1· p a a para o trabalho na fábrica. A
m como uma aqu1SI - d fi · .
Com efeito, enquanto a burguesia revolucionária encontrava no cum- , vez mais dominante na prática puni't· b . çao e 1mt1va e cada
1va urguesa mUJto b
primento da pena de detenção com trabalho uma espécie de concretização ' - ao menos na Europa e até 0 mame t ' . em ora a sua função
. n o em que esta situa - d .
material da sua concepção da vida baseada no valor-trabalho medido peló depms da metade do século XIX d . çao per urar, 1. e.,
- a quira um tom cada vez m . t .
tempo, as massas populares a ela subordinadas e também, às vezes, prata~ mero controle social: 0 princípio d d' . 1. rus erronsta e de
. . . a 1sc1p ma tout court pre ai b
gonistas da Grande Revolução que sacudiu a Europa, consideravam a estrutura d1sc1plma produtiva da fábrica A . , . v ece so re o da
· marca reac1onana da Restaura -
carcerária de uma forma totalmente diferente. A destruição da Bastilha não corresponde nos países mais avançad , fi , çao - que
. ., . . os a ormaçao de uma frente n ai
foi um fato isolado. É certo que se tratava de uma prisão especial, uma b
. urguesia, Jª v1tonosa , acolhe os restos teoncos ,. a qu. a
e prático d Ih
fortaleza para os presos políticos, porém não deixa de ser irônico perceber ~.se porum lado expressa ainda uma resistê . . . s ove o absolutismo
que, como já vimos, as Workhouses inglesas em 1834 tenham sido imedia• outro caracte1iza-se cada vez mais ncia anti-liberal, anti-burguesa, por
, . por uma postura anti-proletária.
tamente rebatizadas pelas massas populares como as bastilhas da lei sobre.
. A emergencia de um incipiente otencial ,.
os pobres. Desde então, o ataque às prisões e a libertação dos detidos tornaram- ._•i.mpede, a partir da Restauração p p_oht1~0 das classes subalternas
se uma constante em qualquer sublevação ou insurreição popular. Esse . l . , que a questao cnmmal e a , .
parl!cu ar seiam desligadas dos conflitos de cl . ~arcerana em
assaltos - voltados em geral para a libertação dos "políticos" ou chefes .aquele momento fora uma relaça'o . . asse mais gerais. O que até
. . 1nconsc1ente entre
populares, bandidos importantes etc., pessoas de um ou de outro modo ligadas: •_regime capitalista na sua gênese to d . as novas c1asses do
aos septimentos das massas - abriam as celas, sem falsos moralismos é· . ma-se ca a vez mais u l -
ciente, uma hostilidade política O "t , 1 ma re açao cons-
guiados por um agudo instinto de classe, também de 1adrõezinhos, vagabundos -impulsiona vários governos eur~pe ernve ~um~nto d,.as recaídas"l86 é o que
etc. A lição foi aprendida desde o início de modo tão claro que já Bentha a ocupar-se cada vez mais intensa:· ~as :nmeir"..s decadas do século XIX,
em seu projeto do Panopticon, recomenda que as paredes externas do cárcer . enviando observadores para outr e~ e a questao da reforma carcerária,
fossem suficientemente fortes para resistir aos ataques populares, mas não dos1s1 As pri . . os pa1ses, sobretudo para os Estados Uni-
. meiras pesqmsas estatísticas sobre · · .
ponto de poder resistir a tiros de canhão. O bom filantrQpo inglês oferecia a ª.caso nascem neste período mo t b a cnmma1idade, que não por
oportunas indicações da arte militar contra um inimigo comum, que s , . ' s ram, so retudo na Inglat . F
um rap1do aumento dos delitos contra a ro r· 188 ,. erra e na rança,
encontrava fora e dentro do cárcere. .Jlapoleônica de 1810 começ P Piedade · Ja com a codificação
.. a um 1ento mas contínuo movimento da práxis e
Nas regiões menos desenvolvidas da Europa, ainda que com alguns anos
de atraso, na medida em que aumenta enormemente o exército industrial d,,,
reserva, aumenta o pauperismo e a criminalidade. Ademais, depois darevoluçã
}_86 A _
e da experiência jacobina, num momento em que a organização da ela expressao encontra-se em C • I • Pet'tt' d' R
1 I 1 oreto op "t 372
1
operária ensaia seus primeiros passos, é privilegiado o terreno da criminalidade _ ,}'1 Provavelmente o relatório mais famoso . ' . cz ., p. .
da solução pessoal violenta, é nele que tem lugar o confronto de classe. •.de TocquevilJe, On the Penitent1'ary S foi~ elahborado por G. de Beaumont e A.
· . ysteni zn t e United St d
at1on ui France Southern 111 . . p ates an lts Appli-
grande número de desempregados, a desorganização das massas e a misér' , IIlOIS ress, 1964 No r d e I .. .,
stes relatórios encontram-s · ivro e · . Petttt1, Jª citado
extrema fazem deste período aquele no qual o salário real desceu aos nívei , e amp 1amente documentad ( '
ambem o ensaio de Massimo Pavar1·n· . l 'd ~s ver pp. 372, 373). Ver
mais baixos, desde o início do desenvolvimento capitalista. Na realidad Vi 1 1nc u1 o neste llvro
tudo induz à mendicância, ao roubo, e em alguns casos à violência e a'd er G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 96-97. .

92
93
da doutrina penal em direção a uma maior severidade, acompanhada da críti undo etc. da tentativa de sobreviver cometendo delitos, mendigando ou
dafilantropia revolucionária'"· '••as do gênero.
o código penal francês prevê, em essência, o uso de três tipos de sançõe "Porém, dado que o que está em jogo para o desocupado, para o pobre destas
a pena de morte, os trabalhos forçados e a casa de correção. A pena eiras décadas do século XIX, é exatamente a sobrevivência, a possibilidade
morte não é, de modo algum, uma medida excepcional, como tendia a matar a fome de si mesmo e da sua farm1ia, e não a aceitação ou a recusa de
configurada na legislação revolucionária precedente, mas se aplic_a a ~u ·r contratado em condições de exploração, o efeito intimidador toma-se
todas as classes de delitos contra a segurança do Estado, fals1ficaçao tremamente difícil de ser alcançado, já que basta que o cárcere assegure 0
moeda, roubo qualificado, incêndio doloso, golpeando assim, de um la ;/infnímo vital para que a situação de detenção se tome melhor do que viver em
todo tipo de subversão que tenha uma repercussão político-militar imedi .·liberdade. Mulllphcam-se assim, neste período, os protestos contra a obra
e, por outro, os dois delitos típicos das classes subalternas das cidades e refonnadora do final do século XVIII, meritória sim, sob certos aspectos, mas
campo. Para os delitos menos graves destas mesmas classes - com~ . que tinha melhorado excessivamente as condições de vida no cárcere, dando
vagabundagem e a mendicância, a rebelião não configurada~º".'º um deli '.·mais atenção - como se dizia - ao aspecto material da detenção em detrimento
contra a segurança do Estado, os delitos de greve e de assocrnçao etc. -, ;.do espiritual'"· Afinna-se que não é possível que um preso possa gozar de um
previsto 0 uso da casa de correção, de um~ pena brev,e,. centrada sobre~~ ':, teor de vida igual ao de qualquer "artesão" livre 192, sem considerar que 0 padrão
na obrigação ao trabalho, formalizando assim uma prax1s a que, como Jª . •de vida deste último é, muitas vezes neste período, inferior ao nível mínimo de
viu, se recorria desde a fundação das primeiras casas de trabalho ou · · subsistência. Acontece assim que nos cárceres os presos começam a ficar
correção. Também em outros códigos, como o da Baviera de 1813, obra ·' doentes e também a morrer por inanição; a política malthusiana tende a colocar
Anselm Feuerbach, o refinamento da técnica jurídica e a aceitação cada v · em prática sua própria teoria de extennínio do proletariado'"·
mais completa dos direitos civis fundamentais em matéria penal caminhar É -~esse clima. que a atenção dos reformadores se volta então para as
juntos com o reforço e o endurecimento da repressão"º· •., expenencrns amencanas. Nos Estados Unidos, desde o final do século anterior
Como já foi visto anteriormente, um dos objetivos principais que devia• havia ~~ho forma,_ no est~do quaker da Pensilvânia, um tipo de instituiçã~
ser alcançados com o trabalho forçado foi, desde o início da experiênc' carcera~a, a d~ r~gime de isolamento celular contínuo, dia e noite, típico da
carcerária, um efeito nivelador que empurrasse para baixo os salários externo, concepçao calvmista baseada numa ética do trabalho completamente espiritual
Esse efeito, todavia, só era atingido parcialmente através do simpl (exatamente o que se estava buscando na Europa!) e que não concedia nada
mecanismo econômico, ou seja, da disponibilidade de força de trabalho nã · ao trabalho produtivo. Ao contrário, o trabalho era a base do sistema silencioso
livre em certos ramos da produção - pelo menos devido ao número exíg de Auburn, que previa o isolamento noturno e a reunião diurna, em silêncio,
de trabalhadores deste tipo - mas que era provocado, mais do que p ~ar~ o trab~lh,o"'.· Este último sistema logo prevaleceu na América, 0 que
qualquer outro motivo, pela imagem terrorista do cárcere como de~t~ mdtca a ex1stencta de grande necessidade de mão-de-obra, ao contrário da
obrigatório para quem se recusava a trabalhar ou a trabalhar em condiço Europa, nos novos e prósperos estados norte-atnericanos19s.
particularmente duras. De acordo com o chm~ado prin~ípio da less el~gibili . Ne~,se mom~nto, no Velho Continente, a discussão sobre a reforma pe-
um trabalho livre externo era sempre prefenvel ao carcere. No penado e rnten~1ana ~und1u-s~ com a.discussão sobre os dois sistemas, que se tornaram,
exame, caracterizado pelo desemprego e pelo pauperismo crescentes, o únic' dep01s, mais de d01s, devido às várias possibilidades de cruzamento que
efeito intimidador possível, para quem não tinha nenhuma possibilidade d
encontrar trabalho, é de tipo político, no sentido de afastar o desocupado, 191
Ver C. I. Petitti de Roreto, op. cit., pp. 374-375 e 469.
192
Ver G. Rusche e O. Kirchheimer, op. cit., pp. 106-107.
193
Ver os dados mencionados ibidem, p. 109.
1&9 [biden1, pp. 98-99. Essa crítica se tornará, mais tarde, no século XIX, um lugar~~ 194
comum quando se fala da política social do século XVIII. , Ver ibidem, cap. VIII, p. 127; o capítulo III do já mencionado trabalho de Petitti
se dedica à comparação entre os diversos sistemas e traz uma vasta bibliografia.
"ºIbidem, pp. 99-100. 195
Ver G. Rusche e O. Kirchheirner, op. cit., p. 130.
94 95
'{cil de ser posto em prática e de permitir o uso excessivo da violência por
geraram novas soluções. Participavam dessas discussões homens que, ~mbora
p$1rte dos guardas, na tentativa de fazer os réus respeitarem as regras.
portadores de uma ideologia já diferente, continuavam_ na sua attv1~ad~ a
tradição dos philosophes iluministas. Cultores das mais vanadas c1enc1as O completo desinteresse da cultura européia em relação ao problema do
humanas, eles eram freqüentemente autores de ensaios, relatórios, d~ários de abalho no cárcere se manifesta no fato de que a diferença fundamental
viagem, projetos de reforma sobre os mais diversos temas entre s1, porém ·entre os dois sistemas - o de ser possível, num deles, a realização de um
todos eles, em essência, relacionados à organização global, nas suas mil verdadeiro processo de trabalho produtivo, .e no outro não _ passava
facetas, da nascente civilização burguesa e, em particular, do seu Estado. qormalmente desper'.'eb1da, ou pelo menos não era percebida como a diferença
Muitas vezes comprometidos pessoalmente em atividades legislativas ou ~ssenciaL Ao contrano, para o Tesouro dos diversos Estados europeus, era
administrativas, seu interesse pelo problema penitenciário, como se começav~ . !llUito m~1s 1.mportante o fato de.q.ue o sistema filadelfiano exigia a construção
então a chamar, nunca era casual, mas sim, sempre, muito consciente da~:­ <ge celas md1v1dums, o que s1gmflcava grandes despesas. Foi por este motivo
possibilidades práticas, concretas, de realização. Cario Jlarione Petitti di Roreto, ·.;·:que muitos países favoráveis a esse modelo não o levaram adiante na prática.
típico exemplo piemontês deste tipo de homens, oferece-nos, na sua obra de' .·\. O sistema do isolamento contínuo foi o que acabou por prevalecer em
196
1840 Della condizione attuale delle carceri e dei mezzi di migliorarla , um. diversos cong_ressos penitenciários internacionais, a .começar pelo de
amplo confronto sobre o estágio em que se encontrava a reforma n~quel~~ Frankfurt, reahzado em 1847. Isso aconteceu pelas razões enunciadas no
anos, nos diversos países europeus, e, correspondentemente, sobre a s1tuaçaa_, início, isto é, pelo desinteresse de sociedades inundadas de mão-de-obra
da discussão teófica 197 • ;pelo t:abalho. forçado, possível no sistema de Auburn, e a preferência, ainda
Ambas posições partiam do pressuposto da necessidade de evitar a < e nao adrrut1da abertamente, pela atitude terrorista que, de fato, a escolha
corrupção do contato entre as várias categorias de detidos, corrupção que; ··do sistema filadelfiano expressava, com o horror que poderia produzir no
dizia-se, estava na base do fenômeno então indicado como o mais preocupant téu em potencial a perspectiva de passar em solidão contínua - muitas vezes
da questão penal, i.e., o aumento da reincidência. Se, por um lado, os par. ·acompanhada de algum "trabalho" inútil e repetitivo, que era na realidade
tidários do sistema de Auburn, que eram a minoria 198 , denunciavam o notáv_, tortura física - cin~o, de'.' ou vinte anos de pena. As complexas razões que
aumento dos casos de loucura e suicídio observado nas penitenciária . os ten~ado explicar sao a causa da grave deterioração das condições de
administradas segundo o modelo filadelfiano do isolamento contínuo, . .ida no carcere, acompanhada do uso cada vez mais limitado do trabalho.
defensores deste último faziam suas as teorias dos quakers sobre a grand Um outro obstáculo estava ligado a considerações de ordem técnica. Na
eficácia moral da meditação e do conforto que pessoas de sentimento época em que nasce a fábrica moderna, com as suas caras e volumosas
comprovadamente sãos podiam dar aos réus, algo previs~o até nos siste~ aquinarias, com o desenvolvimento de uma organização mais estruturada
mais rígidos 1". Além disso, acusavam o sistema do sü,nc10 de ser mmt~ trabalho, somente uma política que tendesse com extrema determinação a
ansformar o cárcere em fábrica, investindo capital e por aí em diante
196 Ver supra nota 33. deria garantir a eficiência do trabalho no cárcere. '
191 Ver C. I. Petitti de Roretto, op. cit., pp. 374 ss. ~or outr? lad.o, ri.ão eram apenas os titubeios reacionários contra 0 regime
19s Petitti enumera, entre os defensores deste sistema, "os senhores Luca~ e. vida no mtenor do cárcere que desencorajavam essa opção. As próprias
Mittermayer, Béranger, madame Fry, Aubanel, Leone Faucher e Grellet Warnmy:: assas populares tmham bastante consciência da ameaça da concorrência
(p. 450), além dele mesmo. · ue o trabalho no cárcere representava para o trabalho livre, especialmente
199 Defendem a segregação contínua "Moreau-Cristophe, Aylies, Demetz, Blouet

Julius, Craword, Russel e Ducpectiaux" (p. 452). Os nomes citados nesta nota~ --xte~o. Pa:a ~~ homem, para quem o mundo sensível torna-se uma simples idéia,
anterior estão entre os maiores artífices, seja ao nível teórico, seja ao n1ve.~;· s1mp1~s 1de1as se transformam, em oposição, em seres sensíveis. As quimeras
prático.das políticas sociais européias na primeira metade do século ~I~. A conex -:P· seu cerebro assumem forma corpórea. Dentro do seu espírito, cria-se um mundo
entre confinamento, concepção penitencial ou espiritual, como se dtz1_a, da pena fantasmas palpáveis, sensíveis. É este o mistério de todas as visões re1igiosas;
-:f;
da loucura, é assim sintetizada pelo Karl Marx de La sacrafaniiglia: "( ... ) descre ·.·.- esta, ao mesmo tempo, a forma universal da loucura" (op. cit., p. 239).
com exatidão a situação em que o homem é lançado no isolamento do mundo,:_'.
97
96
numa conjuntura de desemprego elevado. O movimento operário tornou' de que J'se acabasse com a concorrência do trabalh o erorçad o em relaçao _
. .
assim, por longos anos, um dos principais obstáculos ao trabalho dos detid tr.abalho ivre, procurando assmular a exploração de • b' . .
~' 1 d 1 - que e o ~eto o pnme1ro
Nos Estados Unidos, por exemplo, talvez o único país que tenha tido exp 1uve . de exp .oraçao do segundo, vai exatamente na dir' - · d'
. eçao m icada pelo
ciências significativas de trabalho carcerário, o contínuo declínio deste, desd Ietana o par1s1ense. •A. fugaz alusão de Marx permaneceu por 1ongos anos
' . 1d
finais do século XIX até 1940, foi obra sobretudo da hostilidade de u 1ato lSO a- .o na poht1ca que o movimento operan'·o tena · desenvolv1do
.
•.
movimento operário forte e organizado. re a questao.carceraria.· Em todo caso • trata-se deu hi t • ·
ma s ona que começa
Isso também ocorreu nnma situação mais próxima daquela que está e esta terrmna.
. . .Por _ volta da metade do século XIX , em tod os os paises •
examinando, a da revolução parisiense de 1848. Uma das primeiras vitó · gueses a ms!Itmçao . carcerária se alinha ,1.á m d
a ura e pronta a cumpnr .
das massas populares foi a abolição do trabalho no cárcere, imediatam ·m seus compronussos, entre os vários momentos da . - .
't 1· t A h' • . orgamzaçao social
restabelecido depois da derrota operária""· Todavia, me parece interess 1 a 1s a. istona posterior da instituição _ d
turidade em diant • · que, este momento de
sublinhar que a reivindicação fundamental da Comuna de Paris fo . e, e mais do que qualquer outra coisa• a histo'n'a da sua
' h. ~ ·
consecução da palavra de ordem do "direito ao trabalho", por conta da q se; assim. como a istona do movimento operário organizado - . ~ f
foram abertos os ateliers nacionais, segundo a proposta de Considéran ·uma sociedade distinta. Ja az parte
Fourier. Ainda que para a consciência da época os dois proble
provavelmente não estivessem ligados, parece-me que há uma ex
correspondência do ponto de vista do proletariado entre a luta pelo direi!
que todos tenham trabalho e a luta contra o trabalho carcerário. O proletari
parisiense fazia praticamente sua a política social mercantilista de dois séc
antes, mas eliminando, obviamente, a função de freio que a empresa pú\>. ·
constituída pela casa de correção exercia sobre o trabalho livre.
Essa tendência será confirmada na posição que muitos anos mais t
Marx assumirá a respeito de uma reivindicação do programa de Gotha
Partido Social D~inocrático alemão201 • A indicação dada por Marx de lu

200Ver G. Rusche e 0.1'.irchheimer, op. cit., pp. 94-95.


201Marx comenta: "Kleinliche Forderung in einem allgemeinen Arbeiterprogra
Jedenfalls musste man klar aussprechen, dass man aus Konkurrrnzneid die gem '
Verbrecher nicht wie Vieh behandelt wissen und ihnen namentlich ihr einzi
Besserungsmittel, produktive Arbeit, nicht abschneiden will. Das war doch
Gerinste, was man von Sozialisten e1Warlen duifte" (Karl Marx, Kritik des Got
Programms, in MEW, Band 19, Berlim, 1962). As traduções são muitas vezes
tanto ambíguas. O significado, de qualquer modo, é mais ou menos o segúi~
"Mesquinha reivindicação, num programa geral operário. Em todo caso, era pi
so dizer claramente: de um lado, que não se quer, por medo da concorrên~ia,
os delinqüentes comuns sejam tratados como animais; do outro, que nãO:,
deveprivá-los do único meio para corrigir-se: o trabalho produtivo. Era o mé
que se podia esperar de socialistas". Incluímos o trecho em alemã~ devid
ambigüidade das traduções existentes. Por outro lado, para as posições
movimento operário francês no princípio do século XIX, ver Michel Foúc
Surveiller et punir, cit., pp. 291 ss.

98 99
II
A gênese da instituição carcerária na Itália
1. Os séculos XVI e XVII

Em relação à situação italiana, são notáveis as dificuldades com que se


. defronta a tentativa de reconstruir o desenvolvimento histórico da instituição
:·,-carcerária, ainda que apenas em seus aspectos essenciais, como o fizemos
:para a Inglaterra e as outras grandes monarquias nacionais. Faltam estudos e
pesquisas não somente sobre o objeto particular que se pretende tratar, mas
· mbém sobre toda a evolução socioeconômica que Ibe serve de base. Um
cios maiores obstáculos à pesquisa histórica, causa e efeito ao mesmo tempo
•;.do atraso na história da Itália, é a ausência de um poder central unificador, de
. uína monarquia nacional que, especialmente no período da gênese capitalista,
·a era do mercantilismo, revelou-se de fundamental importância nos demais
aíses europeus.
i; É ocioso observar como a falta desta unidade não apenas produziu o
~feito central de não conseguir imprimir à economia da península uma maior
Yitalidade, mas também o efeito colateral de não generalizar, como aconteceu
outros países e como é o caso da instituição carcerária, toda uma série de
eriências, idéias e iniciativas, que permaneceram patrimônio de certos
tados ou de certas regiões. O próprio fato de se falar em Itália, como se
e, é um tanto arbitrário, especialmente na matéria específica que nos
upa, na qual a homogeneidade econômica e a intervenção estatal repre-
ntam, em outros países, o pano de fundo sobre o qual se dá a possibilidade
se implantar a experiência.
"Os desenvolvimentos da produção capitalista que encontramos na In-
aterra no período da rainha Elisabeth e dos Stuart aparecem já maduros em
õca bem mais antiga nos Países Baixos e em algumas cidades italianas" 1•
Florençà, já no final do século XIII e particularmente no século XIV, se
ia desenvolvido um numeroso proletariado de trabalhadores jornaleiros,

aurice Dobb, Problemi di storia dei capitalismo, cit., p. 187 (N. do T.: edição
sileira A evolução do capitalisnio. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1987, 9ª ed.,
dução de Manuel do Rego Braga).

103
l 'd das corporaçoes - ··Arreia do processo de expulsão dos ca •
na seque . Durante todo o século XVI, o ideal econômico consiste cada vez mais no
exc u1 osda terra' Isso determmou
' . uma situação de confronto de classe n_·. brecimento do dinheiro, no desprezo da mercadoria. Os capitais são irnobi-
poneses da cidad~' Não por acaso, esse clima político era. acompanhad 'zados em grandiosas obras públicas, ou se dirigem para o campo, mas
mtenor . , . d medidas repressivas - penais - contra o àÍnbém aqui não_ mais de maneira produtiva e de estímulo a novas transfor-
geralmente por uma sdene le' . obrigação à mais estrita obediência ações, conforme ocorrera no século XIV'. O século XVI é um momento
. 1 ·ros· "Controle os sa anos, .
Jom: e1 ·. . - contem la ões, de qualquer forma de orgamzaç .ê passagem que não atinge a península. A profunda estagnação, o atraso
patrao, pr01b1çao, se'." dp ç as assembléias, que eram invariavelme Ôlítico e cultural, o isolamento, presentes na Itália seiscentesca da Contra-
dos trabalhadores e ate mesm~ as 'su " ',,4
denunciadas como 'cabalas ou complos . .
eforma, ainda estão aqui numa fase inicial.
Na fase ainda de construçao e _ d um poder estatal que caractenza e Como se verá, essa diferenciação entre a situação do século XVI e a do
- , que a custódia dos prisioneiros devedores ou a ser colo seguinte é bastante importante no que concerne aos efeitos sobre a
comunas, nao e raro 1 rporações maior
olítica social e penal dos diversos Estados italianos. A manufatura têxtil
ligados fisicamente fosse e~ercitadda dciruesttao'."d~1ant~ p~e: ~~vida, como obse
. d os seus carceres e · • taliana apresenta, na realidade, ainda no século XVI, uma certa expansão,
D bbponaerasas
mais
Itália nem Flandres, na Alemanha e na Holanda, o grande desenv··· as no século seguinte a manufatura da lã decai e a nova manufatura da seda
vi:e~to do ca;ital comercial e usurário~~~n:,;~~ t::n~~:~:rf~r:ºb:~~ fre momentos de retração e de avanço em diversas regiões9• Os fenômenos
vagabundagem e banditismo que se manifestam na Itália neste período,
ceria mais tarde na Inglate1rn, em ~ap1 , . ·~ udais os uais firma
. "al' Naltália apresençadaigreJaedospnnc1pes e .' q . irn corno em outros países europeus, além de serem originados por pro-
parei · ' ·ta aliança com a anstocrac1a comer ssos de acumulação primitiva que têm lugar nos campos, são muitas vezes
em toda república ou comuna uo~t:~~;~esenvolvimento industrial e político rados por verdadeiras massas de trabalhadores desocupados, oriundos
teve força para_bloq~ear u~ poderia ter sido alimentado alternativamente'.' mais da atividade agrícola, e sim da rnanufatureira.
processo de umficaçao) qu P · nto de outras potên
portanto, as_ mudanças. n.'.' corre~!: ~et~~~~~~~r~~:g~::iáJia no século XVI<, Amplos fenômenos de repressão à vagabundagem e à mendicância e ten-
manufature!fas desfenrao do;~. Xde desse refreamento no desenvolvime
.vas, em tudo semelhantes ao que ocorre na França e na Inglaterra, de ex-

~~~~n~~~a:-::.s:n~::s:e t~d~'. :s c~usas estruturais internas de que fala


sar das cidades essas massas de "sem trabalho" são registrados por Fanfani
, Itália meridional, nos Estados Pontificais, na Toscana, na Lombardia, no
monte, em Veneza. Mas é sobretudo no centro-norte italiano que podem ser
. , - d 1 ões sociais no campo italiano, levd4 ntados milhares de operários têxteis, metalúrgicos, trabalhadores dos arsenais
2 No que diz respeito a evoluçao as re açd 'l' e de E Sereni "Agricof(
. segue sobretu o a ana is · ' sernpregados 'º. Enquanto na Itália meridional a forca foi a única política social
em conta, aqui e no que se .' T . p 133 que sintetiza as
l " 'n Storia d'ltalla 1 unm, 1972 ' · ' ·cada ao longo de séculos 11 , nos outros Estados italianos, na passagem do
e mondo rura e ' l , ' t . Ver o referido ensaio, PP· 185 ss
expostas em outros tra.balhos fundamt~ ais. enhado pela relação de meaçã ulo XVI para o XVII, tentou-se to111ar uma série de providências bastante
que concerne em part1cul~r. ao pape e~:~~ da Itália do século XIII em di ecidas àquelas adotadas no mesmo período na Inglaterra, na Alemanha etc.,
dinâmica das relações soc1a1s no cedntro- . a uma fase muito intensa de _-, mo proibir a mendicância, internar nos hospitais, dar assistência aos incapa-
3 Sobre os cion1pi florentinos, que eram ongem M , Dobb op cit p. l
d t d do século XIX ver aunce ' , ., '::
de classes na se~un ~ me a e 1965· V Rut~mberg, Papo/o e inovilnenti popot'. _ Ibidem.
N. Rodolico, I cwmp1',Florença, ' . 157-329.
nell'Italia dei '300 e 400. Bolonha, 1971, PP· r Karl Marx II Capit ide1n, pp. 51 ~52. Argumento bastante específico, mas significativo para mos-
4 Maurice Dobb, op. cit., p. 155. Sobre estes temas, ve , este tipo de desenvolvimento produtivo pode ser encontrado no ensaio de C.
Roma, 1970, !, 1, PP· 288 ss e 3, pp. 197 ss. ni, "Archéologie de la fabrique: la diffusion des mÓulins à soie 'alla bolognese'
'Ver Maurice Dobb, op. cit., p.197. , ns les Etats Vénitiens du XVIême au XVIIIême siêcles", in Annales, 1971, p.
75.
'Ibidem, p. 193. . I {" (D llafine dei secolo XV agli im'z( Ver A. Fanfani, op. cit., pp. 113-117.
? Cf. A. Fanfani, Storia dei [avaro in ta ia a
Ibidem, p. 114.
XVIII), Milão, 1959, pp. 1-59.
104 105

..
fisa • Em Bolonha, é ~mdado em 1560 o Hospício de São Gregório, para 0
17
citados, procurar trabalho para os aptos 12 • Naturalmente, este último era
punctum dolens com o qual os desempregados se deparavam, e os numeros . na! foram conduzidos tres anos depois, em procissão, os mendigos da cidade:
pequeuos Estados italianos reuniam pouquíssimas condições para po?e~ levar E com? era grato a Deus, reunidos num dia de festa que foi 0 XVIII
cabo uma política mercantilista de investimentos em manufaturas publicas. de abnl do ano de_ MDLXIII, no pátio do Bispado, todos os pobres
O primeiro surto de desenvolvimento capitalista, registrado em Florença,·• mendig~s que entao se encontravam na Cidade, e feita uma solene
tinha comportado uma certa revisão do modo de se encarar o problema procissao, com grandes esmolas do povo, foram conduzidos em
pobreza e da mendicância, se comparado à visão medieval e plenamente r o~dem, perante a ?ivina Majestade; e assim se começou a provê-los
giosa da caridade. A atividade prática e t_eórica de Anto~ino de Fl?re~ça em ?ªº a~enas de .alimentos e vestimentas, mas também foram bem
cidade no início do século XVI, antecipa algumas atitudes mais tipicame instru1dos e treinados, tanto nas coisas de religião, como também
burgu~sas que estarão presentes na reforma luterana um século mais tard • nos bons costume~ e em div~rsos exercícios, aos quais, aqueles que
nos escritos do italiano Muratori, já no século XVIII1 3• Embora não haja na eram capazes, estivessem dispostos e inclinados, provendo-os de
obra a perspectiva de uma reforma orgânica da assistência, já está presente n .· mestres experto~ 8 e suficientes naqueles exercícios, tanto homens
a substituição do vaJor medieval da pobreza pelo valor burguês e laico quanto mulheres .
trabalho, concebido como a obrigação principal das massas populares. • Também ~m outros hospitais ou instituições, quase sempre para jovens,
sua predicação está referida a uma situação em que os hospitais para po . ma das funçoes era o aprendizado de esercitii. No entanto, a extrema raridade
1
e doentes etc. já éram uma realidade nas comunas italianas '. s casos em qu~ se fala desta instrução profissional faz pensar que ela não
Entretanto, será na primeira metade do século XVI que, correspondendo º. sse de fato pratlcada e que os hospitais italianos limitassem a sua f
. r - . -
unçao a
graves crises econômicas européias e a uma situação ital!an.a em progressi ma rac10na izaçao e centralização da velha caridade privada. Nesse tempo
processo de deterioração, começam a ser tomadas providencias mais ampl grande penúna de capitais industriosos e, portanto, de possibilidade d~
radicais. Em Veneza, por volta de 1530, tenta-se colocar pobres e vagabu abalho, desencorajava q~alquer a~ividade similar às experiências inglesas
trabalhando nos arsenais, e recebendo metade do salário habitualmente pag holandesas contemporaneas 19 • E ocioso observar como tamb =~u
. . ... . . • t
Teme-se a assistência sem trabalho, que poderia enfraquecer a pressão meiras ~xp.enencrns italianas o pobre não era em nada diferenciado do
necessidade sobre os estratos populares. Mas isso só se aplica a cidades ai •• queno cnnun.o:o: ~legislação repressiva criava os delitos da vagabunda-
prósperas e industriosas, como era o caso de Veneza naquela época. Nos E~ta .~em e da mendicancrn e, na figura do pobre, já se estigmatizava, para usar
Pontificais, o problema da mendicância, que aflui de todas as partes em~ Um termo moderno, a tendência à imoralidade, ao pequeno furto e assim por
à capital do mundo católico, constitui, mais do que qualquer outra cmsa,
problema de ordem e de controle social. Cada vez mais procura-se encerr
pobres nos hospitais há pouco criados, sob a ameaça de penas bastante seve Ibidem'. PP· 691:692. Sobre a origem dos hospitais na Itália (e na Europa) entre a
Mas passará um século antes de ser concebida a obrigação do trabalho ?de .Media tardia e o Renascimento, ver o amplo material citado nas Atas do
interior da instituição 16 • Hospitais são criados em Parma, Turim, Modena, Gên nme1ro Congresso Italiano de História Hospitalar (Reggio Emilia, 1957) e <;lo
metro ~?ngresso Europeu de História Hospitalar (Reggio Emília, 1962), sob
ponsabtltdade do Centro Italiano de História Hospitalar.
12 Trecho retirado do Prefácio aos Estatutos da Obra Mendicante de Boloríha
Ibidem, pp. 118-119. . ..
pressa em 1574. ln G. Calori, Una iniziativa sacia/e nella Bologna dei '500 ~
1J Ver B. B. Geremek, "II pauperismo nell'etá preindustriale (secoli XIV-XVIII)'t~­
'Opera Mendicanti, Bolonha, 1972, p. 17.
in Storia d'Italia, V, 1, Turim, 1973, pp. 677 ss .. Sobre a concepção da carida
G; Calori mostra como, na Bolonha da segunda metade do século XVI, um
em Lutero, ver acima pp. 47 ss. e também L. A. Muratori, PP· 115 ss.
14 B. Geremek, op. cit., pp. 678-683.
~hnuo aflu~o ~e pobres dos campos era acompanhado pela imobilização impro-
uttva de cap1ta1s, traço característico da política econôÍnica da Contra-Reforma.
15 Ibidem, pp. 685-687. caso _de B,.ol?~ha, em~ora já contasse com uma manufatura relativamente de-
16 Ibidem, pp. 689-691. nvolvtda, e t1p1co da situação italiana neste período.

106 107
diante. Distinguia-se, segundo o famoso opúsculo de Andrea Guevarre, já men- ;-::encerrados num isolamento contínuo 0 't d' ·
/,'u , . .d " . ' OI e e ia, os Jovens a sere
cionado20, o pobre boni - que aceitava, agradecido, como um dom, o inter- corr1g1 os ou, mais raramente outros 1·o vens · 'd m
·. d S 11· . , ass1st1 os, para puniçã 0
namento - do pobre mau - que, ao rebelar-se contra isso, justificava para a Segun o e m, este sena o primeiro caso c h ·d d .
21 . . . on ec1 o e isolamento 1 1 ·
autoridade a necessidade e a justeza da medida reclusiva • O menor contmuado cuia fmalidade era a correção . Certamente para esta exper·" ce u ar
.
desenvolvimento da experiência italiana pode ser atestado pelo fato de ter havido - aliás, bastante limitada numericamente ' 1enc1a
. - . ' como as outras experiênc.
um verdadeiro internamento punitivo para certos delitos (para esses mesmos aqm serao mostradas - confluíam a religi .d d . ias que
delitos, o infrator holandês ou alemão era conduzipo às casas de trabalho). Reforma, por um lado, e, por outro a sono~~~t a e revitaliza.d~ da Contra-
Tanto é assim que o mau comportamento no hospital ou a reincidência na-:-. fatureira italiana, que não conferia ~o trabalho ªeecescass.~ at1v1dade manu-
inendicância não eram punidos com o interna1nento; o infrator era, isso sim~-:f comunhão pelo menos diurna e a uma corre - ' . ~~sequentemente a uma
çao mais mat · J"
"enviado para os cárceres da Obra (do hospital) ou para os da cidade e o carrase<f central que já havia sido assumido m .t ena , aque 1e valor
' u1 os anos antes, em outros países
o castigaria 'segundo a sua culpa""22 , ou seja, com as penas tradicionais.
2. O Século XVIII .
Uma das ptimeiras experiências carcerárias modernas na Itália, que ficou,
famosa na história da penalogia, é a que Filippo Franci implantou em Floren : - Luigi Dai p ane, stor1a
A obra de · del lavo1v in ltalia, fornece-nos
em meados do século XVII, um pouco posterior, portanto, ao período q documentaçao e uma análise preciosas ara uma
estamos abordando 23 • A estrutura fundamental da instituição, que era destinad senvolvimento das políticas sociais e cri~inai~u:a ~~:!~:~os. e,nten:er de- ?
'XVIII até a era napoleônica". No sécul0 XVII o m1c10 o s:culo
aos jovens, não difere da de outros hospitais contemporâneos. Rapazes abanl . • . , supera-se a recessao do
danados eram recolhidos pela cidade, assistidos, hospedados e enviados para· d
·.. esenvo
1 . li ano Embora com lent' d-
, 1 v1mento economico , político e cu!tu ra1ita 1
trabalhar em qualquer comércio citadino. O que torna essa experiência par~ o secu o seguinte assinala sobretudo . 1 · ao,
vimento''· Um dado eviden; , na agncu tura, um novo desenvol-
ticular é a seção especial do hospício (de São Felipe Néri), construída e 'lh- . . - e: o aumento da população, que passa de 13-14
1677 ou alguns anos depois, chamada de "correcional" e destinada em ge oes para 18 milhoes no m1cio do século XIX" R
processo de acun1ulação prinzitiva que iniciad~ a e:om;-se, a~duamente,
a jovens de boas famílias cujos pais os confiavam a Franci porque tinha
dado algum indício de inadaptação ao estilo normal de vida burguesa • Est
24 e da Europa,. foi bruscamente intetToro'pido no Re~a~~i:e~~~sq~r o~tr~
seção era constituída por oito pequenas celas individuais, nas quais era guro dessa afirmação pode ser encontrado na contínua . . ~sina
ível de vida das classes subalternas em t' 1 d . dete_noraçao do
1percebido (que em muitos caso~ ain~ar '.c~ ar na eten,oraçao do salário
a e pago em especie)".
20 O tratado la 111endicità proveduta nella città di Ronia coll'Ospiz.io pubblico ... , .·.. O agrav~mento das condições de vida das grandes massas é acompanhado
de 1639, foi escrito por encomenda explícita do papa Inocêncio XII, no intuito or um amp o processo de proletarização de estratos camponeses e artesãos,
defender a prática do internamento e, como vimos, foi usadb também na Fran
para difundir a convicção da necessidade dos Hôpitaux. ln B. Geremek, op. e(
pp. 692-693. Ver Luigi Dai Pane Storia dei l . l ['
15). Milão, 1958. , avaro li! ta w ( dagli inizi dei seco/o XVIII ai
21 Cf. a argumentação de A. Guevarre, in B. Gerernek, op. cit., p. 693.

22 G. Calori, op. cit., p. 45. Ibidem, pp. 1-5.


23 V. T. Sellin, "Filippo Franci. A Precursor of Modern Penology", in Journal_

American Institute of Crinlinal La:i,v and Cri111inology, XVII (1926-1927), p.1


/~:~:~:· f.L~· Para
' ª popu aztone
t ~volu~ão
.demográfica na Italia, ver também o ensaio de A
italiana dall'inizio deli' 1 . . . ·
utazioni e tendenze", in Storia d'ltalia V 1 T . era vo gare a1 giorn1 nostri.
Sobre esta experiência, ver também M. Beltrani-Scalia, Sul governo e sulla rifar
conta que no século anterior . ' ' , unrn, 1973, p. 489. Deve-se levar
delle carceri in Italia, saggio storico e teorico. Turim, 1867, p.359; e D. Izz o incremento da população - · .
"Da Filippo Franci alia riforrna Doria (1667-1907)'', in Rassegna di studi penite_ ade do registrado no século XVIII D . nao atingiu sequer a
fico italiano é inferior d E . e qualquer maneira, o crescimento demo-
z.iari, 1956, p.293. Para a documentação e a bibliografia sobre este tema, ver ao a uropa em geral.
ensaio de T. Sellin. er Luigi Dai Pane, op. cit., pp. 84 _86 .
24 Ver T. Sellin, "Filippo Franci", cit., p. 108. Ibidem, pp. 202-217.

108 109
ue embora não tenha a mesma profundidade do que se observa contempora- ( ... )pretendia-se diminuir o salário dos operários, obrigando a mão-de-
~ea:Oente na Inglaterra e em outros países europeus, é ainda assim indicador'. obra a aceitar trabalho por qualquer preço. Nos documentos ( ... )
encontram-se verdadeiros lamentos de que os operários não querem e
de um desenvolvimento no sentido capitalista: ·
não sabem contentar-se com os favores que lhes são feitos, por isso
À constatação de que o salário real dos jornaleiros agrícolas e dos.'.
eles são acusados e exige-se que sejam entregues ao poder discricio-
operários industriais diminui entre 1700 e 1815 é associada uma outra,
nário dos patrões ( ... ) As leis dos principados italianos contra a men-
a de que 0 número desses trabalhadores aumenta naquele lapso de
. 30 dicância chegam, assim, a,ser iguais às dos outros países europeus, da
tempo, em prejuízo de outras categonas . Inglaterra à França. Colocando-as em relação com a proletarização dos
Este processo torna-se bem acelerado na segunda metade d? ~éculo XV can1poneses da qual já falan1os (... ) indicanz a tendência a submeter a
e receberá no norte da península, um impulso ainda mais dec1s1vo durante~ população camponesa, despossuída e reduzida à vagabundagem ou à
dominaçã~ francesa. Também na Itália, como já acontece~a e'." outros países, disciplina do sistema de salário. Porém, num país como a Itália, onde
as leis que liquidaram o sistema feudal, se de um lado red1stnbuem parte dos. o desenvolvimento industrial encontrava obstáculos dificilmente
latifúndios em favor de novos estratos burgueses, favorecendo a concentraçã superáveis, essas medidas teriam produzido conseqüências ·piores se
dos capitais e um maior desenvolvimento do mundo rural, do outro anu~an_i não tivessem sido usadas com urna certa moderação. Contudo, a
precária economia de subsistência do velho mundo feuda~ cr~ando um exe:c1t dificuldade para absorver a mão-de-obra e a proletarização do campo
de vagabundos. Começa então a crise que se prolongara ate o~ nossos. ~ias explicanz a existência de u1n grande nún1ero de salteadores que
que tanta importância teve sobretudo na .evolução das relaçoes so,c1ais infestavan1 as estradas, que roubavan1 nos can1pos e que oferecian1 aos
planície do rio Pó, da relação de parcena que se torna um obsta~ulo viajantes o lúgubre espetáculo dos corpos suspensos em decon1posição
33
transformações da agricultura. As comunidades camponesas, numa s1tuaç ao lo'!go dos canzinhos .
de contínua alta de preços, ficam cada vez mais endividadas, ao mes O contínuo excesso de força de trabalho em relação à demanda da indústria
tempo em que as condições previstas nos contratos tornam-s~ '."ais d~ra servirá de base, ainda que com determinadas exceções, em certos Estados e
Muitos são obrigados a trabalhar como jornaleiros, simples operanos agncol • em certos períodos, para uma política malthusiana levada a cabo pelo capital
É evidente que esta situação gera contingentes cada vez mais numerosos . italiano, sobretudo em relação às massas do sul. Primeiro a fome e a forca,
pobres e mendigos, que também não conseguem emprego nas manufatura depois, após a Unificação, a emigração serão os instrumentos com os quais
Além disso durante o século XVID foi-se desenvolvendo cada vez mais · se tentará remediar o insuficiente desenvolvimento industrial do país. E isso
· política social u:Oa atitude semelhante àquela concebida pelas teorias mercantilis . explica também por que as instituições carcerárias italianas jamais - ou quase
de outros países: a idéia de uma caridade restritiva''. Pa~sou-se a distin nunca - conhecerão um regime de trabalho industrial, um regime de trabalho
com rigor cada vez maior os pobres inábeis dos hábeis, reservando apenas produtivo: por um lado, isso retiraria trabalho dos operários livres; por outro,
primeiros urna certa assistência, e, ao n1esmo tempo, passou-~e a coi:nba · ão havia nenhuma necessidade de fazer pressão sobre o mercado de trabalho.
resolutamente a caridade privada e a mendicância, visando com isso obngar Apesar disso, no século XVIII, procurou-se utilizar produtivamente a
demais a procurar trabalho. Uma vez mais, o objetivo almejado era ter à disposiç.. mão-de-obra barata, encerrada nos hospitais e nas obras de caridade", paralela-
uma mão-de-obra barata, proletários que para sobreviver se adaptassem a qualqu
emprego. Dai Pane aponta aqui a analogia existente entre as providênci
tomadas pelos Estados italianos e as de outros países europeus, bem com "Ibidem, pp. 313-314. O itálico é meu.
originalidade da situação italiana: 4
-" Ver B. Caizzi, Storia dell'industria italiana, Turim, 1965, pp. 31-33. Para saber

-,como, no final do século XVIII, as obras de caridade forneceram trabalho aos


:mestres artesãos atTuinados e desempregados no Piemonte e na Lombardia e nos
30 Ibidem, p. 221.
'.::_entres da indústria da seda (Bolonha, Florença, Vêneto), ver Luigi Dai Pane, op.
31 Ibidem, pp. 240 ss. •cit., pp. 384 e 385 (bem como a bibliografia aí citada).
32 Ibidem, pp. 309 ss.

111
110
mente ao desenvolvimento da indústria nos Estados italianos mais avançad trazidos para este lugar e, conseqüentemente, é o remédio mais ade-
como o Piemonte e a Lombardia, onde era menor o desequilíbrio entre ofe quado, mais do que qualquer outro, para corrigi-los, e por isso
e demanda de força de trabalho. Há uma intensa atividade no campo convém dar oportunidade a que este exercício dome a ferocidade e
assistência e da correção (anterior à observada no campo carcerário propri a indolência dessas almas antes de propor-se a exigir delas uma
19
mente dito) nos Estados governados pela dinastia de Sabóia35 • Vitória Amade verdadeira conversão ( .. .)" .
II promulga, em 1717, as Instruzioni e Regale degli Ospizi Generali per; Como já havia acontecido na casa de trabalho de Amsterdã, é a política
Poveri que esclarece bastante bem o discurso anteriormente menciona ecional dirigida aos jovens que abre o caminho para uma reforma mais
sobre o conceito de caridade restritiva. A única assistência que se dará àquel pia na organização da política criminal. Todas as primeiras experiências
capazes de trabalhar é ajudá-los a encontrar trabalho; se não encontram, .. 'anas, desde a de Franci à do Hospício de S. Michele, em Roma40, nasceram
solução é emigrar. Com isso, a mendicância pode ser proscrita36 . Por iniciati o casas de correção para jovens. Por um lado, é claro que o surgimento
do mesmo príncipe, procede-se, poucos anos depois ( 1723 e 1729), à refo uma tendência recuperativa, reeducativa, foi facilitado pela convicção de
da legislação e da práxis criminais, introduzindo o princípio de legalidade e havia maiores possibilidades pedagógicas no trato com homens jovens;
de proporcionalidade da pena ao delito cometido (com muitas limitações)' r outro, não há dúvida de que, naquela época, os trabalhadores adolescentes
Na metade do século XVIII, por iniciativa do marquês de Gialione,. 'mesmo pré-adolescentes eram sempre os mais procurados pela indústria,
instituído um estabelecin1ento para jovens desordeiros 38 . É interessante O.e os preferia exatamente pelos mesmos motivos que os tomavam mais
regulamento desta Casa dei Buon Consiglio, um dos primeiros na Itália ilmente corrigíveis, mais dóceis e menos resistentes à inserção no mundo
apresentar um programa pedagógico-correcional de inspiração nitidamen trabalho e à exploração.
burguesa. "Frugalidade e trabalho" são as bases sobre as quais se organi As casas de trabalho foram acompanhadas pela fundação de escolas profis-
a instituição. Deve-se atingir, ademais, o máximo grau de isolamento, o q nais, orfanatos e toda uma série de institutos de caridade que procuram
se obtém "sobretudo na área de trabalho" graças a uma lei de absoluto silênc' rmar, desde o início, um gênero humano adaptado ao ingresso no trabalho
Isso demonstra como os famosos "sistemas" norte-americanos, q. ssalariado. A situação nas prisões propriamente ditas era péssima no final
surgiriam algumas décadas depois, foram, na realidade, produto de idéias .: século, conforme descrição de J. Howard41 . Os detidos em geral não
de uma práxis já largamente comuns em regiões econômica e socialme ltabalhavam, e sim enviados para as galeras. "O seu aspecto triste e abatido
mais desenvolvidas. .fevela a pouca atenção que lhes é dedicada" 42 .
A concepção correcional do trabalho é efetivamente de inspiração calvini Em nenhum outro Estado italiano medidas concretas para uma nova po-
e já mostra traços distintivos daquela que será a atitude pedagógica ·. . 'ca social e cDminal se acoplaram tão estreitamente a uma renovada inicia-
Iluminismo: o indivíduo é visto como uma besta selvagem, cujos instinto, va no campo do desenvolvimento econômico como na Lombardia então
deverão ser controlados através do trabalho e da obediência: ;sob dominação austríaca. No início do século XVIII, a jovem indústri~ capi-
Aparece claramente o quanto lhes é necessário este trabalho, que italista milanesa buscava sua própria afirmação "fora do regime fechado das
afasta do ócio, causa de todos os pecados dos desordeiros que s-

J5 Ver G. G. Candeloro, Storia dell'ltalia nloderna, !: Le origini del Risorgiment .


Milão, 1959, pp. 90 ss.
36 Ver Luigi Dai Pane, op. cit., pp. 309-311. Ver acima, pp. 118ss.
41
37 Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., pp. 372 e 373; A. BernabO-Silorata, verbetí ·- _ Ver J. Howard, Prison and Laz.arettos, !: The State of the Prisons in England
"Case penali'', in Digesto italiano, VI, Turim, 1891, pp. 307 ss, 6. and Wales (1792). Montclair (Nova Jérsei), 1973, p. 122.
2
38 Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., pp. 387 ss, de onde são retiradas as informaçõeS'' ':_-->4 lbiden1, p. 123. Sobre a situação carcerária dos países governados pela casa de

que se seguem. Sabóia no final do século XVIII, ver também M. Beltrani-Scalia, op. cit., pp. 402 ss.

112 1!3
corporações" 43 . A iniciativa governamental, pública, tende a assumir impor: çapaz, em todos os aspectos da vida social, de destruir as velhas concepções
tância, assim como acontecera anteriormente nos outros Estados europeu~· apresentar uma visão orgânica, e ao mesmo tempo concreta e detalhada,
o uso das massas de ociosos e vagabundos, proletários fora da lei, que n mundo e do novo modo de regular as relações sociais.
pertencem às corporações, torna-se o funcionamento normal desta polític )·A política criminal, certamente, não é a menos importante neste quadro,
"( ... ) em 1720, o governo havia solicitado, discutido e aprovado o projet opúsculo de Cesare Beccaria, Dei delitti e delle penne, será a produção
Ronzio, destinado a fazer ressurgir o comércio com a instituição de u "ternacionalmente mais famosa de toda a produçã0 do grupo organizado em
casa de trabalho que empregasse compulsoriamente os vagabundos"44 • 47
torno de Pietro Verri • Não é o caso aqui de nos determos por muito tempo
decorrer da luta contra as corporações, de um lado, e contra uma nasceu ~esta obra conhecidíssima. Basta recordar, np que tange ao que mais nos
classe operária, do outro, numerosos projetos de regulamentos pela discipli 'rtteressa, como se tentou fazer destacar muitas vezes, que os princípios
dos trabalhadores são propostos e implementados. O édito de 30 de maio amentais em matéri~ penal - orgulho do Iluminismo e da tradição liberal,
1764, inspirado em regulamentos piemonteses antedares, "impunha sever. ueles que foram acolhidos na famosa Declaração de 1791, e que Beccaria
penas a quem, com a oferta de maiores ganhos, subornava trabalhadores '!ílcidamente reúne e expõe antes de qualquer outro - estão est~eitamente
outrem, induzindo-os a violar os acordos firmados com seu próprio patrã )lgados à práxis carcerária, tal como esta se desenvolveu nos países europeus
e condenava à prisão os operários que abandonassem o patrão sem tere mais avançados nos séculos anteriores. E essa práxis abrange a organização
concluído o trabalho contratado"". , .e um· aparato normativo que sanciona taxativamente os delitos, as.penas e
Outros projetos deste tipo, determinados pelos choques que se sucedera ~S relaçõe~ entre ambos, à qual éo1Tesponde uma visão de mundo na qual
em Como entre a guarda civil e os operários em 1790, foram preparados (~to o delito quanto a pena, mediante o cálculo do tempo passado no cárcere
Bellerio e Beccaria46 • O ingresso no sistema comercial, cultural e no~ativ suscetíveis de uma rígida avaliação econômica (no sentido mais ampl;
austríaco oferece a Milão muitas possibilidades que a ausência, como se diz e est~ termo possa ter). T~mpo é dinheiro, e posto que qualquer bem que
de uma grande monarquia nacional italiana sempre lhe havia negado. A cu! nha sido afetado pelo delito possa ser avaliável economicamente numa
iluminista milanesa entra em estreitas relações com a política reformista .ciedade baseada na troca, um tempo determinado a ser descontado
imperatriz Maria Teresa e, mais tarde, no governo de José II, com o gra trabalhando) na prisão pode perfeitamente pagar a ofensa cometida".
iluminismo francês. Os anos situados entre as décadas de 1760 e 1780 Convém levar em consideração igualmente que Beccaria não era estranho
intensos na produção de novos institutos, novas idéias. O grupo que se re' movimento mais geral do seu tempo sobre política social criminal. Com
em tomo de Pietro Verri fornece à práxis reformadora do absolutismo ilumina . ção ao delito típico das classes pobres, o roubo, ele pronuncia palavras
uma espécie de Encyclopédie burguesa, que vai da economia ao direi!~, stante semelhantes àquelas enunciadas anos depois por Marat:
literatura à filosofia, da política social às ciências natuqlis. Na Lombardia,,
necessidade de renovação significa, antes de tudo, vontade e capacidade _ Os roubos cometidos sem o recurso à violência deveriam ser punidos
hegemonia burguesa. Porém, para exercitar a hegemonia, a burguesia necessl com pena pecuniária. Quem busca enriquecer-se com o alheio deve ser
empobrecido, perdendo o que é seu. Mas como este é comumente 0
delito da miséria e do desespero, o delito daquela parcela infeliz da
43C. A. Vianello, Introdução à Relaz.ionisull'industria, il conunercio humanidade à qual o direito da propriedade (direito terrível e talvez não
l'agricoltura lombardi dei '700 (aos cuidados de C. A. Vianello), Milão, 1941, necessário) não deixou nada mais do que uma crua existência; mas
XIII; em termos mais gerais, ver G. Candeloro, op. cit., pp. 78 ss.
como as penas pecuniárias aumentam o número de réus acima do de
44 C. A. Vianello, op. cit., p. XIII. delitos, e tiram o pão dos inocentes para dá-los aos criminosos, a
45 Ibideni, p. XVI. É sintomático o tipo diferente de pena que se aplica aos q
cometem o mesmo delito, dependendo de sua posição de classe. Não se -de
esquecer que é exatamente nestes anos que surgem em Milão as casas de corr,· Cesare Beccaria, Dei delitti e delle penne. Milão, 1964 (N. do T.: edição brasileira Dos
ção (ver acima). Sobre o referido édito, ver também Luigi Dai Pane, op. cit., p. 29 lttos e das penas, São Paulo, Martin Claret, 2003, tradução de Tonieri Guimaraes).
"Ver C. A. Vianello, op. cit., p. XXVI. , Ver as observações feitas na Parte I desta obra, parágrafo 5.

114 115
pena mais oportuna será aquela única espécie de escravidão que se ; e vinte para os rapazes, mas conhecendo o suplício da solidão, foram (as demaisl
pode cha1nar de justa, isto é, a escravidão, por u1n tempo, da atividade reservadas para aqueles que antes eram enviados às galeras de Veneza, com a
e da pessoa, à sociedade comum, para ressarci-la, com a própria e vantagem de que cada dia de confinamento descontava dois dias de pena"".
49
peifeita dependência, do injusto despotismo usurpado ao pacto social. Tratava-se de celas individuais, iguais às da seção correcional da Maison de
Nos mesmos anos em que Beccaria escreve essas linhas, tem lugar, caso Force de Gand, porém nelas o isolamento não era contínuo. Com efeito, nesse
muito raro na história italiana desse século (e não somente dele), a construção período - e tanto mais numa situação como a da Lombardia, onde o exército de
de dois estabelecimentos carcerários baseados nos· critérios mais modernos. desempregados, característico da Revolução Industrial, ainda não existia -, 0
A influência central é evidente: a construção em Milão da prisão e da casa de trabalho dos presos era importante e eles eram postos a trabalhar em grandes
correção coincide com a que se constrói em Gand, no Flandres austríaco50, salões comuns54• O fato de um dia passado em isolamento noturno ser computado
tão louvada por Howard, e a publicação, em 1769, de um código penal. A como '.g~al a d~is nos mostra o quanto ainda neste período o isolamento, que se
história do projeto da casa de correção mostra a lenta passagem da casa de tomara tao familiar aos homens criados na sociedade burguesa do século XIX
trabalho para pobres na direção do cárcere correcional para criminosos. Por revela-se aflitivo e insuportável para o proletariado lombardo. '
volta de 1670, enquanto se desenvolviam as experiências de Franci em Florença Ademais, não parece que o isolamento tenha sido mantido de forma
e muitos anos antes do Hospício de· S. Michele em Roma, foi proposta em rigorosa. Howard, em sua visita, afirma que se deparou com cerca de 300
Milão a construção de um albergue para pobres, ou casa de trabalho", com prisioneiros". Este estabelecimento de Milão é, sem dúvida, um momento
uma casa de correção co1no anexo. crucial de passagem na história do cárcere italiano e não é por acaso que é
Só um século depois, em evidente conexão com a passagem da Lombardia u;n produto da re~ião .econômica e culturalmente mais adiantada desse pe-
do atrasado sistema espanhol para a avançada e reformadora dominação austríaca, nodo. Na descnçao feita por Howard das diversas prisões italianas, esta é a
o projeto de matriz iluminista foi reapresentado à imperatriz Maria Teresa, e
aceito por ela (1759). Sete anos depois a casa de correção foi levada a termo''.
53
O estabelecimento era constituído por 140 celas, "vinte e cinco para as mulheres C. Cantú, Recearia e il diritto penale, Florença, 1862, p. 11.
54
O fato de ,.um dia na casa de correção representar dois dias de pena, apresenta-
do por Cantu e por Cattaneo, defensor, este último, na polêmica dos anos 40 do
49 Beccaria, op. cit., p.97 (o itálico é meu). Aqui Beccaria formula a definição prova- pri~cípio da seg:egação absoluta (ver adiante, p. 136), faz pensar que na casa já se
velmente mais clara e explícita do significado da pena detentiva na sociedade em que aphcava este pnncípio. Porém, isso está em contradição com o testemunho direto
esta surge, isto é, na sociedade burguesa clássica, baseada na livre concorrência. Ver de Howa:d: qu~, na página 121 de sua obra, refere-se a donnitory e grandes work-
também G. Rusche e O. Kirchheimer, Punish1nent and Social Strtfcture. Nova Iorque, roo1ns, d1sttngu1ndo uns do outro. Relacionando o número de celas com o número
1968,p.76. de prisioneiros - 140/300 -, pode-se duvidar que fosse possível manter o isola-
5o Ver acima, p. 79. mento mesmo d~ noite: Todavia, o isolamento poderia ser uma necessidade práti-
ca que tomava 1mposs1vel colocar em execução o projeto original. Ao contrário,
51Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., pp. 385, 386; C. M. A. Cattaneo, "Delle carcerí
dada a pr~sença de lugares destinados especificamente ao trabalho comum, pode-
(1840)", in Scritti politici, !, Florença, 1964, pp.' 292-295.
se,. ~onclu1~ q~~· mes.mo no plano das intenções, tenha-se pensado em pôr em
52 Ver, além dos outros textos citados (loc. cit.) de M. Beltrani-Scalia e de M. A. pratica o pnnc1p10 do isolamento contínuo, diurno e noturno. Grandes celas comuns
Cattaneo, Howard, op. cit., pp. 121-122, que também reproduz a planta da casa de estavam previstas, também para a noite, para as seções femininas. Esta era uma das
c9rreção. Howard afirma que, em 1778, a casa "is now building" ["está sendo características dos princípios reformadores da época, segundo os quais os crimino-
construída agora"], mas já está em funcionamento. M. Beltrani-Scalia informa, nessa sos homens e mulheres e os vagabundos eram distribuídos em áreas distintas da
mesma direção, sobre um Progetto per un Albergo dei Poveri e Casa di Correzione instituição, mas a estrutura unicelular (menos para o trabalho .em comum) estava
do conde Pietro Verrí (p. 386). Sobre a casa de Milão, ver também C. 1. C. !. Petitti di reservada apenas para os criminosos homens. Ver, por exemplo, a Maison de Force,
Roreto, "Deli a condizione atuale delle carceri e dei mezzi di miglior~rla", in Opere de G~nd, bastante parecida, como já dissemos, com a casa de Milão (cf. John Howard,
scelte, Turim, 1969, p. 370; V. Comoli-Madracci, li carcere per la società del Setteo: op. cu., pp. 145 ss; ver também a planta). ·
Ottocentç, Turim, 1974, pp. 33-34. 55
John Howard, op. cit., p. 122.
116 117
bretudo sob a direção de Pedro Leopoldo, de 1765 a 1790, a região toscana
j:onheceu um período de intensa atividade reformadora, tendo o governo do
·grão-ducado sofrido a influência da cultura iluminista européia.
Isso também se deu no campo penal. A Legislazione criminale toscana
de 1786 é considerada por muitos uma aplicação das teorias de Beccaria e
f{oward". Nela estavam abolidas a pena de morte e a tortura (cujos instru-
:inentos foram queimados em público), os delitos de lesa-majestade eram
teduzidos a casos específicos, e se afirmava claramente como finalidade da
na a correção do réu. O humanitarismo de Leopoldo se apoiava numa
açã~ social b.as.tante estática e homogênea, que parecia adequada às experi-
ntaçoes tlmrumstas. Todavia, tal "estaticidade" - por exemplo, as relações
ciais nos campos toscanos permaneciam sem modificações desde a
tradução da parceria - comportava o agravamento da crise da indústria da
,eda e a miséria e o desemprego para muitos trabalhadores artesãos. Não foi
or acaso que em 1790, coincidindo com o início da Revolução Francesa,
)ersos acontecimentos se sucederam: a partida de Pedro Leopoldo, tumultos
pulares, pnncr.palmente de artesãos e operários, a reintrodução de
naltdades especiais para os delitos contra a segurança do Estado.
No final do século XVIII, o breve sonho dos filósofos e dos monarcas
strados se chocava com as diferenças de classe que, cada vez mais, domi-
.am a sociedade do século seguinte64 • Fez-se um certo esforço para que a
rma leg1slattva fosse seguida pela reforma do sistema punitivo. Howard
screve duas prisões em Florença: o Palazzo degli Otto e as Stinche''. O
ncionamento dessas prisões é tradicional, não havendo nenhum sinal de ino-
. A fortaleza de Livomo, onde estão encerrados 132 prisioneiros, é bem
's importante". Os autores dos delitos mais graves ficam presos nas galeras,
,passo que os demais trabalham em obras públicas (a pena de morte, suprimida
1786, foi substituída por trabalhos forçados). A vida na prisão é totalmente
ulada e traz as marcas da reforma leopoldiana no campo administrativo.
ase todas as regras clássicas da instituição carcerária moderna - horários
. '
56 Essa observação também é feita por M. A. Cattaneo, op. cit., p. 295.
bidem, p. 121; M. M. Beltrani-Scalia, op. cit., p. 374; D. Palazzo, "Appunti di
57 John Howard, op. cit., pp. 121-122. .Fia del carcere", in Rassegna di Studi Penitenziari, 1967, p. 20; A. Bemabó-
58 Ibidem, pp. 120-121. orata, op. cit.
"Ibidem, p. 106. '.Ver G. Candeloro, op. cit., p. 125; ver também P. Nocito, 1 reati di Stato. Turim,
60 Ver, em geral, G. Candeloro, ·op. cit., pp. 98 ss; M. Beltrani-Scalia, op. cit., P· 3 3, pp. 202 ss. Para as relações sociais no campo, ver o ensaio já citado de E.
A. Bemabó-Silorata, op. cit., 6. _eni, Agricoltura e mondo rurale.
" M. Beltrani-Scalia, op. cit., pp. 400-401. John Howard, op. cit., p. 107.
"G. Candeloro, op. cit., pp. 111 ss .. lbidem, pp. 108-110.

118 119
difícil
d conter tantos
,.. . infelizes
~
atingidos pela fome ' que vee·m tantos1e1zes
' l'
limpeza, inspeções, uniforme, corte de cabelo etc. - já se fazem presentes. Os
condenados se dirigem ao trabalho (pelo qual são remunerados) acorrentados e na ar na abu_ndancrn. E preciso tudo fechar, tudo guardar, tudo custodiar:
em coluna de dois em dois. Trabalham na limpeza do porto ou na construção de uma porta nao se deixa impunemente aberta. Muitas leis são feitas p
dª.r g~r~ntlas
. aos que possuem em relação aos que não possuem. -Os
edifícios públicos, como o lazareto. As estatísticas reunidas por Howard sobre··
~nnc1p1os da moral,. sempre mais fortes do que as leis, concorreram,
o grão-ducado da.Toscana são sem dúvida bastante interessantes: ·
JU?to ~o~ as sa~ções penais, para cobrir de infâmia o roubo, mas os
Nos dez anos anteriores a 1765, foram presos 3.076 homens por
nuserave1s que veem tanta abundância nas casas dos ricos são violenta-
dívida, 704 por delitos leves, 210 condenados às galeras, 27 foram
mente tenta~os a roubar, para satisfazer uma necessidade que os mata.
justiçados, dos quais cinco sofreram o suplício da fogueira, que foi
As dissipaçoes do luxo, as extravagantes manifestações de opulência,
abolido pelo grão-duque Leopoldo. Nos quatro anos seguintes, nãq 71
devem, aos seus olhos, minorar a injustiça senão a infâmia do roubo
P'."'a entender o grande número de detidos que povoam as prisões napolita~
houve nenhuma pena capital. Nos dez anos que se estendem de 1769.
a 1779 foram encarcerados 3.036 devedores, 1.126 ~or 7
delitos leves
na.s, e preciso levar em conta que em 1791 esta cidade, com seus quase 500
142 condenados às galeras e dois foram justiçados . '
mil habitantes, era, de longe, a mais populosa da Itália e uma das maiores de
No reino de Nápoles, a situação carcerária espelhava uma realidade ainda.
toda

a• Europa.
12 A
A prisão principal, a Vicaria, encerrava , em 1781 , 980 pr1·-
predominantemente feudal 68 • Aqui era mais acentuada do que em qualquef
s10nei:os. . lgun.s trabalhavam - segundo a descrição de Howard -, mas a
outra parte aquela característica própria de toda a península, segundo a qual;··-
mmona ficava oc10sa. A im~ndície, o calor insuportável (que obrigava os
à paupetização de grandes massas de camponeses, que se viam impelidos para · piesos a andarem nus), as mfecções eram uma constante. Cerca de 150
o caminho da vagabundagem, do banditismo e da revolta pré-política, corres-" pri~ioneiros se <li vidiam entre três outros cárceres. Portanto, somando os
pondia uma pequeníssima acumulação de capital tanto na agricultura quanto me detidos na~ quatro prisões, chega-se a um total de 1.130 homens. Finalmente
indústria, nesta última quase inexistente. Daí deriva a impossibilidade de resolver, · no Serragho, ou casa dos pobres, estão reclusos 360 prisioneiros, empregados,
ainda que não mais do que tendencialmente, os problemas sociais mencionados; pelo menos os que são capazes, como serventes de obra. Aqui também estão
Nesse contexto, a forca continuou a dizimar, incansavelmente e durante'.·{ presos os velhos, os doentes, os mendigos, os vagabundos.
séculos, a superpopulação meridional. A intensa atividade do Iluminismo na-·
Howard tece algumas considerações interessantes sobre os hospitais e
politano69 teve de se contentar, com relação ao problema carcerário, com a
sobre os delitos de sangue na Itália. Sobre os hospitais, que são numerosos
mera denúncia da gravidade da situação70 • Quem mais se bateu contra a'
e em geral bem atendidos, observa que "os italianos tomam muito cuidado
situação de miséria do Sul italiano foi Giuseppe Maria Galanti, que promoveu .
a fundação de hospitais para pobres e demonstrou como a grande parte dos 71
G. M. Galanti, Nuova descrizione storica e geografica delle Sicilie. Nápoles,
delitos do reino de Nápoles era constituída por roubos nó campo, o delito
1787-1790, III, P?· 68-69; sob'.e a obra de Galanti, ver Luig< dai Pane, op. cit., pp.
típico dos camponeses pobres:
420.ss'.' ver t~mb~m todo o capitulo XIII da obra de Luigi Dai Pane, cit., Le questioni
(... )a origem das maiores desordens políticas deve ser attibuída àquelas· ~;~c1a!t negll scnttori ~taliani dei Set:ecento, desde a página 389.
imensas fortunas que a organização social acumulou em umas poucas ·; J~hn How~rd, op. ~ti., p. 117. A Vtcaría era um tribunal e cárcere judiciário de
mãos. Os excessos da opulência já produziram excessos da indigência Nap~l~s .. ergu1d~ no seculo XIII por Carlos I de Anjou como tribunal supremo, sede
e em proporção aos magníficos palácios edificados pelos particulares, do v1cano do. rei com funções de juiz (havia um cárcere com o mesmo nome em
o governo teve de construir vastas ptisões. Apesar disso, é sumamente Palermo). A Vicaría era sinistramente famosa entre as massas meridionais. Um
canto do ~écu~o XI?,' dizia assim: "Ergui os olhos e vi a Vicaría/ Dentro senti a
~ondenay~o minha! .. Um outro afirma: "Vi a Vicaría e perdi os sentidos" (ver nota
67 Ibidem, p. 110. tntrodutona a Canti e racconti di prigione (organizados por S. Boldini), I dischi
68 G. G. Candeloro, op. cit., pp. 136 ss. dei sole, i:s 185/~7!CL, 1969, pp. 31 ss., fonte que recomendamos para outras
69 lbiden1, p. 150. rna~1festaçoes da vtsao que o povo tem sobre o cárcere (em geral são posteriores ao
70 M. Beltrani-Scalia, op. cit., pp. 401-402; A. Bernabó-Silorata, op. cit. penado que estamos estudando).
121
120
vastas 78
d • O processo era moderado porque a meação , que s1gm · ·f·1cava a pre-
com os seus doentes, mas não tomam precauções para evitar as enfermidades.'
73 sença e numerosos
~ camponeses sem terra • J. á oco · h, ,
rr1a a seculos e tarnbem ,
Pode-se dizer que eles são mais sensíveis do que previdentes" . Mais adiante,-:' porque, no seculo XVIII, 0 processo de acumulaçã . .. _ ' .
destaca que os crimes de sangue são bastante comuns na Itália: os homicídios· . d d ·t . 1 o pnm11tva nao consegmra
am a es rmr comp elamente a organização anterior de< d'd 1
que se cometem em Roma ou em Nápoles em um ano são mais numerosos: proprietários, temerosos da formação de massas ' end1 a pe os me~II?os
do que os que se cometem na Grã-Bretanha e na Irlanda juntas. E para os , 1 '' p , . ameaça oras de operanos
agnco as . orem,· aqm~ .também o pesado end·lVI'd amento com o patrao - e
presos italianos é motivo de orgulho afirmarem que usaram a faca, mas que.
com o pres t am1sta usurar10 e os extorsivos tributos rovoc "
nunca roubaram (o que, entre outras coisas, mostra como já existia, nessa;_:;_ da fuga dos camposso. P aram o fenomeno
época, uma clara distinção entre o mundo da delinqüência e a massa de vaga..'
bundas, desempregados etc., que sobreviviam cometendo pequenos furtos). As propostas de Muratori para enfrentar o problema d . -
lt d tit d . . o paupensmo estao à
a, ura " asda u es d terronstas
. mglesas do mes , d S
mo peno o. eu ponto de partida
Um caso bem interessante é o do ducado de Modena, governado pe
família Este. Graças a um amplo estudo realizado por C. Poni, torna-se pos
e que ca a um eve v1v~r do seu, e procurar garantir a sobrevivência com o
suor.da fronte,
- enquanto, ttver forças para fazê-lo""' , posto que a esmola atraJ. os
sível relacionar as transformações socioeconômicas registradas neste perío.-_
74 porb1es
·- e nao apenas
h . d fa-los
, . perder seus filho s, " que, pessimamente
. . ,
mstrmdos na
do nessa região italiana com a temática que tratamos aqui • Embora o pequen
re 1g1ao, e e1 de1os - · os v1c1os que o ócio provoca ' e t'nc1't d 1 .
a os pe a necessidade
ducado não estivesse particularmente na vanguarda da atividade reformador
t0111am-se a roez1nhos, . após ter causado danos a mmtos, . causam danos n '
em virtude dos limites impostos por seu atraso estrutural e pela fragmentaçã
territorial, a obra do modenense Lodovico Antonio Muratori é uma das
fi nal das~ contas a s1 mesmos ' terminando a v1"d·a nas ga1eras ou num patíbulo"s2 °
mas a teb mesmo
. "pode fazer surgir · esses d esejos. nos trabalhadores"B3 no,
conscientes e eficazes no tratamento dos problemas do pauperismo e
caso, o v1amente
'd d t f' ,
- embora .
Muratori não o dig . - ,
a -, em que as cond1çoes de
delito". Como para os iluministas lombardos ou napolitanos, para ele, tra
VI a e~ es icassem abruxo ou equivalentes às dos mendigos.
da questão da caridade e dos pobres e da maneira de dar solução a es
questões não é outra coisa senão um aspecto de uma luta antifeudal mai •. - ~~rtmdo desses press~postos, para resolver o problema deve-se procurar
complexa76 . Muratori destaca o progressivo empobrecimento dos camp ~ao aumentar a populaçao de preguiçosos, ociosos e de quem sabe se valer
mas não o relaciona ao pauperismo urbano, o qual, segundo ele, é alimenta o manto.da pobreza( ... ) pelo contrário, a sábia economia das esmolas deve
tender
. . a fazer rndustnosos e amantes da fad'1ga os mesmos pobrezmhos. ea
pelo excesso de esmolas77 •
corr1g1r ou. melhorar
. . _ os seus costumes"B4 qu d , al .
' 0 e po era ser cançado mediante
O fato é que também em Modena se havia verificado, no começo d·
.século XVI, um modesto processo de acumulação primitiva nos camp a mst1tmç~o dos ,h~spícios públicos para pobres. Deve-se recolher em
por meio da qual camponeses meeiros ou pequenos proprietários foram sen um.ou mais ed1f1c1os, sempre com a devida separação entre homens e
transformados em proletários (jornaleiros, diaristas) ou vagabundos e as p mulheres, todo~ os pobrezinhos que mendigam ou poderiam estar
quenas propriedades foram sendo reunidas em concentrações fundiárias m · mendigando o pao para s1 mesmos, ministrar a cada um deles o alimen-
to e a roupa n:c~ssários, porém frugais, e obrigar, a todos que pu-
derem, o exerc1c10 das suas forças em trabalhos contínuos, e isentar
73John Howard, op. cit., p. 290.
74Ver C. Poni, "Aspetti e problemi dell'agricoltura modenense dall'età delle rifor-
alle fine della restaurazione", in Aspetti e problenli del Risorgilnento a Moden Ibidem, p. 131.
Modena, 1964, p. 123. Ibidem
. ' p. 170 (o mesmo aconteceu durante boa parte do século XIX)
75 L. A. Muratori, "Della caritá cristiana in quanto essa ê amare dei prossi Ibidem, p. 134. ·
(1723), in Opere, I, Milão-Napóles, 1964. G. Candeloro sublinha a grande con
L. A. Muratori, op. cit., p. 397.
buição dada por L. A. Muratori à vida· cultural e política do ducado de Módena (e
Ibidem, p. 397.
op. cit., p.110-111).
Ibidem, p. 398.
76 C. Poni, "Aspetti e problemi dell'ag~icoltura modense", pp. 123 ss ..
Ibidem, p. 401.
77 Ibidem, p. 130.
123
122
l .d de muito avançada ou pela impotência . deli a città di Modena ( 1787), obra que "por muito tempo foi a delícia dos
das fadigas apenas quem, pe a id_a - d v1·ver senão das fadigas alheias
- tá em con 1çoes e escritores libertários e liberais" 89 , onde mais claramente se criticam os
do seu corpo, nao ~·
es alparatoosos d pedi"ntes isso sim parece um
' subsídios imoderados como "a causa principal da misé1ia constante. Se estes
(... ) Um ho.spicio ger d tabelecer perfeita simetria e concórdia
remédio umversal, capaz e, ~o com as do sábio governo político. E
faltassem de fato, os pobres tedam de sacudira indolência, emigrar ou perecer''9iJ.
das leis do santo amor ao pro. ar'i·o reunir num único lugar os Nos Estados Pontificais, praticamente todas as prisões estão agrupadas
· ·á não sena necess em Roma, à exceção das galeras que se encontram em Civitavecchia91 . Roma,
com esse . sistema J
d do se ou even o-se mui· to bem deixar nas suas
d d
pobrezinhos, po en - míl. _ao qui· sessem partir, oferecendo a segunda cidade italiana em população, era caracteiizada pela contradição
f ssemfa rnoun .
casas aque1es que ive ;d d , J·usta algum socorro discreto entre o seu cosmopolitismo decorrente da condição de capital do mundo ca-
b queasuanecesst a ee • .,., . tólico e a grave situação econômica da cidade propriamente dita e do seu entorno,
a estes, se se sa e .b. _ d drr· além do que porexpenenc1a,
, comapr01 içao epe , ' , .
e regula o, pare~
d que fazia dela um centro de grande consumo, mas de pouquíssima produção.
endo-se de ver-se encerrados num hosp1c10,
sabe-se que mmtos, aborrec b nhar a comida com seu trabalho, Por conseguinte, o número de pobres e mendigos era bastante elevado.
Ih ir-se com Deus, ou em ga , l .-
esco em . . . . , à vontade do que naquela honorave przsao, Essa situação, embora menos grave, era observada também em outras
em estado de hberdade, mais b d aridade a não ter que pensar partes dos Estados Pontificais. O processo de proletarização dos camponeses
ajudando assim aos dgetores da o ra e e
e dos meeiros, juntamente com a decadência da indústria de seda bolonhesa,
em prestar-lhes ajuda . - d
que fora, no passado, a mais famosa da Europa, enchiam a cidade de Bolonha
d na .á descrita de abundante mao- e-
Numa situação como a de Mo e , J efei·t~ do internamento tenha com um número altíssimo de mendigos, enquanto as legações pontifícias
. entende-se como o
obra mas capita1 escasso, . . - b xtedor do que a função de estavam cada vez mais infestadas por bandidos". O banditismo, aliás, estava
. . . d . de i ntim1daçao so re o e .
u1n s1gn1f1ca o mais . que "o aborrecimento de mais ou menos difundido em todos as regiões sujeitas à dominação papal,
desfrutar o trabalho interno; aqm,~alta pouceogupraradªo por um ideal house of embora não tanto quanto no Mezzogiorno (sul da Itália). Esta situação explica
hospíc10 seia ass
ver-se encerrad os num .,,., . "ir-secomDeus"éescolher. por que, desde o século XVI, como já se viu, o problema da mendicância e do
·1 . 1-" Ecomoconsequenciao internamento dos pobres é ciclicamente enfrentado pelas autoridades pontifícias 93•
terror de esti o mg es · Ih d casos aceitar algum trabalho.
. ·defomeou nome or os ' .
entre emigrar, morrei . ' . ano de terrível cares!Ja, as Um novo esforço foi feito no final do século XVII, com a fundação de um
. d" - s Só muito depms, em 1764 , -
nas p10res con içoe . .d o início da construçao de um hospício geral de pobres, que develia reunir todas as diversas instituições
- M t . foram segui as, com , ' .
sugestoes de ura on res" A codificação penal modenense tambem ':?1 . existentes em Roma para pobres, jovens, mulheres etc. A construção desse
grande albergue para pob . ·ss Id,. as bastante semelhantes serao hospício só será completada inteiramente um século depois". Contudo, a seção
. . d na obra de M uraton . ei . . .•
largamente msplfa a . R" . m Riforma degli institutr pn mais famosa do Hospício de S. Michele e a mais interessante para esta in-
retomadas mais tarde por Lodovico icci, e

89
Luigi Dai Pane, op. cit., p. 3_12.
KS /bu· /e111, PP· 402-403·' o itálico de honorável prisão é meu.
"'Ibidem, p. 312.
"'Veracima, p. 63. . modenense" cit pp.140-141. · 91
. " · roblemi dell'agnco1tura ' ·· Sobre a situação dos Estados Pontificais, ver G. Candeloro, op. cit., pp. 125 ss.;
s1 Ver C. Pon1, Aspett1 e p . . - d Obra Pia Geral dos Pobres, a quem se :
" mo a const1tu1çao e uma 1 · · -o da sobre as galeras de Civitavecchia, ver John Howard, op. cit., pp. 115-116; este
Nesse texto se ve co . ·r conternporaneamente a a1c1zaça
autor trata de Bolonha, na p. 107, e das prisões e hospitais de Roma, pp. 111-115.
confiara a construção do albergue, s1gn1 tlca 'á t' os Ver também a obra de L. A.--. 92
fi de extensos bens ec es1 s te , 693 ss Ver G. Candeloro, op. cit., pp. 131 ss.
caridade e o con isco . p 398. B Geremek, op. cit., PP· .· 93
. este tema Dal Pane, op. 1 b' Ver acima, p. 100.
Muratori, re l allvoa
c1 ., · • ·
' . . d ( ) Roma 1933; tam em
1742 94
ss Ver L. A. Muratori, Dei dijetti della giunspr~ enza . dif'ef;i delta ,giurisprudenza'.- As datas dos dois motu próprio são 1693 e 1790. Ver T. Sellin, "The House of
1 tt 1 di L A Muraton sopra 1 '.1' ~d' .. Correction for Boys in the Hospice of Saint Michel in Rome", in Journal of
B. Veratti, Intorno a tra a o . .~ . M dena 1859. O novo co tgo
.
nguar d ato con1 e uno dei fonti dei Cod1ce estense. o ' American Institute ofCrimina/ Law and Criminology, XX (1929-1930), p. 533; B.
é de 1771. Geremek, op. cit., p. 691.

124 125
vestigação é a casa de correção para jovens, construída no interior de proj eoifício: "Papa Clemente XI. Para a correção e a instrução de jovens perdidos,
mais vasto, com base no motu próprio de Clemente XI, datado de 170395 • ·a fim de que aqueles que eram um peso tornem-se úteis ao Estado" e "Pouc~
De acordo com este projeto, o Papa ordenou que todos os jovens cô :. vale oprimir os malvados com a pena se eles não podem se tornar bons com
menos de 20 anos que fossem condenados à prisão cumprissem a pena a disciplina"". Sellin observa, repetindo a opinião de Morichini, que a casa
nova instituição. O objetivo era retirá-los do ambiente de corrupção que reina de correção de S. Michele é um momento de passagem do modelo da cela e
no cárcere. A casa de correção também devia servir para aqueles jovens q da punição canônica para a pena laica99 •
fossem confiados por seus pais às autoridades, a fim de serem corrigidos. Diversos autores levantaram a hipótese de que o cárcere romano tenha
estabelecimento, idealizado pelo arquiteto Cario Fontana, era aquilo que se influenciado os modelos posteriores, o que pode efetivamente ter acontecido.
depois definido como um bloco celular: retangular, com 70 celas dispost Na verdade, o surgimento de fenômenos bastante semelhantes em realidades
em três planos, voltadas para um pátio interior96 . bem distantes, umas das, outras parece antes uma resposta similar, dada a
A parte comum era o lugar do trabalho, que consistia em fiar o algodão'. problemas analogos 100 • E oportuno, porém, assinalar a dureza da disciplina
tecê-lo, estando os rapazes sempre ligados por correntes ao banco em q ' na instituição de S. Michele in Ripa. Por meio destas experiências da primeira
ficavam sentados, onde permaneciam, com brevíssimas interrupções, pra · metade do século XVIII - voltadas em geral para jovens, tanto delinqüentes
camente de manhã até de noite. Prédicas, cantos e severas punições ( como simplesmente indisciplinados - ocorre de forma mais decisiva a
geral o açoite) completavam a jornada de trabalho. Um grande cartaz, c passagem da casa de trabalho para pobres, típica do período mercantilista e
uma única palavra - silentium - dominava a sala de trabalho. Os própri de c~racterísticas mais claramente produtivas, ao cárcere propriamente dito
corrigendi deviam pagar as suas despesas. Segundo visitantes do final do fmal do Setecentos e do século seguinte, cuja preocupação terrorista, de
século XVIII, o isolamento daqueles que não trabalhavam parecia s natureza cada vez mais "ideológica", é imprimir nos corpos e nas mentes
contínuo97 • Esse fato, que retoma a experiência de Franci, é bem interessan <. das classes subalternas a marca a fogo da obediência disciplinada. Esse
uma vez que acaba por distinguir uma pressão sobre a vontade, m torna-se o único objetivo da punição, a única preocupação dos seus
ideológica e interior para os corrigendi, que eram em geral jovens aristocr~ idealizadores e administradores.
ou burgueses, enquanto a regra do trabalho era aplicada a quem tinha sofri
3. Do período napoleônico à situação pré-Unificação
condenação judiciália, ou seja, os jovens proletários.
O período q.ue se estende da Revolução Francesa à Restauração é
Mais tarde, em 1735, uma casa de correção análoga foi implantada p
particularmente importante para os objetivos desta pesquisa. E isso se dá por
jovens mulheres criminosas e prostitutas. Quando Howard visitou a casa
uma dupla ordem de razões: seja pelas transformações sociais que tiveram
cmTeção, em 1778, ficou bastante impressionado, num sentido favoráve
então lugar na sociedade italiana, seja pela marca já abertamente burguesa
Ele se refere a duas inscrições que, em latim, dominavam os muros d
que este desenvolvimento ganhou em muitas regiões da Itália. Não é o caso
de se promover aqui um exame detalhado das diferentes situações; porém,
de q~alquer ~odo, é preciso levar em conta, uma vez mais, que, apesar da
95 .Ver T. Sellin, ·~The House of Correction'', cit., pp. 539 ss.; ver também funçao meqmvocamente homogeneizadora da dominação francesa, a existência
Beltrani-Scalia, op. cit., pp. 384 ss.; C. !. Petitti di Roreto, op. cit., p. 368; M. de sociedades econômica e politicamente bastante distintas entre si produziu
Cattaneo, op. cit., p. 293; D. Jzzo, op. cit., pp. 290, 298; G. Minozzi, "li trattame respostas diferenciadas às várias medidas que foram tomadas.
dei detenuto nella storia deli' edilizia carceraria italiana", in Rassegna di st
penitenziari, 1958, !, p. 696; Palazzo, op. cit., p. 20; e finalmente John Howard,
cit., pp. 113-114 (com plano de elevação). Para mais referências bibliográficas. V
98
o texto de T. Sellin. Merece ainda ser citada a obra de C. L. Morichini, Degli istitu John Howard, op. cit., p. 114. Howard adotou a segunda como lema do seu
di pubblica carità ed istruzione priniaria e delle prigioni di Ro1na, Roma, 184,,, Prisons and Lazarettos.
99
96 Ver T. Sellin, "The House of Correction", cit., ilustrações das pp. 548-549. T. Sellin, "The House of Correction", cit., p. 550.
00
97
Ibidem, p. 547. ' Ibidem, pp. 552-553.

126 127
O período que vai de 1795 a 1814 corresponde, antes de tudo, a u so fenômeno do banditismo, alimentado pelos desertores e pelos ex-
tentativa das camadas burguesas italianas de tomar em suas mãos, comi tiados, à presença de bandos de ociosos e vagabundos, que exprimiam,
apoio da França, o governo da península, coisa que, grosso modo, foi efi és de toda uma série de delitos típicos, tanto a necessidade de sobreviver
tivamente alcançada, ainda que com maior ou menor necessidade de alianç · to a vontade de rebelar-se contra aquele estado de coisas.
com as antigas forças feudais ou aristocráticas, e com grandes diferenç
O banditismo seguia seus ciclos de desenvolvimento e decadência, que
entre o norte e o sul da Itália wi. Isso significou, sobretudo, a multiplicação,
\\pendiam sobretudo das colheitas e portanto da fome que podia ocorrer num
em muitos casos a agudização de processos e fenômenos que já estavam e ·
rminado ano, e também da situação político-militar em geral, da repressão à
marcha durante o século XVIII. Colocou-se em prática uma imponen;t
'.C{üal era submetidos etc. Não obstante, já vimos que isso era, há séculos, uma
legislação que visava, de um lado, subverter o poder econômico e políti
.~onstante da situação do sul da Itália, e exprimia essenciahnente uma autonomia
feudal e eclesiástico e, de outro, lançar as bases e reforçar o novo Esta
ií>uma tradição camponesas, em relações complexas com os outros agentes
burguês, construído em cima do modelo do Estado francês napoleónico.
iais e suas ideologias. De fato, E. J. Hobsbawn observou, em Bandidos 1D4,
As leis destruidoras do sistema feudal no sul da península wz, a introduç mo aquilo que ele define como banditismo social tende a ser produzido, em
do serviço militar obrigatório e de um pesado sistema fiscal, baseado sobretu ~qualquer sociedade, no momento em que ocorre aquele processo - longo e
nos iinpostos indiretos, foram, entre outros, os elementos que levaram mai doloroso, para defini-lo com as palavras de Marx - que é o parto da nova
confusão ao campo, alinhando, muitas vezes, os camponeses com as força ciedade do capital, egressa da sociedade camponesa w5 , Assim, é fácil entender
reacionáriasw3 • Estas, bastante ligadas ideologicamente ao poder eclesiástic or que a rebelião do bandido - objetivamente uma rebelião de classe, que é
viram-se, em particular no norte, atacadas sob todos os pontos de vist 'J;\lOVida e se move contra os velhos patrões feudais, mas também contra os
pelas transformações em curso. Os roubos e as devastações levadas a cab novos patrões burgueses (os quais, na Itália meridional, são muitas vezes a
pelas tropas francesas e, em suas breves aparições, também pelas trop _ mesma coisa) - se coloca a serviço das forças mais reacionárias, que sabem
austríacas, a nova e pesadíssima obrigação do serviço militar, o exagero manipular a única estrutura ideológica que o bandido sente como sua: a religiosa.
toda uma série de tributos, tudo isso teve como efeito apressar o process Isso aconteceu com os bandoleiros napolitanos, com os bandos do cardeal Ruffo,
de acumulação primitiva no campo, que chegou ao auge na metade do sécul · m 1799, e acontecerá, em parte, com a guerrilha camponesa pós-Unificação. Po-
XIX, especialmente após a Unificação. Uma grandiosa redistribuição do capit ém, isso ta1nbém acontece porque as massas camponesas não conseguem
e da força de trabalho estava em curso, quer pressionando por meio do encontrar, até muitos anos depois da Unificação, forças políticas democrático-
instrumento fiscal e do endividamento, quer mediante o confisco dos fund revolucionárias106 capazes de fazer eco a seus verdadeiros interesses.
que os camponeses, aniquilados, já não eram mais capazes de conduzir.
Ao mesmo tempo, começava-se a colocar o problema das transformaçõé
fundiárias, do alargamento do modo de produção capitalistas. Lançavam-s . ""Ver E. J. Hobsbawn, I banditi, Turim, 1971 (N. do T.: edição brasileira. Bandidos.
assim, as bases dos futuros desenvolvimentos produtivos e também da , , Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1975). O subtítulo desta obra é Il banditismo
possibilidades de resgate que os trabalhadores agrícolas, partindo de su _sociale nell'età moderna [O banditisn10 social na idade n1oderna].
5
situação de expropriados, poderiam chegar a obter. Por enquanto, toda vi , :. !0 lbiden1, pp. II ss.
106
os campos da planície do Pó estavam sujeitos a freqüentes carestias, a unr Ver, para esta tese, Antonio Gramsci, Quademi dai cárcere, III, Turim, 1975, pp.
2010-2054 (N. do T.: edição brasileira Cadernos do cárcere, 6 vols, edição de Carlos
, Nelson Coutinho, com a colaboração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio
101 G. G. Candeloro, op. cit., cap. III e IV.
Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, I999-2002). A análise de Gramsci é
1o2 /bidenz, pp. 329 ss.
asperamente criticada por R. Romeo no ensaio Lo sviluppo dei capitalismo in Italia,
ioJ Basta recordar o famoso ensaio de V. Cuoco sobre o fracasso da revolução, segunda parte do seu livro Risorgimento e capitalismo, Bari, 1959. Aí nasceu uma
jacobina napolitana de 1799 e sobre o uso que, em tal ocasião, foi dado aos_'-\ /,polêmica cujas linhas fundamentais podem ser seguidas na antologia organizada por
"lazzaroni". Ver V. Cuoco, Saggio storico sulla rivoluzione di Napoli dei 1799. :: A. Caracciolo, La fonnazione dell'Italia industria/e, Bari, I973, em particular nos
Bari, 1929; G. G. Candeloro, op. cit., p. 273. ensaios de A. Caracciolo, Luigi Dai Pane e D. Tosi. O tema de fundo da polêmica co-
128 129
Não se trata de discutir aqui que possibilidades existiam para que isso . . constantes as conclamações das autoridades napoleônicas aos desertor
acontecesse num quadro de revolução burguesa, ou se não seria mais funcion •.r
.·n
• .·. rometendo-lhe
para a burguesia uma política de impiedosa destruição econômica, cultural ec·. . . com freqüência o perdão, o que demonstra a sua imp ot'encia
e.s.
,;.~fraqueza ao 1idar com o fenômeno'''· Além disso, os ataques dos bandidos
até mesmo física dos estratos camponeses 1º7 . Basta observar, porém, como~_.:·~ ·'são, quase sempre, calculados de forma bastante seletiva: só se rouba quem
especialmente na Itália setentrional, as massas camponesas e também ai! :.tem, nunca o pobre. Porém, isso não é tão óbvio, uma vez que em muitos
forças mais avançadas das cidades ·são derrotadas pela aliança entre os gran ·· . ;_.episódios aparece claramente como a raiva não tem um valor puramente
propriet;\rios de terras e a burguesia moderada, sancionada pelo process •.econômico, sendo acompanhada de atos de zombaria, desprezo e também
autoritário e anti-jacobino que é característico da operação napoleônica, .âe grande crueldade, mas sempre dirigidos contra quem possui.
que corresponde à estabilização do poder burguês e à emergência, com ,
••·• O mesmo acontece quando se considera uma série de delitos, que muitas
contradição primária, da luta entre burguesia e proletariado. Tanto é ass' ·
xezes têm valor de advertência ou de chantagem, como o incêndio dos
que os reacionários, particularmente o clero, limitam-se a utilizar a raiv!:l
~tábulos, a morte do gado, a poda das vinhas ou das árvores frutíferas, os
camponesa, no norte pelo menos, sem nunca tomar sua direção política, at~;
quais revelam a vontade de atacar onde se sabe que o coração do patrão
que, nos anos 1880 e 1890, a posterior transformação capitalista da planíc'
gotej~ sangue, na sua propri~dade, e onde, antes da usurpação e da anulação
do Pó produzirá a hegemonia socialista nas massas de trabalhadores e meeiros'
dos direitos do povo pela lei do patrão, se podia cortar livremente a lenha
. Que o banditismo expressa uma luta voltada esseucialmente contra colher espigas e frutos, apascentar os animais etc. Também é sintomático ~
burguesia e contra os processos de acumulação, isso é evidente, por exemplo\ ,triste fim dado a quem atua como espião ou se alia, de uma maneira ou de
quando se examina a situação da Romanha. Esta região, durante todo o períod· putra, às autoridades contra os bandidos.
da dominação francesa, foi infestada por um número elevadíssimo de ban No saboroso texto de Manzoni, os documentos registram dezenas e dezenas
<lidos. Este banditismo, diante da dominação francesa e dos saques, apresen .de furtos, confrontos, prisões, execuções, rapinas, mutilações e fatos grotescos
um forte conteúdo patriótico e municipalista, que muitas vezes se junt .e irônicos. Eles não fazem distinção entre os furtos dos camponeses pobres,
objetivamente, a movimentos urbanos e democráticos' 09 • Ademais, dirige-s. _'.-qqe nos invernos mais rigorosos mal conseguem sobreviver, dos cometidos por
contra as instituições do novo poder burguês, em particular contra o serviç · ,:_:-?esocupados que "vivem no ócio" e "na vagabundagem" pelos campos, e ainda
militar que arranca os camponeses da terra,. muitas vezes arruinando-os, ,. ros perpetrados por recrutas que desertaram, dos furtos dos bandidos
representando uma causa a mais do abandono dos campos"º. Neste período ;Propriamente ditos, que, em geral, acabam sendo mortos em algum confronto.
•E essa falta de distinção carrega consigo, obviamente, uma grande solidariedade
g~ classe entre as várias categorias. Os bandidos são cuidados, alojados,
incide substancialmente com a questão da acumulação prim,itiva na Itália, sob
·• ahm~ntados pdos camponeses, a quem eles pagam. É por esse motivo que os
tudo no que diz respeito ao período pós-unificação. Só após a Unificação qlle
elementos fundamentais da acumulação primitiva na Itália, juntando-se ao m ,.- .•bandidos são malcançáveis, é por isso que eles são senhores, por muitos anos
mento da Revolução industrial de da "decolagem" econômica, conquistarão pi_~ ;,pom? .diz Pascoli, "das estradas e das florestas'', ligados por um sólido cordã~
no relevo. E o mesmo se passa com Telação ao problema central desta pesquisa( mb1hcal a suas comunidades e ao baixo clero, contra os senhores, os ')acobinos"
ou seja, a formação do proletariado de fábrica e a questão carcerária. e
.,ºs "franceses''. A demonstração mais clara e evidente- basta indicá-la, pois
101
Este é um dos pontos de discussão do debate ao qual se alude na nota anteri_ó_ a se escreveu muito sobre o tema 112 - é o mito construído pelas classes
1os Cf. E. Sereni, Il capitalismo nelle campagne. Turim, 1948, pp. 355 ss; Sereni
um dos maiores artífices da elaboração político-teórica inspirada nos apontame
,:_ui O ~u~ se ~eg~e no texto a respeito do banditismo na Romanha sob a dominação
tos de Gramsci.
?apoleon1ca e retirado de G. Manzoni, Briganti in Ron1agna, 1800·1848, Ravenna,
109 Um exemplo é o movimento de Bolonha, ocorrido em 1802. Ver, a esse respeit
ptegrado, em grande parte, por reprodução de documentos. Ver aqui, sobre 0 pro-
O. O. Candeloro, op. cit., p. 307. Para a conquista e a organização do pod ma dos desertores, as circulares e os avisos reproduzidos às pp. 173 e ss.
napoleônico na Itália setentrional, ver neste texto as pp. 289-322.
Esta é a tese de Hobsbawm (cf. p. 123: "O bandido como símbolo"). Basta pensar no

1
Ibidem, p. 318. enso floresc1mento de material folclórico ao qual a figura do bandido social deu origem.
130
131
baltemas em tomo do bandido, que é realmente o seu herói, o seurepres_entante, defesa da propriedade - nas formas em que, naquele momento, a propriedade
su • . t
uele que tem coragem de resgatar, através da violenc1a contra o pa rao,. anos era atacada, e, por conseguinte, sobretudo a propriedade agrária - e da
aq d" . t- t
e anos de submissão, sofrimento e miséria. No ban 1tlsmo es ao a ma nz e a autoridade legal. Porém as penas, e entre elas a prisão, sob as duas formas
obscura memória das modernas guerrilhas populares. (casa de força e Casa de trabalho), são estendidas aos vagabundos, desde
Frente a estes fenômenos e, melhor dizendo, na sua raiz, produz-se a 118
1802 . Por outro lado, o interesse pela reforma carcerária, que já era bastante
lenta e gradual organização do Estado moderno. As autoridades centrai~ _do nítido no período do Iluminismo, teve uma notável aceleração com o grande
reino da Itália sempre procuraram utilizaras párocos como agentes da _pohl!ca fennento 1naterial e moral que a revolução burguesa trouxe consigo.
de vigilância e controle 1"- Surgem então as primeiras medidas policiais, a O princípio da pena de detenção e do trabalho no cárcere, embora já
obrigação de registro para quem recebe hóspedes 11 \ ª.proibição de_ usar estivesse presente, como se viu, em grande parte dos Estados italianos do
annas, salvo com licença especial 115 , o censo demograf1co, a ~~ngaçao de século XVIII, era uniformemente difundido pelas tropas francesas em todo
informar os casos de morte violenta e as causas da m?rte . Ten~a-se território nacional e passava a integrar a prática e o costume dos italianos (ao
desencorajar 0 banditismo, aterrorizando aqueles que dão asilo_aos band1d~s, menos como princípio). Mais urna vez, corno já se viu em outros países da
inventam-se, em.suma, todas as formas clássicas de prevençao e repressao Europa e precedentemente também na Itália, as relações sociais próprias do
que se tornarão patrimônio da práxis policial de todos os Estados burgueses. modo de produção capitalista traziam consigo o problema e a sua solução
É nesse quadro, nas regiões da Itália submetidas à domina7ão franc~s~ - (do ponto de vista destas relações), criavam, ao mesmo tempo, o delito e a
e são quase todas-, que, em 1811, se impõe, o último entre _vanos, o codigo pena, os vagabundos, os bandidos, os desertores, e o trabalho nas casas de
francês de 1810111. Já se viu como este código tinha em mira, sobretudo, a correção, os trabalhos públicos forçados, os pelotões de execução.
O período que se seguiu à derrota francesa não comprometeu, profun-
damente, após urna pausa, o processo ÍITesistível que já estava em movimento.
1n Ver, a esse respeito, os numerosos documentos compilados por Manzoni, ºi::· Quanto muito solidificou o status quo, especialmente na Itália, entre as velhas
cit., pp. 165 ss. A insistência particular derivava ~ambém, natu.rali_nente, ,da ambt- forças aristocráticas e a burguesia, que esta última colocou cada vez mais
güidade do comportamento, especialmente do baixo clero, mais ligado a popula~
sob seu controle, até lograr, sob a égide da moderação e do compromisso, a
ção, com a autoridade napoleônica.
primeira etapa em direção ao desenvolvimento capitalista italiano, a conse-
114 Ver G. Manzoni, op. cit., p. 94, aviso de 7 de junho de 1805.
cução da unificação nacional. Ainda no século XIX, as características dos
'"Ibidem, p. 119, decreto de 21 de novembro de 1806. diversos Estados não mudaram muito em relação à situação pré-revolucio-
""Ibidem, pp. 153 e 194. nária, exceção feita, talvez, ao Piemonte, que pôde finalmente encarregar-se
111 Vale a pena reproduzir a carta com a qual o prefeito do departamento dó
do processo de unificação. E como em outros campos, também no
Rubicão dava notícia sobre o código aos párocos: "( ... ) Agradou~ª? nosso s~.,. penitenciário o Piemonte tornou-se o Estado-guia e no próprio ordenamento
pientíssimo Soberano dar ao seu povo do ~eino ~e Itália ~~ Cod1go. de Le;s dos cárceres preparou o futuro ordenamento italiano.
Penais. Todos os párocos deveriam ter este livro tao necessano par~ a instruçao
dos seus paroquianos. Conforme ao seu santo ministério que nos dias de festat
após a explicação do Evangelho que ilumina os homens s?bre as o~en~as ~ara,_\ te1n do mal que não é intrinsecamente tal, mas o é relativamente à ordem social,
com Deus e para com o próximo e sobre as penas eternas, sejam lambem Ilumina- está em razão direta da nossa educação e dos nossos costumes. Ora, as classes
dos sobre os delitos e sobre as penas temporais. inferiores do povo não conhecem, muitas vezes, este gênero de contravenções
Os senhores párocos são portanto convidados a explicar, do altar, com ~ue penas,., O~ senão pelas penas com as quais são ameaçadas, em caso que as cometam (... )
Código ameaça, para que cada um seja avisado para não cometer_ os delitos que dao_< Vigiarei aqueles que, obsequiosos às minhas insinuações, quererão distinguir-se
origem àquelas penas. É necessário, sobretudo, que a popu~aç~o conheça bem ~ pelo seu zelo, como observarei e levarei ao conhecimento do Governo aqueles que,
livro IV, que contém as contravenções e. as pen~s d: ordem ~u~hca. Po~~u~ q~and porventura, não se preocuparem com um assunto tão importante" (Manzoni, op. cit.,
se trata de crime, ou de um delito, o sentimento intenor da propna consci~n~~a tns . pp.196-197).
0 hon1em da gravidade do mal e a voz da natureza o chama a abster-se. A ideia que s_ '"
118
Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., pp. 412 ss.; A. Bemabõ-Silorata, op. cit.
132 133
Com o édito de março de 1814, Vitória Emanuel!, rei dos Estados sardoi" havia
. . tornado presidente do Conselho de Mini·stros . As cr1't.1cas versavam
determinou o retorno puro e simples à situação anterior à Revoluçã pnncipal~ente sobre dois pontos: a desumanidade do sistema denunciada
Francesa 119 , reintroduzindo toda aquela série de penas e torturas que já eni- onde fo:a 11:_staurado, e a dificuldade em levantar os recursos destinados à
eram definidas como bárbaras. Só com a ascensão ao trono de Carlos Albe reorgantzaçao geral dos estabelecimentos, que se fazia então necessári
é que se recomeçou a falar de reforma, também no que concerne à ques ?
código penal s~rdo-ital'.a~o
de 1859, assim chamado porque se torn:ria
pena!1 20 • Em outubro de 1839 foi publicado um novo código, mas o interess o.cod1go do novo reino de Itaha, prevê, em seu título primeiro, até seis tipos
do governo não se limitou à legislação. Dirigiu-se também, sobretudo devid diferentes de ~enas de detenção, separadas em penas criminais (trabalhos
à ação do conde Ilarione Petitti di Roreto, a reformar materialmente o estad · forçados
. perpetuas
. ( , ou por tempo determinado, reclusão ou desterro) e penas
das instituições carcerárias. Entre os anos 1830 e 1840, e também sob> correc1011a1s carcere e custódia, para as quais todas com exceção do d t
'd. . • eserro
influência de trabalhos estrangeiros, chegou ao auge, na Itália, o debate en e da custo ia, era prevista a obrigação ou a possibilidade de descontar a pena
as "duas escolas", a de Auburn e a de Filadélfia. trabalhando). c_ontudo, º.código nada informa sobre o regime ao qual os
O Piemonte escolheu a primeira e com base neste sistema (segregaç condenados ser~o ~ubmetJdos: se ao isolamento contínuo, sendo 0 trabalho
realizado na propna cela, ou se ao sistema auburniano, com 0 trabalho em
noturna e trabalho em comum, mas em silêncio, durante o dia) foram co
121 coi:ium, o~ ainda, segundo a hipótese que então estava se desenhando e que
truídas duas novas penitenciárias, a de Alessandria e a de Oneglia .
sera acolhida em 1889, se a algum tipo de sistema misto.
adiante, falaremos da discussão sobre as duas correntes de política peni
ciátia; por enquanto devemos dizer que, segundo as indicações do mes Após_º brilha~te renascimento do período setecentista e napoleônico, a
Petitti, o sistema auburniano, que permitia o trabalho em coletividade e p dommaçao austnaca que se seguiu à Restauração significou sem dúvida
tanto produtivo, foi considerado particularmente adequado aos esforços i nenhuma para a Lombardia, e também sob 0 ponto de vista da reforma
dustriais do Piemonte, onde a indústria dava ainda seus primeiros passos-~ p~nal, u.m retrocessom Foi introduzido o código austríaco de 1803, que
Até 1848, continuou-se a seguir esse sistema, que não experimentou nenhu · ~1s.trngu1a e~tre as penas de cárcere, cárcere duro e cárcere duríssimo_ este
inovação mais significativa. A discussão foi retomada em 1849, quando Cav >ult1m.o, a se Julgar pelo julgamento de Rossi, uma forma de "lento suplício"126.
fez uma intervenção no Parlamento piemontês. Partidá!io do sistema filadelfi Continuou-se, to.dav1a, ao menos nos regulamentos, a encorajar-se 0 trabalho
Cavour propôs que a questão fosse reconsiderada 123 . A isso se seguiu um info e dos detentos, unindo, na realidade, ao trabalho a possibilidade de os presos
do ministro, mas não se alterou a posição de fundo, publicando-se ape sobrev1vere1:1'. de pelo menos garantirem a comida, já que 0 que os escassos
alguns regulamentos novos, até que se voltou a colocar o problema, a prop' ganhos perm1trn.m ~omprar era decididamente menos do que 0 núnimo vital1''·
to do projeto de lei do ministro do Intedor, para cuja jurisdição haviam pass tEm .,1847,
. Ere1vmd1cou-se, entre outros pontos , também a reforma pem-·
124
os cárceres, como resultado da reforma dos cárceres judiciários . Para est . enc1~;:ª· ~ 1852, com o novo código penal, o cárcere duríssimo desapa-
que apresentavam dificuldades menores, o projeto previa a adaptação do sisi receu . Porem, pouco ou nada mudou até a Unificação.
ma de separação contínua. A despeito da forte oposição, o projeto foi fi~ O. lugar onde: mais do que em qualquer outra parte da Itália, verificou-se
mente aprovado, graças ao apoio de Cavour, que, nesse momento, já uma mtensa atividade de ;eforma,. quer dos regulamentos, quer dos próprios
>esta.belec1~entos carcerar1os, foi 0 grão-ducado da Toscana129. Também
aqm, dep01s que se restabeleceu a situação em vigor antes da era napoleônica,
119Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., p. 416; A. Bernabà-Silorata, op. cit.
120Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., p. 420; A. Bernabà-Silorata, op. cit.. 5
n lbide111, pp. 414 ss; A. Bernabà-Siiorata, op. cit.
'" Cf. em particular, C. !. Petitti di Roreto, op. cit., pp. 423-434; M. Beltrani-S 126
M. Beltrani-Scalia, op. cit., p. 413.
op. cit., p. 422; A. Bernabo-Silorata, op. cit.; V. Comoli Madracci, op. cit., pp. 41 127
Ibiden1, p. 414.
122 Cf. D. lzzo, op. cit., p. 303. tts lbiden1, p. 416.
123 Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., p. 424.
12' Ibidem, p. 435 ss.; C. l. Petitti di Rereto, op. cit., p. 421; A. Bemabô-Silorata, op. cit.
124 Ibide111, pp. 430 ss.

135
134
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as reformas só se iniciaram por volta de 1840. Primeiramente, destinou-s : ucas exceções, o ~istema filadelfiano da segregação contínua, que era
casa de Volterra aos trabalhos forçados; depois, foi abolida a prisão dorosamente defendido por Peri. Esse sistema foi definitivamente sancionado
Stinche, em Florença, e, enquanto as mulheres eram instaladas em
Gimignano, foi inaugurado o novo cárcere das Murate. No início dos a
pelo regulamento geral de 1850 e, mais tarde, pelo novo código penal de
)1853, que permanecerá em vigor mesmo após a Unificação.
1840, o Maschio de Volterra e as Murate são transformados em cárce
, A introdução do sistema filadelfiano corresponde a uma desvalorização
celulares. Em 1845, foi adotado um regulamento geral que reformava pD
go trabalho carcerário, que se orienta então, sobretudo, para 0atendimento
fundamente o regime dos cárceres toscanos 130 . Com ele, estabelecia'":sé(
das necessidades internas do cárcere (móveis, vestiário etc.), com a expressa
separação noturna, permanecendo, porém, o princípio comunitário durari
ínotivação do perigo da concon·ência para as empresas externasDJ_ O isola-
a escola e o trabalho. O regulamento vetava uma série de usos de orig
inento contínuo não permaneceu muito tempo sem detratores. Fonna-se
ainda medieval, tais como as janelas baixas, que permitiam um cont,- 0
phamado "partido dos filantropos", que critica duramente as danosas
contínuo com o exterior 131 , o uso de lautos banquetes em dias de festa e . conseqüências desse regime para a saúde dos condenados. O texto do médico
Introduzia-se, assim, o regime carcerário burguês propriamente dito e é dig
C. Morelli - Saggio di studi igienici sul regime pena/e de/la segregazionejra
de nota o fato de que, não obstante este tipo de reforma aparecer co _ _ 134
i rech1si - é particular1nente eficaz. Foi então constituída urna comissão
humanitário, estabelecia-se, conscientemente de que se tratava de -U,
.encarregada de estudar o problema. Em suas conclusões, a comissão destaca
endurecimento da pena, a sua não retroatividade: só eram submetidos a
, a sua entrad a em vigor
. 132 . que, admitindo como indiscutível a bondade do princípio do isolamento a
aqueles que eratn con dena dos apos
;grande rigidez do sistema filadelfiano é inaceitável, especialmente - e ess~ é
Em 1848, C. Peri, o artífice máximo de toda a reforma penal toscana uma afirmação bastante comum àquela época - "para os países do sul da
135
metade dos anos 1840 até a Unificação, publicou a obra Cenni sulla rifor Europa'' •

del siste111a penitenziario in Toscana, na qual examina, de forma minucio


O resultado de todo este debate pode ser encontrado na reforma que
atenta, a situação carcerária então vigente e reproduz também muitas esta _ ,
entra em vigor no dia 10 de janeiro de 1860,já no clima pré-Unificação, com
ticas interessantes. Ele registra a história de cada estabelecimento,"'",
a qual se abole a pena de morte, reduz-se a duração de quase todas as penas
movimento dos detentos, o custo de manutenção e o produto do trabalho,
e, sobretudo, introduz-se o princípio misto, segundo o qual a primeira parte
registro moral (prêmios e punições) e as doenças sofridas anualmente pel
da condenação deve ser cumprida, em geral, no isolamento contínuo, ao
presos. Incorpora, além disso, a planta da edificação. Não é possível, aqu
passo que a segunda - ao menos nas penas mais longas - é regulada de
examinar detidamente estes dados que seriam extremamente significativ
acordo com o princípio do trabalho em comum e em silêncio. Isso parece
se dispuséssemos de outros com os quais comparar. Basta dizer que, entã
particularmente importante não apenas porque a legislação penal toscana
os estabelecimentos penais em funcionamento na Toscana eram seis: os Bag
permanecerá em vigor até o código Zanardelli, mas porque, como já se obser-
de Livorno e Portoferraio, destinados aos condenados a trabalhos públic
vou, este código adotará esse sistema para a disciplina das penas de detenção.
o estabelecimento penal de Volterra; o estabelecimento penal e correcional
Florença; a casa correcional de Piombino; e o estabelecimento penal Não há nada particularmente inovador a assinalar no que concerne aos
correcional para mulheres de S. Gimignano. O número total de detentos po ducados e aos Estados Pontificais. Basta observar que os processos de
volta do final do ano, para 1844, 1845, 1846 e 1847, era respectivamente · transformação social descritos para os períodos anteriores se aceleram cada
672, 658, 759 e 770. Em 1849, adotou-se em toda parte, com algumas: vez mais, preparando o terreno para a explosão das décadas pós-Unificação,
produzindo assim uma intensificação dos diversos fenômenos de roubos no

uo Ver M. Beltrani-Scalia, op.cit., p. 441; A. Bernabà-Silorata, op. cit.; C. Períf: 133


Cenni sulla rifonna del siste111a penitenziario in Toscana. Florença, 1848, traz o- Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., p. 445.
134
regulamento nas pp. 15 ss. Essa obra foi publicada em Florença, em 1859. C. Peri publicou uma Risposta
31
1 Ver M. Beltrani.:.Scalia, op. cit., p. 440. del cav. Cario Peri a/l'opusco/o del dottor Carla Morelli, FJorença, 1860.
135
132
fbiden1, p. 441; A. Bernabà-Silorata, op. cit. M. Beltrani-Scalia, op. cit., p. 449.
136
137
campo, vagabundagem etc. É exatamente nos anos 1840 e 1850 que a re,0 pelos exércitos piemonteses, abriram, num ato magnânimo, todas as prisões
tomada geral do desenvolvimento na planície do Pó presencia a cnação do dos seus reinos.
institutos de polícia preventiva no Piemonte, que depois serão rntegrados à A função desempenhada pela cultura burguesa entre o Iluminismo e a
legislação do novo Estado italiauo. Isso aconteceu precisamente p~a controlar. Restauração nos países europeus em que tivera lugar a Revolução Industrial,
aquelas categorias de "ociosos e vagabundos", os ladrões dos campos e os roais especificamente na Inglaterra, faz-se presente na Itália nos anos 1840 e
operários - e esta é uma novidade daqueles tempos'"· Registra-se, naquel!li. mais ainda após a Unificação. Nesse período, a cultura italiana se propõe a
época, a continuação dos fenômenos de banditismo na Romanha, que dãg:• fornecer à classe dirigente as indicações práticas e teóricas - e, ao mesmo
vida a figuras legendárias como a do Passatore 131 • Isso demonstra o m~rasm~% tempo, naturalmente, a ideologia- do processo de estruturação de um sistema
econômico da região; porém, sob esse marasmo está em fermentaçao to capitalista na Itália, ou, pelo menos, das condições a fim de que esse processo
0 tecido das relações sociais, aqui muito mais em crise do que na Tose se possa desenvolver. Deixando de lado a contribuição no campo mais estri-
ou no sul"'- Na realidade, não passarão muitos anos até que o jovem advogad tamente econômico, que não nos interessa aqui, uma das tarefas fundamentais
Enrico Ferri reivindique ao movimento socialista, diante dos jurados dq: é a da elaboração de uma política social, diferenciada e aprofundada, em
tribunal criminal de Veneza, o mérito de ter sabido transformar uma massa> todos os seus múltiplos aspectos, que favoreça e complemente o desenvolvi-
de trabalhadores agrícolas miseráveis, que viviam do roubo nos campos, mento que está na própria lógica dos fatos: a formação do proletariado.
em combatentes da causa proletária 139 • Trata-se da formação .consciente cuidadosamente cultivada de uma massa
A situação de marasmo se manifesta, porém, sobretudo nas instituições_.- de camponeses e artesãos expropriados que deve se transformar no moderno
E entre estes nos cárceres, mantidos pela Igreja 140 num estado de abominável proletariado industrial. Em outras palavras, a educação da força de trabalho
confusão e corrupção, pelo menos de acordo com Beltrani, que não é muitd toma-se necessária para garantir a sua transformação, da velha à nova situação,
gentil com os Estados Pontificais. Entre outras coisas, ele faz referência â da forma mais ordenada e mais produtiva para a sua valorização. Isso talvez
urria crônica, datada de 1838, que descreve um uso continuado dos ferros não possa ser feito com a mesma geração que foi brutalmente transferida de
de tortura nos cárceres de Bolonha 141 • Não muito melhor é a situação das uma situação para outra; de todo modo, esse problema deve ser colocado,
prisões no Reino das Duas Sicílias, não obstante uma certa atividade refor, com toda a certeza, para as gerações seguintes. Trata-se, portanto, da
mista, posta em prática sobretudo por Mancini e Volpicella' 42 • Vale acrescentar, educação da juventude.
contudo, que tanto o Papa quanto os Bombons, quando foram derrotados Já observamos que esta é a causa de uma série de medidas de natureza
corretiva que antecederam as de natureza carcerária propriamente dita, criadas
136 Sobre a figura dO "ocioso e vagabundo" na origem das medidas de prevenção_- no século XVIII para jovens criminosos ou que deviam ser "corrigidos".
no ordenamento jurídico italiano, ver M. Pavarini, "Il 'socialmente pericoloso~ Uma política social deste teor, que historicamente não é outra senão a política
nell' attività di prevenzione'', in Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, ,-, social, articula-se em diversos momentos: a escola, nos seus diversos graus
1975, p. 396. e diferenciações; a assistência social; a variedade multiforme das instituições
137 Ver F. Serantini. Fatti nieniorabili della banda del Passatore in terra di de isolamento: cárceres, colégios, institutos para menores, hospitais psiquiá-
Ron1agna. Ravenna, 1973. tricos, asilos para pobres e velhos; as instituições hospitalares; o serviço de
iJs Ver E. Sereni. li capitalisn10 nelle canipagne, cit., pp. 216-221. recrutamento militar (a caserna) e assim por diante. Em toda essa variedade
139 Ver E. Ferri, "I contadini mantovani all'Assise di Venezia (1886)", in Difese. . de mecanismos trabalham os filósofos, os cientistas, cuja tarefa é delinear os
Penali e Studi di Giurisprudenza. Turim, 1899.
14º Ver M. Beltrani-Scalia, op. cit., p. 464.

141 Ibidem, p. 466. scorso", in Rassegna di Studi Penitenziari, 1970, p. 677. Do mesmo autor, ver "Su
142 Jbideni, pp. 467 ss.; C. I. Petitti di Roreto, op. cit., p. 420. Volpicella es~reveu alcune speciali prigioni dei secolo scorso", in Rassegna di Studi Penitenziari,
Delle prigioni e del /oro ordina1nento, Nápoles, 1837. Sobre a obra de Volp1cella, 1971, p. 591, e "Delle carceri che si dissero di 'buon governo' e 'di polizia"', in
ver D. Palazzo, "A.proposito di 'riforma delle prigioni' nella prima metà dei secolo Rassegna di Studi Penitenziari, 1972, p. 377.

138 139
problemas, pensar as soluções, colaborar, muitas vezes, com as atividad sintomáticas da sit~ação italiana, do seu escasso desenvolvimento industrial
de governo 143 . , nes~e .1nome~to, nao mais as propostas de casas de trabalho, mas sim de
Naturalmente, seria a ciência, neutra e objetiva- em breve chegará a hora de{ colomas agncolas
. , . , que saneassem terrenos incultos, assolados pela maana l' ·
positivismo! - a indicar as exigências objetivas dos fatos, e as suas soluçõ " etc., dd
an o 1n1c10 aquela estranha assonância, que ainda estará etn voga 't
. d u 'f' mm o
objetivas. Uma ciência, a bem da verdade, um pouco insegura, pouco especializact' d~p~1s . a n1 1cação, entre saneanzento social do pauperismo e da
e refinada, que ainda refletia o universalismo iluminista no tratamento - d c~1r_:i1nahdade e sanean1ento agrícola dos terrenos incultos 145. Talvez essa
mesmas pessoas e nos mesmos lugares 144 - de toda a vasta gama v1sao guardasse uma correspondência com a indiscutível supremact'a d
. 1· ; ( os
Encyclopédie, uma ciência, portanto, que ainda mal desempenha seu papel anc· grupos capita istas agrarios. De fato, com estas propostas tendia-se não tanto
enquanto não refere - não mais por idealismo, mas sim por estar baseada n a acolher o ca~ponês expulso para as cidades, mas sim a devolvê-lo para 0
fatos - a ausência da divisão intelectual do trabalho à prescrita domesticida lugar de onde vmha, a reempregá-lo na terra. De qualquer modo, elas expres-
deste, como alguns equívocos estarão a demonstrar. Uma ciência burguesa ' savam ~mda aquele estado de desconforto tão bem ilustrado por Dei Pane
apenas nas suas soluções, é claro, mas também nos seus pressupostos para o seculo XVIII: o fenômeno de uma proletarização camponesa e de uma
íntimos, na formulação dos problemas e das respostas a eles. Nos vá · .·fuga dos campos, aos quais não correspondia a capacidade industrial de
congressos organizados pelos cientistas italianos nos anos 1840, estava acolhimento. Esta.va em gestação a gigantesca deportação de milhões e milhões
presentes os filantropos, a discutir tudo aquilo que um país pobre e ainda pau .de trabalhadores italianos_ que_teria lugar na passagem do século XIX para 0
desenvolvido, mas já resolutamente destinado à hegemonia de relações so · século XX. A acumulaçao nao conhece fronteiras nacionais e a força de
próprias do modo de produção capitalista, devia enfrentar e resolver. Entre e trabalho hvre produzida na Itália destinava-se a outras realidades industriais.
problemas, entre as discussões sobre as técnicas agronômicas e sobre o siste Como já foi visto, o começo dos anos 1840, em todos os Estados italianos
fabril, entre o problema financeiro e o religioso, entre a medicina e as ciên -· .onde o problema era mais grave, sobretudo no Piemonte, na Lombardia-
naturais, alinhavam-se também as questões da política social e penitenciár' ·~eneza e .na Toscana (que, ademais, eram os mais adiantados), é tempo de
Prosseguia-se na postura que havia sido adotada por Muratori e q mtensa at1v1dade n~ campo da reform.a carcerária. Estavam sendo lançadas
triunfara nesse mesmo período na Inglaterra, a qual defendia a necessida as bases para o penado de mtensa ut1hzação das instituições que vicejariam
de excluir da assistência o "pobre não laborioso" e propunha formas apó~ a Unificação. Disso se ocupam os congressos dos cientistas, em
trabalho compulsório, fora do qual seria negado qualquer tipo de ajuda. S particular os realizados em Florença (1841 ), Pádua (1842) e Lucca (1843)1''·
Em Florença o problema foi apenas levantado, particularmente por iniciativa
,de Pe'.itti. No intervalo entre este congresso e o de Pádua, surgiu uma série de
143 Todo esse processo se dará, na prática, após a Unificação. Mas as bases se' memonas sobre o tema, entre as quais as do próprio Petitti e de Carla Cattaneo
colocadas - o caso da questão carcerária é exemplar a esse respeito - antes di ,_~t~s memóri~s .davam continuidade aos escritos com os quais os dois autore~
sobretudo no Piemonte, Estado-guia do ordenamento burguês no processo haviam se pos1c10nado sobre o assunto 147• Típico representante de uma cultura
unificação italiano. Aqui, apresentamos apenas algumas indicações. Assim cq
para a reforma penal, seria necessário proceder a determinadas reconstruç
científicas do modo em que as outras diversas instituições se conectam co )4' Ibidem, pp. 330 ss.
questão central da formação e do controle do proletariado. Todavia, no mame
- -~ lbide111, pp. 345 ss.
46
da Unificação, já está em grande parte eláborado o patrimônio cultural, científi 41
ideológico que servirá de suporte à construção da sociedade capitalista na Itál Trata-se do trabalho muitas vezes citado de Petitti, De/la condizione attuale
Muito interessante, neste sentido, é o livro de F. C. Marino, La fornzazione de elle carceri e dei mezzi di 111igliorarla. Ele retoma aqui os temas de uma outra
spirito borghese in ltalia, Florença, 1974, que se baseia sobretudo na análise~ bra ~e sua lavra, lançada em 1837, na qual dedicou um amplo espaço à questão
atas das diversas "reuniões dos cientistas italianos" que têm lugar nos anos 1&1 ?s car~eres. Trata-se de Saggio sul buon governo della n1endicità, degli istituti
1
144 É este exatamente o caso das "reuniões dos cientistas" que F. C. Mari ben:J1cenza e delle carceri (Turim, 1837). O escrito de M. A. Cattaneo "Delle
examinou em sua obra. arcen", também citado, foi publicado em Il Politécnico, em 1840. '

140 141
2. Que, isolado na cela, o homem, cansado do longo e pesado trabalho
solidamente ligada à atividade prática e de governo, Petitti estava em contato
c~rre me~os ~scos de abandonar-se a outros atos viciosos, aos quais, quand~
com os mais ilustres autores europeus no campo da reforma penitenciária, e so, podena ainda abandonar-se.
participava ativamente do debate e da problemática, bastante acesa naqueles
3. Que a regra do silêncio, se observada com exatidão, impede as relações
anos, sobre os "dois sistemas" americanos 148 • Após descrever a "condição atual
corruptoras e, ao mesmo tempo favorece tanto a reflexão quanto uina coação
dos cárceres'' 149 , e a ''história da educação corretiva'' 15º nos diversos países eu-
1noral so~~e a vontade. Essa coação opera eficazmente para encaminhar
ropeus, ele passa a discorrer sobre o tema fundamental do seu texto: Dei sistema
esses esp1r1tos, antes indisciplinados e rebeldes, à obediência e à subniissão.
di educazione correttiva che sembra degno di preferenza [Do sistema de educação
4. Que enq~a~to o trabalho realizado em comum tempera os efeitos
corretiva que parece digno de preferência]1 51 , e, por conseguinte, analisa as
funestos d~ soh~ao com a visão dos companheiros, torna-os, ao mesmo
vantagens e as desvantagens dos vários sistemas: o da vida em comum, o
te~po, n1a1~ ass1d~os, mais 11rodutivos e mais eficazes em decon·ência da
filadelfiano, o de Aubum e os mistos, que os combinam de várias maneiras.
fadiga contmuada a qual eles são submetidos (... ).
Ora, o que aparece à primeira vista é a absoluta indiferença na escolha
5. Que e~te estado de coação material e moral responde ao objetivo de
entre os dois sistemas que se comparam, devido à importância que é atribuída
alcançar a /ao.necessária intimidação, produzida pelo rigor da pena, 0 que
ao princípio fundamental do isolamento. O que se destaca em Petitti, assim
fica clar~ no fato de que, apesar da melhor comida oferecida aos presos
como em todos os outros escritores da época, é a sua extrema hostilidade à
ne_ss~es carceres, _os ah detidos que são reincidentes prefeririam voltar a outras
vida em comum no cárcere. Todos estes trabalhos, estas afirmações, estes
pnso~s - organizadas com base em outros sistemas de vida em comum _
mclmdas as galeras, ainda que nestas estejam submetidos a trabalhos mai~
escritos, são uma espécie de florilégio da Weltanshauung burguesa-man-
chesteriana. Como testemunha disso, pode ser citada a obra de Petitti, Ragioni
penosos,," pancadas e tenham comida e alojamento muito piores.
addotte dagli aderenti alia scuola detta della segregazione notturna e della
. Este ultimo ponto, que Petitti menciona como uma grande vantagem do
riunione silenziosa diurna col lavoro 15'. Não faz muita diferença citar esta
s~ste.ma do isolamento'. é .de '_?nge o mais terrível e testemunha bem 0 que
obra e não aquelas que respaldam o sistema filadelfiano, uma vez que, no
sigmfica a d~cantada civilzzaçao carcerária. São preferíveis as pancadas, a su-
que diz respeito à questão fundamental, as distinções são mínimas. Nota-se,
ierra, as humilh~ções, a fadiga a uma ordem e a um bem-estar que representam
em particular, a estreitíssima correlação entre fobia sexual, produtividade
t~rturas mm to piores do que a situação encontrada nas velhas galeras! 153 Emitindo
do trabalho, espírito de obediência e disciplina.
fmalmente a sua opinião, Petitti se declara partidário da escola de Aubum
Os adeptos da escola dita da segregação noturna e da reunião silenciosa
par~ as deten.ções mais longas, uma vez que permite um rendimento industrial
diurna com trabalho afirmam: mais produtivo e oferece a possibilidade de os detidos participarem dos
!. Que graças à segregação noturna se eliminam os mais graves inconc ·
venientes dos maus hábitos que costumam acontecer nos dorn1itórios. 153N·a no ta da pagina
, . 45 1 da obra citada,
· Petitti refere-se a urna conversa que teve
com um preso no cár~:re d~ Genebra, o qual funcionava segundo os princípios de
148 Ver C. I. Petitti di Roreto, Della condizione attuale delle carceri e dei niezzi di;_ Auburn. (~ste preso Jª ha_v~a cumprido anteriormente uma pena nas galeras de
niigliorarla, cit., pp. 448 ss. Petitti é um intelectual de estatura européia, qu~,­ Toulon). ~le [o preso] dizia que desde que havia adquirido melhores sentimen-
mantém contato com todos os teóricos e homens de governo mais conhecidos de_~:º tos, se havia dado conta de que o rigor da disciplina do cárcere de Genebra era
seu tempo no campo carcerário. Ele se ocupava, além disso, de uma temátic_,:, p~ra o seu bem, mas que 1~rnentava não ter cometido o segundo delito (de trai-
socioeconômica bem mais vasta, o que pode ser constatado nos seus trabalhOS'' çao) n_a Fra1~ça porque tena retornado às galeras. Ali, apesar da aparência de
reunidos na já citada Opere scelte. Seu conteúdo é muito variado, mas sempfi um.a vida ~ais dura, a estada. era 111ais agradável para a n1aior parte dos presos
ligado às necessidades concretas de organização do Estado piemontês. po1que p~d•.ª. se gozar do ar ltvre, ter relações mais livres, pela esperança de fuga,
149 Ver C. !. Petitti di Roreto, op. cit., pp. 327 ss. pela ?oss1b1hdade de se ter bebidas alcoólicas etc. Ele acrescentou que mesmo
150 Ibidem, pp. 361 ss.
depois de se ter, tornado uma pessoa melhor, a recordação da vida inelhor nas
g~ler~s voltava a ..sua mente de vez em quando, e o fazia detestar a sua pernla-
151 Ibidem , pp. 448 ss.
11enc1a naquele carcere".
152 Ibidem, pp. 450 ss.

143
142
ritos, que se desenvolvenz eni comum, da religião católica. Para as penas >0 sistema filadelfiano para as detenções de curta duração, e o silent system
mais curtas, nas quais é possível se recorrer a meios de intimidação mas para as penas longas. Foi ele, portanto, o verdadeiro vencedor de toda a
não corretivos, pode-se aceitar o método da segregação contínua 154 • disputa, não apenas porque foi a sua posição final que se impôs, mas também
Já Cattaneo pronuncia-se sempre a favor deste último sistema, enfatizando.·· e sobretudo porque, como já se viu, às vésperas da Unificação o sistema
a eficácia psicológica do isolamento continuado'"· Essa tese foi quase aceita misto era o que atraía as experiências mais avançadas e que, de um modo ou
no Congresso de Pádua de 1842 156 , não obstante chegassem informações de· de outro, vinha se consolidando tanto no novo reino de Itália quanto em
outros segmentos profissionais, sobretudo dos médicos, dando conta dos outros Estados europeus. Marino destaca justamente que o filantropismo
resultados de investigações desenvolvidas no exterior sobre os efeitos dos · dos partidários de Auburn resultava bastante falso, visto que eles se
dois sistemas comparados, que mostravam um grande aumento da · preocupavam muito mais com as finanças dos governos do que com a saúde
mortalidade (e também dos suicídios) e da alienação mental (a "eficácia· dos presos, em razão dos enormes gastos que deviam ser feitos com a
psicológica"!) onde se implementava o isolamento contínuo 157 • A comissão introdução de um sistema integralmente celular 160 •
encarregada de fazer seu relatório no congresso de Lucca se dividiu. A Assim, também na Itália o debate sobre a questão carcerária, bem como as
reação dos médicos provocou uma severa crítica contra os membros da. soluções praticadas, seguem um caminho determinado pelas circunstâncias
dita comissão, que pretendiam deixar o papel de "técnicos da saúde" puros sociais existentes e, ainda assim, são substancialmente semelhantes às observadas
para envolver-se em assuntos políticos 158 • Essa crítica não levava em conta,-_;:: no resto da Europa. As experiências realmente reformadoras, como as lombardas,
todavia, o fato de que os médicos tinham sido chamados exatamente com · toscanas e as da Casa de Sabóia, nascem e se desenvolvem por períodos limitados,
essa finalidade, para que fornecessem o seu aval científico à solução política quando a orientação "corretiva" de uma força de trabalho ainda escassa e relutant.e
que, parecia, já tinha sido tomada 159 • apresenta-se como uma necessidade efetiva do modo de produção. Todavia,
A contradição foi resolvida no congresso graças à mediação de Petitti, todo o debate travado por volta dos anos 1840 já revela um andamento bastante
que conseguiu aprovar a solução por ele proposta e à qual já nos referimos: próximo ao que se observa na Inglaterra ou na França (e é de fato significativo
que isso penetre profundamente na cultura italiana). A introdução das máquinas
154
Ibidem, pp. 455 ss. e a rápida produção de uma grande superpopulação como conseqüência da
"' Ver M. A. Cattaneo, op. cit., pp. 302 ss. Revolução Industrial afastam cada vez mais qualquer possibilidade de cárcere
156
Ver F. C. Marino, op. cit., p. 351. produtivo e, ao mesmo tempo, ressocializante (segundo os critérios capitalistas).
157
Na nota 200 da primeira parte do nosso trabalho, referimo-nos ao parágrafo d~; A diatribe sobre os vários sistemas ganha cores acima de tudo ideológicas,
Marx no qual ele estabelece urna relação entre a situação do isolamento continu"'.', "espirituais". Numa situação assim, confere-se cada vez mais à instituição um
ado e a criação, da parte do homem isolado, "de fantasmas palpáveis, sensíveis'\ -- significado simbólico e representativo: o único valor no qual se tem ou se diz ter
que representam seja "o mistério de todas as visões religiosas", seja "a forma confiança é o do isolamento, seja ele garantido pela separação contínua, seja
universal da loucura" (Karl Marx e Friedrich Engels, La sacra fa111iglia, Roma;_-~: pelo silêncio. Mas abaixo deste valor jaz uma única exigência, a do controle e da
1969, p. 239). Esse parece ser o processo descrito por Cattaneo na obra citada. na:- intimidação
161
, o que aparece na análise que vimos fazendo e como reconhece
qual descreve a eficácia psicológica que o isolamento contínuo acarreta para o;
condenado: "No silêncio dos homens e no sonho das paixões, os conselhoS-
tantas vezes não ouvidos, as palavras que pareciam não ter tocado a sua memória"_-, '"'Ibidem, pp. 364-365.
os terrores religiosos, todas as imagens e as recordações do bem e do mal, ressur 161
M. A. Cattaneo· se expressa assim, com toda a clareza: "Infelizmente, as refor-
gem na consciência culpada, e se tornam a cada dia mais poderosos e irresistíveis'-~­ mas incompletas que o humanitarismo moderno introduziu no cárcere atribuíram a
(p. 304). Tanto Petitti (p. 462) quanto F. C. Marino (pp. 355-356) referem-se a~ este único instrumento de pena todo o terror. O malvado desordeiro aí encontrava
resultados de investigações da época sobre os efeitos desastrosos (suicídios e- abrigo e cama, comida segura, trabalho leve e companhia que era do seu agrado.
casos de loucura) do sistema filadelfiano.
Para muitos operários honestos, carregados de filhos, para muitos diaristas des-
158
Ver F. C. Marino, op. cit., pp. 362-363. calços e famintos entre férteis ca1npos, a estada no cárcere parecia sedutora.
159
Ver F. C. Marino, ibiden1. Porém, diante de uma severa solidão, por mais que a cela seja espaçosa, limpa,
144 145
Petitti autor politicamente mais lúcido do período, que se mostr.~.
0 pré-capitalistas sobretudo no Mezzogiorno, e, portanto, do uso particular
substa~cialmente_indiferente ao "sistema" escolhido. - que será dado ao proletariado meridional, exército industrial de reserva da
indústria setentrional (e, mais tarde, com a emigração, da indústria estrangeira),
A preferência pelo sistema "auburniano" nas detenções mais longas deconi
e massa de manobra para as forças de governo. Também na Itália, a instituição
de exigências financeiras, destinadas a não agravar excessivamente as despesa~
é criada como instituição essencialmente burguesa, cuja finalidade precípua
com os cárceres. Entre aqueles que o defendem não se levanta uma só voz,
é a educação pela disciplina e pela obediência. Porém, mais do que em outras
para argumentar em favor daquilo que deveria ser o motivo fundamental dá.
situações nacionais, o desprezo por uma força de trabalho permanentemente
escolha: a possibilidade de trabalho em comum, um trabalho, portant ·
superabundante fará dela um instrumento terrorista de controle social. Por
produtivo, de tipo industrial. A ênfase que todos colocam na necessidade d
um lado, portanto, a revolução nos módulos punitivos que se vinha
isolamento mascara- sob a fórmula da penitência e da polêmica espirituali
desenvolvendo lentamente desde as origens do modo de produção capitalista
contra a excessiva atenção da filantropia iluminada para com a situação materi
até o capitalismo desenvolvido do liberalismo oitocentista define, também na
dos detentos - uma concepção do cárcere como instrumento intimidatório
Itália, o cárcere como o tipo de pena dominante, pena burguesa por excelência.
de "prevenção geral". E nesse sentido, indo-se além das belas palavras sob
Por outro lado, os traços particulares da instituição refletem os aspectos
a "eficácia psicológica" do isolamento, um sistema carcerário como o q
próprios a cada sociedade nacional nos diversos períodos. E se a estrutura
existiu mesmo depois da Unificação, que mantém prisões superlotadas com
de fundo é igual por toda parte, é modelada sobre as exigências ideológicas
as de Nápoles, Roma e Palermo, descritas por Howard, ainda responde muit,
··de um modo particular de produção (o da fábrica), a utilidade da instituição
bem às suas finalidades.
.não pára aqui, mas se refere ao complexo das relações de classe num contexto
O princípio da less eligibility, da menor elegibilidade do regime penite determinado.
ciário com relação ao que existe de pior do lado de fora, é salvaguardad
Na Itália que caminha para a Unificação, assim como na Inglaterra ou na
qualquer custo. O espiritualismo do século XIX no tema carcerár~o enco ;
França da primeira metade do século XIX, a existência de estratos muito
0 próprio núcleo de verd~de ao buscar a deteri?ração d_as cond1çoes de. v
numerosos de proletários desempregados faz com que o cárcere não persiga
no interior do ·cárcere e a impressão que a 1nshtu1çao deve produzir
nenhuma finalidade imediatamente ressocializante (como aconteceria, e como
"espírito" dos réus, mas sobretudo dos réus em potencial. A atividade anteri
aconteceu, em sociedades caracterizadas por uma disponibilidade limitada
à Unificação prepara assim o amplo uso que será dado ao cárcere, não ape~·
de força de trabalho industrial), mas se proponha à gestão ideológico-terrorista
porque constrói (poucos) novos cárceres e elabora os instrumentos .leg
•dessas camadas da população, excluídas da produção. Nos debates dos
correspondentes, mas também porque indica uma linha de tendên~.ta ~·
cientistas sociais, filantropos, penalistas e médicos dos anos 1840 (assim
explodirá literalmente com a conquista, por parte da casa de .saboia,
como nos anos após a Unificação e ainda durante muito tempo), estará
províncias meridionais, e a conseqüente criação de um enorme exéi~!
encerrada, sob o invólucro ideológico das suas ciências, esta simples verdade.
industrial de reserva, que a crônica carência de capitais do sul da Itália e
moderado desenvolvimento das regiões setentrionais não poderão, de fo
alguma, encaminhar para as fábricas.
Daí deriva a crônica situação de "crise" do cárcere italiano. Ela depend
muito mais do que por razões internas à instituição, da permanência de relaç.-

bem iluminada, ventilada, quente, dotada de tudo o que uma pobreza labori
necessita, o verdadeiro criminoso preferirá sempre a hediondez e o desconfi
de um porão promíscuo, mesmo que aí o chão fosse nu e ?ouvesse :orr~nte<:
bastões. E essa preferência ocorre porque todas essas coisas mantem 1nta
nele o sentimento da sua perversidade" (op. cit., p. 305).
146 147
Segunda parte
Massimo Pavarini

A invenção penitenciária:
A experiência dos Estados Unidos
na primeira metade do século XIX
1
A era jacksoniana:
desenvolvimento econômico,
marginalidade e política do controle social

O trabalho é a providência dos povos 111odernos ( ... )


O trabalho .deve ser a religião das prisões.
Nun1a sociedade-n1áquina, elas necessitam
dos 1neios de reforma puramente n1ecânicos.

L. Faucher, De la réfonne des prisons


1. Propriedade imobiliária e instituição familiar
na origem do controle social no período colonial

A originalidade, a natureza da verdadeira revolução que caracteriza os


Estados Unidos da América da primeira metade do século XIX na política do
controle social só pode ser entendida se tivermos em mente a consideração
social expressa no confronto dos fenômenos desviantes no período colonial,
isto é, no período que precede o nascimento da Nova República.
Queremos traçar, antes de mais nada, de forma sintética, as coordenadas
gerais nas quais é possível colher a avaliação/reação que a sociedade colonial
conhece e expressa diante dos processos de desagregação social.
Nos confins da "economia sufocada" que foi a América do século XVIII,
tanto a pobreza quanto o crime não foram alvo da atenção política que
caracterizará o período pós-revolucionário, no sentido de que a presença do
vagabundo, do louco e mesmo do criminoso não foi vista como reveladora
de uma situação socialmente crítica. Por conseguinte, a realidade da época
careceu de uma verdadeira política social, entendida como um esforço para
solucionar os problemas acima mencionados, e muito menos no sentido de
considerá-los numa perspectiva conscientemente política.
Ao contrário, a perspectiva adotada para se tratar o problema do
pauperismo foi de natureza essencialmente religiosa, acompanhada de rígidas
crenças a respeito de uma ordem social estática (reflexo típico de uma
economia exclusivamente agrícola) e de um sentido de comunidade muito
marcado e peculiar, próprio dos primeiros assentamentos coloniais'.

1
A tese é quase unânime entre os principais autores que se ocuparam especifica-
mente do poor relief no período colonial. Entre os estudos mais documentados e
interessantes dedicados ao tema, devem ser mencionados os seguintes: D. M.
Schneider, The History of Public Welfare in New York, 1609-1866, Chicago,
1938; M. Creech, Three Centuries of Poor Law Administration, Chicago, 1942; J.
Leiby, Charity and Corrections in New Jersey, New Brunswick, N. J., 1967; e
finalmente o primeiro capítulo ("The Boundaries of Colonial Society") de D. J.
Rothrnan, The Discovery of the Asylum, Social Order and Disorder in th'e New
Republic, Boston-Toronto, 1971.

153
A Igreja protestante foi uma das instituições mais influentes no processo> mobilidade das populações indigentes, o que denota a presença efetiva de
de condicionamento da opinião pública com relação ao pauperismo. Na um ideal de estabilidade no fundo da ideologia dominante.
realidade, o pauperismo foi interpretado como um fenômeno natural, Esta última observação merece ser desenvolvida. As formas de agregação
inevitável e justo, assim como justa e obrigatória devia ser considerada a·· social dos assentamentos-coloniais originais foram certamente muito sentidas;
assistência aos indigentes, sempre, porém, sob uma ótica caritativa de tipo os momentos de real coesão e uma espessa trama de relações mutualistas entre
individual. Na raiz desta postura religiosa emerge claramente a convicção de . os diversos membros cimentaram fortemente a pequena comunidade agrícola.
que a estratificação social existente reflete uma ordem divina, segundo a As dificuldades naturais enfrentadas e sofridas pelos colonizadores, de um lado,
qual o status de pobre não devia ser considerado nem acidental, nem fortuito, e o relativo isolamento da comunidade, do outro, acentuaram este processo de
mas sim providencial. A presença do pobre devia ser considerada uma homogeneidade cultural 4 . A impermeabilidade social foi certamente uma con-
oportunidade oferecida pela Providência, a fim de que, através da caridade, seqüência desta situação. Ademais, a presença de imensos territórios ainda não
a humanidade pudesse se redimir. A assistência aos pobres, afirma S. Coope colonizados, a presença ~aquela "fronteira móvel" que tanto condicionará a
pastor de Boston, "enobrece a nossa natureza, conformando-nos aos_ própria originalidade do pensamento sociopolítico americano', desestimulava as
melhores e mais gloriosos exemplos( ... ) A caridade nos torna conforme ao populações de imigração recente a se fixarem nas áreas já ocupadas, até que
próprio Filho de Deus" 2 • surgiu, naturalmente, uma economia manufatnreira que impôs a necessidade de
Este ponto de vista é constante e apresenta poucas e limitadas exceções,> violentas e maciças concentrações de tipo urbano.
É interessante observar como não emerge aquela vontade classificatória que:. Além do mais, há que se considerar que em alguns estados as terras
acarreta a distinção entre a pobreza culpável e a pobreza não culpável, entre i férteis já tinham sido distribuídas nas três primeiras gerações de colonos, e
desemprego voluntário e involuntário. Este comportamento refletiria uma se esta circunstância oferecia escassos incentivos a novos assentamentos,
preocupação já política ao enfrentar o problema, muito embora denote uma motivava, também, pelo menos em parte, os preconceitos que seriam criados
percepção da pobreza como fruto de uma realidade social problemática. em relação aos outsiders, sobretudo se privados de recursos 6 .
As razões de uma avaliação da pobreza ainda alheia de preocupações Esta situação explica também o fenômeno, destacado acima, de uma
políticas devem ser individualizadas na situação econômica particular e, mais acentuada presença de elementos de estabilidade nas pequenas comunidades',
significativamente ainda, social. De fato, se um trabalho recente 3 esclareceu aos quais correspondia, no plano ideológico, tanto uma concepção fortemente
a existência, também não desprezível, das classes marginais na América dos·· hierarquizada da ordem social, quanto um profundo sentimento comunitário 8 •
1700 - de forma limitada a algumas colônias -, é necessário sublinhar !l :~
capacidade da organização social, que estava na origem do assentamento:>)
colonial, de absorver, tanto em termos políticos quanto econômicos, as fraçõe$ " 4
Além das obras já citadas, ver S. V. James, A People Among People: Quaker
sociais marginais locais, ou seja, internas à própria comunid~de. ,, senevolence in Eighteenth-Century An1erica, Cambridge, Mass., 1963, em parti-
cular os capítulos 2 e 3.
Ao contrário, a reação frente à vagabundagem (ou pobreza dita flutnante)
5
e, mais em geral, a consideração coletiva do fenômeno da mobilidade sodaF' Ver a obra hoje clássica, e também criticada por muitos, de F. J. Turner, The
foi muito diferente. Em outras palavras, a obsessão que condicionou o Frontier in An1erican History, Nova Iorque, 1920.
6
pensamento da época não foi tanto o problema da marginalidade, mas sim o D. J. Rothman, op. cit., p. 12.
7
Para uma análise dos primeiros assentamentos urbanos na época colonial, ver
M. Zuckerrnan, Peaceable Kingdon1s: New England Towns in Eighteenth Century,
2 Nova Iorque, 1970; P. J. Grevin Jr., Four Generations: Population, Land, and
S. Cooper, A Sermon Preached in Boston, -New England, Before the Society of
Encouraging Industry and Enzploying the Poor, Boston, 1753, p. 20. Fan1ily in Colonial Andover, Massachusetts, Ithaca, Nova Iorque, 1970.
3 8
Além dos autores citados na nota 1, ver também, sobre o tema da mobilidade Para uma análise da cultura social das comunidades de colonizadores, ver, além
social no século XVIII nos EUA, R. W. Romsey, Carolina Cradle: Settlement of da obra de Rornsey, já citada, C. Bridenbaugh, Cities in Revali, Nova Iorque,
the Northwest Carolina Frontier, 1747~1762, Chapei Hill, N. C., 1964. 1955; H. Adams, The United States in 1800, Ithaca, Nova Iorque, 1955.
154 155
A presença destes elementos se refletia, por conseguinte, na próp .Esta última opinião estava estreitamente ligada à presença dominante da
concepção de pobreza, que era endêmica, ou seja, interna à comunidade. p pwpriedade privada imobiliária.
um lado, não havia nenhuma preocupação em eliminar o pobre enquan É evidente que esta situação não pode ser generalizada. Nos assentamentos
fenômeno "natural", e por outro, existia o dever moral de socorrê-lo enqua coloniais de fronteira, por exemplo, a discriminação entre os velhos e os
membro da comunidade. Nesse sentido, a grande família colonial pô ~,,>-imigrantes mais recentes não se fez presente. Da mesma forma, em colônias
"recuperar" no interior do próprio processo produtivo - embora em term , como a Carolina e a Pensilvânia, áreas de volumosos e constantes fluxos
ainda caritativos e privatistas - os estratos sociais mais frágeis, por meio imigratórios, o comportamento hostil para com os novos colonizadores foi
modalidades que encontraram na hospitalidade e na encomenda de traba menos sentido. Não obstante, pode-se afirmar que o ideal do farmer americano
agrícolas e sazonais os principais veículos do poor-relief 9 • O que despa do século XVIII era o da comunidade economicamente auto-suficiente; com
pois, como elemento caracterizador da assistência aos pobres é o emprego base nesse ideal se privilegiava a população residente (townmen) contra a
meios não institucionais, ainda que não segregadores, como a chamada assistênê população migrante e indigente (dependent outsiders).
doméstica (household) aos indigentes residentes 10•
Por isso, a sociedade colonial tinha uma legislação que tendia a limitar o
Foi bem outra a consideração demonstrada para com a pobreza li · fenômeno da vagabundagem, contendo normas particularmente severas,
residente, mais especificamente os novos imigrantes indigentes. Em relaç quando não sanguinárias, como as vigentes em alguns países europeus, em
a eles foram descarregadas tensões ditadas pela obstinada convicção de q particular a Inglaterra. Já o primeiro código de Nova Iorque, em 1683, traçava
no fundamento da ordem social deveria reinar a estabilidade da residência aquelas que seriam, por mais de um século, as linhas constantes da legislação
colonial contra a vagabundagem e a pobreza, como formas de assistência à
9
Além dos autores citados na nota 1, ver S. Riesenfeld, "The Formative Era·, indigência local e residente e a luta contra a imigração pobre 1'.
American Assistence Law", in Callforn;a Revie~v. 1955, nº 43, pp. 175-223.
A lei em questão tornava obrigatório que os comandantes das embarcações
w As informações e as fontes mais confiáveis sobre o sistema assistencial registrassem os nomes dos passageiros e reembarcassem à força aqueles
América colonial, inclusive do ponto de vista quantitativo, encontram-se em C.
. que não tivessem condições de demonstrar possuir propriedade ou ter trabalho
Chamberlayne (ed.), Vestry Book of St. Paul Parish, Ha1111over County, 17 •.
estável no local para onde estavam se dirigindo. Da mesma maneira, os agentes
1786, Richmond. Virginia. 1940; C. G. Chamberlayne (ed.), Vestry Book o/St. Pe
Parish, New Kent and Jan1es City Counties, Virginia, 1684-1786, RichmO •. de polícia deviam acompanhar de volta à fronteira os vagabonds e os beggars
Virginia, 1937; e C. G. Chamberlayne (ed.), Vestry Book of Blisland Parish, N que entrassem na sua jurisdição sem autorização 13 .
Kent and Ja111es City Counties, Virginia, 1721-1786, Richmond, Virginia, 193 A legislação nova-iorquina de 1721 endureceu ainda mais as sanções contra
11
A fonte mais importante que documenta a difusa concepção de que a ord. a imigração clandestina, prevendo para os reincidentes penas pecuniárias e
social ótima deveria repousar sobre a estabilidade da residência e na institui corporais, bem como as primeiras formas de internamento obrigatório por
da propriedade fundiária nos é fornecida pela rica produção de prédicas e um período determinado nas jails, os primeiros cárceres preventivos 14 .
mões então publicados e1n edições populares. Ver, entre outros, B. Colman, Posteriormente, em 1773, a Assembléia Legislativa da colônia de Nova Iorque
Unspeakable Gift of God; A Right Charitable and Bountiful Spirit to the Pb impôs o certificado de residência, mediante o qual a autoridade administrativa
and Needy Members of Jesus Christ, Boston, 1739; e C. Chauncy. The Idle Po.
podia exercerum rígido controle sobre a mobilidade social interna e externa 15 •
Secludedfroni the Bread of Charity by Christian Law, Boston, 1752.
De Chauncy, reproduzimos aqui um trecho retirado de A. Heimert, P. Miller (ed
The Great Awakening, lndianápolis, 1967, p. 302, que, em poucas palavras, est' 12
Ver Colonial Laws of Nelv Yo1k Fron1 the Year 1664. to the Revolution, Albany, 1894.
matiza a concepção então dominante de ordem social: "A ordem divina é força 13
beleza do mundo. A prosperidade da Igreja e do Estado depende muito diss. D. M. Schneider, The History of Public Welfare in New York State. 1609-1866.
Chicago, 1938, capítulo 2.
Pode haver ordem onde os homens ultrapassam os limites da sua situação e
14
intrometem nos negócios alheios? Bem longe de tudo isso, a única regra ver Ver Lalvs of New Yorkfron1 the Year 1692 to 1751, inclusive, Nova Iorque,
deiramente eficaz( ... ) é que cada um, para ser fiel, ocupe-se apenas daquilo q. 1752, pp.143-145.
15
lhe pertence, permanecendo em seu lugar". ·· Ver Colonial Laws ofNew York, V, pp. 513-517.
156
157
as comunidades quakersw Antes da legislação de 1682, a única instituição
o modelo legislativo aqui descrito foi logo imitado. Rhode Island, por conhecida na colônia da Pensilvânia era a country jail, originalmente um
exemplo, já em 1748 tornava obrigatório aos novos imigrantes a compra de
fortim militar utilizado exclusivamente para a detenção preventiva21 • Nesse
terra por um certo valor, sob pena de expulsão 16 • E não foi diferente nas
período, estavam em vigor os códigos da mãe-pátria (especificamente a
colônias do Sul. Em 1741, a Assembléia de Delaware promulgou um texto
legislação penal anglo-saxónica). No que diz respeito ao sistema de sanções,
normativo muito semelhante àquele já em vigor na colônia de Nova Iorque";
prevaleciam as penas corporais, em primeiro lugar a pena de morte.
em 1654, a Carolina do Norte regulamentou a matéria por meio de uma lei
que sublinhava a diferença de tratamento entre local poors e strangers 18 • W. Penn, inspirador da primeira legislação de 1682, abole a pena de morte
para todos os crimes, com exceção do homicídio premeditado e voluntário e
A situação muda significativamente, sobretudo no que concerne às formas ·
do delito de alta traição". Segundo a vontade do grande reformador, a country
de controle da população não residente, nas colônias mais densamente
jail deveria ter mantido o papel de cárcere preventivo, ao passo que a
povoadas, onde a ocorrência de constantes processos imigratórios assumia
introdução de uma nova instituição - a house ofcorrection, baseada no modelo
proporções relevantes. Nessas áreas, assistimos ao surgimento, embora ainda .·
holandês, teria servido para internar os fellons (os transgressores daquelas
limitado, das tradicionais instituições européias de controle e repressão da
normas para quem não se destinavam nem penas corpoi'ais nem a pena de
vagabundagem: as lvorkhouses, as abnshouses e as houses of correction.
morte). Em 1718, sempre de acordo com a lei, decide-se pela construção de
A introdução dessas instituições na América colonial remonta, provavelmente,
uma nova jail para os devedores, para os aprendizes fugitivos e obviamente
ao período da legislação de William Penn, datada de 1683. A variada sorte que
para os acusados à espera de julgamento, e de uma workhouse para os
acompanha estas instituições marca significativamente as contradições da política
criminosos 23 . A empresa, naqueles teinpos, é utópica e veleitária, porém
de controle social ao longo do século XVIII nos Estados Unidos.
significativa do ponto de vista político. Diversos fatores contribuíram para
A reconstrução cronológica, ainda que sumária, da evolução destas
essa reforma revolucionária na legislação penal: em primeiro lugar, a vontade
instituições pode oferecer um quadro geral da complexidade da legislação
política de "emancipação", mesmo que legislativa, da mãe-pátda; a necessidade
destinada a exercer o controle social das classes marginais na América de propor uma hipótese punitiva que, de algum modo, se harmonizasse com
colonial. Esta análise introduz, em seguida, o tema mais específico da
a forte tensão ético-moral quaker; e finalmente o fascínio que as experiências
prevenção/repressão da criminalidade.
mais avançadas na política social exerciam sobre uma certa intelligentsia
O teatro desta primeira política social é a Pensilvânia 19 e os atores principais cosmopolita e ainda culturalmente ligada à realidade européia.
Há que se considerar, nesta ótica, que o projeto institucional proposto por
Penn para a house of correction - às vezes chamada de workhouse - já
16 Ver Acts and únvs of English Colony of Rhode /sland and Providence Planta~
tions, in New England, in America, New Port, R. !., 1767, pp. 228-232. 20
Sobre as implicaçõe~ sociais do sentimento religioso na política americana pré-
11 Ver Laws o/ the Governn1ent of New Castle, Kent, and Sussex upon Dela-~vare.
revolucionária, ver Haimert e Miller (ed.), The Great Awakening, op. cit., A. Hai-
Filadélfia, 1741, pp. 208-215.
18
mert, Religion and the A111erican Mind: from the Great Awakening to the Revo-
Ver A Complete Record of Ali the Acts of the Assembly of the Province of North lution, Cambridge, Massachusetts, 1966. Mais particularmente sobre o papel das
Carolina Now in Force and Use, Newbern, Carolina do Norte, 1773, pp. 172-174, seitas quakers·nas colônias da América, ver J. Sykes, The Quakers. A New Look
19 Sobre as posições de vanguarda na política social em geral e na reforma peniten-
at Their Place in Society, Nova Iorque, 1958.
ciátia em particular, ver, por enquanto, entre diversos ensaios, T. Sellin, "Philadelphia: 21
O texto normativo, aprovado na Assembléia de Chester em 4 de dezembro de
Prisons of the Eigtheenth Century", in Transactions of the American Philosophical 1682, levou o nome de The Great Law or Body of Laws.
Society, 1953, v. 43, parte!, pp. 326-330; H. E. Barnes, The Evolution of Penology in 22
O texto normativo em questão tem início com uma _deClaração não usual para a
Pennsylvania, Indianapolis, 1927; H. E. Bames e N. K. Teeters, New Honzons i~i
época, garantindo a liberdade de consciência e a liberdade de culto e abolindo
Criminology, Nova Iorque, 1943, pp. 490 ss.; N. K. Teeters, The Cradle ofthe Pem·
uma longa série de delitos religiosos. N. K. Teeters detém-se neste pQilto (The
tentiary, Filadélfia, 1955 (capítulo I); O. F. Lewis, The Development of Anzer~cafl
Cradle of Penitentiary, op. cit., p. 3).
Prisons and Prison Custo111s, 1776-1845, Albany, 1922; B. McJKelvey, Anzencan 23
A informação foi retirada de N. K. Teeters, The Cradle.of Penitentiary, op. cit., p.3.
Prisons. A History of Good lntentions, Montclair, Nova Jérsei, 1977, capítulo 1.
159
158
contemplava o isolamento dos detidos, a divisão dos presos com base numa pelos jailers contra os internos, da viol~ncia das penas corp_?rais par~ as infrações
articulada tipologia e o internamento obrigatório dos ociosos e vagabundos. E disciplinares, da brutalidade das relaçoes entre a populaçao carcerarrn etc27 •
mais ainda: ele previa o emprego dos presos em atividades laborais, bem como 2. As houses of correction ou workhouses se apresentam, originalmente,
a remuneração deste trabalho forçado 24 •
como apêndices arquitetônicos dajail. Nelas, a disciplina é praticamente a
De um ponto de vista prático, o experimento logo fracassou. Com a mesma imposta no cárcere preventivo28 .
morte de Penn, a legislação inglesa foi reintroduzida e, com ela, as penas Todavia, a população internada nessas instituições é bem diferente. A
corporais e em pmticular a pena de morte. Significativamente, porém, foi maior parte dos prisioneiros é constituída por pequenos transgressores da lei
revogada a aplicação da pena máxima para o furto (estatisticamente, os delitos aos quais não era aplicada nenhuma pena corporal, por aqueles que tinham
contra a propriedade representavam 2/3 do total), para o qual foi mantida a infringido a lei sobre a imigração e, sobretudo, por ociosos e vagabundos.
reforma introduzida em 1682, ou seja, a pena da reclusão por um tempo deter- Não faltam também aqueles pobres cujos problemas não foram solucionados
minado nas workhouses. A situação penal na Pensilvânia colonial passou a se pelo home-relief
apresentar nos seguintes termos:
Deixemos de lado, agora, a situação da Pensilvânia, e analisemos a situação
1. Ajail manteve a função original de cárcere preventivo. Nesta instituição, global do sistema do controle social na América colonial.
prevalece o fee system, de origem anglo-saxónica, segundo o qual o prisioneiro
deve prover a sua manutenção com recursos próprios, pagando um<1 espécie
É impossível dar conta, em termos quantitativos - por causa do estado
precário das fontes 29 - , da população sujeita às diversas formas de controle/
de taxa ao jailer. Este, por sua vez, não sendo remunerado com dinheiro
assistência no período colonial. Certamente, no que concerne aos índices de
público, procurava efetivamente se aproveitar economicamente da posição
internamento em instituições (workhouse, almshouse, poorhouse) convém
de efetiva inferioridade do preso. Apenas em 1736 foi introduzida a obriga-
reter que as dimensões do fenômeno eram bem mais discretas do que na
toriedade da manutenção da população em regime de detenção preventiva
através de dinheiro público". Europa30 , levando-se em conta que a população global de todas as colônias
não atingiam, naquela época, quatro milhões de habitantes, dos quais cerca
As condiçôes de sobrevivência najail são descritas como deploráveis. A
de meio milhão era composto por escravos negros, em relação aos quais
pena crítica do moralismo quacker encontra assim espaço para invectivas e estas instituições dificilmente agiam31 •
para denunciar a perigosa promiscuidade em que vivem os prisioneiros:
O dimensionamento global pode ser mais rapidamente compreendido se
Que espetáculo - escreve R. Vaux - pode oferecer este lugar, onde, como
considerarmos que o sistema ainda dominante de amu1io à população indigente,
numa única e comum manada, são lançados, noite e dia, prisioneiros de
todas as idades, cor e sexo! Não é feita nenhuma separação entre o criminoso
preso em flagrante e os detidos que podem ter sido, talvez falsamente, 27
O diário de S. R. Fisher (1745-1834), no qual descreve a sua experiência na
suspeitos de alguma culpa de pouca monta, entre velhos e endurecidos prisão (1779-1781}, foi publicado após a sua morte pela neta Anna Wharton Morris,
(empedernidos) malfeitores e o jovem e incauto noviço do crime'". em Filadélfia, em data não precisada.
28
O diário de S. R. Fisher - quacker renitente ao serviço militar, detido numa T. Sellin, Philadelphia Prisons of the Eigtheenth Century, op. cit., p. 326.
29
jail durante a revolução - nos oferece um testemunho dos abusos praticados Cf. D. J. D. J. Rothman, The Discovery of Asylum, cit., pp. 30-31.
30
No que diz respeito à descrição do sistema de prevenção/repressão da vaga-
bundagem e da pobreza na mãe-pátria, e também para uma informação quantitati-
24
Ibidem, p. 3. va do internamento nas poorhouses e workhouses, ver Sidney e Beatrice Webb,
25
Ibidem, p. 4. English Local Government: English Poor Law History (Parte !, "The Old Poor
26
Este testemunho de R. Vaux sobre o regime interno da jail - mais especifica- Law"). Londres, 1927; M. Blaug, "The Myth of the Old Poor Law and the Making
mente daquela conhecida corno "Old Stone Prison" - pode ser encontrado em sua of the New", in Journal of Economic History, 1967, nº 23, pp. 151-184.
31
obra Noticies o/ Ih(!! Original and Successive Ejforts, to Improve the Discipline of Os dados sobre a população foram retirados de U. S. Census Bureau, Historical
the Prison of Philadelphia, 1826, p. 4. Statistics of the United States, Colonial Times to I957, Washington, 1960, p. 14.
160 161
sobretudo se local, era a household relief (ajuda doméstica domiciliar) e a
neighbor relief(ajuda comunitária, de tipo caritativo)32 •
É interessante, pois, observar como - na hipótese em que se recorre à
'°~" ~"00. ~"00 ""= '"'-'" ,_,,,, "" ""'' ::~~~ ~
nial, devido à presença de locais especializados para a assistência hospitalar-
quer pública, quer privada -, a poorhouse tenderá, progressivamente, a
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1
jj
assistência através do internamento forçado - o modelo paradigmático
continuou sendo o de tipo doméstico-familiar. É ilustrativo, neste sentido, o tnmsformar-se num verdadeiro hospital para doentes pobres37 • ;1
d
sistema institucional da almshouse ou poorhouse, que se estrutura, também Ao contrário, a estrutura do controle social no que tange aos desvios
arquitetonicamente, sobre o modelo da casa colonial. Originariamente, esta criminais se apresenta menos articulada. Já tivemos oportunidade de falar
li
d
instituição não conhece sequer a exigência de um projeto específico; utilizava sobre a natureza essencialmente processual da jail, assim como já nos :i1
pura e shnplesmente qualquer edifício já existente 33 • O modelo da vida referimos à presença dominante das penas corporais. Entre estas, a forca
1
doméstica inspirou as regras da práxis institucional: o pessoal e os agentes, .(gallow) foi a pena capital a que, estatisticamente, as colônias norte-
juntamente com suas famílias, viviam no interior da poorhouse; os internos americanas recorreram com mais freqüência, sobretudo nos períodos de
não usavam uniformes e a única forma de segregação conhecida - mas se graves tensões sociais3 8 .
ignora até que ponto foi aplicada- era entre.homens e mulheres. As refeições É interessante observar que, entre as demais sanções penais de tipo cor-
eram feitas em conjunto com os keepers e os internos tinham livre acesso a poral, a mais conhecida, depois da pena do açoite ( whip ), foi provavelmente
todos os lugares". o pelourinho (stocks). Este tipo de sanção penal, por sua natureza essencial-
Em outras palavras, a poorhouse - na qual eram internados sobretudo os mente pública, evidencia uma atenção voltada mais para o significado moral
pobres residentes, bem como os órfãos e as viúvas indigentes - funcionava do que puramente físico da pena infringida. Em outras palavras, coloca em
com base no modelo da household. Portanto, como observa Rothman 35 , esta relevo uma estrutura social na qual a reputação e o senso de honra deviam
instituição não era verdadeiramente um asylum. Quem nela residia formava, constituir valores fundamentais" e, portanto, por oposição, confirma, ao nível
na realidade, umafamily e não uma comunidade de inmates, ou seja, uma cultural, um sistema socioeconômico de tipo agrário e, por conseguinte,
comunidade de internos. O modelo da poorhouse, com o tempo, vem a profundamente ligado à propriedade imobiliária.
"contaminar" a realidade institucional mai~ abrangente. É sob essa mesma ótica, e tendo em mente o peso da tradição bíblico-
Assim, por exemplo, o problema social.representado pelos lunatics (loucos) religiosa entre as comunidades dos primeiros colonizadores, que deve ser
era comumente resolvido através da assistência doméstica. Apenas no caso interpretada a pena da marca de fogo (branding), através da qual os conde-
em que a doença mental era considerada socialmente perigosa o louco podia nados eram marcados com a letra inicial do delito que haviam cometido'º. Já
ser internado à força numa seção especial da almshouse ou, em outros casos, mencionamos também as sanções típicas contra aqueles que transgrediam
nas dependências de uma house of correction36 • as normas sobre imigração. Esses condenados, além de serem internados na
As instituições hospitalares (hospita{) surgiram a partir de serviços house of correction, eram mais facilmente expulsos da colônia ou da cidade.
especiais oferecidos pela própria poorhouse, que, em muitos casos, se trans-
37
32
R. H. Shryock, Medicine and Society in America: 1660-1860, Nova Iorque, 1960.
Informações_ precisas sobre este tipo de auxílio aos pobres na época colonial 38
Dos 446 casos reportados entre 1693 e 1776 e levados perante a Suprema Corte
são encontradas nos volumes publicados por .Chamberlayne, citados na nota 10.
33
de Nova Iorque, 87 terminaram com uma sentença de morte (segundo J. Goebel e
D. Carrol, "History of the Baltimore City HospitalS", in Maryland State Medical
T. R. Naughton, Law Enforcen1ent in Colonial New York, Nova Iorque, 1944, p.
Journal, 1966, p. 15. 702, nota nº 39). Sobre o papel da pena capital no período colonial, ver também L.
"D. J. Rothman, The Discovery of Asylum, cit., p. 43. H. Gipson, "Crime and Punishment in Provincial Pennsylvania", in Lehig Univesity
35
Ibidem. Pubblications, 1935, nº 9, pp. 11-12; H. F. Rankin, Crinlinal Triai Proceedings in
36
H. M. Hurd, The Institutional Care of the lnsane in the Uníted States and the General Court of Virginia, Charlottesville, Virgínia, 1965, pp. 121-122.
39
Canada, vol. III, Baltimore, 1916, p. 380. Sobre esse JXJnto, ver Goebe1 e Naughton, Law Enforcement, cit., p.707, nota nº 151.
40
D. J. Rothman, The Discovery of Asylun1, cit., p. 50.
162
163
Esse mesmo tipo de sanção era aplicado aos pequenos transgressores da lei As prédicas e os sermões de caráter religioso-civil, publicados com
penal, particularmente se não residentes. freqüência em edições populares e distribuídos entre a comunidade de fiéis,
A natureza e a função da house of correction e da workhouse apresentam confirmam esta observação43 .
ainda amplas margens de incerteza e ambigüidade. Certamente os dois termos
Quando os filhos não obedecem aos pais - ameaçava no seu opúsculo
foram empregados de forma indiscriminada para indicar a mesma realidade.
The Well-Ordered Family o ministro de culto Wadsworth - Deus é
Originariamente saída do modelo da análoga instituição européia, a workhouse
muitas vezes tentado a abandoná-los àqueles pecados que os levam,
devia servir para abrigar os pequenos transgressores da lei penal lfellons),
depois, inevitavelmente, à mais ampla infâmia e miséria ... Quando
em relação aos quais não eram aplicadas as sanções corporais. Mas na
alguém é conduzido ao patíbulo, quantas vezes ele confessou que foi
realidade, com o passar do tempo, a workhouse passou também a concentrar a desobediência aos pais que o levou ao crime?
44

ociosos e vagabundos (beggars, vagrants), ou seja, ·aqueles não residentes


que violavam as normas sobre a imigração. Posteriormente, ela foi utilizada O papel educativo da fanu1ia, os deveres dos pais de reprimir os comporta-
para receber os pobres residentes e, em alguns casos, serviu também de mentos desviantes dos filhos eram projetados para fora do problema juvenil
cárcere para devedores. Era neste universo heterogêneo, caracterizado pela e os "erros na educação familiar" eram interpretados como a causa principal
da patologia social no seu conjunto:
precariedade e pela marginalidade sociais, que devia operar a disciplina
institucional a fim de impor, compulsoriamente, um processo reeducativo Prestem atenção e atuem no sentido de que todos os jovens sejam
que - ao nível puramente ideológico e imitativo da práxis então dominante na obedientes; vale lembrar que os apetites e as paixões não reprimidos
mãe-pátria - se julgava socialmente oportuno. na juventude tornam-se incontroláveis na maturidade e levam à
45
Na prática colonial estas finalidades foram completamente deixadas de lado. desonra, à doença e por fim à morte •
Com efeito, a estrutura institucional da workhouse ou da house of correction É oportuno recordar que o papel educativo da fanu1ia durante a infância
raramente diferia da poorhouse ou abnshouse, assim como esta última, na não se esgota no nível ético-ideológico, mas se concretiza também através
realidade dos fatos, se organizou com base no modelo da household reliej'. A de uma estrutura normativo-institucional que inclui, por exemplo, a obrigação
mesma obrigação ao trabalho forçado, que devia, ao menos nas declarações, dos pais de impor uma rígida disciplina aos próprios filhos. A eventual carência
caracterizai a execução penal nas workhouses, em nada diferia do sistema de familiar no processo educativo encontra a autoridade pronta para intervir,
utilização da força de trabalho no interior das poorhouses, ou seja, um trabalho retirando compulsoriamente, por exemplo, o menor do poder dos pais naturais
que reproduzia o modelo produtivo da grande família colonial 41 • e confiando-o ao controle quer de uma outra fanu1ia, quer - sobretudo num
Concluindo esta sintética análise da América pré-revolucionária, podemos segundo momento - à assistência pública. Por essa razão, já no período
afirmar que os principais mecanismos do controle social seguiam, na prática, colonial é possível encontrar casos de internamento em workhouses de menores
o modelo da instituição fundamental da época: a família colonia/42 • que não tinham, ainda, propriamente violado a lei penal, mas que tinham
É razoável pensar que, mais do que ser assumida como modelo para o dado mostras de não ter recebido uma educação apropriada".
controle social das classes perigosas ou marginais, a fanu1ia colonial desem-
penhava um papel institucional central na educação/repressão dos desvios de
43
comportamento dos jovens. Um indício sintomático desta posição especial Ver nota 11.
da família nos é dado por numerosos testemunhos da época, nos quais 44
B. Wadsworth, The Well-Ordered Family or Relative Duties: Being the Subs-
sublinha-se como, através do controle da juventude, a comunidade familiar tance of Severa/ Sermons, Boston, 1712, p. 90.
se convertia no agente de controle de toda a sociedade. 45
S. Willard, /1npenitent Sinners Warned of their Misery and Sununoned to
Judgment .. ., Boston, 1698, p. 26.
46
Como teremos oportunidade de ver, o fenômeno do internamento institucional
"Ibidem, p. 55.
da infância desviada e abandonada só adquirirá uma dimensão dominante a partir
42
Ibidem, p. 55. do século XIX.
164 165
Esse mesmo tipo de sanção era aplicado aos pequenos transgressores da lei As prédicas e os sermões de caráter religioso-civil, publicados com
penal, particularmente se não residentes. freqüência em edições populares e distribuídos entre a comunidade de fiéis,
A natnreza e a função da house of correction e da work/wuse apresentam confirmam esta observação 43 .
ainda amplas margens de incerteza e ambigüidade. Certamente os dois termos Quando os filhos não obedecem aos pais - ameaçava no seu opúsculo
foram empregados de forma indiscriminada para indicar a mesma realidade. The Well-Ordered Family o ministro de culto Wadsworth - Deus é
Originariamente saída do modelo da análoga instituição européia, a workhouse muitas vezes tentado a abandoná-los àqueles pecados que os levam,
devia servir para abrigar os pequenos transgressores da lei penal (jellons), depois, inevitavelmente, à mais ampla infâmia e miséria ... Quando
em relação aos quais não eram aplicadas as sanções corporais. Mas na alguém é conduzido ao patíbulo, quantas vezes ele confessou que foi
44
realidade, com o passar do tempo, a workhouse passou também a concentrar a desobediência aos pais que o levou ao crime?
ociosos e vagabundos (beggars, vagrants), ou seja, ·aqueles não residentes O papel educativo da família, os deveres dos pais de reprimir os comporta-
que violavam as normas sobre a imigração. Posteriormente, ela foi utilizada mentos desviantes dos filhos eram projetados para fora do problema juvenil
para receber os pobres residentes e, em alguns casos, serviu também de e os "eJTos na educação familiar" eram interpretados como a causa principal
cárcere para devedores. Era neste universo heterogêneo, caracterizado pela da patologia social no seu conjunto:
precariedade e pela marginalidade sociais, que devia operar a disciplina
Prestem atenção e atuem no sentido de que todos os jovens sejam
institucional a fim de impor, compulsoriamente, um processo reeducativo
obedientes; vale lembrar que os apetites e as paixões não reprimidos
que- ao nível puramente ideológico e imitativo da práxis então dominante na
na juventude tornam-se incontroláveis na maturidade e levam à
mãe-pátria - se julgava socialmente oportuno. 45
desonra, a'doença e por fiim a' morte .
Na prática colonial estas finalidades foram completamente deixadas de lado.
É oportuno recordar que o papel educativo da família durante a infância
Com efeito, a estrutura institucional da workhouse ou da house of correction
não se esgota no nível ético-ideológico, mas se concretiza também através
raramente diferia da poorhouse ou almshouse, assim corno esta última, na
de uma estrutura normativo-institucional que inclui, por exemplo, a obrigação
realidade dos fatos, se organizou com base no modelo da household relief A
dos pais de impor uma rígida disciplina aos próprios filhos. A eventnal carência
mesma obrigação ao trabalho forçado, que devia, ao menos nas declarações,
familiar no processo educativo encontra a autoridade pronta para intervir,
caracterizai a execução penal nas workhouses, em nada diferia do sistema de
retirando compulsoriamente, por exemplo, o menor do poder dos pais naturais
utilização da força de trabalho no intedor das poorhouses, ou seja, um trabalho
e confiando-o ao controle quer de uma outra familia, quer - sobretudo num
que reproduzia o modelo produtivo da grande familia colonial".
segundo momento - à assistência pública. Por essa razão, já no período
Concluindo esta sintética análise da América pré-revolucionária, podemos
colonial é possível encontrar casos de internamento em workhouses de menores
afhmar que os principais mecanismos do controle social seguiam, na prática, que não tinham, ainda, propdamente violado a lei penal, mas que tinham
o modelo da instituição fundamental da época: a família colonial''.
dado mostras de não ter recebido uma educação apropriada46 •
É razoável pensar que, mais do que ser assumida como modelo para o
controle social das classes peligosas ou marginais, a familia colonial desem-
penhava um papel institucional central na educação/repressão dos desvios de
comportamento dos jovens. Um indício sintomático desta posição especial
43 Ver nota 11.
da família nos é dado por numerosos testemunhos da época, nos quais
44 B. Wadsworth, The Well-Ordered Faniily or Relative Duties: Being the Subs-
sublinha-se como, através do controle da juventude, a comunidade familiar tance of Severa/ Sermons, Boston, 1712, p. 90.
45 S. Wi11ard, l111penitent Sinners Warned of their Misery and Sumnioned to
se convertia no agente de controle de toda a sociedade.
Judgment .. ., Boston, 1698, p. 26.
46 Como teremos oportunidade de ver, o fenômeno do internamento institucional

41 lbiden1, p. 55. da infância desviada e abandonada só adquirirá uma dimensão dominante a partir
42 lbiden1, p. 55. do século XIX.
165
164
Correndo um risco, talvez, de um excessivo esquematismo, podemo em funcionamento mais dois bancos, o de Massachusetts, em Boston, e o
afirmar que a instituição familiar própria de urna comunidade agrícol Banco de Nova Iorque".
territorialrn~nte estável tende, através de um processo de progressiva dilatação,-.• Esses dados, embora heterogêneos entre si, revelam, indubitavelmente,
a reproduzir-se quase por segmentação numa rede complexa de estmturas{Y um processo, rápido e violento, de mutação da economia americana pós-
sociais de controle, análogas entre si. O processo é, assim, simétrico. - revolucionária. De fato, como procuraremos demonstrar em seguida, à se-
1nedida em que a situação das classes sociais marginais (leia-se poors, lunatics paração das colônias da América da mãe-pátria, à qual eram profundamente
crbninals etc.) é vivida e interpretada em termos semelhantes aos dos menorest ligadas, seguiu-se um processo (tornado necessário pelo novo regime autár-
a família - instituição à qual foi delegada, originalmente, apenas o controle d~ quico que foi automaticamente gerado após a obtenção da independência da
infância - torna-se o termo paradigmático para o controle social de todas Inglaterra) de transformação econômica. Se só se poderá falar de urna verda-
outras formas de desvio (leia-se household e neighbor relief, almshouse, deira decolagern a partir do final dos anos 1820, os 30 anos anteriores foram
workhouse etc.).
marcados por processos econômico-sociais que constituíratn as premissas
estruturais necessárias à revolução industrial que lhes sucedeu. Em outras
2. O quadro estrutural: de uma sociedade agrícola
palavras, na passagem para o século XIX e nos seus priineiros anos, num
a uma economia industrial
arco de tempo relativamente curto, os Estados Unidos conheceram um acen-
a. O período pós revolucionário: p1vcessos de acun1u/açc70 tuado e acelerado processo de acumulação capitalista e as conseqüentes trans-
e economia n1ercantil formações socioculturais a ele associadas.
Em 1790, os Estados Unidos eram ainda um país com menos de quatro Uma das primeiras e mais relevantes conseqüências con·elatas à nova
milhões de habitantes e não possuía sequer urna cidade com mais de 50.000 realidade socioeconôrnica da América independente foi o sentido diferente
pessoas. Havia apenas sete centros urbanos com mais de 5.000 habitantes e que a propriedade fundiária começou a ter. Embora este processo não tenha
12 com mais de 2.500. O resto da população (3,7 milhões) vivia no carnpo47. podido alterar o papel central da agricultura na política econômica norte-
Em 1820, a população rnral mais do que duplicara, enquanto a urbana, que a1nericana, nos anos itnediatamente anteriores e imediata1nente posteriores à
sornava 700.000 pessoas, mais do que triplicara". Em 1791, havia apenas Revolução, assistimos à dissolução do grande latifúndio e ao afrouxamento
um único estabelecimento têxtil em todo o país, dois em 1795; mais dois das relações que ligavam a força de trabalho braçal ao latifúndio.
foram inaugurados em 1803 e dez entre 1804 e 1808. No final de 1809, já É preciso sublinhar que no período colonial a propriedade fundiária na
podiam ser contadas 87 fábricas. A capacidade produtiva do setor têxtil América _estava estruturada com base no modelo econô1nico dominante na
cresceu de 8.000 fusos em 1808 para 31.000 no final de 1809 49 ; em 1811 o Inglaterra, isto é, o sistema da grande propriedade. No estado de Nova Iorque,
número de fusos existentes já alcançava 80.00050 . na Pensilvânia e em Maryland, assim como na Virgínia e nas colônias sulistas,
No tempo da Declaração de Independência, não existia um único banco podiam ser contadas nos dedos as propriedades com milhares de acres. No
em todo o país. O primeiro a surgir foi o North Arnerica Bank, fundado por estado de Nova Iorque, por exemplo, mais de dois milhões e meio de acres
urna assembléia de cidadãos de Filadélfia em 1780, para financiar as despesas eram propriedade de poucas famílias; em 1769 pelo menos 516 dos habitantes
de aprovisionamento do Exército americano. O banco deu início às suas do condado de Westchester viviam dentro dos limites de grandes propriedades.
atividades com um capital de apenas 300.000 dólares. Em 1789 entraram Houve urna época em que apenas a propriedade de Fairfax, na Virgínia, reunia
seis milhões de acres, enquanto a de lorde Granville, na Carolina do Norte,
41
compreendia pelo menos 1/3 de todo o teffitório da colônia". Essas enormes
U.S. Census Bureau, Historical Statistics, cit., p. 14.
48
propriedades eram cultivadas com o trabalho de assalariados e de escravos.
lbide111.
49
D. North, "L'industrializzazione dcgli Stati Uniti", in Storia econô111ica di
51
Ca111bridge, vai. VI: "La rivoluzione industdale e i suai sviluppi", Turim, 1974, p. 738. J.F. Jameson, la rivo!uzione an1ericana co111e 111ovb11e11to sociale, Bolonha, 1976, p. 97.
50
F. W. Taussig, The Tariff History ofthe United States, Nova Iorque, 1914, p. 28. 52
Ibidem, pp. 59-60.
166 167
Diversos fatores concorreram para alterar profundamente esta orde Nos velhos estados, assistimos a amplos fenômenos migratórios em di-
econômica. Em primeiro lugar, foram suspensas as limitações que regiam-/' reção aos altiplanos das regiões situadas ao oeste. Este era, de regra, o estágio
ocupação de novas terras; deixaram igualmente de ter valor legal a ordenanç intermediário que precedia a emigração para os Apalaches. Por volta de 1791,
régia de 1763, que proibia a colonização e a concessão de terras por parte d as áreas ao oeste das montanhas já contavam com uma população considerável
governo para além dos montes Apalaches, e as providências contidas no:. e já estavam dadas as condições para a grande "corrida para o Novo e o
Quebec Act de 1774, que restringiam a expansão para o oeste. Em segunddÍ Distante Oeste"". Neste período, cai por terra, quase que completamente, a
lugar, foram suspensas, na maioria das colônias, as leis que obrigavam ·, velha legislação colonial contra a imigração. O ideal primitivo da comunidade
colonos a pagarem uma taxa por acre de terreno em benefício da Coroa territorialmente estável torna-se assim definitivamente abalado.
do proprietário da província". Concomitantemente à desagregação da velha ordem econômico-fundiária,
Porém, o que mais afetou o antigo sistema de prop1iedade foram os grand 0 período pós-revolucionário também se caracteriza pela rápida formação de
confiscas decretados pelo poder legislativo dos diversos estados, no auge d grandes patrimônios individuais, não mais baseados na propriedade imobiliária,
guerra, em relação às propriedades dos Tories. A título puramente ilustrativo, n mas sim nos altíssimos lucros derivados de algumas atividades comerciais.
estado de Nova Iorque foi confiscada em 1782 uma extensão territorial, ori Os setores mais importantes desta atividade foram, de um lado, o comércio
nalmente propriedade dos monarquistas, que podia ser avaliada em cerca de escravos e, de outro, a importação de manufaturados das terras do Oriente
dois milhões e meio de dólares; na Pensilvânia, foi integralmente confiscada a; com as quais as colônias da América tinham tido antes contatos apenas
propriedade dos Penn, cujo valor foi estimado em um milhão de libras". A&' indiretos. O comércio de escravos, sobretudo para os estados do Sul, era
terras expropriadas foram em seguida vendidas a pequenos proprietários em uma necessidade econômica ligada à constante e quase endêmica escassez
frações que, normalmente, não ultrapassavam os 500 acres. Ao mesmo tempo,.~· de força de trabalho e ao conseqüente alto custo da mão-de-obra57 • Durante
sempre para fazer frente aos crescentes débitos de guerra, os diversos estados, a Revolução, as dificuldades da navegação e as repetidas incursões dos
venderam também a pequenos proprietários grandes extensões de te1rns públicas.; exércitos invasores tinham reduzido, se não interrompido, o fluxo de "in1i-
A suspensão de antigas leis de tipo medieval que haviam sido impostas. gração" da população de cor. Com o advento da paz, a forte demanda de
pela Inglaterra, como o direito de primogenitura e as limitações ao desmembra~' força de trabalho reativou o comércio de escravos.
mento da propriedade fundiária, também concorreu para acentuar o fenômeno<' Os lucros do comércio com o Oriente, sobretudo o comércio de artigos
em curso, para modificar a geografia social da propriedade. Sob essa ótica,., de luxo, cada vez mais difíceis de conseguir, num mercado que não podia
foi baixado o Jefferson Act, em 1776, que liberou dos fideicomissos pelp mais ter contatos com a Inglaterra, eram exorbitantes. Jameson conta que
menos% das propriedades da VIrgínia55 • Se este intrincado conjunto de fenô,,' cargas d~ copos de vidro importados da ilha Maurício por um valor inferior
menos teve como principal conseqüência uma redistribuição mais democrátic~c -\ a mil dólares eram revendidas na América por 12.000. A importação de café
da propriedade fundiária (tem-se de considerar que mesmo o direito de vot9, da Índia podia gerar lucros iguais a 300 ou 400%58 •
estava subordinado a ela), certamente comportou também um amplo processo ·
Por detrás do impulso da evolução foram também suspensos os atos de
de mobilidade social. Se uma redistribuição diferente da propriedade fundiária ··
navegação com os quais a mãe-pátria monopolizara o comércio com as co-
podia, de fato, transformar alguns em pequenos proprietários, amplos estratos
lônias, abrindo, assim, novas possibilidades ao comércio. A exportação, por
de ex-colonos, originariamente empregados como trabalhadores braçais no
latifúndio, foram obrigados ou convencidos a abandonar as áreas onde viviam
para transferir-se para as novas terras incultas. "Ibidem, p. 74.
57 H. Conrad e J, R. Meyer, "The Economic of Slavery in the Antebellum South",
in Journal of Political Economy, 1958, vol. LXVI, nº 2, pp. 95-130; P. S. Foner,
53
Ibidem, pp. 62-63. Business and Slavery: the New York Merchants and the Irrepressible Conflict,
54
Ibidem, p. 66. Chapei Hill, 1941.
55 58
Ibidem, p. 68. J. F. Jameson, La rivoluz.one americana conze nzovimento sociale, cit., p. 104.
168 !69
A situação mudou em parte depois do embargo que limitou o comércio
exemplo, de tabaco para a França, a Espanha e a Holanda ocorria agora que ··
com o exterior, adotado em 1807 por Jefferson, que temia pelo envolvimento
diretamente, quer através das possessões destes países nas Antilhas. Emerg!li
dos Estados Unidos na guerra européia. Essa medida foi seguida por uma
assim, neste período, ao lado das primeiras grandes concentrações capitalistas"
grave depressão, sobretudo no setor comercial. A forte redução do comércio
uma verdadeira classe mercan~il, dotada, se não ainda de capacidade empre:
de exportação foi acompanhada, em conseqüência, por uma redução nas
sarial e de hábitos burgueses, certamente de uma viva habiliqade para 0 co-
importações, particularmente no setor têxtil. O inevitável aumento dos preços
mércio e de uma grande sensibilidade para os negócios.
abriu novas possibilidades de produção para o mercado americano, enquanto
Nesse período, a atividade manufatureira é, em essência, de tipo doméstico". no setor da produção têxtil começaram a ser utilizados os recursos que, no
artesanal. Nas pequenas comunidades isoladas e espalhadas pelo interior passado, tinham se dirigido para o comércio de exportação.
existia, de fato, uma rudimentar divisão de trabalho, com um certo númeró' Nessa conjuntura política, outros setores da atividade manufatureira se
de produtores locais de mercadorias servindo a minúsculos mercados auto" · desenvolveram com igual rapidez, sempre com a intenção de obter lucros a
suficientes. Essa atividade era detenninada pela necessidade de uma economia··· partir da interrupção nas importações de manufaturados. A crise econômica
autárquica, não dirigida para o mercado, de uma boa parte da população,., que se seguiu a 1814, ligada à suspensão do embargo e à conseqüente e
Em todas as famílias - recorda Jameson - se renovou o uso da roca, e insustentável concorrência com a produção estrangeira, obrigou o governo
até os mais ricos se vestiam com tecidos caseiros. As competições · central dos Estados Unidos a impor uma política protecionista, mediante a
para ver quem fiava mais, ocorridas entre vizinhos, era um excelente criação de altos impostos alfandegários sobre as mercadorias importadas. A
instrumento para extravasar o ardor patriótico. Em 1769, as importá• crise teve, pois, um efeito salutar: as cláusulas tarifárias tornaram-se uma
ções da Inglaterra nas colônias do Norte reduziram-se em até pouco . proteção eficaz diante de uma queda do preço dos tecidos mais grosseiros.
mais de 1/3 das importações registradas em 1768. Para isso foram' A depressão - como observa North - foi o teste de fogo das primeiras
revogadas todas as taxas, à exceção da taxa sobre o chá. Na cerimônià.:. tentativas industriais americanas (. .. ) Ao recomeçar as importações,
de entrega dos diplomas em Harvard, em 1770, os estudantes comi],ª" · no início dos anos 1820, as manufaturas que conseguiram sobreviver
receram vestindo togas de tecido negro, de produção americana . constituíram a base do desenvolvimento gradual que deveria levar à
62
A presença economicamente relevante e em larga escala da manufatura economia industrializada de 1860 •
era, pois, um fenômeno marginal. Porém, já neste período se pode indivi- Podemos acrescentar - sintetizando o que vimos dizendo - que as bases
dualizar algumas, ainda que limitadas, exceções, sobretudo no setor da do futuro desenvolvimento industrial devem ser mais adequadamente lo-
transformação das matérias-primas disponíveis localmente. A produção calizadas na emergência, no período pós-revolucionário, de algumas cons-
resource-oriented é o aspecto mais significativo. A construção de navios tantes estruturais, tais como:
constitui o exemplo mais notável, dada a riqueza das florestas, assim como a 1. uma nova redistribuição da propriedade fundiária e, por conseguinte, o
indústria de móveis e a de madeira 61 • delineamento de um vasto processo de mobilidade social;
O ponto central para a explicação deste atraso na decolagem propriamente 2. a endêmica escassez de força de trabalho e a determinação de um nível
industrial está essencialmente ligado à escassez de mão-de-obra e, conse- salarial elevado daí decorrente (é por essa razão que a futura organização
qüentemente, ao alto custo da força de trabalho. É por essa razão que os industrial será obrigada a empregar capitais mais elevados comparativa-
limitados capitais disponíveis privilegiaram operações comerciais e especu- mente àqueles investidos, para uma igual produção, na Europa da época);
lativas ligadas ao tráfico marítimo. 3. a concentração, em pouco tempo, de grandes capitais através do co-
mércio marítimo; e
4. a presença de abundantes riquezas naturais e, em geral, de baixos
59 custos no aproveitamento das matérias-primas.
D. North, L 'industrializzazione degli Stati Uni ti, cit., p. 737.
60
J. F. Jameson, La rivoluzone a111ericana co111e 111ovbnento sociale, cit., p. 87. 62
61
Ibidem, p. 739.
D. North, L 'industrializzazione degli Stati Uni ti, cit., p. 737.
171
170
b. A decolagem industrial (1820-1860) ara a conexão "a montante" e ua jusante" com outros tipos de manufaturas:
Na década de 1820-1830, os empreendimentos manufatureiros dos estâ um lado, a indústria das máquinas-utensílios, e, do outro, a do vestuário68 .
do Nordeste se afirmaram num amplo conjunto de setores; no decênio segui·· Em 1860, o principal setor industlial era o do algodão, que empregava
o crescimento econômico, ainda tutelado pelas taxas aduaneiras protecio · .114.955 operários e ocupava também o primeiro posto na classificação
conheceu um incremento aceleradíssimo. Já em 1854, o censo industrial baseada no valor agregado, o que equivalia a 50% do valor de toda a pro-
Massachusetts indicava uma produção avaliada em US$ 124.749.457, fre dução". No que concerne ao emprego de força de trabalho, o segundo lugar
aos US$ 86.282.616 do levantamento de 183763 • No qüinqüênio 1844-184 cabia à indústria de vestuário, com 114.800 trabalhadores e, em seguida, o
taxa de crescimento da produção americana, a preços constantes, foi de 68,3 setor de máquinas-utensílios e produtos de lã, os quais, em conjunto, davam
Em 1860, os Estados Unidos da América já eram o segundo país trabalho a mais de 80.000 operários 70 •
industrializado do mundo. Como já foi dito, o grande incremento na produção têxtil e nas atividades
A população urbana, pouco superior a meio milhão de pessoas em 18 · afins foi, em parte, determinado pelo emprego maciço de capitais e da utili-
triplicou em 1830 e mais do que decuplicou em 1860 (em números exa't zação, cada vez mais massiva, das máquinas, em particular o tear mecânico.
6.216.518 pessoas), ao passo que a população rural, neste mesmo lapso Este processo - também dependente das inovações tecnológicas - só teve
tempo, aumentou apenas três vezes". O fenômeno da concentração urba condições de desenvolver-se em larga escala após 1830.
foi notável. A indústria, utilizando os recursos disponíveis, inflU:f Foram, portanto, as conexões "a montante" com o maquinário têxtil que de-
decisivamente sobre o tipo de urbanização. O Nordeste, compreendendo sempenharam um papel essencial na atividade manufatureira e levaram a econo-
estados do médio Atlântico, contava em 1850 com mais da metade mia americana aos primeiros lugares na produção mundial. Como observa Gibb:
estabelecimentos industriais; em 1860, o percentual atingia a 71 % 66•
A fabricação das máquinas têxteis parece ter sido, na América, a in-
O vetor que impulsionou este excepcional economical growth foi a indústrfi dústria pesada mais importante, que ocupou o primeiro lugar em quan-
têxtil. Em 1831, a indústria do algodão compreendia 795 estabelecimentos · tidade e em valor de produção entre todas as indústrias que fabricavam
o valor global da produção girava em torno de US$ 32 milhões. Em 1860, produtos metálicos. Todavia, essas duas dimensões não dão a medida
número de fábricas chegava a 1.091, capazes de produzir um valor equivalent~ da importância desta indústria. Dos estabelecimentos têxteis e das
a US$ 115.700.00067 • oficinas de máquinas têxteis saíram os homens que forneceram à
A importância da produção do conjunto do setor têxtil é economicamente 1 Revolução Industrial americana a maior parte dos seus instrumentos.
çlemonstrável. Este tipo de trabalho desempenhou, de fato, um papel estratégic<i ' Destes estabelecimentos e oficinas saíram diretamente as indústrias de
máquinas-utensílios e locomotivas, juntamente com uma grande
71
variedade de produtos menos importantes • .

63 O desenvolvimento das oficinas de máquinas têxteis condicionou


J. B. Bigelow, Statistical Tables: Exhibiting the -Condition and Products of
Certain Branches o/ lndustry in Massachusetts, for Year Ending April 1, 1837, favoravelmente a indústria americana num duplo sentido: de um lado,
Boston, 1838; D. Francis, Statistical Information Relating ro Certain Branches determinou um processo de especialização industrial, através da separação
of Industry in Manufactures for the Year Ending June !, 1855, Boston, 1856.
64
R. Gallman, "Cornmodity Output, 1839-99", in Trends in the American Economy 68
V. S. Clark, History of Manufactures in the United States, 1860-1914, vai. II,
in the Nineteenth Century, Studies in Income and Wealth, vol. XXIV, Princeton, Nova Iorque, p. 452.
1960, tabela A-5, p. 56. 69
U, S. Census Office, The Eighth Census: Manufactures of the United States in
65
U. S. Census Bureau, Historical Statistics, cit., p. 14. 1860. Washington, 1865, pp. 733-742.
66
D. North, L'industrializzazione degli Stati Uniti, cit., p. 742. 70
Ibidem, pp. 733-742.
67
M. T. Copeland, The Cotton Manufacturing Industry of the United States. 71
G. S. Gibbs. The Saco-Lowell Shops, Textile Machinery Building in New
Cambridge, Mass., 1912, p. 6. England, 1813-1849. Cambridge, 1950, p. 179.
172 173
da construção das máquinas da fabricação dos tecidos, com a consequente imigração européia e a notável mobilidade social não foram capazes de
redução do custo; do outro, constituiu um importante espaço de experimentos acompanhar o ritmo acelerado da industrialização. Se é verdade que esta
que influiu sobre outros tipos de empreendimentos mecânicos72 • ~ situação permaneceu constante no período aqui considerado, também é
O mesmo fenômeno registrado no setor algodoeiro é encontrável, de um verdade que por volta dos anos 1830, ainda que parcialmente, é possível
modo mais atenuado, na indústria de lã e na de calçados. perceber processos internos no mercado de trabalho que aumentaram um
Foi assim que, ao final dos anos 1860, os Estados Unidos podiam contar pouco a oferta de mão-de-obra e, por conseguinte, também ampliaram,
com mais de um milbão e meio de empregados na indústria de transformação". posteriormente, a capacidade produtiva. Com efeito, o processo de
especialização regional já indicado sublinhou, posteriormente, a fratura
Este rápido processo de.industrialização, caracterizado pelos altos custos do
socioeconômica entre os estados do Norte e os do Sul76.
fator trabalbo, determinou um crescimento constante no nível de vida. Este
fenômeno é mais perceptível nas regiões do Nordeste, as mais industrializadas. O comércio do algodão foi a causa próxima deste fenômeno. A constante
Um dos efeitos mais significativos originados dessa contingência econômica foi especialização na produção algodoeira do Sul fez com que os estados dessa
um notável incremento da demanda interna; essa expansão do mercado influiu região produzissem uma parcela bastante modesta de outros bens de consumo
positivamente, no longo prazo, sobre a própria oferta de manufaturados. De e menor ainda de máquinas-utensílios e auxiliares para sua economia, e assim
fato, para fazer frente a uma demanda em expansão, a oferta se especializou nas foram se tornando cada vez mais dependentes da economia manufatureira
funções e determinou o nascimento de produtos de tipo estandartizado. do Norte e da economia agrícola dos estados do Oeste. Em conseqüência, a
renda ~r~scente que a economia sulista obtinha com a exportação do algodão
Essa situação econômica favorável foi atentamente estudada pelos
era dmgida para fora, sob a forma da compra de bens e serviços. Se este
comissões inglesas que analisaram a manufatura americana nos anos 1850".
processo acentuava a demanda global e portanto a capacidade produtiva das
A principal causa da ampliação do mercado foi localizada no desenvolvimento
regiões agrícolas e das regiões industrializadas, ao mesmo tempo tornava a
das especializações também ao nível regional e do crescente comércio inter-
economia escravista do Sul cada vez mais dependente77.
regional. Por essa razão, a indústria têxtil, a do vestuário e, em geral, a
produção de bens de consumo de massa, assumiram um caráter nacional''. Na metade do século XIX, o território dos Estados Unidos podia ser
dividido em três partes, onde floresciam três tipos de sociedade, em tudo
Como já foi dito algumas vezes, as reduzidas dimensões do mercado de
diferentes entre si: o Sul, baseado no latifúndio e no trabalho escravo, onde
trabalho, se, por um lado, incentivaram positivamente o emprego de grandes
se produzia essencialmente o algodão; o Oeste agrícola, caracterizado pela
capitais na produção, por outro, representaram sempre um obstáculo que
presença dominante de homens livres e pequenos agricultores; e as regiões
freou a potencialidade produtiva. Em outras palavras, as altas taxas de
do Nordeste, fortemente industrializadas. A classe camponesa que vivia nas
terras férteis do Oeste tendia, quer economicamente, quer culturalmente, a
72
A. H. Cole, The American Wool Manufacture, Cambridge, 1926, !, p. 276.
ser mais ligada aos interesses políticos do Sul, para onde se dirigia a maior
73
U.S. Census Office. The Eight Census: Manufactures of the United States in
parte do comércio de produtos agrícolas". As terras ainda incultas no Oeste,
1860, cit., pp. 733-742.
74
Estas comissões inglesas, cujos relatórios constituem a avaliação mais acurada 76
B. Moore Jr., Le origini sociali della dittatura e della deniocrazia. Proprietari
do andamento da indústria americana antes da guerra civil, sublinham também o
e contadini nella fonnazione dei nzondo n1oderno, Turim, 1969, capítulo III: "La
alto nível de riqueza, bem como a consistência numérica absoluta e a taxa de
guerra civile americana: !'ultima rivoluzione capitalistica", p 126. (N. do T.: edição
crescimento da população. Estes relatórios oficiais apresentados ao Parlamento
luso-brasileira As origens sociais. da ditadura e da denzocracia: senhores e ca111-
inglês foram, mais tarde, publicados com o seguinte título: J. Whiteworth, G. WaUís,
poneses na construção do 111undo nzoderno. Lisboa: Cosmos/Santos: Martins
The lndustry of the United States in Machinery, Manufactures and Useful
Fontes, 1975, tradução de Maria Ludovina F. Couto).
andOrnarnental Arts, Londres, 1854; Idem, "Report of the Comission of the 77 B. Moore Jr., le origini sociali della dittatura e della den1ocrazia, cit., p. 128.
Machinery of the United States'', in Parliamentary Papers, 1854-1855.
78
P. W. Gates. The Farmer's Age: Agriculture, 1815-1869, Nova Iorque, 1962, p.
75
D. North, The Economic Growth of the United States, 1790-1860, Englewood
143; D. North, Economic Growth, cit., pp. 67-68.
Cliffs, 1961.
174 175

-
por outro lado, atraíam a maior parte da mão-de-obra imigrante, retirando-a, . 3. Processos desagregadores e a nova política
assim, da demanda de força de trabalho das indústrias do Nordeste. Foi, por
do controle social: a hipótese institucional
conseguinte, a tentativa política do capital nortista de romper o cerco
econômico no qual se encontrava que determinou profundas mudanças sociais Entre os efeitos mais relevantes desta profunda transformação econômica
e também a radicalização do choque de interesses políticos e econômicos sofrida pelos Estados Unidos da primeira metade do século XIX, d~vemos
entre Sul e Norte e que, depois, levará o país à guerra civil''. assinalar a emergência de uma nova composição das classes s~c1a1s e a
ocorrência de amplos processos desagregadores da antiga base soc1oc~ltur_al
Entre o final das guerras napoleônicas e o início da guerra civil, o Oeste
de tipo colonial. E frente a essas transformações, cons~atarnos uma av rnçao
se desenvolveu, deixando de ser uma terra de pioneiros para atingir o patamar
diferente da ordem social e uma abordagem, ta~be'.11 nova, de natureza
de uma agricultura mercantil. Até os anos 1830, a maior parte do excedente·
política, do problema do controle das classes margma1s.
da produção agrícola destinava-se ao Sul, alimentando a economia mais
especializada desta região. A situação mudou com o desenvolvimento da Detectamos, na origem desta mudança no modo de analisar os problemas
manufatura do Leste e o conseqüente aumento da demanda de produtos sociais, a profunda convicção, então muito difundida, das pecuhand:des
agrícolas do Oeste. Esta especialização da economia do Oeste e a sua relação estruturais do processo econômico que estava ocorrendo. Essa ~oncepçao -
com o Norte levaram a produção destes estados a se apresentar no novo alimentada por uma boa dose de otimismo sobre o futuro desuno da Nova
mercado nortista com preços competitivos àqueles praticados pela economia República - ao mesmo tempo que sublinhava_~ originalidade do ~~óp'.10
agrícola ainda florescente desta região industrializada. Esta desvantagem universo social, negava, firmemente, a poss1b1hdade de que expenencias
comparativa da agricultura da Nova Inglaterra- na medida em que os produtos passadas ou realidades de outros países pudessem, de algum modo, resolver
do Oeste tornavam-se cada vez mais competitivos graças, em parte, à redução os problemas que ali estavam surgindo.
dos custos de transporte - determinou um fluxo constante de população A euforia que surgia da consciência de "viver uma realidade diferente", a
camponesa das fazendas para as indústrias, incrementando de forma notável vontade polêmica de estigmatizar os novos e ainda incomensuráveis horizontes
a oferta de força de trabalho assalariada80 • que se abriam ao jovem Estado, aprofundaram a int.eligência críti:'~ da cultura
Esta situação ofereceu importantes vantagens ao capital industrial, sem que americana na análise da sua própria realidade social. Sob essa ot1ca, tanto a
com isso tenha sido solucionado o problema crucial de uma mão-de-obra de luta contra a pobreza quanto a vontade de combater a criminalidade foram
custo elevado, sobretudo se comparada com a retribuição que o fator trabalho vividas, por um lado, como justos movimentos de oposição à herança do
recebia, naquele período, nos países industrializados do Velho Mundo. período colonial, ligada na realidade, ao Velho Mundo, e, p~r outro lado,
como problemas passíveis de solução no novo contexto econolll!co.
A densidade comparativa, tão diversa, do velho e do novo país -
A mudança é significativa e radical. Os fenômenos ligados aos process~s
observaram agudamente os comissários ingleses enviados pelo go-
de marginalização social, cOm seus efeitos inevitáveis sobre ª~ ~onv1;ênc:a
verno de Londres para analisar a situação econômica da ex-colônia-
humana, começaram a ser interpretados como problemas pohtJcos, isto _e,
explica provavelmente os sentimentos muito diferentes com os quais
o aumento do maquinário é considerado em muitas partes da ln: como problemas que podiam, ou melhor, deviam, encontrar uma so!uç~o
positiva. Na base desta íntima e difusa convicção figur~va a consc1:n~1a,
glaterra e nos Estados Unidos. Neste país, os trabalhadores saúdam
com satisfação qualquer melhoria mecânica, cuja importância, por conforme sublinhamos, de que se estava diante de uma conjuntura econolll!ca
liberá-los da ingrata fadiga dos trabalhos menos qualificados, estão favorável e talvez inédita: o bem-estar, a prosperidade ao alcance de todos.
• 81
em condições de compreender e apreciar . Neste país - afirmava-se, entusiasticamente - o trabalho de três
dias pode ser suficiente para que se viva durante uma semana,
7 enquanto na Europa o trabalho de uma semana mal dá P"'.:ª8 sustento
'1 B. Moore Jr., Le origini sacia.li della dittatura e della democrazia, cit., pp.143-144. da família de um operário laborioso ou de um campones .
80
D. North, L 'industrializzazione degli Stati Uniti, cit., p. 750.
81
Whitworth Wallis, Industry of the United States, cit., Prefácio, p. VIII. s2 Observação retirada do famoso relatório de Yates (1824) ao Parlamento de
Nova Iorque. O texto do relato definitivo está no New York Senate Journal, 1824.
176 177
Desta premissa, derivava, necessariamente, que ( .... ) num país onde 0 A causa do fenômeno, pelo menos até o final dos anos 1830, é relativa-
trabalho é pago em dobro, onde todos os bens necessários são abundantes mente fácil de ser encontrada: os amplos processos de mobilidade social
e baratos, um indivíduo decidido não deveria correr o risco de nenhum interna, o abandono maciço do latifúndio por parte dos trabalhadores manuais
sofrimento 83 • que se dirigiram para o Oeste, as taxas crescentes de imigração não eram
A abundância de terras férteis ainda não colonizadas confirmava a opinião suficientes para encontrar, no curto prazo, uma saída ocupacional como
dominante na época sobre a possibilidade de derrotar definitivamente 0 força de trabalho industrial. Em outras palavras, num primeiro momento a
problema da pobreza. Em 1819, CadwallederColden, prefeito de Nova Iorque alternativa manufatureira e a fábrica não foram capazes de absorver com-
podia afirmar que ' pletamente a mão-de-obra disponível. Assim, calcula-se que no período jackso-
A situação não era nem podia ser considerada por muito tempo similar niano o percentual de força de trabalho empregada de forma estável na indústria
à da Inglaterra ( ... ) Enquanto tivermos milhões de acres de terras nunca superou 5% do conjunto da população ativa88 •
incultas é impossível que uma parte da nossa população tenha de Por outro lado, no período inicial de acumulação, a economia americana
84
sofrer com a falta de trabalho • se apresentava ainda como essencialmente agrícola e o nível salarial da mão-
A visão otimista de um iminente futuro de riqueza e prosperidade para de-obra empregada nos campos era significativamente inferior aos dos
todos não conhecia exceções. Esta tensão ideal cimentava, assim, os compro- empregados na indústria.
missos políticos na luta contra a indigência e a pobreza, na certeza, sempre Evidentemente, não foram estas as conclusões a que chegaram as comis-
viva, da vitória. sões que investigavam o problema do pauperismo. O esforço de análise para
O povo dos Estados Unidos - afinnava-se - já se libertou da miséria da identificar o processo causal que dava origem ao fenômeno em estudo num
Europa. Agora chegou o momento de assumir, da melhor maneira e o mais país rico e carente de força de trabalho seguiu o mesmo esquema interpretativo
rap1"damente passive
, 1, a 1uta para libertar-se também da sua pobreza85. que, nos séculos anteriores, havia caracterizado a abordagem dos países eu-
Animadas pelos ideais acima descritos, as comissões de inquérito ropeus diante das classes marginais. De fato, a conclusão a que se chegou foi a
co~stituídas na déc~da de 1820-1830 para estudar e informar os órgãos mesma: se a situação econômica é efetivamente capaz de permitir o pleno
leg1slat.Lvos sobre a situação real do pauperismo nos estados da Confederação emprego, a causa principal do pauperismo só pode ser de natureza individual.
1de~t1f1cara1'.1 uma situação concreta muito distinta das hipóteses das quais Rompe-se, assim, definitivamente, com a antiga visão social do pobre,
haviam partido. Em outras palavras, não obstante tudo, os Estados Unidos típica do período colonial. Começa-se a falar de pauperismo culpável (pauper)
ainda eram um país com uma densidade de pobres relativamente alta. e não culpável (poor), e, em termos mais gerais, de responsabilidade subjetiva
do status de indigente e carente.
A comissão dirigida por Yates calculou que em 1822 havia no estado de
Nova Iorque - que contava então com uma população de aproximadamente É necessário reconhecer, na aceitação do momento voluntarístico e respon-
1.300.000 habitantes -22.111 pobres assistidos, sob diversas formas, a um sabilizante do "ser pobre" - momento que condicionará uma postura "punitiva"
custo total de US$ 250.000 86 • A comissão Quincy relatou uma situação se- para a solução do problema - que as análises da época, embora de forma
melhante para a cidade de Boston, onde cerca de 6.000 pessoas recebiam inconsciente, conseguiram perceber os processos sociais desagregadores,
assistência anualmente 87 • Nos pequenos centros urbanos e nas áreas rurais a derivados dos fenômenos econômicos em andamento. Essas análises foram
situação era análoga. capazes de testemunhar os efeitos que um rápido processo de industrialização
83
Ainda do Relatório Yates, cit. e de desmoronamento da base político-cultural tradicional acarretavam no
comportamento social de estratos cada vez mais amplos da população.
:: N. Y.S.P.P., Second Annua/ Report. Nova Iorque, 1819, Apêndice, p. 6.
T. Sedgwick, Public and Priva/e Economy, Parte !. Nova Iorque, 1836, p. 95.
86
Ver nota nº 82.
87D e acordo com o re latono_
' " Qu1ncy
· ao Parlamento de Massachusetts, in Massa- 88
S. Lebergott, Manpower in Economic Growth: The American Record Since
chusetts General Committee on Pauper Laws, Report of the Comnlittee, 1821. 18fJO, Nova Iorque, 1964, p. 188.
178
179
·~~
O tema do pauperismo está, portanto, intimamente ligado ao problema do um comportamento culpável e, conseqüentemente, também condenável. A 1

comportamento desviante e criminoso, e essa conexão tenderá a permanecer: difusão desta consciência diversa do problema ia diametralmente contra a
constante no futuro. · visão social que a cultura americana colonial havia expressado a respeito do
Os dados oficiais demonstram - concluía a Association for Improving pauperismo. Todo o sistema do poor-relief pré-revolucionário se baseava
the Cond1t10n of the Poor, de Nova Iorque - que a maior parte dos · numa visão da qual estavam ausentes não apenas a percepção do problema
pobres da cidade e do estado o são por indolência e pelo uso des, da pobreza em termos políticos, como também qualquer tipo de avaliação
controlado de bebidas alcoólicas e de outros vícios (... ) Há pouca moralista do mesmo. A firme convicção de que a presença do indigente devia
• , . , - 89
m1sena entre nos que nao se deva a estas causas . ser vista como um fenômeno natural e portanto necessário da vida em
O tema do alcoolismo como causa primária dos processos desagregadores sociedade tinha acarretado o desenvolvimento de um sistema de assistência
que então tinham lugar é recorrente nos documentos da época. O seu nexo . fundado no socorro de tipo caritativo e privatístico (household e neighbor
com o estado de indigência econômica (ou melhor, com a absoluta ausência . relief!. É claro, pois, que no momento em que se começou a atribuir uma
de "vontade" e de "amor" pelo trabalho) é obstinadamente sublinhado. origem "viciosa" - leia-se, a falta de vontade de trabalhar - à pobreza, auto-
maticamente o sistema com o qual a sociedade colonial havia respondido ao
É certo que o fenômeno do uso incontrolável e maciço do álcool atingiu
níveis elevadíssimos, sobretudo entre a população residente nas primeiras problema entrou em crise.
grandes concentrações urbanas. De fato, a partir do começo dos anos 1820, e de forma cada vez mais
enérgica, o sistema assistencial colonial foi objeto de violentas críticas. O
Os resultados de atentas investigações demonstraram como os
raciocínio que regia o ataque ao velho sistema, dadas as premissas, fazia
operários desta cidade - esclarecia, numa pesquisa, a Association
sentido: se o estado de indigência atingia aqueles estratos sociais degenerados
for Improving the Condition of the Poor - gastam somas elevadas
pelo álcool e pela preguiça, o socorro caritativo só podia estimular as causas
com bebidas alcoólicas( ... ) Na cidade há uma taberna por cada 18
que geravam o fenômeno, induzindo a população assistida e socorrida a confiar
famílias, mas nos bairros populares pode-se contar um local de venda
90 mais na generosidade e benevolência da coletividade do que em suas próprias
de bebidas para cada cinco ou dez famílias •
forças e capacidade de trabalho.
Essa afirmação era confirmada por um médico que, com as estatísticas
As alternativas operativas que esta perspectiva propunha só podiam
na mão, informava que 90% dos internos na almhouse deviam ser consi-
orientar-se numa única direção: a abolição progressiva do tradicional sistema
derados alcoólatras".
assistencial privatista e sua substituição pelo socorro público (public relief!,
As invectivas moralistas contra o vício da bebida, verdadeiro flagelo das acompanhado do trabalho obrigatório. As "velhas" poorhouses, workhouses
classes subalternas, eram acompanhadas por outras observações que e almshouses foram, portanto, revitalizadas. Havia um novo interesse por
atribuíam o fenômeno da pauperização do proletariado urbano ao descuido, à aquelas instituições, cuja presença, até aquele momento, não representara
falta de atenção e à ausência do hábito da poupança92 • uma alternativa real ao sistema vigente de controle social. A hipótese
Nessa perspectiva, o problema da presença de amplos estratos marginais institucional - isto é, a hipótese do internamento compulsório das massas
entre as classes menos favorecidas era direta ou indiretamente atribuído a dos pobres, ociosos e vagabundos nestes espaços definidos, onde a admi-
nistração pública devia encarregar-se da sua educação através do trabalho -
89 New York Association for Improving the Condition of the Poor, Thirteenth tornou-se, progressivamente, cada vez mais concreta.
Annual Report. Nova Iorque, 1856, p. 36.
A proposta institucional - ou seja, a ênfase no momento do internamento
90 New York Association for Improving the Condition of the Poor, Fourteenth
- tornou-se assim, na América da primeira metade do século XIX, a nota
Annual Report. Nova Iorque, 1857, p. 16.
mais marcante de toda a política do controle social. Na verdade, a escolha
91 New York Almshouse Commissioner. Annual Report for 1848, Nova Iorque,-
segregativa, originariamente circunscrita à solução do problema do pauperismo,
1849,p. 86.
quase que por contaminação, estendeu-se até assumir o papel de modelo
92 D. J. Rothman, The Discovery of Asylum, cit., p. 164.
paradigmático na luta contra as diversas formas sociais de desvio.
180 181
O problema das vagrant children, dos destitute oifans foi um dos primeiros aumento da loucura". Esta, afirmava-se, era a principal razão das taxas
a ser enfrentado com a precisa consciência da sua dependência causal do relativamente elevadas de loucura no Novo Mundo98 •
estado de desagregação social das lower classes e, em particular, da profunda
Neste país - explicava mais uma vez E. Jarvis, numa conferência médica
crise que então afetava a instituição familiar de tipo patriarcal". A eventualidade
em Massachusetts-, onde nenhum filho é necessariamente obrigado a seguir
de que estas massas juvenis dispersas pudessem, com o tempo, tornar-se
0 trabalho ou a ocupação do pai, uma vez que todas as oportunidades de
futuros criminosos era considerada um sério perigo. A resposta a essa ameaça
trabalho, de lucro ou de sucesso são acessíveis a qualquer um que queira
em potencial foi, ainda, o internamento compulsório: afarm-school, a escola-
empenhar-se com vontade, e onde todos são. convidados a entrar na arena
fábrica idealizada com base no modelo da workhouse, surge então como a ··
para aquilo que se pode ganhar na luta, é inevitável que a ambição possa levar
instituição apropriada para a juventude". ·
alguns a aspirar a alguma coisa que não está ao seu alcance, ou a lutar por
O problema das doenças mentais, consideradas as suas caracteósticas algo mais do que podem ter( ... ) como resultado final, as suas capacidades
específicas, também foi abordado sob essa nova perspectiva. O nó em torno mentais são submetidas a uma tensão excessiva, a sua atividade de trabalho
do qual girou todo o debate político-científico sobre a origem da loucura na se torna agitação (... ) as suas mentes curvadas e oprimidas por este peso
era jacksoniana apresenta, de fato, interessantes a_nalogias com o interesse desproporcional 99 •
então dominante de situar as diversas formas de "desordem social' - neste
A análise das causas remotas do desvio mental torna-se, assim, cada vez
caso, a doença mental - no interior dos processos econômicos do novo
mais pontual. O andamento cíclico dos processos inflacionários, os riscos da
Estado. Superada criticamente a explicação original do "distúrbio psíquico"
especulação, a inovação nas técnicas comerciais e industriais, ao mesmo tempo
como fenômeno diabólico, ou, em suas formas mais refinadas, como aspecto
que tornam a vida econômica precária, tendem a enfatizar os momentos de
inevitável de uma patologia anatomicamente perceptível da mente, a loucura
tensão que, se socialmente percebidos, repercutem inevitavelmente também ao
foi lucidamente relacionada ao processo mais amplo de erosão da primitiva
túvel psíquico, de forma particular naqueles sujeitos mais "expostos" e "frágeis" 100.
coesão social". A desordem mental - esclarecia E. Jarvis96 - faz parte do
Por outro lado, os mecanismos tradicionais de contenção dos conflitos,
preço que pagamos à civilização. P. Eade acrescentava que era possível
afirma-se 101 , são agora obsoletos. De fato, não se pode ter nenhuma confiança
demonstrar um paralelismo constante entre o progresso da sociedade e o
nem na religião nem na família. As confissões religiosas, da mesma forma
3
que a instituição familiar, sofrem uma profunda crise de autoridade, sobretudo
'>A literatura sobre a origem histórica na América do childcare é particularmente·
entre a classe operária urbana, e não oferecem mais nenhuma garantia de
vasta. Entre os muitos ensaios, ver H. Folks, The Care of Destitute, Neglected
poder operar como instrumentos eficazes de socialização e de controle social.
and Delinquent Children, Albany, 1900; H. Thurston, The Dependent Child,•
Nova Iorque, 1930; R. S. Pickett, House of Refuge: Origins of Juvenile Reform it< Esta realidade tão desagregada e desagregadora torna inútil até mesmo papel
New York State, 1815-1857. Syracuse, N. Y., 1969; M. Katz, The lrony of Early que estas instituições desempenhavam no passado de gestores da assistência
School Reform, Camb1ige, Mass., 1968; R. Bremer (org.), Children and Youth in e do tratamento dos doentes mentais.
America, Cambridge, Mass., 1970, vol. !. Como se vê, o esquema de argumentação é, também neste caso, análogo
94
D. J. Rothman, The Discovery of Asylum, cit., p. 170. ao encontrado a propósito da crítica que, naquele tempo, era dirigida ao
95
Sobre o tema específico da interpretação da loucura na Nova República e mais erÍI sistema colonial de "socorro" caritativo e privatista do pobre e do jovem
geral sobre a reconstrução histórica da reação social de tipo institucional e segregador_
do world of insane, ver: A. Deutsch, The Mentally Ili in Ame rica: A History of their 97
P. Earle. An Address on Psycho/ogic Medicine. Utica, N.Y., 1867, p. 18.
Care and Treatnient, Nova Iorque, 1949; N. Dain, Concepts of lnsanity in the United 98
G. Howe, "lnsanity in Massachusetts", in NorthAnterican Review, 1843, nº 56, p.6.
States, 1789-1865, New Brunswick, 1964; R. Caplan, Psychiatry and the Community 99
in the Nineteenth Century Anierica, Nova Iorque, 1969; M. D. Aktschule, Roots of E. Javis, Causes of lnsanity, etc., cit., p. 14.
100
Modem Psychiatry: Essays in the History of Psychiatry, Nova Iorque, 1957. E. Javis, "On the Supposed Increase of Insanity", in Anzerican Journal of
96 Insanity, 1852, p. 34.
E. Javis, Causes o/ Insanity: An Address delivered before the Norfolk ,
101 !. Ray, Mental Hygiene, Boston, 1863, pp. 259-261.
Massachusetts, District Medical Society, Boston, 1851, p. 17.
182
183
desvi~do e abandonado. A solução qu~ se propõe não difere, portanto, daqu °Jluropa - se julgava oportuno para o futuro proletariado. Na práxis colonial -
~xammada~ antenormente: a necessidade de que a autoridade pública sej · como temos visto -, esta finalidade foi completamente deixada de lado. A
umca a genr o problema do desv10 mental. A solução final, de um ponto mesma obrigação ao trabalho forçado, que devia, ao menos nas declarações,
vista concreto, é ainda a mesma: o internamento, a segregação numa institui caracterizar a execução penal nas workhouses, não diferia, na essência, do
especial 102. A solução encontra uma justificativa ideologicamente irrefutá;e sistema de emprego da força de trabalho internada nas poorhouses, ou seja,
se a loucura é conseqüência de determinadas contradições sociais, é absurd um trabalho que copiava o modelo produtivo da grande família colonial.
pensar em eliminá-la ou sequer detê-la, mantendo o interno naquele ambie Ora, com o advento de um sistema de produção manufatureiro e com os
que é causa segura do fenômeno que se quer combater 103 • O objetivo amplos processos de transformação social que acompanharam o momento
fundo é explícito: só erradicando do tecido social o produto inconsciente de acumulação capitalista, o trabalho forçado de tipo agrícola, que ainda
"desordem", que .é o louco, só segregando-o num universo concentracionaf~;~ reinava nesta instituição, torna-se cada vez mais anacrônico. De fato, em
º?de P?Ssam fmalmente reinar as regras ótimas da vida em sociedade (hierarqui~· razão sobretudo das dificuldades técnicas e econômicas de introduzir, através
disciplina, trabalho e oração), ele pode vir a "ser curado", "ser reeducado". das máquinas, um sistema de trabalho competitivo com o então dominante
Não é diferente - dentro das características que lhes são próprias no mundo da livre produção, a house of correction assumiu cada vez mais a
história das novas formas de luta contra o desvio criminal e, em particular função atípica de instituição carcerária, isto é, o papel de um universo segregador
própria "invenção" do cárcere. ' em que eram internados, com fms exclusivamente punitivos, aqueles condenados
em relação aos quais não podiam ser atribuídas outras modalidades de sanção.
4. O nascimento da penitenciária:
Esta transformação da "casa de correção" trazia, como conseqüência
de Walnut Street Jail à Auburn Prison
direta, a redução progressiva da finalidade original de reeducação pelo trabalho,
No que diz respeito ao problema do controle social do desvio criminal,~; muito embora este ainda sobrevivesse nas formas agora anti-econômicas de
situação americana do final do século XVIII permaneceu, sob certos aspectos'.· um trabalho manual de tipo repetitivo, sem o auxílio das máquinas. Por essa
análoga à do período colonial, muito embora a nova realidade socioeconômic; ; razão, a instituição acabou perdendo qualquer dimensão econômica, tornando
tenha tornado o velho sistema repressivo profundamente obsoleto. · assim a própria existência um ônus pesado para as administrações. Estas
De fato, se a jail havia mantido a sua finalidade original de cárcere. preocupações de ordem financeira eram particularmente sentidas entre os
preventivo, era bem outro, de um ponto de vista factual, o sistema de controle administradores do "Novo Mundo""".
social que se baseava na hipótese institucional da house of correction ou, Por outro lado, o sistema colonial original de assistência, baseado no
dada a flexibilidade terminológica com a qual este instituto era designado; auxílio caritativo (household e neighbor relief! já entrara definitivamente em
workhouse. Já sublinhamos como, egressa originariamente do modelo da crise. Com a abolição progressiva do sistema assistencial privatista e não
instituição européia análoga, a workhouse ou house ofcorrection servia como segregacionista, e o desenvolvimento da alternativa do public refie/ através
local para os pequenos transgressores da lei penal (jellons) pagarem suas da obrigação ao trabalho, a hipótese institucional - i.e., a que privilegia o momento
penas. Com o tempo, também passou a receber os ociosos e os vagabundos. da internação - tomou-se a nota característica de toda a política de controle
Na seqüência, foi utilizada para a hospedagem obrigatória dos '.'pobres residen- social. Foi assim que a escolha segregadora, originalmente circunscrita à solução
tes" e, am alguns casos, serviu também como cárcere para os devedores. do pauperismo, foi sendo progressivamente ampliada. O efeito imediato e direto
De um ponto de vista teórico, no interior da instituição deveria ter reinado disso foi um aumento incontrolável da população internada.
a disciplina do trabalho, com o intuito de impor, pela força, aquele processo A situação global, no final do século XVIII, aparecia assim contraditória
reeducativo que - num nível puramente imitativo da práxis dominante na e não muito diferente daquela descrita, na sua época, por Howard na Inglaterra:
104
H. E. Barnes, The Evolution of Penology in Pennsylvania, Indianapolis, 1927,
wi Ver nota nº 95. pp. 63 ss.; F. Lewis, The Development of American Prisons_ and Prison Customs,
103
D. J. Rothman, The Discovery of Asylum, cit., p. 129. 1776-1845, Albany, 1922, pp. 51 ss.

184 185
os cárceres propriamente ditos - referimo-nos aqui aos jails como institutos Essa simples avaliação econômica- indubitavelmente presente e em várias
de custódia preventiva - vazios ou quase vazios, enquanto as houses of ocasiões explicitada pelos próprios protagonistas da reforma penitenciária -
correction ou workhouses abarrotadas por uma população extremamente foi acompanhada por um conjunto de outras considerações de natureza
heterogênea (pequenos transgressores da lei penal; criminosos de fato, para essencialmente ético-social.
quem a lei não contemplava a hipótese de pena corporal; violadores das As seitas quakers foram, uma vez mais, as protagonistas desta significativa
normas de imigração; pobres não residentes; necessitados da região etc.). "revolução" no setor da política criminal.
A contradição nodal se concretizava, assim, neste paradoxo: na medida . Em 1787, foi fundada a Philadelphia Society for Alleviating the Mi series
em que aumentava a presença institucional como eixo da política de.controle ••.. of Public Prisons. A tensão moral e o objetivo declaradamente filantrópico
social, ao mesmo tempo, por razões objetivas ligadas ao processo econômico_->:. dos associados estão evidentes no próprio ato constitutivo da sociedade:
diluíam-se as funções ressocializantes do trabalho obrigatório e produtivo: ' Quando nós consideramos - afirma-se no prefácio - que os deveres
Nesse ponto, inevitavelmente, o inte111amento se transformou em pena pro·:. de caridade que se fundam nos preceitos e nos exemplos do Fundador
priamente dita, na qual o aspecto de terror e intimidação se sobrepôs com~ . da Cristandade não podem ser apagados pelos pecados e pelos delitos
pletamente à finalidade reeducativa original. dos nossos itmãos criminosos ( ... ) tudo isso nos induz a estender a
E foi na tentativa de resolver este problema que a fantasia reformadora dó nossa compaixão àquela parte da humanidade que é escrava dessas
jovem Estado americano encontrou, na política do controle social, sua misérias. Mas com humanidade o seu injusto sofrimento deve ser
"invenção" mais original: a penitenciária (penitentiary system). Na última prevenido (... ) e devem ser descobertas e sugeridas aquelas formas
década do século XVIII, a escassez endêmica de força de trabalho desfrutava, de punição que, ao invés de perpetuar o vício, tornem-se instrumentos
106
singularmente, de uma situação favorável. A violenta redistribuição da para conduzir os nossos irmãos do erro à virtude e à felicidade .
propriedade fundiária havia determinado um vasto processo de mobilidade Foi por obra desta sociedade filantrópica e do seu incisivo e constante apelo
social interna, que, acompanhado por taxas cada vez maiores de imigração à opinião pública que, em 1790, as autoridades começaram a se movimentar no
da Europa, permitira, em virtude dos baixos custos no aprovisionamento das sentido de criar uma instituição na qual "o isolamento celular, a oração e a total
matérias-primas, um vantajoso emprego de capitais na manufatura nascente. abstinência de bebidas alcoólicas seriam capazes de criar os meios para salvar
Foi esta, provavelmente, a razão fundamental que condicionou, numa tantas criaturas infelizes"'°'. Com base numa lei, foi determinada a construção
direção muito particular, a solução do problema da dimensão anti-econômica de um edifício celular no jardim interno do cárcere (preventivo) de Walnut
do sistema das workhouses. O déficit crônico que as administrações locais Street, no qual ficariam internados, em solitary confinement, os condenados à
tinham de enfrentar na condução destas instituições dependia essencialmente, pena de pdsão; a velha construção preexistente deveria continuar servindo de
como vimos, de duas ordens de fatores: os altos custos da vigilância e a não cárcere preventivo 10R.
produtividade do trabalho dos internos. Por conseguinte, as soluções possíveis O mesmo dispositivo legislativo determinou que a autoridade carcerária
eram, em termos abstratos, duas: encontrar um sistema mais econômico de de Walnut Street acolhesse na nova construção também os internos das
administração, ou aumentar a produtividade do trabalho institucional. workhouses de outras cidades do estado da Pensilvânia, até que se construíssem
No período que estamos examinando, privilegiou-se a primeira alter- instituições análogas em outros lugares. Isso nunca veio a ocorrer e por esse
nativa ' 05 • De fato, a eventualidade de incrementar a produtividade do trabalho motivo o sistema penitenciário filadelfiano se impôs, desde o início, como
teria comportado, necessariamente, o emprego de grandes capitais, privados "penitenciária estadual" e não municipal. A situação não mudou nem sequer
ou públicos, com a finalidade de industrializar o processo de trabalho dos quando a experiência filadefiana foi seguida em outros estados, sempre com
internos. Esta solução não foi vista com bons olhos pela simples razão de
que a relativa disponibilidade de força de trabalho tomava o investimento de 106
Citado por H. E. Ba111es, The Evolution of Penology in Pennsylvania, cit., p. 82.
capitais no mercado livre mais profícuo. 107
Ibidem, p. 90.
108
105
G. Rusche e O. Kirchheimer, Punishment and Social Stmcture, cit, pp. 127 ss. B. McKelvey. A111erican Priso1is. A History ofGood Intentions, cit., p. 11.
186 187
as mesmas dimensões e no mesmo nível. Assim ocorreu em 1796, efeito, é útil compreender a indiscutível boa fé que caracterizou 0 fanatismo
Newgate, no estado de Nova Iorque; em 1804, em Charleston, Massachusett com o qual determinadas crenças religiosas se dedicaram, lúcida e
e em Baltimore, Maryland; e em 1803, em Windsor, Vermont 109 • impiedosamente, à organização do cárcere de tipo filadelfiano. Deve-se pensar
A estrutura desta forma de execução penitenciária se baseava no isolament'é7 que nenhuma perplexidade tenha ofuscado a mente destes reformadores
celu.lar dos internos, na obrigação ao silêncio, na meditação e na oraçãa~::' convictos como estavam de que o solitary confinement era capaz de resolve;
Este sistema garantia, em primeiro lugar, uma drástica redução com as qualquer problema penitenciário; impedia a promiscuidade entre os detidos, que
despesas de vigilância; em segundo lugar, este rígido estado de segregaçã? se revela:'ª um fator criminóge?o de efeito desastroso, além de promover, por
individual negava, a priori, a possibilidade de introduzirum tipo de organizaçãií0 me10do.isolamento1:' do sdênc10, o processo psicológico de introspecção que
industrial nas prisões 1io. , era considerado o veiculo mais eficaz para o arrependimento.
Este projeto de execução - é oportuno sublinhar aqui - não era, na, Ao. lado dessas razões, não deve ser menosprezada a solução total que se
realidade, completamente original. A "Maison de force" belga e o modelo do:•' oferecia, deste modo, ao problema do trabalho. Na realidade, no sistema de
"Panopticon", de Bentham''', que encontrou limitada aplicação na Inglaterrií/ internamento celular, o sistema de emprego da força de trabalho carcerária
prenunciavam claramente a introdução do cárcere celular. O aspecto ideológicó não podia deixar de ser, necessariamente, anti-econômico, em virtude do seu
subjacente a este projeto é de fácil identificação: esta estrutura construtiva é caráter artesanal. Por outro lado, o trabalho, neste projeto penitenciário, não
capaz de satisfazer as exigências de qualquer instituição na qual se devam::: perseguia, nem sequer teoricamente, nenhuma função econômica; ao con-
"manter pessoas sob vigilância" 112 ; não se trata, portanto, apenas de cárceres,\·' trário, era interpretado como instrumento puramente terapêutico.
mas também de casas de trabalho, fábricas, hospitais, lazaretos e escolas. O relatório do "Board of Inspector" de 1837, no estado de Nova Jérsei,
O preocupante problema dos altos custos administrativos foi, assim, chegou à conclusão de que o sistema filadelfiano era, sem dúvida, 0 mais
resolvido em parte, e essa foi uma das razões da rápida difusão deste modelP: humano e civilizado entre todos os conhecidos, muito embora a realidade
de reclusão em diversos estados americanos. dos fatos registrasse uma taxa crescente de suicídios e de loucura como
Certamente, as preocupações de natureza econômica aqui descritá' efeito direto deste sistema de reclusão.
encontraram, ao nível ideológico, sua sublimação nas formulações mais radie • Todavia, a crise definitiva da hipótese filadelfiana foi determinada menos por
do pensamento protestante, o que é relativamente compreensível seguindo a considerações humanitárias, que também não faltaram, do que por uma
análise weberiana. A observação reveste-se de uma ceita importância. Cotfi significativa mudança no mercado de trabalho. No começo do século XIX, a
Aménca conheceu - como já examinamos - um notável incremento da demanda
de trabalho, mais intenso, por exemplo, do que a verificada na Europa durante 0
109
Ibidem, p. 7. mercantilismo. A importação de escravos tornava-se progressívamente mais
110
H. E. Bames, The Repressiono/Crime. Nova Iorque, 1926, pp. 29 ss.; O. F. Lewis difícil por causa da nova legislação, enquanto a conquista de novos tenitórios e
1he Development of American Prisons and Prison Customs, 1776-1845, cit., pp. 4~: a rápida industrialização provocavam um vazio no mercado de trabalho que não
ss.; McKelvey, An1erican Prisons. History of Good lntentions, cit., pp. 6 ss. , era preenchido com os índices crescentes de natalidade e de imigração. O efeito
111
J. Bentham, "Panopticon" (1787), in The Works of J. Bentham, vol. IV, Nova mais imediato, relacionado a esta conjuntura econômica, foi um notável aumento
Iorque, 1962. ' do nível salarial, aliás já bastante elevado.
Hi Bentham, Panopticon, cit., do "subtítulo''. A este propósito, F. Foucault faZ'/~

seguinte observação, numa entrevista concedida à revista Pro Justitia, 1973t no-__ r; A escassez de força de trabalho determinou, entre as conseqüências mais
relevantes no campo social, uma nova abordagem política dos estratos
e 4, p.7: "Le rêve de Benthant, le Panopticon, ou un seul individu pourrait survei~
iler tout le n1onde, c'est, au fond, !e rêve, ou plutôt, un des rêves de la bourgedsie;: marginais da sociedade. Começou-se, assim, a considerar as razões de fundo
(parce qu'elle a beaucoup de rêves)" ["O sonho de Bentham, o Panóptico, em que que caracterizavam a "questão criminal" nos Estados Unidos como essen-
um único indivíduo poderia vigiar todos os demais, é, no fundo, o sonho, ou melhor.- cialmente "diferentes" com relação ao Velho Continente. Por exemplo, o nível
um dos sonhos da burguesia (porque ela tem muitos sonhos)"]. mais baixo dos índices de criminalidade. Percebeu-se que as possibilidades

188 189
concretas de se encontrar facilmente um emprego bem remunerado na Amé- O princípio do solitary confinement manteve, numa certa medida, uma influên-
rica reduziam as ocasiões de cometer crimes contra a propriedade; a rein~ cia não desprezível sobre as modalidades de reclusão, perdurando, ainda, a
cidência era fortemente desencorajada pelas possibilidades de trabalho abertas, obrigação mais do que absoluta ao silêncio (às vezes, o sistema de Auburn
por necessidade econômica, também aos ex-condenados. aparece indicado como silent-system) no intuito de evitar os contatos entre os
Pode-se, assim, compreender facilmente como no interior deste debate internos e de obrigá-los a uma meditação forçada; foram também valorizadas
tomavam-se cada vez mais vivas - sobretudo da parte dos administradores res- positivamente as funções atribuídas à disciplina e à educação em geral.
ponsáveis pela justiça penal - as acusações contra o sistema penitenciário vigente, Em essência, a originalidade do novo sistema consistia na inÍrodução de
que, através do solitary confinement, não apenas privava o mercado de força de um tipo de trabalho de estrutura análoga àquela então dominante na fábrica.
trabalho, mas também, por meio da imposição de um trabalho anti-econômico, Chega-se a esse resultado gradativamente. Num primeiro momento, corno
deseducava os presos, reduzindo sua capacidade de trabalho original. Estas críticas teremos a oportunidade de examinar detalhadamente a seguir, pennitiu-se ao
e reservas de fundo para com o sistema penitenciário celular não diferiam muito capitalista privado assumir, sob a forma de concessão, a própria instituição
das que então se faziam na Europa, formuladas e patrocinadas com objetivo de carcerária, com a possibilidade de transformá-la, às suas expensas, em fábrica.
opor-se à política de extennínio da força de trabalho perpetrada através da Num segundo momento, aderiu-se a um esquema de tipo contratual, no qual a
"legislação sanguinária" contra os ociosos e vagabundos. organização institucional era gerida pela autoridade administrativa, permanecendo
Por essas razões, começou-se a introduzir - ou melhor, a reintroduzir - o sob o controle do empresário tanto a direção do trabalho quanto a venda da
trabalho produtivo nos cárceres. Num primeiro momento, porém, o sistema produção. Na seqüência dessa fase, chega-se ao sistema no qual a empresa
de isolamento celular foi mantido inalterado, viciando, assim, toda a experiên- privada limitava-se a orientar a colocação da produção no mercado. Essa última
cia 113 • Obrigar os internos a dedicarem-se a atividades laboriosas nas próprias etapa assinalou o momento da completa industrialização carcerária. As
celas era ainda um obstáculo insuperável à possibilidade de introduzir a peculiaridades deste tipo de organização não se limitavam apenas ao setor
organização manufatureira, isto é, as máquinas e o conunon work. Em outras econômico, compreendendo também, mais especificamente, fenômenos como
palavras, esta tentativa de mudar a forma de reclusão não fazia mais do que a educação, a disciplina e as modalidades no tratamento enquanto tal, efeitos,
recolocar a contradição econômica que fora a principal causa do desapareci- todos eles, da presença do "trabalho produtivo" no cumprimento da pena.
mento progressivo do trabalho nas workhouses ou houses ofcorrection. Obrigar A disciplina, por exemplo, mudou radicalmente. As razões do fenômeno
os presos a um trabalho onde a força física desempenhava papel fundamental são de fácil identificação. Em primeiro lugar, o próprio trabalho produtivo -
de nada servia para a superação das dificuldades diagnosticadas. O cárcere no momento que impunha regras necessárias de interação entre os internos,
continuava sendo um investi1nento improdutivo, uma vez que não podia detenninando os tempos e os modos próprios do agir do operário - substituía
competir com.a chamada produção livre, e, ao mesmo tempo, não educava a disciplina baseada na simples vigilância pela disciplina interna da organização
os presos nas habilidades e capacidades profissionais que eram requeridas do trabalho. Em segundo lugar, percebeu-se que era mais fácil estimular os
do operário moderno. internos ao trabalho através da expectativa de "privilégios" do que através da
A primeira tentativa racional de se atingir uma organização penal capaz de ameaças de "punições".
superar estas contradições foi experimentada, pela primeira vez, na penitenciária E é exatamente sobre este segundo ponto que se estrnturou um tipo de
de Auburn -daí o tenno "sistema de Auburn" -, que, na época, pela divulgação execução penal que, por trás do abrigo ideológico do tratamento dirigido para a
que teve, tornou-se sinônimo de administração penitenciária americana. reeducação, fazia da capacidade de trabalho o parâmetro real para o juízo da boa
Este novo "sistema penitenciário" estava calcado em dois critérios funda- conduta. Este critério serviu de inspiração, por exemplo, ao instituto da
mentais: o solitary confine111ent durante a noite e o co1nmon work durante o dia. commutation 114 , de acordo com o qual todos os prisioneiros condenados a

114
McKelvey, Atnerican Prisons, cit., cap. 1; O. F. Lewis, The Development of
JJJ Ver T. Sellin, "Commutation of Sentence", in Encyclopedia o/ Social Sciences,
An1erican Prisons and Prison Custo1ns, cit., p. 77. IV, pp. 108-109.

190 191
penas superiores a cinco anos de reclusão podiam obter a redução de até u b lho carcerário, julgamos oportuno fazer algumas observações de caráter
quarto da pena por boa conduta. Tendo sempre como base o critério funda,'; tra aia a fim de valorizar as constantes estruturais
· que, numa ana'l'1se h'1stonca
' ·
mental da atitude do réu para aprender novas técnicas de trabalho, começou;·· ::~o~pectiva, identificam aspectos reais e não ideológicos do problema.
se a contrapor os internos "condenados a penas leves" aos internos "con~ Prescindindo da vontade reformadora, então sempre presente, de trans-
denados a penas longas'', sendo destinados estes últimos a instituições espe' 11 mar a penitenciária numa empresa produtiva, de fazer do conviei labor
ciais, onde o trabalho era organizado de modo mais produtivo, embora fosse u% economical business, dificilmente esta finalidade teria podido se concretizar
necessário um grau mais elevado de habilidade e, portanto, um tempo mais · 00 período considerado.
longo de internamento 115 • Pela mesma razão, ainda que no sentido inverso, A alternância de distintos sistemas de produção carcerária, bem como de
foram feitas críticas contra as penas curtas, consideradas deseducativas e formas jurídicas diversas de emprego da força de trabalho. i~ternad~, são
sobretudo improdutivas.
· terpretadas como tentativas de projetos de modificar (redef1mr) o umverso
10
Entretanto, o objetivo mais importante alcançado mediante a introdução institucional sobre o modelo econômico-produtivo . então dom1nan
. t e no
do trabalho produtivo no cárcere foi a possibilidade, mantida durante todo o mercado livre (leia-se manufatura, fábrica).
século XIX, de reduzir os custos de produção de alguns setores industriais e Se a sucessão destes diversos institutos - verdadeiras "invenções" jurídicas
de, por conseguinte, colocar por meio da concorrência- um freio ao aumento . _ não encontrou o sucesso esperado, de urna perspectiva produtivista, con-
do nível salarial.
seguiu, por outro lado, alterar profundamente as formas da pr~tica peni~e.n­
5. As formas da exploração ciária, transformando, assim, efetivamente, o modelo de execuçao carcerana.
e a política do trabalho carcerário o trabalho penitenciário inventará, assim, modelos dirigidos mais para a criaç~o
daquele "sujeito virtual", imposto de vez em quando ao mercado da produçao
No arco de tempo aqui considerado, o sistema penitenciário americano
livre, do que para a produção, economicamente relevante, de mercadonas.
desenvolveu- ainda que em alguns aspectos apenas superficialmente-diversas
O tema da retribuição, do salário, para o preso-trabalhador, encerra,
formas de utilização-exploração do trabalho carcerário que constituem, até
neste período, uma profunda ambigüidade. Estes termos são usados e portanto
os nossos dias, as linhas condutoras da política econômica penitenciária 116,
compreendidos numa acepção juridicamente imprópria, vi~to que não existe
Embora as contradições internas desta política só viessem a se manifestar
nenhuma relação de proporcionalidade nem com a prestaçao de trabalho do
plenamente nas primeiras décadas do século XX - devido à intervenção do
interno, nem com o nível salarial dominante no mercado livre.
Estado na economia e também à participação ativa das organizações da classe
trabalhadora contra o emprego privado da força de trabalho dos internos-, É claro que a introdução da variante da participação econômica do preso-
convém sublinhar que já no período anterior à Guerra Civil, ou seja, no trabalhadôr persegue o objetivo indireto de impor ao detento a forma moral
momento do nascimento e da formação do Estado capitalista, o tema do do salário como condição da própria existência.
conviei employment estava no centro de um aceso debate. O salário do trabalho penal não retribui uma prestação; funciona como
No momento em que nos dispomos a considerar criticamente as perspec- motor e ponto de referência das transformações individuais. [Trata-
tivas político-econômicas então emergentes no que concerne ao tema do se de] urna ficção jurídica, uma vez que não representa a "livre"
cessão de uma força de trabalho, ll'as sim um artifício, que se supõe
1
115
eficaz, das técnicas de correção .
H. E. Barnes, The Repression of Crime, cit., pp. 272-273.
116
Os principais sistemas de emprego da força de trabalho carcerária co-
As obras mais importantes, tanto pela riqueza da documentação quanto pela nhecidos na América foram os seguintes: 1. Public Account; 2. Contract; 3.
profundidade no tratamento do tema das convict labor policies na América do
século XIX, são as seguintes: H. C. Mohler, "Convict Labor Policies", in Journal
u1 M. Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris, 1975. ~· 246 (N.
of American Institúte of Criminal Law and Criminology, 1924-1925, vol. 15, pp.
530-597; H. T. Jackson, "Prison Labor'', in Joumal of American Institute o/Crimi-
do T.: edição brasileira Vigiar' e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,
nal Law and Criminology, 1927-1928, vol. 15, pp. 216-268. 2002, 26' ed., tradução de Raquel Ramalhete).

192 193
Piece-price; 4. Lease; 5. State-use; e 6. Public Works. A leitura dest sistema são as seguintes: 1. a manutenção da população carcerária, bem
"modelos" - cada um dos quais conheceu, quer individualmente, quer em como a própria disciplina, estão completamente a cargo da empresa; 2. os
conexão com outros, uma ampla variedade de modulações e de formulações manufaturados são colocados no mercado livre; 3. o preso-operário é par-
- pode ser facilitada se levarmos em conta como cada um deles representa, ; cialmente "remunerado"; 4. a produção é economicamente eficiente e, muitas
de vez em quando, o compromisso de instâncias também antitéticas que;\[ vezes, industrializada.
contingentemente às situações econômico-políticas particulares, vinham a ·
Entre estes dois extremos situam-se os demais "modelos", em posições
realizar-se num sistema jurídico específico. As principais variáveis que condi-
intermediárias. Na leitura esquemática dos diversos sistemas de emprego do
cionaram o predomínio de um sistema jurídico sobre outro foram as seguintes;
trabalho carcerário, seguiremos, num primeiro momento, a ordem lógico-
I. A pressão da classe empresarial - diante do aumento da demanda dé'.J slstemática ora proposta, que contradiz em parte a ordem temporal. Num
trabalho - no sentido de utilizar o trabalho penitenciário como freio à::' segundo momento, ao empreendermos a análise histórica, reestabeleceremos
espiral dos salários. a "ordem real", momentaneamente não atendida.
II. A resistência das organizações da classe operária contra o emprego da I. O "modelo" do state-use system, introduzido relativamente tarde na
mão-de-obra carcerária nos setores em que a produção penitenciária se práxis penitenciária, é de fato análogo ao sistema de trabalho "em economia",
inseria, a preços competitivos, no mercado livre. próprio do nosso ordenamento (o italiano) 118 • Esse modelo procura tornar
III. As dificuldades econômicas enfrentadas pelas administrações para óbvias as desvantagens da exploração privada da mão-de-obra penitenciária,
industrializar o processo produtivo no interior da penitenciária. 0 primeiro de todos os "inconvenientes" decorrentes da concorrência entre
0 trabalho livre e o trabalho carcerário. As instituições penitenciárias produzem
IV. O predomínio - em relação à situação econômico-geográfica - de
uma economia essencialmente ou predominantemente agrícola, manufa- manufaturados, mas estes, ao invés de serem lançados no mercado livre, são
tureira ou industrial. "consumidos" pela própria administração carcerária ou por outras adminis-
trações estatais.
V. Na dependência dessas razões "objetivas", a emergência esporádica de
Se este sistema acarreta menos oposição dos sindicatos e dos "moralistas"
atitudes "humanitárias'' e ''filantrópicas", falsamente progressistas,
contrários à exploração privada, tende a reduzir o trabalho, de forma irre-
interessadas em afirmar a natureza essencialmente reeducativa e medicinal
mediável, a um processo escassamente produtivo quando a demanda de bens
da pena carcerária ç, por isso, vigorosamente opostas à exploração da
e serviços da parte da administração carcerária é inferior à oferta.
força de trabalho internada pela empresa privada.
2. Uma variante particular do state-use system é o public-works system 119 •
Os sistemas normativos acima indicados, diante da prevalência de pelo Neste sistema, os internos são empregados pela administração carcerária em
menos algumas destas atitudes, desdobram-se, assim, num "arco de posições" trabalhos públicos fora da penitenciária, como a construção de estradas,
facilmente detectáveis. Nas antípodas deste leque, encontramos duas "situa- ferrovias ou de outras instituições carcerárias.
ções" completamente "invertidas", a saber:
118
a. o trabalho carcerário é completamente organizado e gerido pela Além dos autores já citados na nota nº 11, ver: L. Collins, "The State-Use
administração carcerária. Essa situação tem normalmente corno conseqüência System", in Annals of the
o seguinte: 1. o momento disciplinar é hegemonizado pelo staffpenitenciário; American Academy of Political and Social Science, 1913, vai. XLVI, pp. 138-141;
H. Frayne, "The State-Use System", in Journal of Criminal Law and Criminology,
2. os manufaturados não entram no mercado livre, sendo "absorvidos" pelas
(1921), pp. 330-338.
administrações estatais; 3. não existe "remuneração" pela mão-de-obra em- 119
S. J. Barrows, "Convict Road Building", in Charities, 1908-1909, vai. XXI, pp.
pregada; 4. o processo produtivo é atrasado, pouco industrializado, essen-
1879 ss.; S. J. Barrows, "Roadmaking as a Reforro Measure", in The Survey, 1911,
cialmente manual.
vai. XXVI, pp. 157 ss.; H. R. Cooley, "The Out Doar Treatment of Crime", in The
b. o trabalho carcerário é organizado por um empresário privado, situado Outlook, 1911, vai. XCVII, pp. 403-411; O. R. Geyer, "Making Roads and Men", in
"fora" da instituição carcerária. As características que acompanham este Scientific American, 1916, vol. LXXXI, suplemento nº 2.112, pp. 408 ss.; S. Hill,
"Convict Labor in the Road Building", in Town Development, 1913, pp. 119 ss.
194 195
3. Um, dos ,primeiros sistemas jurídicos de emprego da força de trabal!tJ portanto, submetido a duas autoridades: à disciplina do trabalho, sob a direção
pen1~~~c1ar1a e o pubhc account 120 . Através deste sistema, a instituição pefiiL< do empresário, e à carcerária, no tempo em que não está trabalhando.
tenc1ana se trans~o1ma em empresa: adquire as matérias-primas, organiza-:{r:_-
Assiste-se, sob este regime, a um tipo de "remuneração" por jornada. Os
processo produtivo e vende o produto no mercado livre a preços m · e:
. D ~. utensílios e as máquinas são normalmente fornecidos pela administração,
convementes. esse modo, todos os ganhos obtidos pertencem ao Estado' ·.
enquanto as matérias-primas estão a cargo da empresa privada, que também
o momento disciplinar ainda está completamente subordinado às autoridad e
. . ,. m é responsável pela organização do trabalho e pela colocação das mercadorias
pen1tenc1anas.
no mercado livre. Esse modelo oferece vantagens inegáveis à administração:
Este sistema encontrou forte oposição da classe operária, uma vez que
trabalho dos detentos não é remunerado e isso permite à administração a) a mão-de-obra carcerária é empregada com lucro;
frentar o mercado com preços extremamente competitivos. A ausência'' b) as vantagens do Estado são garantidas, não estando sujeitas a risco
portanto, nos custo.s de produção, da remuneração do trabalho permite alta; algum. As instituições carcerárias que adotam este sistema de emprego da
margens de lucro e, por conseguinte, desestimula a administração a aumentar'", força de trabalho chegam a repor até 65% das despesas correntes, contra o
a quota do capital (estrnturas, máquinas etc.). O tipo de trabalho carcerário · máximo de 32% das penitenciárias que adotamo sistema do public account 123 •
donunante no public account é, pois, "atrasado" (fabricam-se, normalmente" Inevitavelmente, porém, a exploração do preso-trabalhador tende a acentuar-
cordas, sapatos, botas, escovas etc.). ' se até atingir a níveis insuportáveis; ao mesmo tempo, a competição entre
trabalho livre e trabalho carcerário leva as organizações da classe operária a
4. Um modelo de utilização da força de trabalho pouco empregado é 0 do
lutar pela abolição deste sistema ocupacional, visto, corretamente, como um
piece-price_syste": 121 • Através deste sistema, tenta-se conciliar a presença de
meio para deter a espiral salarial. E mais ainda. A dimensão reeducativa tende,
um ernpresano pnvado sem que a administração tenha de renunciar à gestão
nesta hipótese, a subordinar-se às exigências puramente produtivas, até o
da d1sc1plma e do trabalho. A empresa contratada é, de fato, completamente
ponto de destrnir, mesmo fisicamente, a força de trabalho empregada.
excluída da "vida" penitenciária; o empresário fornece apenas as matérias-
primas e, raramente, os utensílios e as máquinas. Recebe, depois, da admi- 6. O último sistema, o mais irnpmtante e o mais difundido, traz o nome
nistração, o produto acabado, pagando o preço combinado por cada peça, de leasing system 124 • Por intermédio deste modelo, o Estado abdica, tempo-
Os produtos ingressam no mercado livre e o interno é "remunerado" por rariamente, de qualquer direção e controle sobre o universo institucional: os
empreitada. internos são, na prática, "alugados" a um empresário por um período acordado
5. Urna das modalidades mais utilizadas de emprego da mão-de-obra e por urna sorna definida. É o empresário contratante que deve prover seja a
carcerária é o contract system 122 . Neste sistema, os presos ainda estão em"' manutenção da população carcerária empregada, seja a disciplina. As vantagens
pregados em atividades no interior do cárcere, mas não mais na dependência para a administração penitenciária são inegáveis. O leasing system é, sem
e sob o controle da administração penitenciária. Na realidade, é o empresárid dúvida, o mais "remunerativo": por mais reduzido que seja o preço pago pelo
contratante - aquele que, contratualmente, paga ao Estado um preço de- empresário, o contrato sempre garante um ganho, livre de qualquer despesa,
terminado por cada jornada de trabalho e por cada preso empregado - que, para a administração.
por intermédio dos seus próprios empregados, dirige e supervisiona as ati-
vidades de trabalho nas oficinas da penitenciária. O preso-operário está,
123H. C. Mohler, Conviei Labor Policies, cit., p. 548.
º E. H. Sutherland, Criminology, Nova Iorque, 1926, pp. 456-457; H. T. Jackson,
12
124M. N. Goodnow, "Turpentine-Impressions of the Convict Camps of Florida'', in
Prison Labor, cit., pp. 225-226; H. C. Mohler, Conviei Labor Policies, cit., p. 548. The Survey, 1915, vai. XXXIV, pp. 103-108; O. F. Lewis. The Bright Side of Florida's
121
L. N. Robinson, Penology in the United S1a1p, Filadélfia, pp. 159 ss.; H. C. Penal Methods, in Lilerary Digesl, 1923, vol. LXXVII, pp. 210 ss.; Idem, 'The Spirit
Mohler, Conviei úibor Policies, cit., p. 551. ofRaiford-Florida's Substitution for the ConvictLease-System", in The Survey, 1921,
122
L. N. Robinson, Penology in the United States, cit., pp. 164 ss.; H. T. Jackson, pp. 45-48; P. S. J. Wilson, "Conviei Camps in South", in Proceedings Na1ional
Prison Labor, cit., pp. 226 ss. Conference ofCharities and Corrections. Baltimore, 1915, pp. 378 ss.
196 197
Este sistema, que foi amplamente aplicado nos estados do Sul, sobretud@' capitalismo. O trabalho não deve ser necessariamente produtivo, mas sim
para o trabalho braçal nas plantações, além de exacerbar o nível de exploraçãci, instrumental do projeto então hegemônico, da vontade de "transformar" o
(assiste-se ao reaparecimento das formas mais brutais de punição corporal criminoso em "ser subordinado". O modelo virtual de "ser subordinado" que
para os operários-internos que resistiam à disciplina e aos ritmos de trabalho}, a execução penitenciária fundada no solitary confinement propõe é aquele do
gera um pengoso comprometimento dos órgãos judiciários com os interesses: trabalhador ocupado numa produção ainda de tipo artesanal, numa oficina,
empresariais, e a sua conseqüência é a transformação das penas de curta'.< numa manufatura. Para esta finalidade, a educação para o trabalho deve se
duração em condenações de longo ou médio prazo'". dar através de um processo produtivo essencialmente manual, onde o peso
A reconstrução da história dos sistemas de emprego da força de trabalho do capital fixo é quase nenhum.
carcerária na América da primeira metade do século XIX leva-nos a percorrer O sistema do public account satisfaz estas necessidades. A organização
no que concerne à especificidade da organização do trabalho, a própria eva'. da produção está, de fato, completamente a cargo da administração peni-
lução do sistema penitenciário. Em outras palavras, a história do sistemá tenciária e, como já vimos, esta, ao não "remunerar" de forma alguma o
penitenciário se ajusta, se molda às linhas de evolução do trabalho penitenciárió: custo do trabalho, pode entrar no mercado em termos absolutamente com-
Melhor dizendo: a história do cárcere americano, nas suas origens, é (também) petitivos com a produção do mercado livre, sem ter que por isso "industrializar"
a história dos modelos de emprego da população internada (advertindo-se o processo produtivo.
que o termo "modelo de emprego" não deve ser associado apenas à dimensão b) A hipótese penitenciália de Auburn propõe, ao contrário, um modelo
exclusivamente econômica, porque encerra igualmente o sentido de "modelo de trabalho subordinado ao de tipo industrial. Ali, onde reina o silent system,
de educação a um tipo particular de trabalho subordinado"). são introduzidas as labor saving machines, bem como o trabalho em comum
É reafirmada, deste modo, a estreita dependência entre o "fora" e o "dentro" e a disciplina de fábrica. O contract system se mostra, assim, como o modelo
não apenas de modo geral, mas também numa acepção mais qualificada e mais útil para esses fins: o empresário contratante entra efetivamente na
qualificante, ou, para sermos mais exatos, entre processos econômicos do/ prisão, organiza eficientemente a produção, industrializa as oficinas, remunera
no mercado livre de trabalho e organização penitenciária. A mesma contra, parcialmente o trabalho, produz mercadorias não mais artesanais e garante,
posição entre solitary confinement e silent system (entre o modelo penitenciário pessoalmente, a colocação do que é produzido no mercado livre.
de Filadélfia e o de Auburn) encontra sua própria justificativa (econômico- Historicamente, foi apenas em 1796 que pela primeira vez se introduziu o
social) no predomínio do sistema de produção manufatureira ou mesmo in- trabalho carcerário na forma do public account, no cárcere de Newgate (Nova
dustrial, e analogamente reafirma a própria natureza estruturalmente antinômica Iorque), construído com base no princípio do solitary confinement. No ano
também no emprego da mesma força de trabalho carcerária. O sistema peni- seguinte, o estado da Virgínia introduziu o mesmo tipo de emprego da força de
tenciário que se inspira no solitary confinement adotará o critério do public trabalho na penitenciária de Richmond. Em ambos os casos, eram produzidos
account e o que se organiza em torno do princípio do silent system aderirá ao sapatos e botas 126 • Um pouco depois, nos estados de Nova Jérsei (1799) e de
contract. Dois sistemas penitenciários radicalmente distintos; dois modos de Massachusetts (1802), foram derrubadas as velhas leis que obrigavam os
exploração da força de trabalho diametralmente opostos. parentes e os superiores a fornecerem um trabalho aos menores e aos de-
A contraposição entre os dois modelos de execução penitenciária - ini- pendentes detidos nas houses of correction 121 . Nesses anos, foram construí-
cialmente proposta com fins puramente expositivos - encontra, também neste dos novos cárceres para a custódia preventiva e algumas penitenciárias estatais,
aspecto específico, uma afirmação posterior. Com efeito: onde o trabalho era sempre fornecido sob a forma do public account.
a) o cárcere celular filadelfiano recoloca, em escala reduzida, o modelo Este sistema original também se impôs, inicialmente, na penitenciária de
ideal (ou seja, a idéia abstrata de como as relações de classe e de produção Auburn, enquanto a penitenciária de Sing-Sing foi edificada em 1825 por uma
deveriam organizar-se no "mercado livre") da sociedade burguesa do primeiro
126
G. Ives, A History of Penal Methods, Londres, 1914, p. 174.
127
125
H. T. Jackson, Prison Labor, cit., p. 230. H. C. Mohler, Convict Labor Policies. cit., p. 556.

198 199
centena de trabalhadores-internados, através do sistema do public works'"· O fenômeno sucintamente descrito aqui, se por um lado preocupou os
Com base nesse exemplo, o estado de Nova Iorque ergueu, em 1844, ~ . reformadores "iluminados", por outro passou a "interessar" cada vez mais a
cárcere de Donnemora. O estado de Massachusetts só introduziu o sistema ê classe empresarial, seriamente inquieta com a escassez da força de trabalho
do contract em sua penitenciária em 1807. Com o tempo, este modelo dtl .··· disponível no mercado para a nova produção industrial. Se, por conseguinte,
emprego da força de trabalho se impôs. Em 1824, foi adotado na penitenciária • os "reformadores" pressionavam por uma diferente utilização econômica
de Aubum, em 1828 no estado de Connecticut e em 1835 em Ohio'"· das massas de internos, enquanto a administração se lamentava pelo caráter
A principal razão pela qual o public account system foi sendo pto' ·. anti-econômico do trabalho penitenciário, os empresários, por seu turno, se
gressivamente abandonado e substituído pelo contract system é de ordem { ofereciam como alternativa para resolver definitivamente o problema. Assim,
exclusivamente econômica. A produção em regime de public account era :· estavam dadas as condições para a adesão ao contract system 132 •
inferior, em termos de qualidade, à do trabalho livre e, portanto, só podia ser. · O ingresso do empresário capitalista na penitencária e a conseqüente trans-
colocada num mercado restrito, determinando, deste modo, um déficit crônico; formação do cárcere em fábrica - mediante um violento processo de indus-
para as administrações penitenciárias. trialização das oficinas - virou de cabeça para baixo a situação de estagnação
A já precária situação financeira do trabalho carcerário foi agravada pelo ... que afetava a "reforma penitenciária". O modelo executivo baseado no prin-
processo de rápida industrialização então em curso na produção "livre". Gran• cípio do silent system veio, assim, definir o novo sistema penitenciário baseado
desinvestimentos na renovação do capital obsoleto e a entrada na produção no contract, na exploração intensiva e privada da força de trabalho carcerária.
máquinas novas e cada vez mais eficientes provocaram, entre outros fenômenos;: Melhor dizendo, a necessidade de se utilizar economicamente também o tra-
uma sensível redução nos custos de produção e, portanto, nos preços das balho internado levara o capital privado ao cárcere através do esquema jurídico
mercadorias. Deste modo, as margens de lucro que a administração retirava do do contract. O capital privado transformara, portanto, o cárcere em fábrica,
trabalho carcerário foram se reduzindo. O efeito direto e imediato desta situação · impondo à população institucionalizada a disciplina do trabalho. O silent system
"externa" foi uma elevada "desocupação" da força de trabalho internada 130. colocava-se assim como o modelo de "pedagogia penitenciária" para um
cárcere industrializado, para um cárcere-fábrica.
Assim, na realidade específica da penitenciária, a esse processo econômicct ·
correspondeu uma deterioração da situação geral. De fato, diante da escalation•i; Os efeitos dessa transformação na maneira de pagar a pena serão exa-
progressiva dos déficits, a administração penitenciária opôs uma progressiva· minados mais adiante, quando descrevermos o modelo penitenciário de Au-
e correspondente redução dos custos de gestão, reduzindo, deste modo, .o burn. Aqui, basta apenas lembrar que neste novo modelo penitenciário o
standard de vida da população carcerária até o nível mínimo de subsistência,,; homem virtual (leia-se, produto do processo reeducativo ), que acabava de
O preço da contradição econômica passou para a pele dos presos. A "reformit se impor através do trabalho subordinado, não era mais o dependente-artesão,
penitenciária" automaticamente se atrasou: a pena voltou a ser uma "forma>,- isto é, o trabalhador da/pela manufatura e oficina, mas sim o operário, o
de destruição" da força de trabalho 131 • ·
trabalhador disciplinado e subordinado da/pela fábrica.
Esta radical mutação na "prática penitenciária", esta sucessão de diferentes
128
J.B. McMaster, A History ofthe People ofthe United States,from the Revolutia,n:---: modelos de "educação" do criminoso, visando transformá-lo num ser subor-
to the Civil War, vol. VI, Nova Iorque, 1920, p. 101. . dinado, encontra fortes resistências na América do século XIX, seja da parte da
129
H. C. Mohler, Convict Labor Policies, cit. 1 p. 557. opinião pública "influente", seja da paite das organizações da classe trabalhadora.
130
ldenl, ibide1n. Ainda que estas forças sociais muitas vezes tenham se empenhado, lado
131
"A consideração para com o' criminoso pode-se dizer que representa o ponto_ .zero_ _ _ ._ a lado, na luta pela abolição do contract system, as razões de sua discordância
da escala dos tratamentos que a sociedade reserva, como apropriados, para os seus- .-. e de sua oposição a esta nova modalidade de exploração da força de trabalho
vários membros. Se vocês alçarem este ponto, vocês estão alçando todo o nível d&--< eram distintas e às vezes antitéticas. A primeira forma de dissenso foi gestada
escala. O mais pobre pode, com razão, esperar alguma coisa a mais do criminoso;'º ·
homem ou a mulher simplesmente indigente, alguma coisa a mais do pobre' 1 (L. T. 132
E. T. Hiller, "Development of the System of Control of Convict Labor in the
Hobhouse, "Morais in Evolution", in Law and Justice, 1915, p. 113). United States", in Journal of Crüninal Law and Criminology, vol. V, 1915, p. 243.

200 201
por aquelas forças sociais que temiam que o novo tipo de execução abrandasse do movimento sindical se organizaram precisamente contra o emprego cada
ou mesmo fizesse desaparecer o aspecto punitivo da sanção penal. Esta posição, vez mais difundido do contract 139 • Já em 1823, uma comissão de trabalhadores
posteriormente, se disfarçou com roupagens humanitárias e filantrópicas, temporários, reunida em Nova Iorque, tomou posição contra a ameaça que a
manifestando, hipocritamente, o temor de que a exploração privada pudesse colocação das mercadorias produzidas pelos presos no mercado hvre repre-
"embrutecer" o interno, afastando, assim, a possibilidade de uma "educação" sentava para a sua organização 14º.
moral. Privilegiando o aspecto moral-religioso da pena, reafinnou a superioridade
Ainda em 1823, os operários do setor mecânico encaminharam uma petição
do modelo filadelfiano e, por conseguinte, a superioridade do trabalho im-
às autoridades reivindicando a abolição da concorrência do trabalho dos detidos.
produtivo133. Foram diversas, e influentes, as vozes que expressaram esta visão
As suas demandas foram sintetizadas num documento, nos seguintes termos:
"conservadora". E. Lynds, diretor de Sing-Sing, entrevistado a este respeito
por Beaumont e Tocqueville, afirmou que a presença do empresário contratante
Os seus funcionários são testemunhas de que os presos não estavam
no interior do cárcere causaria, cedo ou tarde, a completa destruição e a
petfeitamente instruídos nas diversas disciplinas profissionais; escravi-
zados por empresários privados, em alguns casos com salário redu-
ruína de todo e qualquer modelo disciplinar'"· Por sua vez, G. Powers assim
se manifestou perante o Parlamento de Nova Iorque, em 1828: zido e em outros empregados para dar lucro ao Estado, seus produtos
são colocados no mercado a um preço um pouco superior ao cu~l?
Esta modalidade de utilização dos detentos deve ser considerada
das matérias-primas e tudo isso causa a ruína dos operários livres .
perigosa para a disciplina do cárcere, caso os internos sejam colocados
em estreito contato com o empresário e seus agentes sem que, ao Nesse mesmo documento, os trabalhadores pediam, de forma submissa,
mesmo tempo, sejam impostas, rigidamente, normas muito severas 135, que os internos fossem ao menos utilizados em public works, na explor~ção
de mármore. Um experimento deste tipo, realizado com os presos de Smg-
A. Pilsbury, do estado de Connecticut, chegou a afirmar em 1839 que o
Sing, em 1825, não satisfez as exigências da classe operária, sendo logo
contract system devia ser considerado "negador de qualquer coisa que pudesse
abandonado'"· Anos depois, na conferência operária de Utica, em 1834, os
ser chamada de boa, tanto para a instrução penitenciária quanto para o pri-
trabalhadores do setor mecânico reafirmaram suas posições em relação ao
sioneiro" 136 •
trabalho penitenciário em regime de contract, nos seguintes termos:
Estes protestos, porém, não colocaram em crise o sistema de contract.
Os operários são obrigados a pagar a manutenção dos detidos ?ão só
Ao contrário, por volta do fim dos anos 1850, este modelo de utilização da
através dos impostos, como também através dos produtos fabncados
força de trabalho penitenciária já se difundira por quase todos os estados do
nas prisões que são vendidos a um preço de 40% a 60% i;'ferior a_os
país 137 , com exceção dos sulistas, onde as novas limitações à importação de
mesmos produtos fabricados pelo trabalho livre. Assim, o ruvel salanal
escravos da África fizeram com que, através do leasing systenz, os internos
é reprimido a tal ponto que um operário não consegue viver e manter
fossem empregados nas plantações'"· Pelo contrário, os primeiros protestos
a família. A conseqüência desta situação é que centenas de
133
H. C. Mohler, Convict Labor Policies, cit., p. 558. trabalhadores livres estão hoje desempregados e, em muitos casos,
134 143
G. de Beaumont e A. de Tocqueville, On Penitentiary Systeni in the United States suas farm1ias são obrigadas a pedir esmolas .
and Its Application in France, Southern Illinois University Press, 1964, p. 36.
135
Em E. C. Wines, The State of Prisons and of Child-Saving Institutions in the Corrections, 1883, pp. 296-297; C. E. Russell, "A Burglar in the Making", in
Civilized World. Cambridge, 1880, p. 109. Everybody's Magazine, 1908, vol. 28, pp. 753-760.
136
Ide1n, ibidem. 139 J. R. Simonds, J. T. McEnnis, The Story of Manual Labor in Ali Lands and
137
H. C. Mohler, Convict Labor Policies, cit., p. 558. Ages, Chicago, 1886, pp. 486-494. ·
138
Ver os autores citados na nota nº 19. Ainda sobre o tema do emprego do ,., J. R. Commons et alii, History of Labor in the United States, Nova Iorque, 1921.
leasing systeni nos estados do Sul, ver: H. Alexander, "The Convict Lease and the vai.!, p. 155.
41
System of Contract Labor. Their Place in History'', in The South Mobilizing for 1 Idem, ibidem.
Social Service, 1913, p. 167; G. W. Cable, "The Convict Lease System in the 142
H. C. Mohler, Convier Labor, cit., p. 559.
Southern States", in Proceedings of National Conference of Charities and 143 J. R. Commons et alii, History ofLabor in the United States, cit., vol. 1, P· 347.

202 203
A oposição dos sindicatos tornou-se mais enérgica durante a depres de Baltimore passou de US$ 11,500 de ganho líquido em 1828 para cerca de
econômica de 1834, diante de um aumento dos índices de desemprego. N US$ 20,000 no ano seguinte. A prisão de Sing-Sing pôde contabilizar, em
mesmo ano, os sindicatos de Nova Iorque solicitaram ao poder legisla · 1835, um ganho líquido de US$ 29,000 148 •
que criasse uma comissão especial para examinar a situação geral do trab A enérgica oposição das organizações sindicais conheceu um sucesso parcial,
carcerário em todos os estados da Confederação'"· A comissão rece e momentâneo, no período imediatamente anterior à Guerra Civil, em conse-
amplos poderes de investigação. Em seu relatório final, foi reafinrta~ · qüência de uma redução do desenvolvimento industrial. Nesse período, assistimos
necessidade de que os internos fossem empregados em atividades produtiy ao surgimento de alguns sistemas alternativos ao contract149 • Todavia, durante
não apenas por razões humanitárias como também pelo interesse geral' 0 conflito, com a notável expansão da indústria mais diretamente ligada à
produção; por esse motivo, o trabalho deveria ser, necessariamente, produti produção bélica, registrou-se novamente um incremento da exploração
o que também levaria a uma redução da pressão fiscal. produtiva da força de trabalho internada através do sistema do contract 150 e a
Os sindicatos buscaram, então, uma solução intermediária, pedindo um conseqüente endurecimento do movimento operário em relação ao
o trabalho dos detidos fosse empregado ao menos em obras públicas (pu emprego da mão-de-obra dos presos. Assim, em 1864, os membros da
works), na construção de estradas e ferrovias'"· A comissão parlam Chicago Typographical Union votaram uma resolução contra o sistema do
respondeu que esta sugestão operacional não resolveria o problema trabalho carcerário e exigiram a imediata publicação de leis que proibissem o
concorrência com o trabalho livre, e que também neste tipo de ativida contract system, considerada a forma de exploração mais prejudicial aos
situação ocupacional era "problemática". Propôs, em contrapartida, algú interesses da sua categoria 151 •
limitações normativas ao sistema do contract, a saber: a) que a sua dura Em 1878, uma convenção de chapeleiros redigiu um documento oficial,
fosse limitada; b) que nenhuma nova produção fosse incentivada através no qual as posições do sindicato em relação ao trabalho carcerário eram
trabalho penitenciário; c) que na estipulação do contrato o empresário fc reafirmadas nos seguintes termos:
obrigado a não colocar mercadorias no mercado a um preço inferior ao·
produzidos pelo trabalho livre. Os sindicatos consideraram a conclusão: A Convenção expressou a sua persistente oposição ao sistema de
relatório "enganosa'"" e num documento sindical fizeram uma cotação ···· "aluguel" do trabalho dos detidos por parte de empresários privados
preços das mercadorias para demonstrar como os produtos feitos pe e se declarou contra a transformação das prisões em oficinas privadas;
internos ainda eram vendidos a um preço inferior 147 • contra o governo, que não tem nenhum direito de taxar o operário,
quando, ao mesmo tempo, emprega a sua autoridade para destruí-lo;
Um outro indicador dos altos lucros que o trabalho penitenciário trazia.
a favor de uma pena que busque a finalidade reeducativa e que
empresário-contratante - e, de tabela, as vantagens econômicas concre
interprete, portanto, o lucro como uma finalidade secundária; (... )
que beneficiavam as administrações penitenciárias - é dado pela cresceri
enfim, a convenção exortou que em todos os estados se proceda a:
trend no processá de amortização dos custos de gestão penitenciária, be
como nos ganhos líquidos que o Estado obtinha. Por exemplo, a penitenci 1. abolir o sistema do contract;
de Aubum equilibrou seu balanço em 1829 e já no ano seguinte podia osten 2. retirar as máquinas das prisões e empregar os presos em trabalhos
um ganho líquido de US$ 25 e de US$ 1,800 em 1831. A prisão de Wetherfie forçados;
passou de US$ 1,000 de ganho em 1828 para US$ 3,200 em 1829 e p 3. utilizar os prisioneiros empublic works, para a produção exclusiva
US$ 8,000 em 1831. Os exemplos se sucedem. A administração penitenéiár(íí' de manufaturados necessários à administração penitenciária;

'"' J. P. Tracy, ''The Trade Unions' Attitude toward Prison Labor", in Annals ofth~
148
American Academy of Political and Social Science, 1913, vol. Xl,VJ, pp. 132-13~\ J. R. Commons et alii, History of Labor in the United States, cit., vol. 1, p. 347.
149
145
H. T. Jackson, Prison Labor, cit., p. 245. -" H. C. Mohler, Convict Labor, cit., p. 561.
150
146
J. R. Commons et alii, History of Labor in the United States, cit., vol. 1, p. 36~~~-;-;;: Idem, ibidem.
151
"' H. C. Mohler, Conviei Labor, cit., p. 560. J. R. Commons et alii, History of Labor in the United States, cit., vol. II, p. 37.

204 205
4. instruir os detidos em atividades educativas; privado para industrializar o processo produtivo penitenciário em formas
5. proibir que o empresário-comerciante que tinha a ver co que ainda pudessem ser competitivas num momento de renovação tecnológica
produção carcerária, venha a ser direta ou indiretamente beneficia no mundo da produção livre; de outro, no crescente peso das organizações
sindicais na vida política e econômica dos Estados Unidos.
6. fazer com que os operários se neguem a trabalhar para ou e
qualquer um que tenha se comprometido com o trabalho carcer' No início do novo século, a penitenciária deixava, assim, de ser uma
ou tenha sido instrutor de qualquer disciplina profissional, no interi "empresa produtiva": os balanços começaram a acusar, novamente, déficits
, 152
do carcere . cada vez maiores 156 •
Os protestos e as agitações do mundo do trabalho contra a produç
penitenciária continuaram praticamente até por volta de 1930, ainda qué
problema da concorrência entre a produção carcerária e a produção liv
podia ser considerada, já no final do século, completamente resolvida. ·
estatísticas oficiais sobre o tipo de emprego da força de trabalho internada
virada do século são bastante significativas. Em 1885, por exemplo, 26%
todos os presos empregados numa atividade produtiva trabalhavam sob
leasing system; em 1895, o percentual caiu para 19%, e sucessivamente p
9% em 1905, e 4% em 1914. Em 1923, o sistema podia ser considerad&
completamente desaparecido 153 • O mesmo fenômeno é passível de observaçãq·
no que diz respeito ao emprego do contract. Se, em 1885, 40% dos detidos
empregados em alguma atividade produtiva trabalhavam nas dependências:
de um empregador privado, em 1923 o percentual caíra para 12% 154 • Um
outro dado ainda mais significativo: em 1885, 75% de todos os presos estavam
empregados em algum trabalho de tipo produtivo, ao passo que em 1923 o
percentual da população carcerária dita produtiva caíra para 61 %. Este último•
dado deve ser relacionado com o seguinte: se, em 1885, o sistema do public:· .•
account, conjuntamente com o state use e o public works system, empregava :
apenas 26% da força de trabalho carcerária, em 1923 o percentual subira·
para 81 % 155 •
Fica clara, portanto, a emergência de um processo de obsolescência
exploração privada do trabalho penitenciário, paralela a um emprego ca<ia·;-;;\s•":
vez mais maciço de modalidades de utilização da população internada que
não façam concorrência ao trabalho livre. As razões do fenômeno devem
procuradas, de um lado, nas dificuldades crescentes encontradas pelo capital

152
Em E. T. Hiller, Development of the Systems of Control of Conviei Labor in the
United States, cit., p. 256.
153
United States Bureau of Labor, "Conviei Labor", in Bulletin n. 372, 1923, p. 18. 156
Ver Twenty-Seventh Annual Repor! of the State Commission of Prisons, State
154
Idem, Ibidem. of New York, Nova Iorque, 1921; Proceedings of the National Prison Association,
155
Idem, Ibidem. 1870, 1873, 1874, 1883-1921, vol. 40, Nova Iorque, 1871-1921.
206 207
II
A penitenciária como modelo da sociedade ideal
O homem na penitenciária é a imagem virtual do tipo
burguês que ele deve se esforçar para se tornar na
realidade ...
Eles (os prisioneiros) são a imagem do mundo
burguês do trabalho pensado até as extremas
conseqüências, que o ódio dos homens por aquilo
que devem fazer a si mesmos coloca co1no emblema
do inundo...
Como, de acordá com Tocqueville, as repúblicas
burguesas, ao contrário das monarquias, não
violentam o corpo, mas investe1n direta1nente na
alma, assim, as penas deste ordenan1en1to agridem a
alma. As suas vítimas não morre1n n1ais ligadas à
roda por longuíssimos dias e '}Dites inteiras, mas
perecem espirituabnente, exenzplo invisível e
silencioso, nos grandes edifícios carcerários, que
apenas o nome, ou quase, distingue dos 1nanicônlios.

M. Horkheimer e T. W. Adorno,
Dialética do Esclarecimento
1. O cárcere como "fábrica de homens"
A tese desenvolvida previamente, que enfoca a penitenciária como
manufatura, como fábrica, pode encerrar um equívoco: o de considerar que
a penitenciária tenha sido "realmente" uma célula produtiva, ou melhor, que
0 trabalho penitenciário tenha "efetivamente" alcançado a finalidade "de criar
utilidade econômica". Como vimos, ainda que, historicamente, se tenha tentado
fazer do trabalho carcerário um trabalho produtivo, na prática esta vontade
foi quase sempre frustrada: do ponto de vista econômico, o cárcere mal
conseguiu chegar a ser uma "empresa marginal". Como atividade econômica,
portanto, a hipótese penitenciária nunca foi "útil" e, nesse sentido, não seria
correto falar do cárcere como manufatura ou do cárcere como fábrica (de
mercadorias). Podemos afirmar, mais adequadamente, que as primeiras
realidades historicamente realizadas de cárcere se estruturaram (no que
concerne à sua organização interna) sobre o modelo da manufatura, sobre o
modelo da fábrica.
Porém, o cárcere perseguiu com sucesso, pelo menos na sua origem
histórica, uma finalidade - se quisermos, "atípica" - da produção (leia-se,
transformação em outra coisa de maior utilidade): a transformação do
criminoso em proletário. O objeto desta produção não foram tanto as
mercadorias quanto os homens. Daí a dimensão real da "invenção
penitenciária": o "cárcere como máquina" capaz de transformar - depois de
atenta observação do fenômeno desviante (leia-se, o cárcere como lugar
privilegiado da observação criminal)- o criminoso violento, agitado, impulsivo
(sujeito real) em detido (sujeito ideal), em sujeito disciplinado, em sujeito
mecânico'. Em síntese, uma função não apenas ideológica, mas também
atipicamente econômica. Em outras palavras, a produção de sujeitos para
uma sociedade industrial, isto é, a produção de proletários a partir de presos
forçados a aprender a disciplina da fábrica.
O objeto e as formas deste processo de "mutação antropológica" (de
criminoso em proletário) são subjacentes, portanto, às leis férreas e mecânicas
da economia ricardiana, estabelecendo, desse modo, um estreito laço entre a
"lógica do mercado livre" e a "lógica institucional". De fato, a hipótese da

1 M. Foucault. Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris, 1975, p. 246.


211
penitenciária malthusiana pode ser percebida, no longo prazo, na existênc 'às vezes apenas pedantes, mas sempre precisos, de inspeções, visitas, relató-
de algumas constantes, a saber: . rios a respeito da realidade penitenciária americana na primeira metade do
a) se, no mercado livre, a oferta de trabalho excede a demanda _ det >< século XIX.
minando desemprego elevado e a conseqüente queda do nível salarial _er, O cárcere torna-se, assim, o horto botânico, o jardim zoológico bem
"grau de subsistência" no fnterior da instituição penal tende, automaticame;t ·· organizado de todas as "espécies criminosas". A "peregrinação" neste
a reduzir-se. Ou sep, o carcere volta a ser um local de destruição da for a santuário da realidade burguesa - isto é, neste lugar em que é possível uma
trabalho. Desse modo, a instituição participa, em harmonia com as leis observação privilegiada da monstruosidade social - torna-se, por sua vez,
demanda e da oferta, do rebaixamento da curva da oferta. uma necessidade "científica" da nova política do controle social.
b) E vice-versa: a uma oferta de trabalho sustentada, e a um conseqüent É variado o universo dos "visitantes" (estrangeiros extravagantes, diligen-
aumento . do nível salarial, o cárcere não apenas tende a limitar a sua capacida tes embaixadores de governos europeus interessados na reforma penitenciária,
destruu:a, como também a empregar utilmente a força de trabalho, reciclancl~ penitenciaristas, reformistas, utopistas etc.), mas apenas uma única intenção
a, depms de tê-la requalificado (leia-se, tê-la reeducado) no mercado livre_"· os anima: a observação, o conhecimento do criminoso. O problema não deve
O cárcere concorre, deste modo, para diminuir a curva da demanda; ser subestimado: o conhecimento da realidade delitiva é interpretado, clara-
sustando a espiral salarial. •' mente, como condição necessária para a solução de uma evidente preocupação
. O universo institucional vive, assim, de forma reflexa, os aconteciment:,.·. social da época: a luta contra a crescente criminalidade.
do "mundo da produção": os mecanismos internos, as práticas penitenciári No que diz respeito à realidade americana da primeira metade do século
ficam assim oscilantes entre a prevalência das instâncias negativas (o cárcere' XIX, o fenômeno encontra fácil explicação. Assiste-se, como já tivemos
"destrutivo", com finalidades terroristas) e das instâncias positivas (o cárcet~ oportunidade de afirmar, a um acentuado e violento processo de acumulação
"produtivo", com finalidades essencialmente reeducativas). Entre estes dpi&' capitalista, acompanhado pelos inevitáveis fenômenos de desagregação so-
extremos (tomados como "pontos ideais e abstratos" de um processo) situa . cial3. O interesse; não por acaso, deve ser situado na originalidade expressa
se as diversas e contingentes experiências penitenciárias. pelo pensamento político-social da época na identificação das causas do desvio
A penitenciária é, portanto, fábrica de proletários e não de mercadorias•!·' criminal. Em primeiro lugar, deve ser sublinhada a capacidade de se evitar a
"ilusão repressiva", a obsessão de poder conter um processo essencialmente
Devemos ter em mente, em analogia com as instituições para a inf'ancia;;
objetivo com a simples violência penal. A reforma dos códigos, o distancia-
e para as mulheres, que os prisioneiros constituem um investimento<
mento dos princípios penais dos velhos códigos ingleses, a abolição da pena
educacional e este é o único fim que deve ser buscado. O custo da<·
de morte e de muitas penas corporais, a invenção do cárcere como sistema
sua manutenção deyeria ser visto sob a mesma luz das despesa~
2 global de controle social são testemunhos concretos desta abordagem diferente
escolares e dos auxílios e financiamentos às universidades • . .:.·.·):·
da criminalidade.
Esta premissa é útil para introduzir um tipo de análise essencialmente distinto
Porém, a originalidade do sistema norte-americano não pára aí. A
do histórico-econômico, desenvolvido na primeira parte. Nosso interesse agora
concepção criminal do período jacksoniano tenta dar uma explicação etiológica
volta-se para o estudo dos mecanismos institucionais através dos quais se
do desvio, uma explicação que não seja apenas religioso-individualista, mas
completa a "transformação" do "criminoso-internado" em "proletário".
também - e algumas vezes apenas - social. O problema do desvio violento, o
2. A dupla identidade: tema da desagregação da "saudável" fanu1ia colonial, o fenômeno da juventude
"criminoso-internado" e ''não-proprietáriocinternado" abandonada, por um lado, e por outro as iniciativas para moralizar a sociedade
(sobretudo nas grandes cidades), um novo regime institucional (da poor-house
Um tema constante, uma nota quase monótona - hoje fartamente do-
para a workhouse) para "reeducar", para "reinserir" as camadas mais frágeis
cumentada nos arquivos e nas bibliotecas - são os relatos, às vezes profundos,
do tecido social, constituem os aspectos centrais - seja no nível cognitivo,

2
P. Klein, Prison Methods in New York State, Nova Iorque, 1920, p. 281. 3
Ver parágrafos 2 e 3 da Parte I.
212 213
1

seja no nível reformista - desta original "revolução"'. Todavia, neste siste •' investigar minuciosamente, analisar permanentemente uma coletividade
diferente de controle, o cárcere vem a desempenhar, além das funções 'eternamente exposta. Realiza-se, assim, a c?ndição es~encial para que os
examinadas, um papel "instrumental", "subordinado" a uma exigência q oucos se transformem em cientistas, os muitos em objetos, em cobazas, e
então surgia: o conhecimento criminal. A observação não é marginal: p l b
_0 cárcere em a oratorto.
, .
criminologia - como ciência da criminalidade - é, antes de tudo, nas su A exposição à "curiosidade científica" é absoluta. Cada gesto, cada sinal
origens, o conhecimento do crinzinoso. Mais exatamente, e interpretarl de desconforto, de dor, de impaciência, cada intimidade será descrita, com-
Foucault', conhecimento do criminoso e não conhecimento do "transgress parada, analisada, estudada. O internado introjetará, progressivamente, a cons-
da norma penal''. · ciência da sua permanente visibilidade, da sua exposição expropnante. Nesse
O interesse pelo criminoso se auto-limita, assim, ao interesse por aquél' · nível de consciência, a sua salvação - ou a sua completa alienação como
desviante que pode ser estudado, analisado, classificado, manipulado, tratt · realidade "diversa", "desviante" - dependerá somente do seu auto-controle,
formado por fora, e que prescinde da realidade na qual viveu e na qual tom da disciplina que impuser ao seu próprio corpo, da sua capacidade de assumir
a viver. O criniinoso se transforma, pois, no desviante institucionalizad6 como modelo de comportamento a imagem do "sujeito ao poder". A altematlva
em última instância, no preso. :__,_~~> só é a "destruição", a loucura. O detido observado transforma-se, assim, no
Nessa perspectiva, já se pode perceber o equívoco sobre o qual se baseará· instrumento da sua submissão, da sua transformação em algo diferente'.
todo o interesse positivista pelo fenômeno criminal, i.e., a estreita equiparaçãi:f} A inspeção, tornada princípio e interiorizada, transforma o aspecto
entre delinqüente e preso. Sobre a identificação acrítica destes dois term · disciplinar em exercício de poder tout court. Mas com base em que "projeto
se fundamenta um tipo particular de ideologia cientificista, uma ideologia qu~ ideal" o poder disciplinar, o poder institucional, medirá a sua capacidade de
confundirá a agressividade e a alienação do "homem institucional" com sita transformar o objeto criminal?
intrínseca perversidade, uma ideologia que classificará e tipificará como mod A hipótese que se projeta aqui, na sua cristalina racionalidade, é total.
diversos do ser criminoso tanto as formas de sobrevivência à realidade Exaustiva é a sua capacidade de resolver, em termos gerais, a temática do
penitenciária quanto, num segundo momento, as adaptações aos modelos controle social das classes dangereuses. O "modelo", o "paradigma" é único;
impostos, à violência classificatória sofrida pelos detentos. Mas para qu~ diversas são, ao contrário, as áreas de aplicação, os setores, os objetos de sua
esta "ciência infeliz" conseguisse crescer e se impor como "ciência positiva,'~f-, intervenção. Quer se realize no cárcere de tipo filadelfiano, quer se concretize
como "ciência da sociedade", era necessário que o cárcere moderno, o '~cru:;, nas instituições assistenciais (para/contra os menores transviados', para/contra
cere panóptico" se mostrasse capaz de se transformar em laboratório, eíllc · a infância abandonada'° etc.), quer seguindo a própria dilatação do projeto
gabinete científico, onde, após atenta observação do fenômeno, se ousasse. hegemônico, que inspira as novas formas de disciplina militar 11 ou a refo~ma
promover o grande experimento: a transformação do homem. da instrução escolar, ou ainda a arquitetura, a geografia urbana do bamo
Foucault percebe com extrema lucidez o significado do panoptismo6 , isto. operário, a sua dimensão real reproduzirá sempre e ao infinito - até nos mais
é, daquele movimento ideológico que se realizará essencialmente, em termos. restritos espaços sociais - a ordem social burguesa.
completos e orgânicos, na invenção institucional, de tipo disciplinar, norte~ o cárcere - enquanto "lugar concentrado" no qual a hegemonia de classe
americana do século XIX. O cárcere, como qualquer outra "instituição total" . (uma vez exercitada e nas formas rituais do "terror punitivo") pode desen-.
estruturada com base no "modelo panóptico", é de fato, uma máquina volver-se racionalmente numa teia de relações disciplinares - torna-se o
excepcional, apta para romper com o binômio "ver e ser visto"7 . Trata-se,
nesse sentido, de um dispositivo que permite a poucos não-vistos observar, "M. Horkheimer e T. W. Adorno, Dialettica dell'Iluminismo, Turim, 1966, p. 343-
344 (N. do T.: edição brasileira Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro, Jorge
4
Ver parágrafos 3 e 4 da Parte I. Zahar, 1985, tradução de Guido Antonio de Almeida).
5 Micher Foucault, Surveiller et punir. Naissance de la prison, cit., p. 254. 9 Ver nota nº 93 da Parte I.

6
Idem, cap. III, pp. 197-229. w Ver nota nº 94 da Parte I.
7 11 Michel Foucault, Surveiller et punir, cit., pp. 212 ss.
Idem, p. 203.
215
214
símbolo institucional da nova "anatomia" do poder burguês, o lócus priv· cárcere, a comunidade "silenciosa" e "laboriosa" que o habita, o tempo inexora-
giado, em termos simbólicos, da "nova ordem". O cárcere surge assimconíó:- velmente repartido entre trabalho e oração, o isolamento ~b~oluto de cada p;eso-
o modelo da "sociedade ideal". E mais: a pena carcerária - como sistema trabalhador, a impossibilidade de qualquer forma de assocrnçao entre os operanos-
dominante do controle social - surge cada vez mais como o parâmetro de . ternos a disciplina do trabalho como disciplina "total", tudo isso torna os
uma radical mudança no exercício do poder. De fato, a eliminação do "outro" :rmos p;,,.,,digrnáticos daquilo que "deveria ser" a sociedade dita livre. "O iuterior"
a eliminação física do transgressor (que, enquanto "fora do jogo", se torqa urge como modelo ideal daquilo que deveria ser "o exterior". O cárcere assume,
destrutível), a política do controle através do terror se transforma - e. s ortanto, a dimensão de projeto organizativo do universo social subalterno,
cárcere é o centro desta mutação - em política preventiva, em contenção,
0
~odeio a ser imposto, espalhado, universalizado: "Se todos nós ficássemos na
portanto, da destrutividade 12 • Passa-se, assim, da eliminação à integração d.!> prisão duas ou três gerações, no final o mundo inteiro se tornaria melhor" 15 •
criminoso ao tecido social. Os tempos, os modos e as formas desta "trans-
3. "The Penitentiary System":
formação" do criminoso na imagem burguesa de como "deve ser" o "não-
proprietário", isto é, o "proletário", são complexos e se calcam numa outra
o novo modelo de poder disciplinar
identidade: exatamente aquela entre não-proprietário e criminoso". O tema Os muros do "grande laboratório" - não mais fortaleza inacessível, como
central, vivido em termos de uma verdadeira obsessão, torna-se, portanto, a no passado, à curiosidade dos "súditos" - tomam-s~ algo relativamente "trans-
periculosidade social do potencial agressor da propriedade''. parente": o interesse burguês pode finalmente sat:Jsfazer-se e •. mesmo, rego-
Sob esta ótica, a classe dos não-proprietários já é considerada - ideo- jizar-se. Urna aparência de dernocraticidade acompanha os pnme1ros passos
logicamente - como homogênea à dos criminosos e vice-versa. A relatividade da "aventura penitenciária". Os bons cidadãos podem agora, pessoalmente,
da diferença entre os dois termos encontra uma correspondência - como um verificar o emprego (útil e profícuo) do patrimônio público (os altos wstos
espelho - na diferença entre os mecanismos econômicos e extra-econômicos do cárcere são, de algum modo, justificados), comprovar o empenho c1vil-
religiosÓ que inspira a ação do staff, constatar a ordem que reina no "universo
do controle social. O cárcere - em sua dimensão de instrumento coercitivo
institucional", compadecer-se da "doçura" do tratamento e do comportamento
- tem um objetivo muito preciso: a reafirmação da ordem social burguesa (a
"remissivo" dos internados, informar-se sobre os satisfatórios resultados
distinção nítida ente o universo dos proprietários e o universo dos não-
alcançados (por exemplo, a diminuição das reincidências) etc.
proprietários) deve educar (ou reeducar) o criminoso (não-proprietário) a
ser proletário socialmente não perigoso, isto é, ser não-proprietário sem Os depoimentos escritos acerca dessas visitas institucionais, _como já
ameaçar a propriedade. indicamos são numerosas e ricas em observações interessantes, ainda que
revelem_' com as devidas e relevantes exceções - mais uma diligência de
O projeto roça a utopia. Mas a educação para a sujeição, a educação para
colecionador do que urna verdadeira lucidez científica, mais um amor, quase
a disciplina do trabalho assalariado, a redução de toda iudividualidade proletária
uma obsessão no ato de recolher, registrar, amontoar o maior número possível
a "sujeito das necessidades materiais", passíveis de satisfação apenas nó/
de notícias, mesmo que contraditórias entre elas, do que uma capacidade de
com o trabalho alienado, encontrará no cárcere - em particular na hipótese
penitenciária norte-americana - um modelo historicamente realizado. sistematizar, em termos teórico-políticos, o material recolhido 1'.

Porém, inclusive presciudindo desta dimensão objetiva (educação para o


"J. B. Finley, Memoriais of Prison Life, Cincinnati, 1851, p. 41.
trabalho assalariado), a pena carcerária oferece ao discurso hegemônico burguês
16 Além da obra de B. de Beaumont e A. de Tocqueville, On the Penitentiary
uma contribuição ideológica relevante. Com efeito, a organização interna do
System in the United States and lts Applicatfon in F:an~e ,<traduzido do fra~c~s,
com introdução, notas e comentários de F. L1eber), Ftl~del~ta, 1833 (~~va ed1çao,
12 Southern Press Ilinnois, 1964), que é ainda a fonte mais digna de credito sobre a
P. Costa, II progetto giuridico. Ricerche sul/a giurisprudenza dei liberalismo origem da experiência penitenciária nos Estados Unidos •. são também interessantes
classico. Vai. !: Da Hobbes a Bentham, Milão, 1974, p. 364.
13 as pesquisas realizadas nos diversos estados pe~as Soc1~da~es de Refoi:rn~dores,
P. Costa, ll progetto giuridico, cit., p. 358. entre as quais citamos as seguintes: Philadelphza Association for Allevzatzng the
14
Idem, pp. 334 ss. Miseries of Public Prisons, Extracts and Remarks on the Subject of Punishment
216 217
Desejamos reinterpretar essas experiências à luz de um "modelo teórico desviante como germe perigoso, possível propagador da "desobediência",
de poder disciplinar", em parte já antecipado nas páginas precedentes, e que testemunhas de um modo "diferente" de ser subalterno).
reapresentamos a seguir - completando-o, em termos sintéticos. Desenraizado do seu universo, o detido em isolamento toma
O primeiro momento penitenciário - primeiro seja do ponto de vista: progressivamente consciência da sua fragilidade, da sua absoluta dependência
temporal, seja do ponto de vista funcional, se prescindirmos, por um irn;ta:nte:. da administração, isto é, do "outro", toma consciência de ser sujeito-de-
da sua função de inspeção (o cárcere como observatório privilegiado dá necessidades. Assim, pode ser atingido o primeiro estágio da reformation: a
marginalidade social)- se caracteriza por uma tensão quanto a uma progressivà transformação do "sujeito real" (criminoso) no "sujeito ideal" (encarcerado).
redução da personalidade criminosa (rica na sua individualidade desviante) à Concomitantemente, o aspecto disciplinar- rígido e minucioso na descrição
uma dimensão "homogênea", ou seja, fazendo-a, exclusivamente, sujeito dà das funções, competências e encargos da administração - propõe coati-
necessidade 17 • Esta "operação" encontra nos processos de classificação vamente ao encarcerado ("ser abstrato"), em escala de miniatura, o mecanismo
(classification of criminais) e na norma disciplinar da segregação celular do universo social perfeito: isto é, um "conjunto" de relações hierarquizadas,
(solitary confinement) os meios, os instrumentos mais idôneos. piramidalmente orientadas".
O isolamento em particular - realizado, de modo ainda mais acentuado O modelo disciplinar que reina na produção (livre) - da hipótese
na postura "extremista" e exasperada do modelo filadelfiano (absolute solitary manufatureira à realidade da fábrica - acaba então por se impor, como "projeto"
confinement) - tende tanto factual quanto ideologicamente a contrapor-se, dominante, no interior da organização penitenciária (do cárcere filadelfiano
de um lado, àquela que sempre foi a gestão caótica e pronúscua do cárcere ao de Auburn). Mesmo levando em conta suas importantes diferenças
de prevenção (jail) e, de outro lado, a impedir a espontânea coesão-união (diversidade no sistema de produção, diversidade, portanto, na "educação"
entre os deserdados, entre os membros da mesma classe. Coesão-união para o "trabalho s.ubordinado"), as duas experiências carcerárias apresentam
duplamente perigosa, por ser alimento de uma subcultura (sobrevivência de um traço comum: a destruição, através do isolamento, de toda e qualquer
um conjunto de "valores alternativos", embora seja ainda de uma forma relação paralela (entre os internos-trabalhadores, entre os "iguais"), e, em
marginal), e por ser veículo possível da difusão de uma ordem, de uma contraposição, a ênfase, através da disciplina, nas relações verticais (entre
disciplina "diferente" (a disciplina, por exemplo, da organização política superior/inferior, entre "diferentes").
"subversiva"). O isolamento - os longos anos de completa separação-cisão Em tudo o mais, os dois modelos de cárcere divergem profundamente. O
dos "outros", o colóquio constante com a própria consciência - reduzem seu surgimento e a sua estruturação dependem essencialmente das
progressivamente, até a completa destruição, toda a "estrutura do si" 18 • Assim, transformações no processo capitalista de acumulação. Dessa realidade se
é exorcizado, para sempre, o medo da contaminação criminal (no sentido do destaca - em harmonia com o "modelo ideal de poder disciplinar" que se
deseja desenhar - o perfil essencial.
Southern Press Ilinnois, 1964), que é ainda a fonte mais digna de crédito sobre a Uma advertência: os modelos propostos são o resultado de uma abstração
origem da experiência penitenciária nos Estados Unidos, são também interessantes (abstração de uma realidade que, historicamente, não pôde deixar de ser
as pesquisas realizadas nos diversos estados pelas Sociedades de Reformadores, complexa). A sua validade, portanto, supérfluo reconhecer, é puramente
entre as quais citamos as seguintes: Philadelphia Association for Alleviating the heurística.
Miseries of Public Prisons, Extracts and Reniarks on the Subject of Punishment a) "Solitary confinement": a hipótese carcerária filadelfiana
and Refomiation of Criminais, Filadélfia, 1790; R. Sullivan et alii, Repari of the
Apresentamos abaixo, por itens e de forma sintética, as características
(Massachusetts) Comniittee. "To Inquire into the Mode of Governing the
essenciais do sistema filadelfiano:
Penitentiary of Pennsylvania". Boston, 1817; R. Sullivan et alii, The Report of the
Committee (... ) in the Connecticut State Prison, Hartford, 1833. !. O cárcere deste tipo é, em primeiro lugar, uma hipótese arquitetônica,
17
P. Costa, Il progetto giuridico, cit., p. 373. no sentido de um projeto arquitetônico que se eleva a princípio de processo
18
E. Goffman, Asylunis. Le istituzioni totali: I nieccanismi della esclusione e
19
della violenza, Turim, 1968, pp. 43 ss. Michel Foucault, Surveiller et punir, cit., pp. 240 ss.
218 219
educativo. Ou melhor, a ciência arquitetônica se transforma, no caso específico; e rejeite os consolos que lhe são oferecidos. A única punição que o
em ciência social. É o "sonho" de Bentham que se materializa: regulamento disciplinar contempla é a segregação numa cela
Observando-se certos princípios arquitetônicos, podem ser obtidas, ·•.· completamente escura e a redução do alimento. É muito difícil que
facilmente, importantes mudanças morais nas camadas mais · até os prisioneiros mais refratários passem mais de dois dias nesse
• 20 • 24
corrompidas de nossa sociedade . tratamento sem se ajustarem .
E ainda: 3. O tempo - vivido no silêncio mais absoluto, marcado apenas pelos
A ciência arquitetônica se consumiu em experimentos para construir ritos da prática penitenciária (provimento de alimentação, trabalho, visitas
Penitenciárias nas quais o formato das celas seja capaz de transformar institucionais, orações etc.) - tende a dilatar-se e a tornar-se, portanto,
21 .
um coração viciado num coração virtuoso . absoluto, consciencial. Em pouco tempo, o detido perderá a noção objetiva,
física, de si mesmo.
As paredes da cela tomam-se instrumentos eficazes de punição: colocando
o detido frente a frente consigo mesmo, ele é obrigado a "entrar" na sua 4. A disciplina institucional - nesta forma "simplificada" de vida não asso-
consciência. A antiga hipótese penitenciária canônica (ergastulum) revive, ciativa - se transforma (reduzindo-se) em disciplina do corpo (disciplina
assim, de forma ainda mais exagerada, na nova técnica carcerária quaker: para impor um hábito ao controle/autocontrole físico). A desordem física (co-
"Nesta cela fechada, sepulcro provisório, os mitos da ressurreição facilmente mo reflexo da perturbação moral) deve-se transformar (leia-se, educar-se) em
ganham corpo"". ordem física (exterior). Nesta educação do corpo, valem algumas regras. Como
De fato: exemplo, devem ser lidos alguns artigos do regulamento interno da penitenciária
de Cherry Hill (Filadélfia), que entrou em vigor no dia 5 de dezembro de 1840:
Cada indivíduo se transformará, necessariamente, no instrumento
Art. 1: deves conservar a tua pessoa, a cela e os utensílios limpos e
da própria pena; a própria consciência do interno vingará a sociedade
em ordem; art. 2: deves obedecer prontamente a todas as ordens que
( ... ) o processo de corrupção é assim snstado; nenhuma
te forem dadas (... ); art. 3: não deves de maneira alguma provocar
contaminação posterior poderá ser ainda recebida ou comunicada
ruídos inúteis, cantando, assobiando, ou de qualquer outro modo,
(... ) o interno será obrigado a refletir sobre os erros da sua vida, jl
2 mas sim, no máximo respeito, manter o silêncio mais absoluto (... );
escutar os remorsos da consciência e as recriminações da religião •
art. 4: o alimento excedente deve ser conservado num recipiente
2. O isolamento (noturno e diurno) é absoluto (absolute solitary confine-
próprio para esta finalidade; todas as sobras e outros restos devem
ment). O projeto arquitetônico unicelular permite que o princípio do isola- ser recolhidos com atenção e colocados fora da cela quando os guardas
mento possa ser levado às extremas conseqüências. O perigo de "conta-
os solicitarem; art. 7: sejas, em todo momento, respeitoso e cortês
minação" entre os presos e entre eles e o mundo externo deve ser impedido com o pessoal penitenciário e nunca te deixes desviar dos teus deveres,
por todos os meios. Fora das quatro paredes da cela, o preso só poderá nem pela cólera nem pelos pensamentos de vingança; art. 8: santifica
mover-se, por alguma exigência da administração, "vendado" ou "encapuzado". o sábado: saibas que mesmo estando separado do resto do mundo,
25
A cela, completamente isolada do criminoso, fica, por alguns dias, não é por isso que este dia é menos sagrado .
cheia de terríveis fantasmas. Agitado e atormentado por mil medos, A razão analítica- aquela que tende a fragmentar o "diverso" para depois
ele acusa a sociedade de ser injusta e cruel e, com tal disposição de "recompô-lo" (quase como um quebra-cabeças) à imagem e semelhança da
espírito, acontece, em alguns casos, que ele se rebele contra as ordens idéia de "ser civilizado" - inspira este processo disciplinar: o "homem da
20
BPDS (Boston Prison Discipline Society), Fourth Annual Repor!, p. 54.
21 24
J. Reynolds, Recollections of Windsor Prison, Boston, 1834, p. 209. G. Beaumont e A. H. Tocqueville, On the Penitentiary System in the United
22
Michel Foucault, Surveiller et punir, cit., pp. 242. States, cit., pp. 39-40.
25
23
G. W. Smith, A Defense on the Systent o/ Solitary Confinement o/ Prisoners, ln N. K. Teeters e J. D. Shearer, The prison of Philadelphia: Cherry Hill. The
Filadélfia, 1833, p. 75. Separa/e System of Penal Discipline: 1829-1913, Nova Iorque, 1957, pp. 137-138.

220 221
desordem", o "homem selvagem", deve transformar-se no "homem-máquina", tangíveis" de "arrependimento" (isto é, de estar caminhando ao longo da
no "homem disciplinado". Se a "selvageria" (exuberância natural do rebelde estrada-mãe da spiritual salvation) equivale a dar uma certa prova de
ou oposição, extrema e desesperada, à "destruição") não deve encontrar reformation (de progredir no processo "reeducativo"). Sob essa ótica, a
"remédio" adequado na disciplina institucional (solidão, oração, trabalho), 0 prática religiosa é essencialmente prática administrativa. O Chaplain é um
momento da violência física não tardaria a se materializar sob novas formas; contador diligente, que deve prestar contas à Administração. É nesta
duchas geladas para os rebeldes, "mordaças de ferro" (iron gags) e "forcas perspectiva que devem ser lidas as seguintes anotações, contidas no diário
de ferro" (iron gibbets) para os "indomáveis"26 • . de Lacombe (1845-1850), capelão de Cherry Hill:
A inspiração técnico-disciplinar que cria estes "objetos" não é estimulada nº 876. John Nugent. Barbeiro. Compreende bastante bem do que
pela vontade de "aumentar" o sofrimento ou o tormento do prisioneiro (neste precisa para "salvar-se", mas não parece ter nenhuma vontade de
sentido, não são instrumentos de tortura}, mas sim para "constranger", fazê-lo;( ... ) Em julho de 1839, aproximou-se da religião, mas o fez de
mecanicamente, o interno a "moldar" o próprio corpo e o próprio espírito ao forma hipócrita, como eu suspeitava (... ) Incorrigível, irrecuperável.
regime disciplinar imposto: diz-se que a "mordaça de ferro" o educará ao nº 874. Riram Kelsey. Uma espécie de selvagem do faroeste. Levava
silêncio, fazendo-o calar mecanicamente: se se agi_ta, a "forca de ferro" 0 uma vida errante nas pradarias do Oeste. Nenhum senso religioso.
ensinará a controlar o próprio corpo, imobilizando-o mecanicamente numa nº 879. James Loller, 33 anos. Mulato da Virgínia. Taciturno.
armadura e pendurando-o numa trave27 . Trata-se dos mesmos instrumentos Nenhuma inclinação para conversar sobre temas religiosos; mostra
com os quais certos animais são "domesticados" e os selvagens são mesmo indiferença em relação a eles.
"civilizados". São esses os recursos da nova ciência pedagógica burguesa: nº 920. George Thomas. Não lê as Sagradas Escrituras. Não quer se
Dos muitos expedientes que usei, o calor me pareceu o mais eficaz arrepender. Afirma ser um homem livre (certamente é louco). Disse-
(... ) Usei este estímulo de todas as maneiras ( ... ) Fiz com que ele me:• "Vá29 contar estas bobagens para outro!" É um indivíduo
tomasse banho todos os dias, de duas a três horas numa temperatura pengoso .
muito alta, entremeados de duchas na cabeça (... )Estou convencido 6. O trabalho é um prêmio, que é negado ou suspenso a quem não
que a perda de forças que sofria seria proveitosa para sua sensibilidade "colabora" com o "processo educativo". Assim escreve o juiz Charles Coxe,
nervosa ( ... ) Depois de algum tempo, o nosso jovem selvagem se no seu primeiro relatório à comissão legislativa sobre o tema do trabalho
mostrou sensível à ação do frio (... ) não me foi difícil obrigá-lo a penitenciário em Cherry Hill:
vestir-se sozinho. Conseguimos isso no espaço de poucos dias, Quando um prisioneiro chega, é levado para a sua cela e deixado
deixando-o todas as manhãs exposto ao frio, ao lado de suas roupas, sozinho, sem trabalho ( ... ) Mas poucas horas depois ele já suplica
. 1as28 .
ate, que apren deu a vesti- para fazer alguma coisa (... ) Se o prisioneiro domina um ofício que
Por outro lado, a reformation significa "educação pela sujeição", aceitação pode ser realizado em sua cela, como prêmio e como estímulo à boa
passiva da própria inferioridade, do próprio "ser sujeito da necessidade". conduta lhe é permitido trabalhar( ... ) Este trabalho é considerado e
5. A religião (ou melhor, a instrução religiosa) torna-se o instrumento avaliado como uma recompensa, cuja privação é interpretada como
• - 30
privilegiado na retórica da sujeição. A ética cristã (na sua acepção protestante) uma pumçao .
é usada, nesta hipótese penitenciária, como "ética de/para as massas". Bible Por conseguinte, o trabalho se torna, nesta situação, a única alternativa
é a palavra mágica, sempre recorrente, neste universo. Mostrar "sinais possível à inércia, ao ócio forçado. É de fato a única tábua de salvação para
escapar da loucura, que, de outra forma, parece inevitável: "O trabalho -
26
T. Sellin, "The Philadelphia Gibbet [ron", in The Journal of Criniinal Law and
29
Criminology, 1932, vol. 46, pp. 11-25. ln N. K. Teeters e J. D. Shearer, The prison of Philadelphia: Cherry Hill, cit., pp.
27
Idem, p. 20. 154-155.
30
28
J. Itard, II giovane selvaggio, Parma, 1970, pp. 41-42. ln First Annual Report, 1830, p. 9.

222 223
~
afirma um internado interrogado por Beaumont e 'Docquev1·11e - me pare . ·• Inicialmente, e por um período de tempo muito curto, o "modelo" ao qual li
1

a1go absolutamente necessário para sobreviver- acho que . ce< os teóricos do sistema filadelfiano consideravam "ideal" para o "interno-
privado dele"". ' morrena se fosse · reeducado" se estereotipou no incansável, servil, fiel e silencioso trabalho da
oficina, da manufatura (leia-se, o costureiro, o sapateiro, o empalhador de
.um o~tro p.risionei~o, entrevistado na mesma ocasião, declarou· " ,.,
cadeiras etc.). Mas num segundo momento, diante da produção "livre",
sena poss1vel viver aqm dentro sem trabalhar· Sábad o e, um d"1a interminável
. : Nao.·
ninguém mais sustenta que "a finalidade da disciplina carcerária fosse educar
posso Ih es garantir, senhores !"32. t
não apenas com bons propósitos, mas também para manter-se com um
Neste tipo de cárcere, são fabricados sapatos e botas empalh trabalho honesto"". Do lado de fora, reinava a fábrica, isto é, o reino do
deiras, trabalha-se com estopa, enrolam-se charutos cort~m s am-se ca- common work, da labor-saving machinary e da habilidade mecânica.
se unifo t n D d ' - e e costuram-
. . rmes e c. . o as essas atividades requerem essencialmente tem
hab1hdades puramente manuais, pouquíssimos utensílios. É o único trabafu~
Neste segundo momento, no qual a manufatura e a produção artesanal
são substituídas pela produção industrial, o trabalho carcerário de tipo filadel-
que pode ser praticado por um único operário, num local e ueno
poucos mstrumentos de trabalho. Cada operação deve ser rea~z~da , co~
fiano perde qualquer função "objetiva" de educação para o trabalho subor-
mente, com um dispêndio de energia desproporcional ao resultado :~?<lua •
dinado e produtivo (isto é, o trabalho, de/para a fábrica), mantendo e en-
E t d 1 o. fatizando apenas alguns traços ideológicos próprios do trabalho alienado,
s e processo e "indução forçada ao trabalho" não persegue f. • caros à burguesia. Em outras palavras, ainda que agora "derrotado" pela
· É l , ms econo-
~1cos. . c aro que atraves desta atividade de trabalho (não produtiva) o emergência progressiva do sistema de Auburn, o modelo filadelfiano, em
car~ere Jamais poderá se tornar auto-suficiente, nem o internado poderá " a- particular o regime de trabalho que pode se desenvolver no cárcere onde
gar a pena- os defensores do sistema filadelfiano estavam plenamente p reina o princípio do solitary confi.nement, oferece-se como "projeto organi-
cientes d_ISso; a experiência do trabalho penitenciário, portanto, será se:n:~ zativo" de todo universo social subalterno, como idéia "abstrata" (e neste
umb passivo e nunca um paying system of prison discipline34. Para qu~ 0 sentido, apenas "ideológica") de como as relações de classe e de produção
tra alho possa ser produtivo - afirma-se - seria necessário introdu · deveriam organizar-se no "mercado livre". O trabalho carcerário, neste sistema
cárcere _as máquinas (labor saving machinary, ou seja, as máquina~r ~~ de execução penitenciária, vem a ser o "sonho do empresário" (o capital
economizam trabalho) e produzir mercadorias que pudessem competir~0 como anarquia), mais do que o "projeto racional" do sistema em seu conjunto
mercado "livre". Mas é exatamente isso que não se deseja: (o capital como racionalidade). Na verdade:
f!Estado não tem nenh~m direito de interferimo trabalho (do operário . o isolamento absoluto do internado-trabalhador sublinha a vontade
hv,re)_nem de p~oporc10nar a estes (os presos) qualquer espécie de burguesa _do operário sozinho, ou seja, não organizado.
maqmna aperfeiçoada. Deixem que o homem do lado de ~or·a . o momento disciplinar, juntamente com a falta de concorrência, oferecem
a ~ · d · • , use
s m~qu~~as; e1xem que o homem, do lado de dentro, use somente ao empresário a mais absoluta disponibilidade de utilização da força de trabalho:
as maos . a força de trabalho, disciplinada e violentamente "abstrata" pelo jogo do
mercado livre, apresenta-se como fator "não problemático" da produção.
~ G. Be.aumont e A. H. Tocqueville, On the Penitentiary Systein in the United . a reformation do internado encontra, como parâmetro de avaliação,
lates, c1t., pp. 187 ss. (ver também Apêndice nº J, Parte II). além de outras "formas externas" de sujeição à autoridade, a produção
32
Idem, p. 188. quantitativa de mercadorias na unidade de tempo; emerge a idéia do operário
~- K. Teeters e J. D. Shearer, The prison of Philadelphia: Cherry Hill cit PP
3
: remunerado não "por jornada", mas sim "por empreitada".
R4 ~s. Sobre a .modalidade e o t~p? de trabalho no cárcere filadelfiano, ve; ta~bé~ . a dependência absoluta (mais existencial que real) do "não-proprietário-
· aux, ~ B':1ef Sket~h o/ Or1g1n and History o/ the State Penitentiar for the criminoso-prisioneiro" do "proprietário-empresário" torna-se manifesta; ao
;;astern D1stnct of P/11/adelphia, Filadélfia, 1872, pp.87 ss. y
1. R. Chandler, 1n Journal o/ Prison Discipline and Philantrophy 1875 nºl4 63
"w· e ass1·ct ey, on Pnsons
· and Convicts, Filadélfia, 1897, p.30. • • • P· · 36 F. Gray, Prison Discipline in América, Boston, 1847, p. 70.
225
224
contrário, no mundo da "produção livre", esta dependência/sujeição do
proletário para com o capital será real, mais exatamente, no e com o trabalho common work e as labor-saving machinaries), destinado a realizar a segunda
assalariado. exigência. O compromisso é assim atingido: day-association para a ma.ximum
industrial prodution; night-separation e silent system para a maximum
b. "Silent system": a hipótese carcerária de Auburn prevention of contamination:
Para a hipótese carcerária estruturada sobre o modelo de Auburn [Este sistema] Permite que os prisioneiros que não estão em solitary
oferecemos um esquema sintético, limitando-nos a analisar os elementos ~ confinement trabalhem sob uma disciplina bastante rígida, que impede
as características que diferenciam este projeto do de Filadélfia. qualquer conversa entre eles, obrigando-os a produzir aquela quan-
1. O trabalho carcerário na hipótese de Aubum escapa, ainda que por um tidade máxima de trabalho que a sua saúde e a sua constituição física
•• 38
instante, tanto da sua dimensão ideológica original (o trabalho como única possam penrut1r .
solução para a satisfação das necessidades materiais do não-proprietário) Os prisioneiros devem, portanto, estar empregados em alguma atividade
quanto da (apenas) pedagógica (o trabalho forçado como modelo educativo produtiva. O common hard labor (o trabalho forçado realiza,do em comum) é
do/para o trabalho alienado), definindo-se, em termos mais econômicos, 0 considerado idôneo para esse fim. Hard labor se tomara, assim, a nova
trabalho carcerário como atividade produtiva digna de ser explorada empre- "palavra de ordem" no universo carcerário.
sarialmente.
3. A importância do modelo e do estilo de vida militar encontra nesta realidade
Esse projeto fracassou. Em pouco tempo, quer as pressões das organi- carcerária uma dimensão em parte desconhecida no cárcere celular filadelfiano.
zações sindicais, fortemente contrárias ao trabalho carcerário produtivo (a A razão é simples: a nova instituição deve organizar e gerir momentos de vida
produção do cárcere, fruto de uma mão-de-obra não remunerada, era inserida coletiva. Com essa finalidade, a própria mobília da cela sublinha a obsessão pela
no mercado a preços totalmente não competitivos para as empresas ditas uniformidade estético-formal imposta aos internos: um catre, um balde, alguns
livres, servindo de freio para a escalada dos salários), quer as dificuldades de poucos utensílios de lata para todos são os únicos objetos fornecidos pela
industrializar completamente o cárcere, como já tivemos oportunidade de administração. Os prisioneiros devem vestir um uniforme e os cabelos devem
ver anteriormente 37 , impediram q~e a· penitenciária se transformasse em ser raspados". A própria administração penitenciária tende a estrutur~-se e,'.11
fábrica. Todavia, esta "ilusão produtivista", embora momentânea e em parte termos hierárquico-militares. Na realidade, freqüentemente os carcere1ros_ sa?
fracassada, imprimiu a esse novo sistema penitenciário alguns traços estru- oriundos da Marinha ou do Exército e às vezes continuam a depender (d1sc1ph-
turais originais. As características peculiares analisadas a seguir são, de fato, narmente e para sua carreira) destes corpos militares. Por isso, usam uniformes,
diretamente redutíveis a esta nova "dimensão do trabalho''. têm reuniões em horas pré-determinadas e montam guarda como sentinelas'°.
2. O regime da day-association e night-separation torna-se, portanto, a As normas disciplinares obrigam, por conseguinte, todo o staff carcerário
espinha dorsal no qual se baseia todo o sistema de Aubum. Trata-se, deci- a se comportar com gentlemanly manner, como se fossem oficiais. As suas
didamente, de uma solução de compromisso: de um lado, permanecem ainda relações com os internos devem ser marcadas pela distância que caracteriza
as 'instâncias pedagógico-reeducativas sobre as quais estava calcado o expe- as relações entre graduados e tropa. Vejamos o que consta do regulamento
rimento filadelfiano (a vontade de negar qualquer relação de interação entre interno de Sing-Sing a esse respeito:
os presos para impedir a difusão, a expansão da "morbidade delicjüencial";
Eles (os guardas carcerários) devem manter com os internos o maior
do outro, e em termos cada vez mais presentes, a nova "obsessão refor-
respeito, e não devem permitir, em hipótese alguma, que estes se
madora": o trabalho produtivo (i.e., o cárcere como empresa); a night sepa-
aproximem deles de maneira pouco respeitosa. Não devem, pois,
ration e o silent system, portanto ainda orientados para a primeira instância;
o princípio da daily-association (necessário para introduzir no cárcere o
38 ln O. F. Lewis, The Development of American Prisons and Prison Customs:
1776-1845, Nova Iorque, 1922, p. 86.
37
Ver Parte 1, parágrafo 5. "D. J. Rothman, The Discovery of Asylum, cit., p. 106.
40 Idem, ibidenl.
226
227
conceder a menor familiaridade. Devem, enfim, estar extremamente na minha vida que não conseguiram superar esta punição e que depois
41
atentos tanto para mandar quanto para garantir respeito • que deixaram a cela de isolamento foi necessário levá-los para o
A disciplina do corpo, neste tipo de instituição penitenciária, realiza-se hospital. Julgo, portanto, ser impossível governar uma grande prisão
essencialmente por meio de ações regula1nentadoras. Os internos não podem sem o açoite. Só quem conhece a natureza dos homens através dos
45
caminhar, devem sempre andar em ordem unida ou em fila indiana, olhando livros pode pensar o contrário •
o ombro de quem está à sua frente, com a cabeça ligeiramente inclinada para A suposta "humanidade" da punição do açoite, se comparada, por exemplo,
a direita, e os pés acorrentados, movendo-se uniformemente42 . à da "cela de isolamento", não satisfaz Beaumont e Tocqueville (partidários do
O h?rário diário é diferente do horário militar. Ao toque da campainha, os sistema filadelfiano), que observam, com muita acuidade; "Por várias razões,
carcereiros abrem as portas das celas e os internos saem para o corredor et esta punição é preferida às outras. Ela provoca, de fato, a imediata submissão
uma vez acorrentados, marcham para o jardim. Em fila, esvaziam seus baldes do transgressor e não interrompe nem por um instante a atividade no trabalho" 46 •
se lavam e, sempre em fila, vão para a oficina. Aí trabalham sentados eO: E tem mais. O açoite provoca sofrimento (por isso é temido), sem
bancos compridos, em absoluto silêncio, até o momento em que um segundo prejudicar irremediavelmente a integridade física (leia-se, para o trabalho).
toque de campainha anuncia o desjejum. Em grupos, sempre em fila indiana, Por conseguinte, trata-se de uma hipótese disciplinar que, ao contrário da
deslocam-se para o refeitório, recebem as suas rações de alimento (as normas sanção da "cela de isolamento" (acompanhada da diminuição da ração de
os obrigam a não "romper o passo") e então dirigem-se, marchando, para as alimentos ou da privação da luz ou ainda da impossibilidade física de deitar-
suas celas. Ao soar uma terceira campainha, eles voltam, sempre em fila, se) não "destrói" a força de trabalho.
para as oficinas etc. 43 • O poder de punir é totalmente discricionário. Não existe, de fato, um
4. O momento disciplinar se ritualiza na retórica punitiva de tipo corporal. regulamento que contemple as hipóteses em que a sanção possa/deva ser
Também neste aspecto original percebemos uma "necessidade" da vida aplicada, nem se conhece o órgão disciplinar que deva decidir a esse respeito.
parcialmente associativa dos prisioneiros, exigência conexa à governabilidade O poder disciplinar se identifica, pois, com o exercício do poder tout-court;
de uma coletividade administrada com base na coação. Corretamente, O direito dos carcereiros sobre as pessoas dos prisioneiros é o do
observa-se que pai sobre os filhos, o do professor sobre os alunos, o do instrutor
47
um único abrandamento nas rédeas da disciplina( ... ) e a atividade do sobre os aprendizes, do capitão sobre a tripulação .
capelão não encoZttraria, aqui dentro (do cárcere) mais espaço do A sujeição ao arbítrio persegue um fim específico;
que numa taberna .
Os detidos - afirma explicitamente R. Wiltse, vice-diretor em Sing-
Acredito- acrescente E. Lynds, diretor da prisão de Sing-Sing, numa Sing em 1834 -devem aprender que, aqui dentro, eles estão sujeitos
conversa com Beaumont e Tocqueville - que a punição do açoite é o a qualquer regra e devem sempre e em toda ocasião obedecer às
meio disciplinar mais eficaz e, ao mesmo tempo, o mais humano que . 48
ordens dos seus carcereiros .
possa existir; não é prejudicial à saúde e educa para uma vida
5. A regra do silêncio ininterrupto se apresenta como o único meio para
espartana. O isolamento, ao contrário, é muitas vezes ineficaz de um
impedir tanto as comunicações quanto os processos osmóticos e
ponto de vista disciplinar, e é também perigoso. Vi muitos prisioneiros

41 45
ln Governn1ent, Discipline o/ the New York State Prison, 1834, p. 16. G. Beuamont e A. H. Tocqueville, On the Penitentiary Syste111 in the United
42
S. G. Howe, An Essay on Separate and Congregate Syste111s o/ Prison Discipli- States, cit., p. 201.
ne, Boston, 1846, p. 55. 46
Idem, p. 41.
43 47
lden1, ibiden1. Relatório de G. Powers (1827, p. II), citado por G. Beuamont e A. H. Tocqueville,
44
Board of Inspectors of Iowa Penitentiary, Reports for the Two Years ending On the Penitentiary Systeni in the United States, cit., p. 44.
October, 1, 1859. Des Moines, !'; 1859, p. 10. 48
Texto retirado de D. J. Rothman, The Discove1y o/ Asylun1, cit., p. 101.
228 229
contaminadores, que de outra maneira seriam inevitáveis entre os internos de isso que a disciplina de Auburn educa os prisioneiros naquela moral
uma congregate prison: social que certamente eles não recebem na prisão de Filadélfia".
Todo o sistema disciplinar - afirma-se - se baseia no impedimento A obediência a um tipo de regulamento que se fundamenta no controle administrativo do
corpo do internado tende, inevitavelmente, a transformar o prisioneiro num autôrnato,
de qualquer relação entre os prisioneiros (... ) A sua união (a dos numa máquina programada e diligente, e não mais apenas "abstratamente disciplinada" (ver
prisioneiros) é estritamente material, ou, para falar com mais exatidão modelo carcerário de Filadélfia), mas perfeitamente "sincronizada" à ação coletiva dissociada:
os seus corpos estão juntos, mas suas almas estão separadas, e nã~ Os internos se sentam, em fila indiana, em mesas estreitas, com os
é a solidão dos corpos que é importante, mas sim a do espírito49 • ombros voltados para o centro, de modo que não possam se
A repressão a toda e qualquer forma de interação subjetiva através do comunicar. Se um deles recebeu mais comida do que deseja, deve
"silêncio ininterrupto" revela-se, pois, um instrumento essencial do "poder" levantar a mão esquerda, se um outro recebeu menos, deve erguer a
necessário para que poucos possam governar uma multidão. A observaçã~ mão direita, assim os guardas imediatamente podem atendê-los.
de Beaumont e Tocqueville a esse respeito é precisa: Quando terminam de comer, ao som de uma campainha ou de uma
(... ) assim, 900 criminosos, vigiados por apenas 30 carcereiros tra- sirene, levantam-se das mesas e, em colunas, sob a vista dos guardas,
balham livres, sem correntes (... )É evidente que a vida dos gu~rdas retomam às oficinas( ... ) Presta-se amais diligente atenção ao trabalho,
carcerários estaria à mercê dos prisioneiros se a estes bastasse apenas da manhã à noite, interrompido apenas pelo tempo necessário para
a força física, mas lhes falta a força moral. E por que estes 900 comer, e nunca pela circunstância de que todos os internos já
malfeitores, todos juntos, mostram-se menos fortes que os 30 in- terminaram o trabalho que lhes foi confiado (... )".
divíduos que os vigiam? Simplesmente porque os guardas podem se 4. O produto da máquina penitenciária: o proletário
comunicar livremente entre eles, agir entre eles simultaneamente, e
ter, portanto, todo o poder de associação, enquanto os internos, se- O longo caminho da reintegração do criminoso (sujeito real) no interior
do projeto hegemônico burguês conhece, como primeira etapa, a redução do
parados uns dos outros pelo silêncio, têm, a despeito da sua força
50 interno a sujeito coatiVamente privado das suas relações inter-subjetivas, a
numérica, toda a debilidade da separação •
sujeito reduzido a"pura e abstrata existência de necessidades". Ou, em outras
6. A obrigação ao silêncio no interior de uma instituição baseada na vida palavras:
associativa coloca diretamente o problema da obediência às normas e às
ordens. A vantagem das possíveis infrações tende a ampliar-se em razão ( ... )o sujeito "real", inserido na sua realidade social espontaneamente
direta das novas exigências disciplinares. No cárcere de tipo filadelfiano - cujo heterogênea com relação ao "jurídico" e às suas regras ( ... ) é arran-
modelo organizativo reduzia drasticamente as normas disciplinares simples- cado das determinações concretas daquele "estar fora" no qual se
mente porque não era "fisicamente" permitido ao interno se comportar de outra baseava a sua agressividade perigosa, e reduzido à idéia de sujeito
maneira-, a possibilidade de cometer infrações era limitadíssima. No cár- homogêneo, pertencente ao "jurídico", seu "termo primitivo", que
~ere ~aseado ~uma comnion life parcial, o momento associativo impõe uma
existia "antes" das regras concretas da sociedade, da qual o sujeito
53
mfirudade de nmmas comportamentais que devem ser respeitadas. Com efeito, "fora" delas não é mais do que a sombra ou o negativo .

ao respeitar a norma do silêncio, eles (os internos) estão necessaria- O modelo celular representa o instrumento mais apropriado para realizar
mente tentados a violar este preceito. Assim, eles têm um certo mérito esse objetivo, aquele que melhor se presta para reduzir o interno a sujeito
na obediência, simplesmente porque ela não é "necessária". É por abstrato: "( ... ) homem abstraído de todas as emoções ( ... ) que a sociedade

51
Idem, p. 25.
49
G. Beuamont e A. H. Tocqueville, On the Penitentiary System in the United 52 BPDS (Boston Prison Discipline Society), Annual Repari, 1826, p. 36.
States, cit., p. 24. 53P. Costa, li progetto giuridico. Ricerche sulla giurisprudenza dei liberalismo
50
Idem, p. 26. classico, cit., p. 373.

230 231
inspira ( ... ); através do isolamento, ele é abstraído de todas as sensações Os dois momentos em que se realiza a prática penitenciária - redução do
externas" 54 • prisioneiro a "puro sujeito de necessidade" e, em s.eguida, educação do "s~j~to
Abstraído da sua dimensão real, reduzido a sujeito completamente sem de necessidade" em proletário - serão agora analisados, dentro das cond1çoes
relação com o social, o internado se sente "só" diante das necessidades específicas do sistema carcerário norte-americano da primeira metade do
materiais. Nesse ponto, ele não difere do "burguês" a não ser por um elementô século XIX.
essencial: enquanto este poderá satisfazer suas próprias necessidades através
da/com a propriedade, o prisioneiro é impedido disso (a sua existência, a
satisfação, portanto, das suas necessidades materiais, depende, única e
exclusivamente, da administração do cárcere). Chega-se a esse status (político-
existencial) de insatisfação por meio de um processo manipulatório (leia-se,
"progressiva mudança do tipo de crença que o indivíduo tem de sí
mesmo") 55 que podemos chamar de carreira 1noral do interno.
Porém, uma vez reduzido o interno a sujeito abstrato, uma vez "anulada"
a sua diversidade (até ao desaparecimento que acompanha a solidão do sujeito
que não se relaciona com o social), uma vez colocado de frente às
necessidades materiais que não pode mais satisfazer autonomamente,
tornado, assim, completamente dependente da/à soberania administrativa, a
este produto, enfim, da máquina disciplinar, é imposta a única possível
alternativa à própria destruição, à própria loucura: a forma moral da sujeição,
isto é, a forma moral do status de proletário. Em outras palavras, a forma
moral de proletário é aqui imposta como única condição existencial, no sentido
de única condição para a sobrevivência do não-proprietário.
Assim, ao momento da destruição (redução do "diverso" ao "homogêneo
negativo"), segue-se a ação de reconstrução (de "conceito abstrato" a figura
"socioeconômica real"), que permite assim o cumprimento do projeto
hegemônico burguês: o não-proprietário homogêneo ao criminoso, o cri-
minoso homogêneo ao preso, o preso homogêneo ao proletário. Isso significa,
em outras palavras, que o não-proprietário-preso deve existir apenas como
proletário, como quem aceitou o estado de subordinação, como quem se
reconhece apenas na disciplina do salário. As práticas deste caos disciplinado
que é o cárcere são, portanto, teleologicamente orientadas: educação para o
trabalho expropriado, educação para o trabalho assalariado como único meio
para satisfazer as próprias necessidades, educação-aceitação do próprio não-
ser proprietário.
54
J. Bentharn, Principies of Penal Law, in The Works of J. Benthanz, organizado
por J. Bowring, Nova Iorque, 1962, vol. !, p. 425.
55
E. Goffman, Asylunzs. Le istituzioni totali: i 111eccanisnti della esclusione e
della violenza, cit., p. 44.

232 233
Apêndice 1
A subordinação do ser institucionalizado
(pesquisa na penitenciária de Filadélfia, outubro de 1831)

Gustave de Beaumont e Alexis de Tocqueville visitaram a penitenciária de


Filadélfia em outubro de 1831, no momento em que o princípio do solitary
confinement encontrava-se seriamente ameaçado pelo novo modelo peni-
tenciário do silent system de Auburn. As impressões daquela visita institucional
e as minuciosas anotações sobre o tratamento penitenciário vigente naquele
cárcere foram completadas pelos autores e integradas pelos registros escritos
das entrevistas com os membros da administração, bem como por uma
pesquisa realizada junto aos internos. Esse conjunto foi incluído como apêndice
da obra sobre o sistema penitenciário americano de 1832 1•
Através dos olhos atentos destes "exploradores", através de sua pena
quase sempre lúcida e analítica, podemos enveredar no labirinto da anorma-
lidade social da primeira metade do século XIX nos Estados Unidos, sofrendo,
confessamos, o fascínio quase mórbido de uma indiscrição, de uma violação
além dos limites de toda reserva que nem sequer mais de um século de
distância parece desvanecer.
Porém, fazemos aqui algumas observações, antes de traduzirmos trechos
da inquiry realizada entre os internos da penitenciária:
a) julgamos significativo, para o discurso que estamos levando até aqui,
utilizar este material porque a situação existencial vivida no cárcere filadelfiano
- o que mais se aproxima do "modelo" de penitenciária celular - expressa,
em termos paradigmáticos, o nível mais elevado de espoliação e redução do
detido a "sujeito de necessidade", a "pura e abstrata existência de necessidade".
b) O detido, assim como nos "aparece" nessa investigação, já é "sujeito
institucionalizado", no sentido de que os mecanismos manipulatórios já o
transformaram em "ser virtual". Portanto, aquele que emerge é o fantasma
monstruoso, o novo animal a um só tempo selvagem e domesticado.

1
Como já tivemos ocasião de precisar, todas as referências específicas à obra em
exame é retirada da tradução para o inglês de F. Lieber (1833), G.'Beuamont e A. H.
Tocqueville, On the Penitentiary System in the United States and Its Application
in France, cit. Para o ponto que nos ocupa neste momento, ver Inquiry into the
Penitentiary of Philadelphia. October, 1831, pp. 187-198.

237
c) de fato, as "ações de decantação" ou "programação" (os chamados
a "práxis da simulação", ou, melhor dizendo, a "reprodução exterior" do
procedimentos de admissão), em seguida às quais o internado é codificado
como objeto institucional, como "objeto do processo manipulatório", já modo de ser que a administração lhe impõe como ótima'.
explicaram a sua eficácia. A lei de 23 de abril de 1826, que dita as normas Beaumont e Tocqueville observam com muita propriedade a esse respeito:
disciplinares para a Penitenciária Oriental de Filadélfia, prescreve, no artigo Não temos dúvida alguma que o costume com a ordem à qual os
5, que o novo prisioneiro seja prisioneiros estão submetidos por tantos anos, ( ... ) a obediência a
Interrogado( ... ) no intuito de conhecer a ~ua pessoa e fisionomia, 0 todo instante a regras inflexíveis, a regularidade de uma vida
seu nome, estatura, idade, lugar de nascimento, ocupação, aspecto uniforme, em uma palavra, todas as circunstâncias em que este
físico, cor dos cabelos e dos olhos, tamanho dos pés ( ... ) todas sistema se forma são calculadas para produzir uma profunda
estas coisas devem ser registradas num livro especial, juntamente impressão na mente do interno. Talvez, quando finalmente deixar o
com outros sinais, naturais ou acidentais, peculiaridade de traços ou cárcere, eles não sejam homens honestos, mas certamente terão
fisionomia que possam servir para identificá-lo, e se o internado aprendido um modo honesto de comportar-se (... ) e se não forem
. . - . 6
sabe escrever, a sua assinat~ra deve ser aposta ao final da declaração mais virtuosos, serao certamente mais sensatos .
que descreve a sua pessoa . Na pesquisa-entrevista - aqui citada' unicamente na tradução das partes
d) Uma vez que o interno tenha sido "despojado" de sua "roupa externa" que consideramos significativas - aparecem assim, em termos supostamente
(roupa necessária à sua própria identidade), a administração diligentemente confusos, loucura e simulação, extravio e hipocrisia, um conjunto de posições
lhe fornecerá "objetos desinfetados" da possibilidade de serem identificados antagônicas que descrevem, porém, um status de profunda degradação e
como "pessoais". Depois de ter sido providenciado o seu "registro", subordinação<lo "ser institucionalizado".
(... ) um médico verifica o estado de saúde (do interno). Então, é Interno nº 28. O prisioneiro sabe ler e escrever; foi condenado por
lavado e raspado, e rece)le novas roupas, de acordo com o uniforme homicídio; afirma que a sua saúde, sem ser ruim, não é tão boa como quando
carcerário. Em Filadélfia, ele é depois conduzido para a sua cela de estava em liberdade; nega, com firmeza, ter cometido o delito pelo qual foi
isolamento, da qual não sairá: aqui trabalhará, comerá, repousará preso; confessa, ao contrário, ter sido um "beberrão", turbulento e não
(... ) Em Auburn, em Wethersfield e em outras prisões deste tipo, o religioso. Mas agora, ele acrescenta, o seu espírito mudou; acha alguma
prisioneiro só está obrigado à mesma solidão num primeiro momento; forma de prazer na solidão e só é atormentado pelo desejo de ainda ver a
ela durará poucos dias, após os quais ele deixará o isolamento para família e de dar uma educação moral e cristã aos seus filhos, algo que nunca
ficar ocupado em alguma oficina'. pensara em fazer quando era livre.
e) A "expropriação total" do internado (o poder ser visto sem ver) leva, Pergunta: "Você acha que conseguiria viver aqui dentro sem trabalhar?"
progressivamente, à ruptura da "fronteira que o indivíduo edifica entre o Resposta: "O trabalho me parece absolutamente necessário para sobreviver;
que é e o que o circunda"'e, deste modo, se profana definitivamente "a acho que morreria se fosse privado dele".
incorporação de si".
Pergunta: "Vàcê vê os guardas com freqüência?"
f) Estes processos estandartizados, através dos quais o "eu" do interno é
Resposta: "Cerca de seis vezes ao dia".
modificado, conduzem o sujeito manipulado a assumir, como meio de defesa,
Pergunta: "Vê-los faz bem a você?"
2
Em N. K. Teeters e J. D. Shearer, The Prisoh of Philadelphia: Cherry Hill. The
Separate System of Penal Discipline: I839-1913, cit., p. 135.
3
G. Beuamont e A. H. TocqueviHe, On the Penitentiary System in the United ' Idem, p. 89.
6
States, cit., p. 31. G. Beuamont e A. H. Tocqueville, On the Penitentiary Systeni in the United
4
E. Goffman,Asylums, cit., p. 51. States, cit., p. 90.
7
Ibidem, pp. 187-198.
238
239
. Resposta: "~im, senh?i" Ver as suas figuras é um verdadeiro prazer para Interno nº 31. Negro, vinte anos, não recebeu nenhuma educação e não
nui:i. Neste ve~ao, um gnlo e~trou no meu pátio; tive a sensação que ele me tem família. Foi condenado por roubo com violação de domicílio; já está
fazia companhia. Se uma manposa ou qualquer outro inseto entra na mi h preso há 14 meses; saúde excelente; o trabalho e as visitas do capelão são os
cela, eu não lhe faço nenhum mal". n a
seus únicos consolos. Este jovem, que não parece ser muito "esperto",
Interno nº41. Trata-se de um jovem; confessa ter sido um criminoso· aprendeu, com muita dificuldade, as letras do alfabeto antes da sua prisão;
chora durante toda a entrevista, particularmente quando se refere à famT ' todavia, com muito esforço conseguiu ler corretamente a Bíblia.
"Fehzment " d· I " · , 1 ia.
e , iz e e, nmguem pode me ver neste estado aqui dentro". E! Interno nº 72. Jovem de 24 anos, condenado por furto; reincidente; parece
espera retornar ao convívio da sociedade, sem ser "rotu]ado" como · ~ e bastante inteligente.
sem ser " re3e1ta
· · do" por ela. 1n1ame e
Pergunta: "Você já ficou preso, no passado, em Walnut Street. Que diferen-
Pergunta: "Você acha difícil suportar a solidão?" ças você vê entre aquela prisão (jail) e esta penitenciária (penitentiary)?"
. R~sposta: "Ah, senhor, esta é a punição mais horrível que se possa Resposta: "Os prisioneiros eram muito menos infelizes em Walnut Street
1mag1nar".
do que aqui, porque podiam se comunicar entre si".
Pergunta: "A tua saúde se ressente disso?" Pergunta: "Parece-me que você trabalha com prazer; isso também
Resposta: "Não, estou bem de saúde, mas a minha alma está muito doente" acontecia em Walnut Street?"
Pergunta: "Você pensa mais em quê?" . Resposta: "Não, lá o trabalho era um peso do qual se procurava de todo
modo fugir; aqui, ao contrário, é um prazer".
Resposta: "Na religião; os meus pensamentos religiosos são 0 meu maior
consolo. " Pergunta: "Você lê a Bíblia às vezes?"
Resposta: "Com muita freqüência".
Pergunta: "Você vê o pastor com freqüência?"
Pergunta: "Acontecia a mesma coisa quando você estava em Walnut Street?"
Resposta: "Sim, todos os sábados".
Resposta: "Não, lá eu nunca tive prazer em ler a Bíblia ou em ouvir discursos
Pergunta: "Você gosta de conversar com ele?" religiosos.
Resposta: "Minha maior felicidade é ser admitido na sua presença. Sábado Este prisioneiro e_stá internado há apenas seis meses; saúde excelente.
passado, ele pass~u uma hora inteira comigo e me prometeu trazer notícias
Interno nºOO. Condenado por tentativa de homicídio; idade: 42 anos; pai
do meu pai e da mmha mãe amanhã. Espero que eles ainda estejam vivos· há de sete filhos; recebeu uma boa educação; também esteve preso em Walnut
um ano que não tenho nenhuma notícia deles". '
Street; conta, com detalhes assustadores, os vícios que reinavam naquela
~erg~nta: "Que idéia você faz sobre a utilidade deste sistema ao qual prisão, mas acha que a maior parte dos detentos preferiria retornar a Walnut
voce esta submetido?"
Street do que ficar na penitenciária. Indagado sobre sua opinião a respeito
Resposta: "Se há um sistema capaz de fazer um homem refletir e mudar deste sistema de internamento, responde que este não pode deixar de causar
para melhor, o sistema, sem dúvida, é este". uma profunda impressão no ânimo do internado.
. Int~rno nº 61. Foi condenado por roubo de cavalos; afirma ser inocente. Interno nº 22. Idade: 34 anos; já foi condenado por furto; 18 meses de
Ni~g~em, lamenta-se, pode imaginar como é horrível viver em contínua detenção; saúde bastante boa.
sohd~o. Interrogado como passava seu tempo, responde que apenas de duas Pergunta: "Você acha que a disciplina à qual está submetido é tão severa
maneiras: o trabalho e a Bíblia. A Bíblia é o seu maior consolo. Parece estar quanto parece?"
fortemente "mv~d1do" por idéias religiosas. Sua conversa é animada; não
Resposta: "Não, mas isto depende da disposição do preso. Se ele se rebela
consegue, de Jeito algum, falar sem se agitar e sem chorar. É alemão de
contra o isolamento, cai inevitavelmente num estado de desespero; se, ao
nascimento;. p_erdeu o pai em idade tenra e recebeu uma má educação. Já
contrário, ele logo percebe as vantagens que podem derivar de um tratamento
esteve na pnsao durante um ano, mas em outro lugar. Goza de boa saúde.
deste tipo, o isolamento deixa de se tornar insuportável".
240
241
Pergunta: "No passado, você já ficou preso em Walnut Street?" Oeste e vim para cá em busca de trabalho. Não sabia fazer nada e não encontrei
trabalho. Na primeira noite, fui obrigado a dormir embaixo da ponte de um
Resposta: "Sim, senhor, e não consigo imaginar outro lugar onde haja navio, uma vez que não tinha outro lugar para ficar. Fui descoberto na manhã
tantos cnmes e pecados. Em poucos dias, uma pessoa não muito honesta se seguinte, preso e condenado a um mês de internamento por vagabundagem.
transforma num criminoso consumado". Misturado, durante a minha curta experiência carcerária, com malfeitores d.e
Pergunta: "Você acha que o sistema penitenciário é superior à velha prisão?" todas as idades, perdi os bons princípios que o meu pai me havia ensinado e,
deixando a prisão, uma das minhas primeiras ações foi me juntar a alguns
Resposta: "Seria como me perguntar se o sol é mais bonito do que a lua".
delinqüentes da minha idade e ajudá-los nos seus furtos. Fui preso, julgado e
Interno nº 67. Idade: 38 anos; condenado por furto, internado há oito absolvido. Julguei-me, então, imune à justiça e, confiando na minha habilidade,
meses; saúde boa. Tornou-se sapateiro na prisão e fabrica setes pares de cometi outros delitos que me levaram de novo perante os tribunais. Fui
botas por semana.
condenado à pena de nove anos de detenção, a ser cumprida na velha prisão
Este indivíduo parece ter, por natureza, uma mente severa e meditativa. de Walnut Street.
~solidão carcerária acentuou singularmente esta disposição. As suas reflexões Pergunta: "Esta punição não produziu em você a consciência da
sao o resultado de um nível intelectual elevado. Parece estar interessado necessidade de se corrigir?"
apenas em pensamentos filosóficos e cristãos.
Resposta: "Não, senhor. A prisão de Walnut Street nunca provocou em
~nter~? .nº : . Este prisioneiro, que foi o primeiro a ser internado nesta mim o remorso pelo meu comportamento criminoso. Confesso que jamais
pemtenc1aria, e um negro. Já está preso há mais de dois anos. A saúde é teria me arrependido das minhas ações naquele lugar. Isso nem sequer passou
excelen'.~· Trabalha com paixão; produz dez pares de sapatos por semana. o pela minha cabeça enquanto estive lá. Logo me dei conta que naquele lugar,
seu espmto parece muito tranqüilo, e o seu caráter é doce. Ele julga que 0 periodicamente, apareciam sempre as mesmas pessoas e que, por maior que
seu internamento na penitenciária seja um aviso da Providência. Os seus fosse a habilidade, a coragem e a força dos ladrões, eles sempre acabavam
pensamentos sã~, em geral, de natureza religiosa. Ele quis ler para nós, do sendo presos. Esta circunstância me fez pensar seriamente em colocar um
Evangelho, a parabola do bom pastor, cujo significado o atingiu profundamente ponto final nesta vida perigosa, tão logo saísse da prisão. Tomada esta decisão,
(alguém que tinha nascido numa raça considerada socialmente inferior e que me comportei da melhor maneira possível e depois de sete anos fui "libertado".
nunca conhecera outra coisa senão indiferença e crueldade!). Na prisão, havia aprendido o ofício de alfaiate e logo consegui encontrar um
Interno nº 62. Um homem bem educado; 32 anos; é um médico. O iso- bom emprego. Casei-me e comecei a ganhar dinheiro, pouco a pouco. Mas
lamento parece ter provocado uma profunda perturbação no espírito deste a Filadélfia está cheia de pessoas que me conheceram na prisão e muitas
Jovem. Fala do período do seu primeiro internamento com horror; basta vezes tive medo de ser denunciado por eles. Um dia, de fato, dois velhos
lem~rar disso para começar a chorar. Atualmente, está resignado ao seu companheiros dos tempos de cadeia vieram à loja do meu patrão e pediram
d~stmo, por .mais cruel que este possa ser. Durante os dois primeiros meses, para falar comigo. A princípio, fingi não conhecê-los, mas eles acabaram me
af~rma ele, viveu num estado de desespero, mas o tempo aliviou esta situação. obrigando a confessar a minha identidade. Depois, me exigiram uma grande
Nao era obngado a trabalhar, mas a ociosidade é tão terrível que não deixou soma de dinheiro; como eu recusei, eles me ameaçaram contar a história da
de trabalhar. Como não possuía nenhuma capacidade manual, foi escalado minha vida ao meu empregador. Acabei prometendo a eles que lhes iria dar o
para cortar o couro para os sapateiros que trabalham na prisão.O seu maior dinheiro e pedi-lhes que voltassem no dia seguinte. Assim que eles se foram,
sofrimento é não poder se comunicar com a família. Pôs termo à nossa eu abandonei a loja e embarquei com a minha mulher para Baltimore. Nesta
conversa, afirmando: "O isolamento é muito doloroso, mas eu 0 conside~o cidade, encontrei trabalho com rapidez e vivi por um longo período com
um instituto mnito útil para a sociedade". bastante conforto até que, um dia, o meu patrão recebeu uma carta de uma
agente de polícia da Filadélfia, que o informava que um dos seus empregados
. !~terno nº 00. 40 anos. Condenado por assalto à mão armada. Parece
tinha sido internado em Walnut Street. Até hoje, não consigo imaginar o que
mtehgente. Conta-nos asna história, nos seguintes termos: "Eu tinha 14 ou
teria levado o tal agente a fazer aquela denúncia. Devo a ele estar agora aqui
15 anos quando cheguei à Filadélfia. Sou filho de um pobre camponês do
243
242
dentro. Mal o meu patrão leu a carta, me despediu e me expulsou, com
indignação. Decidi, então, procurar outros alfaiates de Baltimore, mas eles, Interno nº 00. É um médico; tornou-se o farmacêutico da prisão.
tendo sido informados do que havia acontecido, não quiseram me contratar. Conversa de forma inteligente e fala dos diversos sistemas de aprisionamento
A miséria me obrigou a procurar trabalho ao longo da ferrovia que estava com uma liberdade de pensamento que a situação em que se encontra torna
sendo construída entre Baltimore e Ohio. A dor e o cansaço provocaram, verdadeiramente extraordinária. A disciplina desta penitenciária lhe parece,
em pouco tempo, uma febre altíssima. A doença durou bastante tempo e vista no seu conjunto, suave e cuidadosamente medida para produzir as
0 condições favoráveis à reeducação. "Para um homem bem educado - afirma
meu dinheiro acabou. Logo que me restabeleci, voltei para Filadélfia, onde a
febre voltou a me atacar. Durante a convalescença, já não tinha um centavo -é melhor viver em completa solidão do que ser lançado no me10 de malfeitores
no bolso e não podia sustentar a minha família. Se agora penso em todos os de toda espécie .. Além do mais, o isolamento favorece a reflexão e esta
inumeráveis obstáculos que eu tive de enfrentar para ganhar honestamente conduz à reeducação''.
o pão de cada dia e em todas as injustas perseguições que sofri, sou tomado Pergunta: "Você observou se o isolamento é prejudicial à saúde? Na sua
de um imenso desespero. Disse então a mim mesmo: bem, já que estou qualidade de prisioneiro e de médico, você é o mais indicado a responder
sendo obrigado, voltarei a roubar. Se houvesse um único dólar nos Estados este tipo de pergunta".
Unidos e se este dólar estivesse no bolso do presidente, eu ia tomar este
Resposta: "Não acredito que, no conjunto, a gente aqui dentro esteja
dólar! Chamei minha mulher e disse-lhe para vender todas as minhas roupas
mais doente do que as pessoas que estão na sociedade. E também não creio
que não fossem estritamente necessárias e comprar com este dinheiro uma que a gente, aqui, goze de uma saúde pior".
pistola. Quando me senti suficientemente forte para poder andar sem muletas,
dirigi-me para os arredores da cidade, parei o primeiro transeunte e o obriguei Interno nº 00. 38 anos; está há apenas três semanas na penitenciária e
a me passar sua pasta. Nessa mesma tarde fui preso. Fui denunciado pela parece imerso no mais negro desespero. "A solidão me matará", diz ele, "não
pessoa que eu havia assaltado e, como o cansaço me obrigou a descansar vou resistir até o fim. Morrerei antes".
num bosque próximo, não foi difícil ser pego. Confessei o meu delito sem Pergunta: "Você encontra algum consolo no trabalho?"
rodeios e fui internado nesta prisão.
Resposta: "Sim, senhor. A solidão sem trabalho é mil vezes mais horrível.
Pergunta: "O que você pensa fazer no futuro?"
Mas o trabalho não me impede de pensar e de ser infeliz. Aqui dentro a minha
Resposta: "Não me interessa, digo francamente ao senhor, censurar-me alma está doente".
por aquilo que fiz, nem começar de novo aquilo que se chama de vida cristã,
mas ao mesmo tempo decidi não roubar mais, sobretudo porque agora vejo O infeliz soluçou ao falar da mulher e dos filhos, a quem não esperava
a possibilidade real de fazê-lo. Quando deixar esta prisão, daqui a nove anos, mais rever. Quando entramos na sua cela, percebemos que ele chorava e
trabalhava ao mesmo tempo.
ninguém no mun_do irá me reconhecer, ninguém, na verdade, me conhece
aqui dentro e eu não posso, tampouco, entabular relações que possam resultar Interno nº 00. Idade: 25 anos. Provém da classe mais privilegiada da
perigosas. Estarei, finalmente, livre para ganhar o meu pão de cada dia. Esta sociedade. Exprime-se com elegância e facilidade. Foi condenado por f~lência
é a maior vantagem que eu encontro nesta penitenciária e que faz preferir fraudulenta. Este jovem mostrou um grande prazer em ver-nos. E fácil
cem vezes estar aqui do que na prisão de Walnut Street, a despeito da perceber que a solidão é para ele um grande tormento. A necessidade de um
severidade da disciplina à qual somos submetidos na penitenciária. contato intelectual com os outros parece atormentá-lo muito mais do que os
Já cumpriu um ano de prisão; saúde ótima. seus companheiros de prisão, que receberam uma educação inferior. Obstina-
se a querer nos contar a sua história; fala do seu delito, da sua posição na
Internos nºs 00 e 00. Estes dois detentos são loucos. O diretor da prisão
sociedade, dos amigos e, em particular, dos pais. Não pode falar dessas
garantiu que eles chegaram aqui já neste estado. A loucura deles é muito
coisas sem chorar; tira de baixo da cama algumas cartas que a sua família
tranqüila. Nada denota, na sua fala incoerente, que possa justificar a suspeita
conseguiu enviar-lhe. Essas cartas já estão em pedaços, de tanto que foram
que este estado confuso e infeliz seja atribuído à penitenciária.
lidas. Lê-as uma vez mais e as comenta.
244
245
Pergunta: "Você acredita que a influência do isolamento possa prejudicar
a razão?"
Resposta: "Acho que o perigo de que os senhores falam pode efetivamente
existir. Lembro-me, no que me diz respeito, que durante os primeiros mesesda
minha solidão, fui muitas vezes assaltado por estranhas visões. Durante muitas
noites seguidas, me pareceu ver uma águia pousada nos pés da minha cama.
Mas agora eu trabalho e me acostumei com esta vida e não sou mais perturbado
por idéias deste tipo".

Um ano de internamento. Saúde boa.

Apêndice 2

246
A soberania administrativa em regime de "silent system"
(conversas com G. Barrctt, B. C. Smith e E. Lynds)
Beaumont e Tocqueville, na sua peregrinação pelo universo penitenciário
da América na primeira metade do século XIX, visitaram, com a sua habitual
diligência, os cárceres que estavam sendo estruturados de acordo com o
modelo auburniano do silent system. Nessa oportunidade, puderam entrar
em contato e conversar com os diretores, os capelães e com o staff em
geral. No s_eu relatório ao governo francês, eles oferecem uma ampla
documentação a respeito desta experiência.
É pois interessante para nós observar como, da leitura deste rico material,
emerge, com suficiente clareza, tanto a realidade concreta quanto a ideologia
do sistema penitenciário em exame. Não se deve esquecer que em 1830 a
contraposição entre o sistema fundado no solitary confinement e aquele que
se baseava no princípio do silent system dividia tanto a opinião pública quanto
o mundo acadêmico, bem como, obviamente, a política administrativa dos
diferentes estados norte-americanos. Todavia, nesse momento, ainda não
era possível saber qual das duas tendências iria se impor com o tempo.
Portanto, é claro que, diante destes ilustres "visitantes" estrangeiros, os órgãos
diretamente interessados tendiam a enfatizar os aspectos positivos da sua
escolha e.a criticar, evidentemente, a escolha feita pelo lado "adversário''.
Não obstante esta atitude apologética que permeia os contatos epistolares
e verbais com a administração carcerária, parece-nos ser possível perceber
a presença de duas tendências, apenas aparentemente contraditórias. A
primeira, mais marcadamente ideológica, é patrocinada, neste caso, pelos
capelães, e tende, ainda, a estigmatizar, de um lado, a "maldade" do criminoso
e, de outro, a "força moral" do processo executivo, capaz de transformar
este "universo bestial'' num exército de pious and religious men. A segunda
- conforme a brutalidade da própria argumentação, decididamente mais
"realística" - é levada a representar o cárcere como uma "empresa privada e
produtiva", onde só podem reinar os símbolos da autoridade de tipo gerencial:
a lucidez fria do "diretor-empresário", o desprezo pelas massas de "internos-
operários", o cálculo econômico, o pessimismo de fundo em relação à
possibilidade de uma "regeneração moral" do detido.
249
Indubitavelmente, se ambas as perspectivas são oferecidas aos dois "es- Quando os princípios das Sagradas Escrituras estão gravados no coração
trangeiros" com a intenção de obter deles o consenso e a admiração, não do internado, podemos então estar certos de que a sua reeducação está
podemos deixar de reconhecer nelas a presença de elementos de verdade, completa e eu tenho motivos para acreditar que este momento se realizou
em particular quando a exigência de evidenciar as dificuldades encontradas muitas vezes. Acredito que de 15 a 20 prisioneiros encontram-se atualmente
pela administração leva os entrevistados, inevitavelmente, a "exaltar" a neste estado ( ... ) Convém deixar claro que nenhum dos internos recusa
implacável severidade da disciplina imposta. completamente a instrução religiosa e eu nunca encontrei um único detento
Carta do Sr. Barrei, Capelão da Penitenciária de Wethersfield 1 que me tenha faltado com o respeito quando o visitei em sua cela.
Wethersfield, 7 de outubro de 1831 Observei que a ignorância, o descuido dos pais e o destempero são, em
geral, as três principais causas que estão na origem do crime ( ... ).
Aos Senhores Beaumont e Tocqueville,
O resultado final que se pode esperar do cárcere também depende em
Senhores,
muito da capacidade dos carcereiros. É necessário que estes sejam dotados
A população de Connecticut chega a cerca de 280.000 almas. Durante 36
de um agudíssimo senso moral, que falem pouco e que sejam capazes de
anos, os calabouços próximos a Tinesburg, conhecidos como cárcere de
observar as menores coisas.
Newgate, foram utilizados como penitenciária estatal. A nova prisão encontra-
Se os vigiados forem sempre aquilo que devem ser, se os detentos,
se em funcionamento há apenas quatro anos. Ao longo dos 40 anos que
separados durante a noite, trabalharem em silêncio durante o dia, se a contínua
precederam junho de 1831, o número de internos nestas duas instituições foi
de 976 ( ... ). vigilância for intercalada por uma apropriada instrução religiosa, a prisão
pode se tornar um local de reeducação para os internos e uma fonte de lucro
A proporção de negros por 100 habitantes em Connecticut é de três, mas
para o Estado.
nas prisões a população de cor representa cerca de 33% do total. Dos 182
internos que eu acompanhei pessoalmente, 76 não sabiam escrever e 30 Atenciosamente,
eram também incapazes de ler uma letra sequer. Sessenta eram órfãos de pai G. Barrett, capelão da prisão
e mãe desde a primeira infância, ao passo que 36 perderam os pais antes de A opinião do Reverendo Sr. B. C. Smith, Capelão na Penitenciária de
completar 15 anos de idade. Aubum 2
Destes 132 internos, 116 eram naturais do estado de Connecticut, 90 O fato mais evidente para quem tem de se ocupar do problema religioso
tinham ~ntre 20 e 30 anos de idade e 18 tinham sido condenados à forca. dos detidos é, indubitavelmente, a difusa e profunda ignorância da Bíblia
Atualmente, o cárcere hospeda 18 mulheres. Algumas trabalham nas que reina entre a população internada (... ) Sem querer fornecer exemplos
cozinhas e nas lavanderias d.a penitenciária, outras nas fábricas de calçados. específicos desta ignorância - que dificilmente seriam considerados
Elas recebem 4 centésimos de dólar por cada par de sapatos produzido; uma verdadeiros-, basta dizer que muitos prisioneiros, quando interrogados, foram
mulher pode confeccionar de seis a dez pares (... ). incapazes de citar o título de um único livro da Bíblia! ( ... )
De manhã e à noite, as orações são sempre recitadas na presença dos Outra característica( ... ) é o analfabetismo; ( ... )e também, algo que é do
prisioneiros. São lidas passagens da Bíblia, seguidas, em geral, por um breve conhecimento de todos, o elevado percentual de alcoólatras. O número de
comentário. Nestas ocasiões, os internos mostram-se atentos e diligentes. prisioneiros atualmente internados na penitenciária de Auburn éde 682; destes,
Cada interno recebe, desde o início do cumprimento de sua pena, um 230 são intoxicados crônicos e 270 estão, com freqüência, em estado de
exemplar gratuito da Bíblia, para que ele possa ler sempre que quiser. Aos
sábados, é proferido um sermão que os presos nunca deixam de ouvir com
muita atenção. Com freqüência, eles fazem perguntas interessantes a respeito 2 Texto retirado de F. Lieber, tradutor e autor dos comentários da edição em língua
daquilo que escutaram. inglesa da obra de G. Beuamont e A. H. Tocqueville (1833), que cita uma passagem
do Annual Report of the Inspectors of the Auburn Penintetiary to the Legislature,
datado de 8 de janeiro de 1833, in G. Beuamont e A. H. Tocqueville, On the
' Beuamont e A. H. Tocqueville, On the Penintetiary System, cit., pp. 223-225. Penintetiary System etc., pp. 225-230.
250 251
embriaguez; ( ... ) e mais: 385 confessaram que estavam sob a influência do a aceitar o seu ponto de vista, eu lhes respondo: vocês estão livres para me
álcool quando cometeram o delito, enquanto 219 confessaram que seus pais tirar deste posto e, nesse caso, eu tenho que obedecer, mas enquanto eu
eram alcoólatras (... ) permanecer aqui, seguirei somente as minhas idéias. Escolham!"
Um outro elemento interessante: o percentual de pessoas não casadas - Pergunta: "Ouvimos dizer - e estamos propensos a acreditar - que, aqui
de 683 internos, 319! ( ... )As pessoas casadas atualmente na prisão contam, na América, o sucesso do sistema penitenciário deve ser em parte atribuído
em seu conjunto, com 901 filhos menores de idade, dos quais 679 não têm ao hábito, tão difuso neste país, de se respeitar escrupulosamente as leis. O
como se sustentar; destes últimos, sabe-se que somente 180 são atualmente que o senhor pensa disso?"
assistidos por outros parentes. Resposta: "Não creio que essa observação seja correta. Em Sing-Sing,
Conversa com o Sr. E. Lynds, Diretor da Penitenciária de Sing-Sing 3 por exemplo, 14 dos internos é composta por estrangeiros de nascimento. Eu
Já passei dez anos da minha vida na administração penitenciária. Fui, os "submeti" da mesma maneira que o fiz com quem nasceu na América.
durante muito tempo, expectador dos abusos que dominavam no velho sistema Certamente os mais difíceis de "dobrar" são os prisioneiros de origem
carcerário: as prisões eram então fonte de elevadas despesas e os prisioneiros espanhola, provenientes da América do Sul; essa raça é muito mais semelhante
perdiam o pouco de senso moral que ainda tinham. A maior parte da opinião ao animal feroz e ao selvagem do que ao homem civilizado (... )"
pública começou então a ser contrária a todas as idéias filantrópicas, cuja impos- Pergunta: "Qual é então o segredo desta disciplina tão eficaz que o senhor
sibilidade de serem colocadas em prática parecia já provada pela experiência impôs em Sing-Sing e da qual nós podemos admirar os efeitos?"
quotidiana. E foi exatamente em virtude dessas circunstâncias que comecei a Resposta: "Na verdade, é difícil dar uma resposta exaustiva. De fato, o
vislumbrar a possibilidade de adotar o sistema de Aubum. No início, encontrei meu método não é outro senão o resultado final de uma série de tentativas e
muitas dificuldades tanto com as autoridades quanto com a opinião pública, esforços quotidianos. Portanto, regras gerais não podem ser indicadas. O
sobretudo devido às minhas atitudes, consideradas "tirânicas", ao dirigir uma ponto fundamental, contudo, é conseguir manter um silêncio ininterrupto e
prisão. Porém, o sucesso obtido basta para justificá-las plenamente. um trabalho ininterrupto. Para obter isso é necessário vigiar tanto os
Pergunta: "O senhor acha que a disciplina imposta pelo senhor também prisioneiros quanto os carcereiros, e ser, ao mesmo tempo, inflexível e justo".
possa ser aplicada em outros países além dos Estados Unidos?" Pergunta: "O senhor acha imprudente deixar os prisioneiros trabalharem
Resposta: "Estou totalmente convencido de que ela teria sucesso em todo ao ar livre, nos campos, como em Sing-Sing?"
e qualquer lugar no qual o meu método viesse a ser aplicado rigorosamente.
Resposta: "Pessoalmente, prefiro dirigir um cárcere onde esta possibilidade
Sempre pensei, por exemplo, que na França as possibilidades de sucesso
exista. Se é obviamente impossível obter a mesma disciplina que se obteria
seriam ainda maiores do que na América. Eu sei que os cárceres franceses
facilmente num cárcere cercado por altos muros, também é verdade que se
dependem diretamente da administração governamental, que pode, portanto,
você conseguir "dobrar" o prisioneiro sob o jugo da disciplina, é possíve}
conferir uma sólida e duradoura confiança aos próprios administradores e
fazê-lo trabalhar, sem perigo, no tipo de trabalho que julgar mais oportuno. E
funcionários; aqui, ao contrário, nós somos escravos da opinião pública que,
só assim que o Estado pode utilizaros criminosos de mil maneiras produtivas."
continuamente, tende a mudar. Na minha opinião, é totalmente necessário
que o diretor de uma prisão - sobretudo se esta experimenta um novo método Pergunta: "O senhor acha absolutamente impossível impor a sua disciplina
disciplinar - seja investido de um poder absoluto, o que, entre nós, num num cárcere no qual não exista o sistema celular noturno?"
Estado democrático, é praticamente impossível (... ) Resposta: "Acho que seria possível manter, também nesse caso, uma
Meu princípio foi sempre este: para reformar e conduzir um cárcere é ordem aceitável e, inclusive, um bom nível de produtividade no trabalho,
necessário concentrar nas mãos de um único indivíduo todo o poder e todas mas seria totalmente impossível prevenir uma infinidade de abusos, cujas
as responsabilidades. Muitas vezes quando os inspetores querem obrigar-me conseqüências, no longo prazo, poderiam ser muito sérias."
Pergunta: "O senhor está verdadeiramente convencido da possibilidade
3
Idem, pp. 199-203. de reformar um número considerável de presos?"

252 253
--11
1

Pergunta: "Qual é a sua opinião a respeito do 'sistema de contrato'?"


Resposta: "Meus caros, os senhores devem entender uma outra coisa:
Resposta: "Acho que é útil oferecer o trabalho dos detentos em contrato,
eu, pessoalmente, nunca acreditei na possibilidade de uma completa e absoluta · mas com a condição de que o diretor permaneça sempre como 'chefe', para
reeducação. Na verdade, na minha mente nada é mais remoto do que pensar todos os efeitos. Quando eu fui diretor em Auburn, firmei contrato com
que um preso adulto possa transformar-se num cidadão religioso e virtuoso! diversos empresários privados que lhes proibiam de entrar, em qualquer
Confesso abertamente: não creio na 'santidade' adquirida de quem deixa o situação, na penitenciária. A presença deles nas oficinas, ainda que esporádica,
cárcere e não penso que os conselhos do capelão ou as meditações religiosas só faria prejudicar a disciplina.''
do detento possam, por si sós, 'criar' um bom cristão! Ao contrário, na
Pergunta: "Qual é, na sua opinião, a qualidade mais necessária numa
minha modesta opinião, um bom punhado de criminosos poderá converter- pessoa para poder ser diretor de uma penitenciária?"
se em 'bons operários', na medida em que, no cárcere, eles aprenderam uma
Resposta: "A arte prática de dirigir e disciplinar as massas. Antes de
profissão útil e adquiriram o hábito de um trabalho subordinado, constante e
tudo ele deve estar profundamente convencido - corno eu sempre estive -
de q~e o homem desonesto é um covarde. Esta convicção, que os prisioneiros
disciplinado. Esta é a única reforma que pretendo realizar aqui dentro e que,
acredito, é a única que a sociedade pode igualmente esperar."
Jogo percebem, lhe confere uma grande ascendência e lhe pe~ite .~usar
Pergunta: "O que indica, na sua opinião, que o interno esteja no caminho fazer coisas que, num primeiro momento, podem parecer temeranas.
da reeducação?"
Resposta: "Que fique claro: enquanto ele permanecer no cárcere,
absolutamente nada. Se fosse obrigado a fazer prognósticos, bem, eu ousaria
afirmar que aquele que se comporta corretamente aqui dentro, uma vez do
lado de fora começará, com toda probabilidade, de novo a delinqüir. Tive a
oportunidade de observar como os criminosos mais perigosos quase sempre
se mostram ótimos prisioneiros; eles são, normalmente, mais inteligentes e
sobretudo mais hábeis do que a maioria dos detentos. Com mais rapidez do
que os outros, eles se dão conta que a única maneira de tornar a sua situação
mais tolerável é evitar, de qualquer modo, as punições que inexoravelmente
se seguem a todo ato de insubordinação. Eles fingem. A conseqüência evidente
desta observação é que o instituto da 'redução da pena por boa conduta' não
deve estabelecer-se, pois, de outro modo, acaba fazendo de todos os presos
uns hipócritas".
Pergunta: "Porém, esta instituição que o senhor critica tão severamente é
defendida por todos os juristas."
Resposta: "Neste caso, como para muitas outras questões, estes teóricos
se iludem porque não têm a menor experiência prática das coisas acerca das
quais proferem 'grandes discursos'. Por exemplo, se o senhor Livingston
quisesse aplicar as suas teorias penais a pessoas como ele, nascido e
pertencente a uma classe social na qual a inteligência e a moralidade existem
de verdade, não há dúvida de que poderia chegar a ótimos resultados; as
prisões, porém, estão cheias de gente vulgar, que nunca recebeu educação
alguma e que com muita dificuldade consegue entender os conceitos mais
simples e que também, muitas vezes, é insensíveis às sensações mais
violentas."
255
254
III
Conclusões
Razão contratual e necessidade disciplinar
nas origens da pena privativa da liberdade

As Luzes, que descobriram as liberdades,


inventaram também as disciplinas.
Michel Foucaul~ Vigiar e punir

A idéia da penitenciária como "aparato disciplinar" se impõe, enquanto


hipótese emergente, em termos quase definitivos como resultado da análise
aqui conduzida sobre a estrutura organizativa dos cárceres norte-americanos
na primeira metade do século XIX.
De modo sintético, pode-se dizer que o núcleo teórico do problema se
expressa nesta contradição (por enquanto não importa determinar se "aparente"
ou "real"): a concepção do cárcere como instrumento de reformation do
preso para conduzi-lo à subordinação através da disciplina (interpretação não
"ideológica" do conceito de reeducação) está historicamente presente, é
concomitante e está misturada na/com a luta pela certeza do direito e, .por
isso, também na/com a luta pela certeza da pena e, por fim, em última análise,
pela pena como retribuição (leia-se, pena carcerária como privação de um
quantum de liberdade, preventiva, abstrata e proporcionalmente determinado).
Este aspecto - podemos chamá-lo, por ora, antinômico - é facilmente
identificável no pensamento jurídico-penal do liberalismo clássico. Bentham,
por exemplo, ao mesmo tempo em que projeta um modelo arquitetônico
como paradigma do poder disciplinar-corretivo de todo o universo burguês 1,
em sua obra An lntroduction to the Principies of Morais and Legisiation é
o propulsor de um conjunto de reformas na legislação penal que invoca,

1 "O Panóptico, o modelo de construção para todos os edifícios nos quais se

queira manter sob inspeção um certo número de pessoas. Não importa quão
diferentes (... ) sejam os propósitos (... ) seja ele aplicado aos propósitos das pri-
sões perpétuas ( ... ) ou prisões de confina1nento (... ) ou casas penitenciárias, ou
casas de correção,. ou casas de trabalho, ou manufaturas, ou hospícios, ou hospitais,
ou escolas", in J. Bentham, "O Panóptico ou a casa de inspeção'', in Jeremy Bentharn,
Panopticon or the lnspection House ... , in J.Bowring (ed.). The Works of J. Benthan1,
vol.l, Nova Iorque, 1962, p. 37.
259
corno fundamento da justiça criminal, o "princípio da legalidade"'. Do mesmo prevenção e do controle social se - e enquanto - impusererp não um
modo, Beccaria, enquanto exige a necessária proporcionalidade entre delito e terror genérico e indiscriminado, mas sim um terror certo .
pena, assumindo assim o princípio retributivo como uma necessidade Iógico- O terna da "certeza da repressão" (em oposição à sua aplicação indiscrimi-
política3, coloca corno frontispício da terceira edição de sua obra (Livorno, nada), o tema da "retribuição" (em oposição à desproporção irracional e politi-
1765) a imagem da Justiça, vestida de Minerva, que se por um lado expressa camente sem sentido entre delito e pena) deve, assim, ser interpretado como
um gesto de horror diante do carrasco que lhe apresenta uma penca de ca- expressão de uma vontade puramente racionalizadora do sistema jurídico penal.
beças cortadas, por outro mostra-se alegre quando vê alguns instrumentos de Por racionalização, dever-se-ia a rigor entender a exigência de transformar o
trabalho (enxadas, martelos, serras etc.) como meios de educação penitenciária'. direito penal em instrumento - agora consciente - da política de controle
Do mesmo modo, e voltando à realidade norte-americana, B. Rush, W. social burguês, no sentido de que "a racionalidade invocada do direito penal
Bradford, C. Lownes e, em geral, todos os filantropos quakers ligados à coincida co1n a necessidade do caráter instrumental, funcional da sua lógica"7 .
Philadelphia Society of Alleviating the Miseries of Public Prisons, ao rne~mo O momento retributivo da pena - para voltar ao nosso tema específico -
tempo que lutam pela reforma dos códigos, pela abolição das cruéis e san- mantém assim um caráter "subordinado" à exigência hegemônica que, por sua
guinárias leis penais do período colonial, pela aplicação dos princípios ilumi- vez, deveria encontrar no modelo disciplinar da penitenciária a sua própria reali-
nistas à legislação do jovem Estado americano, esforçam-se para transformar zação (limitadamente, é óbvio, ao controle social do desvio criminal). A "con-
o cárcere de Walnut Street no primeiro exemplo historicamente concretizado tradição" existente entre refonnation e retribution ficaria, portanto, "aparente",
de penitenciária celular'.
depois de ter aviltado, ao nível instrumental e subordinado, o segundo dos termos.
Diante do reconhecimento destes momentos, presentes no discurso po- Esta interpretação não nos parece satisfatória enquanto não considerarmos
lítico-jurídico iluminista, ocorreu urna tentativa de resolver o problema "instrumental" e, portanto, "ideológica" a instância (leia-se, razão) retributiva
colocado pela contraditoriedade com a qual algumas propostas eram formu- da pena no pensamento jurídico burguês. Ao contrário, pareceria teoricamente
ladas, atribuindo-se à "instância retributiva" (proporção entre crime e pu- mais convincente a interpretação que vê no princípio da proporcionalidade
nishment) e, de forma mais geral, ao "princípio da certeza do direito" a da pena com o delito a tradução, ao nível jurídico-penal, de um tipo de relações
validade de instância racionalizadora do terror repressivo: sociais baseadas na "troca de equivalentes", isto é, no "valor de troca".
O racioc~nio de muitos "reformadores" - diz-se - era simples: as A natureza homogênea entre "valor-delito" e "valor-pena" e, por conse-
normas penais só funcionam, são eficazes, dão conta do objetivo da guinte, a possibilidade lógica da sua comparação, bem como a natureza essen-
2 cialmente "contratual" da pena, já são patrimônio da especulação burguesa
J. Bei1tham. An Introduction to the Principies o/ Morais and Legislation, in
J.Bowring (ed.). The Works of J. Bentham, vol. !, cit., pp. 1-194. clássica. A idéia de "equivalência" como idéia jurídica encontra, já em Hegel, a
3 sua matriz na "idéia de mercadoria"'. Nessa perspectiva, mesmo o "delito" deve
"Se a geometria fosse adaptável às infinitas e obscuras combinações das ações
humanas, deveria haver uma escala correspondente de penas, que fosse da mais ser interpretado como uma "variante particular da troca", na qual a relação,
forte à mais débil (. .. ) Se o prazer e a dor são o motor dos seres sensíveis, assim se o 6
prêmio ou o castigo determinados pelo invisível legislador se encontram entre os P. Costa, Jl progetto giuridico. Ricerche sulla giurisprudenza dei liberalisn10
clássico, vol. !, Da Hobbes a Bentham. Milão, 1975, p. 267.
motivos que impelem os homens às mais sublimes operações, quando isto não
1 P. Costa, Jl p1vgetto giuridico, cit., p. 366.
acontece, e há uma desigual distribuição de prêmios e castigos, vive-se a contradi-
8
ção tanto mais comum quanto mais inconsistente, de que as penas punem os delitos "O valor - enquanto igualdade interna das coisas, que em sua existência especí-
que elas mesmas fizeram nascer. Se uma pena igual é destinada a dois delitos que fica são completamente distintas - é uma determinação que já está presente tanto
ofendem a sociedade de fonna desigual, os homens não terão pela frente um obstá- nos contratos quanto nas ações civis contra o delito, e da qual a representação é
culo maior para cometer o delito mais grave, se com ele encontrarem.junto uma elevada ao universal, superando a natureza bnediata das coisas. No delito, no qual
vantagem maior". ln C. Beccaria, Dei delitti e delle penne, Turim, 1970, p. 22. o infinito do fato é a sua determinação fundamental, desaparece tanto mais a espe-
4
Da Introdução de F. Venturi a Beccaria, Dei delitti e delle penne, cit., p. XVI. cificidade simplesmente extelior, e no essencial a igualdade permanece como regra
5
Ver parágrafo 4 da Parte I. fundamental, e por isso o delinqüente mereceu ser castigado, mas não pelo asp~cto
externo e específico deste castigo. Só de acordo com este aspecto, o furto, a rapina,
260
261
ou seja, a relação por contrato, estabelece-se post-factum, depois de infringir à forma mais simples e abstrata do trabalho humano medido no tempo".
a norma. Portanto, a proporção entre delito e pena é necessariamente A pena do cárcere - como privação de um quantum de liberdade - torna-
retribuição (Wiedervergeltung), ou seja, proporção de troca. se a pena por excelência na sociedade produtora de mercadorias. A idéia de
O próprio Marx, como já se demonstrou', desenvolve posteriormente a retribuição por equivalente encontra, assim, na pena carcerária a sua máxima
tese hegeliana da natureza "real" e "não ideológica" do conceito retributivo, realização, enquanto a liberdade impedida (temporariamente) é capaz de
mostrando como este é capaz de atingir o seu grau máximo de diferenciação representar a forma mais simples e absoluta de "valor de troca" (leia-se,
quando se realiza, objetivamente, no processo econômico, no qual a "forma valor do trabalho assalariado).
de equivalente" e o "princípio da troca" tornam-se dominantes, isto é, na A recondução da experiência carcerária, na acepção da pena privativa da
sociedade capitalista. Porém, o "conceito de retribuição", nesta formulação liberdade, à sua matriz contratual original, pennite o entendimento, em termos
original, ainda não dá conta de um processo posterior de historicização: a racionais, de algumas características essenciais da fenomenologia
retribuição equivalente enquanto fundamento de toda uma tipologia de sanções sancionatória burguesa, a saber:
(da pena pecuniária à pena corporal, chegando mesmo à pena capital) terá
a) o cárcere como instrumento repressivo de modulação da pena (dias,
ainda de encontrar a sua especificidade original na pena carcerária, ou seja,
na pena privativa da liberdade. meses, anos) pode satisfazer plenamente à nova exigência de propor uma
hierarquia diferente (e rigorosa) de valores para tutelar penalmente.
É apenas com Pasukanis, como se sabe, que a tese contratual-
b) O modelo de contrato (em particular, como veremos a seguir, o de
sinalagmática da pena carcerária alcançará a sua máxima elaboração teórica 10 •
trabalho) acentua posteriormente a elasticidade da pena. A pena retributiva é
E para que a própria tese seja válida, é essencial que ela só seja realizada
como o salário: toda circunstância inerente à relação deve ser avaliada, todo
completamente na hipótese da pena carcerária, i.e., da pena privativa da
liberdade. particular inerente ao delito deve ser considerado. A pena carcerária realiza,
no plano das sanções, o delito circunstancializado.
A idéia da privação de um quantum de liberdade, determinado de modo
abstrato, como hipótese dominante de sanção penal, só pode realizar-se de c) A instância racionalista, a obsessão classificatória (na qual se esgota a
fato com o advento do sistema capitalista de produção, ou seja, naquele vontade de perceber os "diferentes") encontram na pena carcerária o meio
processo econômico em que todas as formas da riqueza social são devolvidas
idôneo para racionalizar o sistema repressivo de controle social.
d) O cárcere desponta como um modelo de pena (formalmente)
a multa e a pena da prisão etc. são simplesmente coisas heterogêneas, porém, segun- democrático. Reduzir todo valor à forma mais simples do trabalho assalariado
do o seu valor, a sua propriedade geral de sere1n lesivos, são coisas comparáveis. faz com que a pena privativa da liberdade apareça, aos associados, nas suas
Cabe ao intelecto, como se observou, buscar aproximações para igualá-las em seu vestes de pena igualitária e democrática. A pena do cárcere torna-se, assim,
valor". ln G. W. F. Hegel, Lineamenti di Filosofia dei Diritto, Bari, 1974, p.112,
parágrafo 101. a forma jurídica geral de um sistema de direitos (de/por princípio) igualitários.
9 Estes elementos, que derivam da natureza sinalagmática da pena e que são
D. Melossi. "Criminologia e marxismo: aIIe origini della questione penale nella
società de 'II Capitale', in La questione crinlinale, I (1975), nº 2, pp. 319 ss.
essenciais para a compreensão do fenômeno punitivo burguês, devem ser
"reinterpretados" à luz da função própria do aparato penitenciário: a
rn "A privação da liberdade por um arco de tempo estabelecido preventivamente
nas sentenças do tribunal representa a forma característica mediante a qual o reformation através da disciplina. A contradição, sublinhada anteriormente,
direito penal moderno - isto é, o direito penal burguês-capitalista - coloca em entre retribution e renovation pode ser agora reformulada nos seguintes
prática o princípio da retribuição equivalente. Este meio está profundamente liga- "binômios antitéticos":
do, ainda que inconscientemente, à idéia do homem abstrato medido no tempo. J. Momento do direito (na pena como retribuição); momento da disciplina
Esta forma da pena, não por acaso, se afirma até adquirir características de natu-
reza e racionalidade exatamente no século XIX, isto é, quando a burguesia desen-
volvia e consolidava plenamente todos os seus traços". ln E. B. Pasukanis, W
teoria generale dei diritto e il n1arxisn10, Bari, 1975, p.189. 11
Idem, p. 189.
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(na pena como execução); da força de trabalho do prestador coincide, historica(lle{[(!', ,<;P'{lr;~;.trl~p:ill
"deducibilidade do c01po" deste último no objeto darelaçãó;is~o;ri~;~i\il'~i'!:fttÍ:! ·•
2. Igualdade formal (na pena como retribuição); desigualdade,
do que ocorre na relação disciplinar própria da pena conio eÍ<ecuÇl(p. : • .. :.
iliferioridade, subordinação substancial (na pena como execução);
3. Como o contrato de trabalho entre iguais ("relação horizonta!")crii
3. Certeza jurídica (na pena como retribuição); arbitrariedade factual
um "superior" e um "inferior", assim a pena-retribuição cria (é) exeéução
(na pena como execução).
penitenciária, ou seja, um aparato de "relações verticais".
No microcosmo da pena carcerária encontramos refletida a contradição 4. A "subordinação do trabalho" é exercício de um poder conferido pelo
central do universo burguês: a forma jurídica geral, que garante um sistema "contrato". A "subordinação do cárcere" é exercício do poder conferido
de direitos igualitários, é neutralizada por uma espessa rede de poderes não
pela "pena-retribuição".
igualitários, capazes de recolocar as assimetrias políticas, sociais e
5. Na relação de trabalho, a subordinação do prestado.r de trabalho é
econômicas negadoras das mesmas relações formalmente igualitárias,
(também) "alienação pelos/dos meios de produção". Na relação penitenciária,
surgidas da natureza (contratual) do direito. Estamos, assim, na presença
a subordinação do preso é "expropriação" (também) pelo/do próprio corpo".
contemporânea de um direito e de um não ou contra-direito, ou de uma
razão contratual e de uma necessidade disciplinar. A contradição, neste 6. A liberdade contratual do proletário encontra seu próprio objeto na
nível de interpretação, é "objetiva" e reflete, de fato, a aporia presente no "prestação como conteúdo inativo" (perda da liberdade por um quantum de
próprio modo de produção capitalista, entre a esfera da distribuição ou tempo). A essa perda de liberdade e de autonomia faz frente o poder disciplinar
circulação e a esfera da produção ou de extração de mais-valia 12 • do empresário. O mesmo acontece na pena carcerária: o objeto da pena é a
"privação de um tempo" (quantum de liberdade) que deverá, no processo de
O contrato pode, portanto, ser assumido felizmente como fundamento
ideal do poder político burguês, contanto que se reconheça, como co-essencial execução, ser vivido como sujeição.
a este, o princípio disciplinar que sustenta o aparato técnico da coerção. Se 7. O trabalho subordinado (labor, travai/ etc.) como prestação é esforço
a pena da privação da liberdade se estrutura, pois, sobre o modelo da "relação penoso, é sofrimento, é "pena" para o proletário. A pena carcerária, como
de troca" (enquanto retribuição por equivalente), a sua execução (leia-se, conteúdo da retribuição que se molda sobre o exemplo da manufatura-fábrica,
penitenciária) é moldada sobre a hipótese da "manufatura", da "fábrica" é essencialmente "trabalho".
(enquanto disciplina e subordinação). 8. Se o trabalho subordinado é portanto coação, a pena carcerária é o
"nível mais alto" (ponto terminal e ideal) da coação. Daí deriva a função
Nessa ótica, o modelo paradigmático ao qual a relação entre "razão con-
tratual" e "necessidade disciplinar" da pena parece se referir não pode ser ideológica principal da penitenciária: a hipótese emergente do cárcere como
outro senão aquele que reina na "relação de trabalho", entre "contrato de universo onde a situação material do submetido (internado) é sempre "inferior"
trabalho" e "subordinação operária". Com efeito: à do último dos proletários.
9. A penúria do trabalho subordinado é "diretamente proporcional" ao
1. Se o contrato de trabalho pressupõe formalmente "empregador" e
grau de subordinação, i.e., ao nível de perda de autonomia e independência
"prestador", enquanto "sujeitos livres" num plano de paridade, a relação de
do prestador. A pena, como aparato disciplinar que se molda sobre o exemplo
trabalho determina, ao contráiio, a necessária subordinação do proletário ao
da manufatura-fábrica, enquanto perda total da autonomia, representa o "ponto
empresário. Não é diferente na relação punitiva: a "pena como retribuição"
pressupõe "o homem livre"; o "cárcere" tem "o homem escravo" à sua disposição. mais elevado" de subordinação e, por conseguinte, de sofrimento.
10. O momento disciplinarna relação de trabalho coincide com o momento
2. A discricionaridade máxima daquele que oferece trabalho na utilização
institucional. Em outras palavras, o "ingresso" do prestador de trabalho"
(contratante) na fábrica, no lugar onde aquele que oferece trabalho (outro
contratante) coativamente organiza os fatores de produção. O mesmo se dá
12 Dario Melossi, '\Criminologia e marxismo: alie origini della questione penale na relação punitiva: o condenado (sujeito livre) torna-se sujeito subordinado
nella società de 'II Capitale'", cit., pp. 327-328.
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(preso) quando "ingressa" na instituição penitenciária.
11. E finalmente: a "fábrica é para o operário como um cárcere" (perda
da liberdade e subordinação): o "cárcere é para o interno como uma fábrica"
(trabalho e disciplina).
O significado ideológico desta complexa realidade se resume na tentativa
de racionalizar, ainda que enquanto projeto, iuna dupla analogia: os internos
deveni ser trabalhadores, os trabalhadores deveni ser internos.
Está aberta, assim, a passagem, sem solução de continuidade, da
organização coativo-carcerária para a organização coativo-econômica
do trabalho. Os limites são sutis, e certamente não "qualitativos",
uma vez que o mesmo aparato institucional pode se mostrar funcional
. - l3 .
para ambas as organ1zaçoes

13
Costa, 11 progetto giuridico, cit., p. 377.

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