Você está na página 1de 15

O predomínio dos negros nas escolas de Minas

Gerais do século XIX

Marcus Vinícius Fonseca


Universidade Federal de Ouro Preto

Resumo

O período que compreende os anos de 1820 a 1850 marca o iní-


cio da construção e da estruturação de uma política de instrução
pública com objetivo de educar o povo da província de Minas
Gerais. Este artigo procura analisar o nível de relação entre esse
processo e o segmento mais expressivo dentro da estrutura
demográfica de Minas Gerais, ou seja, a população negra livre.
Para realizar a análise, utilizamos como referência uma documen-
tação censitária que tentou contabilizar a população de todos os
distritos mineiros e registrou as crianças que estavam nas escolas.
A partir do registro censitário, construímos um perfil racial das
escolas, confrontando-o com informações fornecidas por outros
documentos (listas de professores, relatos de viajantes, memórias)
que revelaram uma presença majoritária dos negros nas escolas de
instrução elementar. A interpretação que produzimos em relação à
presença dos negros nas escolas mineira indica que essa instituição
era um dos elementos acionados por esse grupo com objetivo de
afirmação no espaço social. Em relação a isso, destaca-se o fato
de que a escolarização adquiriu significados específicos em meio à
população negra, ou seja, representava a sua inserção na cultura
letrada, mas também uma forma de demarcar um distanciamento
do mundo da escravidão e uma demonstração de domínio dos
códigos de conduta das pessoas livres.

Palavras-chave

História da Educação — Negros — Minas Gerais — Século XIX.

Correspondência:
Marcus Vinícius Fonseca
Rua do Seminário, s/n - B. Centro
34420-000 – Mariana – MG
Email: mvfonseca@ichs.ufop.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009 585

Untitled-3 585 16/12/2009, 13:59


The majority of blacks in schools of 19th-century
Minas Gerais

Marcus Vinícius Fonseca


Universidade Federal de Ouro Preto

Abstract

The period between 1820 and 1850 marks the beginning of the
construction and structuring of a public education policy that
aimed at educating the people of the province of Minas Gerais.
The present article analyzes the relationship between this process
and the most expressive segment within the demographic
structure of the province at that time, namely, the population of
free blacks. In order to conduct this analysis, we have sought
reference in a census documentation that attempted to cover the
whole population of Minas Gerais districts, making a record of
children attending school. Based on these numbers, we built a
racial profile of schools, comparing it with information gathered
from other documents (teachers’ lists, travelers’ accounts,
memoirs), which pointed to a majority of blacks in elementary
schools. The interpretation we give to the presence of blacks in
schools of Minas Gerais indicates that this institution was one of
the elements utilized by that group to establish their position
inside the social sphere. In this respect, the text highlights the
fact that schooling acquired specific meanings among the black
population; more specifically, it represented their insertion into
the literate culture, and a way of signaling their distancing from
the world of slavery, and was also a demonstration of their
mastery of the codes of conduct of free people.

Keywords

History of education — Blacks — Minas Gerais — 19th century.

Contact:
Marcus Vinícius Fonseca
Rua do Seminário, s/n - B. Centro
34420-000 – Mariana – MG
Email: mvfonseca@ichs.ufop.br

586 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009

Untitled-3 586 16/12/2009, 13:59


Nos séculos XVIII e XIX, o perfil da po- ção dos estrangeiros que passaram por Minas foi
pulação era um elemento que distinguia Minas a composição racial de sua população.
Gerais das demais localidades brasileiras, e isso Em A província brasileira de Minas Ge-
estava ligado à forma como a escravidão se rais, relato de viagem publicado por Halfeld e
constituiu nessa região. Essa singularidade é Tschudi (1998), a população mineira é apre-
destacada pela historiografia que cada vez mais sentada da seguinte forma:
chama a atenção para o predomínio dos negros
na população mineira: [...] uma grande parte da população desta
província compõe-se de negros livres, mes-
Durante o auge da mineração do século tiços de negros com brancos e de brancos
18 a importação de escravos africanos e o e negros com índios, envolvendo todos os
subsequente desenvolvimento de uma tipos de mestiçagem dessas três raças entre
grande população de negros e mulatos li- si. Os brancos puros representam uma fra-
vres definiram as características raciais da ção relativamente pequena da população
capitania. A importação de escravos africa- total. (p. 106)
nos diminuiu e acabou cessando por volta
da década de 1780, com o declínio da mi- Esses europeus registraram a superioridade
neração. Juntos, escravos, negros e mulatos numérica dos negros e um elevado número desses
livres sempre foram maioria no século 18, indivíduos na condição de livres. Essa apreciação
mas com redução da população escrava, foi acompanhada por outros estrangeiros que vi-
depois de 1786, os negros e mulatos livres ajaram por Minas Gerais, pois, segundo Ilka
tornaram-se o maior setor populacional. Boaventura Leite (1996), esse estranhamento em
(Bergad, 2004, p. 310) relação às características da população é algo
constante nos relatos de viagem:
A escravidão desempenhou um papel cen-
tral na composição do perfil da população mineira Durante todo o século XIX, a maioria dos
e, mesmo nos períodos em que houve refluxo da viajantes que chegava ao Brasil se defronta,
importação de africanos escravizados, o cresci- surpresa, com o grande número de negros
mento natural da população negra imprimiu um em relação ao de brancos. Apesar de co-
perfil singular na estrutura demográfica de Minas. nhecerem algumas estimativas de popula-
As pesquisas históricas têm destacado ção, fornecidas pelos primeiros viajantes ou
essas características e contestado a visão tradi- por informações divulgadas em seu país,
cionalmente construída sobre a população ne- recebiam um forte impacto provocado pela
gra, que geralmente é retratada como um gru- preponderância de negros nas ruas, lojas,
po que se encontrava em situação de relativo nas casas, em qualquer lugar aonde iam.
isolamento social, ligado apenas à escravidão. Percebiam também que havia, além dos
Essas descrições passaram a ser questionadas e escravos, negros livres e um grupo signifi-
as pesquisas começaram a demonstrar que os cativo de mulatos ou mestiços destes com
negros estavam em contato com os mais vari- brancos e índios. (p. 10)
ados aspectos da vida social e, na medida do
possível, disputando os diferentes espaços. No Brasil e, sobretudo, na província de
No que se refere à população mineira, uma Minas Gerais, os viajantes eram rapidamente
das fontes de pesquisa que mais tem alimentado atirados a uma realidade que apresentava os
a investigação dos pesquisadores são os relatos negros como ampla maioria da população, e
de viajantes. O trabalho com esse material revela esses indivíduos se encontravam nos mais dife-
que um dos aspectos que mais chamou a aten- rentes lugares sociais. Como aponta o alemão

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009 587

Untitled-3 587 16/12/2009, 13:59


Hermann Burmeister (1980), que esteve em Quando consideramos a realidade da
Minas Gerais no final da primeira metade do educação em Minas Gerais, fica claro que essa
século XIX: lei era algo que estava apenas no plano das
intenções, pois o governo não dispunha dos
[...] à medida que penetramos no interior recursos necessários ao seu cumprimento.
do país, porém, aumenta a preponderância Mesmo considerando que a gratuidade e a
da população negra e mista e numa povoa- obrigatoriedade da instrução eram elementos
ção bem afastada já podemos ver um simbólicos, é preciso reconhecer o papel repre-
subdelegado ou juiz de paz, um mestre-es- sentado pela educação no imaginário dos indi-
cola ou um cura mulato ou preto. (p. 271) víduos responsáveis pela elaboração da legisla-
ção, ou seja, a ideia de que a educação era um
Pretos e mulatos estavam nos mais variados instrumento importante para civilizar o povo
papéis, inclusive na escola na condição de profes- (Faria Filho; Gonçalves, 2004).
sores. O olhar do viajante é de estranhamento Portanto, é necessário reconhecer que o
diante desse arranjo social, mas é um testemunho estabelecimento da gratuidade e da obriga-
da presença e da capacidade de circulação dos toriedade foi uma iniciativa importante em re-
negros na sociedade mineira. Diante desse quadro, lação ao desenvolvimento da educação. Entre-
é preciso colocar em questão a visão tradicional- tanto, fora essa iniciativa no campo legal, há
mente admitida sobre a escola, que geralmente é outras que também indicam a importância da
tratada como um espaço ocupado exclusivamen- educação para o processo de organização da
te por alunos brancos. É preciso avaliar até que sociedade mineira. Entre elas, destaca-se a cria-
ponto as características da população se refletiam ção da escola normal para formação de professo-
nas escolas, fazendo delas espaços tão diversos res, as tentativas de aperfeiçoamento dos métodos
como o da sociedade daquela época. pedagógicos com vistas a atingir um número
A superioridade numérica dos negros é maior de alunos, a ampliação das escolas para o
um indicativo que aponta para a necessidade de sexo feminino e o crescente investimento para
se levar em consideração os aspectos relativos à difusão das escolas pelas mais diversas regiões.
população nas abordagens que se voltam para o Portanto, trata-se de um período em que houve o
entendimento do processo de constituição da desenvolvimento de aportes legais e materiais com
educação em Minas Gerais. No entanto, além objetivo de ampliar e difundir a instrução elementar
disso, é preciso também considerar algumas em meio à população mineira.
características relativas ao desenvolvimento da Diante desse fato, cabe perguntar qual
educação no século XIX. era a população que deveria ser educada. Ou
A historiografia vem demonstrando que antes, qual o nível de participação da popula-
Minas Gerais foi uma das regiões brasileiras que ção negra nesse movimento de difusão da edu-
mais se destacou em relação ao desenvolvimen- cação na província de Minas Gerais? Ou ainda,
to de iniciativas no campo educacional. Prova qual o nível de aproximação entre o perfil da
disso, foi a aprovação da lei n. 13 que, em 1835, população e o público que se encontrava nas
estabeleceu de forma pioneira a gratuidade e a escolas mineiras?
obrigatoriedade da instrução elementar. A Cons- Para tentar responder a essas questões,
tituição do Império havia estabelecido apenas a tomaremos para análise um conjunto de docu-
gratuidade da instrução, mas a província de Mi- mentos relativos à instrução pública, com des-
nas foi além e estabeleceu não só a gratuidade taque para algumas listas de professores que
como também a obrigatoriedade, determinando registraram os alunos, classificando-os a partir
inclusive multas para aqueles que não cumprissem de critérios raciais. Utilizaremos também um
essa exigência. conjunto de listas nominativas de habitantes

588 Marcus FONSECA. O predomínio dos negros as escolas de Minas Gerais...

Untitled-3 588 16/12/2009, 13:59


que, no início dos anos de 1830, registraram a co eram de latim e filosofia racional. Elas eram
população de alguns distritos, assinalando as dos seguintes distritos: sete eram da Vila de
crianças que estavam na escola. Por meio das Paracatu do Príncipe, uma do Arraial de Desem-
listas de professores e das listas nominativas, boque, uma do Arraial de Nossa Senhora da Boa
tentaremos produzir um perfil racial das esco- Morte e cinco do Colégio de Bom Jesus de
las mineiras durante as primeiras décadas de Matosinho, em Congonhas do Campo.
funcionamento do governo provincial e con- A forma como ocorre o registro do per-
frontaremos essas informações com outras fon- tencimento racial nessas listas é variável, mas
tes, que também permitem avaliar o nível de ocorre a partir de algumas categorias específi-
participação dos negros nos espaços educaci- cas. Em geral, há o registro de três grupos de
onais. Entre essas fontes, destacam-se os rela- indivíduos – dois são comuns a todas as listas:
tos de viajantes que estiveram em Minas Gerais os brancos e os pardos. Além desses, há outro
durante a primeira metade do século XIX. grupo que é denominado com termos variáveis
e aparece em algumas listas como crioulos e,
O perfil racial das escolas a em outras, como pretos, negros ou mestiços.
partir das listas de professores Os registros dos professores revelam
certa hierarquia na organização das listas e em
Durante a primeira metade do século geral os brancos são apresentados em primei-
XIX, o governo da província de Minas Gerais ro lugar; em seguida, os pardos; e finalmente
demonstrou a preocupação com uma interven- aqueles que são denominados de pretos, criou-
ção sistemática na área da Educação e desen- los ou termos afins.
volveu uma série de iniciativas que se configu- A regularidade dessa hierarquização nes-
raram como uma política de instrução pública. se conjunto de listas nos leva a crer que o
Uma dessas iniciativas foi o progressivo controle pertencimento racial era um componente da
das aulas públicas e particulares visando à prática pedagógica e que havia por parte dos
construção de dispositivos que permitissem professores expectativas diferenciadas em rela-
conhecer a realidade educacional da província ção aos alunos negros e brancos. Para efeito de
e também compreender as demandas que eram análise, agregaram-se os dados relativos a pre-
necessárias para a ampliação do atendimento do tos, pardos, crioulos, cabras para composição
serviço de instrução pública. do grupo racial representados pelos negros,
Uma das consequências desse processo porém não se deixou de registrar essa diversi-
foi a exigência de que os professores que minis- dade terminológica, tentando apreender o sig-
travam aulas públicas e particulares enviassem ao nificado de cada um desses termos utilizados na
governo as listas com os seus alunos. Estas qualificação da população negra.
deveriam registrar as crianças que frequentavam Podemos encontrar nas listas elementos
as escolas e algumas delas apresentam a condi- bastante sutis que corroboram essas suspeitas.
ção racial dos alunos. O número de listas que Na lista do professor Thomas Francisco Pires,
contém o pertencimento racial dos alunos não é que possuía uma escola de primeiras letras na
muito expressivo, mas se trata de um importante Vila de Paracatu, em 1823, havia 31 alunos, e
ponto de partida para avaliar o nível de relação ele os registrou a partir do nome, sobrenome,
dos negros com as escolas mineiras. pertencimento racial e o nível de desenvolvi-
As listas que contêm os registros sobre o mento escolar. Essas são as informações que
pertencimento racial de alunos se referem a estão contidas na lista desse professor, e so-
quatorze aulas públicas e particulares de dife- mente em três casos encontramos um julgamen-
rentes pontos da província. Nove dessas aulas to em que ele fez referência às qualidades dos
eram de escolas de instrução elementar e cin- seus alunos. Dois alunos brancos foram quali-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009 589

Untitled-3 589 16/12/2009, 13:59


ficados a partir da habilidade para as letras, ceberam esse tipo de classificação, e quatro de-
como no caso de Joaquim de Mello Franco, les foram apontados com a distinção de que
“branco, já escreve letra fina e lê muita bem “aprendem a ler e escrever com desembaraço”.
letra redonda, com um ano e meio de escola e Nenhum aluno negro recebeu esse tipo de dis-
é muito ágil para as letras e já conta”. Essa tinção, ao contrário, foram na maioria dos casos
qualificação positiva se repete para outro aluno registrados como “sem habilidade” (como nos
branco, e havia um terceiro aluno, pardo, que foi casos acima) ou “lê e escreve mal” ou “sofrível”.
qualificado de forma diferente pelo professor. Ele O número de listas que utilizamos não
é tido como estúpido e com habilidades apenas possibilita uma análise conclusiva em relação à
para as atividades agrícolas (cultura): “Jose manifestação de preconceito racial nas práticas
Ferreira Lima, pardo com ano e meio de escola pedagógicas das escolas mineiras do século
não lê por ser muito estúpido e não ter habili- XIX. No entanto, a recorrência com que se dis-
dade nenhuma se não para cultura”. tribui os julgamentos negativos e positivos para
Pode ser que o aluno José Ferreira Lima os diferentes grupos raciais é um indício impor-
dividisse suas atividades escolares com trabalhos tante na avaliação da conduta das escolas desse
ligados às práticas agrícolas e isso incidiu no período. Além disso, é preciso considerar que o
julgamento do professor, que viu nele um indi- preconceito racial era um elemento muito pre-
víduo “estúpido” e inábil para o desenvolvimento sente na sociedade mineira e é pouco provável
das atividades escolares. De qualquer forma, é a sua ausência nos espaços escolares, onde,
estranha a maneira como o professor constrói o como indicam as próprias listas, havia uma
seu julgamento que, na verdade, tem o forma- reunião dos diversos grupos que compunham a
to de uma sentença que indica uma determina- população mineira.
ção sobre as potencialidades do aluno. Essa aproximação entre o perfil da po-
Esse tipo de classificação se repete no re- pulação e o das escolas pode ser vista no
gistro do professor Thomé José dos Santos Ba- Quadro 1, no qual procuramos destacar o per-
talha, também da Vila de Paracatu, em 1823. fil racial de cada uma das aulas dos professo-
Apenas os alunos pardos e crioulos foram des- res de instrução elementar que registraram a cor
qualificados, como Euzebio de Mattos Lima, dos alunos. As listas utilizam três formas de
“crioulo, muito sem habilidade, com 4 anos e classificação dos grupos raciais e, no geral, os
meio de escola, não lê nada, escreve muito mal”, negros são representados a partir de dois ter-
ou ainda Antonio Soares Roiz, “pardo, sem ha- mos: pardo, que aparece em todas as listas, e
bilidade alguma por que nada compreende, ape- outro que é variável (crioulo, mestiço, preto,
sar de estar na escola a mais de um ano”. Na negro). Para efeito de apresentação dos dados,
lista desse professor, os alunos brancos não re- mantivemos o termo pardo e utilizamos criou-

590 Marcus FONSECA. O predomínio dos negros as escolas de Minas Gerais...

Untitled-3 590 16/12/2009, 13:59


lo como uma forma de agregar os demais ter- de Matosinho, que possuía um perfil altamen-
mos de designação dirigidos aos negros. te elitizado, congregando alunos das mais di-
Das nove listas das aulas de instrução versas regiões do país em regime de internato
elementar, cinco eram particulares e quatro eram e externato, e tinha um perfil semelhante ao
públicas. Elas são de localidades diferentes, sen- famoso Colégio do Caraça, que era inclusive
do cinco delas da Vila de Paracatu. Nas aulas de administrado pelos padres da mesma congrega-
cinco professores, os alunos registrados como ção. Dos 46 alunos que figuram na lista do
negros (pardos e crioulos) aparecem em núme- professor desse colégio, 21 eram originários de
ro superior aos brancos; em uma delas, eles se Minas Gerais e 25, de outras províncias, prin-
encontram na mesma proporção; e em apenas cipalmente São Paulo e Rio de Janeiro.
três, os brancos são maioria. O conjunto das nove listas dos professo-
Essa superioridade numérica dos alunos res de primeiras letras, que atuaram em Minas
negros merece toda atenção, pois embora esse Gerais nos anos de 1820 e início de 1830,
conjunto de listas seja pouco representativo em revela que os negros compunham a maioria dos
relação à província, é um registro importante alunos presentes em suas aulas e, mesmo quan-
acerca do comportamento dos negros em face do não eram a maioria, estavam presentes em
dos processos educacionais. Por outro lado, número próximo ao dos alunos brancos.
devemos ficar atentos para o fato de que a Essa realidade se modifica quando con-
representação de negros e de brancos não é sideramos as listas que apresentam alunos que
muito desproporcional nas aulas que registram frequentavam os níveis de ensino acima da
um pequeno número de alunos. Ou seja, em escola de instrução elementar. Das listas que
aulas onde há menos de dez alunos, como em registraram o pertencimento racial dos alunos,
Nossa Senhora de Boa Morte ou em Paracatu cinco se referem aos níveis mais elevados do
(na aula do professor Domingos da Costa Braga) ensino e nelas encontramos um perfil racial
ou, ainda, na aula de Tomé Ferreira Brito, a diferenciado daquele que foi descrito para as
superioridade de um dos grupos não é muito escolas de primeiras letras. As cinco listas apre-
acentuada e o número de alunos negros e de sentam dados relativos a duas escolas: uma, de
brancos é sempre próximo. O mesmo pode ser um professor de latim, da cidade de Paracatu,
verificado em relação às aulas em que os ne- em 1823, e quatro do Colégio Bom Jesus de
gros são maioria, pois apesar de sua superiori- Matosinho, em 1831, sendo três aulas de latim
dade numérica, não há uma grande diferença e uma de filosofia racional.
em relação aos brancos. O professor de latim, da cidade de Paracatu,
Apenas na aula do professor Antônio foi denominado apenas com o nome de João. Sua
Alvim de Mello encontramos uma desproporção escola era pública e tinha no total dezoito alunos:
acentuada em favor de um dos grupos, pois de cinco pardos e treze brancos. As listas do Colégio
um total de 46 alunos, apenas três eram negros. Bom Jesus de Matosinho apresentam aulas que
Trata-se da única lista em que poderíamos dizer eram regidas por quatro professores e se referem
que os alunos negros estavam sub-representados à Gramática Latina do Primeiro Ano, com 43 alu-
e em concordância com a visão tradicionalmente nos; Gramática Latina do Segundo Ano, com 19
construída pela historiografia, que tende a regis- alunos; Gramática Latina do Terceiro Ano, com
trar a presença dos negros nas escolas como algo 14 alunos; e Filosofia Racional, com 18 alunos.
esporádico ou casual (Fonseca, 2007). Os negros estão sub-representados nelas e há
No entanto, para compreender a sub- uma enorme desproporção entre estes e os que
representação dos negros nessa lista, é preciso foram registrados como brancos: os alunos são,
considerar que essa era uma das escolas mais no total, 94 para as quatro aulas do colégio e
importantes da província: o Colégio Bom Jesus apenas um aluno foi registrado como pardo.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009 591

Untitled-3 591 16/12/2009, 13:59


Portanto, a sub-representação dos ne- Para tornar mais clara as informações contidas
gros no conjunto das listas relativas à escola nessa documentação, transcrevemos no Quadro 2
secundária é bastante elevada, indicando que o registro de um domicílio do distrito de Cacho-
havia uma relativa oposição entre o perfil des- eira do Campo, de 1831.
sas aulas e o daquelas que compunham o uni- Como pode ser visto no domicílio que
verso das escolas de instrução elementar. transcrevemos, no campo que se refere à ocu-
Os dados que se referem às escolas se- pação, algumas listas nominativas registraram os
cundárias devem ser tomados como indícios indivíduos que se encontravam em processo de
que apontam para existência de um perfil dife- escolarização. Portanto, a seleção dessas listas
renciado entre essas escolas e as de primeiras permite a elaboração de um perfil racial das
letras. Ou seja, considerando os dados das lis- escolas de forma semelhante ao que construí-
tas de professores e o contraponto entre as mos a partir dos registros produzidos pelos
aulas de primeiras letras e as da escola secun- professores, pois quando cruzamos as informa-
dária, percebe-se a tendência para uma inver- ções contidas no campo referente à ocupação
são do perfil racial das escolas que, no nível com aquele que registra a qualidade, é possí-
elementar, eram marcadas por uma presença vel avaliar o grupo racial de cada indivíduo que
majoritária de negros, e isso não era acompa- foi assinalado na condição de aluno.
nhado pelos níveis mais elevados do ensino, Para elaboração desse perfil racial, sele-
nos quais predominavam os brancos. cionamos as listas que registraram pelo menos
24 crianças na escola, pois, de acordo com a
O perfil racial das escolas legislação do período, esse era o número míni-
mineiras a partir das listas mo estabelecido pelo governo para justificar a
nominativas de habitantes existência de uma aula pública em um distrito
de Minas. Esse critério foi aplicado às listas
As listas nominativas de habitantes se nominativas que foram produzidas no início da
constituem como uma documentação que se década de 1830 e isso implicou na seleção das
refere às primeiras tentativas de contagem da listas de 11 distritos. Dez desses distritos esta-
população de Minas Gerais. Trata-se de um con- vam situados na região central da província e
junto de listas que registraram a população de apenas um deles na região sul (São Gonçalo).
várias localidades mineiras a partir dos domicíli- Para garantir uma margem de controle maior
os. Tendo como ponto de partida os domicílios, sobre os dados, eliminamos o distrito que es-
as listas nominativas registraram o nome de cada tava na região sul e utilizamos apenas os dez
um dos seus membros, a qualidade (branco, pre- distritos que se encontravam na parte central da
to, pardo, crioulo, africano, índio), a condição dos província e que pertenciam às Comarcas de
indivíduos (livres ou escravos); a idade, o estado Ouro Preto e Rio das Velhas. São eles: São
civil e, por último, a ocupação, ou seja, a ativida- Bartolomeu, Cachoeira Campo, Catas Altas, Pas-
de exercida por cada uma das pessoas listadas. sagem de Mariana, Itaverava, Redondo, Bom

592 Marcus FONSECA. O predomínio dos negros as escolas de Minas Gerais...

Untitled-3 592 16/12/2009, 13:59


Fim (Comarca de Ouro Preto), Matosinhos, Nos distritos que registraram apenas bran-
Santa Luzia, Caeté (Comarca do Rio das Velhas). cos e pardos frequentando escolas de instrução
Em algumas listas nominativas, o per- elementar, temos uma superioridade absoluta dos
tencimento racial das crianças que foram regis- chamados pardos, que eram 87,2% dos alunos de
tradas como na escola foi assinalado a partir da Cachoeira do Campo e 67,7% dos de Bom Fim.
utilização de apenas duas formas de classifica- Na maioria dos distritos que compõem
ção: brancos e pardos. Esse é o caso de distri- nossa amostra, a classificação racial daqueles que
tos como Cachoeira do Campo e Bom Fim, onde estavam na escola ocorreu a partir do uso de um
a população negra era subdividida em quatro número maior de categorias raciais. Em cinco dis-
tipos diferentes de classificação (pretos, pardos, tritos, encontramos as categorias mais tradicionais
crioulos e cabras), mas na escola, encontramos em relação à população daquele período, ou seja,
apenas os chamados pardos. Como já foi apon- aquela que subdividia o grupo representado pe-
tado por vários pesquisadores (entre eles Mattos, los negros em pardos e crioulos1.
1998; Lima, 2003), pardo é uma das formas de Nos distritos em que o registro das cri-
designação da população negra e seu significado anças ocorria a partir das categorias mais tra-
está muito além da miscigenação, pois é possí- dicionais, nas quais os negros eram subdividi-
vel encontrar indivíduos que eram classificados dos em dois grupos (pardos e crioulos), havia
em alguns documentos como pardos e em ou- um predomínio absoluto deste em meio àque-
tros como pretos ou crioulos. Aliás, como ocorre les que foram listados como na escola, ou seja,
com alguns alunos que figuram nas listas de
professores e nas listas nominativas de habitan- 1. No século XIX, crioulo era um termo utilizado para designar negros
tes que utilizamos. nascidos no Brasil.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009 593

Untitled-3 593 16/12/2009, 13:59


em todos os distritos os negros compunham a Quando agregamos os dados relativos aos
maioria dos alunos. Isso fica claro quando negros, temos a confirmação de sua superiorida-
agregamos os dados relativos aos crioulos e de numérica nas escolas de instrução elementar,
pardos, que em quase todos os distritos repre- pois em Itaverava eles eram 61,2%; em Santa
sentaram praticamente três quartos do alunado: Luzia, 83,8%; e em Matosinhos, 92,1%.
em Catas Altas eles representavam 74,4%; em Os dados relativos aos negros e brancos
São Bartolomeu, 71,4%; em Redondo, 76,6%; que foram registrados nas listas nominativas
em Passagem, 83,8%; e em Caeté, 66,2%. como frequentando aulas de instrução elemen-
Temos ainda outro conjunto de listas tar acompanham as características da população,
nominativas que apresentam formas de registro ou seja, a superioridade dos negros na popula-
que são ainda mais diversificadas, pois além dos ção se reproduzia também na escola elementar
três tipos de classificação que vimos anterior- que era majoritariamente frequentada por crian-
mente, elas também trazem um grupo de crian- ças desse grupo racial.
ças negras que foram registradas por meio do Clotilde Paiva (1996) utilizou os dados
termo cabra. Esse termo é de difícil compreen- censitários referentes à década de 1830 para es-
são, mas há indícios de que seja uma forma de tabelecer uma estimativa da população livre de
designar os negros que tinham uma situação de Minas e registrou o número de 269.916 indiví-
proximidade com a escravidão, ou seja, filhos duos nessa condição. Segundo ela, essa popu-
de ex-escravos (Fonseca, 2007). lação era composta por 59% de negros (pardos,

594 Marcus FONSECA. O predomínio dos negros as escolas de Minas Gerais...

Untitled-3 594 16/12/2009, 13:59


crioulos, africanos) e 41% de brancos. Quando sentavam uma participação na escola em nível
acrescentamos à população livre os dados que superior à sua presença na população em todos
ela apresenta sobre o plantel de escravos — os distritos.
127.366 indivíduos, quase metade da população A população negra livre era o segmento
livre —, não resta dúvida quanto à presença que dominava a estrutura demográfica de Mi-
hegemônica dos negros na população mineira. nas Gerais, e os distritos que tomamos para
Isto fica mais evidente quando confron- análise demonstram isso de forma clara. Em
tamos os dados sobre a população e os que se nenhum deles, os negros compunham um grupo
referem às escolas. Como pode ser visto nos inferior a 40% da população, chegando mesmo
Gráficos 4 e 5, nos quais apresentamos os ín- a compor um índice próximo a 70% em distri-
dices de presença de brancos e negros na tos como Cachoeira do Campo e Passagem.
população e nas escolas de cada um dos dis- Outro segmento que se destacava era aquele
tritos que tomamos para análise. que era composto pelos negros escravizados
Os brancos apresentam um nível de par- que, em média, figuravam na faixa dos 30% da
ticipação na população que geralmente não população de cada um dos distritos. No entan-
ultrapassa o índice de 20%. Apenas o distrito to, para confrontar os dados relativos à escola
de Redondo, com 31%, é uma exceção a esse e à população, desconsideramos os escravos,
padrão. A participação dos brancos na popula- pois a eles era proibida a frequência às aulas
ção era pequena e a sua presença nas escolas públicas e não se fazem presentes nos registros
era no geral pouco superior ao índice de par- das listas nominativas na condição de alunos.
ticipação na população. Apenas nos distritos de Em relação ao nível de presença nas escolas,
Redondo e Matosinhos o seu índice de presen- encontramos uma regularidade ainda maior que
ça na população era superior ao da escola. Em aquela que descrevemos para os brancos, pois
todos os demais distritos, o índice de presen- em todos os distritos o índice de presença nas
ça na escola é superior àquele que encontra- escolas é superior àquele que encontramos para
mos em relação à população. a população.
Quando consideramos esses dados em Portanto, os dados contidos nas listas
relação à população negra livre, encontramos nominativas confirmam aquilo que havíamos
uma regularidade ainda maior, pois estes apre- descrito a partir das listas de professores, nas quais

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009 595

Untitled-3 595 16/12/2009, 13:59


encontramos uma presença majoritária de negros Utilizamos como critério para seleção
nas aulas de primeiras letras. O que foi constata- das listas nominativas aquelas que registraram
do nas listas de professores é percebido de for- um número superior a 24 indivíduos classifica-
ma mais detalhada nas listas nominativas de ha- dos como na escola elementar, que era o míni-
bitantes, nas quais foi possível constatar uma mo exigido pela lei mineira para que existência
superioridade numérica dos negros nas escolas e de uma aula pública. Os estudantes ligados aos
uma aproximação entre esses dados e aqueles que níveis mais elevados do ensino não foram to-
se referem à população, ou seja, o perfil das es- mados como critério para seleção das listas,
colas era tão diverso quanto o da população. Em mas elas registraram a presença desses indiví-
meio a essa diversidade, merecem destaque os duos. Os responsáveis pela elaboração das lis-
dados relativos aos negros livres que sempre se tas atribuíram, à ligação com a escola elemen-
faziam presentes nas escolas em nível superior à tar, o status de uma ocupação e procederam de
sua presença na população. forma semelhante com os que frequentavam
O comportamento da população negra em estudos maiores, que foram registrados na con-
relação à escola é uma questão desafiadora, mas dição de estudante.
esses dados podem indicar que, em Minas, esse O número daqueles que foram registrados
foi o grupo que de forma mais efetiva procurou como estudantes não é elevado e alguns distri-
estabelecer contato com as escolas de instrução tos, como Bom Fim e Matosinho, sequer regis-
elementar. Isso pode ser entendido como uma traram indivíduos nessa condição. As listas
tentativa de afirmação no espaço social e, tam- nominativas que os registraram não os trazem
bém, uma maneira de certos extratos da popu- em número superior a sete. Para uma visão mais
lação negra demarcarem seu distanciamento do precisa sobre esses dados, registramos no Qua-
mundo dos escravos ou do domínio dos códigos dro 3 o número dos estudantes nos distritos que
de conduta das pessoas livres. Ou seja, pode ser apresentavam indivíduos nessa condição2.
que os negros livres — que era um grupo de
pessoas que sempre podia ser confundido com
os escravos – foram os que mais rapidamente
compreenderam o valor social da experiência
escolar e a utilizou como mecanismo de afirma-
ção sociorracial.
Essa hipótese torna-se ainda mais prová-
vel quando consideramos o contraponto entre
o perfil das escolas de instrução elementar e o
da escola secundária. No momento em que
analisamos as listas de professores, constatamos Não fizemos uma avaliação das listas
a superioridade dos negros nas aulas de primei- nominativas a partir dos registros dos estudan-
ras letras e constatamos que havia uma inver- tes, pois, como já assinalamos, a prioridade de
são acerca do perfil racial dos alunos quando escolha foi definida a partir dos indivíduos vin-
consideramos os níveis mais elevados do ensi- culados à instrução elementar. Portanto, não te-
no. As listas, em que os professores registraram mos como avaliar o nível de representatividade
os alunos das aulas de latim e filosofia racio- desses dados em relação à província. No entanto,
nal, indicaram a existência de um perfil racial se julgarmos pelo regime de distribuição das
inverso ao da instrução elementar, ou seja, se
neste havia um predomínio de negros, naque- 2. Não consideramos os dados do distrito de Redondo, pois na lista
nominativa desse distrito, o Colégio Bom Jesus de Matosinhos foi registrado
le, que representava os níveis mais avançados como um domicílio e todos os seus alunos, inclusive os da escola de primei-
do ensino, os brancos predominavam. ras letras, foram registrados como estudantes.

596 Marcus FONSECA. O predomínio dos negros as escolas de Minas Gerais...

Untitled-3 596 16/12/2009, 13:59


aulas durante os primeiros anos do governo pro- aos aspectos raciais, cuja principal característi-
vincial, em que a instrução elementar existia em ca era a diversidade do público das escolas, com
um nível precário em relação ao atendimento da destaque para presença majoritária dos negros na
demanda, é possível imaginar que isso devia ser instrução elementar. Nesse sentido, a escola ele-
mais precário em relação aos estudos mais avan- mentar pode ser entendida como um instrumento
çados, que certamente tinham um nível de difu- de afirmação social para determinados extratos da
são ainda mais baixo. população negra que buscava uma inserção mai-
Quando reunimos as pessoas que foram or no espaço social.
classificadas como estudantes em todas as listas Os aspectos demográficos da sociedade
nominativas, temos um total de 32 indivíduos. mineira também podem ser relacionados com o
Destes, apenas 6 não foram classificados como processo de organização social no que se referia
brancos e receberam a designação de pardos. ao estabelecimento de limites para os diferentes
Esses dados demonstram que havia um predomí- grupos raciais. Isso estaria relacionado com a
nio dos brancos nesse nível de ensino. Isso pode configuração do perfil racial das escolas que, no
ser tomado como um reforço em relação ao que nível elementar, era marcada por uma presença
já havia sido indicado pelas listas de professores, maior de negros e, no secundário, por um número
ou seja, uma oposição entre o perfil racial do maior de brancos. Essa inversão pode ser inter-
público presente na instrução elementar e aque- pretada como uma indicação de que havia uma
le que compunha o universo representado pelos atitude diferenciada desses dois grupos em face
estudantes do nível secundário. do processo de escolarização, ou seja, os brancos
Essa inversão indica que os negros se utilizavam a escola como espaço de formação e
ligavam ao nível mais elementar do ensino e os legitimação da sua condição de elite, enquanto os
brancos dominavam os níveis mais elevados, negros a utilizavam como uma forma de afirma-
que representava um caminho para o ensino ção e promoção sociorracial, sendo que para isso
superior. Portanto, isso também pode ser toma- não era necessário (ou mesmo possível) ultrapas-
do como um indicativo em relação às diferen- sar o nível do ensino elementar.
tes atitudes desses dois grupos em relação ao Portanto, podemos dizer que as formas
processo de escolarização. Os brancos utiliza- tradicionais de entendimento em relação ao pro-
vam a escolarização como elemento de conso- cesso de escolarização, que pressupõe a ausên-
lidação da sua condição de elite e, para isso, cia dos negros em espaços escolares, não se
procuravam percorrer todos os níveis dos pro- confirmam em relação a Minas Gerais do século
cessos de educação formal. Por outro lado, os XIX. A presença dos indivíduos originários do
negros utilizavam a escolarização como forma grupo racial representado pelos negros chegava
de agregar um status social que os distancias- mesmo a ser bastante acentuada nas escolas de
se do mundo da escravidão e, para isso, bastava instrução elementar. Isso foi constatado na docu-
a inserção na escola elementar como um meio mentação censitária, na listas dos professores e,
de acesso à cultura letrada. também, em outras fontes de pesquisa como no
relato do viajante alemão Hermann Burmeister
Considerações finais (1980), que esteve em Minas por volta dos anos
de 1850 e fez o seguinte comentário sobre um
O conjunto de dados que exibimos e in- distrito mineiro: “em Congonhas, vivia um mes-
terpretamos a partir dos aspectos demográficos tre-escola preto, que gozava de toda a conside-
relativos a Minas Gerais permite afirmar, com ração, mas seu instituto era particular e frequen-
alguma segurança, que havia uma correspon- tado por crianças de cor” (p. 271, grifos nossos).
dência entre as características da população e o No diário de uma normalista que estudou
público das escolas. Isso se verifica em relação em Diamantina no final do século XIX, encontra-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009 597

Untitled-3 597 16/12/2009, 13:59


mos uma passagem em que há uma descrição da deração dos negros como sujeitos. Na verdade,
escola que se assemelha ao relato do viajante. essa é uma atitude que perpassa toda a histo-
Trata-se do diário de Helena Morley (1998) que, riografia, pois, segundo Correa (2000),
entre outras coisas, narra suas experiências na
escola normal. Embora esse registro documental [...] qualquer interpretação sobre o negro
esteja relativamente distante do período que se na historiografia brasileira está fadada a
constitui como foco de nossa análise, ele con- abordá-lo a partir da condição de escravo
firma o que constatamos para o período relati- [...], assim, as circunstâncias históricas do
vo às décadas iniciais do governo provincial. negro condicionaram sua subjetividade
Helena Morley (1998) descreve sua pri- àquela do escravo. (p. 104)
meira experiência como professora, aos 15
anos, quando foi substituir uma mestra, e re- A associação entre negros e escravos ma-
gistra sua percepção da escola destacando a nifesta-se na historiografia educacional a partir de
condição racial dos alunos: “o que será de mim uma interpretação que não concebe como possí-
se for obrigada a largar a Escola, estudo, mi- vel a relação entre os negros e os processos de
nhas colegas e tudo para ir ensinar a meninos educação formal. Para a historio-grafia e, em par-
pretos e burros no Rio Grande?” (p. 275). ticular, a historiografia educacional, os negros e as
A inexperiência e baixa expectativa da escolas tendem a ser pensados a partir de uma
normalista em relação aos alunos fizeram com relação em que um elemento exclui o outro, ou
que ela não resistisse a um único dia de aula. Ao seja, os membros desse grupo, mesmo livres, só
comunicar à mestra da escola – que era também poderiam ser entendidos a partir das condições e
sua tia – que não tinha condições de lhe subs- dos limites impostos por uma ideia de escravidão
tituir, obteve a seguinte resposta quando propôs que os reduzia a condição de objetos. Assim, se de
o nome de outra professora como substituta: “O um lado os negros não são vistos como sujeitos,
quê? Não volta? Então quer me desiludir e me a escola tende sempre a ser apresentada como uma
convencer de que uma mulata como Zinha é instituição promotora do desenvolvimento cultural
mais capaz do que você?” (p. 279). e da modernização. Dessa forma, esses dois ele-
A professora de nome Zinha foi quem se mentos só poderiam ser pensados em termos de
tornou a substituta da tia de Helena Morley na uma exclusão, ou seja, seria inconcebível imaginar
escola e, pelo menos durante o período da subs- um processo de escolarização dos negros e que a
tituição, tivemos uma situação semelhante à des- escola tivesse qualquer significado para os mem-
crição do viajante Burmeister: alunos negros que bros desse grupo. Nesse sentido, seria incompatí-
tinham uma professora da mesma condição racial. vel pensar uma relação entre os negros e os pro-
A descrição do viajante e da normalista de cessos de escolarização.
Diamantina confirmam aquilo que já havia sido Essa concepção parece estar em desacordo
constatado por meio da documentação censitária com a realidade da província de Minas Gerais, pois
e da documentação da instrução pública, ou seja, isso pode ser deduzido dos dados que indicam uma
salas de aulas em que os negros eram maioria ou presença regular dos negros nas escolas do século
mesmo a totalidade dos alunos. XIX. Não podemos extrair dessa presença conclusões
A história da educação tem descrito essa efetivas sobre o significado que a escolarização
situação de forma muito diversa e, às vezes, ig- adquiriu em meio à população negra. Isso precisa
nora a questão relativa ao perfil racial das esco- ser investigado por pesquisas específicas. No entan-
las como um problema de pesquisa ou até mes- to, os dados que utilizamos indicam que em uma
mo nega a relação dos negros com espaços es- sociedade na qual a escravidão estabelecia limites
colares. Essa atitude presente na historiografia edu- precisos para os negros, a escola podia se tornar
cacional tem como pressuposto a desconsi- uma importante estratégia de afirmação social.

598 Marcus FONSECA. O predomínio dos negros as escolas de Minas Gerais...

Untitled-3 598 16/12/2009, 13:59


Documentos consultados

Listas nominativas de habitantes

Arquivo Público Mineiro: Inventário Sumário dos Mapas de População – Documentos Microfilmados – 07 rolos.

Arquivo Público Mineiro: Fundo Presidente de Província – Mapas de População – Documentos Microfilmados – 12 rolos

Documentos da Instrução Pública

Arquivo Público Mineiro: Seção Provincial - Fundo da Instrução Pública – IP 1/42, consultadas da caixa 01.

Arquivo Público Mineiro: Seção Provincial - Fundo da Instrução Pública – IP 3/2, Caixa 01.

Relatos de viagens

BURMEISTER, H. Viagem ao Brasil através da província do Rio de Janeiro e Minas Gerais Gerais: visando especialmente a história
natural dos distritos auri-diamantíferos. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1980.

HALFELD, H. G. F.; TSCHUDI J. J. von. A província brasileira de Minas Gerais


Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1998.

MORLEY, H. Minha vida de menina


menina. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Referências bibliográficas

BERGAD, L. W. Escra vidão e história econômica


Escravidão econômica: demografia de Minas Gerais (1720-1880). Bauru: EDUSC, 2004.

CORREA, S. M. de S. O negro e a historiografia brasileira. Revista Ágora


Ágora. Santa Cruz do Sul, n. 1, 2000.

FARIA FILHO, L. M.; GONÇALVES, I. Processo de escolarização e obrigatoriedade escolar: o caso de Minas Gerais (1835-1911).
In: FARIA FILHO, L. M. (Org.). A infância e sua educação
educação: materiais, práticas e representações (Portugal e Brasil). Belo
Horizonte: Autêntica, 2004. p. 159-188.

_____. Pretos, pardos, crioulos e ca bras nas escolas mineiras do século XIX
cabras XIX. 2007. Tese (Doutorado)- Faculdade de
Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.

LEITE, I. B. Antropologia da viagem


viagem: escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

PAIVA, C. A. População e economia nas Minas Gerais do século XIX


XIX. 1996. Tese (Doutorado)- Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.

Recebido em 23.04.09
Aprovado em 27.08.09

Marcus Vinícius Fonseca, mestre em Educação pela UFMG, doutor em Educação pela USP, é professor adjunto do
Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n.3, p. 585-599, set./dez. 2009 599

Untitled-3 599 16/12/2009, 13:59

Você também pode gostar