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HOBSBAWM, Eric. A Invenção das Tradições.

São Paulo, Paz e Terra, 2015

“O termo ‘tradição inventada’ é utilizada num sentido amplo, mas nunca indefinido.
Inclui tanto as ‘tradições’ realmente inventadas, construídas e formalmente
institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num
período limitado e determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se
estabeleceram com enorme rapidez.” (pag. 7)

“Por tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas


por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica,
visam inculcarcertos valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado histórico
apropriado.” (pag. 8)

“É necessário estabelecer uma segunda diferença, menos importante, entre a ‘tradição’


no sentido a que nos referimos e a convenção ou rotina, que não possui nenhuma função
simbólica nem ritual importante, embora possa adquiri-las eventualmente.” (pag. 9)

“Consideramos que a invenção de tradições é essencialmente um processo de


formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas
pela imposição da repetição.” (pag. 11)

“Provavelmente, não há lugar nem tempo investigados pelos historiadores onde não
haja ocorrido a ‘invenção’ de tradições neste sentido. Contudo, espera-se que ela ocorra
com mais frequência: quando uma transformação rápida da sociedade debilita ou destrói
os padrões sociais para os quais as ‘velhas’ tradições são incompatíveis; quando as
velhas tradições, justamente com seus promotores e divulgadores institucionais, dão
mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptação e da flexibilidade; ou
quando são eliminadas de outras formas. Em suma, inventam-se novas tradições quando
ocorrem transformações suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda
quanto da oferta.” (pag. 11, 12)

“Mais interessante, do nosso ponto de vista, é a utilização de elementos antigos na


elaboração de novas tradições inventadas para fins bastante originais. Sempre se pode
encontrar, no passado de qualquer sociedade, um amplo repertório destes elementos; e
sempre há uma linguagem elaborada, composta de práticas e comunicações simbólicas.”
(pag. 13)

“Naturalmente, muitas instituições politicas, movimentos ideológicos e grupos –


inclusive o nacionalismo – sem antecessores tornaram necessária a invenção de uma
continuidade histórica, por exemplo, através da criação de um passado antigo que
extrapole a continuidade histórica real seja pela lenda (Boadiceia, Vercingetorix,
Armínio, o Querusco) ou pela invenção (Ossian, manuscritos medievais tchecos).” (pag.
14)

“Ainda assim, pode ser que muitas vezes se inventem tradições não porque os velhos
costumes não estejam mais disponíveis nem sejam viáveis, mas porque eles
ddeliberadamente não são usados, nem adaptados.” (pag. 15)

“Elas parecem classificar-se em três categorias superpostas: a)aquelas que estabelecem


ou simbolizam a coesão social social ou as condições de admissão de um grupo ou de
comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituições,
status ou relações de autoridade; e c) tenham sido certamente inventadas (como as que
simbolizam a submissão à autoridade na Índia britânica), pode-se partir do pressuposto
de que o tipo a) é que prevaleceu, sendo as outras funções tomadas como uma
‘comunidade’ e/ou as instituições que a representam, expressam ou simbolizam, tais
como a ‘nação’.” (pag. 17)

“Pode-se observar uma nítida diferença entre as praticas antigas e as inventadas. As


primeiras eram praticas sociais especificas e altamente coercivas. Enquanto as ultimas
tendiam a ser bastante gerais e vagas quanto à natureza dos valores, direitos e
obrigações que procuravam inculcar nos membros de um determinado grupo:
‘patriotismo’, ‘lealdade, ‘dever’, ‘as regras do jogo’, ‘o espitiro escolar’ e assim por
diante.” (pag. 18)

“Podemos também observar que, obviamente, apesar de todas as invenções, as novas


tradições não preencheram mais do que uma pequena parte do espaço cedido pela
decadência secular das velhas tradições e antigos costumes; aliás, isso já poderia ser
esperado em sociedades nas quais o passado torna-se cada vez menos importante como
modelo ou precedente para a maioria das formas de comportamento humano.” (pag. 19)

“Antes de mais nada, pode-se dizer que as tradições inventadas são sintomas
importantes e, portanto, indicadores de problemas que de outra forma poderiam não ser
detectados nem localizados no tempo. Elas são indícios.” (pag. 20)

“Em segundo lugar, o estudo dessas tradições esclarece bastante as relações humanas
com o passado e, por conseguinte, o próprio assunto e oficio do historiador. Isso porque
toda a tradição inventada, na medida do possível, utiliza a historia como legitimadora
das ações e como cimento da coesão grupal.” (pag. 20, 21)

“As linguagens-padrão nacionais, que devem ser aprendidas nas escolas e utilizadas na
escrita, quanto mais na fala, por uma elite de dimensões irrisórias, são, em grande parte,
construções relativamente recentes. Conforme observou um historiador francês
especializado no idioma flamengo, o flamengo ensinado hoje na Bélgica não é a língua
com que as mães e avós de Flandres se dirigiam às crianças: em suma, é uma ‘língua
materna’ apenas metaforicamente, não no sentido literal.” (pag. 22)
“Aliás, até a ideia de que existem uma cultura e uma tradição especificas das Terras
Altas não passa de uma invenção retrospectiva. Os montanheses (highlanders) da
Escócia não constituíam um povo separado antes dos últimos anos do século XVII.
Eram simplesmente emigrados irlandeses, vindos para a Escócia devido a pressões
populacionais.” (pag. 25)

“Culturalmente dependentes da Irlanda, sob o domínio ‘estrangeiro’ e relativamente


ineficiente da coroa escocesa, as Terras Altas e as Ilhas da Escócia não tinham cultura
própria. A literatura era um pálido reflexo da literatura irlandesa.” (pag. 26)

“A criação de uma tradição das Terras Altas independente e a imposição da nova


tradição e de seus símbolos externos em toda a nação escocesa foi obra de fins do século
XVIII e inicio do século XIX. Realizou-se em três etapas. Primeiro, houve uma rebelião
cultural contra a Irlanda: usurpou-se a cultura irlandesa e se reescreveu a história
primitiva da Escócia, chegando-se ao cúmulo de declarar, na maior insolência, que a
Escócia – a Escócia céltica – é que era a ‘mãe-pátria’, sendo a Irlanda a nação
culturalmente dependente. Depois, houve a elaboração artificial de novas tradições das
Terras Altas, que foram apresentadas como antigas, originais e características da região.
E na terceira etapa houve um processo pelo qual tais tradições foram oferecidas às
Terras Baixas escocesas históricas, a Escócia Ocidental dos Picts, saxões e normandos,
e por elas adotadas.” (pag. 27)

“Em que época o ‘saiote de lã xadrez’, o kilt moderno, começou a ser usad pelos
habitantes das Terras Altas? Não há dúvidas profundas a respeito, especialmente desde
a publicação da excelente obra do sr. J. Telfer Dunbar. Enquanto o tartan – tecido com
um padrão colorido e geométrico – já era conhecido na Escócia no século XVI (vindo
ao que parece de Flandres e chegando às Terras Altas depois de atravessar as Terras
Baixas), o saiote (philibeg) – tanto o termo como a peça – só surgiu no século XVIII.
Longe de ser uma vestimenta tradicional montanhesa, foi inventado por um inglês após
a União, em 1707; os ‘tartans dos clãs’, por sua vez, são uma invenção ainda mais nova,
cuja forma atual se deve a outro inglês, mais jovem do que Sir Walter Scott.” (pag. 29)

“Durante o século XVII – no qual se rompeu o vinculo entre a Irlanda e as Terras Altas
– o vestuário montanhês foi se transformando. As mudanças ocorreram de maneira
irregular ao longo do século.” (pag. 30)

“Ironicamente, se a indumentária das Terras Altas tivesse sido proibido depois de


‘1715’, em vez de após os ‘idos de 45’, o kilt, hoje em dia considerado uma das antigas
tradições escocesas, provavelmente jamais teria existido. Ele surgiu alguns anos depois
que Burt escreveu suas cartas, num lugar bem próximo a Inverness. Apareceu de
repente, alguns anos depois de 1726, quando ainda era desconhecido. Já em 1746 havia
se firmado o suficiente para ser explicitamente citado na lei parlamentar que naquele
ano proibiu os trajes montanheses. Quem o inventou foi um quaker inglês de Lancashire,
Thomas Rawlinson.” (pag. 32)

“O resultado doi o feliebeg,philibeg, ou ‘saiote curto’, obtido pela separação entre saia e
manto, e convertido numa peça separada, com pregas já costuradas. Este novo traje foi
usado pelo próprio Rawlinson, cujo exemplo foi seguido pelo sócio, Ian MacDonell de
Glengarry. Os membros do clã, como sempre, não tardaram a imitar seu chefe, e a
novidade ‘foi considerada tão prática e conveniente que num instante o seu uso alastrou-
se por todas as regiões montanhesas e também por muitas áreas das Terras Baixas
setentrionais’.” (pag. 33)

“Podemos, portanto, concluir que o kilt é uma vestimenta absolutamente moderna,


idealizada e vestida pela primeira vez por um industrial quaker inglês, que não o impôs
aos montanheses para preservar o modo devida tradicional deles, mas para facilitar a
transformação deste mesmo modo de vida: para trazê-los das urzes para a fábrica.” (pag.
33)

“Não foi apenas através da literatura que Stewart defendeu a nova causa montanhesa.
Em janeiro de 1820, fundou a Sociedade Céltica de Edimburgo, composta por jovens
civis cujo principal objetivo era o de ‘promover o uso generalizado dos antigos trajes
montanheses entre os habitantes das Terras Altas’, e fazer isto usando os ditos trajes em
Edimburgo.” (pag. 41)

“O resultado foi uma esquisitíssima caricatura da historia e da realidade escocesas.


Preso a seus fanáticos amigos celtas, arrebatado por suas próprias fantasias românticas
célticas, Scott estava determinado a esquecer completamente a Escócia histórica, sua
Escócia das Terras Baixas.” (pag. 42)

“Assim foi a Escócia ‘tartanizada’ para receber seu rei, que também veio com o mesmo
tipo de traje, desempenhou seu apel na pantomima céltica e, no clímax da visita,
convidou os dignitários presentes a fazerem um brinde não à elite verdadeira e histórica,
mas ‘mas aos chefes e clãs da Escócia’.” (pag. 43)

“O ultimo rei britânico que manteve uma corte em Holyrood julgou que não poderia dar
prova mais definitiva de seu respeito pelos costumes que prevalecem na Escócia desde a
União do que fantasiar-se com um traje que, antes da União, era considerado por nove
entre dez escoceses como roupa de ladrão.” (pag. 44)

“Este artigo começou com uma referencia a James Macpherson. Termina com os
Sobieski Stuarts. Existem varias semelhanças entre estes inventores da tradição
montanhesa. Ambos idealizaram uma Idade de Ouro no passado das Terras Altas
célticas. Ambos criaram fantasmas literários, forjaram textos e falsificaram a historia
para sustentar suas ideias. Ambos iniciaram uma indústria que prosperaria na Escócia
durante muito tempo após a morte deles.” (pag. 54)

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