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Niterói
2021
RESUMO: Na pandemia de 2020 em meio a muita tristeza e sofrimento surgiu uma brecha
com uma oportunidade de criação que eu sonhava há alguns anos, conhecer mais de perto o
projeto “Bordado como traço” coordenado pela artista e bordadeira Marian Cvic. Como o
projeto acontece na Argentina, a alternativa de curso on-line, adotada devido à necessidade do
distanciamento social, possibilitou acompanhá-lo. Foram aulas semanais entre os meses de
maio e novembro, com propostas de experiências de uma semana para outra. Comecei a
adentrar a este mundo que apenas espreitava pelas redes sociais com grande admiração e
curiosidade, e fui percebendo que se tratava de aula de antropologia através do bordado (pelo
menos da minha perspectiva). Há algum tempo venho investigando o que há entre a
antropologia e o bordado, e neste curso pude me aprofundar mais no que venho buscando e
criando. Neste texto pretendo mostrar algumas (das muitas) experimentações que fiz a partir
das provocações de Marian. Umas mais alinhadas com as propostas dela, outras já como
derivações de minha pesquisa que une bordado e antropologia. Estas experiências servirão de
base para os cursos que oferecerei na Universidade Federal Fluminense em 2021.
INTRODUÇÃO
ANTROPOLOGIA E BORDADO
A antropologia ao se aprofundar no estudo da cultura, e percebê-la como algo
inventado (WAGNER, 2009), juntamente com a noção de natureza - e sua dominação -, se
coloca frente a impossibilidade de seguir no pensamento representativo característico da
modernidade. Neste ponto, a antropologia pode se abrir para a arte. Não como antropologia da
arte, uma das subdivisões modernas da antropologia. Mas a própria antropologia enquanto
arte. Ao deixar de ter que representar e descrever realidades preexistentes, a antropologia pode
então se construir (e se assumir) como uma prática de criação. Então ela se encontra com a
arte. Antropologia enquanto arte. Arte das relações entre diferenças. Arte como desabituação
das nossas naturalizações homogeneizadoras, e consequentemente, como encontro das
multiplicidades sufocadas sob essa unicidade.
Muitas vezes tenho que explicar, quando digo que trabalho com antropologia e
bordado, que não pesquiso bordados de outras culturas. O que me interessa é o bordado como
prática de pensamento, como prática antropológica. Como veremos nos exemplos abaixo,
através do bordado podemos atuar sobre nossa percepção, trazendo a vista o que não vemos,
experimentando para além de nossa percepção normalizada. Nos permitindo seguir a linha do
bordado e vendo onde ela pode nos levar, para além do obvio, para além de nossa visão
antropocêntrica do mundo.
No livro “A Estética do Oprimido” Augusto Boal trata de como a arte, através do
pensamento sensível, faz este exercício de desabituação, de nos fazer ver além do óbvio e do
generalizado.
a Estética do Oprimido, democrática e subjuntiva, visa, através da arte ,
permitir ao cidadão questionar dogmas e certezas, hábitos e costumes que
suportamos em nossas vidas. Visa analisar cada ação e cada fato que
acontece dentro de circunstancias concretas. (BOAL, 2009, p. 158)
O livro da transformação
O que percebemos e o que não percebemos: a prática antropológica de poder ver além
do óbvio
Na aula sobre bordar em papel, Marian nos passou vários exemplos, entre eles
alguns que mostravam como podemos pegar uma imagem e alterá-la com o bordado. Algumas
imagens que ela expôs me tocaram bastante, principalmente aquelas que evidenciavam o que
não era visto na foto ou na cena, mas já estava lá.
Aqui o bordado se aproxima muito da prática antropológica. Esta última tem
como característica exatamente mostrar aquilo que geralmente não vemos por estarmos
imersos em nossa naturalização de um só mundo, de uma só perspectiva.
Ao me deparar com uma caixa de leite e a vaquinha “fofa” desenhada ao lado de
uma inocente moça camponesa, senti-me com vontade de fazer notar o que está sendo
ocultado por esta imagem. A violência com que são tratadas as vacas para que seu leite (e de
seu filhote) seja retirado e colocado naquela embalagem.
Boal (2009, P. 42) diz que “O objeto artístico é a transubstanciação de uma
realidade, objetiva ou imaginada em outra substância diferente da original”.
Este exercício pode nos inspirar na prática da antropologia através do bordado.
Agindo através de uma estética do oprimido sobre a estética do opressor, podemos mostrar o
que ela oculta. O bordado e seu tempo lento, sobre uma caixa de alumínio e polietileno com
seu tempo de produto industrializado, nos faz ver, também esteticamente, o tempo do
aleitamento do bezerro transformado em produção incessante de leite. Mostramos a vida, suas
assimetrias, sua organicidade sobre a, literalmente, pasteurização da caixa de leite. As linhas
imperfeitas do bordado sobre as linhas “perfeitas” da impressão na caixa. O algodão da linha
sobre o alumínio, papel e polietileno. Este bordado vislumbra uma estética da não
pasteurização, diretamente ligada ao leite que sai naturalmente da vaca e alimenta seu bezerro.
Humanos, animais, seres vivos e materiais
A proposta que resultou neste bordado partia da ideia de que fazer uma limitação
no campo que estamos acostumados, nos força a sair em busca de alternativas. E isso tem
como resultado sairmos do óbvio do bordado. O convite era fazer o trabalho com a técnica de
aplicação de fio. Devíamos escolher um fio e aplicá-lo sobre o tecido com outros fios. Além
disso, (essa era a limitação) não podíamos cortar o fio, o fio tinha que ser contínuo. E mais,
era sugerido que nos inspirássemos nos azulejos portugueses, como forma de nos
apropriarmos de desenhos geométricos familiares no Brasil.
Logo de início eu não gostei de trabalhar sobre formas “do colonizador” e por isso
formas “que colonizam”. Fui então levada imediatamente às formas dos colonizados.
Lembrei-me de um estudo que havia feito sobre desenhos indígenas para um trabalho anterior.
Era um desenho feito por indígenas Kadiwéu. Esta foi a primeira transformação: sobre a
forma e sua relação politica. A segunda transformação foi sobre o fio. Queria que o fio
também não fosse domesticado, industrializado, mas um fio selvagem, irregular. Havia feito o
curso “Fiação para terapias” com Nina Veiga e tinha guardado os fios que fiei naquela época.
Fiação de iniciante, partes muito grossas e outras muito finas se alternavam.
O fio selvagem me levou a uma relação em que o fio estava mais presente que
quando usava o industrializado. Aquele se apresentava ao dialogo. Eu não estava direcionando
o fio, mas havia um dialogo entre nós. Um diálogo entre nós. O fio industrializado,
pasteurizado, homogêneo se aproxima do pensamento por generalização que falamos
anteriormente. Ele é sempre o mesmo, não apresenta diferenças, assim o bordado seria feito
por mim sobre ele. Ele não se impõe, não conversa, não traz contingências novas. Já o fio
selvagem existe, grita, resiste, dá ideias, e com ele, então, há uma conversa. Sempre
imprevisível: uma parte mais grossa aparece em uma curva, o que acontece? Ou uma mais
fina onde o desenho pedia um preenchimento, como fazer?
Mais uma vez a atividade me remete à possibilidade de me colocar em um
acontecimento. Uma circunstância singular, em que devo estar atenta ao dialogo com os
outros corpos presentes para que possamos compor juntos. Quanto mais vivos forem os
corpos, menos previsíveis e pasteurizados, maior é a possibilidade de criação e de interação.
Como vimos anteriormente, para isso é bom que nossos corpos estejam presentes e o
Pensamento Sensível ativado, pois esta interação passará por eles. Para acessar os demais
corpos, da linha, do tecido, do espaço, é preciso vivenciar o meu corpo.
Esta relação entre corpos em um mesmo plano comum (KASTRUP; PASSOS,
2013) nos afasta do paradigma moderno do pensamento (também antropológico) baseado na
subjugação do objeto pelo sujeito, ou seja, da natureza pela cultura. Assim, quando entro em
contato com os demais corpos-sujeitos (linha, agulha, tecido, etc) e estou aberta a essas
subjetividades, nasce algo que não é nem determinado por mim nem por eles. É a relação que
acontece.
Estes corpos no mundo estão em um estado impermanente (INGOLD, 2013) A
linha de algodão, por exemplo, já foi semente-sol-água, planta. A linha de seda foi produzida
em conjunto (no caso, exploração) pelo bicho da seda. Este tema também nos leva a uma
questão antropológica importante: o antropocentrismo de nosso pensamento. O pensamento
ocidentalizado parte, como vimos, da separação entre natureza e cultura, colocando uma
separação intransponível entre os seres humanos e os demais seres.
Colocarmos nossos corpos em relação com os outros corpos e materiais
envolvidos na criação nos possibilita exercitar a transposição desta barreira que isola os seres
humanos do mundo. E assim, podermos por nosso trabalho em continuidade com a terra, o sol
e o pé de algodão, e com quem plantou este algodão. E neste sentido, descolonizarmos nosso
pensamento e prática.
Esgarçando indivíduos
A atividade proposta por Marian desta vez era fazer uma maquete de uma
instalação de grandes dimensões. Segundo ela, sair do tamanho padrão também é uma forma
de desconstruir nossos hábitos perceptivos e ampliar nosso horizonte criativo. Mudar o
tamanho, um bordado muito grande ou muito pequeno, é uma forma de retirarmos o bordado
de sua referência ao mundo doméstico (anotações do caderno do curso) e domesticador de
mulheres.
Há algum tempo eu havia iniciado uma pesquisa sobre uma experiência com
linhas que pudesse nos fazer vivenciar que a ideia de indivíduo é uma criação moderna. Em
trabalho anterior apresentado no “I Congresso de Artes Manuais e Academia” (COLLET,
2020), exponho uma prática que criei com minhas alunas a partir da junção de linhas,
primeiro em dupla, depois quarteto, até juntarmos toda a turma e sairmos caminhando pelo
campus em-aranhadas.
O emaranhado de linhas nos diz melhor sobre agrupamentos humanos que a ideia
de sociedade como uma totalidade composta de outras totalidades dentro, os indivíduos. Esta
última não dá conta das conexões para além deste agrupamento, seja em relações com seres
não humanos, outros corpos e fluxos, nem da multiplicidade existente dentro do que se
padronizou de chamar de indivíduo. Outro tema que se questiona aqui é o pensamento ser
algo que existe apenas dentro do indivíduo, dentro da mente. Vivenciarmos a experiência de
um pensamento dentro-fora, que rompe com as barreiras do indivíduo, nos permite exercitar
um “pensamento praticado” (RUFINO; SIMAS, 2018), ou um pensamento com o corpo
(DOLLIS, 2019).
Na antropologia, temos autores como Gabriel Tarde (2007), Bruno Latour (2009)
e Tim Ingold (2011) que propuseram outros modelos para tratar dos agrupamentos sociais,
respectivamente, a “mônada”, a “rede” e a “malha”.
Pensando ser esta questão do indivíduo muito importante de ser tratada como
forma de seguir no caminho do rompimento com as formas modernas de dominação e
pensamento, era-me muito cara a ideia de criar uma experimentação em que pudéssemos nos
vivenciar como cruzamento de linhas e fluxos. E desta forma começarmos a imaginar que
podemos nos pensar e viver através de outros modelos que não passem pela individualização.
Podendo assim reforçar em nós importantes ideias para uma transformação política, como a
impermanência, a coletividade, a multiplicidade e a diferença.
A experiência de esgarçar os indivíduos está pensada até agora (pois ela ainda não
foi vivenciada e está em criação) da seguinte forma:
1. propomos algumas perguntas para as pessoas do grupo. Por exemplo: onde mora? O que
come com regularidade? O que gosta de fazer? O que costuma vestir?
2. uma pessoa inicia no centro da sala identificando cada uma de suas respostas às perguntas
acima a uma cor de linha. E abre os novelos das suas cores.
3. as demais pessoas vão, uma a uma, pegando nos fios de cores já existentes se se identificam
com eles, ou abrindo novas cores relativas a respostas diferentes.
4. até que no final temos uma rede colorida como a da imagem acima.
5. depois disso, podemos nos olhar e perguntarmos: o que vemos? Indivíduos? Linhas de
fluxo? Para onde continuam as linhas para além de nós?
6. a seguir temos várias alternativas: pedir alguém para fotografar e bordarmos sobre esta foto
em outro encontro; prender as linhas de modo que forme uma instalação artística; desenhar e
bordar a partir desta experiência; conversar sobre o esgarçamento do indivíduo, sobre os
fluxos que nos atravessam, sobre as questões que surgem daí; ler textos de Ingold, Tarde ou
Latour relativos a experiência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
E chegamos ao final deste livro da transformação. Mas não das transformações
que a interação entre bordado e antropologia nos impulsiona. Neste trecho do processo
apresentei algumas experiências compartilhadas no âmbito do curso “O bordado como traço”,
como forma de pensar muitas questões antropológicas suscitadas por elas, e de compartilhá-
las para que possam se amarrar com outras linhas criando novas teias infinitas.
Aqui amarramos as linhas em alguns pontos importantes, como a pesquisa de
maneiras de percebermos nossas habituações, e podermos criar para além delas. Também a
intervenção sobre o pensamento e a estética pasteurizados que nos são impostos a todo o
tempo. Nos deslocar do modelo majoritário ocidentalizante baseado no pensamento simbólico
e racional, no androcentrismo, no antropocentrismo, e abrimos nossos corpos a outros corpos
no exercício da relação, como possibilidade de criação. E assim nos estranharmos como
indivíduos, proliferando linhas que nos atravessam e vão além de nós.
Este trabalho continua com o aprofundamento no curso “O Bordado como traço”
e também com a disciplina “Antropologia através do bordado” que oferecerei no próximo
semestre na Faculdade de Educação da UFF, como parte de minhas atividades de ensino e
pesquisa.
Referências Bibliográficas
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
COLLET, Celia. Bordar a academia: antropologia estética e saber do corpo. I Congresso
Artes-Manuais na academia. São Paulo, 2020.
CVIC, Marian; HAIMOVICHI, Laura. El bordado como trazo. Buenos Aires: Latin Gráfica,
2019.
DOLLIS, Nelly. Nokẽ mevi revõsho shovima awe: "O que é transformado pelas pontadas
nossas mãos". Campos Revista de Antropologia Social, v. 19, n. 1, jan. 2019.INGOLD, Tim
Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2011.
______Making: Anthropology,. Archaeology, Art and Architecture. Londres/Nova York:
Routledge, 2013
KASTRUP, Virginia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal,
Rev. Psicol. 2013, vol.25, n.2, pp.263-280.
LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador:
EDUFBA-Edusc, 2012.
LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.
RUFINO, Luiz. SIMAS, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de
Janeiro: Morula, 2018.
SANTOS Barbara. Teatro do Oprimido: raízes e asas, uma teoria da práxis. Rio de
Janeiro: Ibis Libris, 2016
TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia: e outros ensaios. São Paulo, Cosac Naify,
2007.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2009.