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Cartas Paulinas 2024.1 – Faculdade Dehoniana – Prof. Dr. P.

Claudio Roberto Buss

CARTAS PAULINAS - 2024

1. INTRODUÇÃO A PAULO E SUAS CARTAS


1.1 Introdução
a. Nossa primeira ideia neste curso é perceber a influência de Paulo de Tarso sobre a
identidade cristã. Raymond Brown diz que depois de Jesus, Paulo é a figura mais influente na
história do cristianismo. Friedrich Nietzche, exagerando sobre esta influência, dizia que Paulo
foi o “grande inventor do cristianismo”.1
Críticas e contendas à parte, é importante reter inicialmente a ideia da importância de Paulo
para o cristianismo. Trago a ideia do biblista italiano Antonio PITTA2, que diz que a Paulo se
deve:
• A primeira pregação cristã à comunidade gentílica, e a inserção na mesma sem a
necessidade de submissão às prescrições da Lei judaica, mas unicamente pela fé em
Jesus Cristo.
• Com Paulo, a vida cristã é pensada em termos de participação na morte e
ressurreição de Cristo.
• O seu “evangelho” tem como centro o mistério pascal de Jesus Cristo.

De forma aprofundada voltaremos sobre estas questões em um outro momento.


b. Uma segunda questão importante: a conversão de Paulo de acordo com os estudiosos,
ocorre mais ou menos nos anos 36 d.C. Suas cartas foram escritas alguns anos depois entre os
anos 50 d.C. a 60 d.C.3 Muitos autores, adeptos da teoria de que Paulo teria ido à Espanha
depois da sua prisão em Roma, estendem seus escritos até a data de 67-68, resultando, assim
que as treze cartas de Paulo seriam autênticas.4
De qualquer forma, nesta breve Introdução, é preciso dizer que “os mais antigos
documentos escritos da missão cristã, hoje conservados, são as cartas enviadas pelo Apóstolo
Paulo aos fiéis por ele evangelizados, a partir de 50 d.C.”5
As Cartas de Paulo, surgem, portanto, antes mesmo da formação dos próprios evangelhos.
Ainda é preciso esclarecer que aquilo que as Cartas Paulinas nos retratam, não é uma ideia
completa do anúncio que Paulo e os outros apóstolos transmitiram, pois são escritos ocasionais,
atendo-se em primeiro lugar a pontos controvertidos e a exortações concretas para a vida cristã.
Pressupõe, é claro, a pregação oral a respeito da vida de Jesus, sua mensagem e suas obras,
mas não a reproduzem. Deixam transparecer ocasionalmente a tradição que Paulo, através das
primeiras comunidades cristãs, recebeu a respeito de Jesus. São, portanto, os primeiros

1
Cf. Antonio PITTA, L’evangelo di Paolo. Introduzione alle lettere autoriali, 2013, p. 11.
2
Idem.
3
Cf. Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 573.
4
Cf. Como por exemplo: Jerome Murphy O’Connor, Paulo: Vida e Pensamento. São Paulo: Paulus.
5
Cf. Johan KONINGS, A Bíblia: sua origem e sua leitura, 2011, p. 124.

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documentos conservados, de que temos acesso, do processo de recepção e transmissão da


“narrativa” de Jesus. É o que chamamos de “tradição cristã”. Posteriormente, como sabemos,
a pregação cristã, evoluiu do kerygma, isto é, do primeiro anúncio centro sobre o mistério
pascal de Cristo, para catequeses mais amplas e elaboradas, encontradas em outros escritos
cristãos, como é o caso dos Evangelhos.
c. Um terceiro ponto a ser observado nesta breve Introdução, é de a personalidade de Paulo
é uma das mais conhecidas no cristianismo primitivo. Mesmo os apóstolos mais
representativos reportados nos Evangelhos, como Pedro, João e Tiago (Cartas Pastorais) não
nos deixaram uma documentação tão importante e vasta como o Corpus Paulinum. Mesmo a
figura de Jesus, em confronto com a do Apóstolo, resulta, não podemos dizer obscura e mal
atestada pela tradição, mas escrita pelos seus discípulos mais próximos, ou mesmo até de
terceira geração cristã (como provavelmente seria o caso de Lucas). Isto não é para confundir:
apenas dizer que Jesus nada escreveu, e o que temos sobre ele provém de testemunhas, e não
diretamente dele mesmo.
d. É necessário afirmar que, os escritos de Paulo que conservamos constituem uma
magnífica e grandiosa coleção de cartas, o chamado “Corpus Paulinum”, testemunho
eloquente, riquíssimo e indelével da sua figura histórica.6 Como nos diz o famoso biblista
italiano Giuseppe BARBAGLIO: que de todos os personagens do NT, o que se dá mais
claramente a conhecer, o mais acessível é, sem dúvida, Paulo.7 Suas numerosas cartas nos
permitem conhecer a fundo o seu pensamento e sua ação missionária, e, indiretamente, e por
vezes de forma eloquente a sua personalidade.8
e. Um quinto argumento, em pauta, é a afirmação de uma corrente anti-paulina, perpassada
pelos séculos afora, segundo a qual “Paulo fundou a Igreja”. Creio que Paulo não concordaria
com esta, porque não dizer, “honrosa, mas falsa opinião a seu respeito”. Basta para tanto,
conferir em 1Cor 1,10-13, quando Paulo combate todo tipo de facções, mesmo as mais
piedosas! (Eu sou de Paulo....Eu sou de Pedro...etc.). Porém devemos fazer jus à Paulo: a base
inicial da catequese cristã! Como bom fariseu, bem formado, versado nas Escrituras de Israel,
iniciou um processo de sistematização da fé cristã. Ofereceu sínteses que permitiram guiar e
unir o “novo movimento” de Jesus de Nazaré.
Em outras palavras, é Paulo que oferece uma pauta para “ler” os efeitos “salvíficos” da vida
de Jesus. Nos fornece um instrumental intelectual de compreensão da vida de Jesus
(particularmente centrada no mistério pascal) e suas implicâncias e prolongamentos na vida
cristã. O grande estudioso de Paulo, James DUNN nas primeiras páginas da sua obra “A
Teologia do Apóstolo Paulo” diz que Paulo foi o primeiro e o maior teólogo cristão. A questão
de ser o primeiro já foi explicada! O “maior” diz DUNN, é a valorização que a sua
interpretação sobre o Mistério de Cristo alcançou nas comunidades primitivas, a ponto de se

6
Cf. Alfio Marcello BUSCEMI, San Paolo: Vita, Opera e Messaggio, 2008, p. 1.
7
Com isso, como nos diz BARBAGLIO, não podemos exagerar de que podemos construir uma biografia completa da vida
de Paulo. As fontes que dispomos não são suficientes para tanto. Op. cit. p. 15.
8
Cf. Giuseppe BARBAGLIO, As Cartas de Paulo I, p. 15.

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tornar para elas e posteriormente (pelo seu status canônico)9 norma de fé e vida.10 Além disto
é preciso ainda pontuar que elas lançaram um fundamento da teologia cristã que nunca teve
rival ou substituto. Mas, sobre esta questão é preciso ler toda a Introdução que James DUNN
faz em seu “capolavoro”!11

1.2. Um artigo interessante


No ano de 2003 a Revista Super-Interessante12 publicou um artigo intitulado: “O homem
que inventou Cristo” o jornalista Yuri Vasconcelos assim abre: “o mundo não seria o mesmo
sem a mensagem que São Paulo transmitiu ao Império Romano. Para conquistar fiéis, ele fez
concessões que desagradaram aos discípulos de Jesus – e ainda despertam acirradas discussões
entre pensadores e religiosos. Afinal, Paulo espalhou ou deturpou a palavra de Cristo”? E
continua: “Sua importância na construção da Igreja primitiva é tão grande que muitos
estudiosos atribuem a ele o título de pai do cristianismo”13.
Primeiro o articulista desdobra alguns pontos positivos em relação a Paulo, citando alguns
biblistas de renome. O primeiro é Jerome Murphy-O’Connor, professor da Escola Bíblica e
Arqueológica de Jerusalém e um dos maiores estudiosos de Paulo, que diz que “Paulo
desempenhou um papel maior na evangelização dos primeiros cristãos”. Traz a discussão para
a história e, por isso, consulta o historiador André Chevitarese, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, especialista em cristianismo e Judaísmo antigo, que diz que o cristianismo, tal
como existe hoje, deve muito à Paulo. Se não fosse o apóstolo, ele provavelmente não teria
passado de mais uma seita judaica. Conclui seu primeiro apanhado citando o professor Pedro
Lima Vasconcelos, do Departamento de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, que afirma que “sem dúvida, Paulo foi o apóstolo que teve maior
repercussão com o passar dos séculos”.
“A influência de Paulo é indiscutível”, concorda o jornalista. Mas, como diz ele, repetindo
uma tese aceita por uma corrente anti-paulina, ele deturpou os ensinamentos de Jesus Cristo
– a ponto de a mensagem cristã que sobreviveu ao longo dos séculos ter origem não em Cristo,
mas em Paulo. Possivelmente afirmando que o que existe hoje é um paulinismo, não um
cristianismo. Em seguida cita o teólogo alemão Albert Schweitzer, que disse que “Paulo nos
mostra com que completa indiferença a vida terrena de Jesus foi tomada” (sic!)
O articulista passa em revista as principais críticas da corrente antipaulina que se
concentram em pontos polêmicos das cartas do apóstolo. Nelas, entre outros, Paulo teria
defendido a obediência dos cristãos ao Império Romano, bem como o pagamento dos impostos,

9
O Corpus Paulinum faz parte do Cânon bíblico e, portanto, torna-se norma de fé e vida.
10
Cf. James D.G. DUNN, A Teologia do Apóstolo Paulo, 2008, p. 26-27.
11
Cf. Ao menos ler na sua obra-prima: DUNN, J.D.G., A teologia do apóstolo Paulo, Paulo, o capítulo referente:
“Prolegômenos para uma teologia de Paulo”, p. 25-54.
12
Revista SUPER-INTERESSANTE, 2003. Todo o texto em sequência parafraseia o artigo.

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faz apologia à escravidão, legitima a submissão feminina e esboça uma doutrina da salvação
distinta daquela que teria sido defendida por Jesus.
Melhor do que insistir sobre teorias anti-paulinas, seria redescobrir o valor de Paulo para a
história do cristianismo. A Igreja proclamou o ano 2008 como o “Ano Paulino”. Um “especial
ano jubilar” dedicado ao grande apóstolo, por ocasião dos 2000 anos do seu nascimento. Neste
sentido, poderíamos refletir no sentido que “Paulo não traiu Jesus, mas foi atraído por Jesus.
Paulo não viveu com Jesus, mas viveu Jesus. Paulo não inventou Jesus, mas foi reinventado
por Jesus. Sem Jesus, Paulo teria desaparecido da história”.
De forma positiva, o professor Pedro Lima Vasconcelos afirma: “creio que houve uma
transformação conservadora da mensagem de Paulo. Temos que libertá-lo das ideias errôneas
a seu respeito perpetuadas ao longo dos séculos”.
André Chevitarese também afirma: “Conservador ou radical, fiel ou não a Jesus Cristo, São
Paulo foi, sem dúvida, um dos poucos evangelizadores – se não o único – a fazer o cristianismo
passar da cultura semita à greco-romana, possibilitando que ela se tornasse uma religião
mundial. Ele criou condições para que povos não-judaicos, ao receberem a mensagem de Deus,
fossem inseridos de forma igualitária na comunidade cristã”.
Podemos afirmar que Paulo nos é conhecido, melhor do que outra personalidade do NT, por
suas Epístolas e pelos Atos dos Apóstolos, duas fontes independentes que se confirmam em
muitos pontos e se completam em outros, não obstante algumas divergências.
Paulo pode ser analisado a partir de diferentes aspectos. Ele é rabino judeu, fariseu radical,
evangelizador dos helenistas, cidadão romano, escritor exímio, missionário incansável,
fundador de comunidades, pastor dedicado, fabricante de tendas, apóstolo de Jesus Cristo e
mais.
Queremos fazer um percurso do Paulo teólogo. Inúmeras obras já fizeram dele um expoente
da teologia, o primeiro e talvez o mais importante teólogo cristão. Mas em sentido estrito,
Paulo não foi teólogo. Ele não escreveu nenhum tratado de teologia e não teve intenção de
fazer uma obra teológica. Sua preocupação foi sempre prática e pastoral. Ao procurar, porém,
soluções para os desafios concretos, o apóstolo se baseou em princípios da fé, fundamentou-
se nas Escrituras judaicas, inspirou-se na pessoa de Jesus Cristo e nele centrou toda a sua
teologia. Foi teólogo nesse sentido.

1.2 Paulo no Novo Testamento


Dos 27 livros do NT, metade deles estão ligados ao nome de Paulo, todos em formato
de cartas. Dos treze escritos que vem atribuídos a Paulo ao menos sete são considerados
escritos autênticos pela maioria dos estudiosos. Estas sete cartas autênticas de Paulo (ou
protopaulinas) provavelmente foram os primeiros livros do NT a ser compostos. Raymond
BROWN citando uma tese conhecida diz que, isso se explica, porque os primeiros cristãos
pensavam que Cristo voltaria em breve, e, assim, apenas uma “literatura imediata”, que

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tratava de problemas concretos, tinha importância.14 Não quero criar polêmica com R.
BROWN (aliás, não teria a mínima ousadia!), mas também é preciso dizer que os primeiros
cristãos escreveram cartas continuamente, mesmo quando uma literatura mais duradoura
(evangelhos, Atos) começaram a ser produzidos. Em uma Bíblia autenticamente cristã, no
índice encontramos listadas 21, dentre os 27 livros do NT, sob a rubrica “cartas” ou “epístolas”.
De fato, uma estatística surpreendente, ainda mais quando olhamos para o AT e nos damos
conta que nenhum dos seus 46 livros trazem tal designação.
As Cartas não nasceram para serem tratados de teologia, não são fruto de uma
escrivaninha, mas da missão. Paulo foi um missionário ardoroso, fundou comunidades do
Oriente ao Ocidente, entre os anos 40 a 60 d.C. Talvez uns poucos anos após a morte de Jesus,
Paulo já iniciou sua vida itinerante de missionário fundando comunidades e centrando a sua
pregação na universalidade da mensagem cristã, aberta a judeus e gentios. Para Paulo, a Lei
teve seu papel “pedagógico” na economia da salvação. Mas, com a vinda de Cristo,
“plenitude da Lei”, ela deixa de existir, para dar lugar ao papel único e insubstituível do
Filho de Deus.
As comunidades que ele funda, são estratégicas do ponto de vista missionário. São centros
urbanos como Corinto, Tessalônica, Filipos, Éfeso etc. Formava comunidades, e parece-nos
que as escolhia para serem estas propulsoras da missão para outras ao seu redor.
Sublinha-se que, com Paulo, há uma passagem significativa do cristianismo. Este nasce no
mundo basicamente rural de Israel, propriamente ao entorno do mar da Galileia, com Jesus de
Nazaré. Com Paulo, há uma transposição das barreiras da vida campesina para o “mundo
urbano” das grandes metrópoles da época.
Como já apontado, além da ordem de expansão (argumento geográfico), em ordem
teológica, é preciso sublinhar com dois ricos o grande papel de Paulo. Aqui cita-se Dr. P.
Antonio PITTA, que na sua obra diz que o cristianismo teria dificuldades, sem a reflexão de
Paulo de desvincular-se da Lei, já que o círculo dos Doze era estreitamente ligado por força
de origem e cultura à mesma.15 O sábio, Paulo de Tarso, elaborou com sua formação
Escriturística uma história salvífica, onde a Lei não ocupa o centro, nem mesmo é o fim pela
qual o ser humano deve viver, mas é Cristo o seu centro e fim. Sobre isto esta temática, Paulo
a desenvolve sobretudo na Carta aos Gálatas e Romanos.
Para dar curso ao nosso argumento, ao menos no que tange ao subtítulo, é importante
perceber que, de acordo com os estudiosos, Paulo também influenciou a teologia dos outros
escritos neotestamentários.
Aqui, como um incipiente estudioso da obra de Paulo, me sinto à vontade somente para
citar 4. Aceito, obviamente, outras contribuições!
- A primeira refere-se a teologia marcana (para os que não entendem, o Evangelho de
Marcos): sabemos que Marcos possui uma tônica que centra o Messianismo de Jesus no

14
Cf. Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, 2004, p. 549.
15
Cf. Antonio PITTA, L’evangelo di Paolo. Introduzione alle lettere autoriali, p. 12.

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serviço, o “servo sofredor” do Deutero-Isaías. A teologia da cruz paulina (cf. 1Cor 1,18-25)
possivelmente deu ao Evangelho de Marcos a tônica pela qual se deve ler a “Vita Christi” e
seu seguimento.
- A segunda é a teologia de Lucas. Se, de acordo com a tradição, Lucas foi companheiro
de Paulo, e se escreveu para as comunidades paulinas, suas páginas não passariam em branco
em relação ao Apóstolo por ele admirado. A teologia da graça e a soteriologia paulina fazem
estrada nos escritos do Scriba Mansuetudinis Christi, para citar Dante!
- Muitos encontram eco da teologia paulina nas tradições petrinas. Como diz Antonio
PITTA “la 1ª Pietro riprende, per grandi linee, il canovaccio e diverse tematiche
dell’epistolario paolino, come la salvezza in Cristo, la concezione dello Spirito e la
generazione dei credenti mediante la Parola”.16
- Bem, a 2ª Pedro já tem até mesmo um conhecimento direto do epistolário paulino. E os
cita com autoridade de Escritura. Interessante para tanto ler 2Pd 3,15-16.
Mas, exaltações a parte, também devemos dizer que nem tudo é Paulo. Outros escritos,
com outras teologias e “acentos” exploram outros aspectos da vida cristã, ignorados pelas
diversas circunstâncias das tradições paulinas. Sobre este aspecto é possível aprofundar em um
outro momento, para não tornar esta apostila interminável!
Ainda, para terminar este tópico, uma pequena nota sobre Hebreus. A carta aos Hebreus
que por longo tempo, sobretudo no Oriente, foi aceita como epístola paulina. 17 No Ocidente a
Epistola não era aceita sem reticências. As dúvidas quanto à sua autenticidade provocaram
hesitações quanto ao seu valor enquanto escrito inspirado. O próprio Lutero após afirmar por
longo período a autenticidade paulina da epístola18, negou ser da lavra de Paulo no último
período da sua vida. O magistério católico (Pontifícia Comissão Bíblica) pronunciou-se no
princípio do século XX, proibindo os católicos de negar a origem paulina de Hebreus, embora
consentindo se falasse de uma redação não paulina. Isso no século XX (sic!). Hoje é claro,
com as questões mais amadurecidas, e você como bom estudante pode conferir na
Introdução a Epístola aos Hebreus da monumental bíblica TEB, que os comentadores
católicos, obviamente de tendência moderada, entendem a origem paulina desta carta,
epístola ou melhor dizendo homilia, de origem paulina no seu sentido mais lato, ou seja,
que alguns temas presentes neste escrito são do círculo de reflexão paulino.19
Além disso, deve-se lembrar que a Carta aos Hebreus “não é para os judeus (mas para os
judeus cristãos da diáspora); não é de Paulo (mas de um autor anônimo); e não é uma carta

16
Ibidem.
17
Cf. TEB, Introdução à Epístola aos Hebreus. Interessante observar que Clemente de Alexandria apresenta a
epístola como sendo uma adaptação grega de um texto composto por Paulo em hebraico. Orígenes acentua a
distinção: os pensamentos são de Paulo, mas tudo indica que a epístola não é dele. Seria a obra de um discípulo
de Paulo, que exprime fielmente, porém a seu modo, o ensinamento do mestre.
18
Para Lutero, tanto nas outras epístolas como em Hebreus, Paulo “exalta a graça conta o orgulho da justiça
humana segundo a Lei”. Cf. TEB, Introdução à Hebreus.
19
Cf. TEB, Introdução à Hebreus.

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(mas um discurso homilético sobre o sacerdócio de Cristo.20 Esse belo tratado ou “discurso
sobre o sacerdócio de Cristo” foi provavelmente composto pouco antes da destruição do
segundo Templo em um ambiente itálico (65-70 d.C.).21

Um último ponto ainda é preciso dizer quanto à polêmica entre a teologia paulina e a
teologia da Carta de Tiago: “Meus irmãos, de que serve alguém dizer que tem fé, se não tem
obras? ” (Tg 2,14). Todos nós temos em mente ao menos a frase paulina: “o homem é
justificado pela fé, sem a prática da Lei”.
Fazemos questão de citar literalmente, e com muito trabalho para copiar, a explicação da
Bíblia TEB, em nota a Tg 2,14:
O autor parece considerar o reverso do princípio paulino da justificação só pela fé (cf. Rm 3,28;
Gl 2,16), pois afirma que, sem as obras, a fé não poderia salvar e que, sem elas, é morta (cf. vv.
17,26). Entretanto, as obras de que fala Tiago não são as “obras da lei” denunciadas em Gl e Rm,
mas os frutos que, também segundo o próprio Paulo, a fé deve produzir (cf. Rm2,6.15-16; Gl 5,6;
Ef 2,8-10; Cl 1,10; 1Ts 1,3). Sem jamais identificar fé com obras, Tg insiste em uma fé que se
realiza nas obras, sobretudo no amor ao próximo e na oração [...] A ênfase no agir do crente revela
um ambiente judeu-cristão semelhante ao de Mt. [...] Trata-se de um ponto de vista que parece
bem posterior à problemática paulina. Contra o judaísmo que tendia a diluir a fé entre as obras,
Paulo – às voltas com os judaizantes – reivindica o primado da fé, distinguindo-a dos seus frutos
ou de suas obras. Tg coordena fé e obras de fé, integrando a contribuição da crítica de Paulo, e,
provavelmente, reagindo contra uma interpretação extremista do ensinamento de Paulo.

20
Albert VANHOYE, Estrutura e mensagem da Epístola aos Hebreus. São Paulo: Paulinas (coleção: cadernos bíblicos).
21
Cf. Antonio PITTA, Cartas Paulinas, Petrópolis: Vozes, 2019, p. 15.

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