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Paulo inventou o cristianismo?

Após a morte de Jesus, três homens tiveram muita influência nos rumos do
incipiente movimento cristão: Pedro, Paulo e Tiago, o irmão de Jesus. No entanto, foi Paulo
quem teve o papel mais significativo na formação do cristianismo. Segundo James Dunn,
antes de sua influência, o que hoje chamamos de "cristianismo" era, na verdade, uma seita
messiânica dentro do judaísmo do século I, conhecida como "a seita dos nazarenos" ou "os
seguidores do Caminho", possivelmente referindo-se ao caminho ensinado por Jesus.
Sem a contribuição de Paulo, essa seita messiânica poderia ter permanecido
apenas como um movimento de renovação dentro do judaísmo do Segundo Templo. Paulo
transformou essa seita judaica, que acreditava em Jesus como o Messias, em algo muito
mais abrangente.
Para N.T. Wright, a missão de Paulo na região do Mar Egeu, conforme relatado em
Atos 16-20, foi um ponto de virada importante, marcando uma guinada decisiva para o
Ocidente ao deslocar o centro de gravidade do cristianismo de Jerusalém para a Ásia
Menor, Grécia e, finalmente, para Roma. As igrejas fundadas por Paulo tornaram-se cada
vez mais gentílicas em sua composição, afastando-se das raízes judaicas. Essa missão foi
fundamental para a existência e caráter duradouro do cristianismo. Segundo D.A. Carson, a
importância de Paulo é tamanha que alguns o chamam de “segundo fundador do
cristianismo”, devido ao seu papel vital no crescimento e estabelecimento da igreja.
Devemos ressaltar, no entanto, que esse título pode trazer conotações muito negativas.
Os críticos de Paulo, usam o título de fundador do cristianismo para indicar uma
profunda descontinuidade entre Jesus e Paulo, afirmando que o segundo teria transformado
a mensagem de Jesus em uma mensagem sobre Jesus. Ou pior, para alguns estudiosos,
Paulo teria transformado a mensagem amorosa de Jesus em uma religião de obediência a
padrões morais rigorosos, uma religião que reforçava o patriarcado machista e escravista
da antiguidade. Rudolf Bultman chegou a afirmar que “o ensino do Jesus histórico não
desempenha nenhum papel, ou praticamente nenhum, em Paulo.”
Da perspectiva de Bultman, Paulo não tinha interesse em um Jesus histórico, pois
estava apenas interessado na proclamação da mensagem de Jesus independente se essa
mensagem estava ou não baseada em eventos históricos que as justificassem.
O que muitos críticos ignoram é o que o próprio Apóstolo Paulo pensava sobre si
mesmo. Ele via a si mesmo como líder de uma nova religião distante ou incongruente com
os ensinamentos de Jesus? Ou será que ele se enxergava como herdeiro das tradições e
ensinamentos deixados pelo mestre de Nazaré?
O próprio apóstolo testifica que sua experiência na estrada de Damasco imprimiu
nele a convicção de que Jesus era o Senhor ressurreto, esse aspecto ficou marcado em
sua consciência. O Senhor ressurreto, que lhe apareceu em visão, era idêntico ao Jesus
histórico, com o qual ele não teve contato como os outros apóstolos. Segundo F.F. Bruce,
“na mente de Paulo, o Senhor entronizado era o mesmo Jesus que havia sido crucificado”.
Apesar de não ter convivido com Jesus como os outros apóstolos, os escritos
paulinos são os registros literários mais antigos sobre os eventos marcantes da vida do
Senhor. Para Udo Schnelle, as epístolas paulinas, estão tomadas de elementos que
demonstram a preocupação de Paulo em se afirmar como herdeiro de tradições históricas
(inclusive daquelas registradas nos evangelhos) e representante do Cristo crucificado,
jamais como alguém com autoridade intrínseca para introduzir princípios contrários àquilo
que o Mestre teria ensinado.
Pelas epístolas, podemos ver claramente que Paulo sabia que Jesus era
descendente de Abraão e Davi, viveu sob a lei judaica, foi traído e instituiu uma refeição
memorial de pão e vinho na noite de sua traição. Jesus sofreu a morte por crucifixão,
método romano de execução, com autoridades judaicas também responsáveis por sua
morte. Após ser sepultado, ressuscitou no terceiro dia e foi visto por várias testemunhas
oculares, algumas vezes em grupos, incluindo até quinhentas pessoas, a maioria das quais
ainda vivia vinte e cinco anos depois. Segundo Michael Gorman, o evento histórico da
crucificação de Jesus, seria o conteúdo mais central da pregação de Paulo e o altruísmo de
Jesus em abrir mão de sua glória celestial para encarnar e morrer na história seria o
paradigma ético do comportamento cristão em toda a teologia paulina.
Paulo tinha conhecimento dos apóstolos, como Cefas (Pedro) e João,
mencionados como "colunas" da igreja de Jerusalém quinze a vinte anos após a morte de
Jesus. Ele também conhecia os irmãos de Jesus, incluindo Tiago, chamado de "coluna".
Paulo sabia que muitos apóstolos e irmãos eram casados, mencionando especificamente
Cefas (Pedro) nesse contexto, o que se alinha com a história dos evangelhos sobre a cura
da sogra de Pedro.
Paulo cita ensinamentos diretos de Jesus em algumas passagens, e mesmo
quando não o faz, mostra familiaridade com a substância de muitos deles. Paulo enfatiza a
"mansidão e benignidade de Cristo", refletindo a descrição de Mateus sobre Jesus ser
"manso e humilde de coração". Ele destaca a importância de seguir o exemplo de Jesus,
que negou a si mesmo, e exorta os seguidores a suportarem as fraquezas dos fracos, não
agradando a si mesmos. Seus comentários sobre divórcio e novo casamento, sobre a
necessidade de remuneração de trabalhadores do reino, o pagamento de tributos à Roma,
o amor como resumo da lei (“de Cristo”), são extremamente consistentes com os
evangelhos.
Thomas Schreiner, afirma que Paulo não conhecia os evangelhos escritos como os
temos, mas sua tradição atribuía a Jesus as mesmas qualidades éticas que são retratadas
nos evangelhos, e ele elogia essas qualidades, uma por uma ou de modo abrangente, como
um exemplo que seus convertidos e outros devem seguir.
Em resumo, Paulo destaca aspectos da vida e dos ensinamentos de Jesus que
coincidem com as outras tradições preservadas sobre o Senhor. Ele assegura que o
evangelho que prega tem a mesma base dos outros apóstolos, apesar de não ter sido
companheiro de Jesus na terra nem dos apóstolos originais. Na mente de Paulo, não existe
uma ruptura ou uma descontinuidade entre a sua pregação e os ensinos de Jesus. Pelo
contrário, ele considera a si mesmo um herdeiro e transmissor daquilo que é a mensagem
proveniente da boca do próprio Cristo.

“Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos
nossos pecados, segundo as Escrituras”
1Coríntios 15:3

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