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Chte Chlo
DB
LETRA
Marta Melo,1988
Melo, Marta.
M486e O estranho caso do sapo de Mucironga/
Marta Melo; ilustrações Roberto Negreiros.-
São Paulo : Atual, 1988.
(Série tirando de letra)
CDD-028.5
88-0955
LUYLVVV
24681097531
1. Coisa do Cão 1
2. Assunto de homem macho 9
3.A proibição do General 20
4. A assombração... 25
5. A lei dos generais 32
6 0 lixo atômico... 38
7. Gosto de doce de manga verde 46
8. A aparição de Firmino 52
9. Sapo ou robô?. 59
10. O casamento do General.. 66
11.A morte do coronel Clarindo 71
12. Sodoma e Gomorra 76
13. Mulher de sapo 82
COISA DO CÃO
parece mentira o caso do General, mas juro que não é. Juro pela alma da minha mãe e
do meu pai. Vou contar esse caso porque tenho meus motivos.
Mucironga era uma cidadezinha pra lá dos confins do Judas, isolada do mundo
por culpa da geografia: encravada no pé da Serra Geral e cercada pelo Tocantinzinho.
Eu morava lá com meus pais quando o General deu as caras.
Lembro-me bem, como se fosse hoje, da chegada do General. Chegou sozinho,
passou por baixo da cerca de arame farpado e foi pulando até a porta da sala. Fiquei
observando-o com a curiosidade de molecote (estava com treze pra catorze anos),uma
vontade danada de cutucá-lo com um pedaço de pau, de jogar pedra pra ver sua reação.
Ele, indeciso ou desconfiado, não entrava porta adentro nem ia pro quintal. Pareceu-me
cansado, jeitão de quem viajara um mundaréu velho de dias, papo gordo pulsando
incessantemente.
Mamãe não gostou de vê-lo plantado na varanda, olho comprido espiando a sala,
esperando convite pra entrar. Gritou, feio, que eu o enxotasse. Obedeci, mas quem disse que
o General obedecia?! Tentei de tudo para expulsá-lo de casa, naquele dia. Tentei — como
papai e o padre Antônio também tentaram.
Papai havia chegado pra almoçar já passada a hora, enfezado, não dera certo um
negócio de vacas paridas, negócio bom toda vida . . . Passara duas semanas falando nisso,
contando com o ovo antes da galinha botar • Creio que foi isso, juntado com a fome, que o
fez estourar logo de cara com o General. Foi um meu-Deus-o-que-é isso?! Não queria ninguém
com cara de dono em nossa casa. Apanhou a enxada, voz bem grossa, disse a mamãe:
— Cidinha. . . ou ele sai por bem ou sai morto.
Ela se apavorou:
— Não, Clementino! Dá azar matar sapo. — Que azar o quê?!
Perdeu do meio-dia pra tarde de serviço tentando expulsar ou matar o General.
Quebrou o cabo de duas enxadas, entortou o facão, par fim desistiu:
— Esse bosta deve ser arte do Excomungado.
— Te esconjuro! Cruz-credo! — Mamãe se benzeu toda aflita, não gostava nem de
ouvir falar no Excomungado. — Melhor Silvino ir chamar padre Antônio.
— Silvino?! Ele não vai dormir na roça?!
— Que nada! Vem pra cá toda tardinha. Está de cabeça virada pro lado de Betina. —
Mais essa!
Nem esperei que me mandassem ir buscar o empregado de papai, disparei feito raio
pra cozinha e, sem ao menos respirar fundo, gritei:
— Silvino! Papai quer ver você agora.
Ele deu um salto, assustara-se com a minha presença. Na hora, pensei: "o que será
que estão fazendo de errado?!" Quem se assusta tem culpa no cartório. E me pareceu que
tinham, mesmo! Ajeitou o cabelo, a camisa, olhando-me de rabo de olho pra ver se eu estava
notando a cara lambida de Betina.
O que seu pai quer, Zacarias?. — tentou falar
grosso, disfarçar a sem-graceza.
— Vá lá — disse-lhe, frustrado comigo mesmo. "Se eu não fosse tão estabanado, teria
visto . . diacho! Da próxima vez, venho na ponta dos pés", prometi a mim mesmo.
Silvino se apresentou na varanda, notou o ar contrariado de papai, sondou:
— Não é comigo não, né, seu Clementino?! Só estava tomando um café na cozinha.
Zacarias me pegou já de saída. . . Não demorei um tiquinho lá.
— Escute aqui, cabra safado! . . . Depois a gente conversa sobre isso. Está careca de
saber que não admito sem-vergonhice dentro da minha própria casa. Só que agora o assunto
é outro.
— Não faço sem-vergonhice, seu Clementino. . .
ainda mais na cozinha do senhor. . . Era só. . .
— Silvino'. — papai se avermelhou de raiva. Vi a hora em que ele descontava a raiva
que sentia do sapo, arrebentando o rapaz.
Mamãe tratou logo de acalmar os ânimos, explicou a Silvino o que tinha acontecido:
que o Excomungado havia mandado um sapo rezado lá pra casa, que o sapo não arredava pé
do lugar onde se plantara, que Silvino chamasse o padre Antônio depressa, antes da missa
das sete da noite.
Silvino balançou a cabeça, rejeitando a idéia de mamãe. Falou alto, queria que Betina o
escutasse, notasse que era valente:
— Ora, dona Cidinha! Não vê que não precisa de padre?! O que ele faz, faço melhor.
Rezo um credo nas costas desse bicho aí que ele volta ventando pra casa do Excomungado.
Papai estrilou:
— Você só sabe arrotar grandezas, Silvino. Na hora do pega-pra-capar, mija nas
calças. Se eu não o conhecesse, homem!
Fui com Silvino buscar o padre. Ele se preparava para a missa, rascunhava num papel
umas coisas pra falar no sermão. Demonstrou claramente não ter apreciado a nossa chegada,
e menos ainda o recado que lhe transmiti.
— Não tem cabimento me chamar para benzer casa por causa de sapo! — falou, voz
alterada, dedo em riste, bravo que só vendo.
— É um sapo diferente, padre.
— Não existe sapo diferente. . .
Mas papai era homem de grandes posses, a igreja vivia numa pendura de dar pena . . .
Padre Antônio não viu outro jeito senão o de vir à nossa casa resolver o problema provocado
pelo General.
Mamãe, vendo-o chegar, desabafou:
— Faz dez horas que essa coisa está plantada aí, padre Antônio. Dez horas! Deve ser
arte do Excomungado. . . Clementino acha.
— O que é isso, dona Cidinha?! Claro que não' Queria que me arrumassem uma
vassoura.
— Vai benzer com uma vassoura, padre?' Betina se espantou.
— Não. Vou espantar o bicho, coisa que vocês mesmos deviam ter feito. Até parece
que nunca viram um sapo!
Papai deu de ombros sorrindo, riso estranho. Sabia que o expediente arrumado pelo
padre não daria certo, aquele sapo era diferente. E teve razão, não deu certo mesmo.
O General, quando sentiu a primeira vassourada no corpo, não gostou. Pulou,
rompendo com a imobilidade de dez horas, deu outro pulo logo a seguir, se encostando no
padre, que recuou instintivamente, jogando a vassoura longe.
— Está com medo, padre?! papai perguntou, pura maldade. . . Como se o coitado
tivesse culpa do sapo ter-se arranchado lá em casa!
— Claro que. . . — ele murmurou, tentando inventar coragem. Mas, repentinamente,
gritou: O que é isso, gente?! Esse. esse. . .
Ninguém mais conseguia dizer nada. Já vimos sapo inchado de raiva, parecendo bola
de futebol; mas inchado como o General, nunca! Também não posso dar certeza de nada: era
noite, mais de sete horas, luz de lamparina, e o medo faz coisa tudo cresce, vira monstro em
Mucironga. Na hora não consegui pensar que aquilo podia ser uma miragem. . . Quem tem
sangue frio diante de um sapo quase do tamanho de um bezerro?! Frente a frente um o padre,
medindo poder?! . . . Não posso dar certeza de como se deu a transformação do bicho, mas
do seu tamanho, isso afirmo, reafirmo, até juro pela vida eterna da minha mãe: o sapo ficou
quase do tamanho de um bezerro desmamado.
Nem sei contar como o padre teve cabeça pra se lembrar de jogar água benta no
monstro e ainda gastar um pouco de latim! Sei que era latim porque fiquei internado num
seminário uns dois anos, mamãe cismou que eu havia nascido pra ser padre, fazia o maior
gosto do mundo. Só que não deu certo, arrumei umas baguncinhas por lá, fui pego bebendo o
vinho do padre André. . . mas isso não vem ao caso. Mandaram-me de volta pra casa, que eu
voltasse quando tivesse juízo. Jurei que, se precisasse de juízo pra voltar ao seminário, não ia
ter nunca! Não nasci pra vestir batina. . .
Padre Antônio rezou em latim, não adiantou nada. Nem a água benta! Ela parecia
fermento, caía no General fazendo-o estufar mais e mais. Quando, no outro dia, comentei isso
com mamãe, mandou-me confessar, que ninguém pode chamar a água do padre de fermento.
Confessei nada, até padre Antônio achou que parecia fermento mesmo.
No momento em que o General ia varando telhado afora, saí numa disparada doida,
esquecido do breu da noite, dos buracos lamacentos das ruas. Só estaquei na praça da igreja,
e lá mesmo desembuchei tudinho, tentando socorrer minha casa.
O prefeito, Curió, Julião e seu Quim da Tonica ouviram-me, olhos esbugalhados de
espanto, parecia até que estavam acreditando na minha história. Mas qual! Estavam era
espantados por eu ter tido coragem de inventar uma mentira cabeluda daquelas, foi o que o
prefeito falou, zangado que só vendo!
Agarrou-me a orelha — por um azar muito grande, se achava no direito, era meu
padrinho de batismo levou-me pra casa.
Vou mandar seu pai lhe passar o couro, seu moleque mentiroso! ameaçou-me, já
diante do portão de casa.
Nem bem acabou de esbravejar, largou-me de lado pra botar as mãos na cabeça e
invocar Nossa Senhora dos Desvalidos. Nunca, depois, tornei a ver outro homem mais
apavorado que ele no momento em que viu o sapo maior que o pé de jatobá.
Papai o viu e gritou:
— Chegou em boa hora, Soares. Vamos entrando. . .
Padrinho não sabia se entrava, se corria de volta pra
praça, ficou que nem estaca, gaguejando:
— Q. . . que. .. é ...?!!!
— Coisa do Cão.
— Só . .. po...po...pode
Tinha mais gente indecisa no portão, além do padrinho. Curió, Julião, seu Quim da
Tonica e mais um bando velho de beatas, inconformadas com a ausência do padre na igreja
para a missa das sete, queriam uma explicação:
— Onde já se viu padre deixar de dizer missa por causa de um sapo qualquer?!
Mas quando viram o General, foi uma gritaria de não acabar mais. Não arredaram os
pés do lugar, algumas fizeram menção de rezar; depois, vendo o padre acuado pelo monstro,
concluíram que nem reza adiantava mesmo. O negócio era procurar ver tudinho, muito bem
visto, pra contar pela cidade afora. Era um prato feito, muito bem feito, aquela novidade
esquisita que aparecera em Mucironga...
— Vamos chegando, gente — papai convidou, apenas por educação.
Ninguém se atrevia a atender o convite de papai. O sapo gigante tinha cinco estrelas
brilhando no papo, coisa horrível! Arte do Excomungado, ninguém duvidava disso.
Seu Quim da Tonica, jagunço do coronel Clarindo, alisou demoradamente o cabo do
38 preso na cintura. Qualquer movimento do bicho pro seu lado, atiraria. Mas nada do General
dar sinal de que estava ao menos enxergando-o, coisa que lhe desagradou muito: apreciava
atirar pra ver qualquer vivo estrebuchando de dor até morrer; sentia comichões na nuca que
só passavam quando agarrava a danada, marcava pontaria e bumba! Assim sem mais nem
menos não podia agir, ainda mais na casa de papai. Resolveu pedir permissão, como quem
não queria nada:
— Precisando de ajuda é só falar, seu Clementino. — Dessa vez não, seu Quim, Ê arte
do Cão. Só Deus pra nos livrar.
— Abaixo de Deus tem o cano do revólver.
— Não é do meu feitio . . Nao gosto de arma de fogo.
— Gosta é de conversa pra boi dormir, conversa macia, não, seu Clementino?! —
falou pra provocar, até notei. A veia do pescoço de papai engrossou, ia partir pra briga.
Mamãe ficou com medo, o bate-boca entre o jagunço e papai podia engrossar, não
respeitavam nem a presença do padre, falta de delicadeza! Pediu calma, que a prosa ficasse
pra outro dia, não se esquecessem de que estavam ali unidos pra dar jeito no sapo do
Excomungado. Papai, numa má-vontade tremenda, balançou a cabeça, concordando; seu
Quim ficou amuado, beiço caído, resmungando que não existia homem peitudo em Mucironga,
tudo uns frouxos agarrados nas saias das mulheres.
Eu não queria entrar em casa de jeito nenhum. Finquei pé junto do Curió, olhando tudo
de longe. Mas o sono era grande; procurei vencê-lo e, não conseguindo mais avisei, aos
berros, que ia dormir no barracão do Firmino. Mamãe deu o contra, não ficava bem, melhor a
casa da madrinha Alice, mulher do prefeito. Até ia comigo, não pretendia dormir em casa
enquanto não dessem fim na assombração.
No caminho, olhei pra trás. Não avistei o General, e falei:
— Acho que ele murchou de novo, mamãe.
— Virgem Santa, tomara! Estou com tanto medo! Tenho dó de homem numa hora
dessas, ter de ficar pra defender a casa . . Estou com uns pressentimentos ruins . . . Queira
Deus que eu esteja errada!
ASSUNTO DE HOMEM MACHO
essa noite, Mucironga não conseguiu dormir de medo do Excomungado. Quem não
estava de tocaia na rua de casa, vigiando os movimentos do General, rezava ou na
igreja ou nas casas das beatas. Mamãe saiu com madrinha pra rezar, terço puxado
pela velha Ana, benzedeira das boas e parteira da região. Deixou-me com Justina,
empregada da madrinha.
Lá pelas tantas, já havia dormido um sono, ouvi um assovio conhecido: era
Firmino. Levantei-me de mansinho, passei por Justina, que roncava, num sono
profundo, debruçada sobre a mesa de jantar, e cheguei à janela da frente, tirei a
trava, abrindo-a.
-Firmino...-murmurei.
Ele fez meia-volta, veio até onde eu estava.
- Precisava falar com seu pai, Zacarias. Mas com aquele fuzuê que está lá. ..
Não sei não! Descobri umas coisas, que só ele...
-Eu não sirvo?
Riu,riso debochado. Não fiz caso.
-Eu não sirvo?!
- Que é isso, Zacarias?! É assunto de homem macho! Só que, pensando bem, você
pode me dar uma ajuda.
tinha outra mulher, que Firmino ajudava a amoitar pra mamãe não vir a saber'?! Será
que meu pai era disso?! Vovó dizia que não existe homem santo, que tudo é um bando de
sem-vergonha ...
Fiquei matutando um tempão, até imaginando como seria a tal dona. Se fosse bonita,
diria que papai era casado. .. Ela iria chorar, aí eu consolaria . . . Esses pensamentos me
deixaram meio perdido no tempo; assustei-me com o grito de Firmino:
— Vem ou não vem?!
— Pois é, filho. Seu padrinho arrumou uma proibiçâo aí. Ninguém pode
acompanhar Firmino ao cemitério, nem a viúva. Elc se encontrou com o
Excomungado, ninguém deve se meter.
— Mas não aconteceu nada! Eu estava lá!
— Melhor esquecer que estava com ele, Zacarias — mamãe falou. Pro seu
bem. Agradeça o fato do prefeito ser seu padrinho. . . Mucironga já não é mais a
mesma. —-- Ela tinha o rosto triste de quem sabia muito mais do que podia falar.
Papai se levantou da rede, andou de um lado para o outro, a boca semiaberta,
escolhia as palavras com cautela. Não era hora pra dizer tudo o que desse na veneta.
Esperei com paciência, senti que o assunto era comigo.
— Zacarias. . . — ele disse —, não vim no mundo para criar covarde. Não
precisa esquecer que estava com FA '. Firmino. . . Nem precisa agradecer aquele
safado do seu padrinho. Só lhe peço uma coisa: por enquanto, obedeça às proibições,
é melhor pra todo mundo. Firmino foi assassinado, você estava por perto, vão ficar
de olho, não o deixarão sossegado. Escute o que estou lhe dizendo. Eles estão com
medo. Cuidado com gente que está com medo. Muito cuidado!
— Quer dizer que não posso ir ao enterro de Firmino?! Ele era meu amigo!
— Era meu amigo também, Zacarias. Nem a mulher dele pode ir. Ninguém.
Pra não haver tumulto. Não é pra ninguém ir. Segundo seu padrinho, é proibição do
General.
Essa, agora! Meu padrinho deve ter ficado pinel! Proibição do General, como?!
Sapo proibindo coisas?! Se ao menos fosse sapo do Excomungado' E foi assim que
me lembrei do recado:
— Papai . . . o Excomungado disse não ter nada a ver com o sapo. Que o
negócio dele é outro.
Papai riscou a mesa com a unha, raspou a garganta,
duvidou:
— Quem é neste mundo que admite alguma culpa, Zacarias?! Vivemos de
mentiras. . . E existe mentiroso maior que o Demo?! Existe?! O sapo é coisa arranjada
do Excomungado, disso não tenho dúvidas.
A ASSOMBRAÇÃO
sapo falou, Silvino? - perguntei ao empregado de papai.
Silvino fez cara de importante, olhou bem pra mim, riu de banda, pensei até
que não ia desembuchar o caso. Errei.
- Sou capaz de jurar que falou.
-Falou o quê?!
- Aí que a porca torce o rabo, Zacarias. Não pesquei nadinha!... A prosa dele
é da outra banda, pro-sa de gente estudada.
A curiosidade foi aumentando dentro de mim; queria porque queria
bater um dedo de prosa com o General. Aquilo era bom demais pra ser
verdade. Sapo falante! Saí à procura do dito cujo, não o encontrei.
-Onde está o sapo, mamãe?
- Escondido no quarto dos fundos.
-Escondido?!
- Até se acalmarem os ânimos por causa do assassinato de Firmino.
De fato, a rua de baixo estava pegando fogo de raiva. Os amigos de Firmino
achavam uma injustiça das grandes não poderem acompanhá-lo ao cemitério.
Montaram barricada diante do barracão do rapaz: o corpo não saía sem
acompanhamento, não senhor!
— Não sei. Silvino disse. — Ela não queria conversa, estava na cara. E
também já não chamava o sapo de sapo, era General pra cá, General pra lá.
Não fiz caso, joguei outra pergunta:
— O que tem a ver a morte do Firmino com o General?
eu a doida na minha madrinha. Ela queria porque queria hospedar o sapo. Disparou
a mexer os pauzinhos para tirar o General de nossa casa.Além disso,o coronel
Clarindo, acobertado por padrinho, atiçava os fazendeiros menos graúdos contra
posseiros e agregados da fazenda. Tudo porque o corpo de Firmino não fora jogado
onde o General queria.
Papai me aconselhou a não abrir o bico, tinha uns planos para derrubar o
padrinho do poder. Mas não suportei tanta injustiça pro lado dos posseiros, fui à
Prefeitura e confessei:
- Quem enterrou Firmino fui eu. Mais ninguém e contei o caso todo. Mostrei a
perna quebrada e a rede.
Padrinho me agarrou pelo braço, chamou dois cabos da polícia e fomos ao local onde
enterrei Firmino. Fiquei de queixo caído: nem sombra do buraco no chãos cabos os cavucaram por
todo lado, nada de Firmino. Se eu não tivesse visto a enxada sem cabo e o meu canivete no pé da
árvore, teria ficado pinel. Alguém roubara o corpo... alguém dera sumiço no buraco. Quem?! Só
meu pai sabia do caso, mas ele não daria conta de dar sumiço em buraco, raciocinei. Só podia ser
coisa do Demo.
Betina se jogou no chão chorando, pedindo clemência, nunca vira coisa igual em toda
a vida, só podia ser uma guerra. Silvino pediu permissão a papai para sc defender
com a espingarda. Morria, podia morrer, mas matava dez e aleijava vinte.
Deixe disso, cabra medroso! — papai grunhiu, a raiva saindo até pelos
ouvidos. — Esses desgramados só querem o sapo. Não vê?!
Observei que depois da lei dos generais, papai e ma. mãe faziam questão de
chamar o General de sapo. .
— Vão arrebentar a casa — mamãe se lastimava.
— Não vão nada. Estão esperando a sirigaita da sua comadre. . . e o maldito do
prefeito — papai tentou acalmá-la.
Era verdade. Dali a pouco, padrinho e madrinha chegavam numa camioneta mais
enfeitada que árvore de Natal, carroceria forrada de cetim e outros fricotes, luxo igual
nunca vi nem nas procissões da igreja.
Padrinho desceu, ajeitou a gravata, passou revista na tropa de reforços, acenou
para o cordão de puxa-sacos, papai observando tudo com desprezo e raiva. E eu me
coçando de curiosidade, queria ver no que ia dar tudo aquiIo. . . Queria escutar o General
falando com o povo. . . Só que fiquei meio murcho: papai não desafiou ninguém; não
abriu a boca nem pra xingar meu padrinho. Recebeuo de pijama mesmo (pela cara de
madrinha, vi que ela
tomou a coisa como uma desfeita, porém ninguém fez caso de sua cara azeda).
— O sapo está no quarto dos fundos — mamãe avisou. — Podem
pegar o bicho.
— General, comadre.
— Sapo, compadre mamãe rebateu. Parecia que estava a fim de uma briga.
Mulher valente! (Às vezes, claro!)
Padrinho resolveu por bem ficar calado. Seguiu com a comitiva até o quarto
dos fundos. Pensei com meus bo36
toes: • 'O bicho vai sair andando e conversando que nem gente. Essa eu não perco! Depois
conto lá no colégio .
Ah! se conto!"
Que decepção! O sapo saiu pulando como qualquer sapo de brejo. A única
diferença era o tamanho e o terno cinza dos bons, a gravata enterrada no papo gordo.
E não falou nada! Não abriu a boca nem para agradecer a hospedagem. Nada! Foi
embora pulando. . com um bando de bestas atrás.
Senti um vazio enorme dentro de mim — não porque quisesse o danado do
sapo, lógico! Foi porque não consegui dar nem um dedo de prosa com ele, porque não
consegui descobrir o mistério que o envolvia. Só isso.
Papai passou a mão nos meus cabelos, notara meu jeito triste. Profetizou:
— Acabou nosso sossego. Mucironga está agora nas mãos de um irracional.
Estamos perdidos.
Mamãe discordou:
— Ora, Clementino! Ê apenas um sapo!
Sorrindo, sorriso descrente, papai afirmou:
— Era apenas um sapo, Cidinha. Agora, querendo ou não, é um General no
poder. Vai mandar até no Soares, você vai ver. Vai mandar e desmandar, e quem chiar
irá para o brejo. Estamos no mato sem cachorro. . , principalmente agora que Firmino
morreu.
Fiquei matutando novamente: qual era a importância de Firmino?! E onde foi
parar o corpo dele?! Que coisa estranha! Teria sido papai quem o retirou da cova que
arrumei?! Ou será que sonhei com a bendita cova de Firmino?! Ninguém me ajudava.
Nem meu pai. Todos estavam de segredinhos.
— Agora a lei de Mucironga será a lei dos generais, Cidinha.
— Será que isso é ruim mesmo?! — Ruim?! Bota ruim
nisso!
O LIXO ATÔMICO
adre Antônio, culto como só ele, viajado, tinha sua própria teoria para explicar o
tamanho descomunal do sapo. Quero dizer, do General. Ele me disse que o
General era apenas um sapo. Um sapo diferente, claro! Um sapo que foi
alimentado pelo lixo atômico das grandes potências.aqui?!
Um acordo internacional, Zacarias. Mucironga só podia exportar carne se
aceitasse o lixo... os graúdos fizeram o acordo. E mucironguense não é de criar caso, nem
sabe o que é lixo atômico. E o lixo foi para o brejo.
Nem eu sabia o que era esse tal lixo atômico, nem sabia desse acordo internacional.
Santa ignorância a minha!
O padre continuou:
- Sapo era o que não faltava no brejo, tudo dado por coisa importada, etiquetada com
a famosa frase MADE IN USA.
- Mas, padre! Se fosse assim, todos os sapos estariam do mesmo tamanho do
General.
- Que nada, Clementino. Existe a lei do mais forte. Uns comem mais que os outros... além disso, o
Excomungado deve ter botado as manguinhas de fora, escolhido um dos sapos. . o mais
irracional de todos. Ninguém dá ponto sem nó.
O Excomungado me disse não ter nada a ver com o peixe. . . — rebati.
É a maior prova de que tem, Zacarias. Se negou é porque tem. E Firmino devia
saber de alguma coisa. .
Senão não ia lá de peito aberto!
Por falar em Firmino, padre. . . é verdade o que o povo anda dizendo?!
Nem pense nisso, Zacarias. Melhor para você. Por que, padre?!
Não sei. Há muita fantasia nessa história. Melhor desconhecê-la.
O senhor acredita no que o povo está falando?!
Em parte, sim. Acredito no povo, mas. . .
Minha cabeça parecia que ia estourar. . . Foi zunido em cima de zunido. Se o padre
acreditava, então era verdade! Firmino revivera! Revivera por obra do Demo! Que coisa' "Que
ele não me apareça agora!" desejei.
Uns dias se passaram e a história do lixo atômico acabou com a boateira em torno
de Firmino.
A história do lixo atômico correu de boca em boca; uns acreditavam, outros não.
Na verdade, do jeito que a coisa estava indo, era melhor não acreditar. Padre Antônio mesmo
foi avisado de que seria preso e julgado se continuasse agitando o povo. Ninguém podia
duvidar da formaçao do General.
Silvino ouviu a história do padre, passou dias matutando. . . E se fosse no brejo?!
Devia ter sobrado algum lixo atômico por lá . . .
— Endoidou, Silvino?! — escutei Betina lhe perguntando, voz assustada.
— Endoidei não. Cansei de ser baixinho. Como o lixo. que nem o sapo, fico maior que todo
mundo.Deixo de ser nanico.
Ninguém conseguiu tirar de Silvino a idéia de aumentar de tamanho comendo
lixo importado. Numa tarde, sumiu pro lado do brejo. Fui atrás, rente no rastro dele.
Só que não vi nada, nadinha mesmo. Silvino entrou no brejo e desapareceu.
Fiquei na moita esperando um gigante na certa ele estava escondido comendo o lixo
atômico e, quando aparecesse . . . Não apareceu!
Voltei pra casa, contei para papai sobre o sumiço de Silvino. Ele deu um muxoxo,
não sei se foi de desprezo ou desinteresse,
— Estamos ficando cada vez mais no mato sem cachorro — falou.
Por pensei. Sabia que não ia adiantar perguntar o motivo; papai não diria.
Um mês depois, vi Silvino, do mesmo tamanho de antes, no volante do carrão
preto do General. No banco traseiro, o prefeito e o Excomungado. — Silvino?'. . — gritei.
Nem me olhou, sentia-se grande.
Em casa contei pra Betina. Vivia chorando a morte do noivo, pensei que fosse
dar pulos de alegria sabendo-o vivinho da silva. Que nada! Chorou mais ainda, xingou-o
de excomungado e mais um bando de coisas.
Nesse mesmo dia, nem bem começávamos a jantar, apareceram cinco homens (pra
mim, nenhum deles era homem, pareciam bichos, sapos, pra ser mais exato Apareceram,
não abriram a boca, agarraram papai e o levaram.
Quis correr atrás, mas mamãe me segurou firme; Betina a ajudou.
— Por quê, mamãe?!
— Seu pai é contra. Sempre foi. Eles sabem. Por isso, o General apareceu
aqui em casa quando chegou.
Veio espiar seu pai, fingindo de sapo.
— O General não finge de sapo. . . ele é sapo.
— Pare com isso, Zacarias. Está me saindo igualzi nho a seu pai!
— Papai é contra o quê?! Eles sabem o que de papai?!
—Você é muito perguntador, Zacarias. Melhor não saber de nada — mamãe
suspirou de pesar.
Pois muito bem! Se não queria contar nada, eu mesmo iria descobrir. Começaria
pelo tal lixo atômico. Que diabo de lixo era esse?!
Fui ao brejo no dia seguinte, de manhã bem cedo, antes de mamãe acordar.
Atravessei por dentro do cemitério, o brejo ficava nos fundos. A sapaiada toda estava
por lá, comendo mosquito, numa folga de fazer inveja. Nenhum se incomodou com
minha presença. Estranhei. Sapo, quando vê gente, imobiliza-se. Mesmo assim, não me
bateu medo algum. Tinha que ser valente e descobrir tudo. Não mataram Firmino, não
deram sumiço no meu pai Então?!
Atolei as botinas no lamaçal, procurando o lixo. Nem sabia como era, por certo
era diferente dos outros lixos. Já estava na metade do brejo quando vi que me seguiam,
rente. Eram os sapos. Virei-me para sair dali. Cruz-credo! Dispararam a crescer! . . . Não
tinham mais jeito de sapo, eram os soldados do reforço da banda de lá. Não gosto nem de
lembrar. . Continuei andando, fingindo procurar borboletas, libélulas, qualquer coisa. O
único o era não recuar, andar em frente. Quando eu fazia lenção de dar o pira, os soldados
me ameaçavam com baionetas; quando fingia procurar borboletas, só via sapos pulando
atrás de mim, rentes.
Devo estar ficando louco . . . só pode ser alucinação — Comecei a falar sozinho pra
ouvir minha voz:
— Não estou com medo, não estou , é pra se molhar, mesmo. .
Não foi nada, não! Nem bem acabei de falar em chuva, caiu uma chuva de
pedras em cima da minha cabeça. Só chovia onde eu estava. Por mais que desviasse, a
chuva me cercava feito maluca, as pedrinhas de gelo me machucando todo. Chorei, estava
com medo mesmo. O remédio era chorar. . E a chuva parou. Decidi ir-me de lá, com soldado
ou sapo na minha cola, tanto fazia. Ficar, não ficava mais, não! Mas meus pés estavam
atolados, pesavam feito chumbo.
— Virgem Santa'. — faiei bem alto. ----- Se eu conseguir sair daqui vivo, prometo tapar
o buraco que fiz na parede do banheiro de Betina. . . Nunca mais vou olhar Betina tomar
banho. Juro! Tiro tudo que for caraminhola da cabeça, não penso nem no beijo que quero
dar na Glorinha. . . Não fico mais agachado debaixo da mangueira para espiar as meninas
da dona Sinhá lá em cima chupando mangas. Juro!
Jurei juramento difícil que só vendo! Me deu até uma dorzinha de lado — imagine,
ficar vivo, mas sem ver mais nada! Será que valia a pena?! Matutei um tempão, vi que não
seria capaz de tirar as caraminholas da cabeça, e também sabia que a Virgem Santa não
era boba, o juramento tinha sido da boca pra fora.
Foi nesse meio tempo que me apareceu, em carne e osso, o Excomungado. Ele
emergiu do brejo! De boca aberta, olhos arregalados, fiquei esperando: iria afogar-me na
lama, por certo. Ele ria, eu ri amarelo. . . Melhor é fingir de amigo. Mas quando dei de cara
com o gato do olho de fogo, meu riso sumiu.
— Está com medo, Zacarias?!—o gato me
perguntou.
Fiquei feito bobo, sem saber o que dizer. Gato falando?! Era muito pra minha
cachola. Muito.
— Ele falou com você, menino — o Excomungado me apontou o gato. — Quer
resposta.
— Estou com medo, sim. Por que não havia de estar?!
— Melhor assim — o gato comentou. — Venha.
— Estou atolado — avisei.
— Desatole o menino — o Excomungado ordenou a um soldado.
O soldado, que mais me parecia um sapo, enfiou os braços debaixo dos
meus sovacos e me arrancou da lama. Ainda me carregando, jogou-me no buraco
onde o Excomungado estava. Caí, batendo a cabeça na bota do homem, depois fui
rolando terra adentro como se estivesse num escorregador. Só parei numa sala
escura, cheia de lampiões de azeite. No centro, vi uma mesa enorme. . .
E sobre ela, o corpo de Firmino.
— Está ferrado no sono — o Excomungado falou. — Vou acordar. . . quero que ele
fale com você.
Enquanto o Excomungado sacudia Firmino para acordá-lo, o gato
encarapitou na minha cabeça. Não sei como não desmaiei! Tudo aquilo era
medonho, pior que as histórias de assombração que dona Sinhá contava em noite
de lua cheia.
Firmino acordou, assustado, e olhou-me.
— Zacarias! Você não tem cabeça, mesmo! —reclamou.
Não dei um pio. Conversar com defunto era demais para mim.
Ele continuou:
— Seu pai está morto, Zacarias. Ali, naquele canto. Olhei tremendo pro tal
canto da sala: meu pai estava com os pés atados nas mãos, emborcado; parecia
morto.
— Meu pai?! — gritei. Não vi como, avancei no Excomungado feito onça, mordendo,
chutando, fiz um escar43
céu danado. Dei um safanão no gato, que pulou longe, miando, o pêlo eriçado,
bravo.
Amarraram-me com uma corda, como se eu fosse um rolo de fumo,
apanharam um coité com um caldo amarelo e me obrigaram a beber a coisa. Bebi,
cuspi a metade, levei bordoadas pra beber mais . . . Depois me deu uma zonzeira, perdi
a noção do mundo, não vi mais nada.
Acordei deitado num túmulo, altas horas da noite, com o gato me vigiando. Dei
um pulo de medo. Ainda meio zonzo, saí numa carreira só, a perna engessada, no
rumo de casa. O gato atrás, miando.
Entrei em casa. Mamãe estava na sala com Betina, desfiando um rosário.
— Mamãe! Me acuda! O demônio. . . papai. . .papai . . eles mataram papai!
Firmino reviveu. . . eu vi no buraco do brejo . . . caí no buraco do brejo . . . e vi tudo.
Betina me enrolou com uma coberta, deitou-me num catre que havia na sala, as
duas não abriram a boca.
— Mamãe! Por Deus! Papai morreu!
— Impressão sua, filhinho. Impressão. Esta cidade está mexendo com seus
miolos. Dorme — foi só o que me disse.
Dormir como?! O gato estava deitado na sala, encostado no pé do catre,
bebendo o leite que Betina lhe trouxe. Dormir como?! Elas riram quando disse que 0
gato falara comigo, que o gato era o Demo.
No outro dia, procurei padre Antônio e sob juramento lhe contei tudinho.
— Melhor esquecer, Zacarias. — ele me disse. — Devo ter errado . . . a teoria do lixo
atômico furou.
devem ter a moda deles para agir . . . Não é lixo atômico...é lixo humano. . . E não
acredite nessa história de que Firmino reviveu. Por certo, nem chegou a morrer.
Tudo embromação. Seu pai está morto nada! É outra embromação. . . Querem
meter medo em você. Por trás disso tudo há coisa maior. É só esperar pra ver. . .
— Esperar, padre?!
— É só o que você pode fazer. Volte para o internato. . . Melhor, não acha?
— Não acho nada! E não volto enquanto não descobrir essa fuazeira. Não volto!
GOSTO DE DOCE DE MANGA VERDE
inha mãe ficou de cabeça oca, parecia boba. Be-tina tomou a frente da
casa. Do meu pai, nem notícia. E Firmino, volta e meia, fazia umas
aparições na cidade em noite de lua cheia. Quem podia estava
debandando de Mucironga. E quem ficava não saía quase de casa,medo
de assombração e do danado do sapo manda-chuva. O sapo ou General
ditava ordens através do prefeito, ordens terríveis. Quem desobedecia
sumia da noite para o dia. Coisa horrível!
Uma das ordens do General se referia ao namoro. Era proibido namorar em
Mucironga, não sei por quê! Segundo um fiscal do namoro, era porque namorar era
algo indecente, um atentado ao pudor.
Essa proibição me atiçou. Fiquei doido pra namorar. Não tinha mais pai pra me
controlar, era só arranjar uma menina. E tinha que ser a Glorinha.
Dei pra rodear a casa dela todo dia. A mãe não deixava sair, medo de a mocinha fazer coisa
errada...Mas eu tinha certeza de que um dia ela sairia de casa, claro! Dito e feito. Saiu
numa manhã de domingo com roupa de ir pra missa. Desde que o General passou a
mandar e desmandar em Mucironga, nós tínhamos de sair com a roupa certa, que
indicasse o lugar aonde íamos, para facilitar o trabalho dos fiscais. Eu vivia com roupa de
compra e com um pacote debaixo do braço, os fiscais já estavam de olho em mim. Um
até me perguntou o que eu tanto comprava. Respondi:
— Coisa pro almoço ou pra janta.
— O General vai aumentar o preço de tudo pra vocês pararem de comprar tanto
avisou-me.
— Vamos ficar sem comer?!
— Não sei. Vai comer só quem pode.
— Eu posso.
— Por enquanto — e saiu assoviando, rindo com os olhos. Sabia, ele gozava
com minha cara. Não entendia por que tanta implicância comigo. Já estava até
acreditando no padre Antônio. Tanta embromação era só para esconder alguma
coisa muito séria. . .
Voltando ao assunto da Glorinha. . . Pois é, ela foi à missa, nem sei se
escutou o que o padre disse. Grudei os olhos nela e ela gostou. Não parou de me
olhar com o rabo do olho. Vi que ia dar pé meu empreendimento. Depois da missa,
calculei.
Nem bem o padre acabou de dizer "Que Deus vos acompanhe", murmurei um
apressado "Amém" e corri até o banco onde a moça estava.
— Venha comigo atrás da igreja — cochichei-lhe.
Me dá um pran — ela concordou, olho safado, e agitando a franja.
Fui na frente, fiquei chutando pedras, esperando. Lembrei-me de que Betina
me dissera que beijo tinha gosto de doce de manga verde. A primeira bocada no
doce, pra quem não está acostumado, assusta. A gente pensa que é ruim. Mas
depois a gente toma gosto e não quer ficar sem o doce. Só de pensar nele, a boca
fica cheia
d'água. O beiio é a mesma coisa. . o primeiro não é grande coisa, mas depois . . .
Então, eu já estava preparado pra ficar sem graça com o primeiro beijo que
daria em Glorinha. . . Meu conforto seria depois, com os outros beijos. Daria mil!
Glorinha chegou por trás de mim, passou a mão nos meus olhos.
— Adivinhe — murmurou.
Fiz de besta, falei o nome de mamãe, de Betina, do padre Antônio, só pra ela
continuar com a mãos no meu rosto. "Ô trem bão!" Fiquei de bobeira, escutando seu
risinho. Isso durou algum tempo.
Depois, não agüentando mais, virei-me, olhei pra sua boca e pensei: "Vai ser
agora". Só que me deu uma bambeira nas pernas, o coração batia forte, as mãos
gelaram! Fiquei fulo da vida, que diabo! Na hora H, eu baqueava, ora!
— Você não vai me beijar, Zacarias?! — ela me perguntou, riso de lado, provocando-
me.
Fiquei chocado com a investida de Glorinha. Naquela época, eu tinha outro
conceito sobre moça direita. Pra mim, moça direita era recatada, esperava ser
cortejada, fazia-se de difícil. Falei:
— Você já beijou outro, Glorinha?!
— E não havia de beijar, menino?!
Encabulado, arrisquei:
— Que gosto tinha?
— Gosto de beijo, uai!
— Gosto de doce de manga verde?
— Se tivesse, não beijava ninguém. Detesto doce de manga verde. Tem gosto de céu,
o beijo.
— E qual é o gosto do céu?!
— Ah! Deixe de baboseira, Zacarias. Então você me chama pra detrás da igreja,
só para falar em gosto de beijo?! Você nunca beijou?!!!
— Cia. Claro que já beijei! Não sou besta — e lasquei um beijo chocho na
boca da sirigaita, Não senti gosto nenhum! Limpei os lábios com as costas da mão
e descontei a frustração. — Ué! Pra quem já beijou, Glorinha, parece que você não . .
que ainda não aprendeu!
— Cabra besta! Pongó! Frangote! — ela ainda ia me dizer mais um punhado
de desaforos, mas foi interrompida pela chegada do fiscal do namoro.
Fomos parar no gabinete do General. Não é que o danado do sapo estava já
maior que um bezerro? Sentado numa cadeira giratória, brincava de girar até a gente
não enxergar a cara do bicho. O prefeito, mais murcho que maracujá maduro,
cutucava-o no ombro para que parasse. Por fim parou, olhou bravo pro prefeito e . . .
coaxou!
— Puxa! Pensei que ele sabia falar! exclamei. — Pois sabe'. — disse o
Excomungado entrando. — Só fala com música.
E daí botou um disco na vitrola, uma música de sextafeira da Paixão. O sapo
disparou a falar. Olhei pra boca dele, nem abria. Falava de boca fechada! Mas eu não
era nada bobo: achei que a fala do bicho estava era no disco, só que não ia arriscar
o palpite. Não queria sumir da noite pro dia.
O General, de boca fechada, me pregou um sermão daqueles! Explicou-me o
que era censura, o que o povo não devia fazer. . . Falou sobre atentado à moral,
essas coisas.
O prefeito balançava a cabeça, confirmando os troços bestas que o General
falava. Eu, de olho grudado no disco. Só queria que o disco parasse de tocar, aí ia
lascar uma pergunta de supetão, pra pegá-lo no pulo. Se ele soubesse falar mesmo,
responderia. Só queria ouvir. . . Foi o que fiz. Perguntei:
— Ainda que mal pergunte, qual é a graça do senhor, General?
—Sapo, Zacarias — ele respondeu.
Jesus! Eu que pensava que era sabido, que já havia adivinhado todo o mistério
da conversa do sapo, e não é que o bicho falava mesmo?! Falava! Não era a vitrola,
nada! Era ele!
Glorinha se agarrou a mim, tremendo, querendo proteção — mas como?! Eu
tremia mais do que ela!
Nesse mesmo dia — era domingo, já disse —O General entregou um pacote para
Mucironga. O pacote foi aberto no meio da praça pela minha madrinha. Dele saíram uns
papos de anjos, balões de gás coloridos, com as ordens do General. Uma delas: era
proibido beijar até dentro de casa, nada de meladeira . . . Beijação era para maricas e
mulher que não tinha o que fazer.
E, para acabar com as maricagens dos homens e com a falta de serviço das
mulheres, avisava ele que os preços das coisas iriam subir a partir da próxima segunda-
feira. Quem quisesse comer melhor que plantasse, quem quisesse roupas que tecesse. .
. Mas ninguém podia se esquecer de pagar os impostos sobre o que fosse produzido
em casa. Ninguém!
Mamãe nem se tocou com as proibições nem com a alta dos preços das coisas;
vivia no mundo da lua, falando coisas sem-pé-nem-cabeça.
Betina foi quem se desesperou. Estava prenhe, barriga do tamanho dum bonde,
incapaz de se abaixar para cuidar de horta. E, para completar seu desespero, Silvino, pai
do seu filho, era o chefe dos fiscais da nossa rua. Ela não agüentava nem olhar pra cara
dele, sumira quando mais precisava de apoio. Isso ela não perdoava.
Mais tarde, Silvino chegou com o fiscal da nossa casa. Mediram o terreno,
fizeram inventário de tudo, perguntaram o que íamos plantar. Eu avisei logo:
— Nada! Vou buscar na fazenda.
Uma hora o coronel está com raiva do genro, outra hora estão em lua-de-mel . . . Aquele
Firlllino e o coronel são angu da mesma panela. posso assegurar!
Angu da mesma panela, não? Vou botar esse angu pros porcos comerem
prometi. Não tinha mais nada a perder. — Vou começar dando um dedo de prosa com o
safado do Firmino, ainda hoje.
SAPO OU ROBO?
pinga rolava solta na venda do Curió. Coronel Clarindo, sentado num rolo de
fumo,um pé no saco de feijão, proseava, arrotando grandezas.Era o único que
jurava não sair de Mucironga.
- Terra boa! - dizia. - Terra boa pra homem macho que nem eu!
-E o Firmino,coronel?- Curió arriscou.
Homem peitudo, aquele!
- Firmino agora endireitou. Está na Prefeitura ajudando o General. Esteve meio
descabecado, mas já tomou jeito. Levei ele pra fazenda, está de novo com a
Rosa e o menino. Não posso perdê-lo de vista, senão perde o rumo.
Foi aí que ele me viu agachado no meio dos trens da venda. Grudou o olho em
mim,firmei a vista. Ele coçou a cabeça,fez cara de pena, falou:
-De que vocês estão vivendo, Zacarias?
- Não sei. Isso é com Betina.
- Por que não vão embora?
- Porque não quero.
- Deviam ir enquanto é tempo. Não tem família noutro canto?!
-Pois não havia de ter?!... Estamos aqui por causa da fazenda. Ela é nossa.
— Era ...
— Agora é do senhor?
— Menino desaforado! Quem lhe disse isso?!
— Assuntei conversa por aí. É do saber do povo que toda terra desapropriada foi
parar no seu bucho.
O coronel se levantou, derrubando com uma botinada o rolo de fumo. Fez sinal
pro seu Quim da Tonica que me levasse. O negão me agarrou, jogou-me de
atravessado no lombo dum burro, montou no cavalo e, pu- xando o burro pela rédea,
tocou pro rumo da fazenda do coronel.
Lá apeou, amarrou o cavalo e me empurrou com força do lombo do burro.
Caí emborcado, o gesso da minha perna rachou, tamanho foi o baque no chão. A
dor foi tão grande que me deu vontade de urinar nas calças. Obrigou-me a
levantar com uma botinada; saí capengando atrás do bandido. Não estava com
medo, não. Não bateu o medo nem quando me amarrou no tronco, cara virada pro
sol, e avisou:
— Quero ver você cego. Ê o que merece.
Fechei os olhos o mais que pude. O sol castigava a minha cara, meus
lábios iam esturricar com o calor, mas não gemi. Esse gostinho não dava para
vagabundo algum.
Horas depois, senti alguém me desamarrando. Quem seria?! Não tinha
força nem para abrir os olhos, uma bambeira tomara conta do meu corpo, já
não me importava mais com nada.
Percebi que me botavam num carro, adormeci. Acordei num lugar
escuro. Alguém passava algodão molhado nos meus lábios. Alguém muito
conhecido: meu pai! Cismei que havia morrido, que estava no purgatório. Só
podia pensar nisso.
— Eles já sabem, Zacarias. Vão abrir inquérito. Prender os culpados. Você terá sua
fazenda de volta. — E o sapo?! ---- perguntei, sério.
Os homens se entreolharam, riram: — Que sapo?!!!
— O General. Então não sabe que Mucironga é governada por um sapo?!
Menino esquisito, esse! — um deles comentou. Firmino balançou a cabeça,
contrariado com minha xeretice. Importei não. Os homens veriam com os próprios olhos.
Padre António me fez sinal, falasse outra hora, não assustasse os homens, tudo
tem vez.
Assim que saíram, Firmino, antes de acompanhá-los, voltou.
— Zacarias, deixe de ser bobo — falou. Lembra do gato? Pois é . . . o gato era um
robô, coisa trazida da estranja, sabe. Não tinha nada a ver com o Demo. Aquela cruz que
joguei era o seu controle, roubei do Excomungado. . . A cruz se espatifou e o gato virou
cinza. Foi isso.
— Robô?! Gato robô?!
— Que nem brinquedo de corda, Zacarias. Só que era mais complicado que
brinquedo de corda. O sapo também é a mesma coisa, entende? É controlado pelo
Excomungado. . . O Excomungado não tem nada a ver com o Demónio. É um doutor em
robô. É sócio do coronel Clarindo.
Não acreditei, não. Gato robô! Vi o danado bebendo leite. . . brinquedo de criança
não bebe leite. Sapo robô... Brinquedo de criança não cresce que nem pé de jatobá, nem
come mosquito. Firmino pensava que eu era besta, só podia!
— E como você morreu sem ter morrido?! E meu pai?!
— Anestesia. . me anestesiaram. Com seu pai foi a mesma coisa. Eles sabem fazer a
coisa. Por isso, não fale besteira pra gente estudada. O General é um robô. Nessa
história não tem nada de Demônio. . coloque isso na cabeça.
— Besta! — murmurei com raiva. Ele ia ver só. O General era robô nada. Ele ia
se estrepar com essa teoria besta.
— Estou indo, Zacarias — ele se despediu. — Não se preocupe. Tudo vai acabar
bem.
Foi o que ele pensou, coitado! Nada acabou bem. Nunca vi um fuazeiro maior.
Nunca! Até padre Antônio levou sem merecer. . . Até dona Ana!
O CASAMENTO DO GENERAL
nteirei meus catorze anos, mas na cabeça já tinha trinta, já era um macho
crescido na dureza, dormindo nuns baixeiros suados, outras vezes num
couro de vaca curtido nos fundos da venda do Curió. Não quis combinação
nenhuma com o danado do gato. Ele ficou bravo, virou De-mônio em carne e
osso, se postou em pé diante de mim,um braco esticado, a mão apoiada no
meu ombro, olhar parado na minha cara.
Quis pegar o facão, cortar o Demo no meio,fazer dele picadinho. Quis gritar. Fiz
nada. Parei até de pensar, esperando ser despachado pro inferno. Que fosse o que
Deus reservou pra mim. O Demo ficava cada vez mais enfezado, ferrando aqueles
dedos quentes no meu ombro, vez ou outra me dando uns safanões.
Falei nada. Não gemi. Não implorei.
Ele por fim assentou a cabeça no lugar, ameacou:
⼀ Não vou deixar urubu comer sua carne podre. Eu mesmo cuido disso.
E retornou à forma de gato preto e sumiu, deixando uma onda de cheiro de
enxofre no ar. Espirrei até doer meu nariz.
Dia seguinte, fui chamado pelo coronel Clarindo:
tinha proposta boa pra mim. .Apareci na fazenda; ele. todo solícito, veio me receber na
porteira. A jagunçada toda com cara de revanche. "Vou morrer todo furado", pensei. "E
daí?!"
Avancei com garra pelo curral, que ficava bem na frente da casa.
Rosa estava na sala. Estranhei. Ficara sabendo que o coronel tinha despachado a
familhagem pra bem longe. Só havia ficado a peonagem e a jagunçada. O que Rosa fazia
ali?!
Sentei na ponta da cadeira, não via jeito de me acomodar direito. O troço estava
esquisito. Esperei.
— Virou homem depressa, Zacarias — o coronel falou. — E é com um homem que
quero falar. Pois fale, homem!
Rosa apareceu com café e biscoitos, ofereceu-me, rindo riso de mulher oferecida.
Recusei.
Nem o café?!
Não precisa se preocupar.
E manga?
Quero nada.
Já sei que não quer saber de rodear toco, não, Zacarias? Então vamos
direto ao que nos interessa. Sei que é um cabra macho. O único que está resistindo a
tudo. Quero um servicinho seu. . . Em troca, asseguro-lhe que terá a fazenda do seu pai
de volta — disse o coronel.
Deu-me uma suadeira nervosa. O que teria de fazer pra essa cobra pra ter a
fazenda de volta?! Só podia ser serviço porco. O que mais?!
— Pois fale.
— Isso, Zacarias. Quero que mate o homem que deu cabo de seu pai, que
prendeu você no tronco. . . depois acabe com o sapo. Sei que pode. Curió me avisou
que você está treinando tiro. Que mata gavião com um tiro só. Gostei de saber.
— Quem me garante que foi seu Quim quem deu cabo do meu pai?!
— Minha palavra, ora! Ele tocaiou seu pai, bateu muito nele. . depois deu cabo do
homem lá no esconderijo do brejo.
— A mando de quem?!
— De ninguém. O bicho é mau.
— Era jagunço do senhor.
— Mas era desaforado, malmandado.
— Sei não. Meu pai não morreu no esconderijo do brejo. Foi tocaiado na porta da
igreja.
— Fique aí pensando. . . Rosa vai lhe fazer companhia.
O coronel saiu. Rosa ficou me olhando. Passou a tramela na porta da rua, botou
uma trava na janela. Nem desconfiei de nada. Depois jogou uma esteira no chão e deitou.
— Está calor — cochichou. — Não quer tirar a camisa?!
— Não sei, não.
— Se incomoda se eu tirar o vestido?
— Seu pai?!!!
— Vai demorar. Foi apartar umas vacas. Está levando o gado pra outra fazenda,
do outro lado do rio.
Calei-me, curioso. Ela sentou-se na esteira e arrancou o vestido, ficou só de
calcinha.
— Não está com calor?!
Claro que agora estava, um calor bravo. Arranquei a camisa e esfreguei o rosto
pra me livrar do suor.
— Deite aqui na esteira. . . ou está com medo de mim?!
Foi tudo muito simples, pensei depois. Simples. Ela dormia quando me levantei,
assustado e feliz. Abri a porta e fui sentar num toco bem longe da casa.
Minutos depois ela apareceu vestida!
— Gostou?
Fiz de desentendido, Ela desconversou:
— O calor passou?
Continuei calado.
— Vai fazer o que o pai pediu?
—- Vou dar a resposta pra ele.
— Sem-graça !— ela tentou brincar.
Quando o coronel chegou, fui direto ao assunto:
— Coronel! O senhor, com essa jagunçada toda aí, quer que eu saia campeando
um cara bravo que nem onça. Outrossim, não vi o dito cujo no meio dos soldados que
arrebanharam meu pai naquela noite. E se ele me amarrou no tronco, ordem sua. Lembra
daquele dia na venda do Curió? Pois então! Não vou fazer nenhuma desgraça aí pra livrar
a sua cara de vingança do seu Quim. Sei que o senhor mandou descer a peia no bicho,
deixou o homem em carne viva e depois mandou jogá-lo numa tina de salmoura — parei
pra tomar fôlego. — Afora isso, o sapo, pelo que estou sabendo, é coisa sua. Acabe com
ele o senhor.
O coronel não ficou enfezado como eu esperava, deu sinal a Rosa, que ela me
levasse de caminhonete para a cidade. Rosa concordou toda lampeira. E não largou meu
pé durante um bom tempo. De noite inventava que era frienta e agarrava-se no meu
cangote. Às vezes eu topava, era ainda um pouco molecote nesses assuntos. Outras,
dava uns safanões nela, que fosse se esquentar nas cobertas da casa dela, que fosse pro
inferno. Sabia o que queria: que eu desse cabo no sapo e no seu Quim.
Fui tomando nojo da coisa toda. Senti vontade de me mandar de Mucironga. Mas
era só eu tomar pé da minha situação que a coisa desandava.
Foi então que seu Quim cercou a casa do coronel e botou fogo em tudo. O
coronel saiu correndo, o danado do jagunço atirou. Coronel morto, a jagunçada
debandou na hora.
Ouvi as queixas de Rosa o tanto que minha paciência agüentou. Não achei
preciso dar uma demão pra ela. Foi-se numa canoa, levando o pai morto, nenhum
empregado para ajudá-la. Senti pena, não! Tinha virado bicho. Nem bem a canoa sumiu
no rio, jurei:
— Agora, vou acertar as contas com o sapo. Jogo sal no bicho, morre na hora.
— Faz isso não, Zacarias. O General não é sapo nada. Você só vai atiçar o bicho
. . . — Curió me implorou. — É sapo. . . um sapo, um irracional. Tenho um plano para
pegá-lo. Esse plano chama-se Glorinha.
— Veja lá o que você vai aprontar, Zacarias. Veja lá.
SODOMA E GOMORRA
ucironga já havia acabado. Nela sobraram Curió,dona Sinhá e as filhas,
dona Ana, seis soldados do reforço da banda de lá, Silvino e eu.
-Não compensa ficar, mas ir pra onde? -Curióresmungava por detrás do
balcão da ven-da onde só dava mosquito e mosca varejeira.
- Vou morrer aqui. Aqui nasci— avisava dona Sinhá. E as filhas, oito, não
se atreviam ganhar o mundo. Esperavam casamento ali mesmo.
Estavam chegando homens para trabalhar na mina de manganês, na
fazenda que fora do meu pai.
Dona Ana ficava pra cuidar de mim, avisou-me,toda cheia de meladeira.
Mas quem cuidava de mim era eu mesmo e, de lambuja, cuidava dela.
Tinha mais de oitenta anos,coitada!
Silvino era o chofer do General, e não parecia muito satisfeito. Magro
feito um graveto,sujo,passava horas se lembrando do tempo das vacas
gordas, tempo bom em que trabalhava pro seu Clementino, meu pai.
- Se não fosse aquele coronel rabudo-referia-se ao coronel Clarindo -,se
ele não me tivesse engambelado,estaria hoje casado com Betina,vivendo vida de
gente.
Por duas vezes tentara dar o fora, mas os soldados o pegaram com
a boca na botija, passaram-lhe o couro, jogaram salmoura em cima,
avisaram:
— Com essas fugideiras, vai passar a comer só bunda de tanajura — e
cumpriram o trato por um tempão.
Quando não era bunda de tanajura, era lesma torrada. O panaca sofria tanto
que cheguei a ficar com dó. Repartia com ele carne de queixada, tatu e mandioca,
que Curió arrumava. . . Quando não arrumava, nós todos fazíamos cruz na boca e
agüentávamos o jejum. Arroz, feijão, carne e gado e verdura, desde a época da
fiscalização que não viamos nem cheiro.
Magra que m graveto também estava Glorinha e, de lambuja, a mãe. Não sei
o que comiam, não sei como viviam. Fiquei sabendo que a mãe estava com doença
ruim, corpo coberto de verrugas e boca trancada. Não bebia nem água. Dizia dona
Ana que era veneno de sapo, que dentro de uns dias a velha ia para junto de Deus.
Que veneno de sapo o quê! ria Curió. —
Aquele troço não é sapo.
E não parecia sapo mesmo. Pegara traquejo de fazendeiro, usava chapelão
de feltro e vivia de prosa com os homens da mineração.
Um dia apareceu na venda do Curió, reclamou:
— Isso aqui está um lixo! Os homens querem comida, querem bebida,
divertimento. . . dê um jeito.
— Que jeito?! Não tenho dinheiro pra mandar buscar as coisas.
O General jogou um punhado de dinheiro no rosto de Curió e deu prazo:
— Quero tudo pro próximo sábado.
Curió supitou de raiva, mandou o General enfiar o dinheiro no rabo, que
voltasse pro inferno. . . Não foi nada, não! O coitado do Curió sumiu da noite pro dia.
Nunca mais tive notícia.
Quem assumiu a venda, ou melhor, o cabaré, foi dona Sinhá e as filhas. O
General botou o nome na coisa: "Sodoma e Gomorra". Com isso nenhuma das
meninas se casou, embora dona Sinhá começasse a se empencar de netos e mais
netos. Mucironga começava a ser repovoada.
Eu tinha jurado que ia dar cabo do General. E para isso precisava da Glorinha.
A mãe já tinha morrido, e a moça definhava — veneno de sapo, dizia a dona Ana.
Botei o revólver na cintura, a cartucheira ira cheia e parti para o Sodoma e
Gomorra. Era sábado à noite.
Sentei-me numa mesa meio escondida esperei o General e Glorinha. Não
demoraram, Silvino e os seis soldados servindo de guarda- costas.
Esperei que sentassem e pedissem um treco para beber
e levantei-me, rodeei umas mesas com quem não sabe pra onde ir. Por fim cheguei
até a mesa arrisquei:
— Posso sentar? — e fui puxando a cadeira.
— Acho bom. Faz tempo que quero dar um dedo de prosa com você,
Zacarias — o sapo avisou.
— Digo o mesmo s
Glorinha tremia anto que até entornou o treco que bebia.
— Faz mal não! — falou sem graça, passando a mão
no vestido molhado.
Ninguém botou sentido na conversa dela. Era como se não existisse.
— Você lembra quando apareci na sua casa? — ele começou. Balancei a
cabeça. Naquele tempo, eu era um sapo. . . sapo comum de brejo. O Excomungado
me alimentava com um lixo especial, lixo atômico, ouvi dizer. Não sei se era lixo ou
não, o Excomungado era um cientista e além disso havia feito um trato com o
Demônio. Deu a alma em troca de dinheiro. . . O Demónio o informou do manganês
nas terras de Mucironga, era só se aliar a um homem forte no dinheiro e na política
que ficaria rico. O Excomungado se aliou ao coronel Clarindo. Negócio fechado,
resolveratll manter sigilo, desvalorizar as terras, tomá-las dos donos. Mas seu pai,
Zacarias, já sabia do manganês. Firrnino Iannbém. Eles se reuniam com outros
interessados em negociar com o governo nos fundos da casa da Flora. não sabiam
que o Demónio já havia furado o plano deles.
Foi aí que me mandaram aparecer, devia enlouquecer o povo, botar
gente pra correr. Apareci na sua casa, inchei, fiz o que haviam me mandado fazer.
Iludiram o prefeito para me usar na Prefeitura. Você sabe.
— E mataram Firmino. Mataram meus pais.
— Não foi bem assim. Firmino foi morto porque xeretou onde não devia. Seu
pai porque telefonou pros homens do governo quando foi naquela cidade levá-lo para
engessar a perna. Burrice dele. Mas o Demônio não de confiança, trouxe Firmino e
seu pai de volta . . . queria brincar.
E você?!
Comigo eles erraram, passei além deles. Deve ter sido o remédio que o
Excomungado me dava, a mando do Demônio.
— E está me contando isso por quê?!
— Quero que saiba da minha força e caia fora de Mucironga. Agora as terras
são minhas. Tudo isso aqui é meu. Quero você bem longe daqui.
Levantei-me, ousei:
— Posso levar Glorinha?
O General manteve a calma, perguntou: — Pra quê?
— Porque ando com dó dela.
Ele se virou para o lado de Glorinha.
Não está satisfeita comigo?! Andou reclamando?! Andei não! Por
Deus! — ela colocou a mão no resto, apavorada. — Gosto de você,
General.
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Ele me pareceu aliviado. Eu, não. Por que Glorinha usava luvas grossas?!
Só percebi nesse momento. E a roupa?! A roupa cobria todo o corpo, não aparecia
nadinha! Fiquei cabreiro com o negócio. . . O General devia ser muito ciumento.
Resolvi acalmá-lo, avisei:
— Me dê um prazo de duas semanas, General. Só o prazo de localizar um
tio meu, avisar que vou sair de Mucironga, pedir apoio.
É assim que se fala, Zacarias.
Saí meio encabulado, achei que Glorinha iria derreter-se pro meu lado. Que
nada! Declarou que gostava do sapo. . . E, pelo jeito de ele falar, eu devia esquecer
o propósito de dar cabo do bicho.
Já estava deitado no couro de vaca estendido num barracão velho que
sobrara na rua de baixo quando ouvi passos. Fiquei quieto, assuntando. Soldado
pra me matar?! Silvino procurando comida?! Quem?!
Os passos atravessaram o barracão até chegarem à porta do cômodo
onde eu ficava. Segurei o revólver, e gatilhei, qualquer coisa passava fogo. Mas e
se fosse na Ana?! Tinha que ver primeiro, depois atirar.
Zacarias?! Você está acordado? — era Glorinha . Gelei da cabeça aos
pés. O que ela queria?!
— Estou.
Quero falar com você.
— Fale, mulher.
— Quando você for, me leva junto. Dou um jeito de fugir.
Pois então não disse que gosta do General?!
— Tinha de dizer.
Botei a cabeça no lugar, acreditei nela. Combinamos a fuga. Só queria um
prazo, tinha um servicinho pra fazer, era a minha vingança. Eu podia sair com uma
das mãos na frente, outra nas costas, sem nada, mas. . .
Glorinha deu-me um beijo de leve, foi-se, lembrei-me de doce de manga verde, Fiquei
rindo sol inho no escuro. "Beijo tem gosto de beijo, ora! Betina era cheia de histórias
... Se não fosse Rosa, ainda estava acreditando em Betina. Beijo tem gosto de beijo.
Noutro dia esqueci a história do beijo, só me lembrava do padre António
falando de Sodoma e Gomorra, da estátua de sal era isso que eu queria. Botar fogo
no que restava da cidade de Mucironga.
Foi o que fiz nessa mesma noite. Ainda bem que não morreu ninguém, credo!
Arrumei umas latas dc querosene e embebi as paredes de tábua do Sodoma e
Gomorra. Ficaram encharcadas. Preparei várias buchas, ateei fogo e atirei-as em
volta da casa. Tive coragem de entrar no cabaré, fungar, farejar perigo, puro
fingimento, e gritar:
— Fogo!
Quase fui atropelado, a homaiada bêbada saiu numa carreira só.
Ainda ajudei dona Sinhá a contar e catar todos os netos, botá-los a salvo do lado
de fora.
Sodoma e Gomorra acabara-se. Senti-me leve, feliz e vingado. Agora era
partir com Glorinha, deixar o General sozinho numa Mucironga destruída. Partir com
Glorinha, minha vingança maior. Por que não?! Não acreditei nem um tiquinho no que
ele me falou naquela noite, tudo embromação, claro! Aquele sapo era alimentado
- Vi não.
Procurei ver,vi nada. Dona Ana, agonizando pra morrer, me fez jurar não
chegar perto do povo da dona Sinhá."E não passe perto do brejo", implorou.
Tão boa pra mim, cumpri o juramento. Não procurei dona Sinhá nem fui pro
lado do brejo. Minha cabeça estava noutra coisa. Queria porque queria um saco de
sal.
Uma noite, consegui romper o cerco dos soldados, entrei na canoa, fui até a
cidade mais próxima arrumar sal.
O dinheiro?! Trabalhei duro, na enxada, durante duas semanas. Juntei os
cobres e comprei três saquinhos de sal, rezava pra que desse. O que mais me
apoquentava era pensar que o sal podia não dar. Tinha que dar! Dona Ana me
avisara: tem que ser sete punhados dos bons, senão a coisa desanda e volta contra
você, meu filho.
Foi duro voltar pra Mucironga. Voltar de barco não dava, sempre fui muito
desconfiado. Voltei a pé, agüentando o sufoco da serra. Dias duros, comi até
macaco. Durou muito tempo, nem me lembro de quanto. Quando cheguei, procurei
só entrar na cidade com a noite fechada. Breu puro. Mas raiva faz a gente tomar o
rumo certo. Arrumei pousada no que restara da minha própria casa. Fedia a mofo,
importei não. No outro dia, fiquei assuntando cidade, querendo saber do General.
Foi Silvino quem me deu as notícias: o pessoal da mineração havia se mandado, e
o General andava fulo da vida por isso. Queria que o governo lhe desse uma demão,
mas o governo já era outro, não queria conversa fiada com sapo.
Gostei de saber da novidade. O sapo gestava frito, estava nas minhas mãos.
Atravessei o matagal que invadira a cidade até a Prefeitura, Silvino me dando ajuda.
Entrei, vi o sapo na cadeira giratória. Não girava como antes. Ele se
assustou ao me ver.
— Veio em paz? — sondou.
Não dei confiança. Adiantava falar alguma coisa?! Falar que sim ou que
não?! Ele que se danasse! Tornou a falar:
— Veio em paz, Zacarias?! — O que você acha?
— Oue é um besta.
— Nunca fui. Se fosse . .
— Veio fazer o quê?
— Acabar com você.
— Acaba nada. E se acabar vou continuar noutro corpo. Não sou quem
você pensa. Penso nada.
— Sou um General.
— É um merda, isso sim.
A discussão parou aí, nem sei por quê. O bicho se esfregava na cadeira
pressentindo perigo, o papo gordo pulsando sem cessar. Olhava pra cara dele:
gosto de vitória na boca, ô trem bão!
Abri a mochila onde estava o sal. Lembrei-me de dona Ana: tinha que ser
sete punhados, nem mais
nem menos.
Atolei a mão no sal, primeiro punhado. Acertei a cara do General, que
pulou nervoso. Afastei-me, já com o segundo punhado de sal, joguei. Fui jogando,
jogando até completar os sete punhados.
O General pulava, esfregava-se nas paredes, lutava pela vida. Mas todo
mundo sabe que sal é veneno pra sapo e lesma. Tinha tirado a prova, o bicho era
sapo de verdade. Morreu seco, esturricado num canto da Prefeitura.
Foi então que chorei. Sabia o motivo: matara um sapo que falava, que
pensava. . . nunca ia ver outro igual.
Chorei a morte de meus pais, de tanta gente! Chorei o fim de Mucironga.
Depois me lembrei de Silvino e de Glorinha. Já que eu ia de Mucironga pra São
Paulo, levaria os dois comigo.
Encontrei Silvino me esperando do lado de fora da Prefeitura, perguntou-
me se ainda havia sobrado sal. Disse que não.
— Estamos então no mato sem cachorro. Sabe, os
seis soldados do reforço. . . eles. . .
— Que tem eles?!
— E não sabe?!
— Não.
— São sapos também. Estão agora na casa da dona Sinhá, no brejo.
Assuntei o negócio na hora. Dona Sinhá e a familhagem tinham virado sapos .
. . Fiquei arrepiado de medo. Fugir o quanto antes, decidi.
— Cadê Glorinha?
— Mexe com ela não, Zacarias.
— Quero nada com ela, Silvino. Só tirar a coitada daqui.
— Mexe não . . . Escute aqui.
— Me espere na beira do rio, é só o tempo de buscar a moça.
— Se você é doido, fique sozinho com sua doideira. Vou-me embora nem que seja a
nado. Com Glorinha não