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Embora apaixonada pelas Ciências Exatas, acabei formando-me em Letras

Vernáculas na Universidade Católica de Goiás. Lecionei Português,


Literatura Brasileira e Teoria da Literatura Infanto-Juvenil.
Em 1974,senti-me uma escritora. Ganhei o 1°lugar no Concurso Literário
Nacional da Caixego com a minha primeira novela, Ana Paula multiplicada
por amor.
Estimulada pelo prêmio, continuei a escrever e a ganhar novos prêmios.
Meu primeiro livro publicado saiu em 1983, quando a Melhoramentos lançou
O espião de Jupiter, menção especial do Concurso Fernando Chinaglia de
1979,Ano Internacional da Criança.
Além desse, tenho ainda os seguintes títulos publicados: bruxa do quebra-
cabeça (Melhoramentos), Quarto mágico (Atica),As inventações da bruxinha
Tatá(Atica) e A invasão dos androides (Atual).

Chte Chlo
DB
LETRA
Marta Melo,1988

Copyright desta edição:


ATUAL EDITORA LTDA., São Paulo, 1988
Todos os direitos reservados.

Projeto gráfico: Sérgio Fernando Luiz


ilustrações de capa e de miolo: Roberto Negreiros
Roteiro de leitura: Cândida Beatriz Vilares Gancho
Diagramação: Selma Caparrós
Composição: Linoart Ltda.

Dados de Catalogação na Publicação (CIP)Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Melo, Marta.
M486e O estranho caso do sapo de Mucironga/
Marta Melo; ilustrações Roberto Negreiros.-
São Paulo : Atual, 1988.
(Série tirando de letra)

Suplementado por roteiro de leitura.


1. Literatura infanto-juvenil I. Negreiros,
Roberto.II. Título. III. Série.

CDD-028.5
88-0955

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura infanto-juvenil 028.5


2. Literatura juvenil 028.5

ATUAL EDITORA LTDA.


Rua José Antônio Coelho,785
04011-São Paulo-SP
Telefone:575-1544

LUYLVVV

24681097531

NOS PEDIDOS TELEGRAFICOS BASTA CITAR O CODIGO:AFJW8736N


SUMÁRIO

1. Coisa do Cão 1
2. Assunto de homem macho 9
3.A proibição do General 20
4. A assombração... 25
5. A lei dos generais 32
6 0 lixo atômico... 38
7. Gosto de doce de manga verde 46
8. A aparição de Firmino 52
9. Sapo ou robô?. 59
10. O casamento do General.. 66
11.A morte do coronel Clarindo 71
12. Sodoma e Gomorra 76
13. Mulher de sapo 82
COISA DO CÃO
parece mentira o caso do General, mas juro que não é. Juro pela alma da minha mãe e
do meu pai. Vou contar esse caso porque tenho meus motivos.
Mucironga era uma cidadezinha pra lá dos confins do Judas, isolada do mundo
por culpa da geografia: encravada no pé da Serra Geral e cercada pelo Tocantinzinho.
Eu morava lá com meus pais quando o General deu as caras.
Lembro-me bem, como se fosse hoje, da chegada do General. Chegou sozinho,
passou por baixo da cerca de arame farpado e foi pulando até a porta da sala. Fiquei
observando-o com a curiosidade de molecote (estava com treze pra catorze anos),uma
vontade danada de cutucá-lo com um pedaço de pau, de jogar pedra pra ver sua reação.
Ele, indeciso ou desconfiado, não entrava porta adentro nem ia pro quintal. Pareceu-me
cansado, jeitão de quem viajara um mundaréu velho de dias, papo gordo pulsando
incessantemente.
Mamãe não gostou de vê-lo plantado na varanda, olho comprido espiando a sala,
esperando convite pra entrar. Gritou, feio, que eu o enxotasse. Obedeci, mas quem disse que
o General obedecia?! Tentei de tudo para expulsá-lo de casa, naquele dia. Tentei — como
papai e o padre Antônio também tentaram.
Papai havia chegado pra almoçar já passada a hora, enfezado, não dera certo um
negócio de vacas paridas, negócio bom toda vida . . . Passara duas semanas falando nisso,
contando com o ovo antes da galinha botar • Creio que foi isso, juntado com a fome, que o
fez estourar logo de cara com o General. Foi um meu-Deus-o-que-é isso?! Não queria ninguém
com cara de dono em nossa casa. Apanhou a enxada, voz bem grossa, disse a mamãe:
— Cidinha. . . ou ele sai por bem ou sai morto.
Ela se apavorou:
— Não, Clementino! Dá azar matar sapo. — Que azar o quê?!
Perdeu do meio-dia pra tarde de serviço tentando expulsar ou matar o General.
Quebrou o cabo de duas enxadas, entortou o facão, par fim desistiu:
— Esse bosta deve ser arte do Excomungado.
— Te esconjuro! Cruz-credo! — Mamãe se benzeu toda aflita, não gostava nem de
ouvir falar no Excomungado. — Melhor Silvino ir chamar padre Antônio.
— Silvino?! Ele não vai dormir na roça?!
— Que nada! Vem pra cá toda tardinha. Está de cabeça virada pro lado de Betina. —
Mais essa!
Nem esperei que me mandassem ir buscar o empregado de papai, disparei feito raio
pra cozinha e, sem ao menos respirar fundo, gritei:
— Silvino! Papai quer ver você agora.
Ele deu um salto, assustara-se com a minha presença. Na hora, pensei: "o que será
que estão fazendo de errado?!" Quem se assusta tem culpa no cartório. E me pareceu que
tinham, mesmo! Ajeitou o cabelo, a camisa, olhando-me de rabo de olho pra ver se eu estava
notando a cara lambida de Betina.
O que seu pai quer, Zacarias?. — tentou falar
grosso, disfarçar a sem-graceza.
— Vá lá — disse-lhe, frustrado comigo mesmo. "Se eu não fosse tão estabanado, teria
visto . . diacho! Da próxima vez, venho na ponta dos pés", prometi a mim mesmo.
Silvino se apresentou na varanda, notou o ar contrariado de papai, sondou:
— Não é comigo não, né, seu Clementino?! Só estava tomando um café na cozinha.
Zacarias me pegou já de saída. . . Não demorei um tiquinho lá.
— Escute aqui, cabra safado! . . . Depois a gente conversa sobre isso. Está careca de
saber que não admito sem-vergonhice dentro da minha própria casa. Só que agora o assunto
é outro.
— Não faço sem-vergonhice, seu Clementino. . .
ainda mais na cozinha do senhor. . . Era só. . .
— Silvino'. — papai se avermelhou de raiva. Vi a hora em que ele descontava a raiva
que sentia do sapo, arrebentando o rapaz.
Mamãe tratou logo de acalmar os ânimos, explicou a Silvino o que tinha acontecido:
que o Excomungado havia mandado um sapo rezado lá pra casa, que o sapo não arredava pé
do lugar onde se plantara, que Silvino chamasse o padre Antônio depressa, antes da missa
das sete da noite.
Silvino balançou a cabeça, rejeitando a idéia de mamãe. Falou alto, queria que Betina o
escutasse, notasse que era valente:
— Ora, dona Cidinha! Não vê que não precisa de padre?! O que ele faz, faço melhor.
Rezo um credo nas costas desse bicho aí que ele volta ventando pra casa do Excomungado.
Papai estrilou:
— Você só sabe arrotar grandezas, Silvino. Na hora do pega-pra-capar, mija nas
calças. Se eu não o conhecesse, homem!
Fui com Silvino buscar o padre. Ele se preparava para a missa, rascunhava num papel
umas coisas pra falar no sermão. Demonstrou claramente não ter apreciado a nossa chegada,
e menos ainda o recado que lhe transmiti.
— Não tem cabimento me chamar para benzer casa por causa de sapo! — falou, voz
alterada, dedo em riste, bravo que só vendo.
— É um sapo diferente, padre.
— Não existe sapo diferente. . .
Mas papai era homem de grandes posses, a igreja vivia numa pendura de dar pena . . .
Padre Antônio não viu outro jeito senão o de vir à nossa casa resolver o problema provocado
pelo General.
Mamãe, vendo-o chegar, desabafou:
— Faz dez horas que essa coisa está plantada aí, padre Antônio. Dez horas! Deve ser
arte do Excomungado. . . Clementino acha.
— O que é isso, dona Cidinha?! Claro que não' Queria que me arrumassem uma
vassoura.
— Vai benzer com uma vassoura, padre?' Betina se espantou.
— Não. Vou espantar o bicho, coisa que vocês mesmos deviam ter feito. Até parece
que nunca viram um sapo!
Papai deu de ombros sorrindo, riso estranho. Sabia que o expediente arrumado pelo
padre não daria certo, aquele sapo era diferente. E teve razão, não deu certo mesmo.
O General, quando sentiu a primeira vassourada no corpo, não gostou. Pulou,
rompendo com a imobilidade de dez horas, deu outro pulo logo a seguir, se encostando no
padre, que recuou instintivamente, jogando a vassoura longe.
— Está com medo, padre?! papai perguntou, pura maldade. . . Como se o coitado
tivesse culpa do sapo ter-se arranchado lá em casa!
— Claro que. . . — ele murmurou, tentando inventar coragem. Mas, repentinamente,
gritou: O que é isso, gente?! Esse. esse. . .
Ninguém mais conseguia dizer nada. Já vimos sapo inchado de raiva, parecendo bola
de futebol; mas inchado como o General, nunca! Também não posso dar certeza de nada: era
noite, mais de sete horas, luz de lamparina, e o medo faz coisa tudo cresce, vira monstro em
Mucironga. Na hora não consegui pensar que aquilo podia ser uma miragem. . . Quem tem
sangue frio diante de um sapo quase do tamanho de um bezerro?! Frente a frente um o padre,
medindo poder?! . . . Não posso dar certeza de como se deu a transformação do bicho, mas
do seu tamanho, isso afirmo, reafirmo, até juro pela vida eterna da minha mãe: o sapo ficou
quase do tamanho de um bezerro desmamado.
Nem sei contar como o padre teve cabeça pra se lembrar de jogar água benta no
monstro e ainda gastar um pouco de latim! Sei que era latim porque fiquei internado num
seminário uns dois anos, mamãe cismou que eu havia nascido pra ser padre, fazia o maior
gosto do mundo. Só que não deu certo, arrumei umas baguncinhas por lá, fui pego bebendo o
vinho do padre André. . . mas isso não vem ao caso. Mandaram-me de volta pra casa, que eu
voltasse quando tivesse juízo. Jurei que, se precisasse de juízo pra voltar ao seminário, não ia
ter nunca! Não nasci pra vestir batina. . .
Padre Antônio rezou em latim, não adiantou nada. Nem a água benta! Ela parecia
fermento, caía no General fazendo-o estufar mais e mais. Quando, no outro dia, comentei isso
com mamãe, mandou-me confessar, que ninguém pode chamar a água do padre de fermento.
Confessei nada, até padre Antônio achou que parecia fermento mesmo.
No momento em que o General ia varando telhado afora, saí numa disparada doida,
esquecido do breu da noite, dos buracos lamacentos das ruas. Só estaquei na praça da igreja,
e lá mesmo desembuchei tudinho, tentando socorrer minha casa.
O prefeito, Curió, Julião e seu Quim da Tonica ouviram-me, olhos esbugalhados de
espanto, parecia até que estavam acreditando na minha história. Mas qual! Estavam era
espantados por eu ter tido coragem de inventar uma mentira cabeluda daquelas, foi o que o
prefeito falou, zangado que só vendo!
Agarrou-me a orelha — por um azar muito grande, se achava no direito, era meu
padrinho de batismo levou-me pra casa.
Vou mandar seu pai lhe passar o couro, seu moleque mentiroso! ameaçou-me, já
diante do portão de casa.
Nem bem acabou de esbravejar, largou-me de lado pra botar as mãos na cabeça e
invocar Nossa Senhora dos Desvalidos. Nunca, depois, tornei a ver outro homem mais
apavorado que ele no momento em que viu o sapo maior que o pé de jatobá.
Papai o viu e gritou:
— Chegou em boa hora, Soares. Vamos entrando. . .
Padrinho não sabia se entrava, se corria de volta pra
praça, ficou que nem estaca, gaguejando:
— Q. . . que. .. é ...?!!!
— Coisa do Cão.
— Só . .. po...po...pode
Tinha mais gente indecisa no portão, além do padrinho. Curió, Julião, seu Quim da
Tonica e mais um bando velho de beatas, inconformadas com a ausência do padre na igreja
para a missa das sete, queriam uma explicação:
— Onde já se viu padre deixar de dizer missa por causa de um sapo qualquer?!
Mas quando viram o General, foi uma gritaria de não acabar mais. Não arredaram os
pés do lugar, algumas fizeram menção de rezar; depois, vendo o padre acuado pelo monstro,
concluíram que nem reza adiantava mesmo. O negócio era procurar ver tudinho, muito bem
visto, pra contar pela cidade afora. Era um prato feito, muito bem feito, aquela novidade
esquisita que aparecera em Mucironga...
— Vamos chegando, gente — papai convidou, apenas por educação.
Ninguém se atrevia a atender o convite de papai. O sapo gigante tinha cinco estrelas
brilhando no papo, coisa horrível! Arte do Excomungado, ninguém duvidava disso.
Seu Quim da Tonica, jagunço do coronel Clarindo, alisou demoradamente o cabo do
38 preso na cintura. Qualquer movimento do bicho pro seu lado, atiraria. Mas nada do General
dar sinal de que estava ao menos enxergando-o, coisa que lhe desagradou muito: apreciava
atirar pra ver qualquer vivo estrebuchando de dor até morrer; sentia comichões na nuca que
só passavam quando agarrava a danada, marcava pontaria e bumba! Assim sem mais nem
menos não podia agir, ainda mais na casa de papai. Resolveu pedir permissão, como quem
não queria nada:
— Precisando de ajuda é só falar, seu Clementino. — Dessa vez não, seu Quim, Ê arte
do Cão. Só Deus pra nos livrar.
— Abaixo de Deus tem o cano do revólver.
— Não é do meu feitio . . Nao gosto de arma de fogo.

— Gosta é de conversa pra boi dormir, conversa macia, não, seu Clementino?! —
falou pra provocar, até notei. A veia do pescoço de papai engrossou, ia partir pra briga.
Mamãe ficou com medo, o bate-boca entre o jagunço e papai podia engrossar, não
respeitavam nem a presença do padre, falta de delicadeza! Pediu calma, que a prosa ficasse
pra outro dia, não se esquecessem de que estavam ali unidos pra dar jeito no sapo do
Excomungado. Papai, numa má-vontade tremenda, balançou a cabeça, concordando; seu
Quim ficou amuado, beiço caído, resmungando que não existia homem peitudo em Mucironga,
tudo uns frouxos agarrados nas saias das mulheres.
Eu não queria entrar em casa de jeito nenhum. Finquei pé junto do Curió, olhando tudo
de longe. Mas o sono era grande; procurei vencê-lo e, não conseguindo mais avisei, aos
berros, que ia dormir no barracão do Firmino. Mamãe deu o contra, não ficava bem, melhor a
casa da madrinha Alice, mulher do prefeito. Até ia comigo, não pretendia dormir em casa
enquanto não dessem fim na assombração.
No caminho, olhei pra trás. Não avistei o General, e falei:
— Acho que ele murchou de novo, mamãe.

— Virgem Santa, tomara! Estou com tanto medo! Tenho dó de homem numa hora
dessas, ter de ficar pra defender a casa . . Estou com uns pressentimentos ruins . . . Queira
Deus que eu esteja errada!
ASSUNTO DE HOMEM MACHO
essa noite, Mucironga não conseguiu dormir de medo do Excomungado. Quem não
estava de tocaia na rua de casa, vigiando os movimentos do General, rezava ou na
igreja ou nas casas das beatas. Mamãe saiu com madrinha pra rezar, terço puxado
pela velha Ana, benzedeira das boas e parteira da região. Deixou-me com Justina,
empregada da madrinha.
Lá pelas tantas, já havia dormido um sono, ouvi um assovio conhecido: era
Firmino. Levantei-me de mansinho, passei por Justina, que roncava, num sono
profundo, debruçada sobre a mesa de jantar, e cheguei à janela da frente, tirei a
trava, abrindo-a.
-Firmino...-murmurei.
Ele fez meia-volta, veio até onde eu estava.
- Precisava falar com seu pai, Zacarias. Mas com aquele fuzuê que está lá. ..
Não sei não! Descobri umas coisas, que só ele...
-Eu não sirvo?
Riu,riso debochado. Não fiz caso.
-Eu não sirvo?!
- Que é isso, Zacarias?! É assunto de homem macho! Só que, pensando bem, você
pode me dar uma ajuda.

Mas, lembre-se, é assunto de homem macho. Se quiser vir, estou esperando na


esquina.
Assunto de homem macho era o que mais estava me interessando no momento,
chegava até a sentir comichão nos lábios de tanta vontade de beijar pra saber o gosto. Mas
papai, desde que voltei do seminário, cismara em me vigiar, não me dava vez pra agir que
nem um homem. Queria era me ver fazendo faculdade em cidade grande, mais tarde casando
com moça estudada — nada de roceiras, dizia-me, querem casar cedo, empencam-se de
filhos. Além disso, me mantinha num internato, só vinha pra casa nas férias, uma chatura! Por
isso, ainda não conhecia o gosto do beijo. Menino mais novo que eu já estava diplomado .
Firmino mesmo me disse que começou com nove anos. Só que, nesse ponto, papai tinha
razão: o coitado teve que parar de estudar, tudo porque disseram que fez mal pra Rosa, foi
obrigado a se casar com dezessete anos. Não viviam direito, ela na casa do pai, com um filho,
o único que tiveram, e ele num barracão velho na rua de baixo, fazendo sei-lá-o-quê.
Padrinho dizia que Firmino trabalhava para os comunistas, que era pago para atiçar os
agregados das fazendas para agirem contra os pecuaristas, que era a favor da reforma
agrária e ainda, de lambuja, fornecia armas para os posseiros se defenderem dos coronéis.
Nunca vi Firmino fazendo nada disso, acho que era só falação do padrinho.
Mamãe gostava do rapaz, só não gostava de nossa amizade. Achava-o pinguço,
vagabundo, mulherengo e mais um bando de coisas. Papai, de vez em quando, defendia-o
com unhas e dentes, isso eu não entendia direito. Os dois quase não se falavam, cada qual
seguindo seu caminho, mas . . . Ê isso mesmo! Se quase não se falavam, como é que Firmino
podia ter liberdade de chegar até ele para uma conversa de homem macho?! Será que papai

tinha outra mulher, que Firmino ajudava a amoitar pra mamãe não vir a saber'?! Será
que meu pai era disso?! Vovó dizia que não existe homem santo, que tudo é um bando de
sem-vergonha ...
Fiquei matutando um tempão, até imaginando como seria a tal dona. Se fosse bonita,
diria que papai era casado. .. Ela iria chorar, aí eu consolaria . . . Esses pensamentos me
deixaram meio perdido no tempo; assustei-me com o grito de Firmino:
— Vem ou não vem?!

— Espere um pouco. Já vou.


Na esquina, um frio desgramado que só aparece nas madrugadas, fiquei esperando
Firmino acabar de rodear o toco e contar logo quem era a dona. Claro que tinha de ser uma
dona, assunto de homem macho só podia ser isso. Ele me pareceu tenso, vontade de me
contar o segredo, mas sem coragem, com medo da minha reação, talvez nem soubesse por
onde começar. Fui ficando cada vez mais cabreiro, até que, não suportando mais, estrilei:
— Merda! Quer falar logo?! Não vim aqui só para vê-lo jogar conversa fora. . .
Desembuche!
— Ora, ora! Ele ficou bravinho. . .
— Fiquei. Vai falar?!
— Quero saber primeiro se você é macho mesmo. Cocei a cabeça encabulado, onde
será que Firmino queria chegar?! Será que queria que eu fizesse as vezes do meu pai em
algum lugar, só pra rir da minha ignorância?! Decerto tinha combinado alguma coisa com
duas donas da casa da luz vermelha, mas o sapo apareceu, impedindo papai de sair, e agora
ia sobrar pra mim. . .Santo Deus! Se ao menos fosse a Glorinha. . . Vou fazer o quê, nesse
encontro?! E se eu errar na hora do beijo? . . . Ora!, digo que só gosto de beijo errado... que
beijo diferente. ..
— E então?!— a voz forte de Firmino exigia uma resposta imediata,
Vou dizer que não posso sair, estou com dor de cabeça", decidi, na hora. Raspei a
garganta que nem meu pai, ia falar bonito, deixar Firmino de boca aberta...
So que disse tudo ao contrário, não sei nem como explicar por que me aconteceu isso.
— Sabe, Firmino. . Embora eu só tenha treze anos, sou macho. Muito macho. E por
que não haveria de ser?! . . . Vou lá e faço que nem meu pai. Você pensa que ele -não me
conta tudo?! Sei de tudo. De tudo mesmo, tintim por tintim. . . Ele gosta que eu saiba de tudo
para não ser pego desprevenido. Vou lhe provar que não sou quem você está pensando. . .
sou homem com H maiúsculo.
Firmino deu dois passos pra trás, riscou um fósforo
pra ver melhor meu rosto. Não sei se já disse que em Mucironga não tinha luz elétrica,
era luz de lamparina, 1 lampião ou vela . . .
— Seu pai lhe disse tudo, tudo mesmo, Zacarias?! — ele falou, um tanto assustado.
Inventei uma voz grossa, coisa quase impossível para um molecote de treze pra
catorze anos.
— Mas claro! Falou até nos encontros em segredo na casa da luz vermelha, falou na
dona Flora . . . contou tudinho — menti.
O rapaz contraiu os músculos do rosto, mordeu forte o lábio inferior; esforçava-se
para demonstrar calma, vi logo. "Será que falei alguma besteira?!" pensei, suando frio.
— Pois não devia — ele falou. — Você é muito criança pra essas coisas. A pessoa
precisa ter cabeça, juízo . . . A coisa está ficando cada vez mais enrolada. Sempre achei que
seu pai tivesse mais juízo, imagine só! Falar para um menino das coisas que aconteceram na
casa da Flora! Eu jamais faria isso . . . Aceitei que viesse só pra ficar vigiando o caminho,
assoviar avisando se aparecesse alguém — minha mulher, por exemplo, que está pra arrumar
prova pra me esfolar vivo. Você sabe que ela me odeia . e sabe de quem é filha. Se eles me
pegam ,
Fiquei danado de raiva. Então, Firmino achava que ia pro bem-bom e que eu ficaria de
orelha em pé, vigiando, pra avisá-lo se viesse gente, pra ele escapulir e a Rosa não pegá-lo
com a boca na moringa?! Besta que era! Menti, acreditou — agora me leva junto. Não vou
fazer nada pra não dar vexame, mas quero ver.
— Então, Zacarias?! Ele ainda tinha o rosto contraído.
— Vou. E será como se você estivesse com meu pai. Se não acredita em mim, vá lá e
pergunte a ele. Não sou mais menino pra ficar vigiando porta de rua — disse-lhe, temendo
duas coisas. Uma: e se ele resolvesse perguntar essa história pro meu pai?! . . A outra: se não
perguntasse, levar-me-ia com ele; e amanhã?! A coisa ia pegar fogo, papai iria esquentar-me o
couro com um chicote velho, tinha certeza. Ele não admitia mentiras. Mas se eu perdesse a
oportunidade. . . Não! Preferia enfrentar o chicote.
— Tudo bem! Acredito em você. Estou vendo que está preparado para qualquer
troço.
— E estou mesmo.
Saímos. Só na metade do caminho percebi que não nos dirigíamos para a rua de baixo.
Firmino, sem dizer uma palavra, seguia na frente, passo rápido e decidido, Eu o acompanhava
como se soubesse onde íamos. Mas no fundo morria de curiosidade e de apreensão. Onde
seria o danado do encontro?
Na saída da cidade, quando atravessávamos o cemitério para cortar caminho, a
curiosidade e o medo me obrigaram a perguntar:
—— Escute aqui, Firmino. . . O que nós vamos fazer vai ser no mato?! Você tem
certeza de que não errou o caminho?!
— Desta vez vai ser no mato mesmo.
Engoli em seco. Será que eu teria coragem?! O mato vivia cheio de cobras venenosas .
. . Com cobra rondando por perto eu não daria conta de beijar ninguém. Aí, então, é que o
fiasco ia ser maior. Mas se Firmino ou as donas me chamassem de mariquinha, que
chamassem! Não ia me importar •nem um pouco. Topar essa besteira de beijar no mato é
que eu não ia, não, senhor! O que me importa um beijo?! Vai ver tem gosto de cuspe. Por que
haveria de ter outro gosto?' — concluí, morrendo de pavor de tudo.
— Está com medo?! Firmino perguntou de supetão.
Quase, por um triz, que eu afirmava que sim, que já estava quase mijando nas calças
de tanto medo, mas o brio era maior que tudo nesse mundo. Preferi ao conversar,
perguntando se faltava muito pra chegarmos ao destino.
— Temos que andar ainda umas duas léguas.
"Diacho! Só me faltava essa!" pensei com meus botões. O mato cada vez
mais agressivo, umas sombras com jeito de gente me atazanando, bafejando na minha nuca .
. . Eu me arrepiava a cada bafo gelado, queria voltar atrás, perdera completamente a vontade
de demonstrar a Firmino que era homem macho. Besteira! Veja só se, para provar que sou
homem, precisava afundar o pé naquele
mundo velho de mato e alma penada. . . com cobra de lambuja!
E tudo isso só por causa de um beijinho de nada?! De repente, avistei uma luz de
lamparina apoiada no peitoril duma janela. Dava pra ver só a janela e a lamparina, mais nada.
As sombras com jeito de gente nos seguindo rente, o frio do medo cada vez pior, meus
dentes castanholavam. Não suportando mais, gritei: — Deus!
Firmino não se preocupou com o grito, parecia estar noutro mundo, cabeça
matutando coisa séria. Apontou a luz e disse:
— Chegamos. Lá está ela.
Ela?!— fiquei meio doido. Ela estava dentro da tapera velha?! Não ia lá, não! Por nada
desse mundo.
— Acho melhor você entrar comigo. Qualquer coisa, a gente diz que se perdeu por aí e
demos de cara com a tapera — o rapaz cochichou.
— Não entro, não! Fico de fora . . . já perdi a vontade.
— Agora não tem que perder a vontade! Do lado de fora você não fica, ora!
— Mas perdi! Beijo tem gosto de cuspe, mesmo. . .
Você pensa que não sei?! Vá você beijar a moça. Eu fico. Firmino arregalou os olhos,
espanto puro, nem sabia o que dizer. Ficou me olhando, olhando. . . Enfezei-me: — Pode me
chamar de mariquinha, seu besta!
— Não estou pescando nada — na voz dele, além do espanto, preocupação. — O que
é que tem beijo a ver com o Excomungado?!
— Que Excomungado?! Você não disse que a moça está lá dentro?! Não veio com
uma conversa de homem macho?! Então?!
— Zacarias ?! — falou. "Ela" é a tapera!
Você não disse que seu Clementino lhe contou tudo?' O Excomungado está na
tapera. . . Vim aqui cumprindo ordens, vou bater um dedo de prosa com o dito cujo, saber se o
sapo é coisa dele.
Não consegui acreditar no que ouvia. Não podia, era gozação do Firmino, tinha que ser.
— Toda aquela conversa era. . . era. . você veio só pra falar com o Excomungado?!
Não há mulher na história?!
— Deus meu! Zacarias, você não entendeu nada! Estava com a cabeça noutras coisas!
E eu cá pensando...Deixe pra lá. Agora não podemos recuar. Aquele sapo tem coisa. Preciso
descobrir.
Engoli minha primeira decepção, quase chorando de vergonha. Precisava confessar,
contar pro padre que só sabia pensar besteiras . . . diacho!
— Não vamos falar com o Excomungado, Firmino. E pecado.
— Pecado, nada. Pecado é deixar esse bandido fazer o que quer.
Creio que foi a decepção que tive por causa do beijo não dado que me deu coragem
de entrar com Firmino na tapera, ver o Demônio em carne e osso, sem medo, com uma
coragem de quem não tem mais nada a perder, uma coragem suicida.
Quando entramos, o Excomungado estava sentado cavalo numa cadeira de veludo,
com o prato de comida apoiado no espaldar. Conversava com um gato negro de olhos
brilhantes que nem brasa.
Não demonstrou surpresa com a nossa presença, nem sequer levantou a cabeça pra
nos olhar. Continuou comendo, garfo de prata! Firmino se encostou num jirau desmunhecado
que servia de mesa, esperando vez para se explicar, sei lá.
— Fiquei sabendo que viria aqui — o Excomungado comentou.
— Ficou?! . . Não tinha intenção de aparecer por aqui! A gente se perdeu no mato,
demos de cara com a
tapera ----- Firmino mentiu. Não sei de onde tirou essa de que viríamos aqui.
— Perdeu no mato?! Vou fazer de conta que acredito o Danado riu.
Sufocava-me o cheiro de enxofre que havia na tapera. Precisava sair logo dali, tentava
me lembrar do credo para rezar em silêncio, mas me deu um branco na lembrança, parecia a
morte. Quero dizer, como imagino que seja a morte.
Repentinamente, o Excomungado atirou com raiva o prato de comida no chão, fígado
de galinha. O gato eriçou-se todo, protegendo o repasto que se espalhara pela terra batida.
Você é muito atrevido, Firmino. Para quem não é apreciado em Mucironga, como
você. . . Acho que devia enfiar o rabo entre as pernas e dar o pira da cidade. Enquanto lhe
sobra tempo — falou, macio.
Sou mesmo muito atrevido. E tem mais, não sei prosear com caboclo sem saber
a sua graça. . .
— Não tenho graça, quem não sabe disso, Firmino? — Não tem? Se pensa que
engulo essa história de demônio, trato com o diabo, pode ir tirando o cavalinho a chuva.
Você não é diabo nem aqui nem na China. É um cachorro que veio das bandas de lá pra
acobertar os mandos e desmandos do coronel Clarindo. . . Pensa que não sei?!. . — Firmino
ficara vermelho de raiva. Admirei-lhe a coragem, não temia o demo e ainda inventava mentira.
— Muito bem, Firmino. Muito bem. Você acabou de assinar sua própria sentença de
morte. Não gostei do que me disse. Existe coisa que Diabo não gosta de ouvir.
Eu tremia que nem vara verde, a coisa pegou fogo, via a hora de explosão. Estava
boiando na história, não pegava nada. Pra mim, o dito cujo sem nome era o Excomungado ou
o Demônio, e Firmino batendo o pé que não era! Que coisa!
— Vamos ali dentro, Firmino. O menino não tem nada com o peixe, embora o pai dele. .
.

Saíram os dois, demoraram, o dia já havia clareado de vez, a tapera perdera


um pouco do seu aspecto macabro. Fiquei zambetando pelo cômodo, fuçando aqui e acolá,
não me agüentava quieto. Vinham uns pensamentos bestas, que me davam medo.
Quando voltaram, olhei Firmino. Seu rosto estava contraído de pavor, mordia o lábio
com força, como quem tenta suportar alguma coisa. O olhar parara no tempo, olhava fixo
para o gato. Via-o?! Duvidei.
— Seu amigo não está nada bem. Se quiser deixá-lo aqui. . . No caminho, ele vai lhe
dar trabalho. Cismou com o tal sapo, ficou desse jeito aí. Pensa que tenho alguma coisa a ver
com o sapo . . . Meu negócio é outro — O Excomungado me explicou.
— Ele vai comigo — respondi, a voz trêmula.
— Você deve ser que nem seu pai. É pena, menino! Chamei Firmino. Parecia um
espantalho, surdo e mudo, por um instante me deu a impressão de que tomar uma surra, mas
não vi sinal de nada. Não me respondeu, mudara o jeito. Puxei-lhe o braço e segui caminho.
Em casa, contaria tudo pro papai, ele daria um jeito. Só tinha que arrumar coragem pra dizer
por que fui parar na tapera do Excomungado; não podia nem pensar, por enquanto, no pega-
pra-capar que ia ser quando eu falasse. Mas não havia outro remédio, se houvesse . . . E o
padre Antônio?! Ai, nem pensar, mesmo!
Quase perto da cidade, faltando só um pouco pra atravessar o cemitério, vi o gato do
Excomungado na espreita, negro, olhos de brasa, corpo ajustado para um puIo. Abaixei-me,
catei a primeira pedra que vi, pretendia arrebentar a cabeça do bicho se tentasse nos atacar.
Pouco adiante, dois vira-latas latiam nervosos, sem coragem de cercar o gato. Nesse
momento, me deu um frio na espinha, aquele bicho era . . era . não podia nem pensar o que
achava que era. Soube então por que Firmino, depois da conversa com o Excomungado,
olhara para o gato: era um olhar de reconhecimento. Firmino descobrira quem era aquele ser.
Preocupado comigo mesmo — e se o gato descobrisse que eu também sabia quem
era ele? , soltei o braço de Firmino. Por isso não sei contar como, nem por quê . . . Não escutei
nem barulho, foi coisa rápida. Firmino tombou no chão, o rosto todo arranhado, sangrando.
Morto. Procurei o gato: afastava-se, ligeiro, um raio negro saltando os túmulos do cemitério
de Mucironga. Os cães o acompanhavam mantendo distância, latindo, sem coragem de
atacar.
— Deus meu'. — caí ajoelhado junto ao corpo de Firmino e rezei como nunca o fizera
antes. Pedi a Deus que arrancasse a verdade cruel que montara guarda na minha cabeça. . . O
Demônio era o gato do Excomungado! Fora ele quem matara Firmino. E viria matar-me a
qualquer momento, viria. . .
A PROIBIÇÃO DO GENERAL
assava das duas horas da tarde quando acordei, ainda com febre.
Mamãe me deu um copo d'água, a mão tremendo; segurava-se para
não perguntar o motivo que me fez sair de madrugada, mato afora,
com Firmino. Madrinha dizia aos cochichos para a vizinha:
— Feitiço do sapo. Só pode. Esse menino era de ouro. Nunca
desobedeceu.
— Já lhe disse que não é sapo, Alice — padrinho quase
berrou. Mamãe franziu a testa, reprovando o barulho que faziam;
estavam me perturbando.
— É sapo! — madrinha alterou a voz, procurando briga.
— Não viu as cinco estrelas no pescoço dele?! É general
disfarçado. . . ele tem seus motivos.
— Pescoço o quê! Papo. Sapo não tem pescoço. E se fosse
general, mesmo, você, o compadre Clementino e o padre António não estariam com o
corpo cheio de verrugas, É raiva de sapo que dá verrugas!
Padrinho esmurrou a parede, chutou o pé da cama onde eu estava, irritado, a
raiva supitando feia. Madrinha notou que não devia mais continuar chovendo no
molhado: se insistisse, a casa caía, o marido não era brincadeira.
Eu não entendia o alheamento de papai: pareceu-me estar longe, pesquisando
passado ou futuro. Resolvi puxar conversa:
— Papai, e o Firmino?

— Estão esperando uma reunião para decidirem o enterro. Depende de


muita coisa . . .
— Reunião?! Firmino não é gente importante! Nunca ouvi falar nisso . . . —
admirei-me.
— Seu pai não quer dizer. . . — padrinho entrou na conversa. — A reunião é
com o General.
— General?! Veio algum general pra Mucironga?! Papai fechou o livro que
fingia ler, botou o dedo pra marcar a página, levantou-se e explicou-me, a voz solene:
— Silvino é cheio de invencionices, você sabe. Na hora do aperto com o
sapo, cismou que podia conversar com o bicho. Disse que se o sapo era enviado do
Excomungado, na certa sabia falar. Sapo de Diabo fala, afirmou ele. Na hora do medo
grande, a gente topa qualquer troço: deixei-o inventar de falar com o bicho. Diz ele
que conseguiu. Tudo arrumação daquele safado que só sabe arrotar grandezas. . .
Trabalhar que é bom, neca! Já não bastava o inchaço fora do comum do bicho,
precisava arrumar mais coisas! O povo engoliu as mentiradas do Silvino, claro! Daí,
uns políticos vagabundos reforçaram a história, deram ao sapo o nome de General. . .
Tudo isso para dominar o povo. Pura safadeza!
— Essa foi pra mim, claro! Não sou vagabundo! Não preciso inventar mentiras
pra ser eleito pelo povo — exclamou padrinho, a voz exaltada.
— Eleito?! . . , Voto comprado.
— Gente, não é hora de briga — mamãe quase cho rava. — Temos que ficar
unidos. Não sabemos o que vai acontecer com Mucironga, agora que Firmino
morreu.
— Nada de ruim, comadre. Nada de ruim. Enquanto a prefeitura de Mucironga
estiver em minhas mãos. .
— Nada de ruim para você, lógico! — Papai estava mesmo a fim de romper
com padrinho, via-se logo.
Fiquei encucado, matutando, não sabia da importância de Firmino, nunca me
disseram nada. O que eu sabia dele era só coisa ruim, que padrinho falava. Quem era
Firmino, afinal?! Ia ter até reunião pra decidirem seu enterro! Isso eu não ia perder,
tinha que tratar de sair logo da febre que me amolecia e descobrir tudo: quem era
Firmino, como é que sapo podia ser general. . . Silvino me diria.
Quase noite, ouvi papai comentando:
— O sapo não apareceu na Prefeitura, mas mesmo assim o Soares inventou
uma proibição em seu nome.
— Claro que não apareceu! . . . Não saiu um instante da cozinha. Está lá
plantado, olho grudado na Betina — reclamou mamãe.
— E o Soares está se incomodando com isso, por acaso?! Vai usar esse
sapo de qualquer jeito, o bicho aparecendo ou não nas reuniões. Escreva o que estou
dizendo, vai segurar a Prefeitura acuando o povo com o sapo. . . com o General,
segundo ele. Pode escrever.
Fui até a cozinha, dei uma espiada no danado do sapos Continuava do
tamanho de um bezerro, vestia terno cinza, gravata atolada no papo. nunca vi nada
igual. — Betina, que arrumação é essa?! Sapo de terno?! Não é sapo, não,
Zacarias. Não vê que é o General'?! A roupa quem deu foi a Prefeitura de Mucironga.
Abanei a cabeça; tudo se atrapalhara! Imagine se dá para acreditar em sapo
dc terno! Pois sim! O danado estava dc terno. E Pirrnino?! repente, me lembrei do
rapaz. Ninguém falava no enterro , Eu queria ir, foi meu amigo ...eu iria.
Procurei papai.
— Papai E o Firmino? perguntei.

— Pois é, filho. Seu padrinho arrumou uma proibiçâo aí. Ninguém pode
acompanhar Firmino ao cemitério, nem a viúva. Elc se encontrou com o
Excomungado, ninguém deve se meter.
— Mas não aconteceu nada! Eu estava lá!

— Melhor esquecer que estava com ele, Zacarias — mamãe falou. Pro seu
bem. Agradeça o fato do prefeito ser seu padrinho. . . Mucironga já não é mais a
mesma. —-- Ela tinha o rosto triste de quem sabia muito mais do que podia falar.
Papai se levantou da rede, andou de um lado para o outro, a boca semiaberta,
escolhia as palavras com cautela. Não era hora pra dizer tudo o que desse na veneta.
Esperei com paciência, senti que o assunto era comigo.
— Zacarias. . . — ele disse —, não vim no mundo para criar covarde. Não
precisa esquecer que estava com FA '. Firmino. . . Nem precisa agradecer aquele
safado do seu padrinho. Só lhe peço uma coisa: por enquanto, obedeça às proibições,
é melhor pra todo mundo. Firmino foi assassinado, você estava por perto, vão ficar
de olho, não o deixarão sossegado. Escute o que estou lhe dizendo. Eles estão com
medo. Cuidado com gente que está com medo. Muito cuidado!
— Quer dizer que não posso ir ao enterro de Firmino?! Ele era meu amigo!
— Era meu amigo também, Zacarias. Nem a mulher dele pode ir. Ninguém.
Pra não haver tumulto. Não é pra ninguém ir. Segundo seu padrinho, é proibição do
General.
Essa, agora! Meu padrinho deve ter ficado pinel! Proibição do General, como?!
Sapo proibindo coisas?! Se ao menos fosse sapo do Excomungado' E foi assim que
me lembrei do recado:
— Papai . . . o Excomungado disse não ter nada a ver com o sapo. Que o
negócio dele é outro.
Papai riscou a mesa com a unha, raspou a garganta,
duvidou:
— Quem é neste mundo que admite alguma culpa, Zacarias?! Vivemos de
mentiras. . . E existe mentiroso maior que o Demo?! Existe?! O sapo é coisa arranjada
do Excomungado, disso não tenho dúvidas.
A ASSOMBRAÇÃO
sapo falou, Silvino? - perguntei ao empregado de papai.
Silvino fez cara de importante, olhou bem pra mim, riu de banda, pensei até
que não ia desembuchar o caso. Errei.
- Sou capaz de jurar que falou.
-Falou o quê?!
- Aí que a porca torce o rabo, Zacarias. Não pesquei nadinha!... A prosa dele
é da outra banda, pro-sa de gente estudada.
A curiosidade foi aumentando dentro de mim; queria porque queria
bater um dedo de prosa com o General. Aquilo era bom demais pra ser
verdade. Sapo falante! Saí à procura do dito cujo, não o encontrei.
-Onde está o sapo, mamãe?
- Escondido no quarto dos fundos.
-Escondido?!
- Até se acalmarem os ânimos por causa do assassinato de Firmino.
De fato, a rua de baixo estava pegando fogo de raiva. Os amigos de Firmino
achavam uma injustiça das grandes não poderem acompanhá-lo ao cemitério.
Montaram barricada diante do barracão do rapaz: o corpo não saía sem
acompanhamento, não senhor!

Corria um zunzum em Mucironga: iam chegar reforços da banda de ló; se


precisasse, o povo seria espantado com tiros. Ouvi seu Quim da Tonica afirmar, na
venda de Curió, que ia ter uma revolução das bravas. Fiquei besta: tudo isso porque o
gato matou Firmino?! Por mais que eu perguntasse quem era mesmo Firmino, na
verdade, ninguém me dizia.
Em casa, como quem não quer nada, rodeei minha mãe:
— A senhora acredita que o sapo falou?

— Não sei. Silvino disse. — Ela não queria conversa, estava na cara. E
também já não chamava o sapo de sapo, era General pra cá, General pra lá.
Não fiz caso, joguei outra pergunta:
— O que tem a ver a morte do Firmino com o General?

— Não sei. Sou tapada para esses assuntos.


Eu também devia ser, não entendia nadinha. Nadinha de nada! Mas de uma
coisa tinha certeza: se o General falara com o bronco do Silvino, falaria também
comigo, claro! Pedi permissão a papai pra ir ao quarto dos fundos.
— Nunca! O General não pode ser amolado agora. Ele está pensando.
Sapo pensando?! Achei graça. Até papai tinha entrado na história. Que coisa!
Só podia ser coisa-feita, feitiço . . . Fui meio jururu pra cozinha. Mamãe e Betina
faziam biscoitos de polvilho, daí a pouco vinha visita pro papai. Madrinha também
estava lá, não ajudava pra não estragar as unhas, justificara.
— Não carece, comadre —- mamãe desculpou-a.
Madrinha suspirou fundo, com uma cara de inveja, tomou uma golada de café.
— Quem diria, hein, Cidinha?! . . Quero dizer, comadre Cidinha desculpou-
se. — Hospedando o General nem primeira-dama você é! Nem primeira-dama. . .
Mamãe não fez caso da ofensa, deu de ombros:
— Tanto faz o General como um qualquer, desde que venha em paz.
Que paz, o quê?! Desde que o General apareceu que a paz evaporou, quem
não viu isso?! Mamãe devia ser tapada mesmo. . . Ou então estava se fazendo de
boba.
Não passou nem meio minuto quando ouvi uma gritaria na rua; saí correndo,
curioso. Mucironga era tão tranqüila que uma gritaria daquelas era festa, novidade.
Não saia de casa, Zacarias! mamãe gritou, feito louca. — É o reforço da banda de
lá.
Melhor ainda, aí é que eu saía mesmo. "Nunca vi reforço de nada", pensei com
meus botões.
Era um mundo velho de reforços. . . Soldados montados a cavalo! Na farda de
cada um estava escrito RBL, "reforço da banda de lá". Contei duzentos reforços e
fiquei orgulhoso da minha amizade com Firmino. Ô sujeito importante, sô!
Jurei pra mim mesmo: vou morrer que nem Firmino, quero duzentos no meu
enterro.
Logo depois do desfile dos soldados pelas poucas ruas de Mucironga,
marcou-se o enterro de Firmino. O povo foi debandando, a barricada virou cinza. Rosa,
a viúva de Firmino, entre sorrisos, dizia que podiam levar o marido, ela não fazia caso.
Dois capangas do pai, coronel Clarindo, protegiam-na.
Me deu na veneta de acompanhar o enterro — de longe, lógico! Dois soldados
agarraram a rede onde estava o corpo de Firmino, ajeitaram-na numa vara grossa e
comprida. Depois, cada qual ergueu o lado da vara que lhe coube, firmaram-na no
ombro esquerdo e saíram marchando, Fui atrás, ninguém enxerga menino, mesmo. . .
Eles marcharam para o lado oposto ao cemitério; vi logo que iam jogar o
corpo no Vale das Formigas. Isso me deu uma raiva danada: lá não era lugar para
Firmino, era onde jogavam os leprosos ou excomungados. Pedi a Deus, na hora, que
me livrasse do juramento, não queria mais morrer que nem Firmino. . .
O Vale das Formigas ficava longe de Mucironga, tinha até que escalar
montanha, depois descer do lado de lá. Os soldados, na metade do caminho, se
cansaram, a boca secou. O sol era de rachar mamona.
— Acho melhor jogar o homem aqui mesmo.
— E se o General ficar sabendo?!
— Fica nada!
— Os urubus. . . esquecem?!

— Só com uma cachaça continuo.

— Deve haver alguma venda por perto.

— Ando só mais um pouco, se não tiver, desisto.


Mas tinha, eles avistaram-na. Amarraram a rede num pequizeiro, esfregaram
as mãos, massagearam o ombro dolorido e foram pra venda do seu Ananias, passo
lerdo de quem estava morto de cansaço; não voltariam tão cedo.
Aproveitei a deixa: enterraria Firmino ali mesmo, naquela terra esturricada por
falta de chuva. Furar o chão como?! Não estava preparado, no bolso só tinha canivete.
Mas Deus ajuda a gente na hora da precisão: avistei ao longe uma carcaça de burro
de carga. O pobre morrera trabalhando, ainda estava com a tralha amarrada na
ossada, umas correias de couro já apodrecidas pelo tempo, sol e chuva. Arrebentei-
as, abri o fardo com o canivete. Dentro uma lambuzeira doida de coisa apodrecida,
bichos e mau-cheiro. Tapei o nariz com uma das mãos e, com outra, procurei
encontrar alguma coisa que servisse par '
furar buraco. Quase desistia quando topei com uma enxada sem cabo e duas
formas de fazer queijo. A enxada, mesmo sem cabo, dava pra cavar a sepultura de
Firmin0•
Suei, suor corajoso, mas consegui fazer os sete palmos abaixo da terra. Meu
medo era que os soldados aparecessem e me enterrassem vivo, mas não podia ser
covarde, meu pai me avisara. Buraco pronto, emborquei a rede de modo que Firmino
caiu duro no chão. Arrastei o corpo até conseguir jogá-lo na sepultura. Ele caiu de
lado, mas não me preocupei em botá-lo na posição certa. Joguei terra por cima.
Tapei tudinho. Depois me lembrei de que devia esconder o que fizera, não deixar a
terra fofa. Eles podiam desenterrar Firmino e . . . Tinha que socá-la de qualquer jeito.
Se ao menos chovesse! Só vi um jeito: mijar em cima — que Firmino me perdoasse,
era pro seu bem — e a seguir sapatear até endurecer tudo, espalhar garranchos e
folhas secas nas partes mais suspeitas. Foi o que fiz, não ia dar na cara. Os soldados
não perceberiam nada e, para me ajudar, o dia se fora, no escuro os gatos são pardos.
Eles não notaram a sepultura quando voltaram. Estavam grogues, trocando
pernas, cantando músicas obscenas. Sentaram no pé do pequizeiro, pelo jeito iam
tirar um cochilo.
Não perceberam a sepultura, mas deram comigo montado na árvore
tentando desamarrar a rede. Pretendia levá-la comigo, lembrança de Firmino.
"Vão me matar", pensei, sem coragem até de rezar. — Você está vendo o que
estou vendo?! — um soldado perguntou, a voz enrolada.
— Nem quero ver o que penso que estou vendo disse o outro, tapando os
olhos.
Procurei ver o que eles viram, mas o medo de ser assassinado me embotara as
idéias, não via nada! Também, escurecera muito, não havia nem estrela no céu.
— É a assombração do defunto — murmurou um dos soldados.
— Que nada! E que bebemos demais. — Vou dar o pira daqui.

— Não! Se não levarmos o defunto pro destino dele, o


General nos mata.

O pavor do General fê-los retirar a rede da árvore; iam cumprir o trajeto. Na


hora em que procuravam a vara no escuro para sustentar a rede no ombro, não sei
o que me deu (nunca fui muito corajoso): engrossei a voz (andava com mania de
voz grossa) e disse: Largue essa rede!
Arrependi-me na hora. "Maldita boca que não sabe ficar calada!" pensei,
tremendo feito vara verde.
— O que Q!. . — os dois falaram ao mesmo tempo.
A rede, largaram-na no chão — É...e...
— É a assombração mesmo!
Como o Diabo corre da cruz, desembestaram no rumo da cidade. Pulei da
árvore, me embaracei numas coisas — garranchos, por certo. Nem cuidei de
desembaraçar meus pés: corri atrás, morto de medo. Raciocinava: soldado nenhum
iria correr de mim, nem rapaz nem menino eu era. Se corriam daquele jeito, era
porque viram assombração, a assombração de Firmino.
— Gente, me espere — implorei. Eles ganharam distância, meu fôlego estava
curto, logo ficaria pra trás, com a assombração no calcanhar. O diabo do garrancho
que se embaraçou na minha espora dificultava-me a corrida. Preferia ser preso, que
me dessem um couro daqueles, a ficar cara a cara com a coisa. — Me es . . .pere. . .
— Jesus! Ele está na nossa cola. . .
— E arrastando a rede. . .
Quando ouvi esse troço, fiquei quase louco. A assombração do Firmino vinha
atrás da gente com a rede.
Não ousei nem olhar pra trás, não era besta. Corri mais depressa. Alcançaria os
soldados, explicaria tudinho, pediria perdão até ao General, se fosse preciso. Já
sentia 0 peso da assombração nas pernas, ela se agarrara nelas, eu estava arrepiado
de pavor.
— Ela continua atrás da gente a voz apavorada do soldado saiu que nem um
lamento, pareceu-me até que tinham curado a bebedeira.
Na entrada da cidade, descobri a assombração. Foi no meu último tombo no
chão. Esqueci de contar que, na corrida, catei mamona adoidado. . Levei tombo
para não acabar mais. Pois é, descobri a assombração.
Algo me prendeu num toco de pau e me atirou ao chão. Foi tombo feio, senti
que quebrara a perna. Agora não havia escapatória, a assombração ia me agarrar!
Os soldados viraram fumaça, não os via mais.
Já que não tinha outro jeito mesmo, esperei, rinchando de dor, a danada da
assombração. "Firmino mal-agradecido! pensei. Fiz um esforço desgramado para lhe
dar uma sepultura de gente, bolas! E é assim que me agradece?! Mal-agradecido! O
que queria mais? . . . Deus do céu! Foi aí que me lembrei, havia-me esquecido da
cruz, só podia ser isso!
Resolvi me explicar, gaguejando de dor e medo:
— Escu. . . te, Fir . . . Fir. Firmino, de . . . depo . . . is le . . . le levo a cruz. .
. não podemos dar na cara. . . agora. Vê se me. . . me. . . en . . . tende.
Nada de o miserável responder. Naquele momento, ele era miserável mesmo.
Esqueci-me até de que fora meu amigo, quem não esquece?!

— A. parece Io. . . logo. N . . . n . . . não estou com medo.


Nem bem acabei de falar, vi a assombração que botava a mim e aos soldados pra
correr. Ela estava engastatada na minha botina, na espora, para ser mais exato. . . Ela,
não! A rede de Firmino! E a assombração era eu!
A LEI DOS GENERAIS

eu a doida na minha madrinha. Ela queria porque queria hospedar o sapo. Disparou
a mexer os pauzinhos para tirar o General de nossa casa.Além disso,o coronel
Clarindo, acobertado por padrinho, atiçava os fazendeiros menos graúdos contra
posseiros e agregados da fazenda. Tudo porque o corpo de Firmino não fora jogado
onde o General queria.
Papai me aconselhou a não abrir o bico, tinha uns planos para derrubar o
padrinho do poder. Mas não suportei tanta injustiça pro lado dos posseiros, fui à
Prefeitura e confessei:
- Quem enterrou Firmino fui eu. Mais ninguém e contei o caso todo. Mostrei a
perna quebrada e a rede.
Padrinho me agarrou pelo braço, chamou dois cabos da polícia e fomos ao local onde
enterrei Firmino. Fiquei de queixo caído: nem sombra do buraco no chãos cabos os cavucaram por
todo lado, nada de Firmino. Se eu não tivesse visto a enxada sem cabo e o meu canivete no pé da
árvore, teria ficado pinel. Alguém roubara o corpo... alguém dera sumiço no buraco. Quem?! Só
meu pai sabia do caso, mas ele não daria conta de dar sumiço em buraco, raciocinei. Só podia ser
coisa do Demo.

Padrinho me levou de volta pra Prefeitura e lá desabafou:


— Ora, Zacarias! Quem é você pra passar a perna em dois soldados do reforço da
banda de lá?! Deixe de besteiras, menino! — Deu um murro na mesa e, abaixando a voz,
perguntou-me: — Quem foi que mandou você aqui? Foi o safado do seu pai? Pode falar,
não sou seu padrinho?! Sei que foi seu pai. Pode falar, meu filho.
Não abri a boca. O padrinho tinha jeito de cobra venenosa, mexia o pescoço fino, a
cabeça pequena, de um lado pra outro, espumando na hora de dar o bote. . traiçoeiro!
— Fale — continuou. É pro seu bem. Esses comunistas são uns cachorros! Estão
usando você. Isso eu não admito. Sou seu padrinho .
— Ninguém me mandou aqui . . . E, se quer saber mais, não sou seu afilhado. Eu não
quero ser.
— Malcriado'. — berrou feio, a mão espalmada para me esbofetear. Não sei como
conseguiu se conter.
Saí de lá murcho que só vendo. Passei pela venda do Curió: conversa animada,
pinga rolando por conta do coronel Clarindo. Entrei pra farejar o que comemoravam, Não
demorou muito, seu Quim da Tonica me provocou:
— Então, Zacarias?! Vai perder o General, heim?! Seu pai bem que merece uma
desfeita dessas!
— O quê?'. — perguntei. Já havia entendido tudinho, só queria ver o nego
desembuchando. Dito e feito.
— Pois não sabe?! Ainda agorinha foi aprovada Câmara Municipal uma lei que proíbe
mucironguense hospedar general, exceto o prefeito. . . É a lei dos generais.
— Lei dos generais?! . . Desde quando vem general por aqui?! — disse com raiva.
Ele depositou o facão, que usava para cortar nacos de carne seca, sobre o saco de
farinha de mandioca, deu umas palmadinhas no cabo do revólver, riu de banda, tudo
isso de olho em cima de mim. "Vai me estrangular agora", pensei. "Que estrangule,
irá estrepar-se com papai."
— Quer dizer que nunca vem general por aqui, menino?! Você tem coragem de
repetir isso?!
A turma do deixa-disso interveio:
— Que é isso, seu Quim?! Não vê que é um menino?! Nem pode medir forças com o
senhor.
— Nem pode?! E por que inventou?! . . . Vamos, moleque. . . Não vem general por
aqui?!
— Não vem — respondi meio trêmulo.
— Como que não vem?! — ele estourou. — E o que vocês estão amoitando lá no
quarto dos fundos?! Responda, seu moleque!
Sacudiu-me com força, hálito de pinga, olhos de cão. A boca espumava de tanta
saliva, de tanta raiva . . .
— Aquele bi . . .cho não é . . . não é. . . não é general. É um sapo -— consegui
responder.
— Um sapo?! Um sapo daquele tamanho?!!! Vocês estão escutando, gente?! Ele está
chamando o General de sapo! De sapo! Pode deixar. . . vou dar um jeito na sua petulância,
moleque!
Curió saiu detrás do balcão, saltou uma pilha de rapaduras, botou uma das mãos no
meu ombro e a outra no peito cabeludo do seu Quim.
— Seu Quim. . . — falou —, esse menino é filho do seu Clementino e afilhado do
prefeito. Pense bem no que vai fazer. Isso pode se tornar um problema desgramado. . . o
coronel Clarindo pode não gostar. Ele não gosta desse tipo de expediente. Já vivi bastante
pra sabe. que não se deve mexer com filho de graúdo. . . Deixe os graúdos mexerem o angu
deles pra lá. No fritar dos
ovos, quem paga o pato somos nós.
Nem me lembro mais de como saí da venda do Curió. Só sei que no mesmo dia. à tarde.
madrinha apareceu toda cheia de dedos em casa. elogiando até uma cadeira desconjuntada
que mamãe não achava vez pra mandar consertar. Fiquei de orelha em pé. Naquele mato
tinha coisa, assuntei. E como tinha!
Não me leve a mal. comadre — ela começou. a voz açucarada. — O caso não foi
bem com você. entende? Que caso?!
— A lei dos generais. . é sobre ela que estou falando.
Lei dos generais?! Que lei é essa?'
— Ê o seguinte. . . não sei como explicar. Não?!
— Ê. . . bem. . . o General ficará mais bem servido na minha casa. . . é isso. Sou a
primeira-dama de Mucironga. Entende, agora?
— Não entendo nem quero entender. Mas se quer me dizer que veio buscar o sapo.
pode levar. Não faço caso. Mas mesmo dizendo isso mamãe ficou trombuda. — Ele não é
sapo.
— E sapo. Já estou cansada de chamar um sapo de General. Cansada! Ê sapo! E
você é puxa-saco de sap.
Madrinha não apreciou o desabafo de mamãe, estrilou feio. A vizinhança acudiu
curiosa. Nunca tinham visto as duas comadres brigando, elas sempre foram unha
com carne!
Ê culpa do General — expliquei aos vizinhos.
No outro dia, nem tinha amanhecido direito. acordamos com um toque de
clarim. Corremos à janela da frente e vimos os soldados da banda de lá enfileirados diante
da cerca de arame que cercava nossa casa. À frente deles, os vereadores, o delegado e os
coronéis, inclusive o coronel Clarindo. Mais atrás, a uns cinco metros, a jagunçada, tudo com
cara de revolução.

Betina se jogou no chão chorando, pedindo clemência, nunca vira coisa igual em toda
a vida, só podia ser uma guerra. Silvino pediu permissão a papai para sc defender
com a espingarda. Morria, podia morrer, mas matava dez e aleijava vinte.
Deixe disso, cabra medroso! — papai grunhiu, a raiva saindo até pelos
ouvidos. — Esses desgramados só querem o sapo. Não vê?!
Observei que depois da lei dos generais, papai e ma. mãe faziam questão de
chamar o General de sapo. .
— Vão arrebentar a casa — mamãe se lastimava.
— Não vão nada. Estão esperando a sirigaita da sua comadre. . . e o maldito do
prefeito — papai tentou acalmá-la.
Era verdade. Dali a pouco, padrinho e madrinha chegavam numa camioneta mais
enfeitada que árvore de Natal, carroceria forrada de cetim e outros fricotes, luxo igual
nunca vi nem nas procissões da igreja.
Padrinho desceu, ajeitou a gravata, passou revista na tropa de reforços, acenou
para o cordão de puxa-sacos, papai observando tudo com desprezo e raiva. E eu me
coçando de curiosidade, queria ver no que ia dar tudo aquiIo. . . Queria escutar o General
falando com o povo. . . Só que fiquei meio murcho: papai não desafiou ninguém; não
abriu a boca nem pra xingar meu padrinho. Recebeuo de pijama mesmo (pela cara de
madrinha, vi que ela
tomou a coisa como uma desfeita, porém ninguém fez caso de sua cara azeda).
— O sapo está no quarto dos fundos — mamãe avisou. — Podem
pegar o bicho.
— General, comadre.
— Sapo, compadre mamãe rebateu. Parecia que estava a fim de uma briga.
Mulher valente! (Às vezes, claro!)
Padrinho resolveu por bem ficar calado. Seguiu com a comitiva até o quarto
dos fundos. Pensei com meus bo36
toes: • 'O bicho vai sair andando e conversando que nem gente. Essa eu não perco! Depois
conto lá no colégio .
Ah! se conto!"
Que decepção! O sapo saiu pulando como qualquer sapo de brejo. A única
diferença era o tamanho e o terno cinza dos bons, a gravata enterrada no papo gordo.
E não falou nada! Não abriu a boca nem para agradecer a hospedagem. Nada! Foi
embora pulando. . com um bando de bestas atrás.
Senti um vazio enorme dentro de mim — não porque quisesse o danado do
sapo, lógico! Foi porque não consegui dar nem um dedo de prosa com ele, porque não
consegui descobrir o mistério que o envolvia. Só isso.
Papai passou a mão nos meus cabelos, notara meu jeito triste. Profetizou:
— Acabou nosso sossego. Mucironga está agora nas mãos de um irracional.
Estamos perdidos.
Mamãe discordou:
— Ora, Clementino! Ê apenas um sapo!
Sorrindo, sorriso descrente, papai afirmou:
— Era apenas um sapo, Cidinha. Agora, querendo ou não, é um General no
poder. Vai mandar até no Soares, você vai ver. Vai mandar e desmandar, e quem chiar
irá para o brejo. Estamos no mato sem cachorro. . , principalmente agora que Firmino
morreu.
Fiquei matutando novamente: qual era a importância de Firmino?! E onde foi
parar o corpo dele?! Que coisa estranha! Teria sido papai quem o retirou da cova que
arrumei?! Ou será que sonhei com a bendita cova de Firmino?! Ninguém me ajudava.
Nem meu pai. Todos estavam de segredinhos.
— Agora a lei de Mucironga será a lei dos generais, Cidinha.
— Será que isso é ruim mesmo?! — Ruim?! Bota ruim
nisso!
O LIXO ATÔMICO

adre Antônio, culto como só ele, viajado, tinha sua própria teoria para explicar o
tamanho descomunal do sapo. Quero dizer, do General. Ele me disse que o
General era apenas um sapo. Um sapo diferente, claro! Um sapo que foi
alimentado pelo lixo atômico das grandes potências.aqui?!
Um acordo internacional, Zacarias. Mucironga só podia exportar carne se
aceitasse o lixo... os graúdos fizeram o acordo. E mucironguense não é de criar caso, nem
sabe o que é lixo atômico. E o lixo foi para o brejo.
Nem eu sabia o que era esse tal lixo atômico, nem sabia desse acordo internacional.
Santa ignorância a minha!
O padre continuou:
- Sapo era o que não faltava no brejo, tudo dado por coisa importada, etiquetada com
a famosa frase MADE IN USA.
- Mas, padre! Se fosse assim, todos os sapos estariam do mesmo tamanho do
General.
- Que nada, Clementino. Existe a lei do mais forte. Uns comem mais que os outros... além disso, o
Excomungado deve ter botado as manguinhas de fora, escolhido um dos sapos. . o mais
irracional de todos. Ninguém dá ponto sem nó.
O Excomungado me disse não ter nada a ver com o peixe. . . — rebati.
É a maior prova de que tem, Zacarias. Se negou é porque tem. E Firmino devia
saber de alguma coisa. .
Senão não ia lá de peito aberto!
Por falar em Firmino, padre. . . é verdade o que o povo anda dizendo?!
Nem pense nisso, Zacarias. Melhor para você. Por que, padre?!
Não sei. Há muita fantasia nessa história. Melhor desconhecê-la.
O senhor acredita no que o povo está falando?!
Em parte, sim. Acredito no povo, mas. . .
Minha cabeça parecia que ia estourar. . . Foi zunido em cima de zunido. Se o padre
acreditava, então era verdade! Firmino revivera! Revivera por obra do Demo! Que coisa' "Que
ele não me apareça agora!" desejei.
Uns dias se passaram e a história do lixo atômico acabou com a boateira em torno
de Firmino.
A história do lixo atômico correu de boca em boca; uns acreditavam, outros não.
Na verdade, do jeito que a coisa estava indo, era melhor não acreditar. Padre Antônio mesmo
foi avisado de que seria preso e julgado se continuasse agitando o povo. Ninguém podia
duvidar da formaçao do General.
Silvino ouviu a história do padre, passou dias matutando. . . E se fosse no brejo?!
Devia ter sobrado algum lixo atômico por lá . . .
— Endoidou, Silvino?! — escutei Betina lhe perguntando, voz assustada.
— Endoidei não. Cansei de ser baixinho. Como o lixo. que nem o sapo, fico maior que todo
mundo.Deixo de ser nanico.
Ninguém conseguiu tirar de Silvino a idéia de aumentar de tamanho comendo
lixo importado. Numa tarde, sumiu pro lado do brejo. Fui atrás, rente no rastro dele.
Só que não vi nada, nadinha mesmo. Silvino entrou no brejo e desapareceu.
Fiquei na moita esperando um gigante na certa ele estava escondido comendo o lixo
atômico e, quando aparecesse . . . Não apareceu!
Voltei pra casa, contei para papai sobre o sumiço de Silvino. Ele deu um muxoxo,
não sei se foi de desprezo ou desinteresse,
— Estamos ficando cada vez mais no mato sem cachorro — falou.
Por pensei. Sabia que não ia adiantar perguntar o motivo; papai não diria.
Um mês depois, vi Silvino, do mesmo tamanho de antes, no volante do carrão
preto do General. No banco traseiro, o prefeito e o Excomungado. — Silvino?'. . — gritei.
Nem me olhou, sentia-se grande.
Em casa contei pra Betina. Vivia chorando a morte do noivo, pensei que fosse
dar pulos de alegria sabendo-o vivinho da silva. Que nada! Chorou mais ainda, xingou-o
de excomungado e mais um bando de coisas.
Nesse mesmo dia, nem bem começávamos a jantar, apareceram cinco homens (pra
mim, nenhum deles era homem, pareciam bichos, sapos, pra ser mais exato Apareceram,
não abriram a boca, agarraram papai e o levaram.
Quis correr atrás, mas mamãe me segurou firme; Betina a ajudou.
— Por quê, mamãe?!
— Seu pai é contra. Sempre foi. Eles sabem. Por isso, o General apareceu
aqui em casa quando chegou.
Veio espiar seu pai, fingindo de sapo.
— O General não finge de sapo. . . ele é sapo.
— Pare com isso, Zacarias. Está me saindo igualzi nho a seu pai!
— Papai é contra o quê?! Eles sabem o que de papai?!
—Você é muito perguntador, Zacarias. Melhor não saber de nada — mamãe
suspirou de pesar.
Pois muito bem! Se não queria contar nada, eu mesmo iria descobrir. Começaria
pelo tal lixo atômico. Que diabo de lixo era esse?!
Fui ao brejo no dia seguinte, de manhã bem cedo, antes de mamãe acordar.
Atravessei por dentro do cemitério, o brejo ficava nos fundos. A sapaiada toda estava
por lá, comendo mosquito, numa folga de fazer inveja. Nenhum se incomodou com
minha presença. Estranhei. Sapo, quando vê gente, imobiliza-se. Mesmo assim, não me
bateu medo algum. Tinha que ser valente e descobrir tudo. Não mataram Firmino, não
deram sumiço no meu pai Então?!
Atolei as botinas no lamaçal, procurando o lixo. Nem sabia como era, por certo
era diferente dos outros lixos. Já estava na metade do brejo quando vi que me seguiam,
rente. Eram os sapos. Virei-me para sair dali. Cruz-credo! Dispararam a crescer! . . . Não
tinham mais jeito de sapo, eram os soldados do reforço da banda de lá. Não gosto nem de
lembrar. . Continuei andando, fingindo procurar borboletas, libélulas, qualquer coisa. O
único o era não recuar, andar em frente. Quando eu fazia lenção de dar o pira, os soldados
me ameaçavam com baionetas; quando fingia procurar borboletas, só via sapos pulando
atrás de mim, rentes.
Devo estar ficando louco . . . só pode ser alucinação — Comecei a falar sozinho pra
ouvir minha voz:
— Não estou com medo, não estou , é pra se molhar, mesmo. .
Não foi nada, não! Nem bem acabei de falar em chuva, caiu uma chuva de
pedras em cima da minha cabeça. Só chovia onde eu estava. Por mais que desviasse, a
chuva me cercava feito maluca, as pedrinhas de gelo me machucando todo. Chorei, estava
com medo mesmo. O remédio era chorar. . E a chuva parou. Decidi ir-me de lá, com soldado
ou sapo na minha cola, tanto fazia. Ficar, não ficava mais, não! Mas meus pés estavam
atolados, pesavam feito chumbo.
— Virgem Santa'. — faiei bem alto. ----- Se eu conseguir sair daqui vivo, prometo tapar
o buraco que fiz na parede do banheiro de Betina. . . Nunca mais vou olhar Betina tomar
banho. Juro! Tiro tudo que for caraminhola da cabeça, não penso nem no beijo que quero
dar na Glorinha. . . Não fico mais agachado debaixo da mangueira para espiar as meninas
da dona Sinhá lá em cima chupando mangas. Juro!
Jurei juramento difícil que só vendo! Me deu até uma dorzinha de lado — imagine,
ficar vivo, mas sem ver mais nada! Será que valia a pena?! Matutei um tempão, vi que não
seria capaz de tirar as caraminholas da cabeça, e também sabia que a Virgem Santa não
era boba, o juramento tinha sido da boca pra fora.
Foi nesse meio tempo que me apareceu, em carne e osso, o Excomungado. Ele
emergiu do brejo! De boca aberta, olhos arregalados, fiquei esperando: iria afogar-me na
lama, por certo. Ele ria, eu ri amarelo. . . Melhor é fingir de amigo. Mas quando dei de cara
com o gato do olho de fogo, meu riso sumiu.
— Está com medo, Zacarias?!—o gato me
perguntou.
Fiquei feito bobo, sem saber o que dizer. Gato falando?! Era muito pra minha
cachola. Muito.
— Ele falou com você, menino — o Excomungado me apontou o gato. — Quer
resposta.
— Estou com medo, sim. Por que não havia de estar?!
— Melhor assim — o gato comentou. — Venha.
— Estou atolado — avisei.
— Desatole o menino — o Excomungado ordenou a um soldado.
O soldado, que mais me parecia um sapo, enfiou os braços debaixo dos
meus sovacos e me arrancou da lama. Ainda me carregando, jogou-me no buraco
onde o Excomungado estava. Caí, batendo a cabeça na bota do homem, depois fui
rolando terra adentro como se estivesse num escorregador. Só parei numa sala
escura, cheia de lampiões de azeite. No centro, vi uma mesa enorme. . .
E sobre ela, o corpo de Firmino.
— Está ferrado no sono — o Excomungado falou. — Vou acordar. . . quero que ele
fale com você.
Enquanto o Excomungado sacudia Firmino para acordá-lo, o gato
encarapitou na minha cabeça. Não sei como não desmaiei! Tudo aquilo era
medonho, pior que as histórias de assombração que dona Sinhá contava em noite
de lua cheia.
Firmino acordou, assustado, e olhou-me.
— Zacarias! Você não tem cabeça, mesmo! —reclamou.
Não dei um pio. Conversar com defunto era demais para mim.

Ele continuou:
— Seu pai está morto, Zacarias. Ali, naquele canto. Olhei tremendo pro tal
canto da sala: meu pai estava com os pés atados nas mãos, emborcado; parecia
morto.
— Meu pai?! — gritei. Não vi como, avancei no Excomungado feito onça, mordendo,
chutando, fiz um escar43
céu danado. Dei um safanão no gato, que pulou longe, miando, o pêlo eriçado,
bravo.
Amarraram-me com uma corda, como se eu fosse um rolo de fumo,
apanharam um coité com um caldo amarelo e me obrigaram a beber a coisa. Bebi,
cuspi a metade, levei bordoadas pra beber mais . . . Depois me deu uma zonzeira, perdi
a noção do mundo, não vi mais nada.
Acordei deitado num túmulo, altas horas da noite, com o gato me vigiando. Dei
um pulo de medo. Ainda meio zonzo, saí numa carreira só, a perna engessada, no
rumo de casa. O gato atrás, miando.
Entrei em casa. Mamãe estava na sala com Betina, desfiando um rosário.
— Mamãe! Me acuda! O demônio. . . papai. . .papai . . eles mataram papai!
Firmino reviveu. . . eu vi no buraco do brejo . . . caí no buraco do brejo . . . e vi tudo.
Betina me enrolou com uma coberta, deitou-me num catre que havia na sala, as
duas não abriram a boca.
— Mamãe! Por Deus! Papai morreu!
— Impressão sua, filhinho. Impressão. Esta cidade está mexendo com seus
miolos. Dorme — foi só o que me disse.
Dormir como?! O gato estava deitado na sala, encostado no pé do catre,
bebendo o leite que Betina lhe trouxe. Dormir como?! Elas riram quando disse que 0
gato falara comigo, que o gato era o Demo.
No outro dia, procurei padre Antônio e sob juramento lhe contei tudinho.
— Melhor esquecer, Zacarias. — ele me disse. — Devo ter errado . . . a teoria do lixo
atômico furou.
devem ter a moda deles para agir . . . Não é lixo atômico...é lixo humano. . . E não
acredite nessa história de que Firmino reviveu. Por certo, nem chegou a morrer.
Tudo embromação. Seu pai está morto nada! É outra embromação. . . Querem
meter medo em você. Por trás disso tudo há coisa maior. É só esperar pra ver. . .
— Esperar, padre?!
— É só o que você pode fazer. Volte para o internato. . . Melhor, não acha?
— Não acho nada! E não volto enquanto não descobrir essa fuazeira. Não volto!
GOSTO DE DOCE DE MANGA VERDE

inha mãe ficou de cabeça oca, parecia boba. Be-tina tomou a frente da
casa. Do meu pai, nem notícia. E Firmino, volta e meia, fazia umas
aparições na cidade em noite de lua cheia. Quem podia estava
debandando de Mucironga. E quem ficava não saía quase de casa,medo
de assombração e do danado do sapo manda-chuva. O sapo ou General
ditava ordens através do prefeito, ordens terríveis. Quem desobedecia
sumia da noite para o dia. Coisa horrível!
Uma das ordens do General se referia ao namoro. Era proibido namorar em
Mucironga, não sei por quê! Segundo um fiscal do namoro, era porque namorar era
algo indecente, um atentado ao pudor.
Essa proibição me atiçou. Fiquei doido pra namorar. Não tinha mais pai pra me
controlar, era só arranjar uma menina. E tinha que ser a Glorinha.
Dei pra rodear a casa dela todo dia. A mãe não deixava sair, medo de a mocinha fazer coisa
errada...Mas eu tinha certeza de que um dia ela sairia de casa, claro! Dito e feito. Saiu
numa manhã de domingo com roupa de ir pra missa. Desde que o General passou a
mandar e desmandar em Mucironga, nós tínhamos de sair com a roupa certa, que
indicasse o lugar aonde íamos, para facilitar o trabalho dos fiscais. Eu vivia com roupa de
compra e com um pacote debaixo do braço, os fiscais já estavam de olho em mim. Um
até me perguntou o que eu tanto comprava. Respondi:
— Coisa pro almoço ou pra janta.
— O General vai aumentar o preço de tudo pra vocês pararem de comprar tanto
avisou-me.
— Vamos ficar sem comer?!
— Não sei. Vai comer só quem pode.
— Eu posso.
— Por enquanto — e saiu assoviando, rindo com os olhos. Sabia, ele gozava
com minha cara. Não entendia por que tanta implicância comigo. Já estava até
acreditando no padre Antônio. Tanta embromação era só para esconder alguma
coisa muito séria. . .
Voltando ao assunto da Glorinha. . . Pois é, ela foi à missa, nem sei se
escutou o que o padre disse. Grudei os olhos nela e ela gostou. Não parou de me
olhar com o rabo do olho. Vi que ia dar pé meu empreendimento. Depois da missa,
calculei.
Nem bem o padre acabou de dizer "Que Deus vos acompanhe", murmurei um
apressado "Amém" e corri até o banco onde a moça estava.
— Venha comigo atrás da igreja — cochichei-lhe.
Me dá um pran — ela concordou, olho safado, e agitando a franja.
Fui na frente, fiquei chutando pedras, esperando. Lembrei-me de que Betina
me dissera que beijo tinha gosto de doce de manga verde. A primeira bocada no
doce, pra quem não está acostumado, assusta. A gente pensa que é ruim. Mas
depois a gente toma gosto e não quer ficar sem o doce. Só de pensar nele, a boca
fica cheia

d'água. O beiio é a mesma coisa. . o primeiro não é grande coisa, mas depois . . .
Então, eu já estava preparado pra ficar sem graça com o primeiro beijo que
daria em Glorinha. . . Meu conforto seria depois, com os outros beijos. Daria mil!
Glorinha chegou por trás de mim, passou a mão nos meus olhos.
— Adivinhe — murmurou.
Fiz de besta, falei o nome de mamãe, de Betina, do padre Antônio, só pra ela
continuar com a mãos no meu rosto. "Ô trem bão!" Fiquei de bobeira, escutando seu
risinho. Isso durou algum tempo.
Depois, não agüentando mais, virei-me, olhei pra sua boca e pensei: "Vai ser
agora". Só que me deu uma bambeira nas pernas, o coração batia forte, as mãos
gelaram! Fiquei fulo da vida, que diabo! Na hora H, eu baqueava, ora!
— Você não vai me beijar, Zacarias?! — ela me perguntou, riso de lado, provocando-
me.
Fiquei chocado com a investida de Glorinha. Naquela época, eu tinha outro
conceito sobre moça direita. Pra mim, moça direita era recatada, esperava ser
cortejada, fazia-se de difícil. Falei:
— Você já beijou outro, Glorinha?!
— E não havia de beijar, menino?!
Encabulado, arrisquei:
— Que gosto tinha?
— Gosto de beijo, uai!
— Gosto de doce de manga verde?
— Se tivesse, não beijava ninguém. Detesto doce de manga verde. Tem gosto de céu,
o beijo.
— E qual é o gosto do céu?!
— Ah! Deixe de baboseira, Zacarias. Então você me chama pra detrás da igreja,
só para falar em gosto de beijo?! Você nunca beijou?!!!
— Cia. Claro que já beijei! Não sou besta — e lasquei um beijo chocho na
boca da sirigaita, Não senti gosto nenhum! Limpei os lábios com as costas da mão
e descontei a frustração. — Ué! Pra quem já beijou, Glorinha, parece que você não . .
que ainda não aprendeu!
— Cabra besta! Pongó! Frangote! — ela ainda ia me dizer mais um punhado
de desaforos, mas foi interrompida pela chegada do fiscal do namoro.
Fomos parar no gabinete do General. Não é que o danado do sapo estava já
maior que um bezerro? Sentado numa cadeira giratória, brincava de girar até a gente
não enxergar a cara do bicho. O prefeito, mais murcho que maracujá maduro,
cutucava-o no ombro para que parasse. Por fim parou, olhou bravo pro prefeito e . . .
coaxou!
— Puxa! Pensei que ele sabia falar! exclamei. — Pois sabe'. — disse o
Excomungado entrando. — Só fala com música.
E daí botou um disco na vitrola, uma música de sextafeira da Paixão. O sapo
disparou a falar. Olhei pra boca dele, nem abria. Falava de boca fechada! Mas eu não
era nada bobo: achei que a fala do bicho estava era no disco, só que não ia arriscar
o palpite. Não queria sumir da noite pro dia.
O General, de boca fechada, me pregou um sermão daqueles! Explicou-me o
que era censura, o que o povo não devia fazer. . . Falou sobre atentado à moral,
essas coisas.
O prefeito balançava a cabeça, confirmando os troços bestas que o General
falava. Eu, de olho grudado no disco. Só queria que o disco parasse de tocar, aí ia
lascar uma pergunta de supetão, pra pegá-lo no pulo. Se ele soubesse falar mesmo,
responderia. Só queria ouvir. . . Foi o que fiz. Perguntei:
— Ainda que mal pergunte, qual é a graça do senhor, General?
—Sapo, Zacarias — ele respondeu.

Jesus! Eu que pensava que era sabido, que já havia adivinhado todo o mistério
da conversa do sapo, e não é que o bicho falava mesmo?! Falava! Não era a vitrola,
nada! Era ele!
Glorinha se agarrou a mim, tremendo, querendo proteção — mas como?! Eu
tremia mais do que ela!
Nesse mesmo dia — era domingo, já disse —O General entregou um pacote para
Mucironga. O pacote foi aberto no meio da praça pela minha madrinha. Dele saíram uns
papos de anjos, balões de gás coloridos, com as ordens do General. Uma delas: era
proibido beijar até dentro de casa, nada de meladeira . . . Beijação era para maricas e
mulher que não tinha o que fazer.
E, para acabar com as maricagens dos homens e com a falta de serviço das
mulheres, avisava ele que os preços das coisas iriam subir a partir da próxima segunda-
feira. Quem quisesse comer melhor que plantasse, quem quisesse roupas que tecesse. .
. Mas ninguém podia se esquecer de pagar os impostos sobre o que fosse produzido
em casa. Ninguém!
Mamãe nem se tocou com as proibições nem com a alta dos preços das coisas;
vivia no mundo da lua, falando coisas sem-pé-nem-cabeça.
Betina foi quem se desesperou. Estava prenhe, barriga do tamanho dum bonde,
incapaz de se abaixar para cuidar de horta. E, para completar seu desespero, Silvino, pai
do seu filho, era o chefe dos fiscais da nossa rua. Ela não agüentava nem olhar pra cara
dele, sumira quando mais precisava de apoio. Isso ela não perdoava.
Mais tarde, Silvino chegou com o fiscal da nossa casa. Mediram o terreno,
fizeram inventário de tudo, perguntaram o que íamos plantar. Eu avisei logo:
— Nada! Vou buscar na fazenda.

— Fazenda?' — ele riu — Então não sabe?! A 50


fazenda do seu pai foi confiscada pelo General. Estava com umas irregularidades.
Então não sabe?!
Com que direito?! estrilei, mesmo sem acreditar na asneira que Silvino
dizia. Imagine só! O fazendão de papai nas mãos do General?! O que sapo irá fazer
com fazenda?!
— Ele é o General, Zacarias . . . A fazenda é dele . . . Dele, não! Ê do governo de
Mucironga.
Larguei numa corrida até dentro de casa, gritei, minha mãe que tratasse de
cair em si e me responder. Queria saber se era verdade o que Silvino me dissera.
Mamãe me ouviu, teve reação, notei. Levantou-se da rede onde passava dia e
noite balançando-se, zambetou dum lado pro outro, cantou, música triste, lágrimas
escorriam no seu rosto. Fiquei cabreiro, arrependido, pareceume ter tocado o dedo
em alguma ferida do seu corpo. Betina pôs a mão no meu ombro, apertou os dedos
na minha carne, falou:
Por isso ela ficou assim, Zacarias. Tiraram tudo dela. Inventaram uns
trens aí, arrumaram tudo nuns papéis, obrigaram sua mãe a assinar. . . senão davam
cabo de você. Ela não teve outro remédio, assinou. Foi essa coisa ruim — Betina
apontou Silvino lá no quintal. — Foi aqueIa peste quem trouxe os papéis. . . Está tudo
errado. A gente não carece mais de lutar por nada. Acabou tudo.
Não podia acreditar, não podia! Não é que, por causa de um beijinho de nada
em Glorinha, desandou tudo em Mucironga?! Apareceu o tal pacote econômico por
causa de um beijo chocho atrás da igreja! Não! Não era verdade, não! O beijo me fez
descobrir a causa da doidice de mamãe, saber que já não tinha fazenda, que éramos
pobres!
Foi nesse dia que tomei uma baita raiva de doce de manga verde, tomei
raiva até de pé de manga. . . tomei raiva de Glorinha, virei um bicho.
A APARIÇÃO DE FIRMINO
irei bicho mesmo, bicho valente,fuçador,atrevido. Ninguém mais
me metia medo, nem os fiscais
cais do General. Eu os desafiava pichando muros: "Abaixo o
General!”,“Abaixo o prefeito
capacho!"... Nem a assombração de Firminome fazia estremelicar
de medo. Em noites de
lua cheia, eu passava a noite inteira zambetando por toda
Mucironga pra dar de cara com
Firmino. Ele ia ver uma coisa! Pra mim, tinha virado a
casaca,estava do lado do Excomungado, aquele desavergonhado,
peconhento! Só ouvia o povo dizendo que ele aparecia aqui, acolá, mas eu
mesmo não via nada.
Não foi nada, não! Um dia, deparei com ele. Eu pas-sava pela rua de baixo,
quando percebi um fuazeiro na casa da luz vermelha, a casa da Flora. Lugar mal-
afamado,cheio de bêbados e vagabundos,meu pai sempre me proi-bira de ir lá. Mas
parece que ele ia-lembro-me do qu Firmino me dissera na noite em que fomos à tapera
do Excomungado.
Bati pro lado da casa da Flora,quase correndo. Cru-zei com dois fiscais, que anotaram o
número da minha ca-misa. Não dei confiança. Ah, esqueci de dizer que, depois do pacote
do General, todo mucironguense era obrigado a usar um número de identificação nas
costas da camisa, que nem chapa de carro . . . para facilitar o trabalho de vigilância dos
fiscais.
Pois bem, topei com a casa da Flora justo na hora de um sururu medonho. Topei
com elas, dona Flora e as meninas, algemadas. Os soldados do reforço arrebentavam
gavetas, reviravam colchões procurando sei-lá-o-quê. Sentados, apreciando a
bandalheira dos soldados, vi o prefeito, o Excomungado e o General. Nem me viram
entrar, nem viram a chegada de Firmino.
Firmino deu as caras uns dois minutos depois de mim. Raspou a garganta,
cumprimentou-me dando uma "sardinha" no meu traseiro. Bateu-me o espanto:
assombração de carne e osso e ainda, de lambuja, dando "sardinha"?! Tratei de fazer o
sinal-da-cruz, se fosse o Coisa ruim que tivesse tomado o corpo de Firmino, daria o fora.
Ele riu, explicou-me:
— Fique com medo não, Zacarias. Não é o que você está pensando.
Não... estou com medo.
— Melhor. . . vou rachar o pau agora. Se quiser, espero você dar o fora daqui.
— Quero não. Fico.
— Você é quem sabe.
"Rachar o pau", foi o que ele falou. E rachou mesmo. A primeira providência dele foi
matar o gato do Excomungado. Fiquei besta. Nem tinha visto o gato quando cheguei. Ele
estava encarapitado num saibro do teto da sala. Firmino jogou uma cruz de madeira no
bicho, cruz 1 pequena, do tamanho do meu polegar. E não é que o gato virou borralho,
picumã, cinza?! Pois virou. Morreu queimado.
O mulherio soltava gritos de pavor; duas desmaiaram. O fedor do bicho queimado era
insuportável: cheiro de enxofre! Os cabelos do meu corpo ficaram espetados, o gato era o
Demónio mesmo.
O Excomungado ficou numa braveza de fazer medo. Avançou pro lado de
Firmino e descarregou a raiva por ter perdido o gato.
— Cachorro! — bradou. — Vira-folha! Não deu a palavra de que ficaria do nosso
lado?! Agora roeu a corda, desgraçado! Não fiz tudo para você?! Não foi nosso trato?! . . .
Você sabia que esse gato era especial! Sabia! Por que você foi fazer sujeira na retranca?!
Firmino riu de banda, riso manhoso.
Roí a corda coisa nenhuma! — respondeu. — Só precisava saber de uns trens,
aí entrei pro seu bando. Topei toda a sujeirada que vocês inventaram. . . topei até ser
enterrado. Tinha sua promessa de que me tiraria do buraco. Mas agora a brincadeira
acabou! Descobri toda essa história de sapo que vira General. . . O coronel Clarindo, o
meu sogro, quer todas as terras de Mucironga. Por isso inventou essa troçaiada, pra
espantar o povo. . . agora já sei. É o minério, não?! As fazendas desapropriadas estão
nas mãos do meu sogro, não?! Safadeza das grossas!
A discussão parou aí, sem mais nem menos. Os dois se olharam, mediram com
os olhos a força um do outro, o negócio parecia que ia virar pro lado das porradas. Quem
evitou foi o prefeito.
— Não compensa brigar. . . Que negócio é esse de terra?! Minério?! Que minério?!
— Você fica calado — berrou o Excomungado.
— Sou o prefeito desta cidade.
Enquanto o coronel Clarindo quiser. — Não foi ele quem me botou
na Prefeitura.
— Se ele quiser, você sai de lá hoje mesmo. — Que experimente! O povo
está comigo.

Que povo?! — riu o Excomungado. — Mais da metade já botou o rabo no


meio das pernas e deu o fora, Só tem gente do coronel. Firmino interveio:
Epa! Ainda tem gente contrária . . .
Mas um dia a mais, um dia a menos não terão mais o que fazer aqui.
Cuido para que isso não aconteça avisou Firmino. — Mando chamar um
advogado, aviso as autoridades. Chamo juiz, promotor. . . o diabo a quatro!
O bate-boca durou um tempão. Fiquei besta de não ter saído tiro. Firmino
soltou as mulheres, cuspiu na cara do sapo, o bicho só coaxou. Achei tudo muito
esquisito, Pelo jeito, Firmino nunca morrera. Isso me deu suadeira, imagine só! Eu
havia enterrado um homem vivo! Cruzcredo!
Pensei em tudo depois que os homens e o General saíram da casa da Flora.
Não achava explicação pra nada. Só de uma coisa tinha certeza: a história do sapo
era só para o coronel Clarindo abocanhar as terras de Mucironga. Mas onde ele
arranjara um sapo gigante e falante?! E o gato?!
Não vi jeito de sair da casa. Dona Flora passou álcool nos pulsos, depois
veio pra perto de mim, sondou: Você veio ver seu pai?
Encabulado, não tive resposta. Ela voltou à carga:
— Veio?
— Meu pai está morto — avisei.
— Morto nada. Deram uma beberagem pra ele . . . Usaram o diabo, a coisa estava
dando certo. O velho parecia morto. Firmino entrou no meio, deu um jeito de trocar
a bebida do coité, ajudou seu pai. Conseguiu trazer seu Clementino pra cá . . . Eles
vieram procurar. . .
Lembrei-me dos soldados fuçando as gavetas,
— Procurar meu pai nas gavetas?! — não resisti.
Dona Flora riu.
— Claro que não! Eles queriam os papéis. Ficaram sabendo deles . . mas não estão
aqui.
— Que papéis?!
— Sei não. Seu pai, Firmino e os outros se reuniam no barracão. Nunca falaram nada
pra mim.
— Barracão do Firmino?
— Não. O daqui de casa. Alugava pra eles. Eles estavam montando um troço
escondido, iam falar depois com o governo . . . depois de tudo pronto. Aí zangou tudo,
pegaram seu pai e obrigaram os outros a sumir. Aquele sapo General é danado.
Que sapo, dona Flora?! Não ouviu Firmino dizendo que o coronel Clarindo está
com as terras de quem sumiu?! E que nelas tem minério?!
— Ouvi não. Desse jeito que você falou, não ouvi, não.
Já ia saindo da casa da Flora, lembrei-me de perguntar:
Quer dizer que Firmino nunca morreu?
— Foi combinação dele com o Excomungado para azedar tudo. Ele queria
descobrir uns trens. O Excomungado acreditou que Firmino ia trair seu pai. Acertou tudo
com o rapaz.
— Silvino traiu meu pai . . . E quem garante que Firmino não acende vela pra
Deus e pro Diabo?! E quem garante que ele não está só puxando brasa pra sardinha
dele?!
— Não compensa falar com você. Você ainda é menino. . . não entende das
coisas. Firmino é de ouro. E, se quer seu pai, ele já se mandou. Não sei pra onde.
Voltei pra casa, nem dormi, esperei o dia amanhecer pensando na vida.
— Que é isso, Zacarias?! Virou assombração? Virei nada. Vou sair.
— Tome café, menino.
— Não, Betina.
Saí. Na praça, havia gente rodeando o padrinho. Fiquei por perto assuntando
conversa: falavam na demissão do padrinho. Ele não era mais prefeito. O prefeito era o
General!
Madrinha chorava de fazer dó. Cheguei até ela como quem não quer nada.
— Cruz-credo, Zacarias! Enganaram a gente. — desabafou. — O coronel Clarindo.
Um dia depois que o General apareceu na sua casa, ele rodeou seu padrinho, fez
proposta boa, prometeu um monte de coisas . . . só pra gente fingir que acreditava que
o sapão era General. Explicou que era o modo dele se livrar do Firmino. O rapaz fazia
mal pra Rosa, queria assustar ele . . . Aceitamos a combinação. . . e o sapo não era
sapo nada! Deu pra falar de verdade, parecia gente. Seu padrinho virou capacho dele,
mas foi agüentando. Agüentava porque o coronel prometeu que ia matar o General.
Agora, com a volta de Firmino, zangou tudo. Obrigaram seu padrinho a renunciar . . . A
Prefeitura era tudo pra gente. Tudo! Estão obrigando a gente a ir embora de Mucironga.
. . — Como?!
— Ameaça de morte. Nós vamos ainda hoje. A Prefeitura era tudo pra gente. Tudo!
Dei um tempo — madrinha precisava ficar mais calma — antes de perguntar:
— Onde está Firmino?
— Está com o General.
— Ele é contra ou a favor do sapo?!
— Sei lá! A favor. Não é que vestiu o General pra posse?!!!
— Firmino cachorro! Me paga!
— Ninguém pode com eles, Zacarias. Ninguém!

Uma hora o coronel está com raiva do genro, outra hora estão em lua-de-mel . . . Aquele
Firlllino e o coronel são angu da mesma panela. posso assegurar!
Angu da mesma panela, não? Vou botar esse angu pros porcos comerem
prometi. Não tinha mais nada a perder. — Vou começar dando um dedo de prosa com o
safado do Firmino, ainda hoje.
SAPO OU ROBO?
pinga rolava solta na venda do Curió. Coronel Clarindo, sentado num rolo de
fumo,um pé no saco de feijão, proseava, arrotando grandezas.Era o único que
jurava não sair de Mucironga.
- Terra boa! - dizia. - Terra boa pra homem macho que nem eu!
-E o Firmino,coronel?- Curió arriscou.
Homem peitudo, aquele!
- Firmino agora endireitou. Está na Prefeitura ajudando o General. Esteve meio
descabecado, mas já tomou jeito. Levei ele pra fazenda, está de novo com a
Rosa e o menino. Não posso perdê-lo de vista, senão perde o rumo.
Foi aí que ele me viu agachado no meio dos trens da venda. Grudou o olho em
mim,firmei a vista. Ele coçou a cabeça,fez cara de pena, falou:
-De que vocês estão vivendo, Zacarias?
- Não sei. Isso é com Betina.
- Por que não vão embora?
- Porque não quero.
- Deviam ir enquanto é tempo. Não tem família noutro canto?!
-Pois não havia de ter?!... Estamos aqui por causa da fazenda. Ela é nossa.

— Era ...
— Agora é do senhor?
— Menino desaforado! Quem lhe disse isso?!
— Assuntei conversa por aí. É do saber do povo que toda terra desapropriada foi
parar no seu bucho.
O coronel se levantou, derrubando com uma botinada o rolo de fumo. Fez sinal
pro seu Quim da Tonica que me levasse. O negão me agarrou, jogou-me de
atravessado no lombo dum burro, montou no cavalo e, pu- xando o burro pela rédea,
tocou pro rumo da fazenda do coronel.
Lá apeou, amarrou o cavalo e me empurrou com força do lombo do burro.
Caí emborcado, o gesso da minha perna rachou, tamanho foi o baque no chão. A
dor foi tão grande que me deu vontade de urinar nas calças. Obrigou-me a
levantar com uma botinada; saí capengando atrás do bandido. Não estava com
medo, não. Não bateu o medo nem quando me amarrou no tronco, cara virada pro
sol, e avisou:
— Quero ver você cego. Ê o que merece.
Fechei os olhos o mais que pude. O sol castigava a minha cara, meus
lábios iam esturricar com o calor, mas não gemi. Esse gostinho não dava para
vagabundo algum.
Horas depois, senti alguém me desamarrando. Quem seria?! Não tinha
força nem para abrir os olhos, uma bambeira tomara conta do meu corpo, já
não me importava mais com nada.
Percebi que me botavam num carro, adormeci. Acordei num lugar
escuro. Alguém passava algodão molhado nos meus lábios. Alguém muito
conhecido: meu pai! Cismei que havia morrido, que estava no purgatório. Só
podia pensar nisso.

— E ele ?!— reconheci a voz de Firmino.


— Está mal — disse meu pai. — Pra um menino,
cinco horas de sol esturricante é de matar. Não achou um médico?
E por acaso tem médico em Mucironga?!
Dormi de novo, sem vontade de reagir. Acordei com alguém batendo uns ramos
no meu rosto. Escutei um murmúrio, era gente rezando. Dona Ana, a benzedeira da
região.
— Ele vai reagir — ela disse.
— Parece que não quer. — Era papai.
— Sofreu muito — disse Firmino.
Isso me deu uma raiva danada. Aquele caboclo acendia vela pra dois santos, desgraçado!
Fingia de amigo, mas estava de chamego com a gente do coronel Clarindo. Vagabundo!
Não falei nada — também, não agüentava falar.
Queria contar ao meu pai que tinha ido procurar Firmino na Prefeitura e fui
posto a pontapés de lá. Ordem do Firmino, avisaram-me. Nem quis dar um dedo de
prosa comigo, o cachorro!
— Aqui ninguém acha o menino, seu Clementino. Tenho que voltar e ver se
não estão anarquizando com a casa do senhor. Não vão imaginar nunca que fui eu
quem tirou o menino de lá, ninguém viu nada.
— Não sei não, Firmino. Alguém pode ter visto. E se viram. . .
Nesse mesmo dia, arrebentaram nossa casa, me procurando; só deixaram o
quarto dos fundos. Contaram-me que o próprio General ordenou a arrebentação.
Saíram atrás de Firmino também. Rosa contou ao pai que fora Firmino quem
me soltou do tronco.
O General queria o rapaz vivo ou morto, não ia aceitar aquela desfeita.
Suportara o assassinato do gato, aceitara o pedido de clemência de Firmino, mas
agora não! Se o pegasse vivo, acabaria com ele. — Dona Ana contou tudo pro meu pai.
Contou que minha mãe estava pra morrer de tristeza, os dias contados. Uma febre
esquisita tirava as forças dela, já parecia morta.

E Betina perdera o bebê. Caíra na ribanceira com um pote d'água na cabeça.


— Mas como ?!— papai não entendeu o que Betina fazia com um pote d'água na
cabeça. — Nossa cisterna secou
— Entupiram ela, seu Clementino. O General ordenou que todas as cisternas
fossem entupidas. Estava difícil controlar o gasto d'água . . . Água agora é só no pote,
com fiscal controlando.
— Não acredito! Tudo isso só por causa do minério?! A senhora tem certeza, dona
Ana?!
— Pois ia mentir?' Hoje de manhã mesmo amarraram seu Quim da Tonica num
mourão do curral e desceram o couro no lombo dele, o coronel vendo tudo. Só porque
deixou o menino fugir e foi desleixado, permitindo ao Firmino fazer das dele. Seu Quim
se mijou todo de dor. Passei lá para benzer o corpo dele, estava queimando de febre e
cheio de feridas. — Cruz-credo!
— Ele jurou vingança. Vai acabar com o coronel. Dona Tonica está feito doida
de medo do que vai dar. Pediu até uma benzeção que tirasse o filho de idéia, mas qual!
Existe lá benzeção pra isso?!
Fiquei matutando o caso. Firmino era um espião, por isso fazia de conta que
topava a corja do coronel. Por culpa da minha boca destramelada, teve de fugir. . .
ó
Neg cio esquisito!
Assim que dona Ana saiu do barraco onde papai estava escondido, padre Antônio
chegou com um recado de Firmino:
— Não se preocupe, não! Firmino está bem escondido. Amoitado na igreja.
— E a Cidinha, padre?! papai preocupava-se com ela.
— Tenha fé em l)eus, Clementino. Agora ela está bem. Deus a levou.
Não tive reaçáo. Mas papai urrou feito bicho acuado. Apanhou o revólver e saiu
numa carreira rumo à cidade. Ia matar quem?!
Matar ninguém, não! Um jagunço do coronel tocaiou papai na porta da igreja, onde
estava o corpo de mamãe. Foram três tiros nas costas. Num dia só fiquei órfão de pai e
mãe.
Depois do enterro, padre António me levou pra casa dele. Betina se mandou pra
terra dela, esconjurando Mucironga. De Firmino, nem notícia.
E minha perna, sem o gesso, sem ninguém pra me levar à cidade, onde havia doutor,
foi sarando com o osso meio fora do lugar. Por isso hoje sou manqüeba: falta de trato na
época certa.
Mucironga também ficou manqüeba, vazia, triste que nem cemitério. O mato
tomando conta de tudo. O que faltava de gente, passava de mosquito. O General engordava
comendo mosquito, cara feliz, pulando no matagal . . . Era o prefeito de Mucironga. . .
Também eu já estava querendo ir embora. Padre Antônio também. Mucironga já não
era cidade, era terra do Demo.
Mas a volta de Firmino nos tirou de idéia. Ele voltou com homens estranhos,
conversa de gente de fora. Olhavam a gente como se nós fôssemos bichos fora da jaula.
Padre Antônio os recebeu na sacristia. Explicaram: — O governo vai encampar a
mineração, por isso viemos. Vamos dar uma cota pros donos das terras.
— Aqui só tem um dono — falei. — O coronel Clarindo. Ele tomou tudo de todo mundo.

— Eles já sabem, Zacarias. Vão abrir inquérito. Prender os culpados. Você terá sua
fazenda de volta. — E o sapo?! ---- perguntei, sério.
Os homens se entreolharam, riram: — Que sapo?!!!
— O General. Então não sabe que Mucironga é governada por um sapo?!
Menino esquisito, esse! — um deles comentou. Firmino balançou a cabeça,
contrariado com minha xeretice. Importei não. Os homens veriam com os próprios olhos.
Padre António me fez sinal, falasse outra hora, não assustasse os homens, tudo
tem vez.
Assim que saíram, Firmino, antes de acompanhá-los, voltou.
— Zacarias, deixe de ser bobo — falou. Lembra do gato? Pois é . . . o gato era um
robô, coisa trazida da estranja, sabe. Não tinha nada a ver com o Demo. Aquela cruz que
joguei era o seu controle, roubei do Excomungado. . . A cruz se espatifou e o gato virou
cinza. Foi isso.
— Robô?! Gato robô?!
— Que nem brinquedo de corda, Zacarias. Só que era mais complicado que
brinquedo de corda. O sapo também é a mesma coisa, entende? É controlado pelo
Excomungado. . . O Excomungado não tem nada a ver com o Demónio. É um doutor em
robô. É sócio do coronel Clarindo.
Não acreditei, não. Gato robô! Vi o danado bebendo leite. . . brinquedo de criança
não bebe leite. Sapo robô... Brinquedo de criança não cresce que nem pé de jatobá, nem
come mosquito. Firmino pensava que eu era besta, só podia!
— E como você morreu sem ter morrido?! E meu pai?!
— Anestesia. . me anestesiaram. Com seu pai foi a mesma coisa. Eles sabem fazer a
coisa. Por isso, não fale besteira pra gente estudada. O General é um robô. Nessa
história não tem nada de Demônio. . coloque isso na cabeça.
— Besta! — murmurei com raiva. Ele ia ver só. O General era robô nada. Ele ia
se estrepar com essa teoria besta.
— Estou indo, Zacarias — ele se despediu. — Não se preocupe. Tudo vai acabar
bem.
Foi o que ele pensou, coitado! Nada acabou bem. Nunca vi um fuazeiro maior.
Nunca! Até padre Antônio levou sem merecer. . . Até dona Ana!
O CASAMENTO DO GENERAL

orreu boato entre os minguados habitantes de Mucironga. O General


queria casar-se. Muci-ronga precisava de uma primeira-dama. Nem acreditei,
pra mim tudo isso era invencionice de Silvino, a mando do coronel Clarindo e
do Excomungado.
Silvino jurou: nem o coronel nem o Excomungado tinham alguma coisa
a ver com a vontade do sapo.
Sondei:
-Ele já arrumou uma sapa lá no brejo?
Silvino riu. Os homens em volta riram- fiscais desocupados, já não tinham a quem
fiscalizar.
-Espere eu falar... O General foi apanhado no laco por uma moca de Mucironga.
- Laco?! Lacaram ele?!
- Modo de falar. Glorinha quer ser primeira-dama, nem se importa de casar com um
sapo. Desde que ele seja o prefeito...
-Mais essa! O que a mãe dela acha?!
-Bom-Silvino avisou.
Os homens que Firmino trouxe ainda não acreditavam na história do sapo prefeito e General.
Pediram audiência, ver com os próprios olhos dava para acreditar.
Aquele oco do mundo só devia ser o inferno ou então asilo de doidos. . Foi o que falaram.
Como o padre António foi convidado a acompanhá10s, fui junto, capengando, perna
dolorida querendo diminuir distância, que os homens iam na frente, quase correndo. Na
Prefeitura, havia os soldados do reforço rodeando o General. Não queriam frangote em roda de
gente grande. Forcei entrada, o Excomungado me fez entrar. Ele se divertia com minha cara de
bravo.
— E o prefeito?'. . — o chefe dos homens do governo perguntou.
— Ê o General.
— Onde ele está?!
— Olhe ele aí.
— Um sapo gigante?!
Os homens do governo arregalaram os olhos, recuaram, aquilo só podia ser brincadeira.
Firmino tomou a frente, acalmou-os, explicou:
— Brincadeira deles. . . esse sapo é um robô. Eles usam o bicho pra espantar o povo.
Não dêem ligança. Quem manda mesmo são esses aí, o Excomungado e o coronel Clarindo.
— Se é brincadeira. . .
Foi aí que o General desembuchou, perguntou aos homens:
— Vocês acham que sou um sapo?
— Pois não é?!
— Sou o prefeito de Mucironga. E não quero prosear com ninguém. Só quero que
enfiem o rabo no meio das pernas e vão embora daqui. Senão. . .
Firmino não esperava por essa. Gaguejou, perdeu a fala, ficou branco que nem queijo
fresco.
— Acho melhor você respeitar as autoridades, Excomungado — avisou. — Essa história
de sapo já passou dos limites. Paciência tem limite. E por aqui não tem trouxa, não.
— E o que eu tenho a ver com um sapo que fala?!
— o Excomungado se defendeu.
— Não sou sapo. Sou o prefeito.
Um dos homens do governo levantou a hipótese de que o Excomungado era ventríloquo,
por isso o sapo proseava. Por mim, achava que era disco na vitrola, nada me tirava isso da
cabeça.
Padre Antonio concordou com a teoria de ventriloquia do homem, era mais que normal.
— Já que não aparece o prefeito, vamos decidir c que acharmos melhor para a cidade —
avisou o chefão.
O General bufou de raiva, botou os homens pra correr. No meio da balbúrdia, ouvi o
Excomungado xingando Firmino.
— Seu besta! Se você não tivesse dado fim no gato, isso aí não teria desarranjado. Só o
gato dominava o General.
Firmino respondeu na bucha:
— Aquele gato era um robô.
— É o que você pensa, seu asno. Ele era o Diabo. — E lá sou homem de acreditar em
Diabo?!
No meio da discussão, Firmino e o Excomungado foram presos pelos soldados do
reforço da banda de lá, tudo com cara de sapo!
Deram uma carreira no padre Antônio, botaram o coitado numa canoa estrumbicada,
empurraram a bicha, que fosse dizer a missa onde precisassem de padre. Não vi isso, não! Sei
que ele se foi com uma mão na frente, outra atrás. Sem nada!
Era o fim de Mucironga.
Ficou marcado o casamento do General com Glorinha pro próximo sábado. Com festa e
banda de música para uma meia dúzia de gatos-pingados que ainda tiveram a coragem de ficar
em Mucironga, Além do casamento, teria ainda em praça pública a festa da judiação que o
General iria fazer com o Excomungado e o Firmino.
Amarraram os dois, pelados, num pé de árvore e desceram a peia até os homens
mijarem de dor. O General, abraçado com Glorinha, ria de banda, satisfeito que só vendo. Não
foi nada, não! Firmino berrou alto pra quem quisesse escutar:
— Escutem, seus borra-botas! Está doendo nada! Estou só fingindo. Já estou morto há
um tempão. Só voltei pra descobrir o que havia de errado em Mucironga. . . e descobri. O
coronel Clarindo armou toda essa arrumação pra botar o povo pra fugir. Ele queria as terras
por causa do manganês. Toda essa história é um engodo pra enricar aquele filho-da-mãe. O
seu Clementino também já sabia disso, por isso deram cabo dele. Ele era homem de prestígio,
o governo iria dar uma demão pra ele . . . Agora, chega!
E Firmino virou fumaça, nunca mais vi nem a assombração dele.
O Excomungado também se safou das amarras. Virou lobisomem e sumiu no matagal.
O General nem baqueou com o troço. Deu um beijo no rosto de Glorinha e avisou que estavam
casados. Assuntei bem a coisa: Glorinha casou pra ser a primeira-dama, mas pela cara dela
dava pra ver que sentia nojo do sapo. E, pra piorar a situação, seria a primeira-dama de uma
cidade vazia!
Coronel Clarindo já havia mandado a familhagem toda pra fora de Mucironga. Estava só
na fazenda, rodeado de jagunços, borrando-se todo de medo do seu Quim da Tonica, que andava
de tocaia pra pegar o fazendeiro.
Vários jagunços já haviam campeado o matagal pra agarrar o seu Quim, mas não
toparam nem com a sombra dele.

Eu não saía de lá só pra ver no que ia dar tudo aqui-


Io. Ficava matutando se meu pai voltara do além que nem Firmino pra desfazer o malfeito.
Decerto que sim! Dona Ana me disse — ela também não foi embora —
ela me disse que os balaços que acertaram meu pai eram de prata . bala de prata! Só ela livra a
gente de assombração . . . Será?!
Outra coisa que me atazanava era a curiosidade: o gato era o Demo ou um
robô?! Pra mim, só podia ser o Demo.
E era'.
Descobri isso ao cair da tarde, quando proseava com o Curió.
— Curió, o gato! — assustei-me.
— Aqui está cheio de gato.
— Aquele é diferente. Olhe os olhos.
— Cruz-credo!
Curió me deixou plantado no meio da rua. O gato veio pro meu lado:
— Menino, já sei que está com o Diabo no couro, querendo vingança. Vim para lhe
ajudar.
— Me ajudar?!
— Com uma condição. Quero sua alma.
— Isso?!
— Mais do que normal.
— Quem me prova que você é o Demo?!
— Você já sabe. Sempre soube.
— Vou pensar no caso. Me dê um prazo.
A MORTE DO CORONEL CLARINDO

nteirei meus catorze anos, mas na cabeça já tinha trinta, já era um macho
crescido na dureza, dormindo nuns baixeiros suados, outras vezes num
couro de vaca curtido nos fundos da venda do Curió. Não quis combinação
nenhuma com o danado do gato. Ele ficou bravo, virou De-mônio em carne e
osso, se postou em pé diante de mim,um braco esticado, a mão apoiada no
meu ombro, olhar parado na minha cara.
Quis pegar o facão, cortar o Demo no meio,fazer dele picadinho. Quis gritar. Fiz
nada. Parei até de pensar, esperando ser despachado pro inferno. Que fosse o que
Deus reservou pra mim. O Demo ficava cada vez mais enfezado, ferrando aqueles
dedos quentes no meu ombro, vez ou outra me dando uns safanões.
Falei nada. Não gemi. Não implorei.
Ele por fim assentou a cabeça no lugar, ameacou:
⼀ Não vou deixar urubu comer sua carne podre. Eu mesmo cuido disso.
E retornou à forma de gato preto e sumiu, deixando uma onda de cheiro de
enxofre no ar. Espirrei até doer meu nariz.
Dia seguinte, fui chamado pelo coronel Clarindo:
tinha proposta boa pra mim. .Apareci na fazenda; ele. todo solícito, veio me receber na
porteira. A jagunçada toda com cara de revanche. "Vou morrer todo furado", pensei. "E
daí?!"
Avancei com garra pelo curral, que ficava bem na frente da casa.
Rosa estava na sala. Estranhei. Ficara sabendo que o coronel tinha despachado a
familhagem pra bem longe. Só havia ficado a peonagem e a jagunçada. O que Rosa fazia
ali?!
Sentei na ponta da cadeira, não via jeito de me acomodar direito. O troço estava
esquisito. Esperei.
— Virou homem depressa, Zacarias — o coronel falou. — E é com um homem que
quero falar. Pois fale, homem!
Rosa apareceu com café e biscoitos, ofereceu-me, rindo riso de mulher oferecida.
Recusei.
Nem o café?!
Não precisa se preocupar.
E manga?
Quero nada.
Já sei que não quer saber de rodear toco, não, Zacarias? Então vamos
direto ao que nos interessa. Sei que é um cabra macho. O único que está resistindo a
tudo. Quero um servicinho seu. . . Em troca, asseguro-lhe que terá a fazenda do seu pai
de volta — disse o coronel.
Deu-me uma suadeira nervosa. O que teria de fazer pra essa cobra pra ter a
fazenda de volta?! Só podia ser serviço porco. O que mais?!
— Pois fale.
— Isso, Zacarias. Quero que mate o homem que deu cabo de seu pai, que
prendeu você no tronco. . . depois acabe com o sapo. Sei que pode. Curió me avisou
que você está treinando tiro. Que mata gavião com um tiro só. Gostei de saber.
— Quem me garante que foi seu Quim quem deu cabo do meu pai?!
— Minha palavra, ora! Ele tocaiou seu pai, bateu muito nele. . depois deu cabo do
homem lá no esconderijo do brejo.
— A mando de quem?!
— De ninguém. O bicho é mau.
— Era jagunço do senhor.
— Mas era desaforado, malmandado.
— Sei não. Meu pai não morreu no esconderijo do brejo. Foi tocaiado na porta da
igreja.
— Fique aí pensando. . . Rosa vai lhe fazer companhia.
O coronel saiu. Rosa ficou me olhando. Passou a tramela na porta da rua, botou
uma trava na janela. Nem desconfiei de nada. Depois jogou uma esteira no chão e deitou.
— Está calor — cochichou. — Não quer tirar a camisa?!
— Não sei, não.
— Se incomoda se eu tirar o vestido?
— Seu pai?!!!
— Vai demorar. Foi apartar umas vacas. Está levando o gado pra outra fazenda,
do outro lado do rio.
Calei-me, curioso. Ela sentou-se na esteira e arrancou o vestido, ficou só de
calcinha.
— Não está com calor?!
Claro que agora estava, um calor bravo. Arranquei a camisa e esfreguei o rosto
pra me livrar do suor.
— Deite aqui na esteira. . . ou está com medo de mim?!
Foi tudo muito simples, pensei depois. Simples. Ela dormia quando me levantei,
assustado e feliz. Abri a porta e fui sentar num toco bem longe da casa.
Minutos depois ela apareceu vestida!
— Gostou?
Fiz de desentendido, Ela desconversou:
— O calor passou?
Continuei calado.
— Vai fazer o que o pai pediu?
—- Vou dar a resposta pra ele.
— Sem-graça !— ela tentou brincar.
Quando o coronel chegou, fui direto ao assunto:
— Coronel! O senhor, com essa jagunçada toda aí, quer que eu saia campeando
um cara bravo que nem onça. Outrossim, não vi o dito cujo no meio dos soldados que
arrebanharam meu pai naquela noite. E se ele me amarrou no tronco, ordem sua. Lembra
daquele dia na venda do Curió? Pois então! Não vou fazer nenhuma desgraça aí pra livrar
a sua cara de vingança do seu Quim. Sei que o senhor mandou descer a peia no bicho,
deixou o homem em carne viva e depois mandou jogá-lo numa tina de salmoura — parei
pra tomar fôlego. — Afora isso, o sapo, pelo que estou sabendo, é coisa sua. Acabe com
ele o senhor.
O coronel não ficou enfezado como eu esperava, deu sinal a Rosa, que ela me
levasse de caminhonete para a cidade. Rosa concordou toda lampeira. E não largou meu
pé durante um bom tempo. De noite inventava que era frienta e agarrava-se no meu
cangote. Às vezes eu topava, era ainda um pouco molecote nesses assuntos. Outras,
dava uns safanões nela, que fosse se esquentar nas cobertas da casa dela, que fosse pro
inferno. Sabia o que queria: que eu desse cabo no sapo e no seu Quim.
Fui tomando nojo da coisa toda. Senti vontade de me mandar de Mucironga. Mas
era só eu tomar pé da minha situação que a coisa desandava.
Foi então que seu Quim cercou a casa do coronel e botou fogo em tudo. O
coronel saiu correndo, o danado do jagunço atirou. Coronel morto, a jagunçada
debandou na hora.
Ouvi as queixas de Rosa o tanto que minha paciência agüentou. Não achei
preciso dar uma demão pra ela. Foi-se numa canoa, levando o pai morto, nenhum
empregado para ajudá-la. Senti pena, não! Tinha virado bicho. Nem bem a canoa sumiu
no rio, jurei:
— Agora, vou acertar as contas com o sapo. Jogo sal no bicho, morre na hora.
— Faz isso não, Zacarias. O General não é sapo nada. Você só vai atiçar o bicho
. . . — Curió me implorou. — É sapo. . . um sapo, um irracional. Tenho um plano para
pegá-lo. Esse plano chama-se Glorinha.
— Veja lá o que você vai aprontar, Zacarias. Veja lá.
SODOMA E GOMORRA
ucironga já havia acabado. Nela sobraram Curió,dona Sinhá e as filhas,
dona Ana, seis soldados do reforço da banda de lá, Silvino e eu.
-Não compensa ficar, mas ir pra onde? -Curióresmungava por detrás do
balcão da ven-da onde só dava mosquito e mosca varejeira.
- Vou morrer aqui. Aqui nasci— avisava dona Sinhá. E as filhas, oito, não
se atreviam ganhar o mundo. Esperavam casamento ali mesmo.
Estavam chegando homens para trabalhar na mina de manganês, na
fazenda que fora do meu pai.
Dona Ana ficava pra cuidar de mim, avisou-me,toda cheia de meladeira.
Mas quem cuidava de mim era eu mesmo e, de lambuja, cuidava dela.
Tinha mais de oitenta anos,coitada!
Silvino era o chofer do General, e não parecia muito satisfeito. Magro
feito um graveto,sujo,passava horas se lembrando do tempo das vacas
gordas, tempo bom em que trabalhava pro seu Clementino, meu pai.
- Se não fosse aquele coronel rabudo-referia-se ao coronel Clarindo -,se
ele não me tivesse engambelado,estaria hoje casado com Betina,vivendo vida de
gente.
Por duas vezes tentara dar o fora, mas os soldados o pegaram com
a boca na botija, passaram-lhe o couro, jogaram salmoura em cima,
avisaram:
— Com essas fugideiras, vai passar a comer só bunda de tanajura — e
cumpriram o trato por um tempão.
Quando não era bunda de tanajura, era lesma torrada. O panaca sofria tanto
que cheguei a ficar com dó. Repartia com ele carne de queixada, tatu e mandioca,
que Curió arrumava. . . Quando não arrumava, nós todos fazíamos cruz na boca e
agüentávamos o jejum. Arroz, feijão, carne e gado e verdura, desde a época da
fiscalização que não viamos nem cheiro.
Magra que m graveto também estava Glorinha e, de lambuja, a mãe. Não sei
o que comiam, não sei como viviam. Fiquei sabendo que a mãe estava com doença
ruim, corpo coberto de verrugas e boca trancada. Não bebia nem água. Dizia dona
Ana que era veneno de sapo, que dentro de uns dias a velha ia para junto de Deus.
Que veneno de sapo o quê! ria Curió. —
Aquele troço não é sapo.
E não parecia sapo mesmo. Pegara traquejo de fazendeiro, usava chapelão
de feltro e vivia de prosa com os homens da mineração.
Um dia apareceu na venda do Curió, reclamou:
— Isso aqui está um lixo! Os homens querem comida, querem bebida,
divertimento. . . dê um jeito.
— Que jeito?! Não tenho dinheiro pra mandar buscar as coisas.
O General jogou um punhado de dinheiro no rosto de Curió e deu prazo:
— Quero tudo pro próximo sábado.
Curió supitou de raiva, mandou o General enfiar o dinheiro no rabo, que
voltasse pro inferno. . . Não foi nada, não! O coitado do Curió sumiu da noite pro dia.
Nunca mais tive notícia.
Quem assumiu a venda, ou melhor, o cabaré, foi dona Sinhá e as filhas. O
General botou o nome na coisa: "Sodoma e Gomorra". Com isso nenhuma das
meninas se casou, embora dona Sinhá começasse a se empencar de netos e mais
netos. Mucironga começava a ser repovoada.
Eu tinha jurado que ia dar cabo do General. E para isso precisava da Glorinha.
A mãe já tinha morrido, e a moça definhava — veneno de sapo, dizia a dona Ana.
Botei o revólver na cintura, a cartucheira ira cheia e parti para o Sodoma e
Gomorra. Era sábado à noite.
Sentei-me numa mesa meio escondida esperei o General e Glorinha. Não
demoraram, Silvino e os seis soldados servindo de guarda- costas.
Esperei que sentassem e pedissem um treco para beber
e levantei-me, rodeei umas mesas com quem não sabe pra onde ir. Por fim cheguei
até a mesa arrisquei:
— Posso sentar? — e fui puxando a cadeira.
— Acho bom. Faz tempo que quero dar um dedo de prosa com você,
Zacarias — o sapo avisou.
— Digo o mesmo s
Glorinha tremia anto que até entornou o treco que bebia.
— Faz mal não! — falou sem graça, passando a mão
no vestido molhado.
Ninguém botou sentido na conversa dela. Era como se não existisse.
— Você lembra quando apareci na sua casa? — ele começou. Balancei a
cabeça. Naquele tempo, eu era um sapo. . . sapo comum de brejo. O Excomungado
me alimentava com um lixo especial, lixo atômico, ouvi dizer. Não sei se era lixo ou
não, o Excomungado era um cientista e além disso havia feito um trato com o
Demônio. Deu a alma em troca de dinheiro. . . O Demónio o informou do manganês
nas terras de Mucironga, era só se aliar a um homem forte no dinheiro e na política
que ficaria rico. O Excomungado se aliou ao coronel Clarindo. Negócio fechado,
resolveratll manter sigilo, desvalorizar as terras, tomá-las dos donos. Mas seu pai,
Zacarias, já sabia do manganês. Firrnino Iannbém. Eles se reuniam com outros
interessados em negociar com o governo nos fundos da casa da Flora. não sabiam
que o Demónio já havia furado o plano deles.
Foi aí que me mandaram aparecer, devia enlouquecer o povo, botar
gente pra correr. Apareci na sua casa, inchei, fiz o que haviam me mandado fazer.
Iludiram o prefeito para me usar na Prefeitura. Você sabe.
— E mataram Firmino. Mataram meus pais.
— Não foi bem assim. Firmino foi morto porque xeretou onde não devia. Seu
pai porque telefonou pros homens do governo quando foi naquela cidade levá-lo para
engessar a perna. Burrice dele. Mas o Demônio não de confiança, trouxe Firmino e
seu pai de volta . . . queria brincar.
E você?!
Comigo eles erraram, passei além deles. Deve ter sido o remédio que o
Excomungado me dava, a mando do Demônio.
— E está me contando isso por quê?!
— Quero que saiba da minha força e caia fora de Mucironga. Agora as terras
são minhas. Tudo isso aqui é meu. Quero você bem longe daqui.
Levantei-me, ousei:
— Posso levar Glorinha?
O General manteve a calma, perguntou: — Pra quê?
— Porque ando com dó dela.
Ele se virou para o lado de Glorinha.
Não está satisfeita comigo?! Andou reclamando?! Andei não! Por
Deus! — ela colocou a mão no resto, apavorada. — Gosto de você,
General.
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Ele me pareceu aliviado. Eu, não. Por que Glorinha usava luvas grossas?!
Só percebi nesse momento. E a roupa?! A roupa cobria todo o corpo, não aparecia
nadinha! Fiquei cabreiro com o negócio. . . O General devia ser muito ciumento.
Resolvi acalmá-lo, avisei:
— Me dê um prazo de duas semanas, General. Só o prazo de localizar um
tio meu, avisar que vou sair de Mucironga, pedir apoio.
É assim que se fala, Zacarias.
Saí meio encabulado, achei que Glorinha iria derreter-se pro meu lado. Que
nada! Declarou que gostava do sapo. . . E, pelo jeito de ele falar, eu devia esquecer
o propósito de dar cabo do bicho.
Já estava deitado no couro de vaca estendido num barracão velho que
sobrara na rua de baixo quando ouvi passos. Fiquei quieto, assuntando. Soldado
pra me matar?! Silvino procurando comida?! Quem?!
Os passos atravessaram o barracão até chegarem à porta do cômodo
onde eu ficava. Segurei o revólver, e gatilhei, qualquer coisa passava fogo. Mas e
se fosse na Ana?! Tinha que ver primeiro, depois atirar.
Zacarias?! Você está acordado? — era Glorinha . Gelei da cabeça aos
pés. O que ela queria?!
— Estou.
Quero falar com você.
— Fale, mulher.
— Quando você for, me leva junto. Dou um jeito de fugir.
Pois então não disse que gosta do General?!
— Tinha de dizer.
Botei a cabeça no lugar, acreditei nela. Combinamos a fuga. Só queria um
prazo, tinha um servicinho pra fazer, era a minha vingança. Eu podia sair com uma
das mãos na frente, outra nas costas, sem nada, mas. . .
Glorinha deu-me um beijo de leve, foi-se, lembrei-me de doce de manga verde, Fiquei
rindo sol inho no escuro. "Beijo tem gosto de beijo, ora! Betina era cheia de histórias
... Se não fosse Rosa, ainda estava acreditando em Betina. Beijo tem gosto de beijo.
Noutro dia esqueci a história do beijo, só me lembrava do padre António
falando de Sodoma e Gomorra, da estátua de sal era isso que eu queria. Botar fogo
no que restava da cidade de Mucironga.
Foi o que fiz nessa mesma noite. Ainda bem que não morreu ninguém, credo!
Arrumei umas latas dc querosene e embebi as paredes de tábua do Sodoma e
Gomorra. Ficaram encharcadas. Preparei várias buchas, ateei fogo e atirei-as em
volta da casa. Tive coragem de entrar no cabaré, fungar, farejar perigo, puro
fingimento, e gritar:
— Fogo!
Quase fui atropelado, a homaiada bêbada saiu numa carreira só.
Ainda ajudei dona Sinhá a contar e catar todos os netos, botá-los a salvo do lado
de fora.
Sodoma e Gomorra acabara-se. Senti-me leve, feliz e vingado. Agora era
partir com Glorinha, deixar o General sozinho numa Mucironga destruída. Partir com
Glorinha, minha vingança maior. Por que não?! Não acreditei nem um tiquinho no que
ele me falou naquela noite, tudo embromação, claro! Aquele sapo era alimentado

pelo Diabo, só podia


MULHER DE SAPO...

coisa desandava na Companhia de Mineração. O manganês não era


tanto como parecia a princípio, ou então, por obra e ciência do
Demônio, havia desaparecido. Os homens debandavam-falta de
incentivo do governo, falta de comida,de mulheres. Dona Sinhá não
queria mais tomar conta de outro cabaré, acreditava que o fogo em
Sodoma e Gomorra tinha sido aviso:b o Demônio estava por trás de
tudo.

Eu,nem aí com isso!


O que me aborrecia pra danar era a proibição do sal. Descobri que o
General não deixava entrar sal em Mucironga de jeito algum. Silvino fora
encarregado de fiscali-zar isso, e cumpria a ordem por medo. Disse-me saber
das coisas, não era besta pra desobedecer.
-Que coisas,Silvino?!- interessei-me.
- Nem contar posso. Só uma coisa lhe digo: no dia que você se for,vou junto.
Fico não! Não viu o que acon-teceu com a familhagem de dona Sinhá?!

- Vi não.
Procurei ver,vi nada. Dona Ana, agonizando pra morrer, me fez jurar não
chegar perto do povo da dona Sinhá."E não passe perto do brejo", implorou.

Tão boa pra mim, cumpri o juramento. Não procurei dona Sinhá nem fui pro
lado do brejo. Minha cabeça estava noutra coisa. Queria porque queria um saco de
sal.
Uma noite, consegui romper o cerco dos soldados, entrei na canoa, fui até a
cidade mais próxima arrumar sal.
O dinheiro?! Trabalhei duro, na enxada, durante duas semanas. Juntei os
cobres e comprei três saquinhos de sal, rezava pra que desse. O que mais me
apoquentava era pensar que o sal podia não dar. Tinha que dar! Dona Ana me
avisara: tem que ser sete punhados dos bons, senão a coisa desanda e volta contra
você, meu filho.
Foi duro voltar pra Mucironga. Voltar de barco não dava, sempre fui muito
desconfiado. Voltei a pé, agüentando o sufoco da serra. Dias duros, comi até
macaco. Durou muito tempo, nem me lembro de quanto. Quando cheguei, procurei
só entrar na cidade com a noite fechada. Breu puro. Mas raiva faz a gente tomar o
rumo certo. Arrumei pousada no que restara da minha própria casa. Fedia a mofo,
importei não. No outro dia, fiquei assuntando cidade, querendo saber do General.
Foi Silvino quem me deu as notícias: o pessoal da mineração havia se mandado, e
o General andava fulo da vida por isso. Queria que o governo lhe desse uma demão,
mas o governo já era outro, não queria conversa fiada com sapo.
Gostei de saber da novidade. O sapo gestava frito, estava nas minhas mãos.
Atravessei o matagal que invadira a cidade até a Prefeitura, Silvino me dando ajuda.
Entrei, vi o sapo na cadeira giratória. Não girava como antes. Ele se
assustou ao me ver.
— Veio em paz? — sondou.
Não dei confiança. Adiantava falar alguma coisa?! Falar que sim ou que
não?! Ele que se danasse! Tornou a falar:
— Veio em paz, Zacarias?! — O que você acha?
— Oue é um besta.
— Nunca fui. Se fosse . .
— Veio fazer o quê?
— Acabar com você.
— Acaba nada. E se acabar vou continuar noutro corpo. Não sou quem
você pensa. Penso nada.
— Sou um General.
— É um merda, isso sim.
A discussão parou aí, nem sei por quê. O bicho se esfregava na cadeira
pressentindo perigo, o papo gordo pulsando sem cessar. Olhava pra cara dele:
gosto de vitória na boca, ô trem bão!
Abri a mochila onde estava o sal. Lembrei-me de dona Ana: tinha que ser
sete punhados, nem mais
nem menos.
Atolei a mão no sal, primeiro punhado. Acertei a cara do General, que
pulou nervoso. Afastei-me, já com o segundo punhado de sal, joguei. Fui jogando,
jogando até completar os sete punhados.
O General pulava, esfregava-se nas paredes, lutava pela vida. Mas todo
mundo sabe que sal é veneno pra sapo e lesma. Tinha tirado a prova, o bicho era
sapo de verdade. Morreu seco, esturricado num canto da Prefeitura.
Foi então que chorei. Sabia o motivo: matara um sapo que falava, que
pensava. . . nunca ia ver outro igual.
Chorei a morte de meus pais, de tanta gente! Chorei o fim de Mucironga.
Depois me lembrei de Silvino e de Glorinha. Já que eu ia de Mucironga pra São
Paulo, levaria os dois comigo.
Encontrei Silvino me esperando do lado de fora da Prefeitura, perguntou-
me se ainda havia sobrado sal. Disse que não.
— Estamos então no mato sem cachorro. Sabe, os
seis soldados do reforço. . . eles. . .
— Que tem eles?!
— E não sabe?!
— Não.
— São sapos também. Estão agora na casa da dona Sinhá, no brejo.
Assuntei o negócio na hora. Dona Sinhá e a familhagem tinham virado sapos .
. . Fiquei arrepiado de medo. Fugir o quanto antes, decidi.
— Cadê Glorinha?
— Mexe com ela não, Zacarias.
— Quero nada com ela, Silvino. Só tirar a coitada daqui.
— Mexe não . . . Escute aqui.
— Me espere na beira do rio, é só o tempo de buscar a moça.
— Se você é doido, fique sozinho com sua doideira. Vou-me embora nem que seja a
nado. Com Glorinha não

Não pedi explicação, sempre achei aquele baixinho do Silvino um covardão.


Meu pai botava sentido nas pessoas, dizia que Silvino não era flor pra se cheirar.
Que se fosse! Já tinha feito minha obrigação. Ele se foi mesmo, pareceu-me.
Nem precisei sair à cata de Glorinha. Ela apareceume de repente.
Estranhei a roupa dela: sol a pino e de luvas, o vestido cobrindo o corpo todo!
Falei nada. Até pensei: "quando ela chegar em São Paulo muda o jeito de se
vestir".
— Zacarias! Você matou meu marido — falou.
— Ficou triste?!
— Triste?! Não sei. Não sinto nada.
Nem alegria?!
— Sinto nada.
— Nem gosta de nada?!
— Não sei. Só sei o que devo fazer. Entendi nada. Nem queria entender.
Avisei a ela que tínhamos que esperar a noite pra fugirmos de Mucironga.
Balançou a cabeça concordando.
— Vamos ficar em minha casa . . . lugar seguro. Lá virou tapera.
— Ligo não.
— E vamos fazer cruz na boca, não temos comida — avisei.
— E os mosquitos?!
— Mosquitos, Glorinha?! Você aprendeu a comer mosquito?!
Ela riu. "Coitada!" pensei. O danado do sapo deve ter obrigado Glorinha a
comer mosquito. Vai ver, se
acostumou.
Isso me apoquentou muito. Chegar em São Paulo, na casa do meu tio, com
uma roceira vestida de boba e com mania de comer mosquito?! Minha tia não ia
gostar. No caminho, quem sabe eu dava um jeito de tirar esses trecos dela?! Nesse
mundo de Deus, tudo tem jeito.
Nunca vi um dia demorar tanto, parecia até que sol estava de pirraça
comigo. O calor estava bravo, a quietura de tudo foi me dando uma moleza no
corpo, acabei dormindo.
Acordei assustado. Glorinha estava deitada rente a mim. Foi aí que notei
como o corpo dela era áspero e gelado. Me deu uma gastura danada, levantei-me
num pulo só.
Glorinha se apoiou nos cotovelos, grudou os olhos em mim, nem piscava.
— Esqueceu do gosto de doce de manga verde?! — perguntou.
— E lá sou besta de ficar com cabeça de menino o resto da vida?! — É . . .
você virou homem. — Virei.
— Náo me esqueci daquele dia.
— Pois eu mc esqueci, Glorinha.
— Oueria sentir o gosto do beijo.
— Credo-cm-cruz!
— Tem nojo de mim?!
— Ora, Glorinha! As coisas mudam, não sabe?
— Sei. Mas já me arrependi de ter casado com o General. Sonho de moça
pobre. Queria ser primeira-dama.
— Pois já matou a vontade. Crie juízo agora, esqueça de tudo. E lá em São
Paulo não vá sair falando que foi casada com um sapo, senão eles vão enfurnar você
numa casa de loucos.
— Bestas que são.
— Quero saber de conversa fiada não. Vamos — andando logo, senão . . .
— Sem um beijo não vou.
— Com beijo ou sem beijo você vai.
— Vou não.
Saí, modo de fazê-la vir correndo atrás de mim. Roceira como era, devia
ter medo de assombração. E não é que deu certo?!
Cruz-credo! Não gosto nem de lembrar. Glorinha estava sem roupa de
tudo! E do pescoço pra baixo, até nos pés, a moça era um sapo cuspido e
escarrado. Fiquei doido de nojo, de medo, de tudo!
Ela pulou nas minhas costas, quase que me enforca, as pernas se
engancharam na minha cintura. . . Gelada e escamosa. Sei lá se a palavra certa
é escamosa. Era um couro duro, áspero. . .
Ameaçou soltar leite de sapo em mim. Queria um beijo. Sabia que
veneno de sapo era fatal. Agora tinha que escolher: beijar a sapa ou morrer
envenenado.
Pensei em engambelá-la, mas a cabeça não pensava direito. Silvino,
cachorro, devia ter me contado, mas ficou chovendo no molhado, só me disse
que com ela não saía de Mucironga.
A danada exigia um beijo. E se depois do beijo eu virasse sapo também?!
Bem que o General me avisou antes de morrer: "se acabar comigo. vou continuar
noutro corpo"
Vi logo que era o Demonio que estava nessa história toda, só podia. O peso
nas minhas costas era o peso do Demo. Uma catinga de brejo, umas patas
grudentas, tudo aquilo foi me dando uma vontade de aceitar ser envenenado. Falei:
— Pois me envenene, Glorinha. Beijar não beijo, não.
Ela pulou no chão, olho em mim.
Pouca gente sabe que veneno de sapo é uma defesa natural do bicho. Ele
não domina a excreção da gosma, por isso arrisquei. Só um medo doido o faz
mandar pra fora o veneno. Glorinha não estava com medo. Só queria um beijo . . .
— Vai beijar, sim — ela me avisouu.
Olhei aquele corpo repelente de sapo, quatro patas apoiadas no chão, cara
de moça, e numa carreira. Corri a não mais poder. Escutava ós pulos da sapa atrás
de mim.
— Ela vai se cansar, Deus ajuda — desejei.
Cheguei na beira do rio e vi uma canoa, um homem dentro. Na hora me
bateu o medo. Podia pedir ajuda, mas e se ele fosse sapo também?! Meio perdido,
fiquei assuntando tudo. De repente ele me chamou: — Zacarias ?!
Respirei aliviado. Era Silvino! Saímos de lá feito dois malucos, eu
desembuchando a história de Glorinha, ele dizendo já saber de tudo.
— Náo vejo a hora de chegar em São Paulo — desabafei.
Não foi nada, não! Antes mesmo de chegar em Brasi'lia pra pegar um
ônibus pra São Paulo, aconteceu outra desgraceira.
Eu tinha tentado telefonar pro meu tio, pra que me mandasse um
dinheiro, pois estava liso. Avisou-me que eu podia pegar a grana em Brasília,
mas até lá tinha que me virar com caronas. Foi o que fizemos, Silvino e eu.
Pois bem. Na estrada que sai de São João d'Aliança, no rumo de
Brasília, o caminhão que nos deu carona encalacrou-se num facão de barro.
Foi meio dia de serviço para desatolar a máquina. Ficamos sujos, todos
espirrados de lama.
Perto de Brasília, o motorista nos mostrou um banheiro num posto
de gasolina; o frentista disse que podíatomar um meio banho. Entramos, os
três; o motorista eu arrancamos a camisa, Silvino não.
— Que é isso, homem?! — o motorista mexeu com ele. — Está com
vergonha?!
— Vergonha nada. Frio — ele respondeu. — Que frio o
quê?! Arranque essa camisa. — Arranco se quiser.
O motorista gostou da brincadeira, partiu pro lado de Silvino e levantou-
lhe a camisa. Eu já tinha visto aqui Io em
Glorinha, mas mesmo assim me assustei. Silvino estava virando sapo!
E ele sabia!
Não esperava era o susto do motorista. Na hora em que arrancou
camisa do Silvino, o homem "tibufe" no chão, com um ataque cardíaco.
Quase doido, gritei pelo frentista, que veio com mais dois homens.
Viram o motorista estrebuchando no chão e um sapo acuado entre as duas
pias. Silvino virara sapo até na cara!

— Cadê o outro?! o frentista perguntou pelo


Silvino.
— Não sei . . . — murmurei. — Acho que correu de medo desse sapo. .
— Acuda o homem — um deles apontou o motorista. Não ligaram pro sapo!!!
Tiveram que me acudir também. Acabei tendo uns fricotes, sem
querer, e não vi mais nada. Acordei em Brasília, numa enfermaria de hospital.
Saí duas horas depois com uma receita enorme, calmante, vitaminas, sei-lá-
mais-o-quê.
À noite, peguei o ônibus pra São Paulo, querendo esquecer tudo.
Tentei contar o caso do fim de Mucironga pros meus tios, que riram
muito. Disseram que a morte dos meus pais mexera com minha cabeça, que
o problema das brigas e esquisitices daquela cidade se resumia a grilagens.
O coronel Clarindo era um grileiro, comprara as posses de gente que
ocupava as terras de papai e de outros fazendeiros, porque tinha interesse
em negociá-las em São Paulo. Se ele não tivesse morrido. . . E o manganês?!

Pois é. . . está lá. Só falta estrada boa . . . Por isso os homens


pararam de trabalhar. continuou

— Sei não! E a familhagem de dona Sinhá?!


— É besteira sua, menino. Deixe disso. Daqui a uns ez
anos, você vai achar graça dessas suas invençõe
— Pode ser. Parece mentira o caso do General, mas juro que não é,
tio. Juro pela alma da minha mãe e do meu pai. Vou escrever essa história
um dia, tenho meus motivos. . . Quem sabe alguém acredita em mim?! —
Escreve, Zacarias. Escreve.
Mas não jure.
— Juro. O sapo existiu. Falava. Juro
e é verdade. O General acabou com
Mucironga. . . O azar é que quem viu o
bicho morreu ou sumiu no mundo. Não tem
importância, não! Se alguém me chamar de
mentiroso, esfrego-lhe as provas nas
fuças. Levo pra Mucironga e mostro o povo da dona Sinhá. Não sou mentiroso,
não! Silvino deve estar por lá também. . . Ele confirma tudinho. Glorinha também,
claro!Ninguém me disse mais nada. Peguei fama de mentiroso, contador de
casos sem-pé-nem-cabeça. E daí?! Sei que não menti um dedo de nada. Sei que
não sou doido, fiz até uns exames. . Por mim, podem dizer "Zacarias é o sujeito
mais mentiroso que conheço. . . Só acho graça. Só isso. Eu é que sei de mim e do
acontecido em Mucironga. .
Série tirando de letra
. A espada do general
. O mistérioso homem de Macapá
. Macapacarana
. Seaguairu
.A Cidade Apontada para o céu
. O estranho caso do sapo de Mucironga
Série Tirando de letra
O Estranho caso do sapo de mucironga
‘Ninguém mais conseguia dizer nada. Já vimos sapo inchado de raiva,
parecendo bola de futebol; mas inchado como General, nunca1 Também não posso
dar certeza de nada: era noite, mas sete horas, luz de lamparina, e o medo faz coisa-
tudo cresce, vira monstro em Mucironga. Na hora não consegui pensar que aquilo
podia ser uma miragem... quem tem sangue-frio diante de um sapo quase do
tamanho de um bezerro?!...Não posso dar certeza de como se deu a transformação
do bicho, mas do seu tamanho, isso afirmo, reafirmo, até juro pela vida eterna de
minha mãe; o sapo ficou do tamanho de um bezerro desmamado.”
Foi ai que começaram os estranhos acontecimentos que mudaram (mudaram,
só?) a vida da pequena cidade de Mucironga. A partir do momento que o sapo
General deu o golpe e assumiu a prefeitura, tudo o que aconteceu tanto podia ser
coisa do capeta com resultado do progresso tecnológico.

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