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Depois da Chuva

After the Rain

Karen White

O calor de um coração apaixonado!


A pequena cidade de Walton parecia ser perfeita! Aquele lugar era como um eco
distante da vida que Suzanne deixara para trás, a começar por Joe Warner! Ele era o
oposto de todos os homens que já conhecera. Talvez fosse a voz grave ou o olhar carinhoso
que a fizesse sentir sensações inimagináveis. O fato era que Joe era perturbador... Muito
mais do que Suzanne gostaria... Muito mais do que ela poderia controlar!
Joe Warner sempre fora um homem muito ocupado e nunca passara por sua cabeça
ter disposição para qualquer coisa que se aproximasse de um relacionamento,
especialmente com uma mulher que parecia guardar muitos segredos. Porém, mesmo que
Suzanne fosse a última mulher em quem pensaria, não poderia evitar que seu coração se
inundasse de calor cada vez que ela sorria... Ela entrara em sua vida, como um raio de sol,
depois de um longo período de chuva... E parecia ter vindo para ficar!
Depois da Chuva Karen White

Disponibilização: Marisa Helena


Digitalização: Marina
Revisão: Ellen

Karen White descobriu que seria escritora depois de ler o romance... “E o Vento Levou”
quando estava no colégio. Seu primeiro romance foi publicado em agosto de 2002. Quando não está
escrevendo, Karen dedica o tempo livre a seu hobby preferido: tocar piano.

Copyright © 2003 by Karen White


Originalmente publicado em 2003
pela Kensington Publishing Corp.
Título original: After the Rain
Tradução: Eliane Campos
Copyright para a língua portuguesa: 2004
EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.
Impressão e acabamento: RR DONNELLEY

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Depois da Chuva Karen White

Capítulo I

As marés têm fases, assim como a lua. Com uma infalível constância, o verão se
encerra e dá lugar ao outono em um ciclo contínuo e inesgotável. Sim, tudo muda e se
renova, e essa era a única verdade na qual acreditava, Suzanne refletiu enquanto
observava a paisagem desfilando diante dos olhos, através da janela.
Sonolenta, tateou o rosto, contornando os lábios e detendo-se no nariz. Assim
como os fenômenos da natureza, ela também estava destinada a mudar. Porém, mesmo
depois de aplicar uma tintura ruiva nos longos cabelos castanho-dourados e percorrer
centenas de quilômetros, a sensação de vazio que inundava sua alma insistia em
acompanhá-la. Apenas a aparência havia mudado, pensou com um sorriso amargo.
Os solavancos do ônibus na estrada deserta despertaram-na por completo,
tirando-a de seus devaneios. Endireitando-se na poltrona, agitou os cabelos e esticou
os braços, sentindo os músculos doloridos das costas.
A lua crescente no céu límpido parecia sorrir, e ela tocou o vidro, como se
pudesse trazê-la para mais perto. O sorriso de tristeza em seu rosto.
Deus, murmurou ao se lembrar das palavras da mãe. Com um gesto involuntário,
procurou pelo pingente em forma de coração preso à gargantilha escondida sob a blusa
e acariciou-o com a ponta dos dedos.
O ônibus reduziu a marcha ao se aproximar de uma placa à margem da estrada,
e os faróis iluminaram a inscrição em letras desbotadas pelo tempo: Bem-vindo a
Walton, onde todos são alguém.
Que tipo de cidade seria aquela? Curiosa, espichou o pescoço para observar um
pequeno quiosque à beira da estrada. Além de uma picape de cabine dupla estacionada
no acostamento e de duas pessoas esperando pelo ônibus, não havia o menor sinal de
vida por ali.
Assim que pararam, uma senhora de cabelos avermelhados presos no alto da
cabeça como um halo, emergiu do fundo do veículo e passou quase correndo pelo
corredor.
Suzanne ouviu o ruído do compartimento de bagagem sendo aberto, seguido por
uma exclamação de alegria da senhora que acabara de descer. Na certa, ela saudava
alguém que estava à sua espera, concluiu ao ouvir a voz grave e profunda responder ao
cumprimento. O sotaque carregado do sul a fez imaginar um homem forte e vigoroso.
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Por sorte, ela própria não possuía sotaque algum que revelasse sua procedência, pensou
com alívio.
Enquanto o motorista retirava a bagagem da passageira, Suzanne permaneceu
atenta aos fragmentos de conversa que ouvia. O ritmo melodioso e suave da voz
feminina era entrecortado de tempos em tempos por comentários lacônicos do homem,
que parecia estar com pressa.
Por alguma estranha razão, o timbre profundo e firme a aqueceu como uma
suave carícia. Suzanne se inquietou diante do inesperado efeito que um desconhecido
provocara em sua imaginação. Sem conter a curiosidade, deslizou para a ponta do
banco para tentar ver o dono daquela voz.
Um homem alto, de costas para ela, segurava uma imensa mala com a mão direita
enquanto agitava as chaves do carro com a outra mão. Os ombros largos e a compleição
atlética e vigorosa confirmaram a imagem que fizera ao ouvir a voz. Por um breve
instante, vislumbrou o perfil másculo quando ele se voltou para cumprimentar outro
passageiro que acabara de descer, e se afundou rapidamente na poltrona, receando
ser vista.
A silhueta imponente daquele homem ficou gravada em sua retina por alguns
segundos, como uma fotografia. Embora não pudesse ver claramente os traços do
rosto, não havia dúvida de que era bonito. Aparentava ter pouco mais de trinta e cinco
anos e tinha cabelos castanho-escuros e fartos, que lhe emprestavam certa
displicência.
Suzanne franziu o cenho ao observar que usava camisa muito amarrotada que
parecia ter acabado de ser retirada do varal e que a calça de brim marrom exibia uma
mancha úmida na região do joelho. Porém, esses pequenos detalhes não ofuscavam a
virilidade e a força que pareciam envolvê-lo como uma aura.
Um súbito calor a invadiu e sentiu o rosto se tingir de vermelho ao confessar
para si mesma que a simples visão daquele desconhecido a aquecia e excitava. Com um
gesto inconsciente que sempre a acompanhava em momentos de tensão, puxou a
corrente escondida sob a blusa e acariciou o pingente. Seus dedos percorreram a
inscrição em relevo no verso do pequeno coração: Uma vida sem chuva é como um sol
sem sombra. Joalheria R. Michael, Walton.
Walton... O nome dançava em seu pensamento como se estivesse sendo movido
pela mão invisível de sua mãe. Girando o corpo, procurou pela placa no acostamento
para se certificar de que a lera corretamente.

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Sim, era o mesmo nome... Mas não era provável que fosse a mesma cidade da
inscrição no pingente, pensou. Seria quase impossível que a mulher que lhe dera o
presente conhecesse um vilarejo como aquele.
Pensativa, voltou-se para a estrada e seu olhar foi atraído pelas luzes de um
farol se aproximando. De súbito, uma mancha escura no meio da pista chamou sua
atenção. Estreitou os olhos e reconheceu um guaxinim, que parecia estar paralisado
pela luz. Aflita, estendeu as mãos para o vidro como se pudesse protegê-lo, no mesmo
instante em que o carro passava em alta velocidade.
— Não! — balbuciou, fechando os olhos para o inevitável.
Quando o ronco do motor perdeu-se no silêncio da noite, reuniu toda coragem
que pôde e abriu os olhos com cuidado. O pequeno animal permanecia lá, intacto,
enrolado sobre o corpo como uma pequena bola de pêlos castanhos. Parecia não estar
machucado, mas continuava exposto ao perigo. Na certa, estava tão apavorado que não
conseguia se mover, concluiu com uma ponta de tristeza, identificando-se com o
indefeso animal.
De súbito, levantou-se e anunciou em voz alta para ninguém em particular: —
Vou descer aqui.
O motorista do ônibus estava parado à porta, em uma conversa animada com
uma bela jovem, e voltou-se para Suzanne ao vê-la descer os degraus e sair.
— Ei, moça! — chamou, olhando para o relógio de pulso — Vamos partir em cinco
minutos.
— Decidi ficar nesta cidade — anunciou ela, ajeitando a alça da bolsa nos
ombros.
— Mas sua passagem lhe dá direito de chegar até Atlanta! Se parar aqui, você
não poderá usá-la novamente.
— Sim, eu sei. — Suzanne olhou ao redor e meneou a cabeça. — Acabei de mudar
de planos.
Enquanto sua bagagem era retirada do compartimento, avistou duas pessoas
conversando a poucos passos dali. Reconheceu a senhora de cabelos ruivos e o rapaz
alto cuja voz a perturbara.
Ao observá-lo com mais atenção, suspeitou que ele dormira com aquela roupa, a
julgar pelos vincos do tecido. Percebeu a presença de uma caneta no bolso da camisa e
subiu o olhar para o rosto, sendo surpreendida pelos olhos castanhos cravados em seu
peito.

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Constrangida, cruzou os braços para encobrir os seios e só então percebeu que


o objeto da atenção dele era o pingente em forma de coração, e não suas curvas.
Sentindo-se ridícula, virou-se e apanhou a mochila de lona das mãos do motorista.
— Por favor, o senhor poderia me informar se há algum lugar por aqui de onde
eu possa chamar um táxi?
Depois de um breve silêncio, ele meneou a cabeça e fitou-a de alto a baixo.
— Você não é daqui, certo?
Suzanne franziu as sobrancelhas, intrigada. Seria tão óbvio que viajara
centenas de quilômetros para chegar ali?
Por um breve instante, pensou em voltar para o confortável anonimato do
ônibus, mas se lembrou do guaxinim petrificado no meio da pista e mudou de idéia. Não
agiria como o pobre animalzinho, disse para si mesma, enchendo-se de coragem.
— Não, não sou. O senhor poderia me recomendar alguma companhia de táxi?
— Meu bem, você vai visitar alguém em Walton? — Atenta à conversa, a
simpática senhora de cabelos ruivos deu um passo à frente e sorriu. — Joe e eu
podemos lhe levar até a cidade.
O rapaz alto fez menção de dizer alguma coisa, mas Suzanne não esperou para
ouvi-lo.
— Não é preciso, obrigada. Vou tomar um táxi.
Ignorando a discussão animada que o rapaz e a senhora entabulavam em voz
baixa, olhou ao redor e observou uma loja de conveniência do outro lado da pista.
Estava salva! Pensou com um suspiro de alívio. Na certa, poderia usar o telefone
da loja e chamar um táxi para levá-la a um hotel, pousada ou qualquer lugar onde
pudesse refletir sobre a vida e planejar o que faria a seguir. Com um vago aceno de
despedida, atravessou a pista evitando olhar para o guaxinim.
A medida que se aproximou da loja, ouviu um potente ronco de motor e se
voltou. O ônibus passou por ela lentamente e o motorista acenou, como se estivesse
esperando que mudasse de idéia. Ainda era tempo de alcançá-lo e seguir para Atlanta,
uma cidade grande onde seria mais fácil encontrar o anonimato. Não havia planejado
parar em um vilarejo no meio do nada e talvez se arrependesse por ter sido tão
impulsiva.
Porém uma estranha e inexplicável força a atraíra para aquele lugar. Com um
gesto decidido, indicou que ele prosseguisse e caminhou com passos firmes pelo
estacionamento de cascalho.

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Ao empurrar a porta de vidro para entrar na loja, os sinos dependurados no


batente se agitaram, chamando a atenção de um senhor por detrás da caixa
registradora. Ele ergueu os olhos incrivelmente azuis do jornal que estava lendo e
saudou-a com um sorriso amigável.
— Boa noite, moça. Em que posso ajudá-la?
Ao abrir a boca para responder, uma garotinha de cerca de cinco anos, vestindo
apenas uma camiseta, saiu do banheiro e quase a derrubou ao passar correndo em
direção ao estacionamento.
— Amanda! Volte já aqui! — Um grito aflito ecoou do interior da loja.
Uma adolescente esguia, com adoráveis olhos verdes, saiu do banheiro e passou
por Suzanne como um furacão, pressionando-a de encontro à porta.
Ela trazia nos braços um bebê de pouco mais de dois anos, com o rosto e as
mãozinhas roliças lambuzados pelo melado do pirulito cor-de-rosa que segurava.
Sem ter tempo de respirar, permaneceu paralisada ao ver mais três crianças
correndo em sua direção, mas conseguiu se afastar a tempo de não ser atropelada pelo
garoto que seguia duas meninas, de treze e oito anos aproximadamente.
Com um suspiro profundo, concluiu que acabara de acontecer uma fuga maciça
da creche da cidade!
Quando fez menção de se mover, as crianças e a adolescente entraram
novamente, empurrando a porta com violência. A adolescente parou de súbito e, com
um gesto desesperado, entregou-lhe o bebê.
— Por favor, segure Harry para mim. Posso correr mais rápido sem ele.
Em toda sua vida, Suzanne nunca havia segurado um bebê.
Sem escolha, viu-se obrigada a ampará-lo antes que caísse. O pequeno arregalou
os imensos olhos azuis e começou a agitar as perninhas enquanto ela o mantinha
estendido no ar, sem saber o que fazer. Uma onda de pânico congelou seu sangue
quando ele emitiu um grito agudo e começou a se debater.
Foi então que a porta se abriu e a senhora de cabelos exóticos entrou na loja,
seguida pelo homem que a acompanhava.
Respirou aliviada, começando a acreditar que estava salva. Porém, antes que
pudessem fechar a porta, a garotinha de cinco anos tentou escapar por entre as
pernas do homem e fugir para o estacionamento, sendo finalmente pega pela
adolescente, que trazia em uma das mãos a calça da fugitiva.

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— Que confusão! Não há leis neste Estado? — Suzanne resmungou, estendendo


o bebê na direção dos recém-chegados.
Para seu espanto, ele parou de chorar como em um passe de mágica.
— Papai! — balbuciou, atirando-se nos braços do homem alto.
Papai! Surpresa, Suzanne observou as mãos fortes e seguras alcançarem o bebê
com uma delicadeza surpreendente para aninhá-lo no colo em um gesto protetor, ao
mesmo tempo em que se voltava para a garotinha que se recusava a vestir a calça.
— Amanda, deixe Maddie vesti-la — Ordenou em tom autoritário. — Joey,
Knoxie e Sarah Francês, comportem-se e parem de correr pela loja. Não quero ouvir
nem mais um suspiro, entenderam?
Um olhar severo foi endereçado à garota de cinco anos, que mordeu o lábio para
não responder.
— Vamos, mocinha, obedeça a seu pai — A senhora simpática complementou com
ar maternal, acariciando os cachinhos dourados da menina.
— Está bem, papai.
A garotinha sem as calças fitou-o com adoráveis olhos azuis e sorriu, enquanto a
adolescente a pegava no colo e seguia para o banheiro.
Ele suspirou e olhou para Suzanne com expressão pouco amigável.
— Sinto muito senhorita — Sussurrou por entre os dentes ao caminhar para o
interior da loja.
Ela seguiu-o com o olhar, boquiaberta ao constatar que aquele homem era o pai
das seis crianças! Instintivamente se pôs a imaginar qual seria sua idade quando fora
pai pela primeira vez. Dezenove anos, deduziu depois de um rápido cálculo mental.
Naquela idade, ela própria mal sabia que já havia se tornado mulher!
Ajeitou a mochila nas costas e o seguiu disposta a se desculpar.
— Eu sinto muito, senhor...
— Joe Warner — resmungou ele sem se voltar.
— Sr. Warner, peço que me desculpe. Eu não sabia que eram seus filhos.
— Se soubesse, teria agido de outra forma?
Ela mordeu a língua para não dar uma resposta à altura. Discutir com um
estranho em uma loja de conveniências de uma cidade desconhecida não era a melhor
forma de passar despercebida.

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Em silêncio, observou-o apanhar uma caixa de cerveja, seis refrigerantes e seis


barras de chocolate, encaminhando-se para o caixa. A senhora que o acompanhava
permanecera parado à porta, fitando-a como se tentasse descobrir quem era ela.
Para evitar qualquer aproximação, virou-se e, ao girar o corpo, quase esbarrou
no homem com quem estivera preste a discutir. Mesmo com um bebê no colo, aquele
era o homem mais perfeito que já vira. Em seus trinta e um anos de vida, nunca havia
deparado com alguém que parecesse ser tão...
Sem encontrar a exata palavra que o definisse, refletiu por alguns segundos.
Sim, ele era absolutamente perfeito! Concluiu por fim. Por um breve instante, chegou a
invejar a mãe daquelas crianças, reprimindo violentamente o pensamento inoportuno.
Observou-o com discrição enquanto ele retirava a carteira do bolso da calça.
Após uma avaliação mais cuidadosa, notou que as roupas pareciam ainda mais
amarrotadas do que observara minutos antes...
O bebê não fugia ao estilo do pai, refletiu. Usava camiseta pelo avesso e calça
de pijama. Os lábios de Suzanne se curvaram em um sorriso quando viu os pezinhos
calçados com botas de caubói. O pirulito que a criança carregava momentos antes
havia desaparecido misteriosamente, mas deixara vestígios na face rosada e
satisfeita, completamente coberta de melado.
Embaraçada, percebeu que o homem a fitava e tentou desviar o olhar, mas o
brilho daqueles olhos parecia ter o poder de hipnotizá-la.
— Obrigado, John — dirigiu-se ao caixa. — Desculpe pela bagunça das crianças.
Enquanto guardava o troco das compras, encarou-a e franziu as sobrancelhas
como se esperasse ouvir outro comentário sobre crianças e leis.
Como resposta, Suzanne empinou o nariz e se debruçou sobre o balcão, dando-
lhe as costas.
— Preciso de um táxi para me levar ao hotel mais próximo — Voltou-se para o
senhor do caixa. — O senhor poderia me indicar algum?
Ele a fitou por alguns instantes como se estivesse tentando traduzir um idioma
desconhecido.
— Você não é daqui, certo?
Aquela era a segunda vez em menos de meia hora que alguém lhe fazia tal
pergunta, e Suzanne se pôs a imaginar o que a tornava tão diferente.
— Não, não sou — respondeu com um suspiro resignado.

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— Preciso de um lugar para ficar e de um transporte que me leve até lá, e


gostaria que o senhor me desse o número de alguma companhia de táxi.
— Bem, moça... — Ele fez uma pausa longa o bastante para fazê-la acreditar que
havia esquecido a pergunta. — Deixe-me ver... O hotel mais próximo fica em Mapleton,
a cerca de quarenta minutos daqui. O problema é que não temos táxi em Walton para
levá-la até lá, a menos que a senhorita queira ir com Hank Ripple, que passa por aqui
com o caminhão de entregas por volta das nove horas da noite.
Suzanne sentiu o estômago se contrair, arrependendo-se de seu ato impulsivo
de saltar do ônibus muito antes do que imaginara. Abriu a boca para responder quando
uma nuvem de perfume invadiu suas narinas e a senhora de cabelos ruivos tocou-a de
leve no braço.
— Querida, você tem parentes em Walton? Talvez alguém possa vir apanhá-la...
— Não tenho parentes aqui — explicou com ar desolado.
— Estou apenas de passagem.
Ela se calou ao perceber o tremor em sua voz. Sentia-se exausta e furiosa
consigo mesma, e a voz suave da senhora à sua frente era tão terna e acolhedora que
teve o impulso ridículo de abraçá-la e chorar.
— Joe, há espaço para mais um na picape? — A simpática senhora se voltou para
o rapaz, prosseguindo antes que ele respondesse: — Está decidido, vamos levá-la para
a cidade. Acho que Sam não se importará em ceder a casa desocupada por alguns dias,
não é, Joe?
Naquele momento, as crianças saíram em fila do banheiro e se aproximaram. A
adolescente, que chegara a tempo de ouvir as últimas palavras, olhou para Suzanne
com interesse e meneou a cabeça vigorosamente.
— Ótima idéia, tia Lu!
— Impossível!
As duas afirmações soaram ao mesmo tempo, e Suzanne passeou o olhar do pai
para a filha totalmente confusa.
— Posso pagar a hospedagem em dinheiro — Anunciou, tentando emprestar um
tom confiante à voz.
Porém sua oferta não causou o impacto que esperava. Decidida, ajeitou as alças
da mochila pesada com a bagagem embalada com eficiência, depois de anos de prática.
Nunca precisara da ajuda de ninguém e não seria aquela a primeira vez. Com um
suspiro profundo, ergueu os ombros e empinou o nariz.

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— Esqueçam. Vou caminhar até a cidade.


Atravessou a loja e saiu, deixando que a porta batesse com força atrás de si.
Recusando-se a se arrepender por mais um ato impulsivo, deteve-se um segundo antes
de decidir que direção tomar e pisou no asfalto. Assim que se viu livre dos olhares de
todos, parou e respirou fundo, sentindo o desejo súbito de desaparecer dali.
O ronco do motor de um carro se aproximando chamou-lhe a atenção, mas
seguiu em frente. Seu sangue congelou nas veias quando a picape reduziu a marcha e
parou a seu lado. Com um olhar de soslaio, percebeu que o motorista e todos os passa-
geiros em seu interior a fitavam com franca curiosidade.
— Você está seguindo na direção errada — a voz potente de Joe preencheu o
silêncio. — Para chegar a Walton, deve ir para o lado oposto.
— Bem, eu não queira mesmo ir para lá — respondeu com falso desdém.
— Você está perdida?
Suzanne parou e mudou a mochila para o outro ombro.
— Claro que não!
O ruído da porta do veículo se abrindo fez com que uma estranha sensação de
perigo contraísse seu ventre.
— Ouça, não sei por que você está aqui e, francamente, não me importo. Mas não
posso simplesmente deixá-la na estrada.
Suzanne tentou manter a postura de indiferença, endireitou a coluna, ignorando
uma pontada aguda no ombro dolorido pelo peso da mochila, e fez menção de seguir em
frente, quando ele saiu do automóvel.
— Além disso, tia Lucinda não vai me deixar dormir em paz se eu não levá-la
para á cidade e conseguir um lugar para se abrigar.
— Por favor, vá embora. Não preciso da sua ajuda.
Joe suspirou fundo e, com um gesto ágil, pegou a mochila antes que ela pudesse
protestar.
— Por favor, moça... O bebê está chorando, todos estão com fome e estou
começando a ficar muito irritado. — E passou a mão pelos cabelos para ilustrar a
impaciência. — Pelo amor de Deus, entre na picape e deixe-me levá-la para algum lugar!
Suzanne se voltou e abriu a boca para responder, mas se calou ao perceber o
olhar fixo para seus seios.

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Depois da Chuva Karen White

— Onde conseguiu esse pingente? — ele perguntou de súbito, contendo o ímpeto


de tocá-lo.
— Alguém me deu de presente, muito tempo atrás. E agora, pode me devolver a
mochila?
— Não posso — Anunciou, dando-lhe as costas e seguindo em direção à picape. —
Você a terá de volta quando chegarmos à cidade.
— Você não pode fazer isso! — Sem pensar, Suzanne precipitou-se ao encalço
dele. — Sua mãe nunca lhe disse para não aceitar caronas de estranhos?
— Caso ainda não tenha percebido, você é a estranha aqui — comunicou enquanto
atirava a mochila no porta-malas. — E em meu carro não há perigo. Há apenas seis
crianças famintas e ansiosas para chegarem em casa.
Joe contornou o veículo para abrir a porta ao mesmo tempo em que a senhora
simpática se afastava para que Suzanne se acomodasse no espaço estreito ao lado do
motorista.
Resignada, encolheu-se o melhor que pôde, evitando se mover. Ao passarem em
frente à placa na entrada da cidade, olhou de soslaio para o guaxinim, que permanecia
imóvel no meio da pista.
Sei como você se sente, pensou, mantendo o olhar fixo no retrovisor até perdê-
lo de vista.

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Depois da Chuva Karen White

Capítulo II

Suzanne seguiu imóvel como uma pedra durante o trajeto silencioso, quebrado
apenas pelo som da respiração ritmada do bebê profundamente adormecido. Se
pudesse, ela própria deixaria de respirar para não correr o risco de se encostar ao
homem a seu lado, cuja expressão fechada não deixava dúvida de que não era bem-
vinda.
De súbito, uma nuvem de perfume adocicado irritou suas narinas, fazendo-a
espirrar. Sete vozes gritaram "saúde" em coro, e Joe permaneceu mudo, com olhar
fixo na estrada.
— Sou Lucinda Madison. — A simpática senhora fez uma pausa, esperando que
se apresentasse.
— Prazer em conhecê-la. Meu nome é Suzanne — disse com relutância.
— Suzanne... — Lucinda pestanejou, fazendo com que os cílios postiços se
agitassem como pequenas borboletas. — É um lindo nome. E qual é seu sobrenome?
— Suzanne L...
Calou-se de súbito, horrorizada com o nome que quase escapara de seus lábios.
Aflita, decidiu que precisava inventar um sobrenome que protegesse sua identidade.
Então, uma imagem fugaz passou por sua mente tão rapidamente quanto a paisagem
que ficava para trás.
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Depois da Chuva Karen White

Visualizou a página de uma revista antiga com a fotografia da torre Eiffel. O


papel amarelado e desgastado nas bordas estivera por muito tempo enfeitando a
geladeira de sua mãe, até que fora permanentemente transferido para o bolso da mo-
chila de Suzanne.
Além da gargantilha com o pingente em forma de coração, aquele era o único
bem que herdara da mãe e carregava-o consigo aonde quer que fosse. Em sua vida,
acostumara-se a não ter nada que fosse permanente e definitivo, mas apegara-se
àquele papel como se nele estivesse retratada uma parte de sua história.
— Ahh... Paris — O nome escapou de seus lábios antes que ela tivesse chance de
perceber. — Suzanne Paris.
— Curioso... Você me parece familiar. — Lucinda sorriu, os olhos gentis
irradiando calor e simpatia. Havia neles o brilho inequívoco da sabedoria que somente a
experiência pode dar. — Mas não conheço ninguém com este sobrenome. Suzanne
Paris... É um belo nome, não acha Joe?
— Humm — Foi a resposta lacônica.
— Srta. Paris, meu nome é Maddie. — A adolescente apoiou o cotovelo no banco
de passageiros e sorriu. — De onde você é?
— De nenhum lugar em particular — Suzanne girou o corpo para fitá-la. —
Costumo me mudar com freqüência.
— Uau! Deve ser maravilhoso! — Suspirou, com ar sonhador. — E que tipo de
trabalho você tem que permite que se mude o tempo todo?
Suzanne estudou por alguns segundos as feições juvenis, de expressivos olhos
verdes e sobrancelhas arqueadas. A pele alva e os longos cabelos castanho-claros
estavam presos em um rabo-de-cavalo. Mas foram os olhos que chamaram sua atenção,
estavam arregalados de admiração e, embora o belo rosto demonstrasse vitalidade,
havia uma sombra de tristeza obscurecendo-lhe o brilho.
— Eu sou fotógrafa—respondeu por fim, optando por dizer a verdade. — Sou
fotógrafa freelance.
— Você está brincando! — Entusiasmada, Maddie escorregou para a ponta do
banco, aproximando-se ainda mais. — Alguma de suas fotografias já foi publicada em
revistas famosas?
— Não — Mentiu, consciente de que era necessário se proteger. — A maior
parte do meu trabalho é para jornais e periódicos regionais.
— Onde está seu equipamento?

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Depois da Chuva Karen White

Suzanne fez uma longa pausa enquanto pensava sobre o que dizer, notando o
interesse velado de Joe Então, decidiu que não seria comprometedor se revelasse uma
parte da verdade. Afinal, que mal poderia haver se soubessem que a pequena fortuna
que trazia consigo provinha da venda de seu valioso equipamento?
— Vendi quase tudo. Mantive apenas minha câmera Hasselblade e algumas
lentes. Mas não estou aqui a trabalho.
— Você tem uma Hasselblade? Uau! Só vi uma dessas em revistas
especializadas. É uma câmera grande angular, não é?
Suzanne sorriu, impressionada com o conhecimento daquela adolescente.
— Sim. Ela é meu orgulho.
— Puxa, eu daria tudo para ter uma!
— E por que precisou vender seu equipamento? — Uma voz infantil soou do
banco detrás.
Inclinando ainda mais o corpo, Suzanne deparou com a garotinha encantadora
que sorria para ela sem um dos dentes da frente. Os cabelos ruivos caíam em cachos
bem definidos sobre os ombros e o pequeno nariz coberto por sardas discretas em-
prestava-lhe um encanto especial. Não pôde definir a cor dos olhos, mas notou que
eram vivos e expressivos, com um brilho divertido.
— Qual é seu nome? — indagou curiosa.
— Knoxie. Eu tenho oito anos de idade e já estou na terceira série. A sra.
McRae disse que sou a melhor aluna da classe, mas meu pai não acredita. Ele me obriga
a fazer os deveres de casa bem na hora do meu desenho favorito na televisão!
Suzanne não pôde deixar de rir diante da denúncia acompanhada por um olhar
de censura dirigido ao pai, que grunhiu alguma coisa incompreensível como resposta.
— Mocinha, acho que você se esqueceu das boas maneiras enquanto estive fora
— Lucinda advertiu. — Peça desculpas a srta. Paris por ter sido tão indiscreta.
— Desculpe, senhorita — Murmurou, recostando-se no assento.
Joe, sem tirar os olhos da estrada, pediu:
— Por favor, srta. Paris coloque o cinto de segurança. Embora possa parecer
surpreendente para a senhorita, há algumas leis neste Estado e não tenho intenção de
infringi-las.
Ela obedeceu, contendo-se para não retrucar. Que arrogante! Recriminou-o
secretamente. Joe Warner parecia ser o tipo de homem que jamais admitia ser
contrariado.
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Depois da Chuva Karen White

— Você também, Maddie — Vociferou, olhando para a filha pelo espelho


retrovisor.
— Não preciso. Não sou mais uma garotinha.
—Enquanto agir como criança, não será tratada como adulta.
— Mas, papai... Só há quatro cintos de segurança aqui atrás. Além disso, Joey e
Sarah Francês também não estão usando...
— Como poderia? — Sarah Francês argumentou. — Harry está no meu colo e
Joey está com Amanda...
— Parem de discutir e obedeçam. Entenderam?
— Sim, papai — Foi a resposta em uníssono.
A tensão no interior do veículo tornou-se palpável. Suzanne respirou fundo,
ansiando por se afastar da complexidade da vida familiar, da qual nunca se sentira
parte. Para seu alívio, Lucinda quebrou o pesado silêncio.
— Earl mandou-lhe um pouco de vinho que ele mesmo produziu. Acho que pode
ser usado como vinagre para temperar a salada, mas ele estava muito orgulhoso — Ao
ver que Joe não respondia, continuou: — Como estão as coisas por aqui?
Lucinda virou o rosto para estudar as crianças. Suzanne acompanhou o gesto e
notou que uma das botas de caubói do bebê havia desaparecido.
— A máquina de lavar está quebrada? — indagou em tom crítico, meneando a
cabeça ao ver o estado deplorável do vestuário dos sobrinhos.
— Não exatamente... — Joe encolheu os ombros em defensiva. — Ficamos sem
detergente em pó e me esqueci de comprar. Tenho estado muito ocupado. É difícil
trabalhar em período integral e tomar conta de seis crianças.
— Sei disso! — Lucinda exclamou. — Mas fiquei fora por duas semanas! Não me
diga que você não lavou roupa pelo menos uma vez nesse período!
— Papai disse que se vestíssemos a roupa pelo avesso ninguém perceberia a
sujeira — uma voz infantil ecoou do banco de detrás.
Um silêncio mortal caiu sobre eles, e Suzanne se esforçou para conter o riso
enquanto Joe aumentava o volume do rádio em uma tentativa clara de desencorajar a
conversa.
Olhou pela janela ao avistar o aglomerado de luzes se aproximando. Que tipo de
cidade seria aquela? Refletiu apreensiva. Já fizera tantas viagens sem saber o destino
certo que não lhe ocorrera se preocupar para onde estava sendo levada.

16
Depois da Chuva Karen White

A picape entrou em uma avenida arborizada, ladeada por calçadas largas. As


residências com cercas de madeira, amplos jardins e varandas aconchegantes
pareciam ser espaçosas e confortáveis. À medida que percorriam as ruas do vilarejo,
observou a limpeza e ordem que reinavam ali.
A sensação de paz e tranqüilidade não se devia apenas às casas adormecidas e
às ruas desertas e silenciosas, concluiu. Havia algo quase tangível no ar, como se
naquele lugar não houvesse perigos nem ameaças.
Perfeito! Suzanne pensou com um discreto sorriso. Não poderia ter encontrado
refugio melhor! Olhou de soslaio para Lucinda e agradeceu-a secretamente por
estarem no mesmo ônibus.
Ao atravessaram o centro do vilarejo, observou a encantadora praça com um
coreto, diversos bancos de madeira e canteiros de flores coloridas. Duas estátuas
esculpidas em pedra erguiam-se majestosas ao centro. A maior delas representava um
soldado gigantesco empunhando uma baioneta, como se estivesse em meio a uma
batalha sangrenta. Surpreendeu-se com a riqueza de detalhes da escultura, que
conseguia expressar a bravura do destemido combatente.
Um imenso outdoor iluminado chamou-lhe a atenção e estreitou os olhos para
ter certeza do que via. Sim, não havia dúvida! O homem na fotografia, sentado em
meio a seis crianças sorridentes e bem vestidas, era o mesmo que estava ao volante,
bem ao seu lado! Reeleja Joe Warner, lia-se em letras enormes abaixo da fotografia.
Suzanne não pôde deixar de se surpreender com a ausência da esposa... Onde
estaria ela? Olhou de relance para o perfil másculo obscurecido pelas sombras da
noite e estudou-o discretamente, com o olhar de alguém que passara a vida obser-
vando o mundo através de fotografias silenciosas. Ao longo dos anos solitários, optara
por não interferir na vida das pessoas, julgando que isso a manteria protegida.
Habituara-se a entrever o que se escondia por detrás de semblantes aparentemente
inexpressivos, e sabia que Joe Warner guardava muitas histórias.
Ao fazerem a curva para contornar uma esquina, foi projetada de encontro ao
corpo viril. Afastou-se-bruscamente, mas sentiu a tensão dos músculos viris e quase
pôde ouvi-lo ranger os dentes.
Joe olhou de soslaio para a mulher sentada a seu lado, que parecia tão tensa e
preocupada quanto ele próprio. Esperava que fosse verdade quando mencionara que
estava apenas de passagem, pensou intrigado por ficar tão perturbado por uma
desconhecida. Talvez fosse pelo fato óbvio de esconder alguma coisa, mas aquilo não
lhe dizia respeito. Sentia-se pouco à vontade ao lado dela, o que não era comum para
um homem com seis filhos, um trabalho e em plena campanha eleitoral.

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Depois da Chuva Karen White

Antes de saírem da loja de conveniência, Joe telefonara para


Sam, seu melhor amigo e o único médico de Walton. A casa que herdara dos pais
estava desocupada e ele começara uma reforma para colocá-la à venda. Depois de
explicar rapidamente o que pretendia, Joe respirou aliviado ao ouvir que poderia levar
a jovem desconhecida para lá.
Sam informou-lhe que as chaves estavam na caixa de correio e que a cama do
quarto de hóspedes tinha lençóis limpos, pois costumava passar algumas noites lá
quando sua esposa, Cassie, viajava para Atlanta a negócios.
Agradeceu silenciosamente ao amigo por não questioná-lo. No entanto, sabia que
não poderia escapar do inquérito na manhã seguinte, quando o encontrasse para o
habitual desjejum no Café Dixie Diner, uma tradição que mantinham desde que Sam
terminara a faculdade de medicina.
Reduziu a marcha e ficou ainda mais intrigado com aquela mulher. Para alguém
que acabara de chegar a uma cidade desconhecida, era curioso que não perguntasse
para onde estava sendo levada. Ela parecia esconder muitos segredos, porém disse a si
mesmo que não estava interessado neles.
Os faróis da caminhonete iluminaram a fachada de uma casa branca, fazendo
com que as sombras da cerca de madeira dançassem na varanda.
Joe estacionou e saltou da cabine, seguindo para o portão, enquanto Suzanne
permaneceu imóvel, olhando para a casa por um longo tempo antes que Lucinda a
tocasse gentilmente no braço.
— Venha querida. Vamos entrar — Convidou e, voltando-se para o banco de
detrás, pediu: — Maddie, tome conta de seus irmãos. Não vamos demorar.
— De quem é esta casa?
— É de Sam Parker, um amigo da família. Pertenceu aos pais dele, e está
desocupada há cinco anos, desde que faleceram. — Lucinda deteve-se no portão e fez
um gesto para que Suzanne entrasse — Sabe, ele é casado com minha sobrinha Cassie,
e moram em um adorável sobrado a poucos quarteirões daqui. Cassie trabalha para uma
firma de publicidade em Atlanta e costuma viajar a negócios com freqüência.
— Tia Lucinda, creio que a srta. Paris não está interessada na história da família
— Joe censurou, aproximando-se com a mochila de Suzanne nos ombros.
— Ora, não seja ranzinza! É claro que está interessada, não é, meu bem? —
Ignorou-o e tomou o braço de Suzanne para subir os degraus da varanda. — Afinal,
você deve estar se perguntando como uma casa abandonada há cinco anos está tão
limpa e bem cuidada — E continuou, sem esperar pela resposta. — É que Sam costuma

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Depois da Chuva Karen White

vir para cá quando minha sobrinha está fora da cidade, e dedica todo seu tempo livre a
reformá-la. Ele diz que não se pode confiar nos pedreiros de hoje em dia, mas isso é
bobagem! A verdade é que gosta de trabalhos manuais.
— Tem certeza de que posso mesmo ficar aqui? — perguntou a Joe.
Ao abrir a boca para dar uma resposta hostil, ele deparou com a expectativa no
belo rosto e se calou. Aquela jovem parecia maravilhada com a possibilidade de ficar
naquele sobrado e a alegria quase inocente que transbordava dos olhos arregalados o
desarmou. Já vira aquela mesma expressão no rosto de Maddie, ao ganhar sua primeira
câmera fotográfica da mãe.
— Sim, tenho certeza — Afirmou convicto. — Como já sabe, não há hotéis na
cidade. Avisei meu amigo de que não será por muito tempo, já que você está de
passagem pela cidade.
— Eu posso pagar — anunciou com orgulho.
— Converse com Sam sobre o aluguel — Avisou, caminhando em direção à caixa
de correio ao lado do portão. — Ele deve passar por aqui amanhã cedo.
Logo que voltou com as chaves, Lucinda entrou, acendeu as luzes e subiu para o
segundo andar, deixando-os a sós. Suzanne olhou ao redor, encantada com a espaçosa
sala de estar, que ainda conservava alguns móveis cobertos com lençóis. Um cheiro de
tinta fresca preenchia o ambiente e reparou que os rodapés de madeira estavam
sendo trocados.
De súbito, um estranho som vindo do jardim a assustou. Parecia um lamento
agoniado, em tom gutural. Apavorada, segurou no braço de Joe para se proteger.
O toque fez a pele dele se arrepiar e ele se afastou de súbito, forçando-se a
manter a neutralidade.
— Não se preocupe, é apenas uma rã. — E depositou a mochila no sofá. — Você
nunca deve ter visto algo assim no lugar de onde vem.
— Não, nunca vi.
Suzanne se afastou, procurando voltar a atenção para a arquitetura primorosa
da casa. A sala de estar não possuía móveis e estava repleta de caixas de papelão
lacradas. Respirou com alívio ao chegar à cozinha ampla e impecavelmente limpa. Pos-
suía uma pia de mármore branco que ocupava toda a parede envidraçada no lado oposto
à porta pela qual acabara de entrar. Estava equipada com uma geladeira antiga e um
fogão de seis bocas. Aproximou-se para observá-lo melhor, concluindo que se tratava
de uma relíquia, o revestimento de ágata branca estava intacto, assim como a pintura
de flores e frutas em relevo que decorava a tampa do forno. Através do vidro das

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Depois da Chuva Karen White

janelas pôde ver um encantador quintal com árvores frutíferas, uma pequena horta e
uma garagem.
Suzanne meneou a cabeça, satisfeita. O piso e os azulejos de ladrilhos
hidráulicos deviam datar da construção do imóvel e denotavam o bom gosto de quem
construíra aquela casa. A mesa de madeira maciça mostrava marcas e ranhuras no
tampo, revelando os anos de uso, e seis cadeiras de palhinha dispostas ao redor
completavam o conjunto. Uma imensa peça de madeira que ela vira apenas em
antiquados ocupava uma das paredes. Estava quase vazia, com exceção de alguns copos
e pratos.
Suzanne ficou tão fascinada com o que encontrou que não percebeu a presença
de Joe, observando-a em silêncio.
— E, então, o que achou de seu novo lar?
Com um sobressalto, voltou-se para fitá-lo.
— Oh, é maravilhoso! Nunca vi uma cozinha tão bonita! — Abaixou os olhos,
constrangida. — Espero que seu amigo não esteja pensando em reformá-la.
— Sam já restaurou alguns azulejos e parte do piso. Ele pretende fazer um
trabalho de preservação, e não uma reforma.
— Isso é ótimo — Murmurou, começando a simpatizar com aquele desconhecido
que demonstrava tamanha sensibilidade.
Colocou uma mecha de cabelos por detrás da orelha e só então Joe percebeu as
raízes castanho-douradas destacando-se dos fios ruivos. Mas... O que era aquilo?
Aproximou-se um passo, e Suzanne sentiu o sangue congelar nas veias ao vê-lo
estender a mão para tocá-la.
— Sinto muito, srta. Paris... Há um pirulito preso em seus cabelos. —
Constrangido, apanhou-o com um movimento rápido. — Deve ser de Harry. Acho que
ficou preso aí quando você o pegou no colo.
— Não se preocupe, está tudo bem — Tranqüilizou-o, mal contendo o riso ao ver
a expressão mortificada no belo semblante. — Felizmente não há nenhuma lei que puna
criancinhas que perdem o pirulito nos cabelos de desconhecidos...
Joe fitou-a por um segundo e então, para surpresa de Suzanne, inclinou a
cabeça para trás e riu com vontade.
— Por que está fazendo isso, sr. Warner? — Indagou abruptamente.
— Bem, achei engraçado quando você disse que...

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Depois da Chuva Karen White

— Não estou me referindo à piada — Interrompeu-o. — Você poderia ter me


deixado na estrada.
— Eu precisava passar por aqui para chegar a minha casa — Foi a resposta
indiferente — Além disso, não poderia deixá-la na estrada da mesma forma que não
abandonaria um gato perdido que viesse parar no meu quintal.
— Puxa, estou lisonjeada!
Um pesado silêncio abateu-se sobre eles, até que Suzanne o rompeu.
— Não preciso de sua caridade, sr. Warner. Eu poderia ter conseguido sozinha.
Joe olhou para a figura esguia e soube que ela estava certa. Porém, por detrás
da postura autoconfiante e segura havia um toque quase imperceptível de
vulnerabilidade, e foi o que o impediu de deixá-la sozinha na estrada. Aquela mulher,
por alguma razão desconhecida, mantinha a fragilidade cuidadosamente escondida por
detrás de uma máscara de indiferença. Entretanto, os olhos translúcidos revelavam
uma doçura que talvez nem ela própria se desse conta, concluiu. Sim, havia uma aura
de mistério envolvendo-a.
— O quarto de hóspedes e o banheiro estão limpos e arrumados. Deixei toalhas
limpas sobre a pia, querida — Lucinda anunciou, entrando na cozinha. — Vou verificar
se a geladeira está abastecida antes de sairmos.
Passou por eles deixando a nuvem de perfume atrás de si e abriu a geladeira.
— Humm... Pão, queijo, ovos, leite... Creio que terá o necessário para passar a
noite — Lucinda meneou a cabeça, satisfeita. — Vou passar por aqui amanhã e levá-la
ao supermercado para comprar algumas coisas. Então, poderemos conversar e nos
conhecermos melhor.
Joe notou a contração involuntária dos ombros delicados, como se estivessem
erguendo suas defesas e se preparando para uma batalha. Porém, para sua surpresa,
ela não só concordou como aceitou o abraço afetuoso de Lucinda ao se despedir.
Duas horas mais tarde, Joe se deitou e adormeceu no mesmo instante. No
entanto, como acontecia todas as noites, acordou com um sobressalto pouco depois.
Sentou-se na cama e permaneceu atento ao silêncio da casa, ouvindo a respiração pro-
funda dos filhos adormecidos nos quartos ao redor dele. Com relutância, voltou a se
deitar e fechou os olhos.
Por um momento, quase acreditou que Harriet estava a seu lado, o calor da
respiração suave acariciando sua nuca. Estendeu o braço, mas seus dedos tocaram o
tecido frio do lençol. Como de hábito, mergulhou o rosto no travesseiro que a esposa

21
Depois da Chuva Karen White

costumava usar, tentando capturar o último vestígio da fragrância doce e feminina


escondida ali.
Deitando-se de costas, sentiu-se pequeno na imensa cama e se pôs a olhar pela
janela.
Desde a morte de Harriet, a escuridão das noites solitárias parecia não ter fim.
Nos primeiros dias depois de perdê-la, não conseguira suportar a ausência e dormira
na poltrona a um canto do quarto. Quando deu por si, havia se passado um ano. Ao
perceber que não fazia sentido se torturar além do necessário, obrigou-se a voltar
para a cama. Desde então, a insônia tornara-se sua única companheira.
Tentou encontrar uma posição confortável e adormecer, evitando os fantasmas
que insistiam em atormentá-lo. Porém, naquela noite, alguma coisa o incomodava sem
que conseguisse descobrir o que era. De súbito, a imagem de Suzanne Paris invadiu seu
pensamento e, irritado, Joe rolou na cama.
Não sabia por quê, mas Suzanne Paris o perturbava. Talvez houvesse se
identificado com a fragilidade e a solidão escondidas nos olhos castanhos, pensou. Ou,
talvez, tivesse visto sua própria fragilidade e solidão refletidas nos olhos dela...

Capítulo III

Suzanne pestanejou e olhou ao redor, levando alguns segundos para registrar o


quarto iluminado pelos raios de sol que entravam pelas frestas da janela.
Sonhara com uma graciosa casa branca com uma adorável varanda. Algumas
crianças brincavam com um enorme cachorro, correndo pelo relvado de veludo. Porém,
como todos os sonhos, aquele também estava fadado a terminar.
Sentou-se e esfregou os olhos. Na noite anterior, estivera tão cansada que o
simples gesto de se deitar sob os lençóis parecera-lhe além de suas forças. Caíra
sobre a cama e adormecera no mesmo instante, sem nem mesmo trocar de roupa.
Com as imagens do delicioso sonho ainda na cabeça, se pôs de pé e alisou a
colcha da cama. Porém, o latido de um cachorro bem debaixo da janela do quarto
indicava que ao menos um elemento de seu sonho era real...
O insistente ladrar despertou-lhe a curiosidade e abriu a janela, observando a
picape estacionada defronte à casa. Um imenso cachorro preto e branco na carroceria

22
Depois da Chuva Karen White

era o responsável pelo alarido que a acordara. Viu quando o cão saltou para o chão com
uma agilidade admirável e correu para o gramado como se perseguisse a própria
exuberância da vida.
Calçou os sapatos e trocou de camiseta, penteando os longos cabelos com os
dedos enquanto descia a escada. Na certa, a picape e o cachorro pertenciam ao dono
da casa, refletiu.
Ao abrir a porta de súbito, surpreendeu o homem do outro lado no exato
instante em que erguia a mão para bater.
— Bom dia! — Saudou-a com um sorriso amistoso. Suzanne fitou-o por alguns
segundos, sem deixar de notar os olhos azuis, o corpo atlético e a estatura alta. De
uma coisa estava certa: se todos os homens de Walton fossem parecidos com os dois
que já conhecera, seria difícil deixar aquela cidade!
— Sou Sam Parker, e você deve ser a srta. Suzanne Paris — Prosseguiu,
estendendo a mão para cumprimentá-la. — Joe disse que está interessada em alugar a
casa.
— É verdade. — Cumprimentou-o e fez um gesto para que entrasse, fechando a
porta atrás de si. — Se você concordar, prometo que não vai nem perceber que estou
aqui. Pretendo ficar apenas...
A frase morreu em seus lábios ao perceber o olhar indiscreto para seus seios.
Em um gesto de defesa, cruzou os braços e retraiu os ombros.
— Onde conseguiu esse pingente? — Indagou ele, surpreso.
— Ganhei de minha mãe quando tinha catorze anos — Respondeu em tom frio,
escondendo-o sob a camiseta. — Como ia dizendo, gostaria de alugar sua casa por um
breve período. Posso pagar adiantado, em dinheiro.
— Sua mãe era dessa região? Você me parece familiar... Suzanne franziu o
cenho, intrigada. Joe Warner demonstrara o mesmo interesse por aquela peça... Por
que um pingente aparentemente comum despertaria tanta consideração?
— Desculpe a indiscrição, srta. Paris — Disse embaraçado — Não pretendia
constrangê-la.
A voz tinha o ritmo lento e melodioso característico do sotaque sulista, o
mesmo que tanto a perturbara na noite anterior enquanto estava no interior do
ônibus... Passou os dedos pelos cabelos, tentando apagar a lembrança.
— Minha mãe com certeza não era dessa região. Quanto ao aluguel...
Sam enfiou as mãos nos bolsos da calça, refletindo por alguns segundos. Os
olhos brilhantes e expressivos pareciam ter a capacidade de adivinhar todos os seus
23
Depois da Chuva Karen White

segredos, e se forçou a manter-se calada. Não pretendia revelar nada além do


necessário.
Quando ele a informou sobre o valor, considerou-o irrisório, mas não
argumentou. Sem uma palavra, subiu para o quarto e abriu o bolso interno da mochila.
Retirou um maço de notas e acrescentou duzentos dólares ao valor do aluguel.
Sam ergueu a sobrancelha depois de contar o dinheiro e fez menção de devolver
a diferença.
— Não preciso de caridade, sr. Parker — Suzanne cruzou os braços, recusando-
se a recebê-la. — A casa está perfeita para mim e faço questão de pagar um preço
justo.
— Como quiser, srta. Paris — concordou ele, percebendo que seria inútil
argumentar — Você deve ter notado que estou em meio a uma reforma, mas prometo
que perturbarei o menos possível. Poderemos combinar alguns horários para que eu ve-
nha trabalhar.
Ao dizer isso, estendeu-lhe a mão, e ela hesitou por um momento antes de
aceitá-la.
— Combinado. Mas... Não pretende pedir algumas referências antes de
fecharmos negócio?
— Um aperto de mão é tudo de que preciso. Em Walton, a palavra basta para
selar um contrato.
Aliviada, meneou a cabeça e acompanhou-o até a porta. Ao abri-la, o cachorro
entrou como um furacão e, com um salto ligeiro, colocou as duas patas nos ombros de
Suzanne. Apavorada, ela fechou os olhos e cruzou os braços sobre o rosto.
— Desça, Max! Já!
Antes de obedecer, o cachorro se pôs a lamber-lhe o rosto em uma
demonstração explícita de afeto.
— Max só tem tamanho. — Sam o segurou pela coleira, tentando conter o riso —
O problema é que não resiste a um rosto bonito.
— Eu não gosto de cachorros. — Constrangida pela cena embaraçosa, ela cruzou
os braços sobre o peito.
— Vou lembrar de deixá-lo em casa na próxima que vier aqui. — E fitou-a com
curiosidade antes de dizer: — Joe mencionou que você também não gosta de crianças.
— Ele disse isso? — Suzanne esqueceu o constrangimento diante da acusação
implícita — A verdade é que não sei o que fazer com elas.

24
Depois da Chuva Karen White

— Tudo é uma questão de costume. Como todas as coisas, precisamos apenas nos
acostumar para descobrirmos que não podemos mais viver sem elas. Acredite, isso
aconteceu comigo.
— Você está se referindo a cachorros ou a crianças?
— A ambos. Não há muita diferença entre os dois depois que passa a conhecê-
los.
Com um gesto decidido, colocou Max para fora. Ao ouvir os ganidos
inconformados, Sam começou a rir e o bom humor contagiou Suzanne.
— Bem, preciso ir. Avise-me se precisar de alguma coisa. Aqui está meu cartão.
— Obrigada, sr. Parker — Suzanne apanhou o cartão das mãos dele.
— Eu soube que tia Lucinda vai levá-la às compras. Esteja preparada para
renovar seu estoque de maquiagem e perfume! — Ele tocou a aba de um chapéu
invisível e abriu a porta, para alegria de Max — Vamos embora, parceiro! — Afagou o
pêlo macio do cão — Diga adeus para a srta. Paris.
Como se houvesse compreendido as palavras, Max despediu-se com um latido e
correu para a calçada.
Um sorriso involuntário curvou os lábios de Suzanne. O afeto e o respeito mútuo
entre eles eram dignos de admiração. Quem sabe, um dia, também pudesse ter um
cachorro? Refletiu ao descer os degraus da varanda.
Respirou o ar puro da manhã, sentindo-se mais relaxada. Não esperava que
fosse tão fácil alugar aquela casa adorável! A atitude de Sam Parker a sensibilizara.
Afinal, confiara em uma desconhecida e firmara um contrato sem exigir referência
alguma!
Talvez precisasse rever alguns de seus conceitos, pensou. Aprendera, ao longo
da vida, a não confiar em ninguém, porém existia um mundo para além da redoma de
vidro com a qual tentava se proteger, e nele existiam pessoas boas e generosas... Como
os habitantes daquele pacato vilarejo, que pareciam desconhecer o mal.
Com um suspiro de satisfação, recostou-se na caixa de correio ao lado do portão
para admirar a casa à luz do dia.
A cerca de madeira cuidadosamente pintada de branco, os canteiros de rosas
em flor, a cadeira de balanço na varanda, o canto dos pássaros festejando a liberdade
de cruzar o céu azul... Aquela era a casa de seus sonhos! E seria só dela, ao menos por
um tempo.
O sorriso permaneceu em seus lábios quando foi para o quarto, decidida a
desfazer as malas. Naquela noite, pretendia dormir sob os lençóis...
25
Depois da Chuva Karen White

Quando Joe chegou ao Café Dixie Diner, Sam já o esperava com duas xícaras de
café fumegante. Desde que o amigo concluíra o curso de medicina e voltara para
Walton, haviam se habituado a compartilhar diariamente a primeira refeição do dia.
— Bom dia — Murmurou, sentando-se à mesa.
— O que houve com você? — Sam empurrou uma das xícaras na direção dele —
Está com uma aparência péssima!
— Obrigado! Nada como um elogio sincero para começar bem o dia! — Sorveu um
gole da bebida e passou os dedos pelos cabelos em desalinho — Felizmente, Lucinda
não viaja com freqüência. Lavar, passar, cozinhar, ir ao supermercado... O serviço
doméstico não tem fim!
— E ainda há quem não valorize as mulheres que se dedicam ao lar! — Sam
comentou com simpatia. — Mas não creio que seja essa a justificativa para seu mal
humor. Se não estiver conseguindo dormir bem, posso prescrever algum medicamento
para ajudá-lo.
Joe fitou-o sem dizer nada. Sabia que não era possível ocultar do amigo de
infância o que escondia no coração. Porém, naquela manhã, não estava disposto a
conversar e agradeceu secretamente à garçonete por chegar com a bandeja do
desjejum.
— Bom dia, rapazes — Brunelle Thompson saudou-os com um sorriso afetuoso —
Ovos com bacon, salsicha e torradas, certo?
— Por favor, traga mais uma porção de ovos com bacon para mim — Sam pediu,
levando uma fatia de pão à boca.
A garçonete franziu o cenho. Depois de servi-los durante anos, aquela era
primeira vez que ouvia tal pedido.
— Você não acha que seria mais prático injetar uma dose dessa porcaria
diretamente nas artérias? — Joe indagou ao ver a garçonete se afastar.
— Deixe-me em paz! — Resmungou, apanhando uma fatia crocante de bacon —
Desde que Cassie descobriu que estava grávida, decretou que só faríamos refeições
saudáveis em casa. Isso está me matando! O café da manhã é a única refeição decente
que faço.
— Bem, tenho de admitir que você está certo. Os pratos saudáveis de Cassie
deixam muito a desejar — Joe concordou com uma risada — Para ser honesto, também
não faço uma boa refeição desde que Lucinda viajou.
Naquele momento, a porta da frente se abriu e entraram dois adolescentes
vestidos com o uniforme do colégio.
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Depois da Chuva Karen White

— Bom dia, treinador Warner — O rapaz alto saudou-o com um sorriso.


— Olá, Rob. Você não deveria estar na escola?
— Estamos no intervalo — Ele sorriu, revelando dentes perfeitos — Até mais
tarde, treinador.
— Até logo — Foi a resposta mal-humorada.
— Você foi um tanto rude com o garoto, não acha? — Sam criticou-o.
— Ele não é um garoto. É um rapaz de quase dois metros de músculos e
testosterona!
— Ele convidou Maddie para sair, certo? — Sam fitou o amigo com um sorriso
divertido nos lábios. — Joe, Maddie já tem dezessete anos! Em breve, sua filhinha vai
para a faculdade... Ou pretende enviá-la para um convento?
— Seria a solução perfeita.
— Como se fizesse diferença! Meu caro, você não pode mantê-la debaixo de
suas asas para sempre.
— E acha que não sei disso? — A amargura se evidenciou no tom de voz. — Faço
o melhor que posso, mas jamais conseguirei fazer o papel de pai e mãe.
— Todos nós sentimos falta de Harriet, Joe. Mas mesmo com a ausência dela,
você tem feito um ótimo trabalho com as crianças. Não as sufoque tentando protegê-
las do mundo.
— Tem razão. Às vezes, sei que exagero — Suspirou resignado. — As crianças
necessitam de cuidados que só uma mulher pode dar. Sarah Francês precisa começar a
usar sutiã e Lucinda ainda não conversou com ela. Creio que eu mesmo terei de tomar a
iniciativa.
— Espero que Cassie esteja esperando um menino! — Sam comentou depois de
refletir por alguns momentos.
— Não se iluda! Isso não o livrará dos problemas. Joey, por exemplo... — Joe
interrompeu a frase ao meio quando a porta se abriu com alarido. — Ótimo! — Ironizou
depois de observar o recém-chegado — Ver Stinky Harden era tudo de que eu
precisava para encerrar a manhã com chave de ouro!
Sam cumprimentou-o com uma discreta inclinação de cabeça sem interromper a
refeição.
— É curioso que Stinky tenha se candidatado ao cargo de prefeito, não acha?
Ele nunca se interessou por política!

27
Depois da Chuva Karen White

— Stinky é do tipo que joga sujo, Sam. Deve ter aprendido muita coisa depois
desses anos todos em Atlanta.
— Mas não é páreo para você. Toda a população de Walton sabe que Joe Warner
é um homem decente.
— Sou tão ocupado que não tenho tempo de arrumar problemas. É impossível
fazer qualquer coisa errada quando se tem um bebê e uma criança agarrada a cada
uma de suas pernas.
— Bem, se você estiver procurando problemas, não precisará ir muito longe...
— O que quer dizer? — Joe o fitou intrigado.
— Suzanne Paris! — E sorriu para o amigo com malícia. — Por Deus, ela é
perfeita! Entendi por que não a deixou na estrada no momento em que a vi! Se eu não
estivesse muito bem casado, não deixaria que uma mulher como aquela escapasse!
Joe quase engasgou com o café ao ouvir a declaração do amigo.
— Concordo com você, especialmente quando se refere aos problemas —
Comentou, tentando dar um tom de indiferença à voz.
— E pagou o aluguel em dinheiro... Meu caro, essa mulher está escondendo
alguma coisa!
— Eu tive a mesma impressão, mas não é problema meu.
— Não me diga que Suzanne Paris não é a mulher mais atraente que já viu nos
últimos tempos!
— Para falar a verdade, nem prestei atenção à aparência dela. — Ergueu a
xícara de café, torcendo para que o amigo não notasse o rubor que lhe tingiu o rosto.
— Além disso, não estou interessado em mulher alguma. Sou ocupado demais e estou
muito bem sozinho.
Joe tomou o último gole de café e colocou uma nota de cinco dólares sobre a
mesa. Levantava-se para sair quando a voz afetada de Stinky Harden soou atrás de si.
— Bom dia, prefeito Warner.
O homem alto vestia-se com uma elegância exagerada para àquela hora do dia.
— Bom dia — respondeu sem se voltar.
— Está de saída?
— Sim, tenho muito trabalho a fazer.

28
Depois da Chuva Karen White

— Oh, que pena... — murmurou com falsa decepção. — Esperava que pudéssemos
tomar o café da manhã juntos para conversarmos sobre projetos para tornar Walton
ainda melhor...
— Seria um prazer, Stinky, mas tenho compromissos inadiáveis. Você vem, Sam?
Sem esperar pela resposta do amigo, caminhou até a porta forçando-se a
manter a calma. Antes de sair, ainda pôde ver a expressão fria e calculista de seu
oponente e caminhou com passos rápidos, como se quisesse fugir dali o mais rápido
possível.
Depois de tomar um banho relaxante e se vestir, Suzanne apanhou a câmera
cuidadosamente guardada na mochila. Pretendia aproveitar a luz da manhã ensolarada
para tirar algumas fotografias enquanto esperava por Lucinda.
Caminhou pelo jardim estudando o melhor ângulo e se posicionou a poucos passos
da varanda.
Quando via o mundo por detrás das lentes de sua câmera, sentia-se em seu
elemento. Aquele era seu universo perfeito, onde enquadrava apenas o que queria ver.
Ajustou a lente para enfocar a fachada, colocando em primeiro plano a cadeira
de balanço da varanda. Estava prestes a apertar o botão quando o ronco de um motor
chamou-lhe a atenção. Voltou-se e notou que um conversível rosa-vivo acabara de
estacionar diante do portão.
A mulher exuberante sentada por detrás do volante acenou com animação. O sol
refletia-se nas lentes dos excêntricos óculos escuros e os cabelos ruivos estavam
presos no alto da cabeça, com alguns cachos rebeldes caindo sobre o rosto. Não
conteve um sorriso ao perceber que eram da mesma cor da blusa que usava.
Lucinda Madison era uma mulher autêntica e sincera, e conquistara sua simpatia
desde a primeira vez em que a vira.
— Bom dia, srta. Paris! — Cumprimentou alegremente, transbordando de
entusiasmo.
— Olá, Lucinda. Por favor, pode me chamar de Suzanne — Caminhou até o portão
para abri-lo — Você chegou mais cedo do que eu esperava.
— Oh, e você nem imagina como já trabalhei hoje! Lavei todas as roupas
acumuladas desde que viajei... Desculpe se algumas bolhas de sabão escaparem de
minhas orelhas! — Voltou-se para Harry e Amanda, sentados no banco de trás —
Cumprimentem a srta. Paris, crianças!
Olhos incrivelmente azuis a fitaram.

29
Depois da Chuva Karen White

— Eles são tímidos com estranhos, mas depois que conhecê-los melhor, vai
descobrir que o ar angelical desses rostinhos lindos é puro disfarce!
Suzanne riu, começando a gostar da idéia de passar a manhã fazendo compras
com Lucinda.
— Espere um momento — Pediu, retirando a lente da câmera. — Vou buscar
minha bolsa.
— Claro, querida. Não tenha pressa.
Suzanne correu para o interior da casa e, depois de guardar a câmera debaixo
da cama, apanhou algumas notas no bolso interno da mochila e desceu.
— Tia Lu, preciso ir ao banheiro — ouviu Amanda gritar assim que fechou a
porta da frente.
— Podemos usar o banheiro, querida? — Lucinda indagou, ajudando a sobrinha a
descer do carro.
— Claro! Você sabe onde fica, não é?
— Sim. Vou levá-la enquanto você cuida de Harry. Suzanne sentou-se no banco
de passageiros, esforçando-se para não entrar em pânico. O pior era que o garotinho
parecia acabar sempre sob os cuidados da pessoa menos apta para tal tarefa! Pensou
com agonia. Nunca tivera chance de conviver com crianças e julgava-se incapaz de
distrair um bebê que mal sabia falar.
Tentava pensar em algo para distraí-lo quando ele começou a chorar, deixando-a
ainda mais exasperada.
— Shh... Não chore, por favor! — Suplicou, receando que algum vizinho a
acusasse de maltratar crianças — Tia Lucinda voltará logo...
Para seu desespero, as palavras pioraram ainda mais a situação. Aflita, encarou-
o e fez uma careta. O pequenino arregalou os olhos e, no mesmo instante, o pranto deu
lugar a uma deliciosa risada.
Ambos estavam gargalhando quando Lucinda e Amanda saíram da casa.
— Que bom que vocês se entenderam! — exclamou satisfeita, acomodando a
sobrinha no banco traseiro.
— Harry é uma criança adorável — Suzanne comentou, optando por omitir o
momento de pânico que passara com aquele anjinho.
— Espero que não se importe por nos acompanharem às compras — Girou a
chave na ignição e voltou-se para ela.

30
Depois da Chuva Karen White

— Claro que não!


Estudou por um momento o semblante sereno, notando a pele acetinada, com
pequenas rugas ao redor dos olhos. Era uma mulher bonita, de cerca de sessenta anos,
com olhos doces e expressivos que demonstravam sabedoria e bom senso. De-
finitivamente, precisava registrar aquele rosto com sua câmera, concluiu.
— Espero não estar atrapalhando seus planos, Lucinda — Comentou, observando,
a paisagem.
— Oh, em hipótese alguma! Eu adoro fazer compras!
— Você tem filhos? — a voz de Amanda ecoou do banco de trás.
A pergunta deixou-a paralisada. Permaneceu em silêncio por um momento e girou
o corpo para fitá-la.
— Não, não tenho.
— É por isso que não tem nenhum desenho colado na porta da geladeira! —
concluiu, erguendo as mãozinhas.
— Você sempre foi sozinha, querida? — Lucinda indagou, olhando-a de relance.
— Desculpe, mas não gosto de falar sobre mim.
— Querida, sou especialista em manter segredos! Além disso, seria bom se
pudesse ter alguém para conversar — Disse com voz suave. — Você está fugindo de
algum homem?
De súbito, todo o ar do ambiente pareceu ter sido drenado.
— Por quê? — Perguntou por fim, lembrando-se de respirar.
— Por que alguém viria para um vilarejo como Walton sem conhecer ninguém? A
conclusão é óbvia... — Sorriu e fez um gesto vago com a mão direita — Bem, se estiver
tentando se esconder, posso lhe garantir que acabou de encontrar o refúgio mais
seguro do planeta!
Lucinda pestanejou, fazendo com que os cílios postiços se agitassem em um
movimento suave. Ao ver que não obteria nenhum comentário sobre o que dissera,
insistiu:
— Você sempre foi sozinha?
— Sim, sempre — concordou depois de uma breve pausa.
— Tive mãe, mas não a vejo desde que tinha catorze anos. Desde então, vivo
sozinha.
— Isso não é nada bom para uma garota...
31
Depois da Chuva Karen White

— Consigo viver bem assim.


Esperava não ter de revelar mais detalhes sobre sua vida. Não pretendia ser
indelicada nem mentir para alguém tão adorável quanto sua nova amiga.
Olhou pela janela, admirando as belas casas com imensos jardins. Um grupo de
crianças andava de bicicleta na calçada e lastimou não ter levado a câmera para
registrar a cena adorável.
Ao dobrarem uma esquina, passaram por um sobrado pintado de azul-claro, onde
uma senhora sentada na cadeira de balanço tricotava o que parecia ser um xale de lã.
Quando Lucinda acenou, colocou as agulhas no colo e estreitou os olhos, como se
tentasse reconhecê-la.
— Então, você acha que é feliz sozinha... — Insistiu com suavidade — Na vida de
todos nós é inevitável que a chuva caia algum dia.
— O que disse? — Surpresa, voltou a atenção para Lucinda.
— Uma amiga costumava citar essa frase, e me fez lembrar você.
Sem dizer nada, Suzanne virou o rosto para a janela, ansiosa por fugir do olhar
perspicaz. Sua mãe costumava lhe dizer aquela mesma frase...
Pela primeira vez em sua vida, sentia-se invadida por uma inexplicável
ambivalência de sentimentos. Embora amedrontada pelo interesse de Lucinda, a
bondade estampada nos olhos azuis parecia acalentá-la. A sensação de que alguém a
olhava e percebia suas necessidades e carências provocou-lhe um estranho e
inesperado conforto. Sentia-se grata àquela mulher por se preocupar com ela.
O conversível passou defronte à escola e contornou uma pequena praça. O
canteiro repleto de flores coloridas, circundado por uma grade de ferro pintada de
branco, formava um gracioso nicho. No centro, havia um busto de mulher esculpido em
bronze e uma placa com a inscrição Memorial Harriet Madison Warner.
— Quem é Harriet? — Indagou, quase certa de que já sabia a resposta.
— Era minha sobrinha e esposa de Joe. Morreu há quase três anos, de câncer.
Foi o acontecimento mais triste dessa cidade.
Suzanne lembrou-se da sensação que experimentara ao estudar o rosto de Joe
na noite anterior, na cabine da caminhonete. Percebera, naquele momento, que havia
uma sombra de tristeza quase imperceptível nos belos olhos.
— Mas Harry deve ter apenas...

32
Depois da Chuva Karen White

— Dois anos e oito meses — Lucinda completou. — Ele nasceu na noite de Natal,
e Harriet morreu na semana seguinte. Joe ficou arrasado. Todos nós ficamos, más
estamos tentando seguir em frente.
Suzanne não deixou de notar uma lágrima furtiva rolar pelo rosto alvo e pensou
em dizer algo para confortá-la, mas não encontrou as palavras certas. Não conseguia
parar de pensar nas crianças, especialmente na bela adolescente de olhos verdes.
Devia estar com cerca de catorze anos quando a mãe morreu, assim como ela, que
perdera a mãe com a mesma idade.
— Sinto muito — Disse, surpresa por realmente sentir.
Lucinda estacionou o conversível defronte a um supermercado e apanhou a bolsa
para aplicar uma espessa camada de batom antes de descer.
— Sabe, eu tenho uma butique de lingeries e estou precisando de alguém para
trabalhar temporariamente até o Natal — Disse de súbito — Se pretende ficar por
aqui algumas semanas, poderia trabalhar para mim. Não ficará rica, mas posso pagar
um salário razoável.
— Eu? Mas não entendo nada desse assunto! — Exclamou surpresa — Por que me
ofereceu o emprego?
— Julguei que você seria útil na loja, além do que teria tempo para pensar
melhor sobre sua vida. Não é preciso que dê a resposta agora, querida. Avise-me
quando tomar uma decisão.
Suzanne desceu do carro e, antes que tivesse tempo de fechar a porta, Harry
foi colocado em seus braços. Olhou ao redor e viu-se em meio ao estacionamento de
um supermercado Chamado Piggly Wiggly, com uma criança nos braços, parada ao lado
de um conversível cor-de-rosa dirigido por uma mulher cujos cabelos eram tingidos
com uma cor que não existia na natureza.
Desolada, consolou-se com o fato de que ninguém a reconheceria ali. Depois de
menos de vinte e quatro horas que chegara a Walton, ela própria mal poderia se
reconhecer!

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Depois da Chuva Karen White

Capítulo IV

Suzanne ajudou Lucinda a acomodar Harry e Amanda dentro do carrinho de


compras e seguiu-a até a seção de cosméticos. Observou-a experimentar várias
tonalidades de batom até escolher um que lhe pareceu exatamente igual ao que usava
naquela manhã.
Detiveram-se no balcão de perfumes, e Lucinda pediu sua opinião antes de
escolher o que levaria. Submeteu-se pacientemente à torturante tarefa de inalar
várias essências doces e enjoativas, as favoritas de sua nova amiga.
— Pronto! — Lucinda exclamou, satisfeita com as aquisições — Agora, que já
comprei o essencial, vamos ao supérfluo! Fique à vontade, meu bem. Nos
encontraremos no caixa. Com uma risada, perdeu-se no corredor de cereais. Suzanne
34
Depois da Chuva Karen White

caminhou pêlo imenso supermercado sentindo-se perdida. Há muito tempo não tinha de
se preocupar com os suprimentos da casa.
Quando morava com o ex-noivo, nunca tivera de se ocupar com nada. Costumava
fazer as refeições em um dos restaurantes do poderoso Anthony de Salvo espalhados
por Chicago e todo o serviço doméstico ficava sob a responsabilidade dos empregados
da luxuosa cobertura em que moravam.
No entanto, nem mesmo todo luxo e conforto que Anthony lhe proporcionava
foram suficientes para despertar o amor em seu coração. Ao contrário, a convivência
com ele só lhe causara dor, medo e humilhação.
Quando deu por si, percebeu que estava parada diante da prateleira de ração
para cães havia mais de cinco minutos. Estivera tão absorta em seus pensamentos que
não se dera conta de onde estava.
Sentindo o rosto queimar, olhou discretamente ao redor e respirou aliviada ao
ver que ninguém presenciara seu momento de ausência. Empurrou o carrinho para a
seção de cereais e tentou se concentrar nas compras.
Meia hora depois, já percorrera todos os corredores do supermercado e o
carrinho que conduzia continuava quase vazio. Não sabia por quanto tempo ficaria em
Walton, o que a deixava indecisa sobre o que comprar.
A imagem do sobrado encantador, com o adorável jardim e a cadeira de balanço
na varanda veio-lhe à mente e um sorriso discreto brotou de seus lábios.
Ter conseguido uma casa como aquela lhe parecia um verdadeiro milagre,
especialmente depois de passar duas semanas hospedando-se em motéis baratos e
fugindo da própria sombra.
Talvez o grau extremo de cansaço em que se encontrava estivesse prejudicando
sua capacidade de julgamento, mas a verdade era que não dormia tão bem quanto na
última noite havia muito tempo. Mesmo em reforma e sem móveis, havia uma aura
agradável e acolhedora envolvendo aquela casa.
Em um ímpeto, decidiu que ficaria ao menos uma semana.
Com ânimo redobrado, voltou à seção de frutas e verduras e escolheu alguns
papaias, laranjas e maçãs. Deteve-se diante do freezer de pratos congelados e
completou sua lista de compras com uma porção de panquecas de ricota e filé de
frango com alcaparras. Acrescentou pão integral e queijo branco e deu-se por
satisfeita.
— Isso é tudo de que você precisa? — Lucinda indagou, juntando-se a ela na fila
do caixa.

35
Depois da Chuva Karen White

As duas crianças, agarradas à perna da tia, fitaram-na com olhos arregalados.


— Creio que será o suficiente. — Afagou os cachinhos dourados de Amanda, que
se retraiu ao toque.
— Não é para menos que você é tão magra! — Com uma risada, pegou Harry no
colo — Não se preocupe, poderemos voltar quando seus suprimentos acabarem.
— Não será necessário, obrigada. O que comprei vai durar até quando eu for
embora. Não posso carregar o freezer comigo e detesto desperdício.
— Talvez fique mais tempo do que imagina, meu bem.
Com um sorriso misterioso, Lucinda se afastou para conversar com a senhora
que acabara de parar atrás dela com um carrinho repleto de compras.
Suzanne decidiu não considerar o que ouvira. Estabelecera para sua estada em
Walton o limite máximo de uma semana e nada faria com que mudasse de idéia.
Observou Lucinda conversando animadamente e sorriu ao constatar que aquela
mulher conhecia todos os habitantes do vilarejo. Por um segundo, chegou a invejá-la,
imaginando como deveria ser bom fazer parte da vida de uma comunidade. Porém,
quando começou a ser apresentada por Lucinda a todos que se aproximavam, sentiu
saudade da solidão de seu quarto. Claro, não havia como negar que se mostravam
simpáticos acolhedores, mas o receio de ser reconhecida a impedia relaxar.
Com um gesto desesperado, apanhou os primeiros óculos de sol que sua mão
alcançou na prateleira ao lado do caixa e colocou-os, como se pudesse se esconder por
detrás deles. Sentiu-se estúpida por usar de um artifício tão óbvio, mas foi a única
defesa que pôde encontrar.
Ajeitando-os sobre o nariz, tentou ignorar a curiosidade que sua presença
despertava nos clientes do supermercado. Enquanto esperava por sua vez, apanhou
casualmente uma cópia de um jornal de Atlanta. Leu a matéria da primeira página
aliviada por não encontrar uma fotografia sua com os dizeres “Procura-se jovem
desaparecida” estampados em letras garrafais. Folheou-o, correndo os olhos pelas
manchetes, até se certificar de que seu anonimato não estava ameaçado.
— Suzanne?
Ela ergueu os olhos, sobressaltada. Lucinda a observava, com Harry e Amanda
agarrados as pernas.
— Por favor, pegue um exemplar desse para mim.
Ela estendeu-lhe o jornal e o manteve suspenso no ar, pois Lucinda se voltou
para cumprimentar duas senhoras vestidas com calças de moletom amarelas,
camisetas brancas e bonés tão grandes que um vento forte poderia arrastá-las. Por um
36
Depois da Chuva Karen White

segundo, julgou que seus olhos estivessem lhe pregando uma peça. Não apenas as
roupas eram idênticas, mas também os traços físicos e o corte de cabelos.
— Você deve ser a nova amiga de Joe! — Uma delas exclamou como se houvesse
acabado de fazer uma grande descoberta.
— Thelma e Selma Sedgewick, esta é Suzanne Paris. Ela é fotógrafa e vai ficar
em Walton por uma temporada.
Cumprimentaram-na com um aperto de mão vigoroso. Para fugir dos olhares
curiosos, Suzanne se pôs a retirar as compras do carrinho.
— Como você e Joe se conheceram? — Perguntou uma delas.
— Já estava na hora do nosso querido prefeito mostrar interesse por uma
mulher! — exclamaram as duas ao mesmo tempo.
Suzanne olhou de uma para a outra, sentindo-se como um espécime raro sendo
analisado.
— O Doutor Parker tinha razão! — Thelma avaliou-a de alto a baixo e meneou a
cabeça em aprovação — Ele disse que você era muito bonita, embora seja difícil saber.
Esses enormes óculos escuros escondem todo o seu rosto.
Constrangida com o elogio, puxou a primeira nota que encontrou na carteira.
— Desculpe, moça, mas não tenho troco para tanto dinheiro — A funcionária do
caixa meneou a cabeça, devolvendo-lhe a nota.
Só então percebeu que entregara quinhentos dólares para pagar as compras. Um
silêncio embaraçoso pairou ao redor dela, enquanto as gêmeas idênticas trocavam um
olhar de cumplicidade.
Recriminando-se duramente por se expor além do necessário, Suzanne guardou
a nota com mãos trêmulas. Como pudera ser tão tola para permitir que suspeitassem
da imensa quantia que carregava consigo?
Aflita, vasculhava a carteira quando Lucinda salvou-a mais uma vez.
— Mellany, inclua as compras da srta. Paris na minha conta
— Ordenou, empurrando-a para fora — Não se preocupe, bem. Acertaremos
depois. Por que não leva suas sacolas para o carro e aproveita para respirar um pouco
de ar fresco?
Embaraçada, apanhou a chave do carro e seguiu para o estacionamento, com uma
sacola em cada mão. Definitivamente Lucinda era seu anjo da guarda! Concluiu ao abrir
o porta-malas do conversível.

37
Depois da Chuva Karen White

Depois de acomodar as compras tomando o cuidado de deixar suficiente espaço


livre, recostou-se no capo e olhou ao redor.
O vasto estacionamento estava quase vazio. Era curioso que uma cidade tão
pequena tivesse um supermercado daquele porte, pensou. Na verdade, Walton era um
lugar especial. Estava lá havia apenas algumas horas e sentia uma familiaridade re-
confortante, como se nada de mal pudesse lhe acontecer ali.
Porém, a hospitalidade dos moradores a deixava apreensiva. Estava habituada à
frieza impessoal das cidades grandes, onde podia se recolher a seu confortável
anonimato. Esperava apenas que sua verdadeira identidade ficasse preservada. Não
podia correr o risco de ser descoberta!
Suzanne ajeitou os óculos sobre o nariz. Que perigo poderia estar correndo?
Pensou. Dificilmente alguém daquele vilarejo teria ouvido falar sobre ela.
Um grupo de três adolescentes parcialmente escondidos por um caminhão de
entrega chamou sua atenção. Reconheceu Maddie, que se esquivou para detrás da
carroceria quando seus olhares se cruzaram. O que estaria fazendo ali?
Àquela hora do dia, deveria estar na escola... Intrigada, aproximou-se e
percebeu que tentava esconder um cigarro, sem conseguir disfarçar a nuvem de
fumaça ao redor dela.
— Vamos, Brittany — O rapaz disse, segurando a namorada pelo braço.
Maddie os encorajou com um gesto quase imperceptível e fez menção de segui-
los.
— Não é preciso fugir — Suzanne tocou-a de leve no ombro — Se você me
prometer que vai voltar para a escola agora, não direi a ninguém que a vi fumando.
— Por quê?
— Bem, você está perdendo a aula e sentirá falta do que poderia ter aprendido
hoje quando estiver na universidade.
— E por que não dirá nada?
— Por você me fazer lembrar de alguém...
Maddie encarou-a tentando manter o ar de desafio, mas seus lábios se curvaram
em um sorriso que se transformou em uma sonora risada.
— Do que está rindo? — Suzanne indagou confusa.
— Você roubou esses óculos do supermercado?

38
Depois da Chuva Karen White

Só então percebeu que não havia retirado a etiqueta com o preço e levou a mão
à boca ao constatar que saíra sem pagá-los.
— Meu Deus! Preciso voltar antes que...
— Não se preocupe, ninguém vai prendê-la por causa disso — Maddie
tranqüilizou-a, contendo o riso — Tia Lucinda veio com você?
Meneou a cabeça em afirmativa e apontou para o cigarro.
— Você não sabe que isso vicia?
Maddie ergueu os ombros com desdém, mas não sem que Suzanne notasse a
insegurança estampada nos olhos verdes. Analisou-a discretamente, reconhecendo as
necessidades que ela própria tivera naquela idade.
— Você não acha que seria melhor que estivesse na escola em vez de ficar
enchendo seus pulmões de fumaça?
— Está bem! — Atirou o cigarro no chão e apagou-o com o pé — Você não vai
contar nada para o meu pai, não é?
— Meus lábios estão selados! — E cruzou os dedos sob a boca. — E agora vá,
antes que eu mude de idéia.
Maddie deu dois passos e se voltou.
— Obrigada — Murmurou por sobre o ombro antes de desaparecer.
Suzanne observou-a, incerta sobre o que acabara de prometer. Com um suspiro,
retirou os óculos de sol e se preparou para voltar ao mundo florescente do
supermercado Piggly Wiggly:
— E, então, o que decidiu? — Lucinda indagou, depois de deixar as crianças em
casa.
Suzanne desviou a atenção da paisagem para ela, que mantinha os olhos fixos na
avenida que levava a sua casa.
— Sobre o quê?
— Ora, sobre minha proposta de emprego! — Exclamou como se fosse óbvio —
Acabei de receber uma encomenda de lingeries italiana e estou sem tempo para
catalogá-las. Cordella, filha de Brunelle Thompson, tem cuidado de tudo para mim, mas
ela é muito jovem e inexperiente. Preciso de alguém que possa assumir todas as
responsabilidades, especialmente depois de ter ficado ausente por duas semanas.
— Mas Lucinda, eu...

39
Depois da Chuva Karen White

— Oh, você não imagina o estado deplorável em que se encontra a casa de Joe!
— Interrompeu-a com exagerada dramaticidade. — Vou precisar de um século para
colocá-la em ordem! Não que eu esteja reclamando, claro! Quando me propôs
pagamento para que eu cuidasse da casa e das crianças, fiquei sem falar com ele por
dois dias!
— Entendo seus motivos, mas não posso...
— Além disso, preciso cuidar de minha própria casa — Continuou, como se
estivesse pensando alto — Seria perfeito se você aceitasse!
— E voltou-se para ela, fazendo com que os cílios postiços se agitassem
sedutoramente.
— O que exatamente eu teria de fazer? — Suzanne indagou, sem acreditar no
que acabara de dizer. Devia estar louca por considerar a possibilidade de aceitar
aquele emprego!
— Bem, é preciso catalogar a mercadoria que chega, arrumá-la nas prateleiras e
atender os clientes, além de cuidar do movimento do caixa.
— Impossível! — Sentenciou, resistindo à tentação de aceitar.
— Por quê? Você é uma jovem muito inteligente e, embora pareça não perceber,
tem o dom natural de atrair pessoas.
— Eu?! — Chocada, levou as mãos ao peito e arregalou os olhos — Lucinda, eu
nunca tive facilidade em me relacionar! Sou calada, tímida e introvertida.
— Meu bem, é exatamente por isso que desperta confiança, você tem o dom de
saber ouvir.
Suzanne refletiu por alguns minutos. Nunca alguém se dirigira a ela com tanta
compreensão e ternura, valorizando aspectos que considerava negativos como se
fossem virtudes grandiosas.
— Está bem — Ouviu-se dizer, concluindo que não havia mais dúvida alguma de
que perdera a sanidade mental por completo — Quando começo?
— Hoje mesmo! Vamos para a butique assim que deixarmos as compras em casa
— Informou com naturalidade, como se a resposta não a surpreendesse — Eu já disse,
meu bem... Talvez fique em Walton mais tempo do que imagina!
Joe olhou ao redor para ter certeza de que não havia ninguém por perto e só
então abriu aporta da Butique Lucinda's Lingerie e pestanejou, tentando ajustar os
olhos à luz avermelhada do interior da loja, decorrente do colorido exuberante das
paredes

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Depois da Chuva Karen White

— Em que posso ajudá-lo? — A voz sensual, ligeiramente rouca, provocou-lhe um


arrepio.
Estreitou os olhos e avistou Suzanne Paris com uma lingerie preta nas mãos, por
detrás do balcão do fundo.
— Eu... Ah... Estou procurando por Lucinda.
— Ela precisou sair para resolver alguns assuntos antes de buscar Amanda e
Harry na creche.
— E o que você está fazendo aqui?
— Ora, o que lhe parece? Estou trabalhando!
— Trabalhando? — Perplexo, aproximou-se um passo e a fitou — E desde quando
trabalha aqui?
— Bem, vejamos... — Suzanne franziu o cenho, como estivesse fazendo um
grande esforço mental. — Cheguei Walton anteontem à noite... Humm... Isso mesmo,
desde ontem! Comecei ontem à tarde, para ser mais precisa. Isso o incômoda?
— O que você faz ou deixa de fazer não é da minha conta — Resmungou,
tentando aparentar indiferença.
— Quando Lucinda vai voltar?
— Não faço a menor idéia.
Joe abaixou os olhos, tentando olhar para qualquer coisa que não fosse a sensual
peça de renda em contato com as mãos delicadas. Como se percebesse seu
desconforto, Suzanne guardou-a na prateleira atrás de si.
— Posso ajudá-lo em alguma coisa? — indagou com expressão séria e
profissional.
— Não, obrigado. Vou esperar lá fora.
— Está procurando alguma peça para você? — Ouviu-a indagar assim que lhe deu
as costas para sair.
— Por Deus, não! — Chocado, meneou a cabeça com vigor. — É para minha filha,
Sarah Francês. Ela precisa de um...
Calou-se ao sentir uma onda de rubor fazer seu rosto queimar. Até as palavras
mais banais pareciam adquirir colorido erótico diante daquela mulher!
— Sarah Francês... Sim, eu me lembro dela. Sua filha precisa de um sutiã, não é?
Joe fitou-a, esperando encontrar um brilho de diversão nos olhos castanhos. No
entanto, para sua surpresa, ela o encarava com expressão acolhedora.
41
Depois da Chuva Karen White

— Que número ela usa?


— Não sei. Pensei em levar alguns modelos para casa.
— Não seria mais fácil trazê-la até a loja? Lucinda tem uma coleção completa de
tamanhos e estilos que combinam com qualquer garota.
Ele abaixou os olhos. Não se sentia tão constrangido desde o quinto ano do
colégio, quando fora apanhado no banheiro das meninas pela sra. Crandall. Olhou para o
teto, fingindo refletir.
— Sarah ainda é uma garotinha. Ficaria muito constrangida em vir aqui.
— Exatamente como o pai?
Irritado com a provocação, abriu a boca para responder, mas não encontrou
palavras.
— Esqueça! Vou esperar lá fora.
O toque suave e quente da mão delicada em seu ombro o impediu de sair. Talvez
fosse apenas por um fenômeno físico como estática, mas Joe definitivamente foi
atingindo por uma descarga elétrica.
— Ouça, sinto muito pelo que disse. Não pretendia constrangê-lo — Ela estava
tão perto que podia sentir o hálito dela acariciar-lhe o rosto — Na verdade, eu... Eu
acho muito bonito o que está fazendo. Venha, vou apanhar algumas peças para que
mostre a sua filha. Traga de volta as que não agradarem.
Ao dizer isso, Suzanne se dirigiu para uma prateleira que continha modelos
diversificados.
— Você tem alguma idéia sobre o tamanho? — perguntou por sobre o ombro.
— Não.
Os olhares se cruzaram por um momento, e Joe sentiu o rosto se tingir de
vermelho mais uma vez.
— Bem, vejamos... Eu a vi apenas no dia em que cheguei, mas creio que vou
encontrar o número certo.
Enquanto esperava, Joe se pôs a estudar a silhueta delgada e feminina. Os
cabelos presos no alto da cabeça expunham a delicada linha do pescoço. Sem que
percebesse, seus lábios se curvaram em um sorriso de aprovação ao acariciar com os
olhos todas as curvas do corpo bem-feito.
Suzanne se virou com algumas peças na mão e franziu o cenho ao vê-lo sorrindo.

42
Depois da Chuva Karen White

— Fico feliz que esteja se divertindo — Censurou, guardando os modelos que


selecionara em uma sacola.
A voz sensual transportou-o de volta à realidade. Com um sobressalto, sentiu-se
tolo como um adolescente apanhado em flagrante.
— É que você está sendo muito gentil por me ajudar, srta. Paris.
— Não estou fazendo nada além de minha obrigação — Estendeu a sacola na
direção dele. — Acho que Sarah Francês é uma garota de sorte. Honestamente, não
acreditava que esse tipo de pai ainda existisse nos dias de hoje.
Joe ficou calado por um momento. Apertou os lábios, procurando decifrar algum
vestígio de ironia no comentário.
Estava a ponto de responder quando a porta da frente se abriu.
— Olá para todos! — Lucinda entrou, seguida por Amanda e Harry.
— Papai! — as crianças gritaram em coro, correndo na direção dele.
Joe se abaixou e abriu os braços para receber o abraço dos filhos. Pôs-se de
pé, segurando o caçula no colo.
Dentre todos os seus filhos, aquele era o que mais se parecia com Harriet. Não
era apenas a cor dos cabelos ou dos olhos. A semelhança revelava-se no olhar profundo
e no sorriso que parecia iluminar os recantos mais escuros de seu coração. Uma dor
profunda oprimiu seu peito ao pensar que seu filho não teria lembranças da
maravilhosa mãe que o trouxera à luz.
— Papai, tenho um presente para você!
Colocou-o no chão e apanhou a folha amassada que ele guardara no bolso da
calça.
— Ficou lindo, filho! — Sorriu ao ver os rabiscos coloridos que ocupavam a folha.
— Vou colocar em uma moldura para pendurar na parede do meu escritório, se você
não se importar.
Harry respondeu com um sorriso que o comoveu. Amanda, que se agarrara à
barra de sua calça, retirou uma folha da mochila que trazia às costas.
— Veja, papai, eu fiz isso para você.
Joe analisou atentamente a obra de arte com várias figuras geométricas azuis,
verdes e vermelhas que se assemelhava a uma casa. Quando se inclinou para agradecer
à filha, percebeu que ela não estava mais ao lado dele.
Aproximara-se de Suzanne, que conversava com Lucinda ao lado do balcão.

43
Depois da Chuva Karen White

— E fiz este para você!


Joe prendeu a respiração ao observar a surpresa nos olhos claros. Por um
momento, julgou que ela fosse recusar a folha estendida na direção dela. Para seu
alívio, Suzanne apanhou-a e analisou o desenho sem dizer nada.
Receando que a filha ficasse magoada com a reação fria e indiferente, fez
menção de se aproximar, mas se conteve ao ver o sorriso angelical no rostinho
inocente.
— É para colar na sua geladeira. Você não tem nenhuma fotografia dos seus
filhos para enfeitar a cozinha...
— Obrigada. — Suzanne guardou-o na bolsa e se dirigiu a Lucinda — Estarei aqui
às oito horas para começarmos a catalogar o estoque.
Com o olhar fixo no chão, saiu quase correndo da loja. Esperou que a porta da
frente estivesse quase se fechando atrás de si para murmurar um breve "até amanhã"
por sobre o ombro.
Joe se voltou para Amanda, pronto para confortar as lágrimas que tinha certeza
de que se seguiriam. Para sua surpresa, encontrou-a olhando para a porta com
expressão compenetrada.
— Acho que ela nunca recebeu um desenho antes. Deve ter ido para casa pensar
sobre isso.
Reconhecendo as próprias palavras espelhando-se na filha, Joe sorriu ao
considerar sobre a sabedoria das crianças.
Suzanne caminhou apressadamente pela calçada, sem prestar atenção às
pessoas que passavam por ela. Precisava alcançar a privacidade de seu quarto antes de
começar a chorar. Não dava vazão ao pranto desde que tinha catorze anos e receava
que, se abrisse as comportas do coração, correria o risco de ser tragada em um mar
de lágrimas.
Fez o trajeto da loja até a casa em tempo recorde. Com a respiração ofegante,
abriu o portão e fez uma pausa para encher os pulmões com o ar fresco do entardecer.
Sentindo que não poderia mais conter o pranto, subiu correndo os degraus para o piso
superior e caiu na cama, deixando que as lágrimas fluíssem livremente.
Quando sentiu que estava preparada, sentou-se e se pôs a examinar o desenho
que recebera de Amanda.
Em tons coloridos e vibrantes, ela esboçara uma casa com um jardim florido e
uma chaminé de onde saía uma espessa nuvem de fumaça. Eram apenas traços, mas a

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Depois da Chuva Karen White

vida parecia pulsar ali, como se aquela casa guardasse em seu interior todo o amor de
um verdadeiro lar.
O pranto deu lugar a uma acolhedora sensação de alegria e, quando percebeu,
estava sorrindo. Pulou da cama e decidiu colar a folha na porta da geladeira naquele
mesmo instante, tomando apenas o cuidado de prendê-la de forma que não se rasgasse
quando fosse retirado em sua partida.

Capítulo V

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Depois da Chuva Karen White

Suzanne trancou a porta da butique enquanto equilibrava a embalagem com o


que sobrara de seu almoço no Café Dixie Diner. À caminho de casa, riu consigo mesma
ao se lembrar de que Lucinda tinha razão quando dissera que ficaria em Walton mais
tempo do que havia imaginado. Estipulara o limite de uma semana para sua estada, e já
haviam se passado quinze dias!
Estabelecera uma rotina tranqüila e agradável. Quando os suprimentos que
comprara no supermercado acabaram, optara por fazer as refeições no Café Dixie
Diner, o que possibilitara conhecer a metade da população do vilarejo. Dedicava-se ao
trabalho na butique até as cinco horas da tarde, onde ficara conhecendo a outra
metade da população.
Suzanne dobrou a esquina e seguiu pela rua que levava à casa, refletindo sobre a
mudança que sua vida sofrerá em tão pouco tempo. Quase podia se sentir parte da
vida tranqüila e simples daquela cidade, onde a amizade e a solidariedade pareciam ser
o traço mais marcante de seus moradores. Estar lá era como ter aberto um hiato no
tempo, deixando o passado e o futuro para fora dali. Porém, não seria para sempre...
Estava mergulhada em pensamentos quando ouviu seu nome ser chamado.
Voltou-se e viu Brunelle Thompson correndo pela calçada com uma embalagem de papel
alumínio nas mãos.
— Suzanne, espere! — Ofegante, parou à frente dela e enxugou a testa banhada
por gotículas de suor. — Este é o último pedaço de torta de pêra e não quero vendê-la
a Stinky Harden — Estendeu-lhe a embalagem — Acho que você deve abusar das
calorias mais do que ele.
— Obrigada, Brunelle — Sorriu, percebendo que provavelmente era um elogio —
Você colocou na minha conta?
— Não. Meu pagamento será o olhar de decepção naquele rosto gorducho quando
descobrir que sua sobremesa favorita acabou!
Ambas riram e Suzanne acomodou a embalagem em cima da caixa maior que
continha seu jantar.
— Até amanhã, Suzanne.
— Até amanhã. E obrigada.
A simpática senhora acenou por sobre o ombro.
Feliz com a gentileza de Brunelle, Suzanne apressou o passo para chegar em
casa. Passou por uma das casas que mais gostava, com um jardim bem-cuidado e
roseiras em flor. Sentada à varanda, uma senhora idosa lia um romance com um xale
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Depois da Chuva Karen White

cor-de-rosa sobre os ombros todas as tardes, qualquer que fosse a temperatura do


dia, e acenava para Suzanne como se a conhecesse de longa data.
Quando chegou ao portão da casa, surpreendeu-se ao ver Maddie Warner
sentada no degrau da varanda.
— Olá, srta. Paris. Antes que você pergunte, não tenho aula hoje e não estou
fazendo nada de ilegal.
— Não pensei nada disso. — Suzanne fechou o portão atrás de si e encarou-a —
Afinal, já passa das cinco horas da tarde e, a menos que tenha alguma atividade
extraclasse, não é seu horário de estar na escola. Quanto a estar fazendo algo, ilegal,
creio que já é bem crescida para saber as implicações de seus atos.
Maddie afastou-se e pousou a mão no degrau, convidando-a para se sentar a seu
lado.
— Humm... O cheiro está bom! — Exclamou, indicando com o queixo as
embalagens de comida. — O que é?
— Omelete de queijo e torta de pêra — Suzanne colocou-as, no degrau a seu
lado — É o meu jantar.
— Você come só uma omelete no jantar? — Arregalou os olhos, espantada.
— Não. Comi a metade no almoço e não consegui terminar.
— Puxa! É por isso que seu corpo é perfeito! — Exclamou, meneando à cabeça. —
Tia Lucinda nos obriga a comer feijão no jantar. Você tem muita sorte por morar
sozinha e comer o que quiser! Deve ser maravilhoso!
Suzanne contemplou a jovem, imaginando que se sentava para jantar com a
família todas as noites de sua vida.
Ergueu os olhos quando duas senhoras passaram pela calçada e acenaram
amigavelmente. Respondeu ao aceno e voltou-se para Maddie.
— Por falar em jantar, você não deveria estar em casa a uma hora dessas?
— Costumamos jantar às oito horas. Vim até aqui porque tenho algo para lhe
mostrar. Além disso, eu queria... Bem... — Abaixou os olhos para os pés, hesitando em
prosseguir. — Queria lhe agradecer por não contar nada ao meu pai quando me viu
fumando e matando aula. Ele seria capaz de me colocar em um colégio interno se
soubesse!
Suzanne estudou o rosto bem-feito e a estrutura sólida dos ombros. As mãos,
com dedos longos, eram delicadas e femininas. O único detalhe que contrastava com a
suavidade do conjunto eram as unhas pintadas de preto, típicas de adolescentes.

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Depois da Chuva Karen White

Porém, Maddie possuía alguma coisa que ia além das mãos bonitas e dos olhos
encantadores. Havia um apelo quase imperceptível no brilho daquele olhar, que
revelava medo e solidão.
Sentia-se tocada por aquela jovem, talvez porque visse a mesma sombra em seu
próprio rosto cada vez que se olhava no espelho.
— Por que fez aquilo? — Indagou por fim. — Seu pai poderia descobrir
facilmente, já que também dá aulas na escola.
Maddie olhou para as sandálias, e Suzanne notou que as unhas do pé também
estavam pintadas com o mesmo esmalte preto das mãos.
— Queria apenas dar uma volta e ficar sozinha... Você nunca fez isso quando
estava na escola?
— Claro. Creio que todos já fizeram — Disse devagar, tentando encontrar as
palavras para explicar algo que nunca haviam lhe perguntado antes. — Também gosto
de ficar sozinha, mas faço isso porque não estou acostumada a viver rodeada de muita
gente. Creio que isso também tem alguma relação com a criatividade.
— É mesmo? — Maddie a fitou, fascinada por ser compreendida.
— Sim. Pessoas mais criativas gostam de ter seu próprio espaço. O problema é
encontrar o momento certo para se isolar.
— Perder aula é contraproducente — Apanhou uma folha da primavera que subia
pela grade da varanda — E, então, o que trouxe para me mostrar?
A jovem colocou a bolsa sobre o colo, timidamente.
— No dia em que você chegou e me contou que era fotógrafa freelance, fiquei
pensando que... — Hesitante, retirou um envelope da bolsa — Bem, também gosto de
fotografia. Quero dizer, sei que não sou boa, embora minha professora de arte diga
que sou, e gostaria de ouvir uma segunda opinião.
— Deixe-me ver o material que trouxe.
— Está bem, se você não se importar... Dê uma olhada e me diga se estarei
sendo ridícula por mostrar estas fotografias para alguém. Por favor, seja sincera.
Suzanne abriu um envelope, sorrindo ao ver a expressão de ansiedade no rosto
da jovem.
— Claro, serei absolutamente sincera — Garantiu, retirando um maço de
fotografias em branco-e-preto.
Com expressão séria, pôs-se a avaliá-las. As primeiras eram comuns, com pouca
noção de técnicas de iluminação e foco. Porém, à medida que as examinava, pôde
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Depois da Chuva Karen White

perceber o talento natural de Maddie. Deteve-se em uma em particular e estudou-a


por um longo momento, prendendo a respiração.
A fotografia retratava uma mesa de jantar posta para oito pessoas. Apenas
sete lugares haviam sido ocupados e os rostos estavam deliberadamente virados,
escondendo a identidade dos ocupantes. O foco recaía sobre a cadeira vazia,
ressaltando a ausência de um membro da família.
As demais fotografias revelavam uma profunda sensibilidade, especialmente por
se tratar de uma adolescente. Era como se houvesse recebido um dom especial para
suprir a falta da mãe.
— Estão muito boas. Muito, muito boas! — Exclamou, sem conseguir esconder a
emoção — Sua professora de arte lhe ensinou a fotografar?
— Bem, foi minha mãe quem me deu minha primeira câmera e me mostrou como
usá-la. Ela também gostava de tirar fotografias. Havia começado a me ensinar algumas
técnicas quando...
Ao notar a emoção profunda que a impediu de terminar a frase, Suzanne
abaixou os olhos. Nunca tivera o desejo de ajudar alguém, de oferecer algo de si sem
esperar receber nada em troca, mas havia alguma coisa na seriedade silenciosa e
verdadeira daquela jovem garota que tocou seu coração.
Talvez se identificasse com a solidão que via nos olhos verdes... A verdade era
que, de alguma forma, sentia-se ligada a ela por um laço invisível.
Encarou os belos olhos, brilhantes de expectativa, e sorriu.
— Se quiser, posso ensinar-lhe algumas técnicas que conheço. As fotografias
estão maravilhosas, mas creio que você poderia praticar um pouco mais com luz e
sombra. Posso lhe mostrar algumas técnicas que você provavelmente não vai aprender
na escola. — Ajeitou a pilha de fotografias e colocou-as no envelope, estendendo-o
para Maddie — Que tal se nos encontrássemos duas vezes por semana, depois do
jantar? Isto é, se seu pai concordar, é claro!
Sorriu ao ver a explosão de alegria que sua oferta provocou. Maddie deu um pulo
e abraçou-a, fazendo com que o envelope caísse e espalhasse seu conteúdo pelo chão.
— Obrigada! Sei que meu pai vai concordar, mas vou perguntar assim mesmo —
Sem esconder o entusiasmo, levantou-se e se pôs a recolher as fotografias — Podemos
começar amanhã? Tenho de levar Sarah Francês ao treino de basquete, mas posso
estar aqui por volta das sete horas da noite...
— Claro! Para mim, está ótimo — Suzanne disse sem conter o sorriso — Mas não
se esqueça de pedir a seu pai primeiro.

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Depois da Chuva Karen White

— Está bem. Até amanhã!


E correu para a calçada, tão entusiasmada que se esqueceu do andar elegante e
afetado que parecia ser tão popular naquela faixa etária. Assim que alcançou o portão,
Suzanne chamou-a.
— Há mais uma condição: Se você fumar apenas um cigarro, o acordo está
terminado, certo?
Maddie se voltou e colocou as mãos na cintura, voltando a assumir a ilusória
auto-suficiência tipicamente adolescente.
— Eu não fumo todos os dias e, mesmo que fumasse, não ficaria viciada!
Suzanne meneou a cabeça, tentando esconder o sorriso ao se lembrar de quando
a vira com o rosto vermelho e os olhos lacrimejantes quase sufocada pela fumaça.
— Você ainda é muito jovem e o cigarro é um vício, por mais que diga que não vai
ficar dependente. E tenho problemas com qualquer coisa que faça alguém perder o
controle. Não fume.
Maddie jogou uma mecha de cabelo para trás do ombro e empinou o nariz.
— Está bem. Até amanhã. — Caminhou mais alguns passos antes de dizer sobre o
ombro: — Obrigada.
Suzanne permaneceu onde estava por algum tempo, refletindo se ela própria já
demonstrara tanto entusiasmo alguma vez. Talvez sim, concluiu. Porém, depois de
tantas decepções, aprendera a conter as expectativas e a reprimir quaisquer ilusões
que a vida pudesse suscitar. Seus sonhos e fantasias faziam parte de um passado que
ficara trancado em seu coração.
Com um movimento abrupto, apanhou as embalagens com a refeição e entrou na
casa, tentando ignorar a ponta de tristeza que oprimia seu peito ao pensar na solidão
que a esperava.
Joe prendeu a respiração ao entrar no Café Dixie Diner e identificar os cabelos
avermelhados em meio ao ambiente repleto da hora do almoço. Acabara de passar na
butique à procura de Suzanne e fora informado de que poderia encontrá-la ali.
No caminho, desejara secretamente ter chegado tarde demais, lembrando-se
de como ficara embaraçado quando fora comprar lingerie para Sarah Francês. A
tarefa em si já era constrangedora o bastante, mas ter de escolher lingeries diante
da mulher mais atraente que já conhecera fora uma experiência perturbadora.
Recostou-se no balcão por alguns instantes, tentando se preparar para encará-
la, e avaliou-a discretamente sem que ela percebesse sua presença.

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Depois da Chuva Karen White

O perfil perfeito revelava traços clássicos e marcantes. Notou as maçãs do


rosto salientes e o queixo angular, o contorno dos lábios carnudos e sensuais... Mas
havia algo naquela mulher que transcendia à beleza física. Ela parecia guardar uma
relíquia em seu coração, e o mais estranho era que ela própria parecia não se dar conta
de tal fato.
Havia um mistério que permanecia intocado... Entretanto, duvidava que
escondesse algum fato que comprometesse seu caráter. Bastava olhar para os olhos
castanho-dourados para ter certeza de sua honestidade.
Naquele momento, ela saboreava um sanduíche enquanto lia um periódico de
Atlanta e parecia vestir sua solidão como uma capa que a isolava do mundo.
Tal noção o deixou ainda mais relutante em se aproximar. Porém, precisava falar
com ela mais cedo ou mais tarde, concluiu, enchendo-se de coragem ao caminhar na
direção da mesa.
— Boa tarde, srta. Paris — Saudou-a, apoiando as mãos na cadeira vazia à
frente de Suzanne. — Posso me sentar?
Ela o fitou surpresa, fazendo-o crer que se levantaria e o deixaria sozinho.
Depois de alguns segundos que pareceram uma eternidade, meneou a cabeça e indicou
que se sentasse.
Joe obedeceu e cruzou as mãos diante de si, a mão direita brincando com a
aliança de casamento no dedo anular esquerdo.
— Preciso falar com você — disse em tom grave, recriminando-se no mesmo
instante por agir como se estivesse a ponto de anunciar uma sentença de prisão.
O olhar de pânico que obscureceu os olhos castanho-dourados deixou-o
intrigado. Observou-a fechar o jornal para colocá-lo na cadeira a seu lado sem erguer
os olhos para fitá-lo.
Para seu alívio, Brunelle se aproximou com uma jarra de chá gelado, quebrando a
tensão que pairava no ar.
— Olá, Joe. — A garçonete sorriu e fez menção de encher o copo vazio sobre a
mesa — Aceita mais um pouco, srta. Paris?
— Sim, por favor. Sem açúcar.
— Sem açúcar? — Joe ecoou espantado.
— Não estou acostumada a tomar chá adoçado, embora tenha notado que todos
aqui parecem gostar.

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Depois da Chuva Karen White

— Definitivamente, você não é desta região. — Joe comentou ao ver a garçonete


se voltar para a mesa ao lado.
— Nunca disse que era.
— É verdade — Admitiu com relutância — Mas também nunca revelou de onde
veio.
— Basta que saiba que costumo me mudar com freqüência — Sentenciou,
sorvendo um gole da bebida — Não há mais nada a dizer.
Uma sombra obscureceu mais uma vez o brilho dos olhos misteriosos, fazendo-a
parecer vulnerável e indefesa. O que havia naquela mulher que o perturbava tanto, a
ponto de sentir-se como um adolescente inseguro?
Irritado com sua própria vulnerabilidade, Joe se inquietou na cadeira. Não sabia
nem sequer se gostava dela, e agia como um idiota sempre que ela estava por perto!
— Ouça, não estou aqui para fazer um interrogatório — Disse por fim,
suavizando o tom de voz — Gostaria de conversar com você sobre Maddie.
— Por quê? Ela também precisa de um sutiã?
Uma risada involuntária escapou dos lábios de Joe quando percebeu o humor
sutil escondido nas palavras.
— Não. Creio que ela já pode cuidar disso sozinha, mas obrigado por perguntar.
— Respirou fundo, sentindo-se um pouco mais relaxado — É sobre sua oferta de lhe
ensinar técnicas de fotografia. Não estou certo se será produtivo que ela tenha duas
aulas por semana.
Suzanne se empinou na cadeira e o fitou pela primeira vez.
— Mesmo que você se oponha às aulas, poderia considerar a possibilidade de não
tolher o dom natural de Maddie — Fez uma pausa para respirar, contendo a indignação.
— Gostaria que soubesse que sua filha tem um talento incrível para a fotografia e terá
um futuro brilhante se puder se aprimorar. Ficarei muito decepcionada se...
— Ei, espere um pouco! — interrompeu, com expressão severa — Eu não disse
que ela não deve ter aulas!
— Bem, você... Você disse que não tinha certeza de que...
— Na verdade, vim até aqui para lhe agradecer e dizer que duas aulas por
semana não são suficientes. Nunca a vi tão animada com algum projeto e creio que
deveria aproveitar a chance de ter aulas com uma profissional.

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Depois da Chuva Karen White

Suzanne fitou-o com estranheza, como se estivesse tentando entender uma


língua estranha. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas estava tão surpresa com a
revelação que não encontrou palavras.
— Não sei o que você lhe disse, mas... Bem, é a primeira vez que ela se anima
com alguma coisa desde que perdeu a mãe.
— É mesmo? — Ergueu os olhos e viu a sombra de tristeza obscurecer o brilho
dos olhos aveludados — Nesse caso, fico feliz por poder ajudá-la. Vou conversar com
ela sobre a possibilidade de aumentarmos o número de aulas semanais.
— Ótimo. Então, só resta acertarmos o pagamento.
— Pagamento? — Suzanne fitou-o com um brilho de indignação nos olhos — Não
estou fazendo isso por dinheiro, sr. Warner, e sim por gratificação pessoal. Para mim,
é um prazer poder compartilhar o único assunto de que realmente entendo com alguém
que demonstra interesse verdadeiro — Com um gesto discreto, pediu a conta e se
endireitou na cadeira, recusando-se a permitir que qualquer emoção a tocasse.
Permaneceram em silêncio até que Brunelle trouxesse a nota. Quando fez
menção de apanhá-la, Joe a impediu com um toque que a fez retrair o braço como se
houvesse levado um choque.
— Vou pagar meu almoço — Comunicou, tentando alcançar o papel estendido no
ar.
— Por favor, permita que eu pague. É apenas uma forma de lhe agradecer pelo
que está fazendo por Maddie — Joe retirou a carteira e colocou dez dólares sobre a
mesa — Aliás, devo admitir que estou surpreso. Pensei que você não gostasse de
crianças.
Os olhares se encontraram por um longo momento.
— Eu nunca disse isso! — Reclamou — Não acha que seria melhor se procurasse
as respostas em vez de tirar conclusões precipitadas?
— Sinto muito, não quis ofendê-la — Joe se desculpou e levantou-se da mesa —
Eu apenas achei que...
A frase foi interrompida quando uma discussão acalorada atrás deles se fez
ouvir. Ele girou o corpo para deparar com Hall Newcomb, editor-chefe do jornal
Sentinela de Walton, ao lado de Stinky Harden.
— Olá, prefeito! — O tom arrogante fez o sangue de Joe ferver nas veias —
Creio que devo chamá-lo assim enquanto ainda está no cargo. Não sei como ficará
depois das eleições...

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Depois da Chuva Karen White

O homem corpulento deu as costas para seu interlocutor, ignorando-o, e se


aproximou da mesa com o olhar de cobiça pousado em Suzanne.
— Creio que não tivemos o prazer de sermos apresentados — Tomou-lhe a mão e
cumprimentou-a, sem lhe dar chance de recusar — Sou Stinky Harden, futuro
prefeito desta cidade.
— Suzanne Paris — ela disse em tom neutro, afastando a mão — Prazer em
conhecê-lo.
— Ouvi dizer que você é nova na cidade, mas não consegui descobrir de onde é...
— Um sorriso malicioso curvou os lábios finos — Sempre me considerei um expert em
reconhecer sotaques, mas tenho de admitir que você me deixou sem a menor pista.
Joe notou a indecisão de Suzanne e fez um sinal discreto para que tivesse
cuidado. Se tivesse algo a esconder, seu maior, oponente não teria o menor escrúpulo
em vasculhar seu passado até descobrir.
— Morei em muitas cidades e não posso dizer exatamente de onde sou —
Levantou-se e ajeitou a bolsa no ombro, em um esforço evidente de encerrar a
conversa.
— Como conheceu o prefeito Warner? — insistiu ele — São amigos antigos?
— Não, acabamos de nos conhecer. — Joe interrompeu, olhando ostensivamente
no relógio de pulso — Foi um prazer vê-lo novamente, Stinky.
— Até logo, prefeito — Voltou-se para Suzanne e tomou-lhe as mãos para
pousar um beijo — Gostaria de ter oportunidade de lhe dar as boas-vindas, srta. Paris.
— Obrigada, é muito gentil de sua parte — Balbuciou, retirando a mão
abruptamente.
Ao ver o olhar lascivo deslizando para o busto sensual, Joe conteve o impulso de
esmurrá-lo.
— Na verdade, há uma ótima oportunidade para que conheça todos os
moradores da cidade — Stinky disse de súbito, como se a idéia houvesse lhe ocorrido
naquele momento — O baile anual em homenagem ao fundador da cidade será no
próximo sábado. Ficarei lisonjeado em ser seu acompanhante.
Antes que seu cérebro pudesse registrar o que estava prestes a fazer, Joe
passou o braço possessivo pelos ombros de Suzanne e puxou-a para perto de si.
— Infelizmente, ela não poderá aceitar. A srta. Paris já se comprometeu em ir
comigo.

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Depois da Chuva Karen White

Ao dizer isso, conduziu-a para a saída sem lhe dar chance de reagir e fechou a
porta atrás de si.

Capítulo VI

Suzanne repeliu o braço possessivo assim que se viu livre dos olhares curiosos
dos freqüentadores do restaurante.
— Você tem muita coragem para me tratar como se eu fosse uma criança
indefesa! — Vociferou, ajustando a alça da bolsa no ombro. — Da próxima vez, deixe-
me fora de suas disputas particulares.
Endireitou os ombros e começou a caminhar na direção da loja de Lucinda.
— Espere! — Com passos largos, Joe alcançou-a — Sinto muito. Fui um tanto
infantil, admito, mas acontece que Stinky consegue despertar o pior em mim.
Suzanne tentou seguir em frente, mas seu caminho foi bloqueado.
— Aposto que vai me agradecer se for ao baile comigo.
— E por que deveria agradecer-lhe?
— Por salvá-la de passar uma noite com Stinky Harden. Não posso falar por
experiência própria, mas ouvi de referências confiáveis que estar com ele é o mesmo
que ir para uma cirurgia sem anestesia. Acho que mesmo um só encontro deve ser
suficiente para levá-la ao coma.
Suzanne apertou os lábios, esforçando-se para não rir.
— Nesse caso, obrigada por me salvar. Agora, preciso voltar ao trabalho.
Deu dois passos em direção à loja e ouviu-o dizer:

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Depois da Chuva Karen White

— Vou apanhá-la no sábado às seis horas da tarde.


— Para quê? — Ela se voltou com um olhar fulminante.
— Para irmos ao baile em homenagem ao fundador da cidade.
— Não creio que seja possível. Já tenho compromisso com um livro e minha
cama.
Joe deu um passo à frente e fitou-a com expressão grave.
— Ouça, não estou ansioso para ir ao baile, mas agora simplesmente não posso
aparecer por lá sem você. Entenda, isso me comprometeria... Eu afirmei publicamente
que iríamos juntos.
— Não é problema meu! — Deu-lhe as costas e seguiu em frente.
— Certo, serei honesto. Maddie vai ao baile com um rapaz da universidade e
preciso vigiá-la. Se ela souber que você estará comigo, tenho certeza de que não fará
tantas objeções à minha presença.
Suzanne refletiu por alguns segundos.
— Não tenho nada para vestir — Apressou-se em dizer, aliviada por encontrar
uma desculpa razoável.
— Lucinda ou Cassie Parker devem ter alguma roupa que sirva em você. Não se
preocupe, vou falar com elas.
Vendo seu argumento desmoronar, apertou os lábios sem ter o que dizer. Joe
estava perto o bastante para que pudesse ver as finas rugas nos cantos dos olhos
castanhos. Definitivamente, eram marcas de expressão características do riso. Porem,
aquelas linhas eram como meros fantasmas de uma alegria que ficara no passado. Tal
constatação fez com que baixasse a guarda.
— Por que está me convidando?
— Por Maddie.
— Entendo... E se Lucinda a vigiasse?
Em um impulso, Joe tocou-a de leve no braço, mas afastou a mão abruptamente,
como se queimasse em brasa.
— Bem, não deixa de ser uma alternativa... — Fitou-a, deixando entrever o
esboço de um sorriso. — O problema é que ela está comprometida em acompanhar o
xerife Adams. Além disso, você poderá surpreender-se.
— Surpreender-me? — Arqueou uma sobrancelha, intrigada.
— Claro! Você não conta com a possibilidade de se divertir?
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Depois da Chuva Karen White

— Bem... Não deixa de ser uma alternativa — Imitou-o com bom humor. — E
você não terá de ficar com Stinky Harden e acabar na UTI ao final da noite —
Acrescentou, fazendo-o rir.
— Tem razão! Puxa, serei eternamente grato por isso! — O sorriso se
desmanchou, dando lugar a uma expressão séria — Maddie me disse que você é muito
solitária. Não será nada mal sair um pouco para se divertir.
— Eu apenas gosto de ficar sozinha.
Naquele momento, dois rapazes saíram do restaurante e pararam para
cumprimentá-lo. Joe trocou algumas palavras com eles e voltou-se para Suzanne.
— Não estou certo se realmente gosta de ficar sozinha. Talvez seja apenas o
fato de estar acostumada à solidão por não saber outra forma de agir.
Sem responder, ela seguiu para a loja e subiu os degraus. Ao abrir a porta, o
aroma de pétalas de rosas invadiu suas narinas.
— Vejo-a às seis horas da tarde no sábado — Ouviu-o dizer antes que a porta se
fechasse.
Maddie sentou-se na cadeira do salão de beleza Bitsy's Beauty, com Lucinda do
lado esquerdo e Cassie do direito. Sabia que jamais preencheria o vazio que assolava
seu coração, mas estar com as tias era o mais próximo que podia chegar para suprir a
falta da mãe.
Fechou os olhos quando o jato de água morna molhou seus cabelos e as mãos
hábeis da cabeleireira massagearam-lhe as têmporas.
—Você deveria mudar o corte dos cabelos, Maddie — Bitsy sugeriu, espalhando
uma generosa camada de xampu. — Um leve repicado valorizaria seu rosto. Você tem
traços delicados, como os de sua mãe.
— Tem razão, Bitsy — Cassie comentou, o sotaque melodioso do sul ligeiramente
alterado depois dos quinze anos que vivera em Nova York — Claro, você é linda com
qualquer estilo de cabelo, mas poderia tentar alguma coisa diferente — dirigiu-se à
sobrinha.
Ela abriu um olho para lançar um olhar fulminante à tia, que parecia duas vezes
maior pela gravidez adiantada. Fechou o olho quando Bitsy começou a enxaguar seus
cabelos.
— Minha mãe sempre gostou dos meus cabelos assim e não pretendo mudá-los.
Cassie acariciou o ventre roliço e começou a dizer alguma coisa quando Lucinda a
interrompeu.

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Depois da Chuva Karen White

— Olá, Suzanne! Cheguei a pensar que você não viria! Ela abaixou os olhos,
constrangida ao perceber que todos os olhares se voltaram para ela.
— Olá, srta. Paris! — Maddie cumprimentou-a enquanto seus cabelos eram
envolvidos por uma toalha — Tia Lu esteve preocupada com seu atraso.
Suzanne esboçou um sorriso, o máximo que sua timidez permitiu.
— É verdade — Cassie completou — Ela achou que você estivesse com receio de
colocar seus longos cabelos em risco.
— Não é nada disso — Assegurou, colocando a bolsa numa cadeira — Estava
terminando de verificar uma remessa que acabara de chegar quando as irmãs
Sedgewick entraram na loja e acabei demorando-me mais do que havia planejado.
— Oh, posso imaginar... Na última visita que fizeram, confesso que fiquei
chocada com o que escolheram! Acho que ainda não me recuperei completamente —
Lucinda voltou os olhos para o céu — Não posso acreditar naquelas duas! Que
compraram dessa vez?
Suzanne lançou um olhar em direção a Maddie, indicando que não poderia falar.
— Eu já tenho dezessete anos! — Resmungou ela — Gostaria que parassem de
me tratar como se fosse criança! E por falar em criança...
Indicou com o queixo a entrada de Knoxie, que acabara de sair da sala contígua
e trazia chumaços de algodão separando os dedos dos pés.
— Vejam o que Ornella fez para mim enquanto esperava por vocês! — Exclamou
orgulhosa, estendendo um pé à frente.
Todas se voltaram para admirar as unhas bem-feitas pintadas de cor-de-rosa
claro.
— Ficou ótimo! — Suzanne exclamou com sorriso genuíno.
— É a primeira vez que pinto as unhas — anunciou, retirando as sandálias — Não
ficou exagerado?
— Não, meu bem. Está perfeito. Todas as garotas gostam de cor-de-rosa,
exceto sua irmã Maddie — Lucinda disse, enviando um olhar crítico para a sobrinha
mais velha.
— Posso lhes pedir um favor? — Ela ergueu a cabeça, segurando a toalha
enrolada como um turbante. — Esqueçam que eu estou aqui, sim?
— E parem de amolar — Cassie completou, fazendo com que todas rissem.

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Depois da Chuva Karen White

Maddie fitou-a, evitando olhar para o imenso ventre. Sempre que a via, tentava
não pensar sobre o que seus tios haviam feito para que ela ficasse grávida e a simples
idéia de que seus pais haviam feito o mesmo para terem seis filhos parecia-lhe tão
obscena que sentia o rosto corar com o simples pensamento.
— Estou feliz por finalmente poder conhecê-la — Cassie disse quando Suzanne
se sentou na cadeira a seu lado — Já ouvi tanto a seu respeito que sinto que já a
conheço. Sou Cassie Parker, esposa de Sam.
Suzanne hesitou alguns segundos, relutante em aceitar a mão estendida. Alguma
coisa naquele olhar a fez estremecer, embora não soubesse precisar o que era.
— Prazer em conhecê-la — Apertou levemente a mão delicada e abaixou o rosto,
tentando fugir do olhar crítico.
— E eu sou Ornella, a manicura que vai deixar suas mãos ainda mais bonitas! — A
simpática senhora se apresentou saudando-a com um sorriso.
— Nós já nos encontramos antes? — Cassie franziu o cenho, curiosa.
— Creio que não — Meneou a cabeça com veemência — Tenho um rosto comum.
— Talvez... Eu podia jurar que já a encontrei antes. Costumo viajar muito a
negócios e pode ter sido em uma dessas ocasiões. De onde você é?
— De nenhum lugar — Abruptamente, Suzanne se voltou para Ornella — Creio
que você está muito ocupada agora acho melhor eu voltar mais tarde.
— Nem pense nisso! Estamos com o quadro de funcionários completo para
atender todas as clientes que querem se embelezar para o baile. Fique aqui mesmo
enquanto chamo Darl para lavar seus cabelos.
Suzanne suspirou resignada. Não lhe restava alternativa a não ser esperar.
Notou com ansiedade que Cassie continuava a analisá-la. Depois de alguns segundos que
lhe pareceram uma eternidade, ela inclinou o corpo e ia dizer alguma coisa quando seu
olhar recaiu sobre o pingente em forma de coração. Sentindo o sangue congelar nas
veias quando seus olhares se encontram, torcendo para que ninguém notasse seu
nervosismo.
— Tia Cass, olhe. É igual ao seu! — Maddie exclame quebrando o clima tenso que
pairava no ar.
Cassie esticou o pescoço e estreitou os olhos.
— Sim... É idêntico! — Tirou o avental que protegia os ombros e se aproximou. —
Fiquei com a gargantilha que pertenceu a minha irmã, mãe de Maddie. A diferença é
que tem cinco pingentes exatamente iguais ao seu.

59
Depois da Chuva Karen White

Knoxie, que andava pelo salão com cuidado para não borrar as unhas dos pés,
aproximou-se para ver.
— Oh, é mesmo! Meu pai deu uma corrente de ouro para, minha mãe como
presente de casamento — Informou ela com ar sonhador — Foi por isso que tia Cassie
se mudou para Nova York.
Maddie lançou um olhar severo à irmã mais nova e voltou os olhos para o céu.
Segurando-a pela mão, levou-a à sala anexa.
— Vamos ver se Ornella encontra alguém para costurar sua boca.
Suzanne ficou intrigada com a revelação, mas nada comentou. Acompanhou-as
com o olhar enquanto saíam da sala, reparando que tia e sobrinha possuíam os mesmos
traços delicados, embora os olhos de Cassie não guardassem a mesma melancolia que
os de Maddie.
Eram calmos è suaves e demonstravam a mesma força dos de Lucinda. Sem
dúvida, seria uma excelente mãe, disposta a proteger seus filhos e a ser a guardiã da
família.
No entanto, havia algo naqueles olhos que a apavorava...
— Crianças... Ainda bem que nunca tive esse tipo de problema — Bitsy comentou,
ajeitando a cúpula do secador sobre a cabeça de Cassie — Ouvi dizer que você não
gosta de crianças, srta. Paris.
— Eu nunca disse tal coisa! A verdade é que não tenho experiência alguma com
elas.
— Bem, em sua estada em Walton, terá chance de adquirir toda experiência do
mundo! — comentou com simpatia.
Suzanne assentiu e reclinou-se na cadeira, disposta a encerrar o assunto.
Porém, o movimento fez com que o pingente se evidenciasse sobre o busto.
— Notei que há uma inscrição em seu pingente... — Cassie observou, aumentando
o tom da voz para suplantar o ruído do secador — O que é?
— Uma vida sem chuva é como um sol sem sombra — Ela disse em voz alta,
guardando-o sob a blusa antes de completar. — Joalheria R. Michael, Walton.
— Oh... Onde você o conseguiu?
— Ganhei de minha mãe — respondeu, controlando o tremor na voz.
Uma dor profunda apertou-lhe o coração ao se lembrar do dia em que sua mãe
retirara aquela corrente do pescoço, e aquela fora a primeira e única vez em sua vida

60
Depois da Chuva Karen White

que se separara da jóia. Apertou os braços da cadeira em um gesto involuntário,


receando não conter a súbita emoção provocada pela lembrança.
— Você sabia que a joalheria de Randy Michael ainda existe? — Lucinda indagou
— A loja continua no mesmo endereço desde que foi fundada, na Rua Jackson, perto
da igreja. Talvez você possa perguntar se ele se lembra de ter visto sua mãe antes.
Randy tem uma memória incrível!
— Vou procurá-lo, obrigada.
— Joe me disse que vai acompanhá-la ao baile de hoje à noite e que você precisa
de roupas — Cassie mudou de assuntos para seu alívio — Creio que usamos o mesmo
número... Isto é, antes que eu ficasse grávida, claro! Eu trouxe alguns vestido e
sapatos. Estão no carro.
— Oh, obrigada. — Não resistiu ao impulso de completar — Vou acompanhá-lo
porque ele quer vigiar o primeiro encontro de Maddie.
— Não se sinta na obrigação de explicar — Tranquilizou-a Cassie, erguendo-se
da cadeira com dificuldade. — Quando você houver terminado encontre-me na
recepção, está bem?
Suzanne observou-a sair da sala, tentando ignorar a sensação incômoda no
estômago. E se Cassie se lembrasse dela? Talvez fosse melhor sair de Walton o mais
rápido possível, antes que fosse reconhecida... Porém, ainda não estava preparada para
partir. Assumira um compromisso com Maddie, e havia Joe... Não, ainda não! Concluiu,
decidida a correr riscos.
Naquele momento, uma mulher pequena e robusta, de cerca de quarenta anos,
parou a sua frente.
— Você deve ser a srta. Paris — Um sorriso franco iluminou o rosto sereno —
Sou Darlene Narpone, encarregada de cuidar de seus cabelos. Está pronta?
Suzanne seguiu-a e se entregou aos cuidados das mãos experientes. Aos poucos,
a suave massagem em suas têmporas fez com que relaxasse. Fechou os olhos e tentou
esquecer seus problemas, usufruindo a agradável sensação de ser cuidada por alguém.
— Você é nova na cidade, não é?
Meneou a cabeça, cansada de responder à mesma pergunta mais de um milhão de
vezes.
— Ouvi dizer que vai ao baile com Joe — Continuou a cabeleireira, em uma
tentativa óbvia de estimular a conversa — Vocês formam um belo casal.

61
Depois da Chuva Karen White

Suzanne abriu a boca para protestar. Porém, o som da ducha de água quente
impediu-a de falar. Sentiu o perfume suave do xampu e suspirou, desistindo de
argumentar.
— Alberto me pediu em casamento no baile anual do fundador da cidade, muitos
anos atrás — Darlene prosseguiu com um suspiro enamorado — Estava tocando uma
música romântica quando ele se ajoelhou no meio da pista de danças para fazer o
pedido. Foi tão romântico!
Ansiosa por mudar de assunto, Suzanne se inquietou na cadeira.
— Ele vai levá-la ao baile hoje à noite?
— Oh, não! Nós nunca nos casamos — Disse, com uma ponta de apreensão na voz
— Dois dias depois de fazer o pedido, Alberto estava parado em uma esquina, quando o
caminhão de entregas do supermercado perdeu a direção e o atropelou. Não chegamos
nem sequer a ficar noivos.
— Sinto muito... — murmurou, sem saber o que dizer. Darlene recuou um passo
para apanhar, uma toalha seca.
— Sabe, montei um álbum de fotografias para me lembrar dos momentos felizes
que vivemos.
Com expressão nostálgica, pisou no pedal para abaixar a cadeira e levou-a para a
sala ao lado.
— Seus cabelos precisam de tintura. Deveria ter perguntado antes de lavá-los...
Suzanne olhou para o espelho e viu Cassie no outro extremou. Ela a fitava como
se tentasse se lembrar de onde a conhecia.
— Por favor, aplique a tintura — Decidiu de súbito — E use um tom mais forte.
— Oh, você vai ficar linda! — O rosto de Darlene se iluminou.
Afastou-se para voltar instantes depois com a tintura.
— Joe lhe contou sobre o álbum de Maddie? — indagou enquanto separava as
mechas dos longos cabelos.
— Ouça, Joe e eu não temos um relacionamento nem trocamos confidencias —
Explicou, enfatizando as palavras — Vamos ao baile juntos apenas para que ele não se
sinta constrangido por vigiar o primeiro encontro da filha.
— Harriet pretendia que ficasse pronto antes que Maddie fosse para a
universidade — Continuou ela, como se não a houvesse ouvido — Começou a montá-lo
logo que a filha nasceu e parou três anos atrás. Ela o guardava em minha casa para que
ninguém pudesse encontrá-lo. Você sabe como são as garotas... — Espalhou a tintura
62
Depois da Chuva Karen White

com cuidado, e seus olhares se encontraram no espelho. — Joe sabe disso, mas ainda
não pediu que eu o entregasse. Achei que você gostaria de saber, porque Maddie vai
terminar o colegial em dezembro.
Antes que Suzanne pudesse responder, Darlene abaixou a cúpula do secador de
cabelos e abafou seus protestos.
— Voltarei daqui a vinte minutos para retirar a tintura — Avisou, deixando-a
sozinha.
As mãos de Joe tremiam enquanto ajeitava o nó da gravata. Não é um encontro,
tentava dizer a si mesmo. Deteve-se diante do espelho e alisou o paletó. Fez menção
de apanhar a colônia sobre o toucador, presente de Maddie no dia dos pais. Porém,
desistiu a meio caminho.
— Não é um encontro — Repetiu em voz alta ao sair do quarto.
Levara as crianças para passar á noite na casa de Cassie, com exceção de
Maddie. Rob Campbell já a buscara meia hora atrás. Fora com o carro da mãe, em uma
tentativa evidente de impressionar o futuro sogro, e Joe não pôde deixar de notar o
imenso banco de detrás do sedan.
Imaginar sua filha a sós com um rapaz provocou-lhe um estranho desconforto.
Sam tinha razão, pensou com uma ponta de amargura. Sua filhinha havia crescido e não
poderia mantê-la eternamente sob a proteção de suas asas.
Sentou-se no último degrau da escada, ouvindo apenas o tique-taque do velho
relógio na sala de jantar. E quanto a Joey? Refletiu. Como conseguiria sobreviver em
meio a quatro irmãs?
O familiar sentimento de apreensão voltou a incomodá-lo mais uma vez. A
saudade que Harriet deixara parecia ter esvaziado sua alma. Não se sentia capaz de
cuidar sozinho da educação dos seis filhos. Ela deveria estar lá para ajudá-lo...
Suspirou ao se lembrar do constrangimento da filha quando Rob tomou-a pelo
braço para acompanhá-la até o carro. Não conseguira conversar com Maddie e
aconselhá-la sobre o primeiro encontro. Havia planejado conversarem depois que dos
estivessem dormindo. Então, deixaria que ela o acalmasse e dissesse que tudo ficaria
bem... Era como se conseguis esconder a força para que transparecesse apenas a
doçura! Sempre conseguia fazer com que tudo desse certo com um das mãos mágicas.
De súbito, o cansaço de séculos caiu sobre suas costas. Apoiou o rosto nas mãos,
a imagem de Harriet dançando em seu pensamento. Não era justo que a vida lhe
tirasse a companheira e a mãe de seus filhos! Somente ela saberia o que fazer com as
crianças.

63
Depois da Chuva Karen White

Joe fechou os olhos ouvindo apenas o silêncio. Não acreditava em fantasmas ou


em casas mal-assombradas. Porém naquele momento, pôde ouvir uma pulsação que
ecoava pelas paredes reafirmando a familiaridade de seu lar.
Pôs-se de pé e desceu a escada. Quando apanhou a chave do carro antes de sair,
olhou-se novamente no espelho como se esperasse ver Harriet parada a seu lado,
ajeitando o nó gravata ou limpando uma poeira invisível do paletó. Em vez disso,
vislumbrou seu reflexo solitário, acompanhado apenas pelas sombras do entardecer.
Com passos rápidos, cruzou a varanda e deixou a casa, cerrando o insistente
zunido atrás de si.

Capítulo VII

Joe respirou fundo ao chegar diante da casa de Suzanne. Desligou a chave da


ignição e permaneceu sentado por alguns minutos, tentando acertar o nó da gravata.
Em um ímpeto de determinação, abriu a porta e desceu.

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Depois da Chuva Karen White

Deteve-se diante da porta da frente e, para sua surpresa, ela se abriu antes
que tivesse chance de bater.
— Estou pronta.
Suzanne passou por ele e fechou a porta antes de colocar a chave em uma
minúscula bolsa vermelha que combinava com o vestido.
Fitou-a por um momento, incerto se deveria elogiá-la.
Como se tivessem vida própria, seus olhos deslizaram pelo corpo bem-feito,
moldado pelo vestido de finas alças. Percorreu o olhar pelas pernas longas e bem-
feitas, de pele alva e acetinada, admirando-se ao ver os pés delicados descalços.
Franziu o cenho ao reparar no anel de prata colocado no dedo médio e desviou o olhar,
subindo para o pescoço esguio. O pequeno pingente de ouro chamou-lhe a atenção e
tentou não notar como repousava no vale dos seios fartos e sensuais.
Ela segurava um par de sandálias vermelhas de tiras finas na mão direita.
— Não quero colocar as sandálias antes de saber se terei que andar muito —
Anunciou como se estivesse esperando que terminasse de avaliá-la.
— Terá de andar apenas até a caminhonete, estacionada em frente a casa —
Informou, surpreso por conseguir pronunciar as palavras.
Fez um gesto para que ela seguisse à frente e seguiu pelo caminho de
pedregulhos até o portão tentando controlar o ímpeto de seus instintos básicos.
Aquela mulher era simplesmente estonteante! Desde que perdera Harriet, era a
primeira vez que se lembrava de possuir hormônios.
Adiantou-se para abrir o portão e inalou profundamente a nuvem perfumada que
a envolvia.
Suzanne permanecia alheia às suas fantasias, ocupada em ajeitar uma mecha de
cabelo.
— Você acha que este vestido ficou bom? Cassie e eu usamos o mesmo número,
mas sou um pouco maior em alguns lugares...
Joe quase engasgou ao notar como os seios fartos salientavam no recorte do
busto.
— Acho que está... — Irresistível, quase completou, calando-se a tempo — Está
ótimo. Ficou muito bem em você.
— Obrigada.
— É melhor nos apressarmos. Rob e Maddie saíram há mais de meia hora.

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Depois da Chuva Karen White

— Está bem. Por favor, ajude-me a calçar as sandálias... — Ao dizer isso, apoiou-
se no braço forte.
Joe prendeu a respiração diante da proximidade física. Para distrair sua
atenção dos atributos admiráveis daquela mulher, olhou novamente para o anel no dedo
do pé, o mesmo que notara antes, e mal pôde se lembrar de por que o achara ridículo.
— Obrigada. Podemos ir — Soltou-lhe o braço, fazendo com que um súbito vazio
o invadisse.
Joe observou o movimento suave dos quadris enquanto ela caminhava e seu
corpo acordou de um sono profundo, fazendo-o lembrar de quanto tempo não tocava
uma mulher. Aquela seria uma longa noite, pensou para si.
— Alguma coisa errada?
A voz suave, ligeiramente rouca, trouxe-o de volta para a realidade.
— Sim. Quero dizer, não! Seus cabelos... Estão mais ruivos — Apressou-se em
dizer a primeira coisa que lhe ocorreu.
Com um gesto involuntário, Suzanne levou as mãos à cabeça e ajeitou os cachos
que caíam sobre os ombros.
— É verdade. Acho que Darlene exagerou na cor.
— Não, está muito bom.
Abriu a porta de passageiros e retirou um ursinho de pelúcia para jogá-lo no
banco de detrás. Com um gesto amplo, indicou que ela entrasse.
O que há de errado com você, rapaz? Censurou-se enquanto contornava a
caminhonete para se acomodar por detrás do volante. Antes de dar a partida, lançou
um olhar para o assento de passageiros, concluindo que era grande o bastante para um
casal.
Assim que ligou o carro, percebeu que Suzanne estava tremendo. Desligou o ar-
condicionado e, ao perceber que continuava trêmula, retirou o paletó e estendeu-o na
direção dela.
— Está com frio?
— Sim, obrigada. — Apanhou o paletó e colocou-o sob os ombros.
— Se continuar com frio, abaixe o vidro. O ar de fora esta quente.
— Na verdade, não estou com frio — Ela disse, aperta os dentes.
Joe arqueou uma sobrancelha. Ela parecia distante, como não quisesse encará-
lo.

66
Depois da Chuva Karen White

— Estou nervosa. Não estou acostumada à ambientes repletos de pessoas.


Ele olhou mais uma vez para aquela mulher confiante e independente e imaginou,
não pela primeira vez, o que se escondia por detrás da aparente indiferença e por que
ficaria nervosa por encarar um grupo de pessoas simpáticas e amigáveis como os
cidadãos de Walton.
Seguiram em silêncio pelas ruas quase desertas, e Joe estacionou a poucos
passos do prédio da Prefeitura. Quando foi ajudá-la a descer, notou que estava tão
tensa que não movia um só músculo do rosto.
Lançou um olhar para o prédio, onde o baile deveria estar acontecendo no salão
de festas, e tentou avistar Maddie e Rob. Com relutância, voltou-se para Suzanne.
— Gostaria de dar uma volta antes de entrarmos? Será uma boa oportunidade
para relaxar e também para saber um pouco mais a respeito de algumas pessoas que
estarão no baile. “Talvez isso a faça se sentir melhor.”
— Não temos de vigiar Maddie e Rob?
Ele tomou as mãos geladas entre as suas e disse com ternura: — Isso pode
esperar. Você precisa se acalmar primeiro. Ninguém vai entender o que está falando
se continuar a apertar os dentes desse jeito.
Suzanne deu um passo à frente, fitando-o com os olhos cheios de gratidão.
— Obrigada — Murmurou com suavidade.
Joe ofereceu o braço, mas ela o recusou para seguir ao lado dele pela calçada.
— Para onde estamos indo?
— Para nenhum lugar em particular. Vamos apenas caminhar — Respondeu.
Reduziu o passo e tocou-a de leve no ombro para que não pisasse em um buraco
na calçada. Atravessaram o jardim e seguiram para a rua.
— A maioria da população da cidade vai estar aqui hoje à noite, e sei tudo a
respeito de cada morador de Walton — comunicou, preferindo olhar para os próprios
pés a encará-la naquele vestido — E todos eles, com exceção de Stinky Harden, que
você já conhece, são pessoas decentes e amigáveis.
Ela meneou a cabeça sem dizer nada, deixando evidente que continuava tensa.
— Claro todos vão querer conversar com você, mas é por terem ouvido falar a
seu respeito — Continuou, esforçando-se por tranqüilizá-la — Todos querem conhecê-
la. Bem, muitos deles já foram à loja de Lucinda apenas para vê-la. Ela disse que
contratá-la foi o melhor investimento para os negócios.

67
Depois da Chuva Karen White

Suzanne riu, e o som de sua risada soou como melodia para os ouvidos dele.
— É verdade, muita gente tem ido à loja e já percebi que é por pura curiosidade
a meu respeito.
— Bem, um rosto novo em Walton é uma grande novidade. Mas eu posso lhe
garantir que você jamais encontrará pessoas tão honestas e bondosas.
— E por isso que quer ser prefeito?
— Nem sempre é assim tão fácil. Sempre há desacordos; o maior deles é sobre
os limites da cidade. Antes de me eleger quase tivemos uma guerra civil. A questão era
se Walton veria ser um distrito ou se tornar um município: Fiquei furioso naquela
ocasião, mas agora são águas passadas.
Suzanne retirou o paletó dos ombros e pendurou-o no braço.
— Por que quer ser prefeito?
Ele hesitou por alguns segundos, sem saber a resposta exata.
— Por ser um desafio, creio eu.
— Criar seis filhos sozinho já não é o bastante?
— Não sei. Talvez seja por desejar retribuir às pessoas que ajudaram minha
família quando realmente precisei.
— Ou talvez seja para tentar preencher suas horas vazias para não ter tempo
de pensar.
Joe prendeu a respiração e parou de caminhar.
— Você não sabe nada a meu respeito. Por favor, não presuma que sabe todas a
respostas.
Os olhares se encontraram, e ela se arrependeu do que dissera ao ver a sombra
de tristeza enevoar o semblante de Joe.
— Sinto muito. Tenho o péssimo hábito de dizer o que penso — Continuaram a
caminhar e passaram pela Escola Municipal um prédio amplo ao fundo de um jardim
bem cuidado.
Joe permaneceu em silêncio, como se estivesse tentando ficar à vontade ao lado
dela.
Aquela mulher era diferente de todas que conhecera. O andar altivo, as
palavras que usava o jeito com que se movia, a forma como mantinha os braços
cruzados sobre o peito como se quisesse se defender de qualquer envolvimento com o

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Depois da Chuva Karen White

mundo... A curiosidade sobre ela o fazia se aproximar enquanto, ao mesmo tempo, uma
voz em sua consciência lhe dizia para que se afastasse.
Indicou um banco do jardim e esperou que se sentasse para então se acomodar
ao lado dela.
— Por que você não gosta de multidões?
Ela ergueu os ombros e apertou as mãos em um gesto nervoso.
— Acho que não acredito que as pessoas possam gostar de mim. Admito que sou
muito reservada, e também tenho culpa nisso — Abaixou a cabeça, tentando esconder
a emoção — Passei a maior parte de minha infância em orfanatos. Nunca conheci meu
pai e minha mãe nem sequer tinha certeza sobre quem era. Ela era alcoólatra e
conseguiu minha guarda depois de um tratamento em que parou de beber. Mas depois
da primeira decepção que a vida lhe causou, teve uma recaída e voltou ao vício.
— Sinto muito — Joe murmurou, sentindo-se estúpido por não encontrar nada
mais adequado para dizer para consolá-la.
— Não estou lhe contando para que tenha pena de mim. Quero apenas que
entenda por que sou assim.
— Acredite, não sinto pena de você.
— Na primeira vez em que fui colocada em um orfanato, esforcei-me para que
todos gostassem de mim. Com o tempo, percebi que não valia a pena. Acabava sempre
sendo transferida para outra instituição. Então, parei de tentar — Respirou fundo
antes de prosseguir: — Acho que já me esqueci de como é um relacionamento.
Joe ouvia em silêncio, sentindo que finalmente se abria uma fresta na superfície
impenetrável por detrás da qual ela se escondia.
— Não creio. Maddie acredita que você foi enviada do céu.
Suzanne esboçou um sorriso triste.
— Sua filha é uma garota especial. Você fez um ótimo trabalho.
— Tive muita ajuda. — Ergueu-se e estendeu a mão ajudá-la a se levantar — O
que acha de entrarmos?
Com um ato involuntário, pôs-se a brincar com a aliança no dedo anular da mão
esquerda, julgando que Suzanne não ouvira.
— Está bem — ela disse por fim — Creio que a essa altura Rob já deve ter
despido Maddie!

69
Depois da Chuva Karen White

Joe levou alguns segundos para perceber a brincadeira, então inclinou a cabeça
para trás com uma sonora gargalhada.
— Acredite, essa não é minha maior preocupação.
— Não? Mas achei que...
— Estou mais preocupado com o que poderão estar fala sobre nós dois.
Suzanne o fitou intrigada.
— Você está brincando, não é?
— Nunca falei tão sério em minha vida! — Exclamou com um suspiro.
Parecia que aquela mulher não tinha consciência do efeito que exercia sobre ele.
Seguiram em silêncio a tênue iluminação da rua fazendo com que as sombras
dançassem na calçada. Depois de alguns passos, Suzanne começou a sentir os pés
latejarem. Não estava acostumada a usar saltos altos, e apoiou-se no ombro largo por
um momento.
Joe amparou-a solícito e ofereceu o braço para que prosseguissem. Andaram
dois quarteirões em silêncio quando ele perguntou de súbito:
— Você está fugindo de alguém?
— O que o faz pensar isso?
— Bem, não é preciso ser um adivinho para supor que esconde alguma coisa. A
sra. Lena, uma das mais antigas moradoras de Walton, fez um banco de apostas sobre
você. Alguns dizem que está fugindo de um marido violento e cruel, outros dizem que
foge de algum escândalo e apenas uma pessoa apostou que você roubou um banco.
Ela abriu a boca perplexa, indecisa entre rir ou chorar.
— Quem é a sra. Lena?
— Uma velha amiga da família. Ela é um tanto confusa, mas, na maioria das
vezes, é lúcida e sábia. Provavelmente terá chance de conhecê-la no baile.
Suzanne respirou fundo tentando não pensar no incômodo fato de ser objeto
das apostas locais.
— Apostei em algum escândalo — Ele confidenciou tentando fazê-la rir.
Porém, Suzanne não demonstrou nenhuma reação.
— Sinto despontá-lo, mas não é nenhuma das alternativas anteriores — Manteve
o olhar fixo à frente, ouvindo as folhas secas estalando sob os pés enquanto
caminhava. — E por que você deveria se importar?

70
Depois da Chuva Karen White

Joe tocou-a no braço, fazendo-a parar para encará-lo.


— Por Maddie e porque as pessoas a associam a mim. Estou tentando me
reeleger como prefeito da cidade. Então, se houver alguma coisa em seu passado que
eu deva saber para evitar ataques de políticos inescrupulosos, gostaria que me
contasse.
De súbito, uma onda de frio fez com que sentisse um arrepio. Ergueu o rosto e
deparou com os olhos castanho-esverdeados refletindo a luz do entardecer, revelando
a cor das águas do oceano profundo. Não, aquele homem não merecia que o enganasse,
concluiu depois de refletir alguns segundos.
— Um ex-noivo — Disse por fim, omitindo parte da verdade — Preciso me
esconder por algum tempo até que ele me esqueça. Isso é tudo.
Permaneceram com o olhar fixo um no outro por um longo momento, e ela foi a
primeira a desviar os olhos. Sabia que Joe não acreditara em uma só palavra do que
dissera e parecia esperar, dando-lhe nova chance de dizer a verdade.
— O que houve? Você fugiu com o anel de noivado e ele ficou furioso?
— Pode-se dizer que sim — Endireitando os ombros, fez menção de seguir em
direção ao prédio da Prefeitura, onde uma pequena multidão se aglomerava na porta —
Vamos encontrar Maddie antes que Rob a leve para o banco traseiro do carro.
— Isso não foi engraçado — Joe resmungou, alcançando-a. Embora estivesse
tensa pela conversa, Suzanne sentiu uma inesperada vontade de rir ao vê-lo caminhar
com passos firmes a seu lado, como se estivesse a caminho de salvar uma donzela
indefesa. Sorriu secretamente ao se lembrar da expressão de pânico no rosto de
Maddie quando lhe perguntara, na aula de fotografia do dia anterior, como reagiria se
Rob quisesse beijá-la.
— Está pronta? — Joe indagou ao chegarem à escadaria que levava ao salão de
baile.
Ela meneou a cabeça rapidamente, tentando passar mais confiança do que de
fato sentia.
— Vamos entrar — Joe ofereceu-lhe o braço.
— Não é preciso — Recusou de pronto, torcendo para que ele não notasse sua
insegurança — Eu posso me cuidar sozinha.
— Sei disso — Joe comentou com sinceridade, depois de fitá-la por um longo
momento — Mesmo assim, ficarei a seu lado o tempo todo para que não se sinta só.
Enquanto subiam a escada, Suzanne se pôs a pensar se os anos de paternidade
haviam dado àquele homem a habilidade de ler pensamentos.
71
Depois da Chuva Karen White

Suzanne se recostou na mureta da ampla varanda nos fundos do salão de baile.


Descalçou as sandálias e massageou os pés doloridos, observando as estrelas no céu.
Os cidadãos de Walton eram amigáveis e demonstravam franca curiosidade a
seu respeito. Joe permanecera a seu lado até que Stinky Harden o detivera para uma
discussão política.
Percebendo a chance de escapar, atravessara a pista de danças e seguira para a
varanda com a sensação de estar encenando a síntese de sua própria vida: observar
outras pessoas dançando enquanto fugia para um lugar solitário.
Um homem acompanhando uma senhora tocou-a de leve no ombro. O terno
escuro e ligeiramente largo chamou sua atenção, pois parecia não combinar com o
rosto rosado e jovial.
— Você deve ser Suzanne Paris — Disse ele, comum largo sorriso no rosto —
Estávamos tentando nos aproximar a noite toda.
Tentou reconhecê-lo, mas não se lembrava de tê-lo visto antes.
— Sou Ed Farfel e esta é minha mãe, Lena Larsen...
— E creio que vou ficar rica com meu banco de apostas sobre você! — Completou
ela com um sorriso largo.
Surpresa, estreitou os olhos e reconheceu o xale cor-de-rosa sobre os ombros
encurvados pelo peso dos anos. Aquela era a mulher que sempre a cumprimentava da
varanda quando voltava para casa todas as tardes.
— Um escândalo está ganhando agora — Continuou, fitando-a sobre as grossas
lentes dos óculos.
Suzanne franziu o cenho, demorando alguns segundos para entender a que ela se
referia, e então sorriu. Aquela era a mulher a quem Joe se referira.
— Srta. Paris, tudo que arrecadarmos será destinado a obras de caridade —
Esclareceu o rapaz.
— Entendo... — Abaixou os olhos, sem saber o que dizer. Naquele momento, um
grupo de pessoas passou apressadamente, empurrando-os de encontro à parede.
— Está na hora dos fogos de artifício, mamãe! É melhor descermos para o
jardim se quisermos ver alguma coisa.
Ao passar por ela, a sra. Lena apanhou o pingente de seu colar nas mãos e
estudou-o com atenção. A expressão dos olhos azuis foi escondida pelo reflexo da luz
das lentes dos óculos, mas pôde ver quando meneou a cabeça e sua atenção se moveu
do pingente para o rosto. Abruptamente, soltou-o e sorriu.

72
Depois da Chuva Karen White

— Creio que vai chover — A sra. Lena disse de súbito. Suzanne olhou para o céu
de um azul profundo, iluminado pela luz clara das estrelas.
— Venha, mamãe. Vamos encontrar um bom lugar para nos sentarmos.
Ela permitiu que o filho a tomasse pelo braço e a ajudasse a descer alguns
degraus, quando uma cascata de luzes irrompeu pelo céu. Olhou para cima até
encontrar o olhar de Suzanne e sorriu.
— Tenho certeza. Vai chover!
Ed Farrel ergueu a cabeça para enviar-lhe um olhar de desculpas e ajudou a mãe
a descer lentamente a escadaria.
— Boa noite. Foi um prazer conhecê-la — Despediu-se com um aceno.
Suzanne acenou em resposta, detendo a mão em pleno ar ao sentir a presença
de Joe a seu lado antes mesmo que ele falasse.
— Sinto muito. Não pretendia deixá-la sozinha, mas não pude evitar.
A voz profunda fez com que alguma coisa se aquecesse dentro dela, como se um
bloco de gelo começasse a derreter. Sentindo-se desorientada, teve a sensação de
que caminhava às cegas por uma sala familiar onde a mobília fora mudada de lugar.
Respirou profundamente e endireitou os ombros.
— Consigo sobreviver sozinha, obrigada.
— Desculpe, havia esquecido — Joe olhou ao redor — Viu Maddie?
— Ela e Rob estavam conversando com um grupo de adolescentes a cerca de
meia hora atrás. Todos estavam completamente vestidos.
— Puxa, que alívio! — Respondeu no mesmo tom bem humorado — Nesse caso,
não preciso me preocupar. Você gostaria de ver os fogos de artifício? Já reservei
lugares para nós.
Depois de hesitar por alguns segundos, aceitou o braço que ele oferecia.
— A sra. Lena disse que vai chover — Comentou ao descerem os degraus para o
jardim.
— Curioso... Ela costuma acertar a previsão do tempo, mas o céu está tão limpo
quanto a consciência do reverendo Beasley.
Logo que pisaram o gramado defronte ao prédio, uma cascata de luzes e cores
expandiu-se pelo céu como uma bênção gentil, derramando-se sobre todos os
presentes.

73
Depois da Chuva Karen White

Suzanne olhou ao redor, lastimando-se por não estar com sua câmera. Viu casais
jovens e idosos, de mãos dadas, apontando para o céu. Uma jovem mãe com seu bebê
no colo admirava os fogos de artifício, fascinada, quando as irmãs Sedgewick se
aproximaram e cobriram as faces rosadas da criança, de beijos. No outro extremo do
jardim, um grupo de homens tentava fingir que não estava interessado nas mulheres
que conversavam animadamente ao lado deles.
Viu Maddie e Rob circundados por um grupo de alegres adolescentes e sorriu
quando acenou para ela. Então, seu olhar pousou no rosto de Joe. Alheio ao que
acontecia a sua volta, ele parecia fascinado com os fogos de artifício, como se seu
pensamento estivesse distante dali.
Guardou aquela imagem no coração, desejando se lembrar daquela maravilhosa
noite de verão para sempre. E talvez algum dia, quando estivesse longe dali, pudesse
resgatar a lembrança apenas por um momento, antes de devolvê-la ao lugar escuro e
sombrio onde as esperanças e decepções se escondiam.
Fechou os olhos, mas mesmo assim os flashes de luz e as repetidas explosões de
cores ficaram impressos em sua retina. Como seria bom fazer parte daquele mundo,
tão estranho e, ao mesmo tempo, tão familiar! Como seria feliz se pudesse ancorar
suas esperanças naquela cidade, onde todos eram alguém...
— Você está bem?
A voz grave em seu ouvido provocou-lhe um sobressalto. Meneou a cabeça em
afirmativa e deu-lhe as costas, desejando mais uma vez estar com sua câmera para
registrar aquele momento especial de sua vida, enquanto olhava para o clarão no céu e
se permitia sonhar.

74
Depois da Chuva Karen White

Capítulo VIII

Suzanne deteve-se na soleira da porta, observando as mulheres circulando pela


cozinha, rindo e conversando com animação. Por um momento, ao ver a acolhedora
intimidade daquela cena, pôs-se a imaginar como seria ter uma irmã, uma filha ou
mesmo uma sobrinha. Pela primeira vez em sua vida, desejou ter alguém com quem
pudesse compartilhar pequenos momentos como aquele.
Sentada à mesa, Cassie apoiara os pés inchados sobre uma cadeira enquanto
decorava um imenso bolo recheado. Sorriu ao ver o glacê azul-néon, uma homenagem
de Lucinda para o aniversário de catorze anos de Sarah Francês. Concordara em ceder
sua casa para os preparativos da festa-surpresa.
Maddie havia dito a Suzanne na aula de fotografia do dia anterior que a irmã
estava convicta de que seus familiares haviam se esquecido da data. Todos haviam
combinado não mencionar nada a respeito do aniversário para que ela tivesse uma
grande surpresa.
Com um sorriso discreto, entrou na cozinha e colocou as sacolas de compras
sobre a pia.

75
Depois da Chuva Karen White

— Tive de ir a três lugares diferentes para encontrar tomate seco — Anunciou,


abrindo a geladeira para apanhar a jarra de água — Ninguém nunca ouviu falar de
risoto nessa cidade!
Lucinda voltou-se para ela sem deixar de mexer a panela com molho de tomate
para a lasanha, o prato favorito de Sarah Francês.
— Oh, desculpe, querida! Eu deveria ter-lhe dito onde — Limpou as mãos no
avental — Não sei por que aquela menina gosta tanto desses pratos! Ela foi a um
restaurante italiano uma vez e, desde então, não fala em outra coisa!
Maddie meneou a cabeça, olhando por sobre a pilha de pratos que estava
lavando.
— É porque ela é esquisita!
Cassie se levantou com dificuldade e apoiou-se nela para lavar a espátula do
glacê.
— Creio que seja minha culpa. Eu a levei ao tal restaurante italiano quando
fomos para Atlanta — Ergueu os ombros e voltou a se sentar, espalhando uma
generosa camada de glacê sobre as laterais do bolo — Para falar a verdade, eu
também adoro comida italiana!
— Eu prefiro sushi — Maddie disse por sobre os ombros fechando a torneira e
enxugando as mãos no avental de Lucinda.
Cassie enviou um olhar cúmplice para a sobrinha, e ambas começaram a rir.
— Essas meninas de hoje! — Lucinda murmurou com desagrado — Ninguém mais
quer saber dos pratos que preparo. Vocês acreditam que, ontem, Sarah Francês se
recusou a jantar? O que há de errado com galinha frita e purê de batatas?
— Nada, Lucinda. Aliás, eu acho que é uma combinação perfeita — Solidária
Suzanne se aproximou e tocou-a de leve no ombro — O que posso fazer para ajudar?
— Você se importa de descascar alguns dentes de alho? — E apontou para a
tigela repleta sobre a mesa.
Feliz por poder ser útil, ela se sentou ao lado de Cassie e começou a trabalhar.
O aroma picante do tempero invadiu suas narinas, fazendo com que velhas lembranças
infantis despertassem.
Aos sete anos de idade, fora adotada por uma família italiana, depois de passar
quatro meses em um internato. Embora sua mãe costumasse desaparecer por longos
períodos, havia sido a primeira vez que ficara em um orfanato, depois de sua
professora ter observado que usava o mesmo vestido durante a semana toda e levava
apenas uma maçã para o lanche.
76
Depois da Chuva Karen White

A família Bianchi tinha cinco filhos, que alegravam a cozinha com suas risadas.
Nuvens de vapor subiam das panelas no fogão e um delicioso aroma de alho completava
o cenário. Aquele era o único registro que Suzanne guardara do que era uma família.
Durante o pouco tempo em que cuidaram dela, os Bianchi lhe deram o amor que
conservara em algum recanto secreto do coração.
Meses depois, sua mãe fora buscá-la depois de ter alta do tratamento a que
havia se submetido para abandonar o alcoolismo. Suzanne fizera as malas e se mudara
para o apartamento escuro e sombrio no sul de Chicago.
Receava ter de se mudar a qualquer momento e, por um longo período, suas
roupas haviam permanecido dentro da mala.
Talvez as lembranças felizes do período que passara com os Bianchi tivessem
sido responsáveis pelo seu interesse por Anthony de Salvo. O italiano de cabelos
escuros e olhos sedutores era proprietário do restaurante italiano que a atraíra pelo
delicioso aroma de alho frito, que a fazia se lembrar da cozinha de sua mãe adotiva.
Suspirou e apanhou mais uma cabeça de alho para descascar. Por mais que
tentasse reprimir as memórias a imagem da mulher robusta com mãos que lhe
pareciam imensas naquela ocasião e um sorriso terno no rosto, insistia em voltar à
vida.
— E então, o que acham?
A voz de Cassie a distraiu dos devaneios. Olhou para ela, que apontava para o
bolo confeitado com ar orgulhoso.
— Maravilhoso! — Lucinda e Maddie exclamaram ao mesmo tempo.
— E você, Suzanne? O que acha?
— Está magnífico, Cassie. Onde aprendeu a confeitar bolos?
— Oh, se você tivesse seis sobrinhos, entenderia de onde vem tal habilidade! —
Recostou-se na cadeira e acariciou o imenso ventre antes de se voltar para ela —
Continuo achando que a conheço de algum lugar... Estou me esforçando para me
lembrar, mas não consigo. Acredite, esta gravidez tirou a metade da minha capacidade
cerebral! Quem sabe, dentro de um ou dois anos, eu consiga descobrir de onde a
conheço.
— Acho melhor se apressar, porque a srta Paris não vai ficar aqui por tanto
tempo — Maddie disse em tom hesitante, folheando o jornal.
— Talvez ela ainda mude de idéia, meu bem — Lucinda piscou para a sobrinha,
abaixando-se para acender o forno.

77
Depois da Chuva Karen White

O calor da cozinha fizera a maquiagem carregada se derreter, mas estava tão


envolvida no trabalho que parecia não se importar.
Suzanne continuou encarando a tigela a sua frente sem dizer nada. Ouvia as
mulheres conversando sobre os vizinhos, o próximo casamento na cidade, a cor dos
cabelos de Lucinda... Não falavam de nenhum assunto em particular, mas compartilha-
vam opiniões e histórias que as mantinham unidas na intimidade do círculo familiar.
— Vejam isso! — Maddie gritou, apontando para um anúncio no jornal — Está
programada uma exibição no Museu de Arte de Atlanta. É uma retrospectiva de
Gertrude Hardt. Você a conhece, Suzanne?
— Sim. E uma das maiores fotógrafas do planeta.
— Ficarão expostas até o final de novembro. Sou capaz de morrer se não for! —
Maddie se voltou para ela. — Gostaria de ir comigo?
Suzanne colocou a faca sobre a mesa com mãos trêmulas. Anthony lhe dera uma
valiosa coleção daquela fotógrafa em uma tentativa de reconciliação. E se fossem as
mesmas fotografias? Ficaria furioso se descobrisse que ela as vendera!
Fechou os olhos e o rosto moreno invadiu seu pensamento pela primeira vez
desde que chegara a Walton. Um arrepio de medo percorreu sua coluna. Seu ex-noivo
ainda estaria a sua procura? Ainda estaria publicando nos jornais o anúncio que
oferecia recompensa para quem descobrisse seu paradeiro?
— Provavelmente, terei de trabalhar — Disse, tentando encontrar uma desculpa
plausível — Além disso, não tenho carro.
— Oh, tenho certeza de que tia Lu não vai obrigá-la a trabalhar sete dias por
semana — Maddie argumentou.
— Claro que não! — Lucinda pousou as mãos nos ombros dela — E podemos ir com
meu carro.
Ao ver os olhares de expectativa voltados para ela, soube que não teria escolha.
— Está bem, meninas. Contem comigo!
— Ótimo! — gritaram em coro.
— Gertrude Hardt... — Cassie franziu o cenho — Acho que li alguma coisa sobre
ela nos jornais.
Suzanne abaixou os olhos, forçando-se a trabalhar.
— Ah, lembrei-me! Era uma matéria sobre as fotografias inéditas que serão
expostas. Pelo que li, estavam em posse de algum colecionador anônimo e ninguém tinha
conhecimento da existência delas.
78
Depois da Chuva Karen White

De súbito, Suzanne prendeu a respiração ao se lembrar de onde conhecia Cassie.


Fora um ano antes, quando fazia um trabalho fotográfico em Chicago em uma feira de
calçados.
O relacionamento com Anthony lhe dera oportunidade de cobrir o evento,
produzido pelo escritório responsável pela propaganda de sua rede de restaurantes.
Na ocasião, estava tensa por trabalhar ao lado de fotógrafos renomados e mantivera-
se ainda mais isolada do que habitualmente costumava ficar.
A promotora daquele evento não era ninguém menos do que Cassandra Madison...
Cassie! Ela fora competente e atenciosa e fizera questão de agradecer a cada um dos
fotógrafos. Por sorte, havia dezenas de profissionais e ficaram frente a frente
apenas uma vez.
Lembrou-se de respirar, torcendo para que a gravidez de Cassie continuasse a
ocupar sua memória.
O som da campainha seguido do rangido da porta se abrindo fez com que todas
se voltassem. Amanda surgiu na cozinha e correu para os braços de Lucinda.
— Tia Cass posso sentir o bebê se mexer de novo?
— Claro, meu bem! — Tomou as mãozinhas roliças para pousá-las sobre o ventre.
Amanda permaneceu sem piscar, em expectativa. Depois de alguns momentos,
arregalou os olhos e prendeu a respiração.
— Ela se mexeu! É uma menina!
— Como sabe?
— Porque é muito delicada. Não é como papai, Joey ou Harry.
Todos riram com exceção de Suzanne, que sentira a presença poderosa na
cozinha. Olhou-o de soslaio, recostado no batente da porta, e conteve o riso ao notar
uma boneca enfiada no bolso da calça. Não podia negar, aquele homem possuía um
charme irresistível!
— Você trouxe minha boneca, papai! — Amanda correu na direção dele — Que
bom!
Ele enfiou a mão no bolso e entregou-a para a filha ao mesmo tempo em que
Suzanne levava a tigela de alhos descascados para a pia.
— Desculpe, mas alguém esqueceu isso nos seus cabelos...
Ela então retirou uma bala mastigada presa aos fios, sem deixar de notar a
maciez dos cabelos fartos.

79
Depois da Chuva Karen White

— Obrigado — Ele sorriu, mostrando dentes brancos e perfeitos.


— Oh, você colou minha pintura na geladeira! — Amanda bateu palmas ao ver o
desenho que dera de presente a Suzanne ao lado da gravura retratando Paris.
— Claro que sim! Seu desenho ficou lindo.
— Papai disse para eu não ficar chateada se você não gostasse dele, porque você
provavelmente não teve nenhum lugar para pôr suas pinturas quando era criança.
Suzanne sentiu que todos olhavam para ela. Concentrou-se em lavar dois copos
que estavam sobre a pia como se fossem do mais fino e delicado cristal.
— Querida, preciso de sua ajuda para fritar o alho — Lucinda tocou-a
gentilmente no ombro.
A compreensão nos olhos da bondosa senhora a comoveu.
Seu desejo era sumir dali, mas aquela mulher parecia segurá-la como uma
âncora.
Enquanto trabalhava absorta na tarefa, percebia os ruídos e os movimentos ao
seu redor como se viessem de um lugar muito distante. Quando terminou de fritar a
última porção, não restava o menor vestígio da intensa atividade que se iniciara pela
manhã e todos se preparavam para ir embora.
Escapou para seu quarto sem ser notada e caiu sobre a cama ouvindo quando a
porta foi fechada. Aventurou-se a descer a escada apenas depois que o ruído do motor
dos carros se perdeu na distância.
A cozinha estava na mais perfeita ordem, mas parecia ainda conter as vozes
femininas pairando no ar, misturadas ao delicioso aroma de comida.
Suzanne olhou ao redor, sentindo um súbito vazio. Sempre gostara de sua
solidão e, no entanto, não pôde impedir que um imenso vazio invadisse sua alma.
Sentou-se à mesa mergulhada no profundo silêncio, enquanto as sombras da
noite começavam a cair.

— Onde está Suzanne?


As palavras escaparam da boca de Joe antes que pudesse considerar como sua
família poderia interpretar o que dissera.
— Achei que estava com você! — Lucinda descia do conversível carregando uma
imensa travessa de lasanha.

80
Depois da Chuva Karen White

— Não acredito que se esqueceu dela! — Maddie colocou as mãos na cintura e


fitou o pai.
— Não tenho culpa! — defendeu-se, evitando os olhos da filha — Se ela quisesse
vir, teria se juntado a nós.
— Se você me der a chave da camionete, posso ir buscá-la.
— Não. Eu mesmo vou. — Voltou-se para Cassie. — Sarah Francês não virá para
casa tão cedo e vocês terão tempo de arrumar tudo até que ela chegue. Voltarei em
poucos minutos.
— E se ela não quiser vir? — Cassie indagou.
— Não vou forçá-la. Mas preciso ir até a casa dela me desculpar por não tê-la
convidado.
Entrou na caminhonete e, dez minutos depois, batia à porta da casa. O sorriso
hesitante nos lábios sensuais quando a porta se abriu fez com que não se
arrependesse por ter voltado.
— Achei que você fosse a uma festa-surpresa.
— Eu achei que você gostaria de ir também.
— Oh, tenho muitas coisas a fazer.
— Como o quê, por exemplo?
Ela ergueu os ombros e olhou para o interior da casa. Joe admirou o perfil bem-
feito. Os cabelos ruivos estavam presos com uma fivela, expondo o pescoço bem
desenhado, e ele reprimiu o desejo súbito de tocar a pele alva e acetinada.
— Bem, você sabe. Lavar, passar... Não fiz nada disso durante a semana e ainda
não adotei a filosofia de usar a roupa de baixo pelo avesso.
Ele riu alto, entendendo a referência a ele próprio no período em que Lucinda
estivera fora.
— Sarah Francês ficaria feliz se você estivesse presente na festa-surpresa.
Além disso, há muita comida e bebida.
Fitou-o por alguns segundos, fazendo-o crer que recusaria o convite. Então,
para sua surpresa, sorriu e virou-se para o interior da casa.
— Vou pegar minha bolsa — disse e se afastou.
Deixou a porta aberta e ele a acompanhou com o olhar enquanto subia os
degraus com graça e leveza, para voltar minutos depois.

81
Depois da Chuva Karen White

Joe abriu a porta da caminhonete e ajudou-a subir, reparando que ela colocara a
bolsa sobre o colo como se estivesse protegendo um valioso bem.
— Haverá muitos convidados na festa?
— Não. Convidamos apenas os amigos mais próximos e a maioria deles você já
conhece. Provavelmente, não vão incomodá-la.
— Oh, não foi isso que eu quis dizer! Só queria ter certeza, de que tenho filme
suficiente. Estou levando minha câmera.
Ele meneou a cabeça e olhou no espelho retrovisor antes de virar à esquerda.
Quando passavam pelo cemitério, um imenso cartaz chamou a atenção de Joe, que
brecou abruptamente.
— O que houve?
— Stinky Harden! — Reclamou por entre dentes antes de descer.
Caminhou com passos firmes até o muro e só então Suzanne percebeu que havia
um cartaz de propaganda sobre o pôster da campanha de Joe. Abaixo do rosto rosado
e sorridente de Stinky Harden, leu as palavras: Você quer que tudo continue igual?
Joe olhou ao redor e, com um movimento rápido, arrancou o cartaz do muro e
levou-o para a caminhonete.
— Por que essa campanha significa tanto para você?
— Não significa tanto assim. Não faço questão de ser reeleito, mas sim de que
esse incompetente não seja nosso próximo prefeito — Vociferou, jogando o cartaz no
banco traseiro.
— E por que não? Vocês dois nasceram em Walton e conhecem os problemas da
cidade. Faria tanta diferença se ele se elegesse?
Ele a fitou profundamente, notando pela primeira vez as pequenas sardas que
cobriam o nariz perfeito.
— Stinky se mudou para Atlanta e ficou por lá desde que se formou. Voltou para
Walton três anos atrás, quando Mary Ettienne, irmã dele, vendeu a casa que herdara
dos pais antes de se mudar para a Flórida. Não tenho certeza, mas ouvi rumores de
que ele está devendo uma pequena fortuna em Atlanta e veio para cá para fugir dos
credores.
— Mas não seria óbvio demais se refugiar na cidade natal?
— Talvez. O fato é que os pais dele deixaram terras nos limites do município
que têm um bosque de mata virgem transformadas em reserva natural pelas leis
ambientais de Walton. Coincidência ou não, foi a partir daí que começou a demonstrar
82
Depois da Chuva Karen White

interesse pela política local — Hesitou por alguns minutos, considerando se deveria
dizer mais — Descobri que ele tem alguns acordos com uma fábrica de papel. Não é
preciso ser brilhante para supor que Stinky se beneficiaria muito por ser uma
autoridade.
— Entendo... Mas, seja como for, ele não tem o direito de colocar cartazes?
— Não no muro do cemitério, e menos ainda sobre o meu cartaz!
A voz era calma e quase hesitante, como se estivesse relutante em demonstrar
a irritação.
— Tem razão. — Suzanne olhou ao redor e desceu da caminhonete. — É um lugar
bonito. Importa-se de nos demorarmos apenas mais alguns minutos? Eu gostaria de
tirar algumas fotografias. A luz está perfeita!
— Claro! Vá em frente. Também preciso de tempo para me recompor.
Ela retirou a câmera da bolsa e trocou as lentes. Atravessou os portões do
cemitério, enquanto Joe permanecia encostado no capo do carro. Sorriu ao vê-lo
menear a cabeça e caminhar na direção de outro cartaz pregado no muro.
As folhas secas espalhadas pelo chão estalaram sob seus pés à medida que
caminhava. Começou a fotografar a hera que subia pelo muro, aproveitando a luz
dourada do entardecer. Trocando as lentes da câmera centrou o foco nas lápides,
algumas tão antigas que os nomes e as datas estavam apagados pelo tempo.
Uma belíssima escultura de anjo sobre um túmulo chamou-lhe a atenção.
Aproximou-se e conteve a respiração ao ver o sobrenome familiar: Warner. Abaixou-
se para ler as inscrições e respirou aliviada quando viu que não era de quem estava
pensando. Então, sentiu a presença de Joe atrás de si antes que pudesse vê-lo. Sem se
voltar, perguntou:
— É o jazigo de sua família?
— Sim. Aqui estão enterrados meus avós e bisavós. Uma lenda da cidade diz que
eles estão aqui desde o começo dos tempos. E eu também estarei aqui algum dia.
Ela estudou o perfil bem-feito, admirando a curva marcante do queixo e a forma
como os cabelos escuros caíam sobre a testa.
— Você nunca pensou em se mudar?
— E por que deveria?
— Não sei... Talvez para encontrar alguma coisa diferente — Ajustou a lente e
focalizou a escultura.
— Simplesmente, por mudar.
83
Depois da Chuva Karen White

— Minha irmã se mudou para Dallas com o marido depois de se casar, há doze
anos, e desde então ela só pensa em voltar para casa. Quando lhe perguntam de onde
é, continua dizendo que é de Walton.
Suzanne abaixou a câmera e o fitou.
— Acho que você não entendeu o sentido do que estou falando — Ele comentou
em tom amargurado.
— Tem razão. Creio que não tenho o registro do que seja um lar — Constrangida,
fingiu estar interessada na inscrição de uma lápide para esconder o sentimento — Sua
irmã tem filhos?
— Três. Dois meninos e uma menina.
— Só três? Puxa, o que há de errado com ela?
Assim que acabou de pronunciar as palavras, Suzanne se arrependeu. Não
pretendia que soasse como provocação, mas era tarde demais.
— Você fala como se ter filhos fosse uma competição. Eles apenas...
Aconteceram.
— Por que teve tantos filhos?
— Desejei todos eles — Olhou para o horizonte, escondendo o rosto —
Desejamos cada um deles.
— Sinto muito por ter brincado com isso — Sentiu-se pouco confortável,
irritada consigo mesma por não conseguir dizer as palavras certas — Não tive intenção
de magoá-lo. Eu apenas... Bem, apenas fiquei curiosa. A maioria das crianças que
conheci não era desejada pelos pais.
Suzanne olhou-o de relance, na expectativa de que suas palavras soassem como
uma explicação. Porém, a expressão indecifrável no rosto viril não lhe deu a resposta
que esperava.
Ajustou a lente da câmera e caminhou para a saída. A meio caminho, um túmulo
majestoso chamou sua atenção. Aproximou-se para ler as palavras gravadas no
mármore e sentiu o sangue congelar ao ver o nome inscrito. Avaliou a imagem sobre a
inscrição, analisando os traços delicados da bela mulher. E admirou-se por Harriet ser
tão jovem. Mesmo estando quase na mesma faixa etária que ela, a esposa de Joe
tivera um o amor de uma família. De súbito, o vazio de sua própria vida pareceu-lhe um
abismo sem fim.
Joe se aproximou e tocou a lápide, acariciando a inscrição com a ponta dos
dedos.

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Depois da Chuva Karen White

— Cassie quis que Harriet ficasse aqui, junto com os pais.


Suzanne sentiu o calor do corpo másculo próximo ao seu embora ele parecesse
distante dali.
Permaneceram parados, em um silêncio respeitoso. Era como se as lembranças
da esposa fossem fortes o bastante criar uma presença quase palpável. Suzanne
defrontou-se a tristeza estampada nos olhos expressivos e sentiu o coração se
apertar no peito.
— Sei que ela estava fazendo um álbum que seria o presente de formatura de
Maddie. Gostaria de terminá-lo, se você permitir — As palavras escaparam de sua
boca antes que pude contê-las.
Joe encarou-a por um longo momento, considerando a proposta, e então sorriu.
— Obrigado.
Com um breve toque em seu ombro, deu-lhe as costas entrou na caminhonete,
mantendo o silêncio durante o traje para casa.

85
Depois da Chuva Karen White

Capítulo IX

Suzanne se encheu de coragem quando Joe estacionou diante da casa de dois


andares. O gramado estava repleto de brinquedos infantis: patinetes, inúmeras bolas,
carrinhos de boneca... Exatamente como imaginara que um lar deveria ser.
— Onde estão os convidados? — Perguntou, desafivelando o cinto de segurança.
— Muitos vieram à pé e os demais deixaram os carros nas ruas vizinhas. Não
quis correr o risco de deixar alguma pista para não estragar a surpresa.
Joe contornou a caminhonete e a ajudou a descer da cabine. Susanne aceitou a
ajuda, surpresa por apreciar o gesto mais do que imaginara. Gostava da sensação que o
toque da mão dele deixava em sua pele. Sim, havia alguma coisa naquele homem que a
aquecia, algo que nunca sentira antes de conhecê-lo.
— A festa-surpresa foi ideia de Maddie — Ele disse ao abrir a porta da frente.
— Ela adora surpreender as pessoas. Creio que herdou essa característica da mãe.
— Surpresa! — Um coro animado os recebeu assim que entraram na sala.
Suzanne recuou um passo, constrangida. Porém, Joe segurou-a pelo braço para
que entrasse.
— Olá, pessoal. Somos nós.
Inúmeras faces curiosas apareceram por detrás do sofá. Reconheceu a maioria
dos adultos, embora nunca tivesse visto os adolescentes, provavelmente amigos de
Sarah Francês. Sentiu uma ponta de nervosismo e tentou se controlar, sorrindo para
os conhecidos.
Joe passou um braço por seu ombro enquanto atravessava a sala e sentiu-se
grata pelo gesto de proteção. Foram para a sala de estar, onde a sra. Lena estava
acomodada em uma confortável poltrona.
Suzanne olhou ao redor, notando porta-retratos com fotografias em todos os
lugares possíveis. A mobília combinava peças antigas com itens modernos,
proporcionando um ambiente aconchegante, de um bom gosto apurado.

86
Depois da Chuva Karen White

Ed Farrel, sentado no braço da poltrona com a mãe, conversava animadamente


com as gêmeas Sedgewick. Ao se aproximar, pôde ouvir que faziam apostas e sentiu o
rosto se tingir de vermelho ao supor que fossem sobre ela.
— Srta. Paris quer tentar algum palpite?
— Sobre o que estão apostando? — Respirou aliviada ao perceber que, ao menos
daquela vez, não era o tema das apostas.
— Se o bebê de Cassie será menino ou menina. No momento, menina está
ganhando por uma pequena margem.
— O que arrecadarmos será usado para a pintura da igreja — Explicou uma das
gêmeas — O reverendo Beasley vem falando nisso há séculos!
— Apostei que será menino — Disse a outra irmã. — O ventre está muito alto.
— Comprei doze tíquetes. Tenho certeza de que será menina! — Retrucou a
primeira — O ventre está muito arredondado, e todos sabem o que isso quer dizer. E
tenho certeza de que Sam ficará decepcionado.
— Ora, todos sabem que ele prefere que seja menina!
Ao ouvir a menção de seu nome, Sam se juntou ao grupo, carregando uma
garrafa de cerveja consigo.
— Meninas, parem de discutir! Nenhuma de vocês entende desse assunto —
Voltou-se para Suzanne com um sorriso — Que bom vê-la novamente, srta. Paris. Vai
entrar na aposta?
— Não sei. Qual será o prêmio se o palpite estiver correto?
— Uma das maravilhosas tortas de limão da sra. Crandall
— A sra. Lena informou. — Você vai adorar! Sua mãe gostava muito. Ela era
capaz de comer uma torta inteira sozinha.
— Mamãe, você tomou sua medicação hoje? — Ed tocou-a no ombro.
— Sim, como faço todas as manhãs, de acordo com as recomendações do dr.
Parker — Comunicou com gravidade enquanto guardava um envelope cheio de notas na
imensa bolsa.
— Os rapazes deveriam se casar para ter com que se preocupar, não acha, srta.
Paris?
Antes que pudesse abrir a boca, uma das gêmeas a interrompeu.
— Nem precisa responder querida! — E enviou um olhar cúmplice para Joe.

87
Depois da Chuva Karen White

Corando até a raiz dos cabelos, ela tentou sorrir com naturalidade, enquanto
Joe tencionava todos os músculos do corpo.
— Pessoal, está na hora! — Sam gritou, batendo na garrafa de cerveja com uma
colher — Ocupem seus lugares!
Assim que acabou de falar, ouviram passos na varanda. Joe arrastou-a para uma
saleta contígua à sala de estar e Suzanne prendeu a respiração ao ver a coleção de
fotografias de família, com exceção de Harry.
Uma, em particular, atraiu seu olhar. As crianças sorriam posicionadas ao redor
de Harriet, sentada em uma cadeira com Amanda no colo. Joe parecia estar radiante
de felicidade atrás da esposa, com as mãos pousadas nos ombros delicados. O foco da
fotografia era a jovem loira que ocupava o lugar do núcleo da família. Parecia feliz, e
Suzanne sentiu um pouco de ciúme ao pensar que aquela mulher era a dona do coração
de Joe.
Nunca saberia o que estava pensando no momento em que a fotografia fora
tirada, mas o posicionamento da família ao redor dela era uma definição em si.
Ela e Harriet pertenciam a mundos opostos não apenas na aparência física, mas
na forma de conduzir a vida. Uma mãe de família e uma mulher solitária...
Duas linhas sem intersecção.
Ergueu os olhos e percebeu que Joe a observava. Naquele momento, a porta da
frente se abriu e um silêncio profundo se abateu sobre a casa.
— Feliz aniversário! — Ecoou o coro potente assim que, Sarah Francês entrou.
O embaraçoso silêncio que se seguiu foi quebrado quanto a adolescente olhou ao
redor, com grossas lágrimas brotando dos olhos, e precipitou-se escada acima sem
olhar para trás.
— Bem, eu não diria que foi um sucesso — Joe balbuciou, fazendo menção de
subir a escada.
— Acho melhor eu ver o que aconteceu, Joe — Cassie o deteve. — É uma
questão feminina.
E subiu lentamente as escadas, segurando o ventre.
Para alívio de Joe, os convidados dedicaram-se à comida e se animaram em
poucos minutos, esquecidos do que acabara de acontecer.
— Creio que você vai precisar disso — Sam se aproximou com uma garrafa de
cerveja e ofereceu-a ao amigo — Entendeu por que quero que meu filho seja menino?
Joe meneou a cabeça em afirmativa, sorvendo um longo gole.
88
Depois da Chuva Karen White

— Não há nada de errado com as garotas, tio Sam — Maddie comentou,


aproximando-se — Sarah é que é diferente.
Joe endereçou um olhar de censura à filha, que o ignorou.
— Posso tomar uma cerveja, papai?
— Pelo que sei, você tem apenas dezessete anos, o que significa que ainda
faltam quatro anos para atingir a maioridade e uma década para ter permissão para
namorar — Recusando-se a encarar a expressão mal-humorada da filha, voltou-se para
Suzanne.
— Quer beber alguma coisa?
— Um refrigerante, por favor.
Quando ele se afastou, Suzanne abriu a bolsa e apanhou a câmera, erguendo-a
na direção de Maddie.
— Por que você não tira algumas fotografias da festa para exercitar as técnicas
que aprendeu nas últimas aulas? Podemos revelar os negativos juntas e avaliar como
está se saindo.
— Vai deixar que eu use sua câmera? — Maddie apanhou-a como se estivesse
tocando em uma jóia rara e preciosa.
— Por que não? Preciso ficar com minhas mãos livres para comer.
— Que lentes está usando?
— Uma lente de foco sensível. Não é preciso manipular muito vá em frente e
veja o que pode fazer.
— Obrigada! — Saiu com um sorriso feliz no rosto. Naquele momento, Cassie
descia a escada com o braço sobre os ombros de Sarah Francês.
— Isso vai ser interessante! — Maddie murmurou, posicionando a câmera.
— É impressionante como as meninas adoram ver o pior uma da outra! — Joe
comentou, aproximando-se com um copo de refrigerante — Mas quando uma precisa da
outra, fecham o círculo e se armam até os dentes para se defenderem! É preciso ver
para acreditar.
— Cassie e Harriet também eram assim — Sam comentou depois de sorver um
gole de cerveja.
— Só eu sei como é verdade!

89
Depois da Chuva Karen White

— A propósito, Joe Knoxie comentou que Cassie se mudou para Nova York
quando você e Harriet ficaram noivos — Suzanne comentou, tentando aparentar
naturalidade.
— Bem, não foi exatamente assim. Éramos jovens e imaturos e não medíamos as
consequências de nossos atos...
— Fale a verdade, parceiro! — Sam provocou com um sorriso divertido — A
verdade é que todas as garotas da cidade queriam se casar com você, e Cassie não
suportou perdê-lo para a própria irmã. Mas tudo acabou dando certo, no final das
contas — Sam completou.
— E Cassie se exilou em Nova York por quinze anos... — Suzanne segurou o copo
com ambas as mãos, sentindo a temperatura fria em contraste com a noite quente de
verão — Deve ter sido difícil para ela entender que tudo tinha dado certo.
— Claro que precisei entrar em ação para proporcionar um verdadeiro final feliz
— Sam comentou com bom humor — E, por falar em final feliz, Suzanne, preciso avisá-
la de que encomendei uma banheira de hidromassagem que deverá ser entregue
amanhã à tarde. Não quero que seja surpreendida quando os entregadores chegarem
para instalá-la — Sam olhou de maneira inocente para o casal — Vocês dois são bem-
vindos para usá-la sempre que quiserem.
Suzanne engasgou com o refrigerante, enquanto Joe permaneceu lívido, sem
mover um só músculo. Sam, por sua vez, sorriu como se estivesse falando algo tão
trivial quanto o que teriam para o jantar.
Percebendo a aproximação da sra. Crandall acompanhada por uma das irmãs
Sedgewick, Joe tocou no braço de Suzanne e indicou que saíssem, receando que os
comentários maliciosos se estendessem.
— Lucinda vai servir sua famosa galinha frita. Vamos apanhar os pratos.
— Podem ir. Eu lhes dou retaguarda — Com um grande sorriso, Sam se voltou
para as senhoras que se aproximavam enquanto o casal escapava para a cozinha.
Suzanne pôde observar melhor a decoração. Sorriu ao ver seis capas com as
iniciais de cada filho cobrindo o encosto das cadeiras e a geladeira coberta de
fotografias e recados. O objeto mais singular na cozinha era um grande prato de
cerâmica guardado por detrás da porta de vidro do armário. Nele havia cinco marcas
de dedos, cada uma de uma cor diferente, com uma inscrição Feliz Dia das Mães! Ao
centro.
Era como se estivesse pisando em outro planeta. Quase podia ver Harriet
preparando as refeições, ajudando os filhos a fazer o dever de casa, amamentando
seus bebês no calor aconchegante da cozinha...
90
Depois da Chuva Karen White

Sentiu o corpo se contrair como se estivesse sendo força a vestir um casaco


que não cabia nela. Voltou-se e reconheceu a mesa que aparecia na fotografia de
Maddie com a superfície completamente ocupada pelos mais diversos tipos de comida.
Apanhou um prato e se serviu de uma fatia de pão de alho, galinha frita e
ervilhas.
Ed Farrel estava próximo à mesa, segurando dois pratos repletos, e sorriu para
ela enquanto pegava mais um pedaço de torta de palmito.
— Aposto que você nunca viu nada tão agradável em toda sua vida!
— Tem razão. Nem tão eclético também.
Seguiu para a sala e viu Cassie ao lado da sobrinha, ambas apoiadas no corrimão
da escada. Sarah Francês ainda trazia a marca do pranto no rosto. Maddie se colocou
à frente delas e disse alguma coisa que as fez rir. Um flash iluminou-as no momento
seguinte.
Ed Farrel passou por ela e colocou alguma coisa em seu prato.
— Tomates verdes fritos — Anunciou com um sorriso orgulhoso — Especialidade
de minha mãe. Usei a receita dela e gostaria de saber sua opinião.
— Obrigada. Parece apetitoso.
Joe parou ao lado dela e, ao ver o prato repleto, sorriu com satisfação. Fez um
gesto para que ela o seguisse e foram para a varanda dos fundos. O calor da noite de
verão era quebrado pela brisa fresca, anunciando a chegada do outono.
Várias mesas estavam dispostas sobre o gramado, e o burburinho alegre dos
convidados a animou. Sorriu ao ver Maddie circulando pelo quintal com a câmera nas
mãos.
Dirigiram-se à mesa de piquenique ocupada por Lucinda e pelo xerife Adams e
procurou se sentar o mais distante possível dele. Permaneceu quieta enquanto comia,
sentindo-se como uma criminosa que pudesse ser descoberta a qualquer minuto.
Porém, ao perceber que ele estava tão preocupado em dar atenção à Lucinda que mal
percebia o que estava acontecendo ao seu redor, relaxou e pôde apreciar a deliciosa
refeição.
Acabara de comer quando Joey correu para a mesa e tocou-a no braço.
— Meu aviãozinho quebrou. Você poderia consertá-lo?
Ela o fitou como se estivesse vendo um ser de outro planeta.
Apanhou o brinquedo e examinou-o por um longo instante.

91
Depois da Chuva Karen White

— Está vendo este buraco aqui? — Perguntou por fim, mostrando-lhe o defeito.
— É só empurrar um pouco mais as asas... Assim... Pronto! Agora, precisamos ter
certeza de que estão bem alinhadas. Assim, está vendo? Agora, veja se funciona.
Ele o arremessou e sorriu ao vê-lo fazer um vôo rasante.
— Obrigado!
— Não há de quê.
Seu olhar foi capturado pelos olhos de Joe e pôde ver o brilho de um sorriso
iluminando sua expressão.
— Como está o movimento na cidade, xerife?
Ele meneou a cabeça, como se notasse Joe pela primeira vez.
— O de sempre, prefeito. Nada além de alguns atos de vandalismo dos
estudantes — Pegou uma fatia de torta de peca e fechou os olhos para saboreá-la —
Eles insistem em travestir nosso bravo soldado da praça sempre que encontram
oportunidade. E basta ir a sua casa para encontrar o responsável... Melhor, a
responsável!
— Ora, vamos, xerife! Maddie não é a responsável sempre que isso acontece!
Suzanne olhou para Joe, sem entender do que estavam falando, e ele piscou um
olho, escondendo um sorriso.
— Ela está apenas continuando a tradição familiar — O xerife ergueu os ombros
sem esconder um sorriso. — Suponho que agora esteja um pouco difícil para Cassie
subir na estátua, considerando a gravidez adiantada... Além disso, agora ela é uma
respeitável mulher casada. Nada mais natural do que deixar o posto para a sobrinha!
Joe riu com vontade e voltou-se para Suzanne, mas encontrou apenas seu prato
sobre a mesa.
— Com licença, volto em um minuto.
Ele se levantou para sair à procura dela. Encontrou-a no jardim da frente da
casa, ao lado de um arbusto de dama-da-noite, a flor favorita de Harriet è a única a
que se dedicara depois da morte da esposa.
Suzanne estava com os olhos fechados e uma expressão apaixonada no rosto,
inalando o perfume suave da flor que trazia nas mãos.
— Qual é o nome desta flor? — indagou ao sentir a presença de Joe.
— Dama-da-noite.
— É um nome adorável! Por que a chamam assim?

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Depois da Chuva Karen White

— Porque se abre somente à noite, não se sabe o motivo.


— Espero que ninguém descubra. Gosto da idéia de não sabermos tudo. Isso
torna a vida mais interessante.
Permaneceram em silêncio por um momento, ouvindo o som distante da conversa
animada e das crianças brincando. Uma brisa quente os envolveu, como se pudesse
abraçá-los.
— Nem sempre — Joe comentou, sabendo que ela entenderia o sentido implícito
nas palavras — As vezes, não saber tudo nos distancia de quem gostamos.
Ela ergueu o rosto e o encarou, o luar refletindo-se nas íris brilhantes. Abriu a
boca para dizer alguma coisa, mas seus lábios foram capturados por um inesperado
beijo.
Tomada de surpresa, não teve tempo de reagir. Para seu próprio espanto,
entreabriu os lábios e se entregou ao calor da boca sensual. Deixando que a flor caísse
ao chão, envolveu-o pelos ombros e acariciou as costas largas com movimentos suaves.
Joe puxou-a para si, sentindo a vibração do corpo sensual colado ao seu. A
necessidade urgente de senti-la por inteiro o invadiu e lutou com todas as forças para
refrear a fúria do desejo.
Surpreso com o que acabara de acontecer, recuou um passo. Desejava aquela
mulher mais do que tudo e o desejo era mais do que uma mera necessidade física.
Tal percepção deixou-o em pânico. A imagem de Harriet e de seus filhos invadiu
seu pensamento e percebeu o erro que havia cometido.
— Isso não pode acontecer. Nunca mais!
O flash de uma câmera iluminou-os momentaneamente, a luz fazendo com que
vissem a expressão de surpresa no rosto do outro. Ambos se voltaram ao mesmo
tempo para depararem com Maddie, encarando-os de olhos arregalados.
— Papai, está na hora de cortar o bolo! — A voz de Sarah Francês ecoou da sala
ao mesmo tempo.
Como sé houvesse recebido uma súbita descarga elétrica, Joe retirou o braço
que mantinha ao redor da cintura delgada e caminhou para o interior da casa.
— Sinto muito — Maddie murmurou embaraçada. Suzanne tentou entender o que
acabara de acontecer.
— Tenho de ir embora — Declarou, seguindo para o portão. Deteve-se depois de
dois passos, como se houvesse se lembrado de alguma coisa. Retirou um pequeno
embrulho do bolço e foi ao encontro de Maddie.

93
Depois da Chuva Karen White

— Por favor, entregue para Sarah Francês — E saiu antes que ela pudesse
responder.
Correu para casa, ansiosa por chegar à solidão de seu quarto. Atirou-se na cama
e permaneceu por um longo tempo olhando para o teto, lembrando-se de como se
sentira quando estava nos braços de Joe. Finalmente adormeceu, com o sabor daquele
beijo nos lábios.
Suzanne resistiu à urgência de sorrir enquanto atendia ao editor-chefe do
jornal Sentinela de Walton. Hall Newcomb fora escolher um presente para sua esposa,
Sugar. Quando ouviu a nome, imaginou uma mulher pequena e delicada. Porém, quando
ele pediu o tamanho grande, a imagem se desvaneceu completamente.
— Vou levar esta! — Exclamou, erguendo uma fina peça de renda preta.
Suzanne fez um bonito pacote de presente e observou enquanto o cliente
satisfeito saía da loja.
Lucinda lhe dissera que as vendas haviam dobrado desde que a contratara. A
princípio, os clientes haviam sido atraídos pela curiosidade natural e, depois de
esgotá-la, pareciam instintivamente confiarem que ela não divulgaria seus segredos
Enquanto guardava as peças que mostrara para o sr. Newcomb, o mobile de sinos
sobre a porta soou. Stinky Harden entrou na loja e sorriu para ela como um gato que
acabara de avistar um rato.
— Olá, srta. Paris. Que pena ter de trabalhar em um dia ensolarado como este!
Talvez queira dar uma volta comigo depois do expediente...
Suzanne respirou fundo, tentando se controlar.
— Obrigada, mas já tenho compromisso.
— Oh, é mesmo? E posso saber do que se trata?
— Vou me encontrar com Maddie Warner para revelar algumas fotografias no
laboratório da escola.
— E teve permissão para isso?
— Claro. O sr. Tener não impôs nenhuma objeção — Respondeu, irritada por
explicar.
Apanhou uma caixa de meias para guardá-la na prateleira, esperando que
percebesse que não estava interessada em conversar.
— Lucinda está aqui?

94
Depois da Chuva Karen White

— Não — Respondeu sem se voltar. Suzanne olhou de soslaio e percebeu que ele
caminhara até a porta para colocar a placa indicando que estava fechada. — O que
está fazendo?
Ele sorriu e atravessou a loja com o olhar fixo sobre ela. Em um gesto de
defesa, Suzanne colocou uma caixa de lingeries sobre o balcão diante dela.
— Não ouse se aproximar!
— Não se preocupe, não vou machucá-la. Quero apenas conversar com você a
sós. Já que está ocupada demais para sair, sou obrigado a conversar aqui.
Ela estendeu a mão para alcançar o telefone na parede e pedir ajuda, mas
congelou o movimento quando pensou nas implicações que aquele gesto poderia ter.
Afinal, estava sendo procurada por Anthony como se fosse uma foragida e não queria
envolvimentos com a polícia.
— Vamos falar sem rodeios, srta. Paris. Nós dois sabemos que você está
escondendo alguma coisa. Ninguém vem do nada e escolhe uma cidade como Walton
sem nenhuma razão. Então, quando percebi que se tornou muito próxima do atual
prefeito, achei que seria de interesse público saber que tipo de pessoa é você —
Sorriu, sem esconder a satisfação ao ver o pânico nos olhos de Suzanne.
Com um esforço sobre-humano, ela fingiu estar indiferente e voltou a embalar
as lingeries espalhadas sobre o balcão.
— Acho que é meu dever civil saber sobre suas referências nos empregos
anteriores, pois creio que Lucinda ainda não fez isso.
— Trate desse assunto com ela. Apenas trabalho aqui.
— Sei qual é o seu jogo, srta. Paris. Mas não conseguirá esconder seu passado
por muito tempo. E diga a seu namorado para ter mais cuidado com suas companhias.
Eleições já foram perdidas por muito menos.
Ele lhe deu as costas e seguiu para a porta, voltando-se com um sorriso
malicioso antes de sair.
— Tenha um bom dia. — Retirou a placa indicando que a loja estava fechada e
deixou que a porta batesse atrás de si.
Antes que seus joelhos a traíssem, Suzanne se sentou no chão. Apoiou o rosto
nas mãos, tentando ignorar a náusea que contraiu seu estômago.
A voz de sua consciência lhe dizia para partir naquele exato instante. Então se
lembrou do perfume da dama-da-noite e do sabor dos lábios macios de Joe e fechou
os olhos. Ainda não, seu coração implorou.

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Depois da Chuva Karen White

Por mais que estivesse em risco, seu coração criara raízes. Não podia mais
simplesmente ignorá-las, fazer as malas e partir.
— Ainda não — murmurou, deixando que o pranto fluísse livremente.

Capítulo X

Suzanne apertou a bolsa de encontro ao peito ao aproximar-se da casa de Joe.


Não o via desde a festa de Sarah Francês depois de terem se beijado. Sabia que
estavam se evitando reciprocamente, e aquele encontro não seria fácil.
Avistou a caminhonete na calçada e ficou apreensiva quando percebeu que havia
alguém ao lado dela. Ao reconhecer Maddie, suspirou aliviada.
— Olá, srta. Paris — Saudou-a em tom desanimado.
— Olá. Achei que você tivesse um encontro no clube de fotografia.
— E tenho mesmo, mas vou me atrasar.
— Por que está lavando o carro a esta hora?
— Papai me obrigou! Ele disse que quer encontrá-lo limpo quando voltar do
treino de beisebol.

96
Depois da Chuva Karen White

Corando de indignação pelo abuso de autoridade, Suzanne pôs as mãos na


cintura e abriu a boca para dizer alguma coisa quando se conteve. Começou a rir ao ver
a pichação sobre o capo: ferro-velho.
— Isso foi ideia sua?
— Sim. Estava furiosa com ele! — Respondeu enquanto esfregava vigorosamente
uma esponja ensaboada.
— E por que estava furiosa? — Suzanne colocou a bolsa no banco de passageiros
e apanhou outra esponja para ajudá-la.
— Rob vai para Atlanta na sexta-feira à noite com três amigos, e papai disse
que não posso ir.
— Oh... .
Continuou a esfregar o capo sem olhar para ela. Entendia os dois pontos de vista
e julgou que precisavam de alguém que pudesse intermediar uma negociação, mas não
estava disposta a se oferecer para a tarefa.
— O que veio fazer aqui? — Maddie suspendeu a esponja e a fitou — Achei que
você e papai não estavam se falando desde que ele a beijou.
Suzanne sentiu o rosto queimar e se pôs a limpar com vigor uma mancha invisível
no para-lama.
— Lucinda tem um encontro com o xerife Adams e pediu que eu tomasse conta
das crianças, já que você e seu pai têm compromisso. — Fez uma pausa e olhou para a
jovem — O que não entendo é como a cidade inteira ficou sabendo a respeito daquele
beijo...
— As irmãs Sedgewick também viram e são mais eficientes do que a coluna de
fofocas do Sentinela de Walton!
— Oh... Por isso a butique esteve lotada com clientes a semana toda! E todos
faziam questão de frisar como seu pai é maravilhoso...
— As pessoas vêm tentando encontrar alguém para meu pai desde que mamãe
morreu.
— E como você se sente a respeito disso?
— Bem, já tenho dezessete anos — Empinou o nariz com orgulho — Sei que ele
amava minha mãe, mas é jovem demais para ficar sozinho. Além do mais, isso não é da
minha conta. Por mim, papai pode beijar quem ele quiser. Não vou ficar muito tempo
por aqui para me importar.

97
Depois da Chuva Karen White

— O que quer dizer? — Enxugou as mãos na toalha jogada sobre o banco de


passageiros.
— No próximo ano, vou para a universidade. Sarah Francês e Joey já estão
brigando para ver quem vai ficar com meu quarto.
Suzanne estudou-a, notando a falsa coragem no rosto que ainda revelava traços
da infância.
— Tenho certeza de que sempre haverá um lugar para você em sua casa. Mesmo
que esteja fora, aqui ainda será seu lar.
— E como sabe o que significa um lar?
Ela ajeitou a alça da bolsa no ombro, refletindo sobre o que responder.
— Nunca tive um lar, mas posso imaginar como seja.
Ambas se voltaram quando a porta da frente se abriu. Ao avistar seu pai,
Maddie apanhou a bolsa na cabine da caminhonete e se apressou em sair.
— Tenho de ir. O laboratório da escola estará livre na sexta-feira à tarde. Que
tal se fôssemos até lá?
— Claro. Vou confirmar com Lucinda, mas creio que não haverá problema.
Com um aceno, seguiu pela calçada com passos rápidos, deixando-a sozinha para
enfrentar Joe.
Não foi preciso nada além da proximidade física para tirar-lhe o fôlego. Era a
primeira vez que o via com roupas esportivas, e o efeito foi devastador.
Ele trazia Harry no colo, e vestia bermuda azul, camiseta branca e boné azul
com a letra W bordada em vermelho. Quando se inclinou para inspecionar o capo,
Suzanne leu a inscrição nas costas da camiseta: Walton Wazzoos.
Acariciou com o olhar as pernas longas e musculosas, demorando-se no abdômen
atlético. Quando seus olhos subiram para o rosto viril, corou violentamente ao deparar
com ele, fitando-a.
— Boa noite, Suzanne.
— Olá, Joe — Balbuciou, apertando a alça da bolsa.
— Foi muito gentil de sua parte concordar em cuidar das crianças. Tia Lucinda
já lhe informou sobre a rotina da casa, não é?
Suzanne meneou a cabeça em afirmativa, incapaz de pronunciar uma só palavra.
— Ótimo. Nesse caso, não vou entediá-la repetindo tudo. Deixei o número do
meu celular na mesa da cozinha. Ligue se precisar de alguma coisa. — Olhou para o
98
Depois da Chuva Karen White

filho e penteou os cabelos loiros com os dedos — Sarah Francês se trancou no quarto
e se recusa a sair. Não se preocupe com ela. E todos já jantaram.
Joe se adiantou um passo e ela entrou em pânico ao imaginar que pudesse
mencionar o beijo. Em vez disso, suspendeu Harry no ar, esperando que o segurasse.
Sem saber o que fazer, Suzanne abriu os braços e apanhou a criança, que se
atirou em seus braços. O ursinho de pelúcia que carregava caiu ao chão e ele apontou-o
com a voz de choro.
— Wooble!
Joe se abaixou para apanhá-lo, e Harry abraçou-o antes de apoiar a cabeça nos
ombro de Suzanne. Ela prendeu a respiração, surpresa com a doçura e a maciez do
contato.
— Ele está pronto para ir para cama — Joe disse com um sorriso, acariciando o
rostinho rosado — E não hesite em ligar se precisar de alguma coisa.
— Não se preocupe, ficaremos bem — tranquilizou-o, fazendo menção de entrar
na casa.
— Maddie vai ao cinema depois da reunião, e não devo chegar tarde.
Beijou o rosto do filho antes de se despedir com uma leve inclinação de cabeça
e seguir para a caminhonete.
Aliviada por ter sobrevivido ao encontro, ela subiu os degraus da varanda
sorrindo ao perceber que Harry adormecera em seu colo.
Encontrou o quarto dele com facilidade, seguindo o rastro do perfume de talco
de bebê ao longo do imenso corredor do segundo andar. Acomodou-o no berço com
cuidado e saiu na ponta dos pés para não acordá-lo.
Antes de fechar a porta, observou-o por um longo tempo, pensando em sua mãe
pela primeira vez em muitas semanas. Teria ela acalentado seu sono quando era bebê?
Teria sentido o mesmo desejo de protegê-la? Teria se enternecido com a doçura de
um rostinho inocente adormecido?
Desconcertada por identificar tais sentimentos em si mesma, Suzanne prendeu
a respiração. De onde viriam, se ela própria nunca tivera a proteção e o amor da mãe?
Então, uma memória distante emergiu em seu pensamento e lembrou-se de mãos gentis
e suaves e de um rosto cujos traços mal podia evocar.
Olhou para as prateleiras silenciosas, repletas de bichos de pelúcia. O papel de
parede azul com finas listas brancas era entrecortado por desenhos de ursinhos a
caminho de um pique-nique. O quarto bonito e acolhedor fora decorado pelas mãos de
uma mãe amorosa, concluiu.
99
Depois da Chuva Karen White

Um painel bordado em ponto-cruz sobre o berço chamou sua atenção. Pássaros e


coelhos carregavam um cesto de flores coloridas sob um arco-íris. Uma vida sem chuva
é como um sol sem sombras eram os dizeres bordados em azul. Involuntariamente,
tocou o pingente escondido sob a blusa, intrigada com a coincidência.
Aproximou se e estreitou os olhos para ver as iniciais em letras miúdas
bordadas abaixo: P.L. Tentou se lembrar de algum morador da cidade que tivesse
aquelas iniciais, mas ninguém lhe ocorreu.
Guardando todas as dúvidas e incertezas, fechou a porta com cuidado atrás de
si. Ao final do corredor, havia uma porta fechada e presumiu que fosse o quarto de
Sarah Francês. Passou por ele em silêncio e desceu a escada.
Encontrou Joey, Amanda e Knoxie na sala de televisão, assistido a um desenho.
Todos se voltaram assim que entrou e uma súbita tensão apareceu no ar.
— Olá, crianças — Saudou, tentando disfarçar o nervosismo.
— Não sou criança! — Amanda gritou.
— Nem eu! — Knoxie empinou o nariz em desafio. Suzanne sentiu o sangue
congelar nas veias e ia virar as costas para ir embora quando Joey a salvou.
— Ela não quis dizer que são crianças, suas tolas! Está apenas cumprimentando-
as. Esqueceram-se de que a srta. Paris não é daqui?
Suzanne tentou relaxar e sentou-se em uma poltrona, encarando os três
rostinhos curiosos.
— E, então, o que gostariam de fazer? — Indagou, com esperança que
sugerissem ficar assistindo à televisão.
— Vamos jogar Banco Imobiliário!
Knoxie e Joey pularam do sofá, animando-se de pronto.
— Mas não conheço esse jogo!
— Oh, é muito fácil! — Joey anunciou — Você tem dinheiro?
— E por que eu precisaria de dinheiro?
— Você vai ver — As crianças gritaram em coro, correndo para a cozinha.
Duas horas mais tarde, Suzanne deu um copo de leite para cada um e colocou-os
na cama. Fechou a porta do último quarto, exausta e satisfeita.
Ao seguir para a escada, fez uma pausa e ouviu um ruído abafado por detrás da
porta do quarto de Sarah Francês e encostou o rosto sobre a madeira para se
certificar de que era gemido.

100
Depois da Chuva Karen White

Bateu de leve e, quando não obteve resposta, abriu a porta com vagar.
— Sarah Francês? Sou eu, Suzanne. Você está bem?
— Vá embora! — A voz debilitada não soou convincente.
— Posso fazer isso, mas receio que você esteja doente.
— Dei-me em paz! — Balbuciou de forma quase inaudível.
— Não. Vou entrar e ver como você está.
Esperou por alguns momentos e, ao perceber que não fez nenhuma objeção,
entrou e se sentou à beira da cama.
A decoração típica de um quarto de adolescente a fez se lembrar de como
sonhara com um dormitório como aquele. Voltou a atenção para Sarah Francês, deitada
sobre uma pilha de travesseiros. A pele avermelhada indicava que estava com febre.
— Você não parece estar bem. — A adolescente não ofereceu resistência
quando lhe tocou a testa. — Creio que está com febre. Vou chamar seu pai, está bem?
Ela meneou a cabeça em afirmativa, quase sem forças. Suzanne cobriu-a com um
acolchoado e ajeitou os travesseiros para que se acomodasse melhor.
— Vocês têm termômetro? — Indagou, observando os pequenos pontos
vermelhos destacando-se na pele alva.
— Está no armário do banheiro.
— Vou buscá-lo. Volto em um minuto.
Encontrou o termômetro no estojo de primeiros socorros e apanhou uma toalha,
umedecendo-a com água morna. Ao sair, lembrou-se de colocar algumas gotas de
perfume.
Ao voltar, o rosto de Sarah Francês parecia ainda mais vermelho e teve a
impressão de que haviam surgido mais erupções na pele. Tentando aparentar calma,
cobriu a testa febril com a toalha e saiu para telefonar para Joe.
Quando retornou, encontrou-a tremendo de frio.
— Você colocou perfume na toalha — Murmurou, batendo o queixo.
— Lembrei-me que minha mãe fazia isso quando eu estava com febre. Alguém a
ensinara quando era criança, e ela dizia que a fazia se sentir melhor. Achei que
poderia ajudar.
—Minha mãe também costumava colocar perfume na toalha.

101
Depois da Chuva Karen White

Suzanne ficou em silêncio, refletindo sobre mais uma coincidência naquela noite.
Olhou ao redor e notou que a pequena caixa com o presente de aniversário que lhe
dera permanecia intocada sobre o criado-mudo.
— Seu pai vai passar na casa de Sam e estarão aqui em alguns minutos. Posso
fazer alguma coisa para ajudá-la enquanto esperamos?
— Não. Vá embora.
Sarah Francês mantinha os olhos fixos na parede oposta, evitando encará-la.
Em vez de fazer o que ela pedia, Suzanne sentou-se na poltrona ao lado da
cama.
— Não posso. Você está doente e ficarei a seu lado até que seu pai chegue —
Anunciou, resistindo ao impulso de acariciar o rosto febril. — O que mais sua mãe
fazia quando você ficava doente?
A menina resistiu alguns minutos antes de responder:
— Mamãe cantava, mas era tão desafinada que nos fazia sentir pior! —
Exclamou, esboçando um sorriso.
— Oh... Se quiser, posso tentar. Já me disseram que tenho uma boa voz.
— Como quiser — Sarah Francês ergueu os ombros tentando demonstrar
indiferença.
Suzanne se recostou na poltrona e fechou os olhos, vasculhando a memória à
procura de canções antigas de sua infância. Respirou fundo e começou a cantarolar
baixinho uma suave melodia que Lourdes Bianchi costumava cantar para os filhos.
Joe ouviu a voz melodiosa soando como um murmúrio assim que abriu a porta.
Sam parou diante dele e olharam um para o outro, atônitos. Subiram correndo a
escada e pararam diante da porta do quarto, para encontrar Suzanne sentada na
poltrona com os olhos fechados, cantando uma canção de ninar com a voz de um anjo.
Sarah Francês voltara o rosto para ela ouvindo com atenção.
Encantado com a cena, Joe levou alguns segundos para focalizar a atenção no
rosto da filha, e precipitou-se abruptamente para o interior do quarto.
— O que houve? — Sentou-se à beira da cama e beijou o rosto febril.
Com um sobressalto, Suzanne abriu os olhos e se levantou.
— Ela está com febre. Ainda não tomou nenhum medicamento.
A voz soou como desculpa e ela pareceu tão doce e terna que Joe teve de
conter o impulso de beijá-la.

102
Depois da Chuva Karen White

— Espero que vocês já tenham tido catapora — Sam comentou depois de


examinar Sarah Francês.
— Você tem certeza? As crianças já tiveram catapora quando Knoxie era bebê.
— Sim, tenho certeza. Algumas vezes, a criança não consegue desenvolver
anticorpos suficientes para defendê-la se for exposta novamente. Deve ter sido o que
aconteceu com Sarah.
— Oh, não! — Ela reclamou desanimada.
— Desde quando você está com febre?
— Desde hoje cedo.
— E por que não me disse nada? — Joe censurou.
— Eu precisava ir para a escola! Se minhas notas forem baixas, ficarei fora do
time de basquetebol.
— Meu bem, se você está se sentindo mal, não precisa ir à escola! Posso ajudá-la
com a lição de casa.
Suzanne sentiu uma ponta de inveja ao ver o cuidado e a ternura com que Joe se
dirigia à filha.
— Todos nós vamos ajudá-la — Sussurrou, beijando-lhe o rosto.
— É melhor não se aproximarem tanto, Joe. A doença pode ser muito grave em
adultos — Voltou-se para Suzanne — Você se lembra se já teve catapora?
— Creio que sim. Todas as crianças têm, não é?
— Logo saberemos. — Sam verificou o pulso de Sarah Francês. — Vou
prescrever um medicamento que vai fazê-la se sentir mais confortável, querida. E
trate de ficar nessa cama, mocinha!
— Ela vai ficar bem? — Joe indagou preocupado.
— Claro, ela vai ficar ótima! — Sorriu enquanto escrevia a prescrição no
receituário — Ficará indisposta por alguns dias, mas é jovem e saudável e tudo voltará
ao normal em breve.
— Bem, nesse caso, já posso ir embora — Suzanne apanhou a bolsa e caminhou
para a porta — Boa noite.
— Espere! — Joe quase gritou. — Quero conversar com você sobre como as
crianças se comportaram.
Ela se deteve com a mão na maçaneta, insegura.

103
Depois da Chuva Karen White

— Está bem. Vou esperá-lo na varanda.


Quando desviou o olhar, deparou com o sorriso malicioso no rosto de Sam.
— Não se esqueça de que a banheira de hidromassagem está à disposição, se
estiver interessado.
— Não, obrigado — Respondeu, sem esconder a irritação — Não é nada do que
você está pensando.
— Claro que não!
Acompanhou o amigo até a porta, sentindo-se ridículo por ficar aliviado ao ver
que Suzanne ainda o esperava.
Depois de ver o carro de Sam se afastar, caminhou para a varanda com passos
lentos. Deveria ter deixado que ela fosse embora, mas não estava preparado para vê-
la partir.
Olhou rapidamente para o relógio. Maddie deveria chegar em breve e teria
pouco tempo para estar a sós com Suzanne. De súbito, disse a primeira coisa que lhe
veio à mente, esperando que ela não o achasse estúpido.
— Gostaria de ir pescar?
— O que disse?
— Perguntei se gostaria de pescar — Repetiu, sentindo-se ridículo — É
divertido.
— Não, obrigada. Não sei pescar.
— É muito simples. Exige apenas paciência e perseverança.
— Não sou boa em nenhum desses dois critérios.
— Então, está na hora de desenvolvê-los.
Ela sorriu, percebendo que ele não desistiria com facilidade.
— Não seria melhor que você ficasse com Sarah Francês?
— Ela está dormindo e a ponte é logo atrás da casa. Suzanne olhou para o céu
repleto de estrelas, com uma imensa lua cheia espalhando seu brilho prateado.
— Está bem.
— Ótimo! — Joe se esforçou para conter o entusiasmo — Vou apanhar o
equipamento na garagem.
Quando voltou com a caixa de equipamentos de pesca, encontrou-a parada no
gramado, olhando para a casa adormecida com apenas uma luz solitária na janela do
104
Depois da Chuva Karen White

banheiro. A expressão sonhadora no belo rosto o fez lembrar da imagem de uma


criança com o nariz pressionado na janela de uma vitrine, desejando um brinquedo que
nunca teria.
— Está pronta?
— Sim. — Ela seguiu-o para os fundos.
Passaram pela cerca do quintal e atravessaram o pequeno bosque às margens do
rio.
— Está vendo? — Joe apontou para uma das janelas ao fundo da casa —
Podemos ver o quarto de Sarah Francês daqui. Vamos nos sentar em algum lugar de
onde possamos observá-lo.
Joe colocou isca no anzol e estendeu a vara de pescar para ela.
— Basta segurá-la com firmeza — Instruiu, preparando outra vara para ele.
Acomodaram-se em uma pedra à margem, e Joe observou que ela evitava que
seus pés se molhassem.
— Não quer tirar as sandálias? A água está fria, mas a sensação é agradável.
— Prefiro não correr o risco de cair. Não sei nadar. Nunca estive em uma
piscina.
Das poucas coisas que revelara sobre sua vida, aquela o tocou de forma especial.
Lembrou-se das tardes quentes de verão, quando ia para o rio com os amigos e
divertiam-se até a exaustão.
Depois de se tornar pai, fizera questão de ensinar os filhos a nadar. Aquela era
uma das tarefas que considerava fundamental na paternidade e a ideia de que uma
criança não conhecesse o prazer de mergulhar nas águas mornas de um rio fez com
que seu coração se apertasse no peito.
— Você nunca me disse nada sobre sua infância — Murmurou, tentando não
demonstrar a emoção.
— Não gosto de falar sobre isso.
— Eu sei, mas estou muito interessado em saber.
— Não há muito mais a contar além do que já lhe falei. Depois que completei
sete anos, passei por seis orfanatos diferentes. Minha mãe nunca quis ceder minha
tutela legal e não pude ser adotada por nenhuma família. Ela desapareceu de minha
vida quando eu tinha catorze anos. — Ergueu o anzol e voltou a mergulhá-lo. — Ela
também cresceu em orfanatos, e o maior desejo dela era que eu tivesse um lar de
verdade.
105
Depois da Chuva Karen White

— E quanto a você? O que gostaria de ter mais do que tudo?


— Minha independência — Respondeu sem pensar, como se as palavras já
estivessem prontas.
— Nesse caso, por que ficou noiva?
— Este foi o primeiro dos muitos erros que cometi. Estava cansada de cuidar de
mim mesma e acreditei nas promessas que ouvi.
— E sabe qual foi o seu segundo erro?
Suzanne ergueu os olhos, sentindo uma onda de pânico.
— Acreditar nele.
Joe observou-a relaxar os ombros com um movimento quase imperceptível e
mergulhar os pés na água. Avaliou o perfil delicado e o desenho suave do pescoço. Seu
olhar percorreu os braços graciosos segurando a vara de pescar, os dedos longos como
uma sombra frágil à luz da lua.
— E você? O que mais deseja?
Ele refletiu por um longo tempo, tentando priorizar todos os seus desejos.
— Quero que meus filhos sejam saudáveis e bem sucedidos, quero ser um bom
pai para que não sintam muita falta da mãe, vencer as eleições e proteger Walton de
tipos como Stinky Harden... Quero ser um professor melhor e que meu time ganhe o
campeonato... — Cocou o queixo, pensativo — Quero me levantar amanhã cedo sem me
sentir tão cansado.
Voltou o rosto para Suzanne e percebeu como estavam próximos. Como se
tivessem vida própria, as palavras saíram de sua boca sem que pudesse evitar:
— Quero beijá-la mais uma vez.
Tocou-a no rosto, sequioso por provar mais uma vez o sabor dos lábios úmidos.
Ao perceber que não o rejeitara, puxou-a de encontro ao peito, capturando a boca
macia com sofreguidão.
O corpo de Suzanne reagiu como se estivesse esperando por aquele momento.
Enlaçou-o pelo pescoço e inclinou a cabeça, pronta para recebê-lo.
Os corpos unidos rolaram pela grama, e Joe percebeu seu desejo estava além da
necessidade física. Não consegui racionalizar. Tudo que sabia era que aquela bela
mulher estava em seus braços, correspondendo ao seu toque, e a desejava mais do que
gostaria de admitir.

106
Depois da Chuva Karen White

Deitou-se sobre ela, apoiando-se nos cotovelos para protegê-la de seu peso
enquanto a beijava com paixão. A dança sensual das línguas ávidas teve um efeito
explosivo sobre seus hormônios, e girou o corpo para o lado antes que perdesse
autocontrole.
Moveu as mãos para encontrar os seios fartos, sentindo mamilos se enrijecerem
ao toque. Ao sentir que ela arqueava as costas, encorajando-o a seguir em frente,
deixou que suas mãos percorressem a pele acetinada e subissem para desabotoar o
fecho do sutiã.
Despiu-a com urgência, expondo os seios fartos. Uma fina penugem dourada no
pescoço brilhava à luz do luar, fazendo com que uma vaga lembrança o atingisse com
um impacto que o fez voltar à realidade.
Joe se sentou, aturdido, e cobriu o rosto com as mãos.
Chocada, Suzanne abaixou a blusa e se sentou.
— Não sou Harriet — Murmurou em um fio de voz.
— Não. Você não é.
— Creio que seria melhor se nos mantivéssemos distantes. Não quero que isso
aconteça de novo — Ela se levantou e calçou as sandálias — Há muita coisa que você
não sabe a meu respeito e que poderiam prejudicar suas chances de ser reeleito.
Joe sentiu o coração se apertar no peito enquanto a observava se afastar até
que desaparecesse na escuridão. Queria chamá-la e implorar que voltasse, mas não
conseguiu.
Seu mundo se escureceu por um momento. Olhou para o céu no momento em que
uma pesada nuvem encobria a lua. As estrelas haviam desaparecido e os grilos
emudeceram subitamente, como se estivessem mantendo um silêncio solene em
respeito ao que acabara de acontecer.
Joe se ergueu e caminhou com passos rápidos para casa antes que a primeira
gota de chuva começasse a cair.

107
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XI

Maddie caminhou alguns passos inseguros dentro da câmara escura, tateando o


balcão ao centro do cubículo. Era a primeira vez que realizava um processo de
bobinagem, de um filme e estava tão ansiosa que mal podia controlar o tremor das
mãos. Embora já tivesse treinado à luz do dia com um filme velho, sabia que qualquer
erro poderia danificar todas as fotografias.
Com cuidado, colocou o filme sobre o rolo que trazia na mão para contorná-lo
com a ponta dos dedos até encontrar a abertura lateral.
Não podia ver sua dedicada instrutora, que a esperava na sala contígua, mas
sentia sua presença do outro lado da porta. Sorriu ao imaginá-la apertando os lábios e
escondendo as mãos por detrás das costas, esforçando-se para conter o impulso de
entrar e revelar os negativos ela mesma.
— Droga! — Desabafou irritada.
— O que houve? — Suzanne perguntou com o som abafado da voz.
— Não consigo pegar a ponta do filme!
— Maddie, você precisa relaxar. Tente encontrar uma pinça, deve haver alguma
nas gavetas do balcão.
A voz calma vindo do outro lado da porta teve o efeito de um bálsamo. Encheu
os pulmões e soltou o ar lentamente, enquanto abria as gavetas à procura da pinça.
— Encontrei! — Exclamou animada.
— Ótimo!
Ouviu o suspiro de alívio do outro lado da porta e sorriu.
— Lembra-se do que fazer agora?
— Cortar a ponta do filme, separá-lo do invólucro, colocar a ponta na espiral,
bobinar...
— Muito bem! Faça isso e coloque-o dentro do tanque. A partir daí, poderemos
continuar com a luz acesa. Não se preocupe com o tempo. Eu não estou com pressa e
vou esperar até que você consiga — A voz controlada e firme ecoou mais uma vez para
tranquilizá-la.
Maddie imaginou-a com os braços cruzados sobre o peito, esperando
pacientemente. Às escuras, completou todo o processo com a respiração suspensa.

108
Depois da Chuva Karen White

— Consegui! Consegui! — Gritou de alegria.


— Excelente! Agora, proteja-o bem para que você possa sair.
Maddie fez como ela dissera e abriu a porta da câmara escura. Ao avistar sua
instrutora, teve a sensação de que a via através do negativo de um filme até que suas
retinas se acostumassem à luz.
— Você se lembra para que serve cada um deles? — Suzanne indicou os vidros
de produtos químicos na prateleira.
— Revelador, fixador, jarra graduada, termômetro, cronômetro... Sim, creio que
me lembro.
— Ótimo. E sabe o que fazer agora?
— Bem... Teoricamente, sei que o revelador é a primeira solução química a ser
usada, mas o problema é que nunca fiz isso na prática. Você acha que deveria parar?
Prendeu a respiração, receando ouvir um "sim". Porém, Suzanne meneou a
cabeça com vigor em negativa.
— A única forma de aprender é praticando. Prometo não deixar que cometa
algum erro. Talvez possamos até utilizar algumas técnicas para conseguir efeitos
interessantes.
— Ótimo!
Com a concentração de uma estudante aplicada, Maddie apanhou a jarra
graduada e mediu a quantidade de solução. Depois de verificar a temperatura,
despejou-a no tanque e mergulhou o filme, enquanto Suzanne observava com um
sorriso orgulhoso.
— Não se esqueça de agitar o tanque para tirar as bolhas de ar que se formam
ao redor da película.
— Oh, sim! Eu quase me esqueci!
Com o cronômetro em uma das mãos, Maddie agitou a solução em círculos por
quinze segundos, repetindo o procedimento a cada meio minuto.
Enquanto esperava pelo término do processo, buscou coragem para fazer a
pergunta que martelava em sua cabeça durante toda a semana.
— Você já ouviu falar da revista Lifetimel
— Sim. É a publicação especializada em fotografia de que mais gosto.
— Eles estão promovendo um concurso de fotografia para estudantes. O
trabalho do vencedor sairá na capa da revista e o candidato vai receber uma bolsa de

109
Depois da Chuva Karen White

estudos na Escola de Arte de São Francisco. — Respirou fundo, armando-se de


coragem — Minha professora disse que eu tenho condições de participar. Gostaria de
saber sua opinião...
Maddie abaixou os olhos, esperando ouvir Suzanne começar a rir de tamanho
absurdo.
— Claro que tem! — Ouviu-a dizer, para seu alívio.
— Você tem talento, e se conseguir esse prêmio, vai ter um início de carreira
privilegiado. Muitos fotógrafos veteranos adorariam ter um trabalho publicado na
capa da Lifetime.
— Mas é na Califórnia... É muito longe de Walton!
Um misto de dúvida e esperança a invadiu. Ergueu o rosto para Suzanne, que a
fitava com um olhar que parecia ter o poder de acalmá-la.
— Você já falou com seu pai sobre isso?
— Ainda não. Queria falar com você primeiro.
Suzanne prendeu a respiração. Não estava habituada a servir de referência e
nem a ter relações tão próximas como aquela. Para que Maddie não percebesse sua
emoção, fingiu estar muito ocupada com os vidros de soluções químicas.
— Por quê? O que acha que ele vai dizer?
— Ele espera que eu vá para a Universidade da Geórgia. Acho que papai não quer
que eu vá para tão longe. Além disso, fico deprimida só de pensar como ele ficará
sozinho — Curvou os lábios em um arremedo de sorriso.
— E quanto a você? O que realmente quer fazer?
— Eu queria viajar... Conhecer lugares novos e diferentes. Já fui a Nova York.
Sempre quis morar lá com tia Cassie. Acho que não vou conseguir viver minha vida toda
em Walton.
Maddie se sentiu mal, como se estivesse recriminando sua própria família. No
entanto, Suzanne tinha o poder de fazê-la abrir o coração como nunca fizera antes.
— Bem, para mim, parece que você está tentando carregar toda a culpa do
mundo sobre os ombros.
— Engraçado... — Comentou com ar pensativo. — Minha mãe sempre me dizia
isso...
Voltou-se para o balcão e retirou a película do tanque com o revelador para, a
seguir, banhá-la com água.

110
Depois da Chuva Karen White

— Você precisa conversar com seu pai, mas, na minha opinião, deveria participar
do concurso. E se vencer, deve seguir em frente. Tenho certeza de que ele vai apoiá-la
em qualquer coisa que você decida fazer — Fez uma pausa antes de prosseguir: — Não
há nada de errado em desejar algo diferente.
Maddie se concentrou enquanto despejava o fixador no tanque. Agitou-o em
círculos, medindo o tempo.
— Você não acha que ele vai ficar furioso comigo? — Indagou sem tirar os olhos
do cronômetro.
— Talvez fique triste e se sinta só, mas não acho que ficará furioso. Ele é um
pai maravilhoso — Suzanne sentiu uma onda de comoção ao pensar em Joe e mudou de
assunto rapidamente — Bem, vamos começar a etapa da lavagem.
Com cuidado, Maddie apanhou a película e colocou-a sob água corrente por vinte
minutos.
— Você se importaria de colocá-la para secar? Combinei ir ao cinema com Rob e
não quero me atrasar para a sessão das seis horas.
— Nesse caso, é melhor se apressar — Suzanne olhou para o relógio de parede.
— Obrigada. — Maddie enxugou as mãos e a fitou — Suzanne...
— Humm?
— Gostaria de lhe pedir mais um favor... — Hesitou antes de prosseguir —
Tente escolher alguma foto boa o bastante para o concurso... Isto é, se encontrar
alguma que valha a pena.
Suzanne meneou a cabeça e sorriu. Notou a insegurança e o medo estampados
no rosto jovial e desejou ter uma poção mágica que a fizesse confiar mais em si.
— Fique tranquila, tenho certeza de que a encontrarei.
Maddie sorriu com gratidão e, ao ver sua instrutora recostada no balcão com as
mãos por detrás das costas, seu coração se apertou. Ela parecia tão solitária que
quase a convidou para sair. Então, lembrou-se do que seus amigos estavam planejando
fazer naquela noite e mudou de ideia.
— Bem, preciso ir embora. Obrigada pela ajuda.
Em um impulso, abraçou Suzanne e quase se arrependeu ao senti-la recuar.
Respirou fundo quando ela relaxou e correspondeu ao abraço.
— Obrigada mais uma vez — Murmurou, seguindo para a porta.

111
Depois da Chuva Karen White

— Foi você quem fez todo o trabalho! Não fiz nada a não ser ficar por aqui e
observá-la.
— Não é verdade. Sem você, eu não teria seguido em frente.
— Esqueça. Agora vá, antes que Rob desista de esperar.
— Está bem. Por favor, não se esqueça de verificar se a porta está trancada
antes de ir embora, ou o sr. Tener nunca mais vai nos deixar vir ao laboratório.
— Certo. Divirta-se!
Maddie abriu a porta e virou-se antes de sair.
— Quase ia me esquecendo... Charles Harden deverá passar por aqui para deixar
um trabalho do clube de fotografia para o sr. Tener. Se ainda estiver aqui, não o deixe
ver minhas fotografias.
— Ele tem algum grau de parentesco com Stinky Harden?
— É filho dele. Charles Júnior é a versão em miniatura do pai.
— Achei que Stinky não fosse casado.
— Ele é divorciado — Maddie comentou, tentando esconder impaciência por sair.
Como se estivesse lendo sua mente, Suzanne abriu a porta e empurrou-a para
fora com gentileza.
— Não quero prendê-la por mais tempo. Não se preocupe, vou tomar conta das
fotografias.
— Obrigada. Vejo-a mais tarde.
Suzanne acenou e fechou a porta. Colocou os negativos para secar e, enquanto
esperava que ficassem prontos, foi até a cantina da escola para comprar um lanche.
Voltou o mais depressa que pôde e sentou-se diante do balcão para comer. Ao
terminar, recolheu-os do varal, pondo-se a avaliá-los calmamente.
Demorou-se a estudar as cinco primeiras poses que havia tirado no cemitério,
antes de entregar a câmera para que Maddie registrasse a festa-surpresa da irmã.
Não ficou satisfeita com o resultado até deparar com a pose que havia tirado do
túmulo de Harriet. Prendeu a respiração ao ver o efeito espetacular que conseguira.
Embora estivesse vendo as imagens no negativo, percebeu: que conseguira
captar uma delicadeza rara com sua câmera. Parecia haver uma bruma suave no ar que
proporcionava uma impressão etérea de magia.
Verificou a primeira fotografia do rolo e não encontrou o mesmo resultado.

112
Depois da Chuva Karen White

Estendeu o filme contra a luz para obter maior nitidez e passou a analisar as
fotografias que Maddie havia tirado na festa de aniversário de Sarah Francês.
Respirou fundo e se concentrou, disposta a estudá-las uma a uma com olhar crítico.
Estavam maravilhosas! Concluiu com um sorriso orgulhoso depois de analisar
quatro poses. Não havia dúvida, aquela garota tinha um talento especial! Embora
necessitasse aprimorar técnicas de enquadramento e foco, Maddie conseguia captar
as emoções autênticas de seus modelos.
Passou para a pose seguinte e prendeu a respiração ao ver a fotografia de
Cassie abraçada a Sarah Francês, tirada logo depois que desceram do quarto. A
cabeça de Sarah repousava sobre o ombro da tia e os olhos abertos, revelando uma
combinação de sobressalto e indignação, fitavam a lente da câmera. Apenas a mão de
Cassie estava visível sobre a cabeça da adolescente em um gesto de proteção.
Era a mão de uma mãe carinhosa confortando o desamparo e a insegurança da
adolescência.
Nem mesmo o fato de conhecer o relacionamento das duas alterou a primeira
impressão de Suzanne. A fotografia estava perfeita para enviar ao concurso da
revista Lifetime, decidiu.
Continuou a estudar os negativos da festa, admirada com a sensibilidade de sua
aluna. Maddie sabia como captar a essência e a natureza da alma com as lentes da
câmera. Riu ao ver a fotografia das crianças brincando no gramado e a risada se
transformou em uma gargalhada ao ver o flagrante de um prato repleto de comida,
sustentado por mãos roliças e avermelhadas. Provavelmente, era o prato de Ed Farrel,
concluiu.
Ainda estava sorrindo quando seu olhar recaiu sobre a última pose do negativo.
Então, seu sorriso congelou.
A estranha bruma estava presente, da mesma forma que na fotografia que
tirara no cemitério. A névoa esbranquiçada e etérea concentrava-se em um único
ponto e parecia estar atravessada pelo brilho prateado do luar.
Seu rosto aparecia em foco, os lábios entreabertos, separados de Joe por
apenas um suspiro. A boca sensual expressava o desejo incontido e era o único traço
do rosto viril que não se escondia na sombra. Se não soubesse que era Joe quem
estava lá, seria impossível identificá-lo. Seu próprio perfil, no entanto, aparecia por
inteiro e ocupava o centro da fotografia.
Constrangida ao ver a expressão do mais puro enlevo estampada em seu
semblante, Suzanne olhou ao redor, como se quisesse se certificar de que mais

113
Depois da Chuva Karen White

ninguém pudesse vê-la. Sentia-se nua ao olhar para a mulher na fotografia, com a
impressão de que olhava para uma estranha.
Seu coração perdeu um compasso diante da constatação óbvia a que chegou. Não
tinha a menor dúvida de que aquela fotografia poderia ganhar o concurso!
Era a perfeita combinação de inocência e desejo. Era simplesmente brilhante!
Enquanto a contemplava, lembrou-se de uma lenda que ouvira em uma aula de
arte, anos antes.
Dizia a lenda que certa tribo nativa da África nunca permitira que os visitantes
tirassem fotografias, pois acreditavam que sua alma seria capturada. De súbito,
compreendeu o que queriam dizer.
Fechou os olhos, tentando se acalmar. Permitir que aquele retrato fosse
publicado em uma revista de circulação nacional era o mesmo que assinar sua sentença
de prisão! Anthony não perderia tempo em ir a seu encalço.
Àquela altura, já teria descoberto que ela vendera a coleção de Gertrude
Hardt, e tremeu só de pensar na reação violenta do ex-noivo quando a encontrasse.
Um arrepio gelado transpassou-lhe a coluna ao se lembrar dos momentos de
terror que vivera ao lado dele. A única chance que encontrara para deixar de ser o
objeto do sadismo de Anthony fora se refugiar em um local onde ninguém a conheces-
se... E fora então que Walton passara a ser o lar que nunca tivera.
Debruçando-se sobre o balcão, tentou pensar em alguma saída. A idéia de
magoar Maddie era insuportável, mas a noção de que sua vida estaria em risco se o ex-
noivo descobrisse seu paradeiro a impedia de raciocinar.
Por que não partira enquanto ainda era tempo? Recriminou-se. Tudo seria mais
fácil se estivesse longe daquele lugar que a deixara tão vulnerável às emoções...
Voltou a olhar para a imagem, começando a se desesperar. Quando sua vida
controlada dera lugar àquela confusão? Sempre soubera impor a razão sobre a
emoção, mas agora já não podia mais simplesmente ir embora sem olhar para trás.
Comprometera-se a completar o álbum de Maddie e tinha de cumprir a promessa que
fizera a si mesma de terminar o trabalho que Harriet começara.
Com um suspiro profundo, levantou-se e se pôs a andar pela pequena sala.
De súbito, tomou uma decisão.
— Sinto muito, Maddie... — Murmurou, apanhando uma tesoura.
Sem hesitar, cortou a última pose do negativo e observou-o cair ao chão como
uma memória perdida.

114
Depois da Chuva Karen White

Lembrou-se do momento em que a fotografia fora tirada. Quase podia sentir o


aroma das flores e sabor adocicado dos lábios de Joe... Reviveu por um momento a
emoção profunda que sentira quando ele a puxara de encontro ao peito largo e passou
a mão pelos cabelos, tentando se desvencilhar das memórias.
Depois de verificar a secagem do negativo, sentou-se em uma cadeira e apoiou
os cotovelos no balcão. Vencida pelo cansaço, adormeceu rapidamente e acordou
sobressaltada ao ouvir passos na sala.
— Boa noite — Disse, levantando-se de súbito. — Posso ajudá-lo?
Quando a pessoa se voltou para ela, arregalou os olhos em surpresa. Não era
preciso ser apresentada ao jovem parado a sua frente para saber que era o filho de
Stinky Harden.
Maddie tinha razão. Ele era a versão em miniatura do pai, e achou-o engraçado e
apavorante ao mesmo tempo. Ligeiramente mais alto que o pai, possuía o mesmo olhar
malicioso e o rosto avermelhado mostrava uma expressão irônica e prepotente. Assim
que o viu, soube que jamais confiaria nele.
— Você deve ser Charles Harden Júnior...
— Em pessoa — Mediu-a de alto a baixo e sorriu com malícia. — E você deve ser
a nova amiga do prefeito...
— Suzanne Paris — Corrigiu ela em tom firme. — Maddie me avisou que você
viria. — Moveu-se discretamente para bloquear a visão dos negativos pendurados no
varal.
— Eu, ao contrário, não esperava encontrar alguém aqui, especialmente alguém
tão ilustre quanto a namorada do treinador Warner...
— Somos apenas conhecidos! — esclareceu irritada.
— É uma pena. Queria lhe pedir que levasse um recado a ele.
— É mesmo? E o que é?
— Diga a ele que precisa encontrar um jeito de controlar a filha, se quiser
continuar sendo o prefeito desta cidade.
— Do que está falando?
— Bem, de nada em particular. É que fiquei sabendo que Maddie tem
demonstrado um comportamento um tanto inadequado.
— Não tenho a menor idéia do que você quer dizer.

115
Depois da Chuva Karen White

— Vai descobrir em breve. Mal posso esperar para ver a reação do prefeito
quando ficar sabendo! Vai ser muito divertido!
Suzanne recuou um passo e congelou ao ver o negativo que cortara caído no
chão. Com a maior discrição que pôde, cobriâ-o com o pé e, assim que teve
oportunidade, abaixou-se e jogou-o na lata de lixo.
Porém, a delicada operação a impediu de proteger os negativos dependurados.
Quando se voltou, Charles as observava com interesse.
— Puxa, estão muito bons! São seus?
— Não. São de Maddie — Informou, recolhendo-os apressadamente para
guardá-los em um envelope.
— Ela vai concorrer com alguma dessas poses no concurso da revista Lifetimel
— Não sei. Ela ainda não decidiu se vai participar. Foi um prazer conhecê-lo,
Charles. Você poderia trancar o laboratório antes de ir embora?
— Claro, não há problema. Diga olá a Maddie por mim.
Suzanne sentiu um arrepio enquanto caminhava pelo estacionamento da escola,
sem parar para refletir se era devido à queda de temperatura ou ao sentimento de
culpa que oprimia seu peito.
Com passos rápidos, seguiu o caminho para casa. As últimas luzes do dia
emprestavam um colorido avermelhado ao céu.
Atravessou a rua em direção à praça central do vilarejo, observando os últimos
raios de sol iluminando as ruas desertas. Aquela era a hora do jantar em Walton, o
momento em que as famílias se reuniam ao redor da mesa e se uniam em uma prece de
agradecimento.
A brisa fresca fez com que as folhas secas se agitassem no chão. Olhou para o
busto feminino no centro da praça, imaginando se aquela mulher seria tão solitária
quanto ela. Definitivamente, precisava tirar uma fotografia da escultura antes de ir
embora, pensou.
Relanceou o olhar para a estátua do soldado e parou espantada. Ele fora vestido
com um sutiã vermelho de renda e trazia uma vistosa echarpe rosa-vivo ao redor do
pescoço. Os lábios pareciam estar pintados de vermelho, muito similar à cor do batom
de Lucinda... Ao se aproximar, pôde observar mais claramente os traços do bravo
combatente enfatizados por uma maquiagem carregada, que incluía cílios postiços.
Sua primeira reação foi rir. Oh, Maddie! Você é especial! Pensou enquanto
contornava a estátua, observando todos os detalhes da cuidadosa produção.

116
Depois da Chuva Karen White

Porém, no instante seguinte, o sorriso congelou em seus lábios ao pensar no que


fizera momentos atrás...
Uma tristeza profunda oprimiu lhe o peito, fazendo com que lágrimas quentes
brotassem de seus olhos.
Não tivera escolha, mas sabia que talvez tivesse tirado de Maddie a chance de
vencer o concurso de fotografia. Tentou se consolar, dizendo a si mesma que fora
obrigada a optar pela preservação de sua própria segurança.
A brisa fria secou as lágrimas de seu rosto. Com um arrepio, Suzanne lançou um
último olhar para a estátua do soldado e seguiu pelas ruas desertas até sua casa.

Capítulo XII

— O que houve dessa vez?


Joe desligou o telefone e encarou Sam.
— Maddie transformou a estátua do soldado na praça em um travesti. Como de
costume, o xerife Adams parecia mais divertido do que bravo. — Passou os dedos pelos
cabelos, aflito. — Mas esse é o menor dos problemas. Já passa das duas horas da
madrugada e não tenho a menor ideia de onde ela possa estar.
— O que ela disse antes de sair?

117
Depois da Chuva Karen White

— Que ia ao cinema com os amigos e estaria de volta às onze horas. Já


verifiquei o cinema. Ninguém a viu por lá.
— Você já ligou para Clarissa White? Talvez elas estejam juntas.
— Já fiz isso. Clarissa contou a mesma história para a mãe. Estão juntas, apenas
não sabemos onde.
— As crianças são mais do que bem-vindas para ficar aqui o resto da noite. —
Cassie deslizou para a ponta do sofá. — Posso levá-las para casa amanhã cedo.
— Obrigado.
— Bem, vou fazer café. Acho que precisamos beber algo.
Apoiou-se no marido para se levantar e, ao passar por Joe, segurou a mão dele
por um momento e sorriu, fazendo-o se lembrar subitamente de Harriet.
Estava habituado a conviver com a semelhança física entre as duas, mas havia
algo naquele sorriso que tocou seu coração. Cassie estivera do seu lado desde que
Harriet morrera e não havia palavras para expressar a gratidão que sentia.
Assim que ela saiu, Sam se acomodou no sofá e apoiou os pés na mesa de centro.
— Tire os pés daí! — Ecoou a voz da cozinha.
— Juro que ela tem visão telepática! — Resmungou, retirando os pés no mesmo
instante.
— E vai precisar disso quando for mãe. Na verdade, creio que todas as mulheres
desenvolvem tal habilidade no terceiro trimestre de gravidez. Você não aprendeu isso
na faculdade de Medicina?
Sam riu e se recostou no sofá.
— Descobriu mais alguma coisa sobre Stinky Harden?
— Nada de bom. Meu amigo do departamento de polícia de Atlanta fez algumas
investigações. Parece que Stinky está devendo uma fortuna e o dinheiro que conseguiu
para pagar parte da dívida não veio de meios legítimos.
— Por que teria voltado para Walton?
— É o que eu gostaria de saber. Ele vendeu a casa que possuía em Atlanta antes
de se mudar e colocou os bens que herdou dos pais em nome de Charles Júnior, para se
proteger dos credores.
Cassie apareceu com duas canecas de café fumegante.
— Sarah Francês precisa tomar algum medicamento? — Indagou, entregando-
lhe uma das canecas.
118
Depois da Chuva Karen White

— Não. Ela está praticamente curada da catapora. Apenas se certifique de que


está com meias e bem coberta.
— Está bem — Enviou um beijo para Sam e subiu a escada. Ele observou a
esposa com um sorriso terno no rosto antes de continuar a conversa.
— Independentemente da razão que tenha feito Stinky voltar, ele não é a
pessoa ideal para administrar uma cidade.
— Especialmente sabendo que possui sessenta acres de mata virgem nos limites
do município... Tenho um forte pressentimento de que o interesse pela política está
relacionado àquelas terras.
— É possível. Como prefeito, seria mais fácil adequar algumas leis ambientais de
acordo com a conveniência dele.
— Exatamente! — Joe sorveu um gole de café e cruzou as pernas — E, então,
poderá devastar a floresta com a construção de uma madeireira. Para isso, terá de
convencer a cidade de que é um ótimo projeto e, segundo meu amigo investigador, ele
é capaz de métodos pouco amigáveis de persuasão.
— Você soube que ele doou quinze mil dólares para a Biblioteca Municipal para a
compra de novos computadores e um novo telhado?
— Sim. Não sei de onde tirou o dinheiro, mas muita gente notou. Eu não tenho
nem metade disso para minha campanha!
— Você teve a maior votação de todos os tempos na última eleição. Os eleitores
vão se lembrar disso.
— Espero que sim. Bem, vou para casa esperar por Maddie. Agradeça a Cassie
mais uma vez.
Despediu-se do amigo e saiu. Esperou que a porta se fechasse e ficou parado na
varanda por um longo tempo, sem vontade de ir embora.
Aquela era a casa que Cassie e Harriet haviam nascido e onde as primeiras
lembranças de seu grande amor começavam. Vira a esposa pela primeira vez naquela
varanda, usando um vestido amarelo de verão. Fora naquela varanda que a beijara pela
primeira vez.
Ali, sentia a presença da esposa ainda mais do que em sua própria casa, onde
haviam compartilhado a vida de marido e mulher. Mas naquela noite, em vez de tal
sensação confortá-lo, as lembranças o deprimiram ainda mais.
Confuso com a ambivalência de sentimentos caminhou para a caminhonete e se
sentou atrás do volante.

119
Depois da Chuva Karen White

Quase podia ver os pedaços de sua vida girando ao seu redor, como uma
infinidade de círculos à procura de um ponto de foco. Finalmente, colocou a chave na
ignição e ligou o carro, seguindo para casa.
Um ruído abafado no jardim despertou Suzanne. Sentou-se na cama para
perscrutar a escuridão da noite. Por um breve momento, sentiu-se com oito anos de
idade novamente, esperando que sua mãe voltasse depois de uma semana de ausência.
Quase podia sentir o cheiro de uísque no quarto escuro.
Bocejando, levantou-se e estendeu os braços para se orientar.
Ouviu o ruído mais uma vez e julgou que fossem duas vozes, feminina e
masculina, vindas da varanda. Vestiu o robe, o único item que comprara na butique de
Lucinda, e desceu a escada enquanto amarrava o laço na cintura. Acendeu as luzes da
varanda e abriu a porta.
— Olá, srta. Paris...
Maddie saudou-a com voz pastosa. Estava parada no último degrau da escada
com Rob atrás dela, com os braços envolvendo-a pela cintura, e mal conseguia se
manter em pé.
— Você está embriagada!
Horrorizada, Suzanne recuou um passo. Tentou manter a calma, mas a
lembrança de situações semelhantes que vivera com a mãe impossibilitou-a de
raciocinar.
— Não estou tão bêbada, não é, Rob? — Balbuciou com dificuldade, apoiando-se
nos ombros do rapaz.
— Suponho que você tenha alguma coisa a ver com isso, Rob!
— Não, srta. Paris! Eu não gosto de bebidas alcoólicas — Relanceou o olhar para
a namorada com expressão preocupada — Estávamos com Clarissa e dois amigos a
caminho de Atlanta e achei que ela estava tomando refrigerante... Não sabia que havia
colocado uísque no copo! Quando percebi, dirigi de volta para cá.
— Vocês pretendiam ir para Atlanta? O pai dela não a autorizou!
— Ela me disse que o treinador Warner havia concordado! Se eu soubesse, não
teria ido.
— Por que Vieram para cá? Não seria melhor levá-la para casa?
Rob tentou empurrar a namorada para a varanda, mas as pernas dela se
recusaram a cooperar.

120
Depois da Chuva Karen White

— Acredite, srta. Paris, é melhor que ela fique aqui — Com cuidado, ajudou-a a
se sentar no degrau — O treinador Warner vai ficar furioso se a vir neste estado!
— E vai responsabilizá-lo por ter permitido que ela bebesse!
— Mas, srta. Paris, eu não sabia! — Fitou-a ofendido — E, mesmo que soubesse
não posso me responsabilizar pelo que ela faz.
— Por favor, Suzanne, não posso ir para casa agora — Maddie suplicou — Papai
vai me matar!
O cheiro forte de uísque ficou impregnado no ar. Suzanne virou-se para entrar
e ligar para Joe, mas se lembrou de um negativo na lata de lixo do laboratório de
fotografia e o sentimento de culpa a impediu de prosseguir.
— Está bem. Vou cuidar dela.
Com relutância, enlaçou-a pela cintura e ajudou-a a se levantar.
— Nós nos veremos amanhã — Rob despediu-se com um beijo.
Maddie olhou para as paredes como se não conseguisse encontrar o foco e
acenou para o namorado.
— Venha, vou levá-la para a cama.
Suzanne segurou-a com firmeza e conduziu-a para a sala, sem deixar de notar o
pânico se evidenciando nos olhos arregalados.
— Obrigada... — A voz cheia de medo e arrependimento tocou-a no coração —
Não tenho para onde ir.
A princípio, não entendeu por que ela não havia pedido ajuda a qualquer um de
seus amigos. Na certa, nenhum dos moradores de Walton se recusaria a acolhê-la.
Porém, de súbito, percebeu o significado do que ela realmente queria dizer. Sua
casa era o único lugar onde poderia ir sem magoar o pai. Era como se, naquelas breves
palavras, Maddie lhe entregasse toda a confiança que alguém poderia ter.
— Descanse um pouco antes de subirmos para o quarto. Vou preparar um café
e...
— Oh... Não estou me sentindo bem... — Maddie a interrompeu com uma careta.
— Acho que vou...
Com a eficiência adquirida depois de anos de experiência com a mãe, Suzanne
correu para a cozinha e voltou com um saco plástico a tempo de salvar o chão da sala.
Levou-o para o lixo e voltou com um copo de água.
— Está se sentindo melhor?

121
Depois da Chuva Karen White

Maddie meneou a cabeça em afirmativa, com lágrimas nos olhos.


— Sinto muito — Murmurou.
— Tente se apoiar em mim para subir a escada.
Com dificuldade, ajudou-a a galgar os degraus e conseguiram chegar ao quarto.
— Vou telefonar para seu pai. Ele deve estar preocupado,
— Não! — ela gritou apavorada — Por favor, ainda não. Ele vai ficar furioso!
— E não acha que ele tem razão? — Ajudou-a a se sentar na cama — Por que fez
isso, Maddie?
— Você não entende... Ninguém entende!
— Tente me explicar o que está acontecendo com você. Talvez eu possa
surpreendê-la.
— Quem dera pudesse explicar... — Ficou em silêncio por um longo tempo,
apertando as mãos em um gesto nervoso — Não quero morrer antes de poder me
divertir — desabafou, abaixando os olhos.
Suzanne sentou-se ao lado dela e tomou as mãos trêmulas entre as suas.
— Querida, você tem apenas dezessete anos! Terá muito tempo para se divertir.
— Não! — ela exclamou com movimento veemente da cabeça — Você não
entende? Eu não vou viver muito. Minha avó e minha mãe morreram jovens, e assim
será comigo.
Começou a chorar, e Suzanne a abraçou. As lágrimas molhavam seu ombro, e
sentiu o coração se apertar no peito ao perceber a dor profunda que aquela jovem
escondia.
— Não é verdade, meu bem. Não é por ter sido assim com elas que deverá
acontecer o mesmo com você — Segurou-a pelo queixo para fitá-la — Não desista,
Maddie. Você tem a vida inteira pela frente e muita gente para apoiá-la. Precisa viver
sua vida sem medo. Há uma promessa de chuva para todos nós. Porém, é exatamente a
chuva que traz o arco-íris. Só é preciso olhar ao redor para vê-lo.
Uma emoção profunda embargou sua voz e não pôde mais conter as lágrimas ao
se lembrar das palavras da mãe na última vez em que a vira.
— Sinto falta da minha mãe! — Maddie confessou com a voz entrecortada pelos
soluços.

122
Depois da Chuva Karen White

Suzanne envolveu-a em um abraço de uma forma que ela própria gostaria de ser
abraçada. Acariciou os cabelos longos com gentileza enquanto permaneciam unidas,
com as lágrimas se confundindo em um único pranto.
Ao perceber que ela se acalmara, deitou-a com gentileza e a cobriu com um
acolchoado. Esperou até ter certeza de que havia adormecido e desceu para a cozinha.
Apanhou o telefone e discou os números da casa de Joe. Ele atendeu ao
primeiro toque, deixando evidente que ainda não dormira.
— Olá, Joe. Maddie está aqui.
— Graças a Deus! Estou indo até aí para buscá-la.
— Não é preciso. Ela está dormindo agora e creio que seja melhor deixá-la aqui.
Prometo levá-la para casa amanhã bem cedo.
— O que aconteceu com ela?
— Conversaremos amanhã, está bem?
— Há alguma coisa errada com minha filha? Ela andou bebendo?
— Acho que será melhor que ela mesma lhe conte o que aconteceu. Por enquanto,
tudo que precisa saber é que está bem.
— Rob está envolvido? — Insistiu ele, ansioso demais para ouvi-la.
— Não, ao contrário. Foi ele quem cuidou de Maddie e a trouxe para cá. E,
agora, é melhor irmos dormir. Eu queria apenas avisá-lo de que ela está bem e estará
em casa amanhã cedo.
— Não.
— Não?
— Nós saímos para correr todas as manhãs, às seis e meia. Avise-a de que
deverá estar à minha espera quando eu descer a escada para tomar o café da manhã,
ou então ficará de castigo por um mês.
— Joe, ela não fez nada de errado. Eu não acho que...
— Sou o pai dela. Eu dito as regras!
Suzanne ficou em silêncio por um momento.
— Está bem. Esteja certo de que estará em casa a tempo de sair para correr.
— Suzanne?
— Humm?
— Obrigado.
123
Depois da Chuva Karen White

Ela sorriu, sentindo a tensão relaxar.


— Não tem de quê — E desligou o telefone.
Quando Maddie acordou para ir ao banheiro, uma hora mais tarde, Suzanne já
havia tomado um banho e estava vestida à sua espera.
— Fiz um café bem forte e preparei um sanduíche de queijo branco para você —
avisou, conduzindo-a para a cozinha — Depois de se alimentar, vou levá-la para casa.
— Que horas são? — Bocejou, sentando-se à mesa.
— Quatro e meia da manhã.
— Você falou com meu pai, não é?
— Sim.
— E contou que eu...
— Não. Disse apenas que você está bem e que estará em casa logo cedo. Ele
quer que esteja pronta para a caminhada às seis e meia. — Encheu a xícara de café e
estendeu-a para ela — Será melhor levá-la para casa agora, assim poderá dormir um
pouco.
— Meu pai estava furioso?
— Humm... Eu diria que estava mais preocupado do que bravo.
Maddie sorveu um gole de café e fez uma careta ao sentir o gosto amargo.
— Estou em apuros, não é? — Suspirou, forçando-se beber todo o conteúdo da
xícara.
— E provável, mas será mais fácil se enfrentá-lo e contar tudo que aconteceu.
E, agora, coma o sanduíche.
Sorriu ao vê-la obedecer prontamente. Embora Maddie tivesse a aparência de
uma mulher feita, ainda era uma garotinha carente, pensou.
— Pronto — Anunciou, engolindo a última porção do lanche — Podemos ir.
O ar fresco da madrugada revigorou Suzanne enquanto andavam pela cidade
adormecida. A caminhada de vinte minutos demorou mais de meia hora. Debilitada,
Maddie parou diversas vezes para descansar.
Ao chegarem ao portão, notou a luz da varanda acesa e foi tocada por uma onda
de ternura. Mesmo furioso com a filha, Joe deixara a luz acesa para esperá-la.
— Meu pai vai me matar! — Sussurrou aflita.
Suzanne colocou a mão nos ombros dela e empurrou-a para a porta da frente.
124
Depois da Chuva Karen White

— Certo, ele provavelmente vai desmembrá-la, mas depois vai recolher os


pedaços e juntá-los novamente.
Maddie abriu a porta e voltou-se para ela, sem conseguir entrar.
— Por favor, venha comigo...
Indecisa, Suzanne passeou o olhar da rua deserta para o calor aconchegante da
casa.
— Certo, vou ficar por alguns minutos para ter certeza de que você está bem.
Ao entraram no hall silencioso, olharam ao mesmo tempo para a cozinha, o único
aposento iluminado no interior da casa. Mantendo a voz tão baixa quanto um sussurro,
Suzanne disse:
— Seu pai já deve estar acordado, mas nenhum dos dois está preparado para
conversar agora. Vá para a cama. Vou avisá-lo de que você chegou.
Maddie concordou e despediu-se com um beijo. Assim que pisou no primeiro
degrau da escada, voltou-se e abraçou-a.
— Obrigada. Não importa que digam que você não gosta de crianças. Eu sei que
não é verdade!
Comovida, Suzanne acariciou os cabelos em desalinho e lhe deu um tapinha
carinhoso no ombro.
— Tome dois analgésicos antes de ir para a cama. Vai fazer com que se sinta
melhor ao acordar.
— Certo — Concordou, subindo dois degraus.
— E beba muita água. O álcool vai desidratá-la e fazer com que se sinta ainda
mais cansada.
Maddie parou e olhou para baixo.
— Como sabe disso tudo?
Suzanne ergueu os ombros, esperando enfrentar a onda de pânico que
usualmente a invadia quando se lembrava do alcoolismo da mãe. No entanto, para sua
surpresa, sentiu apenas uma ponta de dor machucar seu coração, como se o pânico
houvesse se dissolvido.
— Tenho anos de prática — respondeu sem ressentimento. — Minha mãe era
alcoólatra e era eu quem cuidava dela.
Maddie manteve um silêncio respeitoso, fitando-a profundamente.

125
Depois da Chuva Karen White

— Sinto muito — murmurou — Não por sua mãe, mas porque a fiz sofrer
relembrando tudo isso. Fui muito imatura.
— É verdade. Por favor, não faça isso novamente.
Concordou e despediu-se com um aceno.
Suzanne acompanhou-a com o olhar até que desaparecesse no corredor. Então,
com um suspiro profundo, caminhou para a cozinha.
Embora a luz estivesse acesa, encontrou-a vazia. Desligou o interruptor e
preparava-se para ir embora quando avistou Joe adormecido no sofá da sala de
televisão, com o controle remoto nas mãos.
Entrou na ponta dos pés e desligou a televisão. Cobriu-o com um xale que estava
sobre o braço do sofá e retirou seus chinelos, colocando-os no chão para que os
encontrasse ao acordar.
Hesitou em ir embora ao pensar que gostaria de ter certeza que Maddie estava
bem. Sentou-se na poltrona à frente do sofá, decidida a esperar mais alguns minutos.
Involuntariamente, seu olhar fitou o rosto de Joe. Recostou a cabeça no
espaldar da poltrona e se pôs a estudá-lo.
Enquanto dormia, ele mais parecia um garoto, com os cabelos negros em
desalinho caindo sobre as têmporas. A linha de preocupação em sua testa parecia ter
se suavizado pelo sono e a sombra de um sorriso insinuava-se nos cantos da boca, o que
a fez supor que estivesse tendo sonhos agradáveis.
Demorou-se em observá-lo até que não pôde mais lutar contra o sono. Acordou
com os raios de sol no rosto e um delicioso aroma de café vindo da cozinha.
Sobressaltada, abriu os olhos e notou que alguém colocara o xale sobre seus ombros e
estava sozinha na sala. Sentou-se rapidamente e viu Joe sentado à mesa na sala de
jantar, observando-a.
— Você fica diferente quando dorme.
— Você também — ela disse, esfregando os olhos.
— Espero que seja um elogio.
— Eu também! — Bocejou e sentou-se à mesa, aceitando a xícara de café que ele
lhe oferecia — Quis esperá-lo acordar para lhe dizer que Maddie está dormindo no
quarto dela.
Ele fitou-a com expressão severa.
— Todos já devem estar comentando que você deu cobertura à filha do
prefeito.
126
Depois da Chuva Karen White

— Espero que não prejudique suas chances de reeleição.


— Provavelmente não — Hesitou por um momento antes de retirar alguma coisa
do bolso da calça. — Mas isto vai.
Suzanne congelou ao ver uma nota de quinhentos dólares dobrada ao meio
estendida sobre a mesa.
— Você a deixou cair quando retirava o dinheiro para a aposta, na festa de
Sarah Francês. Joey a encontrou e julgou que fosse falsa.
— Eu notei que havia perdido essa quantia — Guardou-a no bolso da calça —
Obrigada.
— Não costumamos ver notas assim por aqui.
— Creio que não.
— Onde você a conseguiu?
Ela o encarou, os olhos do mesmo tom que a camiseta verde que usava.
— Vendi alguns bens que possuía — Respondeu, sem se aprofundar no assunto.
— Entendo...
Os olhos revelaram a dúvida que as palavras não disseram.
— Não seria melhor guardar seu dinheiro em um banco?
— Não planejo ficar aqui por muito tempo. Não vale a pena abrir uma conta.
— Oh, é verdade! Havia me esquecido.
A casa estava no mais completo silêncio. O céu se mesclara de cor-de-rosa-claro
e alaranjado, anunciando o amanhecer.
— Preciso ir embora — Suzanne anunciou, embora pensasse em inúmeras razões
para ficar, e a principal delas era o homem a sua frente. Colocou a caneca vazia sobre
a mesa e não se moveu.
— Não vai me dizer o que aconteceu com Maddie?
— Não — Ajeitou uma mecha de cabelo por detrás da orelha — Você deve falar
com ela, mas seja gentil. Maddie sente a falta da mãe mais do que você possa imaginar.
— Sei disso, mas não há nada que justifique suas atitudes. Não posso permitir
que se comporte como uma delinquente.
— Tenho certeza de que saberá como conduzir uma conversa. Você tem o dom
da paternidade.

127
Depois da Chuva Karen White

— E você também seria uma excelente mãe, o que é muito estranho,


considerando que não gosta de crianças.
— Por que todo mundo insiste em repetir isso? — Ela resmungou, levantando-se.
— Você sabe, a primeira impressão é a que fica.
Suzanne sentiu o rosto corar ao se lembrar do dia em que o conhecera e
queixara-se da bagunça que as crianças faziam na loja de conveniência.
— Sinto muito por ter reclamado de seus filhos e por perguntar se não havia
leis neste Estado. Não quis dizer aquilo.
— Claro que não! — Joe sorriu com doçura. Percorreu o rosto bonito com o
olhar, contendo o desejo de beijar os lábios macios — Gostaria de sair qualquer dia
desses? — perguntou de súbito, surpreendendo-se com a própria ousadia.
— Você quer dizer... Um encontro? Jantar, filme... Esse tipo de coisa?
— Sim, algo desse tipo.
— Por quê?
— Porque acho que poderíamos nos divertir.
— Não.
— Por que não?
— Bem, porque nosso relacionamento não trará boa reputação para você, e
porque isso não vai dar em nada.
— Não estou propondo um "relacionamento" — Enfatizou a palavra — Não tenho
tempo nem energia para isso. Já tive alguém, e meu coração foi enterrado com ela.
— Você não fica preocupado em ser visto comigo?
Ele segurou-a pelo queixo, forçando-a a encará-lo.
— Posso lidar com fofocas e comentários maliciosos. Estou propondo algo
simples como sair para nos divertirmos. Acho que nós dois precisamos de um pouco de
diversão em nossa vida.
Suzanne fitou-o profundamente, tentando ler a expressão indecifrável nos
olhos dele.
— Até logo, Joe — Deu-lhe as costas e fez menção de sair, detendo-se ao ouvir
a voz grave ecoar atrás de si:
— Devo interpretar como um não?

128
Depois da Chuva Karen White

— Não sei — Respondeu, abrindo a porta da frente. Antes que ele pudesse dizer
mais alguma coisa, fechou a porta e seguiu para casa com passos rápidos.

Capítulo XIII

Suzanne olhou mais uma vez para a anotação em sua agenda e procurou pelo
número setenta e dois, detendo-se diante de uma pequena e acolhedora casa térrea
pintada de cor-de-rosa, a mesma cor do carro de Lucinda. Abriu o portão e seguiu pelo
caminho de pedregulhos que levava à varanda, pensando que todos os habitantes
daquela cidade podiam se orgulhar dos jardins bem cuidados.
Quando ia levar a mão para tocar a campainha, a porta da frente se abriu de
súbito. Ao deparar com Darlene, hesitou por alguns segundos, receando ter chegado
no horário impróprio. Ela estava vestida com elegância, como se estivesse pronta para
ir a uma festa. Usava pantalonas de seda, maquiagem e saltos altos.
— Olá, Darlene. Cheguei na hora certa? Parece que está esperando alguém.
— Não seja tola, querida. Quando uma mulher chega aos quarenta anos e
continua solteira, precisa estar sempre preparada, caso o Príncipe Encantado toque a
campainha. Entre.
Suzanne teve a sensação de estar entrando em uma casa de bonecas. Todas as
superfícies disponíveis da mobília estavam cobertas com bibelôs de todos os tipos e
tamanhos. A casa fora arrumada com esmero e se pôs a imaginar que aquele seria o
tipo de lar que combinaria com Anthony.
De súbito, percebeu que estava comparando aquela casa com a de Joe, cuja
desordem, em um primeiro momento, a desorientava, mas era exatamente o que lhe
dava o aspecto da vida pulsante de um lar verdadeiro.

129
Depois da Chuva Karen White

— Tenho um quarto vazio nos fundos, onde guardo tudo que não uso no dia-a-dia.
Vamos até lá.
Ao passarem pela cozinha, Suzanne inalou o delicioso aroma de pão assando no
forno.
— Preparei um lanche para mais tarde, mas teremos de esperar até que os pães
fiquem bem dourados — Avisou, conduzindo-a para o quintal.
Com outro olhar de relance para a imaculada organização, seguiu-a para uma
edícula aos fundos da casa.
— Esta é minha oficina de trabalho, onde posso fechar a porta e fazer toda a
bagunça que quero.
Suzanne sorriu e se esforçou para encontrar alguma desordem naquele quarto,
que parecia tão organizado quanto o restante da casa.
— Querida, achei maravilhoso que você tenha concordado em completar o álbum
de Maddie. Eu sei como Harriet se sentia a respeito disso. Ela pretendia preservar a
história da família para as futuras gerações. Queria fazer um álbum para cada filho...
Foi uma pena não ter tido tempo de terminar nem sequer o primeiro.
Abriu o armário e retirou um embrulho bem-feito. Descolou com cuidado a fita
adesiva que o envolvia e colocou-o sobre a mesa.
Suzanne puxou-o para si como se estivesse tocando em uma relíquia. Ele
continha as esperanças e os sonhos de uma mãe amorosa. Passou a ponta dos dedos
sobre o papel de seda azul, contornando o nome em alto-relevo escrito na capa.
— Madison Cassandra Warner — Leu em voz alta — Eu não sabia o nome
completo de Maddie. O nome do meio é uma homenagem à tia, não é?
— Sim. Harriet e Cassie sempre foram muito próximas.
— Como era Harriet?
Aquela era a primeira vez que dizia o nome da esposa de Joe, e soou natural
para seus lábios.
— Oh, ela era linda! E não apenas na aparência física. Harriet tinha um coração
de ouro. Amava a todos e todos a amavam. — Meneou a cabeça, com ar pensativo —
Mas todos tinham medo quando ficava brava... Ela virava uma fera! E se alguma coisa
precisava ser feita, era a primeira a tomar a iniciativa.
— Agora entendo por que todos parecem adorá-la.
— É verdade. Joe ficou maluco quando ela morreu. Se não fosse pelos filhos,
acho que não teria tido forças para seguir em frente.
130
Depois da Chuva Karen White

Darlene sentou-se à frente dela e apoiou o rosto com as mãos.


— Acredito que Harriet gostaria que Joe encontrasse alguém. Não apenas para
ajudá-lo com as crianças, mas para que não ficasse tão só. E fico muito feliz que vocês
dois tenham se encontrado.
Suzanne meneou violentamente a cabeça, corando até a raiz dos cabelos.
— Mas não há nada entre nós! Estou de passagem em Walton e devo partir em
breve.
A expressão incrédula de Darlene indicava que não acreditara em uma só
palavra.
— Bem, vamos ver o que Harriet fez.
Ao erguer o álbum, uma moeda escorregou de seu interior.
— Oh... Como isso apareceu aí? — Darlene examinou-a espantada.
— Talvez você a tenha derrubado acidentalmente da última vez que olhou o
álbum.
— Nunca mais o abri depois que Harriet morreu! Além disso, esta moeda está
nova em folha.
Suzanne apanhou-a para averiguá-la de perto, admirando-se ao ver que estava
datada do ano corrente.
— Esta moeda veio do céu! — Darlene juntou as mãos e levou-as ao peito.
— O quê? — Suzanne tentou ignorar o arrepio gelado que subiu por sua espinha.
— Isso sempre acontece quando aqueles que partiram antes de nós querem nos
dizer alguma coisa. Quando a mãe de Sweet pea Crandall estava internada no hospital,
disse à filha que deixara uma moeda dentro de uma lata de chá, uma bebida que
apenas ela tomava. Um ano depois que havia morrido, Sweet pea se lembrou de
procurá-la e a encontrou, exatamente no lugar que a mãe dissera... — Darlene abaixou
a voz, em suspense — A diferença foi que era uma moeda novinha em folha!
— Oh, você não acredita realmente que...
— Sim, acredito. — Meneou a cabeça com vigor — E acho que essa mensagem de
Harriet significa que ela aprova sua relação com Joe.
Suzanne abriu a boca para argumentar que a simples coincidência poderia ser
interpretada da forma como quisesse, mas percebeu que seria impossível convencê-la.
— Não comente com ninguém — Pediu, decidida a não discutir. — Joe e eu somos
apenas amigos e não temos a menor intenção de que nosso relacionamento passe disso!

131
Depois da Chuva Karen White

As crianças, especialmente Sarah Francês, ficariam magoadas se ouvissem alguma


fofoca a respeito do pai.
Darlene concordou e guardou a moeda no bolso.
— Mas lembre-se de que Harriet aprova.
Suzanne forçou um sorriso, pouco disposta a continuar o assunto.
— Onde está o material para o álbum?
— Oh, há tantas coisas!—Abriu a porta do armário e retirou uma caixa. — Aqui
você encontrará fotografias antigas e pequenos objetos que pertenceram a Maddie,
como um cachinho de cabelos e o primeiro dente que perdeu... Tem tudo que poderá
precisar para terminar o álbum, exceto as fotografias da formatura, que poderão ser
colocadas depois.
Colocou a caixa sobre a mesa e abriu-a. Suzanne olhou para seu interior,
admirada.
— Ficarei feliz se puder ajudá-la. — Darlene segurou um pequeno laço de fita
cor-de-rosa entre os dedos — Harriet estava fazendo um trabalho maravilhoso, e
estou certa de que o que ela já fez será um modelo perfeito para você.
Suzanne fechou a caixa e empurrou-a para o lado, voltando a atenção para o
álbum.
Prendeu a respiração ao abri-lo. A primeira fotografia mostrava uma pose
clássica de um grupo de crianças diante da escola e observou com atenção um menino
de cabelos escuros e olhos inconfundíveis. Não tinha dúvida de que se tratava de Joe,
ao lado de uma jovem garota de vestido branco, gracioso e feminino. Os cabelos longos
e dourados estavam por detrás da orelha, revelando pequenos brincos de ouro. Ela
sorria timidamente para a câmera como se houvesse acabado de dizer alguma coisa.
Era como se estivesse olhando para a versão feminina de Harry. Sem sombra de
dúvida, aquela era Harriet. Reconheceu Cassie, Sam e Ed Farrel, mesmo tendo mudado
muito ao longo dos anos.
— Achei que Harriet fosse mais nova que Cassie.
— Sim, Harriet era a caçula.
— E por que estavam na mesma classe?
— A sra. Madison queria que fosse assim, e fez com que Cassie esperasse um
ano para entrar na escola com a irmã. Creio que elas também não queriam que fosse
diferente — Apontou para o garoto ao lado delas — Este é o irmão mais velho delas,

132
Depois da Chuva Karen White

Ed Farrel. Claro, naquela época não sabíamos que era filho do juiz Madison. Foi um
escândalo quando descobrimos.
Suzanne voltou a atenção para ela, interessada.
— O que aconteceu?
— Bem, o juiz Madison era um homem rígido e severo com as filhas. Morreu
quando as meninas ainda eram pequenas. Um ano depois, apareceu na cidade uma
mulher vinda de Atlanta. Ela estava muito doente e procurou a sra. Madison dizendo
que o menino de cinco anos agarrado à barra de sua saia era filho do juiz. Deixou-o na
porta da casa e desapareceu na calada da noite.
— Oh, é mesmo? — Suzanne franziu o cenho, admirada — E como a sra. Lena
entrou nessa história?
— Bem, a sra. Madison era orgulhosa demais para aceitar a prova da traição do
marido bem diante do nariz... Então, a sra. Lena se compadeceu do pobre garoto e o
adotou.
Darlene fez uma pausa e suspirou.
— Ela sempre foi uma mulher muito generosa. Cuidou de Ed como se fosse seu
próprio filho.
— Ela nunca se casou?
— Oh, não! Era uma mulher belíssima e não lhe faltaram pretendentes, mas
nunca quis se prender a homem algum. Dizem que, bem antes de Ed, ela havia tentado
adotar uma garotinha. Não sei por que não deu certo.
— Puxa, que história! Deve ser por isso que Ed é tão tímido.
— Ele sempre foi problemático. É um ano mais velho que as meninas, mas repetiu
duas vezes a primeira série.
Olhando mais atentamente para Harriet, percebeu com surpresa que usava uma
corrente de ouro no pescoço. Era muito pequena para ser vista nitidamente, mas tinha
certeza de que o pequeno pingente pendurado era igual ao seu, embora parecesse
menor. Sentindo uma súbita conexão com aquela criança da fotografia, tocou seu
próprio pingente sob a blusa.
Voltou a se concentrar no álbum e virou a folha.
A página seguinte estava decorada com uma fotografia de Maddie quando era
bebê. A data de nascimento fora escrita logo abaixo, com uma caligrafia bem-feita.
À medida que virava as páginas, aumentava a sensação de que Harriet estava
sentada a seu lado, contando a vida da filha antes que Suzanne houvesse conhecido a
133
Depois da Chuva Karen White

menina. Era como se uma mão invisível a ajudasse a reunir as peças de um quebra-
cabeça para completar a imagem da garota que ela conhecia.
Suzanne se lembrou da conversa que tivera com Joe no cemitério, quando lhe
mostrara o jazigo de seus antepassados, e percebeu que fazer um álbum com a
história daquela criança era o mesmo que dar vida às pessoas que haviam constituído
aquela família.
De súbito, sentia-se frágil e desprotegida. Antes de chegar a Walton, não sabia
o significado de ser parte de uma família. Nunca tivera a segurança de saber que
sempre haveria um lugar para voltar.
Ed, Harriet, Cassie, Sam, Joe... Todos eles tinham raízes naquela cidade. Tal
pensamento provocou uma dor profunda em seu coração. Por um breve momento,
desejou ficar por um tempo longo o bastante para criar raízes. Então, iria embora,
carregando todos os sonhos em sua bagagem.
— Oh, meu Deus! — Darlene gritou, dando um pulo na cadeira. — Esqueci-me dos
pães!
E saiu correndo para a cozinha.
Quando os batimentos cardíacos de Suzanne voltaram ao normal depois do susto
que levara, voltou a olhar o álbum.
Virou a página e sorriu diante da fotografia em preto-e-branco de duas
pegadas. A sola do sapato de um homem trazia ao lado a marca de um sapatinho de
bebê. Maddie seguindo os passos do papai, dizia a inscrição manuscrita logo abaixo. A
delicadeza da fotografia tocou-a e fechou álbum, percebendo de onde viera o talento
de Maddie.
Precisava se lembrar de dizer a ela, pensou. Talvez pudesse se sentir
confortada ao saber que carregava uma parte da mãe. Refletiu que ela própria não
sabia o que herdara e tal noção deixava um vazio que jamais poderia ser preenchido.
— Felizmente, consegui salvá-los! — Darlene irrompeu no quarto com o rosto
afogueado — Vamos tomar lanche? Os pães estão quentinhos.
Suzanne se deliciou com uma farta refeição, e Darlene fez questão de separar
quatro pãezinhos para que levasse para casa.
— Obrigada por tudo, Darlene — agradeceu ao se despedir.
— Vou lhe telefonar se precisar de ajuda, mas creio que tenho uma boa ideia do
que Harriet estava tentando fazer. E vou tirar mais fotografias de Maddie, além das
que ela já tirou.
Apanhou a bolsa e guardou com cuidado os pãezinhos ainda quentes.
134
Depois da Chuva Karen White

— Maddie vai adorar, especialmente por saber que vocês trabalharam juntas.
Sem saber o que responder, Suzanne atravessou a cozinha e seguiu para a porta
da frente. Darlene a acompanhou até a varanda e retirou a moeda que guardara no
bolso, colocando-a sobre o álbum.
— É sua. Guarde-a em lugar seguro.
A moeda parecia brilhar à luz do luar. Suzanne pensou em recusar, mas não
queria magoar Darlene, e guardou-a no bolso da calça.
— Obrigada por tudo. Abraçou-a e seguiu para a calçada, sentindo que
carregava uma vida de memórias, embora nenhuma fosse sua, e uma mensagem vivida
de uma mulher que morrera poucos anos antes, mas cuja presença ainda era tão
palpável quanto o chão-que pisava.
Joe se apoiou sobre o cabo da máquina de cortar grama e despiu a camiseta.
Aparar a grama do jardim da sra. Lena usando aquela antiquada máquina manual era o
bastante para matá-lo. O sol do verão estava no fim, dando lugar à brisa fresca do
começo de outono.
Enxugou a testa com a camiseta e ia recomeçar o trabalho quando um carro
estacionou diante da casa. Um olhar bastou para que reconhecesse a mulher que
ocupava o assento da frente do conversível.
Suzanne usava extravagantes óculos escuros, iguais aos de Lucinda, e estava
vestida com roupas que destoavam de seu estilo habitual.
— Olá, Joe! — Lucinda fez um aceno — Não sabia que era sua vez de aparar o
gramado da sra. Lena.
Ele apoiou os braços na cerca e estreitou os olhos, enviando-lhe um olhar
significativo. Realizava aquele trabalho na última quinta-feira do mês havia mais de
cinco anos e duvidava de que sua tia não soubesse que o encontraria lá. Quando olhou
para Suzanne, tornou-se óbvia a intenção de promover um encontro entre eles.
Demorou-se em observar as pernas longas, realçadas pela minissaia amarela,
subindo o olhar pelas curvas do corpo bem-feito. Estranhou o fato de estar usando
saltos altos.
— Levei Suzanne para fazer algumas compras — Lucinda anunciou com orgulho
como se estivesse adivinhando os pensamentos dele — Queridas, ajude-me a levar a
tigela de creme de aspargos para dentro.
Suzanne desceu do carro com relutância, consciente do olhar sobre ela.
— Eu não pretendia ser vista em público — Resmungou contrafeita.

135
Depois da Chuva Karen White

— Ora, eu avisei que precisávamos trazer o almoço da sra. Lena antes de


passarmos em sua casa — Voltou-se para ela com ar inocente — Como poderia saber
que havia alguém aqui?
Evitando deliberadamente os olhos do sobrinho, Lucinda apanhou uma cesta com
roupa lavada e fechou a porta com o quadril.
— Por favor, coloque a tigela na amurada da varanda. Você pode ficar aqui fora
conversando com Joe enquanto falo com a sra. Lena.
— Prefiro ir com você — Suzanne apressou-se em dizer, quase correndo para a
varanda.
— Não sei se é uma boa ideia, meu bem... Acho que ela quer discutir o último
capítulo da novela, e pode ser muito tedioso.
— É verdade — Joe juntou-se a elas na varanda — Ela já tentou fazer isso
comigo hoje, mas não conseguiu.
Sentiu uma onda de prazer ao notar que Suzanne tentava disfarçar o interesse
pelo seu corpo e vestiu a camiseta, em um gesto de pura provocação.
— Acho que também vou entrar — Anunciou sem a menor cerimônia — Está na
hora de fazer uma pausa.
Sem esperar pela opinião delas, abriu a porta e entrou.
Encontraram a sra. Lena sentada em uma poltrona, assistindo a um filme na
televisão a cabo. Ela se voltou para os visitantes e saudou-os com um sorriso. Desligou
a televisão e, ao fazer menção de se levantar, Joe se precipitou para ajudá-la.
— Oh, eu adoro receber visitas! Vou preparar chá gelado.
— Não é preciso, sra. Lena! — Lucinda a deteve. — Fique aqui conversando com
as visitas enquanto eu preparo alguma coisa para bebermos. Já tomou seus remédios?
— Sim.
— Ótimo.
Lucinda apanhou a cesta de roupas com uma mão, equilibrando a tigela com o
creme de aspargos na outra, e sumiu para o interior da cozinha.
— Sua casa é adorável — Suzanne disse, olhando ao redor.
— Algum escândalo está ganhando a aposta — Como se não tivesse ouvido, a
velha senhora piscou-lhe um olho.
— Creio que ela não queira falar nesse assunto, sra. Lena.

136
Depois da Chuva Karen White

— Joe, não seja ranzinza! — Voltou a sentar-se, sorrindo para Suzanne — Você
gosta de romances? — Sem esperar pela resposta, vasculhou uma cesta de revistas ao
lado da poltrona e apanhou um livro com as páginas amareladas pelo tempo. Amor e
desejo era o título, escrito em letras douradas — Gostaria de ler este livro?
Poderemos discuti-lo na próxima vez que vier me visitar.
Joe quase riu ao ver a expressão surpresa de Suzanne e se moveu para
interceder, mas ela o impediu.
— Obrigada. Estou ansiosa para ler. Minha mãe era uma leitora assídua de
romances. Sempre que me lembro dela, eu a vejo com um livro nas mãos. Era a única
coisa na vida que realmente a fazia feliz — Folheou as páginas envelhecidas. — Faz
muito tempo que não tenho disposição para ler um romance, mas acho que será um bom
começo.
— Esse era um dos favoritos de sua mãe — A velha senhora colocou a mão sobre
o braço de Suzanne.
— Nesse caso, sei que vou adorar!
Suzanne apertou-lhe as mãos com carinho.
Atento à conversa, Joe se sentou ao lado da sra. Lena, tentando se distrair do
fascínio que Suzanne exercia sobre ele.
— Sam tem passado aqui para vê-la?
— Oh, sim! Ele vem quase todas as manhãs.
— Você está maravilhosa. Creio que não a vejo assim desde o casamento de Sue
Ellen.
Enquanto conversava, Joe mantinha um olho em Suzanne, que passeava pela sala
apreciando os porta-retratos com fotografias antigas e os quadros na parede. Havia
um em particular que pareceu ter capturado a atenção dela.
Joe observou-a enquanto o estudava, a mão brincando distraidamente com o
pingente de ouro.
— Essa fotografia também é uma de minhas favoritas! — A velha senhora
exclamou com um sorriso quando Suzana parou diante do porta-retratos sobre a
lareira.
A sra. Lena deveria ter cerca de dezoito anos quando posara: para a fotografia.
Mesmo com o passar dos anos, conservava a mesma doçura no olhar.
— E este é o meu favorito — Joe se aproximou e tocou-a no ombro, apontando
para um quadro na parede.

137
Depois da Chuva Karen White

Analisou a pintura a óleo sobre tela, retratando uma adorável paisagem bucólica.
As iniciais do artista eram as mesmas que vira no painel do quarto de Harry: E.L. Na
certa, a mesma pessoa havia bordado o painel para Harriet, concluiu.
— Quem é E.L.?
— É a sra. Lena. O nome completo é Eulene, mas todos a conhecem pelo apelido.
A mão de Suzanne se fechou sobre o coração de ouro ao redor do pescoço. Uma
estranha sensação a invadiu e afastou-se de Joe para se sentar na poltrona ao lado da
sra. Lena.
— Sua mãe gostava muito daquele quadro — Comentou com naturalidade.
— Oh, é mesmo?
— Sim. Ela era muito observadora!
Uma sombra pareceu enevoar os olhos azuis e ela virou o rosto para Joe.
— Sam, o que está fazendo aqui?
— Sou Joe, sra. Lena. Filho de Mildred Warner. Você foi minha professora no
ensino médio e sempre me enchia de lição de casa quando me esquecia dos versos da
Bíblia — Sorriu e tomou as mãos dela. — Eu achava que era seu aluno preferido.
Ela o fitou com expressão confusa como se tentasse reconhecê-lo.
Naquele momento, Lucinda entrou na sala carregando uma bandeja com uma
jarra de chá gelado e quatro copos. Joe se levantou para ajudá-la a servir e levou um
copo para a velha senhora.
— Oh, eu o conheço! — ela exclamou com um sorriso. — Você é o marido de
Harriet Madison. Agora me lembro! E quem é essa moça bonita?
Inclinou o corpo na direção de Suzanne e estudou-a demoradamente.
— Sou Suzanne Paris.
— Você é solteira, querida? Porque, se for, conheço um rapaz perfeito para
você! — Ela se concentrou em segurar seu copo enquanto agitava os cubos de gelo com
a ponta dos dedos.
— Conheço Ed Farrel, sra. Lena. Seu filho parece ser um ótimo rapaz, mas eu
não estou interessada em um relacionamento agora.
— Oh, não é dele que estou falando! — Meneou a cabeça com veemência —
Temos um excelente cavalheiro na cidade que perdeu a esposa há pouco tempo. Ele
quer que todos acreditem que está muito bem sozinho, mas sabemos que não está, e
provavelmente ele não faz sexo desde que ficou viúvo.

138
Depois da Chuva Karen White

Joe quase engasgou com o chá, evitando olhar para Suzanne. Respirou fundo e
apanhou um guardanapo.
— Lucinda, você colocou muito açúcar no chá! — Reclamou, tentando disfarçar o
constrangimento.
— Não, querido. Coloquei a mesma quantidade de sempre!
— Você não é dessa região — A sra. Lena continuou, ignorando o efeito que seu
comentário provocara.
Feliz por ficar fora do centro das atenções, Joe aproveitou a oportunidade para
sair antes de maiores constrangimentos. Colocando o copo vazio na bandeja, despediu-
se das mulheres e foi para o jardim.
Por que todos insistiam em relembrá-lo todo momento da solidão que o
atormentava?
Enchendo-se de coragem, pegou a velha máquina de cortar grama e se pôs a
trabalhar. Inalou profundamente o cheiro agradável da grama cortada e fez uma
pausa, reconhecendo no ar a mudança de estação.
Por muito tempo resistira a qualquer mudança, recusando-se a se separar de um
passado com Harriet e da vida que haviam compartilhado juntos. Porém, naquele
momento, pela primeira vez desde que perdera a esposa, a ideia de mudança não
parecia tão impossível para seu coração.
Não tinha certeza do que estava diferente, mas já não era tão doloroso admitir
que Maddie se mudaria para outra cidade em breve, Harry estava crescendo e já não
era mais seu bebê... E já não se sentia morrer a cada vez que pensava em passar mais
um Natal sem Harriet.
Era como se as mudanças seguissem um ritmo lento e gradual, levando-o de volta
para o lugar onde tudo começara.
Empurrou com força o cortador de grama, erguendo o rosto para receber a
brisa fresca e dar as boas-vindas às mudanças, com um entusiasmo novo e repleto de
novas esperanças.

139
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XIV

Suzanne estava na cama ouvindo o ruído incessante no andar debaixo. Àquela


hora do dia, deveria estar na butique, e por isso Sam estava na casa trabalhando.
Porém, acordara com febre e se levantara apenas para telefonar para Lucinda. O sim-
ples fato de se mexer havia esgotado suas energias.
Tranqüilizara Lucinda, assegurando-lhe que estava apenas muito cansada e
estaria bem no dia seguinte. No entanto, no decorrer da manhã, sentira-se pior. O
barulho no piso térreo parecia reverberar em sua cabeça.
Com esforço, levantou-se e vestiu o robe. Apoiando-se nas paredes, abriu a
porta e desceu a escada à procura do torturante barulho.
140
Depois da Chuva Karen White

Encontrou Sam na sala de jantar, colocando o rodapé de madeira. Ele levou um


susto ao vê-la e hesitou com o martelo suspenso no ar.
— Suzanne! Sinto muito, achei que estava na butique. Vim no dia errado?
Ela meneou a cabeça em negativa e sentiu que seu cérebro chacoalhou com o
movimento.
— Não. Eu liguei para Lucinda e avisei que estou doente.
Apoiou-se sobre o cavalete no meio da sala, receando não ter energia para se
manter de pé.
Um ruído penetrante vindo do quintal ecoou em sua cabeça e, a seguir, Joe
entrou na sala carregando um pedaço de madeira. Soltou-a e correu na direção de
Suzanne a tempo de ampará-la antes que ela caísse.
— Você já se olhou no espelho hoje? — Sam indagou, tomando-lhe o pulso.
— Não...
— Joe, leve-a para o quarto para que eu possa examiná-la melhor.
— Não é preciso. Posso fazer isso sozinha.
Depois de subir dois degraus, seus joelhos não puderam mais sustentá-la, e Joe
a segurou. Sem avisar, tomou-a nos braços e carregou-a para o piso superior para
deitá-la gentilmente na cama.
O travesseiro estava úmido pela transpiração causada pela febre e fez um
gesto discreto para que o amigo observasse.
— Você está ardendo em febre — Sam disse depois de sentir a temperatura da
testa — Espere um minuto.
Apanhou um pequeno espelho sobre o toucador e estendeu-o para ela.
— Olhe.
Suzanne conteve um gemido ao ver seu reflexo no espelho. Não sabia se chorava
ou se ria histericamente ao ver o rosto coberto por pequenos pontos vermelhos.
— Tem se sentido bem ultimamente?
— Na verdade, não... Mas hoje estou me sentindo péssima!
— Sinto lhe informar, mas acho que você está com catapora. Quanto tempo faz
que ficou com os filhos de Joe?
Ela fechou os olhos, usando toda concentração que pôde para se lembrar.
— Foi há duas semanas.
141
Depois da Chuva Karen White

— Humm.. Está explicado! Você se contaminou ao cuidar de Sarah Francês —


Dirigiu-se a Joe — Vou apanhar minha valise no carro enquanto você liga para Lucinda.
Alguém precisa vir aqui para cuidar dela. Acredite, catapora é muito complicada na
idade adulta.
— Sam, honestamente, posso cuidar de mim mesma. Ficarei bem. Não é
necessário mandar alguém vir para cá.
— Suzanne, vou ser mais claro — Sam posicionou o espelho para que ela visse
seu reflexo — Está vendo esses pontos em seu rosto? Eles vão se espalhar por todo o
seu corpo, inclusive internamente. Você vai sentir um desejo incontrolável de se cocar
e a febre vai fazê-la se sentir ainda pior. É preciso ter certeza de que haverá alguém
para mantê-la hidratada e bem alimentada, e observar se a febre não sobe muito.
Suzanne afundou a cabeça no travesseiro e teve a sensação de que seu cérebro
se desmanchava.
— Não quero que ninguém tome conta de mim. Eu sempre...
— Não quero ouvir mais nem uma palavra, mocinha — Sam a interrompeu em tom
autoritário — Precisa se acostumar, a ter alguém tomando conta de você. Em Walton,
tomamos conta uns dos outros quando necessário. Fique deitada e trate de se habituar
aos nossos costumes.
Assim que ele saiu, Joe se sentou à beira da cama e tomou-lhe as mãos.
— Sinto muito, foi culpa minha. Não devia tê-la deixado se aproximar de Sarah
Francês.
— Está tudo bem — Murmurou, sabendo que não estava sendo coerente.
Joe se inclinou e beijou-a de leve na testa.
— Vou ligar para Lucinda. Não se preocupe, cuidaremos de você.
Ainda tentou protestar, mas estava tão debilitada que mal conseguia falar. Com
um gemido, ajeitou a cabeça no travesseiro e aceitou seu destino. Sem que pudesse
controlar, seus olhos se fecharam e estava mergulhada em um sono quase profundo
quando ouviu passos na escada.
Acordou com um perfume adocicado nas narinas e uma mão suave em sua testa.
Seu corpo inteiro parecia queimar em brasa e pressionou a testa contra a palma macia
da mão, tentando aliviar a dor. A sensação de ter um milhão de formigas caminhando
por seu corpo fez com que abrisse os olhos. Levou a mão para se coçar e se assustou
ao ver que estavam protegidas por luvas.
Alguém apareceu em seu campo de visão, e ela estreitou os olhos para focalizar
o rosto de Lucinda.
142
Depois da Chuva Karen White

— Você não pode se coçar, querida. Sua pele é linda e não queremos que fique
cheia de cicatrizes.
A sensação incômoda continuou a atormentá-la, espalhando-se para o pescoço,
abdômen e pernas.
— Por favor, preciso me coçar!
— Vou preparar um banho quente com ervas medicinais que vão aliviar a coceira.
— Lucinda caminhou até a escrivaninha e voltou com uma pílula nas mãos — Tome seu
medicamento. Vai se sentir melhor.
Suzanne resistiu, rejeitando sua indesejada dependência, mas Lucinda a forçou
a abrir a boca e colocou o comprimido sobre sua língua, fazendo com que engolisse.
— Querida, cuidei de seis crianças e posso lhe garantir que é perda de tempo
tentar lutar comigo — Avisou-a a caminho do banheiro. — Enquanto estiver doente,
sou mais forte que você e terá de fazer o que eu digo.
Suzanne abriu a boca para protestar, mas uma emoção indescritível a emudeceu.
Relutou em gostar de ser cuidada... No entanto, precisou admitir que era a sensação
mais reconfortante que já experimentara, apesar do desconforto proporcionado pela
doença. O imenso alívio por não estar sozinha era um sentimento novo e
surpreendente.
— Está pronta para o banho ou gostaria de comer alguma coisa primeiro? —
Lucinda voltou do banheiro e sentou-se à beira da cama — Eu trouxe canja de galinha.
Não há nada melhor quando estamos doentes! E está tão deliciosa que prometo que não
vou precisar obrigá-la a comer.
Suzanne forçou um sorriso.
— Posso tomar o banho primeiro?
— Certo. Acho que será melhor. Enquanto você fica na banheira, vou trocar a
roupa de cama e aquecer a canja.
Concordou e se ergueu com dificuldade. Pela primeira vez em sua vida, sentiu
que o abismo de solidão no qual mergulhara não parecia tão profundo.
Depois do banho de imersão e de um imenso prato de canja, adormeceu
novamente. Quando acordou, ficou surpresa por encontrar Sarah Francês em uma
cadeira ao lado da cama, fazendo o dever escolar.
— Como está se sentindo agora? — Indagou com ar de preocupação.
— Péssima!
— Tenho de medir sua temperatura — Fechou o caderno e se pôs de pé.
143
Depois da Chuva Karen White

— Por que está aqui?


A voz de Suzanne mais parecia um gemido, e Sarah Frances encheu um copo com
água fresca e estendeu-o para ela antes de colocar o termômetro sob a língua.
— Seria o turno de tia Cassie, mas tio Sam achou que não seria uma boa ideia
por causa da gravidez. Então, ofereci-me para vir — Abaixou os olhos, corando até a
raiz dos cabelos.
— Obrigada, querida — Suzanne murmurou com cuidado para não derrubar o
termômetro.
— Bem, achei que seria justo... Afinal, fui eu quem passou catapora para você e
estava me sentindo culpada.
— Não é culpa sua. Eu pensei que já tinha tido essa doença quando criança.
— Mesmo assim, sinto-me culpada. E pare de falar, senão o termômetro vai cair!
Sarah Francês caminhou para a escrivaninha, de onde pegou um pacote.
— Tia Cassie pediu que lhe entregasse. É uma camisola — Retirou o termômetro
e meneou a cabeça, satisfeita ao ver a temperatura normal — Tia Lu contou que você
só tem uma e elas acharam que precisa vestir alguma coisa decente para receber as
visitas.
— Visitas? — Ecoou, sorrindo diante da inocente sinceridade do que ela dissera.
Naquele momento, ouviram o rangido da porta da frente ao se abrir. Ambas
olharam com expectativa para a porta antes que dois rostos sorridentes das gêmeas
Sedgewick aparecessem.
— Podemos entrar?
Suzanne estreitou os olhos, julgando que a febre estivesse fazendo com que
visse imagens duplas.
— Claro — Respondeu convicta de que qualquer coisa que dissesse não faria
diferença.
As gêmeas, vestidas com calças azul-turquesa e chapéus da mesma cor,
entraram no quarto, e Suzanne notou que também usavam bolsas idênticas.
— Viemos ocupar o posto de Sarah Francês e também para perguntar de que cor
quer seu xale de lã.
— Xale de lã?
— Claro querida — responderam em coro, sentando-se nos pés da cama — Não
há nada melhor para aquecer do que um bom xale de lã. Qual é sua cor favorita?

144
Depois da Chuva Karen White

Antes que pudesse responder, Sarah Francês beijou-a de leve no rosto, pronta
para ir embora.
— Não se esqueçam de que ela precisa tomar o antitérmico daqui a uma hora. E
ela ainda não jantou.
—Trouxemos nosso creme de legumes especial, aquele que ganhou o concurso
três anos atrás.
— Ótimo. Tia Cassie disse para chamá-la se precisarem de alguma coisa. E
deixei a camisola limpa no armário — Observou com expressão severa quando Suzanne
levantou a mão para coçar o pescoço — E não se esqueçam de verificar as luvas. Ela
costuma retirá-las enquanto está dormindo.
As gêmeas concordaram com solenidade e colocaram uma cadeira de cada lado
da cama para se acomodarem.
Sarah Francês deteve-se na soleira da porta antes de sair.
— Você se sentirá péssima nos primeiros cinco dias, mas depois ficará melhor.
Eu tomei os banhos de ervas da tia Lu pelo menos duas vezes por dia e me ajudaram
muito.
—Obrigada, Sarah Francês. Gostei muito por ter vindo aqui.
— Não foi nada.
Assim que a porta se fechou, as gêmeas se debruçaram sobre ela ao mesmo
tempo.
— Você precisa ir ao banheiro, querida?
— Não, obrigada. Mas gostaria que me ajudassem a retirar essas coisas! —
Ergueu as mãos, mostrando as luvas — Estão me deixando louca!
As duas a fitaram com ar de reprovação.
— Não é possível, meu bem. Não queremos que fique com marcas na pele. Selma
vai preparar seu banho enquanto eu a distraio.
Suzanne forçou um sorriso quando ela começou a cantar em um falsete que seria
capaz de estilhaçar uma taça de cristal, enquanto a irmã seguia para o banheiro.
Afundou a cabeça no travesseiro enquanto tentava se coçar discretamente na
região do ventre.
— Pare de coçar, querida. — Depois de atingir um tom altíssimo, Thelma
interrompeu a melodia subitamente — Não se esqueça, é para seu próprio bem.

145
Depois da Chuva Karen White

Suzanne suspirou resignada, e estendeu os braços ao longo do corpo, enquanto


sua acompanhante recomeçava a cantar.
Os dois dias seguintes se passaram como se Suzanne estivesse mergulhada em
uma bruma, acordando e despertando sem ter noção da noite ou do dia.
Brunelle Thompson levara uma torta de pêra e a guardara na geladeira para
quando estivesse se sentindo melhor. A sra. Crandall a presenteara com uma televisão
portátil, um videocassete e alguns de seus filmes favoritos. Embora nunca houvesse
ouvido falar da maioria deles, tornou-se fã de Humphrey Bogart e Clark Gable.
O xale azul-turquesa que as gêmeas tricotaram em conjunto ficava sempre à
mão para quando sentisse arrepios de frio causados pela febre. Algumas simpáticas e
atenciosas senhoras de Walton foram visitá-la diversas vezes.
Suzanne sentia uma emoção nova e desconhecida por ser tratada com tanta
atenção e cuidado. Embora mal conseguisse manter os olhos abertos, apreciava cada
visita e se esforçava para recebê-las da melhor forma que podia.
Porém, a visita de que mais gostava era a da sra. Lena. Ed costumava levá-la e
saía depois de acomodá-la na cadeira ao lado da cama.
— Lembro-me de quando sua mãe teve catapora — Ela dissera certa tarde,
depois de fitá-la com ar preocupado — Meu Ed não sabe de nada. Ele estava morando
com a mãe naquela ocasião.
A seguir, os olhos azuis se enevoaram enquanto pareciam folhear páginas de
livros antigos em sua memória.
— Trouxe algo para você — Dissera de súbito.
Vasculhando a imensa bolsa, apanhara dois livros. O primeiro, com um homem
seminu e uma mulher a cavalo na capa, intitulava-se “Uma Paixão em Viena”. O segundo
era uma cópia antiga do romance “Uma Mulher Apaixonada”.
— Você pode ficar com este. Espero que goste dele da mesma forma como sua
mãe gostava. Ela o leu três vezes seguidas.
— É mesmo? — Comentara com polidez, como sempre fazia diante das
observações da sra. Lena.
Ed, que acabara de entrar no quarto, franzira o cenho com descrédito ao ouvir o
comentário da mãe.
— Mamãe, você tomou seu medicamento hoje de manhã?

146
Depois da Chuva Karen White

— Oh, lá vem você com essa ladainha de medicamentos! — Reclamara ela,


tomando o braço do filho — Claro que tomei! Não sei por que vive me perguntando a
mesma coisa!
Suzanne rira ao vê-los sair e voltara a dormir logo em seguida, seus sonhos
repletos de páginas amareladas de romances antigos.
Joe fechou a porta do quarto com cuidado. Suzanne adormecera abraçada ao
travesseiro, e ele se moveu em silêncio para acomodar-se na cadeira ao lado da cama.
Apanhou a valise e retirou as avaliações de seus alunos que precisava corrigir. Assim
que começou a analisar a primeira, percebeu que seria incapaz de se concentrar.
Olhou para a mulher adormecida sobre a cama, os cabelos longos espalhando-se
pelo travesseiro, cobrindo parcialmente o rosto. Os braços encolhidos, cobertos por
pequenos pontos vermelhos, e as mãos envoltas pela luva, deixavam a impressão de que
estava se preparando para uma luta mesmo no sono.
Seu olhar deslizou pelas curvas generosas moldadas pelo cobertor e mais uma
vez teve certeza de sua vulnerabilidade diante daquela mulher.
Ela se mexeu, e só então pôde perceber que estava abraçada ao ursinho de
pelúcia que Amanda lhe enviara. O movimento fez com que caísse e se levantou para
apanhá-lo quando notou os dois livros no chão.
Apanhou um deles e se pôs a folheá-lo.
— Aprendendo alguma coisa nova?
Sobressaltado, fechou o livro e sentiu o rosto corar.
— Bom dia, Bela Adormecida.
Ela passou a mão pelo rosto e arrumou os cabelos por detrás da orelha.
Não sei se é um elogio ou se você está precisando de óculos.
— Acredite na primeira hipótese — Ele disse com um sorriso — Você parece
melhor.
— Sim, graças aos cuidados de todos e dos banhos de ervas de Lucinda. Creio
que seria mais fácil ficar mergulhada na banheira até estar curada — Tentou sorrir —
Na verdade, tenho vontade de beber um copo da água do banho para atingir todos os
lugares que não posso coçar.
Joe olhou ao redor, tentando não pensar no que Sam lhe dissera sobre a
gravidade do estado clínico de Suzanne.
— Posso fazer alguma coisa por você? Quer comer algo, tomar água, ver um
filme?
147
Depois da Chuva Karen White

— Gostaria que apanhasse minha câmera. Quero tirar uma fotografia de todos
que se sentarem nessa cadeira. Creio que farei uma bela coleção.
— Claro. É só me dizer onde está.
— Na última prateleira do armário.
Antes de se levantar, retirou uma pilha de revistas da valise.
— Eu trouxe alguns exemplares da revista Lifetime. Maddie disse que é sua
favorita. Dei algumas entradas para o jogo de beisebol para que a sra. Harmon
deixasse retirá-las da biblioteca.
— Oh, obrigada! — Apanhou as revistas com um sorriso satisfeito. — Espero que
ela não conte a todo mundo que você a chantageou...
— Ela jurou manter segredo! — Deu uma piscadela maliciosa, fazendo-a rir.
Joe caminhou até o armário e, quando puxou a câmera da prateleira, sua mão
esbarrou acidentalmente em uma caixa, derrubando-a e espalhando seu conteúdo no
chão.
Sentiu o sangue congelar nas veias ao ver inúmeras notas de cem e quinhentos
dólares. Mesmo sem contá-las, percebeu que havia uma pequena fortuna.
— Encontrou a câmera?
— Sim, já estou indo.
Recolocou o conteúdo dentro da caixa e guardou-a na prateleira. Embora
estivesse muito intrigado, julgou que seria melhor falar sobre aquele assunto mais
tarde, quando Suzanne estivesse se sentindo melhor. Além disso, não sabia explicar a
razão, mas confiava naquela mulher.
Colocou a câmera ao alcance dela e se sentou.
— Gostaria de jogar baralho? — Indagou, tentando esquecer o que acabara de
ver.
— Acho que não tenho forças para segurar as cartas.
— Que tal se você lesse em voz alta os livros que a sra. Lena trouxe?
— Não...
— Tem certeza de que não quer comer nada?
Ela pegou a câmera para focalizá-lo e tirar uma fotografia.
— Não, obrigada. Quero apenas um pouco de companhia.
Joe a fitou profundamente enquanto refletia.
148
Depois da Chuva Karen White

— Certo quem é você e o que fez com a Suzanne Paris real?


— O quê? — balbuciou ela, sentindo o sangue congelar nas veias.
— A Suzanne que conheço nunca admitiria a necessidade de companhia.
—Talvez eu tenha mudado — Respondeu, tentando disfarçar o alívio.
Ele franziu o cenho, imaginando o que teria acontecido para que ela admitisse
aquilo.
— Então, sobre o que gostaria de falar?
— Não sei. Que tal se falássemos sobre Maddie? Você já decidiu qual será a
melhor punição para ela?
— Sim. Vai passar os próximos sábados pintando a cerca ao redor da estátua
que ela enfeitou.
— Você foi muito rígido, não acha?
— Ela tem sorte por não enviá-la a um colégio interno na Sibéria.
— Maddie é apenas uma garota assustada — Comentou, contendo o riso diante
do comentário.
— O que quer dizer? O que poderia assustá-la?
Suzanne refletiu alguns segundos, relutante em compartilhar as confidencias.
— Bem, creio que tem medo de sua própria mortalidade. E de deixá-lo. Ela quer
ir para a universidade, mas está preocupada por deixá-lo sozinho.
— Não estou sozinho.
— É mesmo? — Suzanne ajeitou a cabeça sobre os travesseiros — Podemos nos
sentir solitários mesmo tendo uma multidão ao nosso redor.
— Você sabe como é isso, não é?
— Sim, eu sei.
Joe viu uma sombra de tristeza enevoar os belos olhos e se arrependeu assim
que terminou de falar.
— Sinto muito. Eu não quis dizer...
— Você quis, e é verdade. Eu sei o que significa não ter ninguém. Mas gostaria
que não fosse tão rígido com Maddie. Deixe que ela abra as asas e se lance, sabendo
que tem uma casa para voltar. Essa é a grande diferença.
Ele refletiu profundamente sobre o que ouvira e meneou a cabeça, com
expressão grave.
149
Depois da Chuva Karen White

— Receio que não esteja sendo um bom pai para meus filhos...
— Oh, nunca diga tal coisa! Você é um pai admirável. Harriet deve ter sido uma
mãe maravilhosa — Hesitou antes de prosseguir — Sabe, fui à casa de Darlene na
semana passada e peguei o álbum de Maddie. Harriet fez um trabalho maravilhoso.
Joe esperou pelo aperto no peito sempre que o nome da esposa era mencionado
e ficou surpreso por sentir nada além de uma dor fugaz.
— Ainda não o vi.
— Gostaria de vê-lo agora? Está escondido sob a cama, para que Maddie não o
veja. Não quero estragar a surpresa.
— Não, vou esperar até que esteja pronto.
Um sorriso suave brilhou nos lábios macios e, apesar do rosto coberto por
pontos vermelhos, Joe concluiu que continuava linda.
— Você está parecendo uma adolescente com o rosto coberto de acne.
— Creio que ainda seja uma adolescente em vários aspectos — Abaixou os olhos,
constrangida, e se apressou em mudar de assunto — Notei que não há fotografia do
seu casamento. Se puder me dar alguma, ficarei feliz em colocá-la.
Uma velha lembrança o atingiu com a força de um furacão, mas não com a dor
que esperava. Em vez disso, teve a sensação de que a dor estava adormecida, envolta
em um casulo.
— Não há fotos. Harriet e eu nos casamos no civil e desejávamos fazer uma
grande festa de casamento mais tarde, com a família toda. Mas ficou grávida logo que
nos casamos, e depois vieram os outros filhos...
— Não creio que ela tenha se importado. É curioso, mas trabalhar no álbum e
ver as fotografias que escolheu para mostrar a história da família fez com que eu a
conhecesse.
Joe sentiu a garganta se apertar e se pôs a guardar as avaliações dos alunos até
se sentir em condições de falar novamente.
— Ela era uma mulher especial.
— Sei disso. Posso dizer pelo tempo que convivi com você e com as crianças.
— Quanto tempo acha que vai levar para terminar o álbum? — Mudou de
assunto, guardando para si inúmeras perguntas que gostaria de fazer.
— Não sei. Gostaria de tirar mais fotografias da família, dos amigos, da casa, da
escola... De lugares e pessoas, para que ela possa se lembrar mais tarde — A voz soou

150
Depois da Chuva Karen White

cheia de certeza, como se ela soubesse a verdade das palavras por experiência
própria.
— Você acha que estará aqui no Natal?
— Ainda não pensei nisso. Não tenho motivos para ficar depois que o álbum
estiver pronto.
— Por quê?
— Creio que será melhor ir embora antes das eleições. Stinky... — Calou-se a
tempo, antes de revelar que fora ameaçada.
— Bem, digamos que ele fará uma oposição dura e é melhor que eu não esteja
por aqui para não prejudicar sua candidatura.
— Ele a está constrangendo?
— Você o conhece — Respondeu de forma vaga — Ele quer vencer as eleições e
fará tudo que puder para isso.
— Por favor, não deixe de me avisar se ele fizer alguma coisa que a incomode.
Suzanne ficou em silêncio, olhando para o teto, mergulhada em seus
pensamentos.
— Quando serão as eleições? — Perguntou de súbito.
— Em janeiro.
— Posso ficar até lá, se você quiser.
— Sim, eu quero.
Um silêncio tenso pairou no ar. De repente, todas as palavras foram esquecidas.
Suzanne se pôs a apertar as mãos, aflita por encontrar alguma coisa para dizer.
— Quer que eu retire suas luvas?
— Oh, sim! — Quase gritou entusiasmada — Thelma e Selma não me deixavam
retirá-la nem por um minuto!
— Vou aquecer a sopa que Lucinda mandou e tomar um prato com você — Avisou,
guardando as luvas no criado-mudo.
— Será ótimo — Acompanhou-o com o olhar até a porta e chamou-o antes que
saísse — Obrigada.
As palavras soaram estranhas, como se seus lábios estivessem pouco habituados
a pronunciá-las.
— Não há de quê. E tente não se coçar, ou terei de recolocar as luvas.
151
Depois da Chuva Karen White

— Sim, senhor! — E bateu continência, fazendo-o rir — Vou ler um pouco


enquanto espero.
Joe se deteve com a mão na maçaneta e voltou-se para ela.
— Não é tão ruim assim depender de outra pessoa, não é?
— Confesso que estou até gostando de estar com catapora! — Suzanne riu e
apanhou o livro do chão — Acho até que... Oh! O que é isso?
Joe se aproximou, notando que ela segurava uma moeda reluzente nas mãos.
— Estava dentro do livro — Disse surpresa. — Não fui eu quem a colocou lá.
— É uma moeda da sorte?
— Não — Fechou a mão e colocou-a sobre o coração — É uma moeda do céu.
Joe não registrou o que ela dissera. Estava fascinado com o brilho de esperança
que iluminou os olhos castanho-dourados e teve de conter o ímpeto de beijá-la. Um
desejo urgente de fazê-la feliz o atingiu de súbito, e desejou ter o poder de des-
vendar todos os segredos daquela mulher.
— O que você gostaria de ter mais do que tudo? — Perguntou de chofre, sem
conter o ímpeto de tentar desvendá-la.
Ela fechou os olhos e respondeu sem hesitar:
— Gostaria de aprender a nadar. Fico imaginando como foram os verões com
você e seus filhos e queria saber o que perdi.
Joe fitou-a em silêncio por alguns momentos e então sorriu, como se houvesse
acabado de ter uma idéia brilhante.
— Vou ver o que posso fazer — Anunciou antes de sair para a cozinha.

152
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XV

Suzanne foi para a varanda levando consigo seu xale de lã e suas pantufas de
feltro, cortesia de Sugar Newcomb.
Ainda ressentida pela reclusão, reclamara que estava a ponto de enlouquecer
por ficar trancada no quarto e Lucinda havia permitido que tivesse mais liberdade com
uma condição: não poderia sair com sandálias. Então, Sugar tivera a idéia de lhe dar o
presente para que ficasse com os pés aquecidos.
Quando se sentou na cadeira de balanço e enrolou o xale ao redor das pernas,
sentiu-se voltar à vida. Ergueu o rosto para receber a brisa da tarde, apreciando o
calor do xale e até mesmo das ridículas pantufas. Ficou lá por duas horas, até
interromper a leitura dos romances da sra. Lena para apenas observar o tempo passar.
Fechou os olhos por um momento e respirou fundo, notando que a brisa fresca
indicava a mudança da estação. Ela própria havia mudado, refletiu, e o simples fato de
se permitir ficar em Walton era a maior prova disso.
Abriu os olhos com a desconcertante sensação de que sua vida saíra do eixo.
Não planejara se envolver emocionalmente com Lucinda, Joe, Maddie, as crianças...
Porém, era tarde demais. Eles eram a razão para ficar... E, ao mesmo tempo, a razão
para partir.
Forçando seus olhos a focalizar as letras, tentou retomar a leitura. Porém, não
teve tempo de ler duas linhas. Maddie abriu o portão e entrou carregando um grande
envelope.
— O que há de novo? — Suzanne perguntou, notando sua excitação.
— Acabei de falar com papai sobre o concurso da revista Lifetime.
— Oh, que bom! E o que ele disse?
— Bem, a princípio, relutou um pouco em permitir que eu participasse... Mas
quando contei que você disse que tenho talento, decidiu deixar.
— Isso é ótimo, Maddie!
— E aproveitei o momento de coragem para falar sobre a exposição em Atlanta.
Eu disse que é muito importante para minha carreira como fotógrafa e ele concordou
que eu vá com vocês, em vez de ir com a excursão da escola.

153
Depois da Chuva Karen White

Suzanne ouviu sem dizer nada. A idéia de ir àquela exposição ainda a deixava em
pânico. Não havia razão lógica para ter medo, tentava se convencer. Seria quase
impossível que Anthony fosse procurá-la em Atlanta. No entanto, seu sexto sentido
lhe dizia para não ir.
Lembrou-se da valiosa coleção de Gertrude Hardt que tivera nas mãos, sem
imaginar naquela ocasião que um dia as encontraria em uma exposição pública...
— Quando será a exposição?
— Em novembro, logo depois do dia de Ação de Graças. É a primeira exibição
das fotografias de Gertrude em doze anos e nada vai me impedir de vê-la.
— E o que é isso? — Apontou para o envelope no colo de Maddie.
— É a fotografia que vou enviar para o concurso. Queria que você a visse antes
de enviá-la. Tentei usar as técnicas que aprendi com você para ressaltar a imagem.
Não sei se ficou bom.
Suzanne apanhou o envelope, notando o brilho de esperança na voz de Maddie.
Ao abri-lo, sorriu ao ver que a bela imagem de Cassie e Sarah Francês havia se
evidenciado com os efeitos especiais que usara. Uma ponta de culpa apertou-lhe a
garganta ao se lembrar da fotografia que destruíra. Seu único consolo foi pensar que
ambas estavam no mesmo nível de qualidade e Maddie teria as mesmas chances de
vencer, convenceu-se.
— Está perfeita! Acho que você vai ganhar o concurso.
Ouviu-a soltar a respiração com alívio.
— Graças a Deus! Estava com medo de que você não gostasse.
— Não teria como não gostar. Está maravilhosa. E deve acreditar em mim,
porque sou imparcial.
— Sim, eu acredito. Vou colocá-la no correio ainda hoje. Obrigada. — Tomou as
mãos de Suzanne e apertou-as — Obrigada por tudo, especialmente pelo que fez por
mim naquela noite em que fui para Atlanta e bebi um pouco...
— A melhor forma de gratidão será nunca mais colocar uma gota de bebida
alcoólica na boca — Tentou parecer brava para disfarçar a emoção.
— Eu prometo!
Maddie ergueu a mão direita com ar solene e ambas começaram a rir. Enquanto
guardava a fotografia no envelope, comentou com naturalidade:
— Acho que perdi uma pose no final do filme.

154
Depois da Chuva Karen White

A mão de Suzanne congelou no braço da cadeira.


— Eu a inutilizei. Seu dedo bloqueou a imagem e tive de jogá-la fora.
— Que pena! Era a fotografia de você e papai se beijando.
Suzanne sentiu o rosto queimar e abaixou os olhos.
— Ah, quase ia me esquecendo! — Maddie retirou um envelope menor da bolsa —
Revelei o filme de sua câmera. Ficou muito bom!
Suzanne reconheceu as fotografias que havia tirado na última semana, enquanto
se recuperava. As irmãs Sedgewick erguendo o xale de tricô para a câmera, Maddie
pintando as unhas do pé, Lucinda levando uma colher de canja em direção à câmera,
Sarah Francês sorrindo timidamente... E Joe, apanhado de surpresa em um momento
inesperado.
Quando olhou mais de perto, notou a presença da mesma bruma que aparecera
nas fotografias que havia tirado no cemitério. Era como se houvesse um véu-fino e
transparente entre a lente e o objeto.
Reviu todas as fotografias, tentando entender por que aquele efeito aparecia
apenas em algumas poses. Depois de muito refletir, entendeu a razão.
O olho por detrás da câmera havia capturado o raro momento em que objeto e
fotógrafo inteiravam-se plenamente, como que fundidos em um só. A câmera parecia
captar o ritmo da pulsação do objeto.
— Estão realmente boas — Disse por fim.
— Você não acha que eu poderia usar uma delas no concurso?
— Não! Não seria honesto — E mais uma vez seu coração se apertou pela culpa
ao se lembrar do negativo perfeito que jogara fora — A fotografia que você vai enviar
é melhor do que qualquer uma dessas. Além disso, se o júri descobrir alguma
irregularidade, o vencedor será desclassificado e o prêmio passará para o segundo
colocado.
— Está bem — Envergonhada, abaixou os olhos — É que tudo que você faz fica
perfeito!
— Não é verdade, querida — Suzanne apertou os lábios, mortificada pela culpa
— Um dia, você saberá que estou longe da perfeição.
— Bem, tenho de continuar a pintar a cerca na praça, ou meu pai vai me obrigar
a pintar a cidade inteira! Dessa vez ele exagerou no castigo!
— Se você não recebesse um castigo, não perceberia a gravidade do que fez.

155
Depois da Chuva Karen White

— Você sempre fica do lado dele!


Suzanne riu ao vê-la fazer um muxoxo que a fez parecer uma criança
emburrada.
— É que somos adultos e nos preocupamos com você — Comentou com ternura.
— Acho que não é por isso! — Fitou-a com um brilho malicioso no olhar — Eu vejo
a forma como papai olha para você.
Ergueu-se e apertou o envelope de encontro ao peito.
— Até mais tarde, Suzanne.
Quando se viu sozinha, tentou não pensar no sentido das palavras de Maddie e
concentrou-se na folhagem das árvores, notando que o verde vibrante estava se
transformado em vermelho e alaranjado.
As folhas secas caídas ao chão a fizeram perceber que, pela primeira vez na
vida, permanecera em um mesmo lugar tempo bastante para notar a mudança da
estação.
Seu pensamento voltou-se para Joe e apanhou a fotografia dele mais uma vez,
sentindo o sangue correr mais rápido em suas veias. Acariciando a imagem com a ponta
dos dedos, desejou de todo coração que Maddie estivesse enganada.
Simplesmente não podia se apaixonar por aquele homem!
Joe entrou na barbearia carregando Harry pela mão.
— Bom dia, mocinho! — Bill Crandall saudou-o — Veio cortar os cabelos ou fazer
a barba?
— Vou cortar os cabelos e fazer a barba — O pequeno empinou o queixo com
orgulho.
— Oh, muito bem...
O barbeiro se inclinou respeitosamente e pegou-o no colo. Colocou-o na cadeira
e ofereceu-lhe um pirulito. Depois de vesti-lo com o avental, espalhou o creme de
barbear no queixo de Harry e retirou-o com uma navalha sem lâmina.
Com um sorriso, Joe observava o ritual que Bill Crandall executava uma vez por
mês, quando levava o filho para cortar os cabelos. Ele devia estar perto dos setenta
anos, e suas mãos ainda eram firmes e ágeis.
— Sweet pea me disse que a srta. Paris já se restabeleceu.
— É verdade. Ela está completamente recuperada.

156
Depois da Chuva Karen White

Não importava quantas vezes ouvisse o apelido da sra. Crandall ser pronunciado
por seus contemporâneos, Joe nunca conseguiria conciliá-lo à imagem de sua
professora. Cruzou as pernas e se recostou na cadeira.
— Sweet pea ficou encantada com a fotografia dela. A srta. Paris fez uma cópia
e lhe deu de presente. Colocamos em um porta-retratos sobre a lareira — Segurou a
tesoura suspensa no ar e olhou para Joe por sobre os óculos — Não que Sweet pea não
seja naturalmente bonita, é claro, mas aquela garota tem jeito com a câmera!
— É verdade, ela é excelente fotógrafa — Entre outras qualidades, Joe pensou.
— Ela deveria abrir um estúdio fotográfico na cidade. Quando alguém precisa
tirar fotografia, tem de ir até Mapleton.
— Creio que ela não planeja ficar aqui por muito tempo — É uma pena. Sweet pea
gosta dela como se fosse sua filha, embora a srta. Paris não demonstre precisar de
mãe.
Os pequenos sinos pendurados à porta balançaram, e Joe olhou de soslaio para
Stinky Harden, que acabara de entrar na barbearia com a testa coberta de gotículas
de suor, apesar da temperatura amena.
— Olá, Bill. Prefeito Warner... — Inclinou levemente a cabeça — Preciso fazer a
barba e cortar os cabelos. Você tem horário para mim?
— Sim. Acomode-se. Vou atendê-lo assim que acabar o trabalho neste cliente
importante.
Harry ergueu os olhos incrivelmente azuis para ele e sorriu.
— É um prazer revê-lo, prefeito — Stinky se acomodou na cadeira ao lado de
Joe e apanhou o último número do jornal Sentinela de Walton — Acabei de ver Maddie
na praça, pintando o cercado da estátua. Não parecia muito feliz.
— Não há motivo para que fique feliz. Ela está sendo punida.
— Como um homem que mal pode controlar a própria filha planeja administrar
uma cidade? — Provocou, simulando interesse em uma manchete do jornal — Vá se
acostumando, meu caro. Este será o novo slogan da minha campanha.
Joe apertou os braços da cadeira, contendo a raiva.
— Obrigado, Stinky. Vou me lembrar disso.
Virando a página do jornal, manteve o tom de voz baixo para que apenas ele
pudesse ouvir:
— Fiquei sabendo que andou investigando a meu respeito...

157
Depois da Chuva Karen White

Joe o fitou com a mesma expressão de neutralidade no rosto.


— Se você não tem nada a esconder, não há motivo para se preocupar... A menos
que esteja escondendo algo que os eleitores de Walton não possam saber!
— O que quer dizer?
— Sei que tem muitas dívidas, Stinky, e sei também que possui muitos acres de
mata virgem na divisa do município, que devem valer uma fortuna. E isso me faz
pensar... — Franziu o cenho, com falso ar de surpresa — Por que se interessou
subitamente por política, a ponto de se candidatar à Prefeitura?
— Ora, é natural que me interesse pela cidade onde nasci!
— Não creio... — Joe inclinou o corpo para frente — Se for eleito, você poderá
revogar a lei contra o desmatamento. Claro, precisará convencer a Câmara dos
Vereadores e a opinião pública. — Sentiu a raiva crescer em seu peito e apertou as
mãos. — A população não vai permitir, Stinky.
— Tudo tem um preço... Até mesmo você, caro prefeito. No entanto, posso
abandonar minha campanha se você concordar com alguns detalhes...
— Jamais! Isso é suborno!
Stinky respondeu com uma gargalhada.
— E avise sua namorada que estou de olho nela — Levantou-se e apontou um
dedo ameaçador para Joe — Trate de não se meter em meus negócios, ou algumas
histórias sobre o passado sombrio da srta. Paris serão divulgadas para que todos
fiquem sabendo.
Stinky caminhou para a cadeira enquanto Bill desabotoava o avental de Harry e
o colocava no chão.
— Vamos comprar sorvete, papai?
— Vamos. — Joe pegou na mão do filho e fez menção de sair.
—Espere! — Stinky chamou, retirando um pirulito do bolso do paletó e
oferecendo-o para Harry.
— Não, obrigado. Não aceitamos doces de estranhos — Resmungou, arrastando
o filho para fora.
— Curioso... E você deixa uma estranha tomar conta de seus filhos! Que tipo de
pai faz isso? — Stinky riu com ironia. — Creio que está investigando a pessoa errada,
prefeito.
— Venha, Harry.

158
Depois da Chuva Karen White

Apressou-se em sair, mas ainda pôde ouvi-lo ameaçar:


— Se continuar me investigando, vou investigá-la também. E juro que você não
vai gostar do que vou descobrir!
Suzanne apanhou a mochila e retirou uma pasta guardada em seu interior. Ao
abri-la, soltou um gemido de desagrado, observando que a borda de sua fotografia
favorita estava amassada. Tentava guardá-la com o maior cuidado possível,
carregando-a consigo em sua rota de fuga para se livrar de Anthony. Porém, depois de
ser jogada em bagageiros de ônibus e de percorrer milhares de quilômetros, seria
quase impossível que permanecesse intacta.
Olhou ao redor tentando encontrar algo pesado para colocar sobre a fotografia
e alisar o vinco antes que ficasse danificada. Encontrou o álbum de Maddie sobre a
escrivaninha e encaixou o retrato sob as folhas centrais, satisfeita por resolver o
problema.
Antes de guardá-lo, não resistiu ao impulso de abri-lo na página em que estivera
trabalhando naquela manhã.
As fotografias registravam uma viagem da família para a praia.
Maddie aparentava estar com cerca de seis anos e sorria para a câmera ao lado
de Sarah Francês e Joey. Harriet, grávida de Knoxie, usava um traje de banho que
ressaltava o ventre redondo. Ela ajudava os filhos a construir um castelo de areia e
ostentava um sorriso radiante no rosto.
Suzanne sorriu diante da cena e, ao observá-la com mais atenção, notou que
Maddie segurava as mãos da mãe em um gesto possessivo. Talvez fosse por ser a filha
mais velha e considerar a companhia dos irmãos inoportuna, Suzanne refletiu. Ou
então, talvez já pressentisse que a presença da mãe em sua vida fosse apenas
temporária...
Um ruído no andar de baixo tirou-a de seus devaneios. Fechando o álbum, saiu
do quarto e desceu escada para deparar com Joe parado à porta. Ele carregava uma
sacola com o emblema da butique de Lucinda.
— Se você veio até aqui para zombar das marcas em meu rosto, chegou tarde
demais — Tentou brincar, ignorando as batidas descompassadas do coração pelo
simples fato de vê-lo. — Já me livrei de quase todas, e Lucinda me deu um creme
hidratante para ajudar a eliminar as que restaram.
— Que pena! — Joe meneou a cabeça, fingindo estar desolado — Bem, mas já
que estou aqui, terei de encontrar algo para fazer.

159
Depois da Chuva Karen White

Tentando aparentar calma, Suzanne fez um gesto para que entrasse e apontou
para a sacola em suas mãos.
— Por favor, diga que são chinelos! Não aguento mais andar pela casa com essas
pantufas! — E indicou os enormes pompons de feltro que cobriam seus pés.
— Ah, não... Mas vou me lembrar disso na próxima vez que vier aqui — Estendeu
a sacola para ela com um sorriso que a fez enterneceu — São roupas de banho. E,
antes que você reclame, devo adiantar que não foi idéia minha.
— Lucinda! — Exclamou com um sorriso, apanhando a sacola — Mas estamos no
outono! Por que resolveu me dar roupas de banho agora?
— Porque eu comentei sobre as aulas de natação.
— Aulas de natação? — Franziu a testa, levando alguns segundos para se
lembrar da conversa que tivera com Joe dias antes. — Oh, não! Esqueça!
— Por quê? Você disse que...
— Sim, lembro-me do que disse — Foi para a cozinha, e Joe a seguiu. — Em
primeiro lugar, tenho medo da água. Além disso, está muito frio.
— Quanto ao primeiro obstáculo, não se esqueça de que estarei do seu lado. —
Joe apoiou-se na pia e cruzou os braços sobre o peito — E não vamos mergulhar na
água gelada. As primeiras aulas serão na banheira.
— O quê? — Suzanne segurou o copo de água que levava à boca em pleno ar —
Você deve estar brincando!
— Claro, sei que não se pode nadar em uma banheira, mas é possível aprender
várias técnicas, como prender a respiração sob a água e flutuar.
Joe se calou, rezando para que ela não ouvisse as batidas desenfreadas de seu
coração. Imaginá-la vestida com um biquíni, mergulhada em uma banheira, era o
bastante para fazer com que seus hormônios entrassem em ebulição.
— Não vejo alternativa para começarmos as primeiras lições — Prosseguiu ele,
ignorando a expressão de desagrado no belo rosto — Você não disse que queria
aprender a nadar para saber como eram os verões de meus filhos?
— Algumas aulas de natação não serão capazes de resgatar todos os verões que
perdi.
— Tem razão — Ele murmurou, aproximando-se um passo.
— Mas já é um começo...

160
Depois da Chuva Karen White

Suzanne o fitou, e uma voz em sua consciência alertou-a para o perigo. A


verdade era que gostaria de compartilhar cada momento da vida daquele homem,
mesmo que fosse apenas por um breve instante.
— Está bem, vou me trocar — Disse em um ímpeto, apanhando a sacola das mãos
dele. — E você? Não me diga que pretende dar aula de natação vestindo calça jeans...
— Estou com meu calção de banho — Joe anunciou, abrindo o zíper da calça para
despi-la — Já fui escoteiro e aprendi a estar sempre preparado.
Suzanne prendeu a respiração ao ver as pernas musculosas e saiu da cozinha
antes que perdesse o autocontrole e se atirasse nos braços dele. Subiu correndo a
escada e se trancou no quarto, arrependida por ter concordado com aquela ideia
absurda.
Se a simples visão do corpo atlético havia despertado seu desejo, como
sobreviveria à tortura de estar com ele, praticamente nua, dentro de uma banheira?
Ao desembrulhar o minúsculo biquíni azul que Lucinda lhe enviara, descobriu que
"praticamente nua" não estava longe de definir como ficaria dentro dele... As duas
peças eram tão pequenas que cabiam na palma de sua mão! Apavorada, levou a mão à
maçaneta para comunicar que havia mudado de idéia quando ouviu a voz máscula ecoar
do outro lado:
— Vou encher a banheira. Não demore!
Sem escolha, ela se vestiu e enrolou uma toalha ao redor do busto em uma
tentativa desesperada de se proteger. Encontrou Joe sentado na borda da banheira,
testando a temperatura da água e agradeceu-o secretamente por não se voltar quando
parou ao lado dele.
— A temperatura está ótima! — Ele se ergueu, evitando encará-la — Está pronta
para começar?
Suzanne receou que suas pernas não lhe obedecessem ao perceber que ele havia
despido a camiseta. O único movimento que conseguiu realizar foi apertar ainda mais a
toalha ao redor do busto.
— Se você não entrar, serei obrigado a pegá-la no colo e colocá-la na água com a
tolha, e você não terá nada seco para se enrolar quando sair — Ele mergulhou, fazendo
com que a água transbordasse da imensa banheira.
O tom de ameaça quase paternal teve um efeito hipnótico sobre ela. Suzanne
fechou os olhos e deixou que a toalha deslizasse para os pés. Ao abri-los, viu Joe
imerso e evitou fitá-lo para não ficar ainda mais constrangida.

161
Depois da Chuva Karen White

Com um gesto rápido, sentou-se na borda e mergulhou, sentindo a deliciosa


sensação de calor envolver seu corpo. Fazendo um esforço sobre-humano, tentou se
concentrar no agradável efeito, recusando-se a admitir que seu maior desejo era
tocar o peito largo e sentir a maciez da pele bronzeada.
— Bem, vamos começar — Anunciou ele, com ares de professor — Deite-se e
tente flutuar. Não tenha medo, vou segurá-la se você não conseguir.
Ela obedeceu sem retrucar, receando qualquer esforço que pudesse desviar sua
concentração.
— Isso mesmo! — Estimulou ele, colocando a mão sob a nuca de Suzanne —
Mergulhe a cabeça até sentir que a água atingiu seu ouvido. E não se esqueça de
respirar.
Com um movimento rápido, encontrou os tornozelos delicados e suspendeu-os.
— O que está fazendo? — Amedrontada, Suzanne começou a se debater,
espalhando água pelo chão do banheiro.
— Calma, apenas relaxe e deixe que seu corpo flutue — A voz calma e
controlada a tranquilizou.
Suzanne voltou a mergulhar a cabeça e permitiu que ele suspendesse as pernas
dela até a superfície.
— Não vou conseguir! — Exclamou, sobressaltando-se ao sentir que ele a havia
soltado.
— Relaxe, Suzanne. Enquanto eu estiver aqui, você não precisará se preocupar
com nada.
Ele estava lá, e era tudo que precisava saber! A noção de que havia alguém para
protegê-la aliviou a rigidez de seus músculos. Fechou os olhos e encheu os pulmões de
ar enquanto sentia seu corpo tornar-se leve e relaxado.
Ouvindo apenas o som ritmado de sua respiração, ela espalmou as mãos sobre a
superfície, deliciando-se com a nova sensação de liberdade que acabara de
experimentar. Por um momento, abriu os olhos e vislumbrou Joe, que mantinha uma das
mãos sob a água, suspendendo-a pela região da cintura. E então, deixou-se envolver
por um mar repleto de possibilidades, com a deliciosa ilusão de que aquele homem
nunca a deixaria ir embora.

162
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XVI

Quando Joe sentiu o corpo de Suzanne relaxar em seus braços, soube que ela
estava pronta. Com um movimento quase imperceptível, afastou as mãos e se recostou
na borda da banheira, observando-a flutuar. Naquele momento, ao analisar a expressão
serena e confiante no rosto perfeito, teve consciência de que era a primeira vez que a
via sem as barreiras com que costumava se defender.
Tocou-a de leve no ombro e sorriu quando os olhos translúcidos se arregalaram
sobressaltados.
— Não foi tão difícil como parecia, não é? — E segurou-a pelos braços para
ajudá-la a se erguer.
Ao sentir a pele arrepiada de frio, deslizou as mãos para aquecê-la. Para sua
surpresa, Suzanne fitou-o, para a seguir se aproximar e aninhar-se em seu peito.
163
Depois da Chuva Karen White

— Obrigado, tia Lucinda — Murmurou ele ao sentir a pressão dos seios firmes
em seu peito.
— Por quê? — Suzanne ergueu os olhos, curiosa.
— Pelo biquíni — Foi a resposta em voz rouca, enquanto ele deslizava os dedos
pelas costas macias.
— Você não acha que está muito pequeno?
Joe se afastou ligeiramente para estudá-la, admirando os seios arredondados e
voluptuosos.
— Não. Está perfeito! — Exclamou, prendendo a respiração. Então, seu olhar foi
atraído para o pingente que repousava no vale dos seios. Porém, não ficou alarmado
como na noite em que o descobrira, quando Suzanne chegara à cidade. Ao contrário,
lembrou-se de quando tocara um objeto como aquele pela última vez no colo de Harriet
e sentiu que alguma coisa adormecida havia muito tempo despertava dentro dele. Com
um gesto respeitoso, suspendeu-o para observá-lo melhor e percebeu que havia uma
inscrição em relevo no verso.
— O que está escrito aqui?
— Uma vida sem chuva é como um sol sem sombra. — Ela fez uma pausa sem
deixar de encará-lo. — Minha mãe ganhou-o quando ainda era criança e me deu no dia
em que desapareceu da minha vida.
Joe ouviu atentamente e refletiu sobre sua própria vida, repleta de luzes e
sombras. De súbito, a verdade das palavras o atingiu. Os prazeres pareciam ser ainda
mais brilhantes quando ocupavam o lugar do sofrimento... Como aquela bela mulher a
seu alcance.
— É uma grande verdade — Ele disse depois de refletir por alguns minutos.
— Para mim, o sol parece nunca brilhar.
Joe pousou as mãos sobre os ombros delicados.
— Creio que está brilhando para nós dois, agora.
Os lábios de Suzanne se curvaram em um sorriso espontâneo e abriu a boca para
dizer alguma coisa, mas as palavras ficaram esquecidas quando um beijo cheio de
desejo selou seus lábios.
— Desculpe — Joe se afastou de súbito, como se houvesse levado um choque —
Não foi para isso que vim aqui.
Porém, para sua surpresa, Suzanne sorriu com ternura.

164
Depois da Chuva Karen White

— Há tempos, aprendi que devemos aproveitar as oportunidades que aparecem


em nosso caminho. Raramente temos uma segunda chance na vida. Se tivermos apenas
esta noite, por que desperdiçá-la?
Joe hesitou. Embora seu corpo clamasse por satisfazer o desejo selvagem que
aquela mulher despertava, a razão insistia em alertá-lo para o perigo.
Porém, ao sentir as mãos suaves enlaçá-lo pelo pescoço, desistiu de lutar. As
pernas longas cruzaram-se em suas costas, fazendo com que o último vestígio de
sanidade desaparecesse.
Suzanne entreabriu os lábios para receber o beijo ávido, e as línguas sequiosas
se confundiram em uma dança sensual.
Joe deslizou as mãos e desatou o laço do sutiã do minúsculo biquíni, fazendo
com que os seios arredondados que tanto o fascinavam ficassem expostos. Sem conter
o impulso, mergulhou o rosto na maciez do colo acetinado, beijando os mamilos
intumescidos quase com reverência.
Ergueu o rosto para fitá-la, deleitando-se ao vê-la com a cabeça inclinada, os
cabelos longos flutuando na superfície como uma aura de luz ao redor dela.
— Você é linda! — Murmurou com voz rouca, puxando-a de encontro ao peito.
Suzanne sorriu em uma doce entrega, sentindo as mãos experientes
despertarem o desejo adormecido por tanto tempo. Com uma intimidade que
surpreendeu a ela própria, correu os dedos pelo torso musculoso, sentindo o desejo
pulsar no corpo viril.
Joe se manteve imóvel, como se o menor movimento pudesse afastá-la. Porém,
não pôde mais resistir quando sentiu as mãos macias deslizarem para as coxas,
acariciando-as com movimentos suaves e ritmados.
— Oh, Suzanne — Balbuciou, receando perder o controle.
Ela sorriu e pousou os lábios úmidos em seu peito para beijá-lo, provocando-lhe
uma onda crescente de arrepios. Com um gesto ágil, posicionou-se sobre as coxas
musculosas, proporcionando o encaixe perfeito de seus corpos.
Ao sentir a força da masculinidade pulsante pressionando-a, Suzanne não
conteve um gemido rouco e seu corpo reagiu instintivamente, movimentando-se com
naturalidade.
— Suzanne, ouça — Joe conseguiu balbuciar, contendo a fúria do desejo prestes
a explodir — Quero que saiba que não posso lhe oferecer nada além de uma noite.
Ela o fitou como se houvesse despertado de um sonho e levou alguns segundos
para registrar o que acabara de ouvir.
165
Depois da Chuva Karen White

— Sei disso — Foi a resposta em tom firme e seguro — E sei também que, se eu
não fizer amor com você agora, serei capaz de morrer!
Para confirmar o que dissera, afastou-se ligeiramente para despir a última
barreira que os separava. Ao vê-lo imitar seu gesto e despir o calção, voltou a se
posicionar sobre ele.
Joe a fitava, sentindo-se ainda mais excitado ao ver o sorriso sereno se
transformar na expressão do mais puro êxtase enquanto penetrava a umidade macia
da feminilidade pronta para recebê-lo. Em uma súbita contração, ela fechou os olhos e
inclinou a cabeça, completamente entregue à violenta onda de prazer que estremeceu
seu corpo.
— Suzanne, não sei se conseguirei manter o controle por muito tempo — Ele
disse com a respiração ofegante — E eu não trouxe nada que... Bem, eu não planejava
que nós...
— Sam prescreveu-me pílulas anticoncepcionais — Ouviu-a dizer, sem
interromper a dança sensual que unia os dois corpos.
— Sam? Mas por que você...
— Para regular meus hormônios, entre outras coisas.
Só então Joe pôde se entregar ao seu próprio êxtase, inundando a intimidade
macia com a explosão de seu prazer.
Com uma deliciosa sensação de plenitude, Suzanne relaxou todos os músculos do
corpo e caiu sobre ele, sentindo as batidas do coração no peito largo pulsando no
mesmo compasso que as suas.
Joe fechou os olhos e agradeceu secretamente aquela mulher por fazê-lo
esquecer, ainda que por apenas um momento, das solitárias noites de amargura que
pareciam não ter fim.
Suzanne despertou com o som abafado de passos no piso de madeira do quarto.
Abriu os olhos com dificuldade e olhou para o relógio digital sobre o criado-mudo,
marcando quatro horas da madrugada. Sonolenta, abraçou o travesseiro, incerta se
estava sonhando ou se a figura esguia delineada pelo brilho do luar era real.
— Joe?
Uma sombra se moveu na escuridão e sentou-se à beira da cama ao lado dela.
— Preciso ir para casa. — A voz grave ecoou pelo quarto enquanto lábios macios
pousavam em sua testa.

166
Depois da Chuva Karen White

— Eu sei. É que... É muito cedo! — Reclamou, constrangida em pedir que ele


ficasse mais.
— Achei que estava cansada e não quis acordá-la.
Sentindo o rosto queimar com as lembranças dos momentos que haviam passado,
agradeceu por ele não acender a luz.
— Foi muito bom dormir com você — Aproveitou a penumbra para dizer, quase
podendo vê-lo arquear as sobrancelhas — E tudo que fizemos também...
— Digo o mesmo. Mas preciso ir antes que Maddie acorde. Antes de sair, disse
às crianças que viria para cá, mas não esperava ficar fora tanto tempo. Terei de agir
como Tom Cruise em Missão Impossível para entrar em casa sem que ninguém perceba.
Beijou-a de leve nos lábios.
— Boa noite, Joe. E obrigada pela aula de natação.
— Estou a sua disposição. Boa noite — Ele ainda hesitou alguns minutos antes de
sair do quarto.
Suzanne ouviu seus passos descendo a escada e caminhando até a porta da
frente, para finalmente desaparecerem na escuridão da noite.
Abraçando o travesseiro, inalou a fragrância máscula impregnada no tecido e
mergulhou em um sono profundo e repousante.
Um ruído insistente na cozinha acordou-a por volta das dez horas da manhã.
Quem seria, em plena manhã do domingo? Pensou. Mal-humorada, jogou o lençol para o
lado e saiu do quarto, percebendo que estava nua somente ao chegar à escada. Voltou
correndo e se enrolou no lençol, descendo para atender à porta da cozinha.
Lucinda sorriu para ela, estendendo-lhe uma bandeja com um imenso bolo de
chocolate. Os cabelos ruivos proporcionavam um incrível contraste com o céu azul, e
Suzanne lamentou não estar com sua câmera.
— Você não ouviu quando bati na porta da frente, então decidi tentar um atalho.
— O que houve? Eu deveria estar no trabalho?
— Não, querida! As mulheres do Clube de Bridge estarão aqui em meia hora e
queria ter certeza de que você estaria preparada.
— O quê?
Suzanne segurou a porta enquanto Lucinda entrava. Prendeu a respiração ao ver
as cadeiras caídas no chão da cozinha, resultado de um momento de paixão entre ela e
Joe na noite anterior.

167
Depois da Chuva Karen White

Agradeceu-a secretamente por não comentar nada e entrou, observando-a


cobrir a mesa com uma toalha de linho branco.
— Indiquei-a como membro do clube, e você deve oferecer o desjejum para que
elas a conheçam.
— Mas eu nunca disse que queria fazer parte desse clube! Nem sei jogar bridge!
Lucinda colocou a bandeja sobre a mesa e arrumou as cadeiras ao redor dela.
— Você pode aprender.
— Impossível! Você não entende, nunca fui membro de nada e não quero
começar agora. Além disso, não vou ficar aqui mais do que alguns poucos meses —
Caminhou até o telefone e a fitou — Ligue para todas elas agora mesmo e diga que foi
um terrível engano. Diga que estou doente, que morri, qualquer coisa... Apenas faça
com que não venham.
— Sinto muito, meu bem. Creio que a maioria já saiu de casa. Elas são muito
pontuais.
Voltando as costas para Suzanne, abriu a bolsa e retirou uma caixa de biscoitos
de nata para colocá-la na mesa.
— Lucinda, diga que está brincando! Não sei como receber pessoas!
— Não se preocupe, estarei aqui para ajudá-la. Vou preparar café e chá
enquanto você se veste. — Levantou o dedo indicador e ergueu as sobrancelhas —
Acho bom se apressar! Alguém acaba de chegar.
Suzanne ficou paralisada por um momento, imaginando o que seria pior:
enfrentar as respeitáveis senhoras do Clube de Bridge vestindo nada além do que um
lençol, ou o desapontamento de Lucinda se aquela reunião fosse um fracasso.
Subiu correndo a escada e foi para o quarto trocar de roupa. Quando desceu
minutos mais tarde, a cozinha estava repleta. O som da conversa animada e o delicioso
aroma de café fresco invadiam o ambiente.
Por que estou fazendo isso? Perguntou a si mesma, contendo o nervosismo. Não
tinha a menor idéia de por que a opinião daquelas mulheres e de Lucinda haviam se
tornado tão importante para ela.
Ao chegar à porta, encarou as doze mulheres que ocupavam a cozinha. Todas
pararam de conversar e se voltaram para ela. Forçando um sorriso, acenou
timidamente e entrou.
— Bom dia! Estou feliz que tenham vindo.

168
Depois da Chuva Karen White

Não sabia como aquelas palavras saíram de seus lábios, mas ficou satisfeita com
o efeito que provocaram.
Lucinda tomou-a pelo braço e a apresentou às poucas mulheres que ainda não
conhecia.
A sra. Crandall passou com uma bandeja de bolo de café com creme de baunilha
e ela provou um pedaço, ouvindo atentamente todos os passos da receita. Em pouco
tempo, sentia-se mais relaxada e descobriu que estava se divertindo.
Lilly Beasley sentou-se ao lado dela e entabulou uma animada conversa com
Sweet pea Crandall e Brunelle Thompson sobre a melhor técnica para descascar nozes
pecas. Suzanne ouvia com um sorriso nos lábios, meneando a cabeça de tempo em
tempos para demonstrar que estava atenta. Porém, além de não ter a menor noção
sobre técnicas culinárias, seu pensamento estava voltado para os momentos
inesquecíveis que vivera, na noite anterior.
Joe fora muito mais do que ela podia esperar. Era ao mesmo tempo, doce e
selvagem, gentil e possessivo, em uma combinação perfeita e absolutamente excitante.
Aquele homem conseguira despertar a feminilidade que se escondia no mais secreto
refugio de sua alma e concluiu que Anthony parecia sem brilho quando comparado a
ele.
Levou um pedaço de bolo à boca, mastigando-o sem sentir o sabor. Surpreendia-
se por se lembrar do ex-noivo depois de passar semanas sem pensar nele. Na verdade,
nunca estivera apaixonada. Iludira-se com a falsa segurança que o descendente de
italianos demonstrara e se deixara seduzir pela promessa de construírem um lar. Se
pudesse voltar no tempo, jamais teria se envolvido com um homem como aquele,
concluiu com pesar.
Como consequência daquele envolvimento, fora obrigada a fugir do ex-noivo
possessivo, inconformado pela rejeição... E lá estava ela, cercada pelo grupo de
mulheres do Clube de Bridge de um vilarejo perdido no mapa!
— Você não acha, Susie? — A voz de Brunelle tirou-a de seus devaneios.
Olhares curiosos pousaram sobre ela que balbuciou alguma coisa ininteligível
como resposta. Depois de alguns segundos de silêncio, o burburinho animado voltou a
preencher o ambiente, deixando-a livre para retomar suas reflexões.
Walton, a cidade onde todos são alguém... Sorriu ao se lembrar da inscrição na
placa que havia chamado sua atenção três meses atrás. Quando poderia imaginar que
aquela afirmação também a incluía?

169
Depois da Chuva Karen White

O pequeno vilarejo a acolhera de braços abertos e lhe oferecera um lugar. Pela


primeira vez em sua vida, vivera a reconfortante sensação de fazer parte de uma
comunidade.
Com um suspiro de satisfação, agradeceu secretamente a Anthony por tê-la
obrigado a fugir... Se não fosse por ele, não estaria ali e nem teria conhecido o homem
mais perfeito da face da Terra!
Joe... O nome reverberava em sua cabeça como um letreiro em néon.
Claro, não seria tola a ponto de se iludir, como fizera no passado. Ele havia
deixado claro que não poderia oferecer-lhe nada além de uma noite. Não havia espaço
para outra mulher na vida e no coração daquele homem.
Além disso, iria embora de Walton logo que terminasse o álbum de Maddie. Não,
não havia a menor possibilidade de futuro para aquele relacionamento, tentou se
convencer. Sufocando a dor profunda que tal pensamento causou, se pôs a relembrar
os momentos maravilhosos que haviam compartilhado na banheira, na cozinha, em seu
quarto...
A casa toda parecia impregnada da presença de Joe e tal sensação bastava para
deixá-la feliz. Mesmo que fosse por apenas uma noite, estar nos braços dele havia
significado uma eternidade.
Suzanne olhou ao redor, levando alguns segundos para voltar à realidade.
Observou Lucinda carregando a bandeja com o bule de chá. O som alegre de sua
risada preenchia o ar como melodia, e uma ponta de inveja a invadiu ao vê-la tagarelar
com as convidadas. O dom da alegria parecia ser inato naquela mulher, uma anfitriã
perfeita e a melhor amiga que alguém poderia ter.
— ...e Maddie disse que ficaram maravilhosas! — Sweet pea Crandall dizia,
fitando-a com um sorriso — Gostaria que você fizesse um álbum para mim, querida.
Nunca fui fotografada por um fotógrafo profissional.
— Será um prazer — Respondeu com um sorriso, esforçando-se para participar
da conversa.
— Como vai o trabalho com o álbum de Maddie? — Darlene Narpone indagou.
— Está indo bem, embora um pouco mais devagar do que eu pretendia.
— Oh, eu sei o que quer dizer... — Darlene comentou com um sorriso — Demorei
uma semana para completar uma única página do meu álbum de férias!
— E não se trata apenas de colar as fotografias e recortes nas páginas —
Complementou ela, satisfeita por surgir um assunto que a deixava à vontade — Analisei
os critérios que Harriet usou para documentar cada fotografia e fiquei impressionada
170
Depois da Chuva Karen White

com o talento dela. Não são escolhas aleatórias. Ela parecia saber o que cada uma das
pessoas fotografadas estava fazendo e até mesmo o que deveriam estar pensando.
Naquele momento, Cassie se aproximou e sentou-se em uma cadeira ao lado dela,
interessada na conversa.
— É uma pena não poder contar com a ajuda de Maddie — Disse, esforçando-se
por não se intimidar pela presença.
Por alguma estranha razão, o brilho de suspeita nos olhos vividos provocava-lhe
desconforto. A familiar sensação de pânico provocada pela proximidade de Cassie
parecia ainda mais intensa naquele momento.
— Claro, não podemos estragar a surpresa — Sweetpea comentou com ar
sonhador.
— Não, em hipótese alguma! — Concordou, desviando o olhar — O problema é
que percebi que não há nem uma fotografia tirada nos últimos dois anos.
— Você deveria ter me consultado — Cassie ofereceu. — Tenho centenas de
fotografias das crianças desde que... Bem, dos últimos dois anos. Posso mostrá-las a
você e fazer cópias daquelas que julgar adequadas.
— Obrigada — Suzanne apertou as mãos, torcendo para que ninguém notasse
seu desconforto.
— Por que não me telefona durante a semana para marcarmos um encontro?
Posso ajudá-la a classificar as fotografias. Nasci em Walton e garanto que conheço
cada um dos moradores daqui.
Evitando se amedrontar pelo desafio dos olhos perspicazes, concordou com um
meneio de cabeça. Sem encará-la, colocou o prato quase intocado no chão ao lado da
cadeira antes que o tremor de suas mãos a denunciasse.
Não teria desculpa para evitar aquele encontro e teria de ser extremamente
cuidadosa para não revelar nada que pudesse comprometê-la. Embora sempre
atenciosa e gentil, Cassie parecia estar à espera do momento certo para desmascará-
la.
— Bem meninas acho que está na hora de voltarmos para casa! — Lucinda
comunicou, para seu alívio.
O anúncio provocou uma pequena revolução e, em menos de um minuto, todos os
pratos de papel, copos e talheres de plástico desapareceram como por milagre.
Quando as associadas do Clube de Bridge foram embora, não havia o menor vestígio da
recepção que acabara de acontecer ali.

171
Depois da Chuva Karen White

— Fique com a toalha de mesa e com o vaso, meu bem. Assim, a cozinha ficará
mais aconchegante, não acha?
Suzanne sorriu ao vê-la dobrar às pressas a magnífica peça bordada em ponto
cruz antes que fosse recusada.
— Obrigada. Você tem sido maravilhosa! — Agradeceu com sinceridade — Eu não
sei o que faria se...
— Oh, não diga mais nada! — A simpática senhora ergueu as mãos, impedindo-a
de continuar — Você é que esteve maravilhosa hoje!
— Não sei Lucinda... Eu não tenho a mesma habilidade que você em recepcionar
os convidados... Aliás, confesso que sinto inveja de sua competência.
— Querida, considere os longos anos de experiência que tenho à sua frente,
além de conhecer todos os habitantes de Walton... — E sorriu envaidecida pelo elogio
— Não há segredo algum, basta querer se divertir.
— Vou seguir seu conselho na próxima vez que tiver de receber.
— E creio que será em breve... Acho que as associadas serão unânimes em
aceitá-la no Clube.
— O que terei de fazer caso isso aconteça?
— Fique tranqüila. — Apanhou a imensa bolsa de brim e abriu a porta da cozinha.
— Basta oferecer a casa para a próxima reunião.
— Quando será o próximo encontro? — Suzanne seguiu-a para o quintal, aflita —
Você sabe que não pretendo ficar em Walton por muito tempo! Foi muito divertido
recebê-las, ma não faz sentido tornar-me membro de um clube daqui, não acha?
— Há uma razão para tudo. Pense no sentido de você e eu estarmos no mesmo
ônibus quando ele parou em Walton... — Sorriu com sabedoria. — Apenas seja
paciente, meu bem.
Uma gota de chuva caiu no rosto de Suzanne, e as duas olharam ao mesmo
tempo para as nuvens carregadas no céu.
— Preciso me apressar antes que chova. Vou almoçar com o xerife Adams —
Lucinda deu alguns passos e se deteve abruptamente. — Ah, quase ia me esquecendo...
Encontrei isso ao lado da banheira.
Corando até a raiz dos cabelos, Suzanne apanhou o sutiã do biquíni, ainda
molhado, estendido em sua direção.

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Depois da Chuva Karen White

— Achei que algumas senhoras do Clube de Bridge poderiam ficar chocadas se o


encontrassem ao visitar o toalete — Disse, despedindo-se com uma piscadela
maliciosa.

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Depois da Chuva Karen White

Capítulo XVII

Joe demorou-se alguns minutos observando Suzanne no jardim. Tinha os cabelos


presos em um rabo-de-cavalo e vestia bermuda caqui e uma camiseta que parecia ser
duas vezes maior que seu número, com a inscrição do time de beisebol de Walton
bordada nas costas. Na certa, fora presente de Rob, deduziu.
Estava agachada diante de um canteiro e se dedicava a revolver a terra úmida.
Ao lado dela havia uma caixa repleta de mudas de amores-perfeitos. Parecia tão
compenetrada na tarefa que não o notou. Ao ouvir o rangido do portão se abrindo,
virou-se e cobriu os olhos com a mão para protegê-los da luz do sol.
— Olá! — Saudou-a, fechando o portão atrás de si. Pondo-se de pé, Suzanne
respondeu com um aceno, tentando controlar o tremor das mãos. Aquela era a primeira
vez que o via depois de terem feito amor como dois amantes apaixonados.
— O que está fazendo?
— Plantando amores-perfeitos. Ao menos, estou tentando.
— Precisa de ajuda? — Caminhou até o canteiro e apoiou um joelho no chão para
observar as mudas de perto.
— Não é preciso, obrigada. Posso cuidar disso sozinha.
— Você sabe que é preciso retirar o saco plástico antes de plantar, não é?
— Oh, eles não mencionaram nada quando fui comprá-las no viveiro de plantas.
— Vou ajudá-la — Sentenciou, retirando a jaqueta e jogando-a sobre o gramado.
Suzanne não argumentou. Sabia que seria inútil, além do que receava que o
tremor em sua voz a traísse.
Ao se voltar para apanhar uma muda, as mãos se tocaram e sentiu a pele
queimar ao contato. Antes que pudesse reagir, Joe segurou-a pelo queixo e a beijou.
A resposta foi imediata, e seus lábios se entreabriram sequiosos, como se
tivessem vida própria, enquanto dedos ávidos mergulhavam em seus cabelos puxando-a
para mais perto.
Assustada com a força do desejo que incendiou seu corpo empurrou-o e recuou
um pouco.
— Por que fez isso?
174
Depois da Chuva Karen White

— Para acabar com sua teimosia de uma vez por todas. Você está agindo como se
estivesse diante de um estranho. Achei que, se a beijasse, faria com que se lembrasse
do que vivemos duas noites atrás.
— Não me esqueci daquela noite.
— É mesmo? Nesse caso, podemos continuar o trabalho — Agachou-se para
apanhar outra muda.
— Joe, eu estava pensando...
— Humm?
— Acho que não foi uma boa idéia — Suzanne se pôs de pé e observou uma névoa
escura encobrir o brilho dos olhos esverdeados.
— Sim, eu sei. Foi apenas uma noite, certo? — Ele interrompeu o trabalho e se
levantou — Mas o que aconteceria se tivéssemos uma segunda chance? Estou
começando a acreditar que seria possível.
— Acredite, não há uma segunda chance. Aprendi isso com muito sofrimento e
não planejo cometer os mesmos erros do passado.
Ele cruzou os braços sobre o peito para conter o impulso urgente de abraçá-la.
Ignorando as emoções que faziam seu coração pulsar em um ritmo acelerado, voltou a
atenção para a caixa de mudas a seus pés.
— Por que não vem até aqui para eu lhe mostrar como fazer? — Sugeriu,
agachando-se ao lado do canteiro.
Ao vê-la hesitar, sentiu um prazer quase perverso ao perceber a frustração nos
olhos translúcidos, como se ela esperasse algum argumento que a desarmasse. Uma
ponta de esperança invadiu seu coração, mas manteve-se em silêncio.
Já fora longe demais e não pretendia forçá-la, refletiu enquanto mostrava como
retirar o saco plástico que envolvia o torrão.
Observou os dedos esguios mergulharem na terra úmida e a lembrança daqueles
mesmos dedos percorrendo seu corpo duas noites atrás invadiu seu pensamento.
Forçando-se a se concentrar na tarefa, trabalhou em silêncio, evitando o menor
contato com as mãos delicadas.
Depois de plantar todas as mudas, Joe ergueu-se e limpou a terra das mãos.
— Eu trouxe algo para você — Comunicou, retirando uma caixa do bolso da
jaqueta — Achei que você gostaria.

175
Depois da Chuva Karen White

Curiosa, ela abriu-a às pressas e sorriu ao ver um mobile com sete pequenos
sinos prateados.
— Obrigada. Vou pendurá-lo na janela do quarto hoje mesmo — Disse.
— Quer ajuda?
— Não é preciso, obrigada.
— Aposto que você nunca segurou um martelo! — Ignorando a recusa, subiu os
degraus para a varanda. — Vou apanhar a caixa de ferramentas que Sam deixou na
sala.
Quando ia entrar, notou o livro que a sra. Lena emprestara para Suzanne ao lado
da cadeira de balanço e apanhou-o. Uma gardênia desidratada caiu do meio das
páginas, as pétalas secas amareladas pelo tempo.
— O que é isso? — Suzanne parou ao lado dele.
— Uma gardênia. Parece que está aqui há muito tempo. Ela apanhou-a,
colocando-a sobre a palma da mão.
— Minha mãe adorava gardênias. No Natal, costumava comprar inúmeros buquês,
mas as flores sempre morriam — Seus dedos acariciaram as pétalas secas — Ela se
esquecia de colocar água, e mantinha as flores secas na janela durante meses, como se
quisesse fazê-las reviver.
Fechou as mãos, envolvendo a flor, e, quando as abriu, o vento fez com que
voasse, levando as pétalas consigo. Frustrada, ainda tentou apanhá-las, mas não teve
tempo.
A frustração que Joe viu refletida nos olhos dela tocou-lhe o coração e desejou
ter o poder de livrá-la de qualquer sofrimento enquanto vivesse.
— Vamos pendurar o mobile! — Exclamou, emprestando uma falsa alegria à voz.
Sem esperar pela resposta, entrou no interior da casa, tentando controlar a
urgência de beijá-la e fazê-la se esquecer de todas as amarguras que a vida lhe
impingira.
Depois que Joe foi embora, Suzanne permaneceu na cadeira de balanço da
varanda por um longo tempo, sentindo o sol do entardecer aquecer seu rosto enquanto
ouvia a doce melodia dos sinos acariciados pela brisa. Seu olhar pousou no canteiro
recém-plantado e sorriu com orgulho, admirando o alegre colorido das flores.
Plantar aquelas mudas fora a única ação permanente de sua vida. Ao longo da
infância e adolescência, o único lastro que a acompanhava era o desenho de sua própria

176
Depois da Chuva Karen White

sombra. No entanto, acabara de plantar flores que espalhariam suas raízes sob a terra
e permaneceriam lá, mesmo depois que tivesse partido.
Suzanne sorriu com um misto de tristeza e esperança.
Sim, teria de partir em breve... Talvez, depois de tantos meses, Anthony já não
se lembrasse mais da ex-noiva que o rejeitara. Talvez não se importasse por ter
vendido a rara coleção de fotografias de Gertrude Hardt, um presente com o qual
pretendia comprá-la para que reatassem o noivado.
Com um suspiro profundo, levantou-se e foi para seu quarto. Havia ligado para
Cassie e combinado de ir à casa dela à noite.
Depois de um banho relaxante, pegou o álbum e saiu.
À medida que se aproximava da casa dos Parker, seus passos se tornavam mais
lentos. Nem mesmo os imponentes carvalhos com copas majestosas e a fachada
graciosa do amplo sobrado a tranquilizaram. Sabia que mostrar as fotografias para
completar o álbum não era a única razão por Cassie tê-la convidado.
Usando um truque a que sempre recorria na infância, pôs-se a imaginar o pior
que poderia acontecer. Daquela forma, a realidade pareceria sempre mais amena do
que suas fantasias.
Porém, para seu desgosto, o artifício não funcionou. Ao abrir o portão de
madeira, teve a sensação de que caminhava para a forca.
Deteve-se na varanda espaçosa, repleta de vasos floridos, com uma cadeira de
balanço que parecia ser a marca registrada das casas do vilarejo.
Embora estivesse apavorada com o encontro que estava prestes a ter, pôde
perceber a paz que reinava no ambiente e soube que se tratava de um verdadeiro lar.
Bateu à porta de madeira maciça e, depois de alguns segundos, Sam recebeu-a
com um sorriso amigável.
— Olá, Suzanne! Cassie está na cozinha acabando de jantar — E se aproximou
um passo para lhe dizer em tom de confidencia: — Se é que se pode chamar aquilo de
jantar! Arroz integral, salada de soja e legumes grelhados! Argh!
Suzanne não conteve uma risada ao ver a careta de repulsa no rosto simpático.
— Espero não estar atrapalhando comentou, sentindo-se um pouco mais
relaxada.
— Claro que não! Cassie está ansiosa para lhe mostrar as fotografias — Com um
gesto amplo, indicou que entrasse — Você teve uma excelente recuperação da
catapora, não é?

177
Depois da Chuva Karen White

— Sim, felizmente! Cheguei a pensar que ficaria cheia de cicatrizes.


A decoração primorosa da sala chamou sua atenção e observou-a discretamente.
— Nem sei como agradecê-lo por ter cuidado de mim, Sam.
— Ora, você teria feito o mesmo por mim!
Para sua surpresa, Suzanne percebeu que era verdade. Depois de viver quase
quatro meses naquela cidade, aprendera que amizade e solidariedade eram valores que
não tinham preço.
Seguiu-o para a cozinha, notando a mobília antiga e diversos porta-retratos
dispostos sobre a lareira na sala de visitas. Com uma ponta de inveja, refletiu que
aquela casa era o modelo perfeito do lar que sempre imaginara.
Cassie estava recolhendo a louça da mesa e saudou-a com um sorriso antes de
se voltar para o marido.
— Querido, você quer mais um pedaço de bolo?
Suzanne conteve o riso ao ver a expressão de desagrado quando ele olhou para a
travessa com uma espécie de bolo inglês de aspecto pouco apetitoso.
— Não, obrigado! — Respondeu de pronto, estendendo as mãos diante do corpo.
— Não sei por que você age assim! — Cassie comentou, enquanto colocava uma
generosa fatia em um prato — Como médico, deveria me agradecer por preparar
pratos saudáveis e naturais.
Ofereceu o bolo à Suzanne, que aceitou apenas por delicadeza.
— Usei farinha integral e açúcar mascavo — Avisou, esperando para observar a
reação dela ao provar um pedaço — Não está uma delícia?
—É bem... Diferente — Suzanne tentou elogiar, forçando-se a engolir.
— Bem, vou deixá-las à vontade — Sam anunciou, beijando a testa da esposa —
Estarei no quarto, assistindo ao campeonato de basquete na televisão. Chame se
precisar, querida.
O desconforto que a invadia sempre que estava na presença de Cassie voltou a
incomodar Suzanne quando ficaram a sós.
— Desculpe a bagunça, Suzanne. Meu ventre já não permite que eu cuide da casa
como antes — Com um gesto, indicou que a seguisse para um pequeno escritório anexo
à sala de estar.
— Bagunça? Tudo está na mais completa ordem! — Suzanne comentou, olhando
ao redor — Sua casa é adorável.

178
Depois da Chuva Karen White

Suzanne colocou o álbum sobre a escrivaninha e se acomodou na confortável


poltrona de couro, sentindo-se como se estivesse prestes a ser submetida a um
inquérito.
Cassie abriu a porta de um armário e retirou uma enorme caixa, colocando-a ao
lado do álbum.
— Ainda não cataloguei as fotografias e estão todas misturadas — Avisou,
abrindo a caixa repleta. — Escolha as que quiser para que eu a ajude a identificá-las.
— Gostaria de olhar o que já fiz até agora? — Suzanne ofereceu, empurrando o
álbum na direção dela.
— Oh, sim! Estou muito curiosa!
Sentando-se na cadeira por detrás da escrivaninha, começou a folhear o álbum
com interesse, enquanto Suzanne observava sua reação.
Deteve-se na primeira página para ler os dizeres em caligrafia bem-feita: Para
minha filha Madison, com todo meu amor. Harriet Madison Warner.
— Ver este álbum está sendo mais difícil do que imaginei — Murmurou, enquanto
uma lágrima solitária corria por seu rosto.
— Posso deixá-lo com você, se preferir vê-lo com maior privacidade — Suzanne
sugeriu sensibilizada.
— Não é preciso, obrigada. — Engolindo o pranto, voltou a se concentrar — Joe
disse que você vai partir logo que terminar o álbum.
— É verdade.
Apesar de tudo, admitiu que gostava de Cassie que, mesmo suspeitando dela,
nunca deixara de tratá-la com atenção e gentileza.
— Oh, eu me lembro desse dia... — Ouviu-a murmurar, esquecida de sua
presença. — Harriet estava linda! Foi o primeiro baile em que Joe a acompanhou. Tia
Lu arrumou nossos cabelos e o meu ficou parecendo uma caixa de marimbondos!
Ela riu e apontou a fotografia para Suzanne.
— Humm... Eu diria que você não está sendo justa...
— Não? — Cassie a fitou intrigada.
— Não. Está parecido com uma imensa caixa de marimbondos!
Ambas riram com vontade, e a tensão que pesava sobre os ombros de Suzanne
se dissolveu.

179
Depois da Chuva Karen White

— Você e Harriet parecem gêmeas — Comentou, voltando a olhar para a


fotografia.
— Acha mesmo? Nunca me disseram isso — Cassie estudou-a por alguns
segundos — Você pensa assim porque nunca nos viu juntas. Éramos opostas como a
noite e o dia.
— Bem, talvez por não tê-la conhecido, não me deixei influenciar pelas
diferenças de personalidade. Mas conheço Maddie e acho que ela mais parece ser um
clone seu!
— Oh, ela ia adorar ouvir isso! — Virando a página, sorriu ao ver uma fotografia
de um bebê gorducho — Sabe, eu fico grata por você estar completando o trabalho de
Harriet. Darlene insistiu para que eu o fizesse, mas... Acho que não estava preparada.
Suzanne esperou em silêncio enquanto a observava analisar folha por folha, até
fechar o álbum com um sorriso terno.
— Você está fazendo um ótimo trabalho! Foi melhor ter deixado a cargo de
alguém sem envolvimento emocional.
— Isso não é totalmente verdadeiro — Suzanne se apressou em dizer, sem
conter a urgência em explicar — Gosto muito de Maddie. Ela é especial.
— Só Maddie?
— Gosto de todos eles. Mesmo depois de tudo que passaram, as crianças
continuam unidas. São adoráveis!
— Eu estava me referindo a Joe...
Incapaz de encará-la, Suzanne olhou para as mãos.
— Claro gosto dele também — Admitiu, decidida a omitir parte da verdade. —
Mas acabei me aproximando mais de Maddie. Ela sofreu muito com a perda da mãe,
mais do que todos podem imaginar.
— Sou tia dela. Creio que a conheço melhor do que ninguém.
— Não estou tentando competir com você, Cassie — Apressou-se em dizer ao
perceber o tom de hostilidade — Mas talvez fique mais à vontade em se abrir com
alguém estranho.
A última palavra provocou um gesto amargo em sua boca. Mesmo depois de quase
quatro meses, ainda se colocava como estranha naquela cidade. Levantou-se e começou
a caminhar pelo escritório. Deteve-se diante da estante, observando uma série de
fotografias de Harriet com os filhos.

180
Depois da Chuva Karen White

— Joe mencionou que lhe contou sobre a noite em que Maddie exagerou na
bebida.
— Sim, ele me disse.
— O que não contei a ele foi que Maddie acredita que vai morrer logo, como a
mãe e a avó, e isso deve apavorá-la desde que Harriet se foi.
— Oh, ela nunca me disse nada...
— Acho natural que queira poupá-la. Ela sabe que esse assunto traz lembranças
tristes e sofrimento para você também.
Ao dizer isso, Suzanne observou a expressão atônita se transformar na mais
pura raiva.
— E por que a escolheu para dizer o que sente?
— Acho que porque sabe que não ficarei aqui por muito tempo — Respondeu,
erguendo os ombros.
Cassie respirou fundo e a fitou.
— Obrigada, Suzanne. Eu não fazia idéia que...
— Foi por isso que lhe contei — Ela voltou a sentar-se diante da escrivaninha —
Queria que alguém soubesse do que se passa no coração de Maddie para quando eu não
estiver mais aqui — Disposta a mudar de assunto, apanhou uma fotografia da caixa e
colocou-a sobre a escrivaninha — Quem são estas pessoas?
— Oh, são os colegas de Harriet, quando ela se formou no ensino médio... — De
súbito, Cassie a fitou. — Olhar as fotografias está sendo mais divertido do que eu
imaginava! Espero que você não tenha programado nada para hoje à noite.
— Não, estou absolutamente livre.
— Ótimo! Nesse caso, vou preparar um chá gelado antes de prosseguirmos.
Aceita mais um pedaço de bolo?
— Oh, não, obrigada! — Suzanne quase gritou, vendo-a seguir para a cozinha.
Se tivesse de comer outro pedaço daquele bolo, teria uma indigestão! Pensou
com um sorriso.
Cassie voltou minutos depois com a bebida e uma caixa de biscoitos de
chocolate. Nas duas horas que se seguiram, trabalharam juntas escolhendo as
fotografias que seriam incluídas no álbum.
Quando Suzanne apanhou a bolsa e se preparou para ir embora, Cassie olhou
para a caixa de biscoitos vazia sobre a escrivaninha.

181
Depois da Chuva Karen White

— Por favor, não conte a Sam que comi tudo isso! Ele vai me matar se souber...
— Eu prometo. Afinal, você tem uma boa razão para comer algumas calorias a
mais.
— Sim, mas não posso exagerar. Você, sim, é magra o bastante para ingerir
todas as calorias que desejar! — Avaliou-a com um sorriso, meneando a cabeça — Não
há comida em Chicago?
Suzanne sentiu o sangue congelar nas veias. Naquele momento, a familiar
apreensão que a proximidade de Cassie costumava despertar voltou a incomodá-la.
— Como sabe que sou de Chicago? — indagou, evitando encará-la.
— Na verdade, não sei... Estive lá em uma viagem de negócios e tenho a
impressão de tê-la visto.
— Bem, estive em Chicago algumas vezes... — Respondeu de forma vaga — Você
pode ter me visto lá, na Flórida, em Minnesota ou qualquer outro lugar.
Cassie limitou-se a acompanhá-la até a porta da frente sem dizer nada.
— Oh, a propósito... Caso tia Lu não tenha lhe contado, as associadas do Clube
de Bridge aprovaram sua admissão, com apenas um voto contra.
— Oh, é mesmo? E quem não me aprovou como membro do clube?
— Eu.
Suzanne se voltou, e as duas mulheres ficaram face a face.
— Não me leve a mal. Gosto de você e sou muito grata pela forma como cuida de
Maddie. Tenho negligenciado as crianças desde que fiquei grávida, e você tem sido
muito importante para minha sobrinha — Ela pousou a mão no ventre para acariciá-lo —
Mas você não é o que Joe precisa. Por isso, não quero que fique em Walton um minuto
além do necessário. Meu cunhado ainda não se recuperou da terrível perda que todos
nós sofremos, e não vou suportar vê-lo se machucar de novo.
— Como sabe do que Joe precisa? — Suzanne perguntou calmamente, tentando
não se abater pelas duras palavras — Ele é um homem que sabe muito bem camuflar
suas necessidades e dar a impressão de que não precisa de nada.
— Pelo que posso ver, essa é a única coisa que vocês dois têm em comum. A
verdade é que você não é... — Ela calou-se, horrorizada com o que estava prestes a
dizer.
— Eu sei. Não sou Harriet — Suzanne completou — Ouça, a última coisa que
faria seria magoá-lo. Não se preocupe, não está nos meus planos ter um
relacionamento sério.
182
Depois da Chuva Karen White

— Desculpe minha franqueza, Suzanne — Abriu a porta da frente.


— Não há o que desculpar. Ao contrário, só tenho a agradecer-lhe por ter sido
honesta comigo. Fique tranqüila quanto ao seu cunhado. Não pretendo viver para
sempre no mesmo lugar.
— Eu já ouvi isso antes... — Cassie fez um gesto vago indicando a casa — Esta
cidade e as pessoas que vivem aqui têm um dom especial de nos cativar quando menos
esperamos. Não deixe que isso aconteça com você.
Suzanne concordou com um meneio de cabeça e caminhou para o portão.
— Até logo, Cassie. Obrigada pela ajuda.
Esperou que a porta fosse fechada e refletiu por alguns momentos antes de
caminhar de volta para casa.
— Talvez seja tarde demais para fugir do encanto de Walton — Disse em voz
baixa, seguindo pela calçada.
Tinha dado alguns passos quando uma brisa morna acariciou seu pescoço,
provocando-lhe um arrepio. Voltou-se assustada, mas não havia ninguém por ali. Uma
profunda tristeza a invadiu, como se tivesse de dar adeus a um amigo querido. Antes
de seguir em frente, seu olhar pousou mais uma vez na fachada do sobrado onde
Harriet e Cassie haviam crescido.
— Adeus, Harriet — Murmurou, sentindo-se tola por falar sozinha no meio da
rua.
Abraçando o álbum de encontro ao peito, caminhou rapidamente o restante do
caminho para casa.
Joe colocou um buquê de margaridas sobre o túmulo de Harriet e apoiou um
joelho no chão. Suas mãos pareciam estar vazias desde que retirara a aliança de
casamento. Depois de todos aqueles anos, finalmente encontrara coragem para guar-
dá-la, e aquele gesto assumira um significado especial, como se estivesse preparando-
se para um novo começo.
A brisa do final do outono provocou-lhe um arrepio gelado. Não voltara ao
cemitério desde a última visita com Suzanne e tal constatação o surpreendeu.
Costumava ir até lá no mínimo uma vez por semana para levar flores e conversar
com Harriet.
— Maddie está planejando ir para uma escola de arte em São Francisco. Eu me
sinto morrer um pouco ao pensar que nossa filhinha vai sair de casa — disse em voz
baixa, aspirando o perfume da terra úmida — Você ficaria orgulhosa dela. É uma

183
Depois da Chuva Karen White

garota linda, inteligente e talentosa. Suzanne acha que ela tem um grande futuro como
fotógrafa, e todos nós concordamos que herdou esse dom de você, meu amor.
Sorrindo, olhou ao redor para se certificar de que ninguém o observava
enquanto conversava com fantasmas.
— Sarah Francês já está moça e sinto sua falta para orientá-la, mas acho que
estou me saindo bem. Joey é um verdadeiro craque no futebol, e Knoxie tem mostrado
talento para a música. Está tendo aulas de piano com a sra. Krawitz e continua
inconformada por ser ruiva e não loira, como você. Suzanne prometeu que vai ajudá-la
a mudar a cor dos cabelos...
Ao se flagrar falando de Suzanne mais uma vez, interrompeu-se e voltou ao
curso de seus pensamentos.
— Amanda e Harry estão se desenvolvendo bem. São crianças fortes e
saudáveis. Puxa, nem acredito que são meus filhos! Acho que Deus sabia que eu não
poderia cuidar deles sozinho e permitiu que você me ajudasse, de onde quer que
esteja. Às vezes, sou capaz de sentir suas mãos invisíveis me guiando... Obrigado, meu
eterno amor.
Uma saudade pungente oprimiu-lhe o peito e deixou que lágrimas quentes e
silenciosas rolassem por seu rosto. Respirou fundo e ergueu os olhos para vislumbrar a
lua alta no céu límpido, preparando-se para revelar seu mais profundo e assustador
segredo.
— Preciso lhe contar mais uma coisa... — Hesitante, respirou fundo antes de
prosseguir: — Dormi com outra mulher, Harriet... Achei que nunca faria isso, mas o
mais curioso é que, na manhã seguinte, senti que, de alguma forma, você havia
aprovado.
Ao dizer isso, Joe notou um pequeno objeto prateado refletindo o luar, próximo
ao buquê que acabara de colocar no túmulo. Apanhou-o para examinar mais de perto e
se surpreendeu ao ver uma moeda nova em folha. Fechou-a na mão e guardou-a no
bolso, intrigado por não tê-la percebido antes.
— Boa noite, Harriet. Eu sempre a amarei.
Erguendo-se,.caminhou para a entrada do cemitério e sentiu a brisa do outono
acariciar suas costas, como se tentasse empurrá-lo para fora dali.

184
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XVIII

Suzanne ergueu os olhos do jornal ao ver o sedan cor-de-rosa parar diante de


sua casa e estranhou ao ver Cassie dirigindo, com Sarah Francês no banco traseiro.
— Onde estão Lucinda e Maddie? — Indagou logo que se acomodou no banco do
passageiro.
— Tia Lu acordou com enjôo e dor de cabeça e não vai conosco, mas me
emprestou o carro. É mais espaçoso e posso acomodar melhor meu ventre — Cassie
explicou, acariciando o ventre.
— E troquei de lugar com Maddie — Sarah Francês informou — Ela preferiu ir
com Rob no ônibus.
— Sinto muito por Lucinda... Ela estava ansiosa por ver a mostra de fotografia
— Suzanne hesitou ao colocar o cinto de segurança — Não seria melhor que eu ficasse
para cuidar dela?
— Não é preciso. Sam levou-a para a clínica, embora não seja nada grave.
— Não esqueça de mencionar que ela começou a passar mal depois do jantar de
ontem, em sua casa — Sarah Francês comentou em tom de provocação.
— Ora, não sei por que todos falam mal dos meus pratos vegetarianos! — Cassie
resmungou com um gesto vago — Comecei a me sentir muito bem depois que mudei
minha alimentação!
185
Depois da Chuva Karen White

— E, por falar nisso, está se sentindo bem para dirigir?


— Oh, estou ótima! Ó bebê só chegará daqui a três semanas — Voltou-se para
Suzanne — Está quente hoje, não? O que acha de levantarmos a capota?
— Ótima idéia.
Ela apertou um botão no painel e a capota subiu com um rangido, enquanto Sarah
Francês a prendia no encaixe do banco traseiro.
— Assim está bem melhor! Prontas, meninas?
— Prontas! — As duas exclamaram em coro.
— Então, lá vamos nós! Temos de passar na escola para acompanhar o ônibus da
excursão. Mas, antes de sairmos... — Cassie apanhou dois extravagantes óculos
escuros da bolsa e deu um deles para a sobrinha — Presente de tia Lu! Ela disse que
você já tem.
— É verdade, eu quase ia me esquecendo...
Suzanne imitou-as e entrou no clima descontraído, deixando-se contagiar pela
animação enquanto o conversível atravessava a cidade em direção à escola. Chegara a
pensar em inventar uma desculpa para não ir à exposição em Atlanta e agradeceu a si
mesma por não tê-lo feito.
Dentro daquele conversível cor-de-rosa, sentia-se como uma rainha em uma
parada. Adorando a aventura, pensou que se alguém tentasse tirar seus óculos ou
fazê-la descer do carro, seria capaz de brigar!
Quando pararam em frente à escola, viu Joe com seus alunos na quadra de
futebol. Ele fez um gesto para que o time continuasse o aquecimento e se aproximou
do carro, apoiando o braço na porta de Suzanne.
— Uau! — exclamou bem humorado — O que três lindas mulheres, ainda mais
belas com esses óculos exuberantes, fazem sozinhas em uma cidade como esta?
— Papai! — Sarah Francês resmungou sem disfarçar o sorriso.
— Vamos sair em busca de aventura! — Cassie respondeu em tom de brincadeira.
— Espero que você não se importe.
— Nem um pouco! Quero apenas que tragam Sarah Francês de volta para o
jantar.
Enquanto conversavam, Suzanne aproveitou a vantagem das lentes escuras para
avaliá-lo de alto a baixo. Seu olhar percorreu desde as pernas musculosas até o queixo
bem talhado, detendo-se na boca... Sentiu o rosto queimar ao perceber que todos a
fitavam com ar de expectativa.
186
Depois da Chuva Karen White

— Desculpem, eu estava distraída... Vocês disseram alguma coisa?


— Perguntei se você viu os encartes sobre a mostra que Maddie levou para casa.
Guardei alguns no porta-luva. — E Cassie fez um gesto indicando-o.
Suzanne apanhou uma pequena brochura, e seu coração começou a bater
desenfreado ao ler a inscrição na capa: Gertrude Hardt: por trás da câmera.
O retrato em preto-e-branco de uma criança vestindo uma camiseta
esfarrapada aparecia logo abaixo. O rosto sujo estava semicoberto pelos cabelos
longos e emaranhados, e ela segurava uma margarida nas mãos. A intensidade do
branco das pétalas contrastava com os tons sombrios. A artista conseguira um efeito
esplêndido ao representar a esperança no brilho de uma frágil margarida.
Suzanne conhecia bem aquela fotografia, que já estivera pendurada na parede
de seu apartamento e era o único bem com o qual se importava naquela ocasião. Aquela
obra a remetia às próprias esperanças perdidas.
Quando recebera a coleção de Gertrude Hardt de Anthony, percebera logo que
ele pensara apenas no valor monetário, tentando impressioná-la para que reatasse o
noivado. O ex-noivo não tinha sensibilidade suficiente para admirar uma obra de arte
como aquela.
Alheia à conversa animada ao seu redor abriu a brochura para ver as demais
fotografias, as mesmas da coleção que vendera logo depois de ter mudado a cor dos
cabelos. Podia imaginar como Anthony ficara furioso ao descobrir!
Guardou o encarte e ajeitou os óculos escuros sobre o nariz, disposta a deixar
os pensamentos inoportunos de lado.
— Divirtam-se, meninas! — Joe exclamou, como se estivesse lendo seu
pensamento.
Ao ver o ônibus se alinhar atrás do conversível, deu uma palmada no capo do
carro e fez um aceno de despedida.
— Não seria melhor se eu ficasse? — Suzanne apertou as mãos, sentindo uma
ponta de apreensão — Cordella ficou sozinha na butique...
— Oh, ela saberá o que fazer! — Cassie afirmou, girando a chave na ignição —
Não se preocupe e tente apenas... Ai!
— O que foi? — Suzanne tocou-a no ombro, preocupada.
—Nada, foi apenas uma contração... É comum nesse estágio da gravidez.
— Tem certeza de que está bem?

187
Depois da Chuva Karen White

— Sim, estou ótima. Olhou para Cassie e notou as gotículas de suor em sua testa
mas não disse nada. Estavam esperando por aquela exposição com tanta ansiedade que
preferiu acreditar que as dores fossem apenas conseqüência do calor.
O ônibus ultrapassou o carro, e Maddie colocou a cabeça, para fora da janela.
— Nós nos veremos mais tarde! — Gritou, acenando freneticamente.
Quando o conversível deslizou pelo asfalto, Suzanne decidir parar de se
debater com o conflito angustiante que oprimia se peito. Já estavam a caminho e era
tarde demais para voltar atrás.
Quando alcançaram a rodovia interestadual, lembrou-se do guaxinim que vira no
meio da pista, na noite em que chegara a Walton. Ele também tivera uma parcela de
responsabilidade em sua decisão de ficar, concluiu.
Cassie ligou o rádio e uma música country ecoou no ar. Voltou-se para Suzanne e
ajeitou os óculos escuros.
— E, então, o que está achando da aventura, Louise?
Suzanne sentiu o sangue congelar nas veias ao supor que ela estivesse fazendo
alguma insinuação sobre sua falsa identidade. Depois de alguns segundos, percebeu que
se referia ao filme Thelma e Louise.
— Maravilhoso, Thelma!
— Quem são Thelma e Louise? — Sarah Francês apoiou-se no banco, curiosa.
— São as personagens de um filme sobre duas mulheres que decidem abandonar
tudo e sair em um carro à procura de aventuras.
— Oh, que interessante! Posso vê-lo, tia Cass?
— Sim, quando tiver dezesseis anos.
Suzanne se recostou no banco, deixando que o vento agitasse seus cabelos.
Tentou esquecer, nem que fosse por apenas algum tempo, a fotografia da criança com
a flor e o que aquilo significara para ela um dia.
Maddie se juntou a elas assim que chegaram à entrada principal do museu. Ela e
Rob estavam de mãos dadas, mas soltaram-nas imediatamente ao avistar Cassie e
Sarah Francês.
A longa fila de estudantes e acompanhantes encheu rapidamente o saguão
principal. Um imenso pôster de Gertrude Hardt pendurado na parede trazia a data do
nascimento e morte, tendo abaixo a biografia da artista.

188
Depois da Chuva Karen White

Suzanne já sabia o texto de cor e afastou-se. Parou para ver outro pôster com
a fotografia da artista, a face alva e os olhos azul claros que escondiam um gênio.
Observou que Maddie fazia o mesmo, e sorriu ao ver como se destacava dos
demais adolescentes.
Apanhou o walkman e fone de ouvido com o monitor e entrou na fila para a
primeira sala da exibição. Era como se uma mão invisível estivesse movendo-a contra
seu desejo.
Enquanto esperava Maddie, Cassie e Sarah Francês alcançarem-na, colocou o
fone nos ouvidos. Ligou o toca-fita e ouviu a voz feminina com sotaque britânico:
Embora passasse quarenta anos fotografando as cidades norte-americanas e
seus habitantes, a artista Gertrude Hart deixou uma obra relativamente pequena.
Até pouco tempo, as fotografias desta exposição permaneciam inéditas para o
público. Pertenciam ao acervo particular do magnata e mecenas de arte Caldwell
Winthorpe, de Chicago, amigo e conterrâneo da artista, e eram mantidas em sua
biblioteca pessoal.
Roubada da mansão do magnata há um ano, a valiosa coleção reapareceu em
posse do colecionador de arte Andy Harrison, de Chicago. Em seu depoimento à polícia,
Andy afirmou que a venda da coleção foi realizada por uma mulher que se manteve
anônima. As investigações da polícia para descobrir a possível autora do furto con-
tinuam...
Suzanne voltou a fita três vezes. Alguma coisa estava errada. Como a coleção
considerada por perdida ou presumivelmente roubada, se havia sido entregue a ela
como para presente de Anthony?
Deu um passo, pressionada pela fila, enquanto seu cérebro trabalhava
furiosamente. Se havia sido roubada, como Anthony tivera acesso à coleção para lhe
dar de presente?
Parou de súbito, prendendo a respiração. Seu sangue congelou nas veias quando
a verdade tornou-se óbvia: as valiosas fotografias nunca haviam pertencido a ele!
Sentindo náuseas, forçou a passagem através da multidão e correu para o hall
de entrada do museu. Estava tão apavorada que seu coração parecia a ponto de
explodir no peito.
Se aquelas fotografias eram roubadas e fora ela quem as vendera, Anthony
nunca seria acusado! Tudo que precisava fazer era mandar uma carta anônima às
autoridades identificando-a como responsável pela venda da coleção, e ela estaria
perdida!

189
Depois da Chuva Karen White

Bastardo!, Exclamou para si mesma, sentindo a fúria crescente dentro dela. Ele
não lhe dera o presente para se reconciliar, e sim para se proteger! Não a procurara
por não suportar ser rejeitado, mas para reaver a preciosa coleção! E depois de saber
que a vendera, tentaria se vingar a qualquer custo...
De súbito, a fúria deu lugar a um medo incontrolável. Respirou fundo, tentando
conter o pânico por imaginar o risco que correra. Anthony não precisava se esforçar
para encontrá-la. Podia deixar que a polícia fizesse o trabalho. Tinha dinheiro e amigos
nos lugares certos. De qualquer forma, ela terminaria nas mãos dele ou na prisão.
Alguém parou ao lado dela e soube no mesmo instante que sua situação poderia
piorar ainda mais.
— Não sabia que você estava aqui... — Stinky Harden a fitava com malícia —
Você não estava no ônibus.
— Vim com Cassie Parker — Respondeu, forçando-se a manter a calma.
— Você parece não estar bem. Está preocupada que Maddie não vença o
concurso de fotografia?
Ela o encarou com hostilidade, imaginando como sabia sobre o concurso. Então,
lembrou-se que Maddie havia comentado que seu filho, Charles, também se inscrevera.
— Não estou preocupada. Acho que ela tem grandes chances de ganhar.
— Se eu gostasse de apostas, diria que Charles tem melhores chances de
vencer. — Fingiu pensar por um minuto. — Apenas por brincadeira, vamos fingir que
sou um apostador. Estaria interessada em arriscar um palpite?
— Não, obrigada.
— Mesmo que o destino estivesse a seu favor?
Suzanne olhou para o rosto avermelhado, contendo o ímpeto de esmurrá-lo.
— Não estou interessada.
— Mesmo que, se ganhasse, pudesse fazer um grande favor a Joe?
— Do que está falando? — Olhou para ele desconfiada.
— Podemos fazer uma pequena aposta entre nós dois. Vamos dizer que, se
Maddie ganhar, eu desisto da campanha, eleitoral.
Suzanne prendeu a respiração, rezando para que ele não ouvisse as batidas
descompassadas do coração.
— E se Charles ganhar?
O brilho vitorioso nos olhos dele revelava que sabia do que estava falando.
190
Depois da Chuva Karen White

— Então, você me conta tudo que quero saber.


— E o que o faz pensar que um dos dois sairá vencedor?
Há centenas de inscritos no concurso.
— Vi as fotografias e, embora não seja crítico de arte, sei reconhecer um
talento quando o vejo.
Suzanne se pôs a pensar. Não tinha nada a perder, concluiu. Em breve, Anthony
faria com que todos soubessem que era a suposta envolvida no roubo da coleção de
Gertrude Hardt. Talvez não precisasse contar nada a Stinky Harden... Bastava
esperar que a notícia saísse publicada nos jornais!
— E o que acontecerá se nenhum dos dois vencer? — Indagou, demonstrando
interesse.
— Nesse caso, a aposta está cancelada.
Olhou para o rosto avermelhado e pensou que aquela era sua grande
oportunidade de fazer alguma coisa por Joe, como um gesto final de gratidão e adeus.
— Fechado! — Estendeu-lhe a mão, decidida. Ele a segurou mais tempo do que o
necessário e Suzanne desvencilhou-se do desagradável contato com o súbito desejo de
lavar as mãos. Sem nenhuma outra palavra, seguiu rapidamente para o interior do
museu, à procura de Maddie.
Encontrou-a com Rob, apreciando uma das reproduções expostas. Posicionou-se
atrás deles e focalizou a visão na fotografia, tão familiar para ela.
Mostrava uma mulher com vestido roto, sapatos furados e duas crianças
pequenas revirando o lixo de um beco deserto. Aquela imagem sempre a fizera se
lembrar de sua própria carência e desamparo.
Saiu apressadamente, receando não conseguir conter o pranto. Já vivera
emoções fortes demais por um só dia, concluiu, e precisava tentar se proteger.
Percorreu o corredor que levava ao saguão e estacou paralisada.
A cena que viu a seguir se desenrolou em câmera lenta, como em um filme de
terror.
Observou Cassie chamar um homem alto, elegantemente vestido em um
impecável terno italiano. Seguiu-a com os olhos com a sensação de que o mundo havia
parado de girar, até focalizar ninguém menos do que Anthony.
Escondeu-se atrás de uma coluna, tremendo tanto que receou que suas pernas
não fossem suportá-la.

191
Depois da Chuva Karen White

— A gravidez ficou maravilhosa em você, Cassandra — Ouviu-o dizer — Vai


retornar à agência depois que o bebê nascer?,
— Sim. Pretendo voltar ao trabalho logo que puder, mas não estou planejando
viajar. Vou trabalhar no escritório em minha casa.
— Que ótima notícia! Você tem feito uma excelente divulgação da minha rede de
restaurantes e não gostaria de perdê-la.
O trabalho que fez em Chicago no ano passado foi maravilhoso. Esperava poder
agendar alguma coisa similar para a primavera; quando vou abrir um novo restaurante
na Flórida.
Os olhos de Cassie se estreitaram à menção de Chicago. Seu olhar atravessou a
multidão e encontrou Suzanne.
Ela sabe da minha conexão com Anthony! Suzanne concluiu, mortificada.
Os olhares se encontraram e sentiu a batalha que se travava entre elas. Com um
esforço evidente, Cassie voltou a atenção para Anthony.
— O que o traz a Atlanta?
— A amostra de Gertrude Hardt — Ergueu os ombros, como se fosse o óbvio —
Não queria perder a abertura. Sou fã declarado dessa grande artista e não resisti
quando soube das fotografias inéditas.
Mesmo estando de costas para Suzanne, ela pôde adivinhar os olhos escuros
ausentes de emoção e cheios de um brilho vazio.
Apertou as mãos, aflita ao ver que Cassie a fitava com insistência. O mínimo que
podia esperar era que a denunciasse... Então, para sua surpresa, fez um gesto discreto
para que saísse dali.
Antes que pudesse se voltar e correr, observou-a colocar a mão sobre o
abdômen com uma careta de dor. Preocupada decidiu esperar até ter certeza de que
ela ficaria bem.
— O bebê está agitado hoje — Ouviu-a dizer, enquanto Anthony dava um passo
à frente.
— Você está bem? Quer que eu chame alguém?
— Não, obrigada. O parto está previsto para daqui a três semanas e não estou
preocupada. Acho que ele deve ter se agitado com a viagem.
— Tem certeza?
— Sim, fique tranquilo.

192
Depois da Chuva Karen White

— Bem, nesse caso, vou embora. Preciso tomar o avião de volta para Chicago
dentro de duas horas — Tomou-lhe a mão para beijá-la gentilmente — Foi maravilhoso
vê-la novamente. Vou ligar pára sua agência no próximo mês para conversar sobre a
nova campanha.
Suzanne não esperou para ouvir a resposta de Cassie. Sentindo-se com náuseas,
correu para o banheiro. Ao se olhar no espelho, não reconheceu a face lívida e
transfigurada que viu. Abriu a torneira e lavou vigorosamente o rosto com água fria,
tentando se recompor.
A porta se abriu e Cassie entrou, os olhares se encontrando no espelho.
— Precisamos conversar — Disse com expressão severa. — Pedi que Sarah
Francês voltasse com Maddie no ônibus para que pudéssemos ter algum tempo
sozinhas.
Saiu sem esperar pela resposta, deixando que a porta batesse com força atrás
de si.
Sentindo-se uma estranha ao ver seu reflexo no espelho, Suzanne mirou-se até
perder o foco. Resignada, fechou a torneira e saiu, sem outra escolha a não ser segui-
la.
Alcançou Cassie no estacionamento, apoiada ao capo do conversível. Correu até
ela, preocupada ao ver a expressão de dor no rosto pálido.
— Você está bem? — Amparou-a pelo braço — Quer que eu ligue para Sam?
— Não é preciso. Estou bem. Ainda não está na hora de o bebê nascer — Pousou
as mãos no ventre e tentou sorrir — Essas contrações são naturais nessa fase da
gravidez — explicou mais uma vez.
— Deixe-me ficar com o celular, assim poderei ligar para ele se for necessário.
— Não quero preocupá-lo. Tenho certeza de que vou ficar bem assim que
chegarmos em casa — Dobrou o corpo ao sentir uma nova contração — Importa-se de
dirigir?
Quando abriu a boca para dizer que não tinha carteira de motorista, Cassie já
estava sentada no banco do passageiro com as mãos ao redor do abdômen e uma
expressão de dor no rosto.
Sem escolha, acomodou-se atrás do volante e tentou se lembrar das aulas de
direção que Anthony lhe dera. Com um suspiro profundo, ligou o carro e pisou no
acelerador atenta ao tráfego.
— Por que está fugindo de Anthony de Salvo? — Cassie indagou de chofre.

193
Depois da Chuva Karen White

— Porque ele não é um homem bom e será muito mais saudável para mim se não
souber onde estou.
— Vocês estavam noivos, não é?
O arrependimento atingiu Suzanne mais uma vez ao pensar nas promessas e nos
presentes com que ele a seduzira.
— Sim. E eu rompi o noivado.
Cassie abafou um gemido, e Suzanne olhou para ela, aflita.
— Por favor, deixe-me ligar para Sam.
— Não. Estou bem. Você está apenas procurando uma desculpa para encerrar
essa conversa. Por que o deixou?
— Por que ele me machucava e o ferimento foi muito mais profundo do que os
hematomas que ficaram. Ele me fez ver a feia verdade da pessoa que realmente sou.
— Ele batia em você? — Cassie se virou para ela, chocada,
— Sim, muito. Anthony tem um péssimo temperamento e não queria mais ser o
alvo da violência dele.
— E quanto à coleção de Gertrude Hardt? Deve haver uma razão para que ele
aparecesse aqui hoje. Qual é a conexão?
— Ele me deu essas fotografias. Quando eu o deixei, vendi-as para Andy
Harrison por uma pequena fortuna, em uma negociação em que permaneci anônima.
— Não entendo... Então, por que faz tanto segredo disso?
— Achei que Anthony tivesse me dado a coleção para tentar me seduzir. Eu
havia rompido o noivado e ele insistia em reatar. Nunca pude imaginar que... Cassie?
Preocupada, desviou os olhos do trânsito para ela. Cassie respirava
pesadamente, com a cabeça reclinada no encosto.
— Estou bem — Assegurou, soando pouco convincente — Então, basicamente, é a
sua palavra contra a dele.
Suzanne fez uma pausa por um momento, refletindo sobre o quanto poderia
revelar, e percebeu que teria de continuar.
— Pior do que isso. Descobri hoje que essas fotografias foram roubadas da
mansão de Caldwelt Winthorpe exatamente na época em que Anthony deu-as para mim.
— Apertou as mãos no volante — Ele me usou para escondê-las. Agora que as vendi,
tudo que tem a fazer é dizer às autoridades que estou envolvida com o roubo. Ninguém

194
Depois da Chuva Karen White

vai acreditar em mim nem em um milhão de anos se disser que foi Anthony que me deu
a coleção!
— Por que se envolveu com um homem como ele?
— Acho que esse assunto não lhe diz respeito.
Cassie apertou os dentes ao sentir uma forte contração.
— Está enganada. Esse assunto me diz respeito. Harriet era minha irmã!
— E o que isso tem a ver comigo?
— Infelizmente, o que acontecer a você vai afetar diretamente meu cunhado.
Sei que é muito cedo para que Joe se envolva com alguém e será pior ainda se ele se
envolver com a pessoa errada.
As palavras machucaram muito mais do que Suzanne gostaria de admitir e disse
a primeira coisa que lhe veio à mente sabendo que também machucaria Cassie.
— Harriet está morta! Joe não está.
Um gemido profundo impediu Cassie de responder. Arqueou o corpo e apoiou as
mãos no painel, lutando contra a dor.
— Droga, Suzanne! Por acaso, acha que não penso nisso todos os dias da minha
vida?
Suzanne virou à esquerda, tentando fugir do tráfego pesado.
— O fato de Joe seguir a vida dele não significa que esqueceu Harriet — Disse,
pisando no acelerador. — Fazer de Joe um mártir não vai trazê-la de volta.
— Você nunca conseguirá amá-lo como Harriet o amou. Nunca!
Grossas lágrimas embaçaram a visão de Suzanne, e ela piscou com força,
entrando no tráfego pesado de Atlanta. À beira do desespero, olhou no retrovisor e
viu a imensidão de carros se enfileirando atrás do conversível.
— Talvez eu já o ame — Ouviu-se dizer, mal acreditando em sua declaração
arrojada.
— Não! — A voz soou estrangulada, cheia de pânico. Suzanne manteve o olhar
fixo à frente, incapaz de encará-la.
A verdade das palavras que saíram de seus lábios a revigoraram, dando-lhe
conforto.
— Sim, eu amo Joe! Não da mesma forma que Harriet o amava, mas eu o amo! —
Quase gritou, desejando que o mundo inteiro soubesse — Harriet o amou pelo homem
que ele era. Eu o amo pelo que é agora.
195
Depois da Chuva Karen White

— Não!
Daquela vez, a voz era quase um gemido, e Suzanne voltou-se para ela.
— Cassie?
Os olhos azuis revelavam medo e surpresa.
— Minha bolsa acabou de romper!

Capítulo XIX

Suzanne massageou as têmporas, sentindo que sua cabeça estava a ponto de


explodir. Cassie acabara de entrar em trabalho de parto dentro do carro, em meio ao
trânsito pesado do final do dia! Para piorar a situação, sua tentativa de seguir por um
atalho acabara forçando-a a sair em uma avenida completamente congestionada.
— Não... — Reclamou, receando ter uma crise histérica — Cassie, por favor, diga
que é só mais uma contração!
— O bebê está a caminho. Posso senti-lo!

196
Depois da Chuva Karen White

— Não, não está! Tente segurá-lo até encontrarmos um hospital — Respondeu.


Apertou o pé no acelerador, preparando-se para se mover. Infelizmente,
ninguém mais teve a mesma idéia. Um homem em um BMW conversível na faixa da
esquerda olhava para elas com curiosidade. Escondeu-se atrás do jornal que fingia ler
quando Suzanne o encarou com hostilidade.
— Preciso fazer força! O bebê está nascendo!
— Não faça força! Faça qualquer coisa, mas não faça força!
Desligou a chave da ignição, percebendo que seria inútil se iludir. O mar de
carros à frente indicava que não avançaria um centímetro nos próximos minutos.
Enfiou a mão sob o banco de Cassie e tateou até encontrar a alavanca para
recliná-lo. Tentou acomodá-la o melhor que pôde e apanhou sua bolsa, à procura do
telefone celular.
— Qual é o número de Sam?
— Está na memória — Gemeu, apertando o ventre — As contrações estão mais
frequentes. Juro que posso senti-lo abrindo caminho!
As mãos de Suzanne tremiam tanto que deixou o pequeno aparelho cair duas
vezes. Sam atendeu na terceira chamada.
— Sam, é Suzanne. Estou com Cassie no carro e ela acaba de entrar em trabalho
de parto.
— Onde vocês estão? — A voz calma, resultado de anos de trabalho com
emergências, soou do outro lado da linha.
— Em algum lugar de Atlanta, em meio a um engarrafamento. Deve ter havido
algum acidente ou algo parecido, porque estamos paradas há quase dez minutos.
Ergueu o pescoço para avistar a linha de carros à frente. Dois adolescentes
passaram em uma moto e olharam com curiosidade para o interior do conversível,
enquanto o rapaz do BMW meneava a cabeça.
— Acabamos de passar pela saída dezenove.
Olhou para Cassie, e seu pânico cresceu. Oh, não! Por que isso tinha de
acontecer justamente comigo? Lamentou desesperada ao ver os cabelos loiros
empapados de suor.
— Ela vai ter o bebê, Sam, e acho que não vai demorar muito.
Detectou uma nota de pânico quando ele perguntou:
— Qual é o intervalo das contrações?

197
Depois da Chuva Karen White

— Não sei dizer... Acho que dois ou três minutos.


— Diga a ela para não forçar — Disse depois de uma longa pausa — Vou chamar
uma ambulância do hospital de Atlanta. Não desligue.
Como se eu pudesse! Pensou, segurando o aparelho com o queixo e voltando-se
para Cassie.
Ela estendera as pernas sobre o painel, e Suzanne agradeceu à sorte por estar
usando um vestido comprido, sentindo-se ridícula por pensar em algo tão fútil em um
momento como aquele.
— Não faça força! — Olhou ao redor e viu os olhos arregalados do rapaz da
BMW — Sam disse que vai chamar uma ambulância e pediu para não deixá-la fazer
força.
— Não posso Suzanne. O bebê está nascendo! Tia Lu ficará furiosa quando
souber o que estou fazendo com o carro dela!
— Não pense nisso agora. Prometo que vou limpá-lo assim que chegarmos em
casa.
Ouviu a voz de Sam do outro lado da linha.
— Suzanne? Está me ouvindo.
— Sim.
— Diga a Cassie que a ambulância chegará em quinze minutos.
Ela olhou para a imensidão de carro por todos os lados.
— Impossível, a menos que seja um helicóptero!
Um grito agudo fez seu sangue congelar.
— Sam? Você está aí?
— Sim. O que foi?
— Cassie está sentindo muita dor.
Outro grito a impediu de ouvir a voz do outro lado da linha.
— Sam?
— Oh, meu Deus!
Daquela vez, Suzanne não teve dúvida. Sam também estava em pânico!
— Ouça, você precisa ajudá-la. Vou lhe dizer exatamente tudo que terá de
fazer.

198
Depois da Chuva Karen White

— Não! — Gritou em desespero — Sou a pessoa menos indicada para fazer um


parto!
— Suzanne, tente se acalmar. A ambulância não vai chegar a tempo. Você terá
de ajudá-la.
— Não posso! — Gemeu, contendo-se para não chorar. Cassie começou a respirar
com dificuldade, o rosto tornando-se cada vez mais vermelho.
— Sei que você pode — Balbuciou, tocando-a no braço — Preciso de você.
Relanceou o olhar para o lado e seu coração perdeu um compasso. De súbito,
sentiu vergonha por sua covardia, ainda mais evidente diante da coragem e da bravura
daquela mulher. O milagre da vida estava acontecendo bem diante de seus olhos, e
recusava-se a confrontá-lo!
De súbito, o pânico deu lugar a uma serenidade que ela própria desconhecia.
— Não se preocupe querida. Tudo vai dar certo. Confie em mim — Assegurou,
acariciando o rosto suado — Sam, diga-me o que fazer.
— Preciso falar com ele!
Cassie estendeu a mão para o telefone, mas o movimento brusco fez com que
seus dedos se enrascassem na gargantilha do pescoço. A delicada corrente se rompeu
e cinco pequenos corações de ouro espalharam-se pelo chão do carro. Suzanne viu o
pânico nos olhos arregalados pela primeira vez desde que o trabalho de parto
começara.
— Não se preocupe com isso, meu bem — tranquilizou-a. — Vou recolher os
pingentes. Concentre-se no bebê.
— Por favor, não se esqueça de nenhum... Significam mais para mim do que você
possa imaginar.
Esperou que o rosto se aliviasse depois de mais uma contração e estendeu-lhe o
telefone para que falasse com Sam.
Foi então que descobriu que tinham uma plateia e se arrependeu amargamente
por terem abaixado a capota do carro.
— Precisa de ajuda? — Um senhor usando boné de golfe estava parado ao lado
do carro — Eu e minha esposa estamos atrás de vocês e achamos que poderiam estar
em dificuldades.
Quando viu o que estava acontecendo no banco do lado, emitiu um grito
espantado.
— Você é médico?
199
Depois da Chuva Karen White

— Não.
— Preciso que procure algum, mesmo que seja veterinário.
Suzanne se surpreendeu com a própria eficiência da sua atuação. O homem
concordou e seguiu com expressão de alívio.
— Suzanne, o bebê está vindo... Agora!
— Sam? Não consigo ouvi-lo! Diga-me o que fazer!
— ...Cabeça... Quando estiver... Ombros. Mantenha o bebê... — As frases eram
interrompidas pela interferência e Suzanne tentou adivinhar o que ele dizia. —
...nariz... cordão umbilical... Então, a ligação caiu.
Olhou pela janela procurando o homem que saíra em busca de um médico, mas
não viu sinal dele. Respirando fundo, voltou-se para Cassie e fez a primeira coisa que
lhe veio à mente.
Debruçou-se sobre ela e segurou-a pelo queixo, forçando-a a encará-la.
— Querida, nós vamos conseguir — Com um movimento discreto, ajudou-a despir
a roupa de baixo — Faça força e respire. Estarei aqui para amparar o bebê.
Os olhares se encontraram e Suzanne sentiu uma emoção que nunca
experimentara antes. O sentimento de união e confiança a estimulou a seguir em
frente. Armou-se de nova coragem e teve certeza de que conseguiria.
Retirou uma caixa de lenços de papel do porta-luva e se lembrou de que havia
uma garrafa de água mineral sob o banco. Apanhou-a e lavou as mãos o melhor que
pôde, enquanto Cassie fazia força para que o bebê encontrasse o caminho.
Instintivamente, colocou as mãos sobre seu abdômen e pressionou-o de leve.
Naquele momento, o mundo ao seu redor deixou de existir. O som de buzinas, os
olhares curiosos dos ocupantes dos carros vizinhos, tudo pareceu subitamente muito
distante dali. Era como se estivessem envolvidas por uma redoma de energia que as
isolasse de todos.
Um silêncio abrupto pairou no ar e então Suzanne arregalou os olhos, fascinada
ao ver a cabeça do bebê despontar.
— Acabou? — Cassie balbuciou em um fio de voz — Não o ouvi chorar!
— Ainda não. Faça um pouco mais de força. Isso! Muito bem! — Estimulava,
pressionando o abdômen de Cassie — Você é uma mulher corajosa! Estou orgulhosa de
sua bravura.

200
Depois da Chuva Karen White

Depois de uma forte contração, Suzanne apanhou o delicado ser nas mãos,
inundada por uma emoção indescritível. Acolheu a pequena criatura que acabara de
chegar ao mundo enquanto lágrimas quentes lavavam seu rosto.
Irrefletidamente, limpou o nariz e boca do bebê e suspendeu-o pelos pés.
Quando ouviram o estridente grito que cortou o ar, ambas começaram a chorar
de emoção.
— É uma menina? — Cassie indagou por entre lágrimas.
— Não sei!
— Olhe entre as pernas, Suzanne!
Sentindo-se estúpida, ela começou a rir e a chorar ao mesmo tempo.
— É uma menina! — Colocou-a no colo da mãe e estendeu a mão para o banco de
detrás, apanhando o suéter de Sarah Francês para cobri-las.
Pancadas leves no vidro do carro, ao mesmo tempo que ouviam o som de uma
sirene, trouxeram-na de volta para a realidade.
O senhor que saíra à procura de um médico chegara com uma mulher alta,
carregando uma valise preta. Respirando com alívio, Suzanne fez menção de sair, mas
Cassie a segurou pelo braço.
— Obrigada — Disse simplesmente, e foi o que bastou para que demonstrasse
sua gratidão.
O bebê emitiu um som gutural, fazendo-as rir.
Então, Suzanne saiu do carro para que a médica entrasse. Recostou-se no capo e
só então seu corpo reagiu. Sentia-se exausta e enfraquecida, como se houvesse lutado
com um leão.
Esperou até que a ambulância chegasse para se mover. A sensação de que
acabara de mudar os caminhos de sua própria vida a invadiu. Olhou para o céu, que se
encheu de nuvens carregadas, escondendo o sol. Cobriu a cabeça com as mãos e entrou
no carro quando as primeiras gotas de chuva começaram a cair.
Joe tocou o vidro da enfermaria pediátrica e fechou os olhos, lembrando-se das
seis visitas que fizera àquele mesmo hospital. Desde a última vez, com o nascimento de
Harry, aquele se tornara o lugar mais perturbador do mundo. Ali, sentira a alegria e o
amor de novos começos, e a dor e a desesperança do fim.
Abriu os olhos e viu o bebê de Sam e Cassie coberto por uma manta cor-de-
rosa. Sorriu, pensando em como aquele milagre continuava a surpreendê-lo.

201
Depois da Chuva Karen White

A vida sempre prosseguia, não importava quantas vezes o sol se punha. Não
poderia acreditar em tal fato três meses atrás, mas havia mudado. Sabia que a
saudade de Harriet seria eterna e jamais conseguiria preencher o vazio que deixara,
mas ela tornara-se parte de seu passado... Um passado feliz que ficara para trás. O
futuro o esperava para ser vivido e preenchido com o que escolhesse para sua vida.
Uma enfermeira entrou na sala, e ele bateu no vidro e indicou o bebê. Ela pegou-
o no colo e se aproximou para mostrá-lo.
Joe sorriu ao ver os dedinhos perfeitos, o minúsculo nariz, as sobrancelhas
arqueadas. Agradeceu à enfermeira e acenou para sua mais nova sobrinha, alegria e
saudade se misturando em seu coração diante do novo começo de uma vida.
Dirigiu de volta para casa com o pensamento em Suzanne. Se ao menos pudesse
convencê-la de que toda vida tinha a possibilidade de novos começos e segundas
chances...
Guardou a caminhonete na garagem e foi para a varanda. Seu coração perdeu um
compasso ao vê-la sentada no degrau da varanda, com Amanda no colo.
Aproximou-se e escondeu o sorriso ao ver as pálpebras borradas de sombra
azul, dois círculos vermelhos nas faces e uma grossa camada de batom cor-de-rosa
cintilante que ultrapassava em muito o contorno dos lábios. Usava uma coroa presa aos
cabelos e um manto que mal lhe cobria os ombros.
— Alteza... — Parou à frente dela e fez uma mesura galante.
— Papai! — Amanda pulou do colo e correu para os braços dele — Estamos
brincando de princesa e rainha. Ela é a rainha.
A porta da frente se abriu. Knoxie correu para fora e Harry veio logo atrás,
com as mãos cobertas por uma espécie de geléia vermelha. Ele pulou nos braços do pai,
e Joe teve de se esforçar para que sua camisa não ficasse manchada.
— O que é isso nas mãos?
— Estava preparando o almoço e pedi a ele que segurasse os tomates...
Suzanne se pôs de pé e pegou-o no colo.
— Venha, Harry. Vamos lavar as mãos e ajudarmos Knoxie a fazer o almoço.
Joe olhou mais uma vez para a maquiagem pesada no rosto dela e jurou para si
que nunca vira alguém mais bonita.
— Vou ajudar — Ofereceu, seguindo-a.
Todos entraram ao mesmo tempo fazendo algazarra e seguiram para a cozinha.

202
Depois da Chuva Karen White

— Como está Cassie e o bebê? — Indagou enquanto lavava as mãos de Harry.


— Estão ótimos. Terão alta amanhã.
Sorriu enquanto secava as mãozinhas do menino com uma toalha de papel e o
colocava no chão.
Sarah Francês entrou na cozinha, e Joe franziu o cenho ao notar que usava um
bracelete prateado e um anel com o mesmo desenho no dedo do pé.
— O que é isso, Sarah Francês?
— O presente de aniversário de Suzanne.
— Nunca a vi usando antes.
— Estava esperando por uma ocasião especial.
Observou o olhar de cumplicidade entre elas, satisfeito em saber que haviam se
tornado amigas.
— Poderia ajudar Knoxie com o almoço? Preciso falar com Suzanne.
Para seu espanto, ela concordou sem reclamar. Foram para a varanda e
sentaram-se no degrau da escada.
— Obrigado por olhar as crianças enquanto fui visitar Cassie na maternidade.
Espero que não tenham dado trabalho.
— Ao contrário! Eu me diverti muito — Retirou o manto de rainha e colocou-o no
colo — Qual será o nome do bebê?
— Harriet Suzanne Parker.
— O quê?
— Exatamente o que você ouviu.
Uma emoção profunda fez com que os olhos de Suzanne ficassem marejados.
— Foi idéia de Sam? — Indagou, tentando disfarçar o sentimento.
— Não. Foi Cassie quem escolheu o nome. Suponho que depois do que passaram
juntas, você merece a homenagem.
— Espero que ela não esteja mais brava comigo.
— E por que estaria?
— Estávamos discutindo quando a bolsa se rompeu. Confesso que me sinto muito
culpada.
— Sobre o que estavam discutindo?

203
Depois da Chuva Karen White

Ela abaixou os olhos sem conter o tremor dos lábios.


— Sobre você.
— Sobre mim? — Fitou-a intrigado.
— Ela disse que ninguém vai amá-lo como Harriet o amou e que não precisa de
mais ninguém em sua vida.
— E você acredita nisso?
— Não — Voltou-se para ele, com a voz embargada pela emoção. — Nós dois
temos um lugar vazio no coração e desejamos ardentemente preenchê-lo.
Ao terminar a frase, sentiu os lábios macios cobrindo-lhe a boca e prendeu a
respiração.
Joe beijou-a com toda a paixão de sua alma, sem se importar por serem vistos
por todos que passavam.
O som do motor de um carro fez com que interrompessem o contato. Voltaram-
se para o portão ao mesmo tempo para ver Maddie saltar do carro de Rob.
Cumprimentou-os com naturalidade ao subir os degraus e abriu a porta da frente,
voltando-se um momento antes de entrar.
— Não se esqueça de limpar o batom antes de sair, papai.
Os dois ficaram em silêncio por um segundo e então começaram a rir. Quando a
porta se fechou com um ruído, dirigiu-se a Suzanne.
— Ah, antes que eu me esqueça... Cassie pediu que eu lhe entregasse algo. Disse
que estava no bolso do vestido quando ela foi para o hospital.
Apanhou um pequeno embrulho no bolso da camisa. Suzanne o abriu e espalhou a
corrente e os cinco corações de ouro na palma da mão.
— Ela disse que você saberá o que fazer.
— Por favor, diga-lhe que fique tranqüila.
— Obrigado. Você tem sido maravilhosa— Com um sorriso terno, beijou-a na
testa.
— E você é adorável, Joe Warner.
— Shh... fale baixo! Eu tenho uma reputação a zelar — Ele riu e puxou-a de
encontro ao peito — Se meus alunos souberem que não sou o professor durão que
conhecem, ficarei desmoralizado.
— Você é durão?

204
Depois da Chuva Karen White

— Para que tenha uma idéia, os rapazes do time de futebol me apelidaram de


Joe, o Implacável! — Estufou o peito, simulando um falso orgulho.
Sentiu uma onda de calor aquecer seu peito ao vê-la rir e se pôs a brincar com
uma mecha dos cabelos sedosos. Observou que as raízes escuras começavam a
aparecer e lembrou-se de súbito de todas as dúvidas que tinha sobre aquela mulher.
Quase perguntou sobre o dinheiro que encontrara na mochila quando fora
apanhar a câmera, mas não o fez. O relacionamento ainda era frágil demais para ser
submetido a provas. Sentia que Suzanne era como uma borboleta em suas mãos: se
tentasse contê-la, machucaria as asas delicadas, e se abrisse a mão, voaria para longe.
— E você, nunca teve um apelido? — Indagou depois de um longo silêncio.
— Não, nunca.
— Nesse caso, terei de inventar algum — Franziu o cenho enquanto refletia —
Que tal Sexy Suzanne? Doce Suzanne? Já sei! Misteriosa Suzanne!
Ela se afastou abruptamente, e Joe percebeu que fora longe demais.
— Preciso ir para o trabalho. — Ergueu-se e tentou sorrir — Nós nos veremos
amanhã, certo?
— Combinado. E não se esqueça de lavar o rosto antes que alguém a veja.
Em um impulso, Suzanne beijou-o nos lábios e saiu.
Se olhar para trás, significa que me ama! Pensou, iludindo-se com a mesma
crença tola e ilógica que costumava usar quando era adolescente. Observou-a caminhar
pela calçada implorando secretamente para que olhasse para trás apenas uma vez.
Estava a ponto de desistir quando ela chegou ao final do quarteirão e se virou,
encarando-o com um sorriso alegre. Então, virou a esquina e desapareceu de sua vista.
Ela me ama! Exultou, desejando gritar de alegria. Não importava que fosse
apenas uma ilusão. A crença de que aquela mulher pudesse amá-lo encheu seu peito de
esperança.
Depois de uma exaustiva reunião na Prefeitura, Joe entrou no hall e acendeu as
luzes, resmungando ao ver os brinquedos espalhados pelo caminho. Caminhou pela casa
mergulhada no silêncio sentindo a presença palpável das crianças dormindo no piso
superior.
Subiu lentamente a escada, relutante em deparar com a solidão do quarto.
Ao passar pelo quarto de Maddie, um ruído abafado chamou-lhe a atenção.
Bateu à porta e esperou que ela o autorizasse a entrar. Encontrou-a sentada no chão à
frente do armário, com todas as roupas espalhadas ao redor de si.

205
Depois da Chuva Karen White

— O que está fazendo?


— Arrumando o armário.
— Não deveria estar na cama?
— Queria terminar antes de ir dormir. Achei melhor desocupar o armário agora,
para que você não tenha com que se preocupar depois que eu for embora.
— O que quer dizer? Mesmo que você se for, este ainda será seu quarto.
— Eu sei. É só para caso de...
A voz tremeu, e se pôs a dobrar uma calça de moletom com um cuidado
exagerado.
— Para o caso de...?
Ela virou o rosto e Joe notou, consternado, que estava chorando.
— Lembro-me como foi quando mamãe morreu. Tia Lu e tia Cassie vieram
desocupar o armário dela e choraram o tempo todo. Não quero que você passe por isso
quando tiver de arrumar meu armário.
— Você não vai morrer, minha querida! — Puxou-a para si, mal contendo o
próprio pranto — Apenas vai para a universidade. E enquanto eu viver haverá um lugar
para você em minha casa.
Maddie foi envolvida em um abraço protetor.
— O que está acontecendo, filha? Você sente saudade de sua mãe?
Ela meneou a cabeça em concordância, soluçando ainda mais.
— Também sinto muita saudade dela.
— Mas não é só isso.
Não disse nada por um longo tempo, enquanto Joe esperava pacientemente que o
pranto sofrido se acalmasse.
— Estou com medo, papai... Tenho medo da universidade, de ter tomado a
decisão errada... Tenho medo de morrer jovem, como a mamãe e a vovó!
Joe embalou-a como se estivesse novamente com seu pequeno bebê no colo e
beijou-lhe a testa.
— É natural que tenha medo, querida. Não podemos controlar nosso futuro, mas
podemos encará-lo melhor se soubermos que há alguém do nosso lado. E você tem sua
família, seus amigos e uma casa que terá sempre as portas abertas, aconteça o que
acontecer.

206
Depois da Chuva Karen White

Calou-se, com a voz embargada pela emoção. Pensou em sua adorada esposa e na
natureza gentil e no coração generoso da maravilhosa filha que lhe dera. Segurando as
próprias lágrimas, continuou:
Maddie parecia um pouco mais calma.
— Você recebeu de sua mãe a beleza, a inteligência e o talento. Mas acima de
tudo, ela lhe deu a vida. O único sonho que tinha para você e para todos os filhos era
que vivessem: plenamente e fossem felizes — Acariciou ternamente os cabelos da
filha — Não seja prisioneira de seus medos. Vá cm frente e lembre-se sempre de que
haverá um lar esperando por você.
Joe se recostou na cama e esperou que ela parasse de chorar.
— Sua mãe me disse, certa vez, que sempre haveria um dia de chuva na vida de
todos nós, mas que era a única forma de ver o arco-íris.
— Suzanne me disse o mesmo...
— Então, deve ser verdade. Se as duas mulheres mais inteligentes que conheço
disseram a mesma coisa, deve ser verdade.
Ao vê-la sorrir, o coração de Joe se aqueceu.
— Obrigada, papai. Estou me sentindo melhor.
— Eu também. — Olhou para a bagunça espalhada pelo chão — Já é tarde. Por
que não vai dormir? Prometo que, amanhã cedo, vou ajudá-la a acabar de arrumar o
armário.
— Está bem.
Ele se levantou e estendeu a mão para erguê-la do chão, notando de súbito que
sua filha estava quase de sua altura.
Quando crescera tanto? Pensou com um aperto no coração. Maddie se deitou,
então ele a cobriu e a beijou de leve na testa.
— Boa noite.
Caminhou para a porta e, antes de fechá-la, ouviu Maddie chamá-lo.
— Papai!
— Humm?
— Eu o amo.
Joe apagou a luz e fechou a porta. Lentamente, caminhou pelo corredor às
escuras para seu quarto vazio. Porém, seu coração estava pleno de amor e de gratidão.

207
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XX

Joe bateu o jornal sobre a mesa do Café Dixie Diner, fazendo com que Sam
quase derramasse a xícara de café.
— Bom dia para você também — Disse em tom bem-humorado, mas sua
expressão mudou ao ver o rosto preocupado do amigo — O que houve?
— Veja isso!
Joe colocou o jornal aberto sobre a mesa.
— A polícia foi chamada a uma residência por causa do latido de um cachorro? O
que tem isso?
— Não é essa reportagem — Disse com a impaciência. Apontou para o alto da
página, onde se lia a manchete: Mapleton é notificada em audiência pública. Logo
abaixo, uma extensa reportagem informava sobre o pedido de anexação do bosque de
mata virgem aos limites do município.
— É a propriedade de Stinky Harden!
— Exatamente! — Joe se sentou e fez um gesto para Brunelle — O
administrador regional de Mapleton e ele foram colegas de classe na universidade e,
208
Depois da Chuva Karen White

por uma incrível coincidência, ele também é o maior acionista da indústria Wright
Paper, a maior companhia de fabricação de papel da região. Entendeu a conexão?
— Sim, mas... Por que a anexação? Não seria um passo desnecessário?
— Não. Os regulamentos do meio ambiente em Mapleton não são tão rígidos
quanto os de Walton. Se ele conseguir, será muito mais difícil impedirmos o
desmatamento e a poluição.
— Meu Deus! — Sam colocou as mãos na cabeça, desolado — A audiência será na
próxima quarta-feira. Como não ficamos sabendo antes?
— É o que eu gostaria de saber. Sou prefeito desta cidade e deveria ser o
primeiro a ouvir as notícias. Suponho que Stinky conseguiu omitir a informação de
propósito.
— Mas não há nada comprometedor sobre ele que você possa provar?
— Não posso provar nada! Felizmente fiquei sabendo a tempo. Talvez possa
conseguir apoio com a oposição de Mapleton. Sou o prefeito, está na hora de começar
a usar meus contatos.
— Há um grupo ambientalista que descobri na internet... Creio que poderão
ajudar. Posso mandar um e-mail e contar o que está acontecendo.
— Faça isso ainda hoje.
Joe abriu espaço para que Brunelle colocasse a bandeja com seu café da manhã
e apanhou a xícara de café. Deu um gole e fez uma careta ao queimar a língua.
— Não quero parecer pessimista, mas acho que precisamos considerar todas as
possibilidades — Sam comentou depois de comer com apetite sua porção de ovos com
bacon. — O que poderá acontecer se Stinky ganhar a eleição? Se ja está escondendo
informações antes de vencer, imagine como será depois. O desmatamento da floresta
vai ser nossa menor preocupação.
— Não deixarei que isso aconteça. A última pesquisa eleitoral promovida por
Hall Newcomb mostrou que tenho noventa e quatro por cento da aceitação dos
eleitores. A menos que aconteça alguma coisa terrível até as eleições, não creio que
ele tenha chance de vencer, não importa quanto dinheiro esteja disposto a gastar.
Naquele momento, a porta do Café se abriu, e Suzanne entrou. Usava uma das
roupas que Lucinda a ajudara a escolher. Em qualquer outra mulher o conjunto de blusa
e saia e passaria despercebido, mas provocou a mesma reação em todos homens
presentes, que se voltaram para observá-la.
O rosto dela se iluminou ao ver Joe, mas esperou que acenasse para se
aproximar.
209
Depois da Chuva Karen White

Para sua surpresa, ele se ergueu e beijou-a nos lábios sem se importar pelo fato
de estarem em um local público. Constrangida, sentou-se com a certeza de que seria o
tema das focas nos próximos dias, como deveria ter acontecido depois de Joe ter
saído de sua casa às quatro horas da madrugada...
No entanto, notou que ele sorria com segurança, como quisesse que todos
ficassem sabendo sobre o relacionamento.
— Café? — Ofereceu, estendendo-lhe o cardápio.
— Bem, preciso ir embora — Sam anunciou, com a evidente intenção de deixá-los
a sós — Cassie está esperando-a para uma visita, quando tiver tempo. Ela disse que
vocês precisaram terminar uma conversa.
— Estou planejando há dias ir à sua casa, mas estive muito ocupada na loja. Você
sabe, estamos nos preparando para o Natal.
Joe podia jurar que ela estava evitando os olhos do amigo.
— Por favor, diga-lhe que vou assim que puder.
— Está bem — Despediu-se com um beijo no rosto — Avise-me se estiver
planejando fazer mais algum parto para que eu possa cuidar da minha aposentadoria.
Ela riu é observou-o se afastar.
— O que há de interessante no jornal? — Indagou, notando o exemplar aberto
sobre a mesa.
— Más notícias. Stinky Harden está disposto a destruir esta cidade e estou
cada vez mais disposto a não permitir. Agora, mais do que nunca, quero a reeleição.
O rosto de Suzanne tornou-se lívido quando ele tentou tocar suas mãos.
Afastou-as para escondê-las sob a mesa.
— O que houve? — Indagou, com expressão confusa.
— Nada. Acho que estou cansada. Estamos trabalhando muito na butique,
tentando organizar a mercadoria que chegou para o Natal.
Joe sorveu um gole de café e estudou o perfil delicado, a pele alva do pescoço e
a doçura dos lábios carnudos. Desejou tomá-la nos braços ali mesmo, diante de todos,
mas receou que ela o rejeitasse novamente.
Com um gesto discreto, ela chamou Brunelle e pediu duas torradas com geléia de
framboesa e uma xícara de chá.
— Então, está trabalhando muito?

210
Depois da Chuva Karen White

— Oh, sim! Lucinda encomendou uma coleção maravilhosa para o inverno e me


incumbiu de decorar a vitrine. Nunca havia feito isso antes, mas estou adorando!
— Que bom. Fico feliz em saber que você...
Joe se calou, como se pressentisse a entrada de seu indesejável oponente.
— Bem, bem... Aqui está nosso prefeito e a adorável srta. Paris! — Stinky
Harden sorriu com malícia ao parar ao lado da mesa — Estão parecendo dois patinhos
encolhidos... É melhor se afastarem para que nenhum caçador possa abatê-los de uma
só vez.
Joe fez menção de responder, e Suzanne enviou-lhe um olhar de censura,
fazendo-o se calar.
— Lembra-se do meu filho Charles, srta. Paris? Ele disse que a encontrou no
laboratório do colégio, quando você revelava algumas fotografias.
Só então perceberam a presença do jovem ao lado dele. Stinky passou o braço
pelos ombros da versão mais jovem de si mesmo.
— Sim, eu me lembro. Prazer em revê-lo, Charles.
Estranhou ao vê-lo abaixar a cabeça, evitando encará-la e murmurando alguma
coisa incompreensível.
— Vocês já tiveram alguma notícia sobre o concurso da revista Lifetime!
— O resultado sairá até o final desta semana — Suzanne informou, sem tirar os
olhos de Charles. Por que estaria tão constrangido? Pensou intrigada — Creio que
seremos informados quando chegarem a alguma decisão sobre o vencedor.
— Bem, vamos tomar nosso desjejum, filho — Colocou a mão pesada sobre o
ombro de Joe — Tenha um bom mandato, prefeito. Divirta-se enquanto pode.
Joe notou o botton de campanha com a inscrição: Posso controlar meus filhos e
esta cidade. Fez menção de se levantar, mas a mão de Suzanne o deteve.
— Não faça isso. As pessoas vão admirar sua capacidade de se conter mais do
que sua habilidade em bater no oponente.
Acomodando-se na cadeira, percebeu que ela tinha razão e se pôs a refletir,
mais uma vez, sobre que tipo de vida tivera para adquirir tanta sabedoria.
Depois de comer, Suzanne deixou uma nota de cinco dólares sobre a mesa e se
levantou.
— Preciso ir. Lucinda já deve estar preocupada com minha ausência.
— O que vai fazer hoje à noite? — Joe indagou, segurando-a pelo pulso.

211
Depois da Chuva Karen White

— Vou trabalhar no álbum de Maddie.


— Precisa de companhia?
— Não hoje à noite. Consigo trabalhar melhor se estiver sozinha.
— Nesse caso nos veremos depois. Tenha um bom dia.
Ela sorriu e saiu sem olhar para trás.
Joe se levantou e retirou a carteira do bolso para pagar. Ergueu o rosto e notou
que Stinky o observava com olhar irônico, do outro extremo do restaurante. Contendo
o ímpeto de esmurrá-lo, saiu com a sensação de que ele escondia alguma coisa.
Estava na hora de Suzanne revelar alguns segredos, concluiu enquanto
caminhava para a sede da Prefeitura.
Ao cair da tarde, Suzanne sentou-se na cadeira de balanço da varanda com um
livro nas mãos. Estava terminando de ler um dos romances que a sra. Lena lhe
emprestara e sorriu secretamente ao perceber que era a primeira vez que se dedicava
a uma leitura até o fim. Absorvida pela trágica história da heroína deixou que o pranto
fluísse livremente.
Recostou a cabeça no espaldar da cadeira e seu pensamento lhe trouxe a
imagem de Joe. Ao lado dele, tinha a sensação de que nenhum mal a atingiria. Porém, o
momento inevitável estava se aproximando. Como poderia partir, depois de conhecer o
homem de sua vida?
Evitando pensar no assunto, abriu o livro na última página para terminar a
leitura e congelou ao ver o nome escrito uma caligrafia infantil na última capa.
Michelle Lewis.
Passou os dedos pelas letras quase apagadas pelo tempo como se tentasse tocar
as mãos que haviam escrito aquele nome.
Michelle Lewis... O que o nome da sua mãe estaria fazendo ali?
Porém, já sabia a resposta. Aquela era a prova óbvia do que já sabia. Desde que
a sra. Lena lhe dera o livro, suspeitara que um dia havia pertencido à sua mãe.
Demorou-se a olhar para as letras por quase uma hora. Velhas recordações
emergiram em seu pensamento, lembranças de sua mãe contando sobre o passado,
sobre como crescera em diversos orfanatos antes de ser adotada... E sobre como
viveu com uma pessoa que fizera toda a diferença na vida dela: mulher que lhe dera a
gargantilha com o pingente em forma de coração.
Suzanne puxou o pingente de sob a camiseta para observar mais de perto. Leu
as palavras que já havia decorado em voz alta.

212
Depois da Chuva Karen White

Aquela era a última peça do quebra-cabeça de uma jornada que agora se


encerrava.
A verdade que ecoava em sua cabeça tornou-se óbvia demais para ser ignorada.
A princípio, tivera medo de que a descoberta a prendesse ainda mais àquela cidade.
Porém, não havia mais como fugir do confronto.
Fechando o livro, entrou para o interior da casa e apanhou a gargantilha de
Cassie. Já havia esperado tempo bastante.
Colocando-a na bolsa, saiu de casa e seguiu para o lugar que estivera evitando
desde que chegara a Walton.
O sol do entardecer enviava seus últimos raios sobre a placa com a inscrição
Joalheria R. Michael em dourado. Os pequenos sinos sobre a porta anunciaram sua
chegada e um homem de cerca de sessenta anos, carregando uma lupa na mão, emergiu
dos fundos. O rosto simpático era emoldurado por cabelos grisalhos, brilhantes olhos
azuis e sorriso amigável no rosto.
— Boa tarde. Há algo que possa fazer por você?
Ela retirou a gargantilha e colocou-a sobre o balcão.
— Gostaria que o senhor soldasse esta corrente.
— Oh, sim! Cassie esteve aqui há dois dias com o bebê e disse que você viria em
breve. Ela já pagou pelo serviço.
Suzanne ficou surpresa com a informação, mas nada disse.
— Será um trabalho simples — Ele comentou, avaliando a corrente com atenção.
— Se quiser esperar alguns minutos, poderá levá-la ainda hoje.
— Claro. Não estou com pressa.
O simpático joalheiro desapareceu nos fundos da loja e deixou-a só.
Olhou ao redor, admirando a beleza das jóias sob o vidro do balcão.
Estudou a fotografia na parede de uma versão mais nova do homem que acabara
de atendê-la. Ele estava de pé, com dois rapazes ao seu lado, e segurava um diploma.
Aproximando-se, observou três molduras contendo certificados de joalheiros com os
nomes Randy Michael, Randy Michael Júnior e Randy Michael III.
Imaginou como seria abrir e fechar a joalheria todos os dias durante as três
últimas gerações e sentiu uma ponta de inveja.
Devia ser maravilhoso saber que seu lugar no mundo estava garantido antes
mesmo de nascer.

213
Depois da Chuva Karen White

O joalheiro retornou dez minutos depois, e ela se debruçou sobre o balcão.


— Está nova em folha! Aproveitei para polir também. — Colocou a corrente e os
cinco corações de ouro em uma caixa de veludo — Eu me lembro quando Harriet
encomendou pingentes... Meu coração quase partiu quando soube da morte dela. Mas
acho que as crianças estão em boas mãos.
— O senhor se importaria de olhar uma jóia e me dizer se lembra de tê-la visto
antes?
— Deixe-me vê-la.
Suzanne retirou a gargantilha do pescoço e colocou-a s o balcão. O som delicado
do metal sobre o vidro preencheu silêncio da loja.
— Humm...
Observou-o com expectativa enquanto estudava a peça.
— Sim. Já a vi antes. Seria difícil esquecer.
— É mesmo? E por quê?
— Porque meu pai discutiu comigo sobre ela. Foi logo depois que saí da
universidade e vim trabalhar na joalheria. Meu pai dizia que seria impossível gravar
uma inscrição tão grande em um pingente desse tamanho. Mas a mulher que a
encomendou insistiu para que eu o fizesse... E fico feliz por tê-la ouvido
Suzanne fitou-o em expectativa, ouvindo o som de sua própria respiração.
— O senhor se lembra do ano?
— Foi em junho de cinquenta e nove... Sim, tenho certeza absoluta! Foi o ano em
que me formei, e este foi meu primeiro trabalho.
Já sabia a resposta da pergunta que faria seguir, mas precisava se certificar.
— E lembra-se de quem o encomendou?
— Bem, isso também seria impossível esquecer. Srta. Eulene Larsen. Ela era uma
cliente regular desde que meu avô inaugurou a loja.
Um brilho de nostalgia iluminou os olhos azuis.
— Ela sempre foi uma mulher inteligente e espirituosa... É uma pena que hoje
esteja um tanto confusa.
Suzanne ouviu as palavras com um misto de alívio e medo.
— Creio que ela ainda seja inteligente e espirituosa. Acho apenas que as pessoas
nem sempre querem ouvir o que ela tem a dizer.

214
Depois da Chuva Karen White

— Você está coberta de razão, minha jovem!


— Obrigada por tudo, sr. Michael.
— Às suas ordens, senhorita. Venha me visitar qualquer dia desses.
Ela se despediu e ouviu os sinos soarem quando abriu a porta para partir. Enfiou
as mãos nos bolsos e seguiu para a casa da sra. Lena.
A noite havia caído quando tocou a campainha. Estava disposta a tocá-la apenas
mais uma vez quando ouviu passos lentos e a porta da frente se abriu.
— Oh, que surpresa agradável! Entre, querida. Estava me preparando para
assistir à Roda da Fortuna. Há um concorrente novo que é brilhante, o sr. Sajak.
Recuou um passo para que Suzanne entrasse. Uma bandeja com o jantar
permanecia sobre a mesa de centro e a música de abertura do programa começou a
soar no aparelho de televisão.
— Vou levar a bandeja do jantar enquanto você assiste ao show. Poderemos
conversar mais tarde.
— Obrigada, meu bem. Sabe, o dr. Parker disse que vai verificar se estou
assistindo ao programa todos os dias... Ele disse que é bom para minha memória,
mesmo que eu insista em lhe dizer que não há nada de errado com ela.
Suzanne pegou a bandeja e levou-a para a cozinha. Notou! as flores de plástico
em um vaso com água e sorriu. À primeira vista, parecia estranho. Então, lembrou-se
que sua mãe também conservara aquele costume, afirmando que, daquela forma, todos
pensariam que eram flores naturais. Era mais uma pista inequívoca que ela recusara a
observar.
Depois de lavar a louça, juntou-se a sra. Lena na sala e esperou que o programa
de perguntas e respostas terminasse.
— Posso lhe oferecer um chá gelado enquanto conversamos?
— Não é preciso, sra. Lena.
Abriu o livro que lhe emprestara e mostrou-lhe a última capa.
— Conhecia a dona deste livro? Ela ajustou os óculos e sorriu ao ler o nome.
— Michelle Lewis. Claro que me lembro! Era uma criança adorável — Olhou por
sobre o livro e franziu a testa — Vocês se parecem muito, embora os cabelos dela não
fossem ruivos.
— Os meus também não são. Eu os tingi.
A sra. Lena fechou o livro e se aproximou de Suzanne com um sorriso malicioso.

215
Depois da Chuva Karen White

— Então, você veio aqui hoje para me contar sobre seu passado escandaloso?
Ainda não se encerraram as apostas!
— Não — Respondeu, sem conter o riso — Queria conversar sobre minha mãe.
A idosa senhora meneou a cabeça e encarou a afirmação com uma naturalidade
surpreendente.
— Eu queria ter adotado sua mãe, mas não era casada e, naquela época, não
permitiam que uma mulher solteira adotasse filhos. Então, eles a levaram embora —
Os olhos azuis assumiram uma expressão vaga, evocando uma lembrança distante —
Queria muito ter uma filha. Michelle e eu combinávamos muito bem. Costumávamos nos
sentar na varanda ao entardecer para ler romances. Discutíamos os livros depois de
lê-los e acho que isso a ajudou muito. Ela falava dos problemas e conflitos dos
personagens sem perceber que estava falando de si própria.
— Que tipo de problemas ela tinha? — Suzanne quis saber, interessada.
— Já lhe perguntei se quer chá gelado, querida? Posso prepará-lo em um
instante. Tenho mesmo de ir para a cozinha preparar o jantar, e não será trabalho
algum.
— Não, obrigada.
Ao ver os olhos tornarem-se opacos, soube que mergulhara em um de seus
momentos de confusão. Esperou pacientemente que ela voltasse ao assunto.
— Ela tinha um grande coração, mas não sabia como dar o amor que guardava.
Nunca ninguém a ensinara.
— Foi por isso que ela nunca conseguiu me amar... — Sentiu um gosto amargo na
boca e se esforçou para não chorar.
Um sorriso doce iluminou o rosto da sra. Lena, fazendo-a parecer muitos anos
mais jovem.
— Não, querida, não é verdade. Eu vi como você cuida dos filhos de Joe. Deve
ter aprendido em algum lugar, não acha?
Suzanne arregalou os olhos, espantada. Abriu a boca para protestar, mas não
encontrou palavras. Lembrou-se de quando acolhera Maddie na noite em que ela
surgira alcoolizada em sua varanda e do sentimento de ternura que a preencheu en-
quanto observava Harry adormecido no berço... Da necessidade de eliminar a dor de
Sarah Francês quando tivera catapora, da brincadeira de rainha e princesa com
Amanda, da reconfortante sensação de ser útil ao consertar o aviãozinho de Joey das
unhas de Knoxie, pintadas pela primeira vez com esmalte cor-de-rosa...

216
Depois da Chuva Karen White

Em algum lugar, no fundo de sua alma, sabia que somente fora capaz de sentir
tais emoções porque havia o toque da mão invisível de sua mãe.
Tomando as mãos enrugadas entre as suas, sorriu.
— Foi você quem a ensinou, não foi?
— Eu tentei querida. Eu tentei... Mas aquela criança tinha problemas profundos.
Porém, não significa que não tenha amado a filha — Tocou no pingente ao redor do
pescoço de Suzanne — Michelle guardou a gargantilha com o pingente durante a vida
toda e deu-o para você. Era o único bem que tinha para dar, percebe?
Suzanne permaneceu em silêncio, ouvindo a respiração suave da sábia senhora
preencher a sala, e seu coração bateu mais alto no peito. Sim, ela percebia. Pela
primeira vez em sua vida, não via o abandono da mãe como um ato de pura irrespon-
sabilidade.
Apertou o pequeno coração nos dedos. Sua mãe a amara o bastante para deixá-
la livre dos fantasmas que ela própria tentara fugir pela vida toda. A gargantilha era
apenas parte daquele legado.
— Que horas são? — A sra. Lena indagou de súbito — Não posso perder o
episódio de hoje da Roda da Fortuna. Você conhece o novo concorrente, Pat Sajak?
O coração de Suzanne se apertou ao ver a confusão expressa nos belos olhos
azuis.
— Sra. Lena, o programa já...
Batidas suaves na porta a interromperam. Suzanne abriu-a e encontrou Sweet
pea Crandall do outro lado.
— Como ela está? — Sussurrou, espiando para dentro — Passei aqui para colocá-
la na cama. Não sabia que ela estava esperando visitas.
— Estou de passagem. Ela parece bem, mas acho que está cansada. Por favor,
entre.
Beijou-a no rosto e sorriu ao ouvir chamá-la de Michelle. Despediu-se da sra.
Crandall e saiu, sentindo-se subitamente exausta.
Sentou-se nos degraus da varanda e acariciou o pingente de ouro. Uma vida sem
chuva é como um sol sem sombra. Finalmente entendera o que sua mãe tentara lhe
dizer todos aqueles anos.
— Sinto muito, mamãe, por não ter percebido antes...
Olhou para as estrelas na escuridão do céu de final de outono. Assim como a
Terra, que girava ao redor de seu próprio eixo por vinte e quatro horas de luzes e
217
Depois da Chuva Karen White

sombras para voltar ao ponto inicial, ela também acabara voltando onde tudo se
iniciara.
Mesmo depois da jornada que fizera para fugir, acabara sendo levada para o
ponto de partida.
Imaginou que sua mãe também já se sentara naqueles mesmos degraus e olhara
para as estrelas do céu de Walton como ela... Tal pensamento a confortou como se
encontrasse um velho amigo depois de uma longa separação:
— Obrigada, mamãe — Murmurou, e as palavras foram carregadas para as
estrelas.

Capítulo XXI

218
Depois da Chuva Karen White

Aporta da butique se abriu de súbito e Cassie entrou, empurrando um carrinho


de bebê. Suzanne estava concentrada em arrumar algumas peças na prateleira e virou
o corpo, surpresa ao vê-la.
— Olá, Cassie! Eu estava planejando...
— Eu sei. Mas não quis esperar até que tomasse coragem. Queria que
conhecesse o bebê antes da formatura dele na universidade.
— Ora, não exagere! — Riu e caminhou na direção dela. — É que eu...
— Não precisa se justificar. Estou aqui agora — Colocou a bolsa sobre o balcão
e se debruçou sobre o carrinho — Poderia me ajudar? Gostaria de ter dois braços a
mais!
Suzanne parou diante do carrinho, sem saber o que fazer.
— Por favor, segure o bebê para mim.
Suzanne hesitou por um momento antes de estender os braços para pegá-lo.
Quando o aninhou no colo, surpreendeu-se com a agradável sensação de calor da
pequena criatura em seus braços.
— Oh, ela é tão pequena!
— E já ganhou dois quilos desde a última vez que você viu.
— Não posso negar que está bem maior!
Ambas riram, e Cassie olhou para ela em expectativa.
— E então? — Perguntou para Suzanne como se houvesse acabado de revelar sua
obra-prima — O que acha?
A emoção que invadiu Suzanne por segurar aquele bebê nos braços bloqueou-lhe
a razão. Não encontrou palavras que definissem a sensação de ver a pequena criatura
adormecida em seus braços.
Quando a pequenina abriu os olhos incrivelmente azuis, não conteve um sorriso.
Contemplou com ternura a pele alva rosada, o narizinho arrebitado e a boquinha, que
mais parecia um pequeno botão de rosa.
— Ela é a mais pura perfeição! — Murmurou, inalando fundamente o perfume
único e inconfundível que somente bebês possuem.
— Também acho, mas sou uma mamãe-coruja — Cass sorriu com orgulho — É
bom ouvir isso de você.
219
Depois da Chuva Karen White

— Confesso que nunca vi um bebê tão lindo!


— Obrigada. Nós a chamamos de Susie. Espero que você não se importe.
— Importar-me? — Suzanne indagou espantada — Claro que não! Na verdade,
fico muito lisonjeada.
— Ótimo — Cassie tomou-a pelo braço, puxando-a para perto do balcão —
Precisamos conversar.
— Eu não acho que...
— Não tente fugir, Suzanne — Encarou-a com firmeza. Lembro-me do que você
disse no carro, antes que minha bolsa se rompesse. Você disse que amava Joe.
Suzanne embalou gentilmente o bebê, evitando encará-la.
— Sim, eu disse, mas não quero mais tocar nesse assunto.
— Será inevitável, porque Joe é como um irmão para mim. Eu o conheço como
ninguém e tenho uma forte suspeita de que sente o mesmo por você.
— Então, por que não deixamos como está? Esse é um assunto entre nós dois.
Cassie retirou a jaqueta e sentou-se em uma cadeira por trás do balcão,
indicando que a imitasse.
— Não, não é. Sinto muito — E forçou um sorriso. — Sabe, antes do nascimento
de Susie, eu estava preparada para deixá-la partir. Mas as coisas são diferentes
agora.
— O que quer dizer?
— Não que eu goste mais de você agora. Confesso que tive ciúme das crianças,
mas nunca deixei de admirá-la. E não foi por ter feito o parto de Susie... — Olhou para
a filha como se tentasse se recompor — Quando vi que você ama Joe a ponto de se
dispor a ir embora para não colocá-lo em risco, percebi o tipo de pessoa que é. Você
me deu uma lição de generosidade.
As palavras tocaram-na profundamente, e Suzanne lutou bravamente contra as
lágrimas. Respirou fundo e tentou se refazer.
— Cassie, você não me conhece.
— Sim, conheço. Posso ver a bondade em seus olhos — Encarou-a com ar
preocupado — O que vai fazer agora? É só uma questão de tempo antes que Anthony a
encontre.
— Ainda não decidi o que fazer.

220
Depois da Chuva Karen White

Susie se agitou, e ela mudou-a de posição, acariciando-lhe as costas


suavemente.
— Mas não posso falar com Joe. Não quero que ele saiba de tudo.
— Por que não? Qual é o problema em saber que você se envolveu com o homem
errado? Não é crime algum!
— Não é só isso...
Cassie estreitou os olhos, intrigada.
— Por que não me conta tudo? Você tem de se abrir com alguém. Não é saudável
e nem sensato guardar mágoas e ressentimentos.
— Você não entenderia — Focalizou o bebê em seus braços — Você, Joe e todos
os moradores de Walton são pessoas boas e honestas. Eu não sou. Fiz coisas das quais
me envergonho. Coisas que, se você soubesse, desejaria não ter me conhecido. Prefiro
partir antes que todos descubram que tipo de pessoa eu realmente sou.
— Sei quem você realmente é, assim como Joe.
— Não diria isso se soubesse da verdade.
O bebê começou a chorar, e Cassie tomou-o nos braços.
— Que verdade, Suzanne? O que você receia que todos nós saibamos?
Apertou as mãos, incapaz de encarar aquela mulher cuja opinião tornara-se tão
importante para ela.
— Que tenho a moral de uma prostituta... Praticamente me vendi pela melhor
oferta. Vi um homem com dinheiro que se ofereceu para tomar conta de mim e me
atirei nos braços dele. E depois, quando começou a ser violento comigo, quis ir embora
e ele me deu um presente valioso. O que fiz? — Olhou para os próprios pés,
mortificada — Aceitei e dormi com ele mais uma vez, até ser espancada novamente,
dois dias depois — Olhou para Cassie sem se importar que visse seus olhos marejados
de lágrimas — Pronto. Agora você sabe que tipo de pessoa realmente sou.
Esperava encontrar repulsa, desdém, comiseração, e preparou-se para receber
o tiro de misericórdia. Porém, para seu grande espanto, tudo que viu foi compreensão.
— Minha opinião não mudou. Vejo uma mulher solitária e carente que precisava
de alguém para amar. Você fez o melhor que pôde, querida. Ninguém pode culpá-la.
— Mas eu me culpo. E não foi tudo. Cometi muitos erros desde que cheguei aqui.
Interrompeu-se antes que mencionasse o que fizera com o negativo da
fotografia de Maddie.

221
Depois da Chuva Karen White

Susie voltou a chorar, e Cassie a embalou, beijando o rostinho rosado.


— Acredite, eu entendo o que sente. Eu também cometi erros, como todos os
mortais da face da Terra. Mas acho que está sendo severa demais consigo mesma.
Suzanne cobriu o rosto com as mãos, sem conseguir conter o pranto convulsivo
que parecia vir, do fundo de sua alma.
— Querida, você não está mais sozinha. Se Anthony aparecer em Walton, por
acaso acha que a abandonaremos? Primeiro, as mulheres do Clube de Bridge vão
expulsá-lo atirando tortas de limão e biscoitos de nata até que não possa mais correr,
e Joe e as crianças farão uma algazarra tão grande que ele vai se arrepender de ter
pisado aqui algum dia.
— Mas ele ainda pode me mandar para a cadeia — Murmurou, sorrindo entre as
lágrimas ao imaginar a cena que Cassie criara. — Joe está concorrendo à reeleição. Em
um piscar de olhos, posso fazer com que todos fiquem contra mim e, con-
seqüentemente, deixem de votar nele, já que está envolvido com uma criminosa!
— Meu bem, você não é e nunca será uma criminosa!
— Cassie, já briguei muito comigo mesma e não acho que...
— E exatamente esse o problema! Você não se perdoa, mas isso não pode
determinar o que os outros pensam a seu respeito. Chego a pensar que achava justo
quando Anthony a espancava, como se merecesse a punição por se considerar uma
criminosa.
Suzanne arregalou os olhos, alarmada com o sentido do que acabara de ouvir.
Nunca pensara no relacionamento que vivera com o ex-noivo daquela forma e,
subitamente, tudo se tornou claro como o dia. Embora abalada com a constatação do
significado doentio de seu comportamento, sentiu um repentino alívio, como se tirasse
o peso de séculos dos ombros.
— Esteja certa de que Joe ficará do seu lado, assim como todos nós — Cassie se
levantou com dificuldade — Por favor, ajude-me a colocar Susie no carrinho. Sam está
a nossa espera na clínica.
Suzanne segurou a pequenina enquanto Cassie alisava a manta cor-de-rosa para
colocar a filha. Então, voltou-se para ela.
— Ouça, não vou lhe dizer o que fazer, mas acho que não pode se esconder do
seu passado para sempre. Vai chegar o dia em que será atropelada por ele e então
ficará sem saída. Acredite, falo por experiência própria — Cobriu a filha e vestiu a
jaqueta — Por causa do meu orgulho, mudei-me para Nova York e fiquei lá por quinze
anos. Quando voltei, minha irmã estava no fim de seus dias.

222
Depois da Chuva Karen White

— Oh, Cassie, eu sinto muito — Suzanne tocou-a no braço em um gesto


involuntário.
— Já consegui superar — Sorriu e apertou a mão de Suzanne — Percebi que as
pessoas estão muito mais dispostas a nos perdoar do que nós próprios, e acho que você
deveria refletir sobre isso. Duvido que realmente queira ir embora daqui.
Suzanne abaixou o rosto, insegura sobre o que dizer. Não havia uma resposta
fácil para todas as descobertas que aquela admirável mulher a fizera desvendar.
De súbito, lembrou-se da corrente de ouro que levara para consertar.
— Antes de você ir, quero lhe devolver sua gargantilha. Correu para os fundos
da loja e voltou minutos depois carregando ura pequeno embrulho.
Cassie abriu a caixa e sorriu satisfeita.
— Ficou perfeita! Seria bom que tudo fosse fácil assim, não acha? — Colocou a
gargantilha no pescoço no mesmo instante — Você deveria conversar com Joe. Isso
poderá ajudá-la.
— Não posso.
— Já considerou como ele ficaria se você partisse? Não o conhece bem se julga
que deixará de amá-la quando souber da verdade.
— Joe nunca disse que me ama.
— Não é preciso dizer.
Cassie empurrou o carrinho para perto da porta, e Suzanne a chamou.
— Vai contar sobre nossa conversa?
— Não. Você deve fazer isso.
— E se não fizer?
— Ele vai descobrir mais cedo ou mais tarde, mas não por mim.
— Anthony nunca vai me encontrar aqui. Talvez eu possa ficar indefinidamente,
e ninguém descobrirá a verdade.
— Nunca diga nunca...
O bebê começou a chorar, e Cassie se apressou em sair.
— Outra coisa... — deteve-se com a mão na maçaneta — Não acredito quando
dizem que você não gosta de crianças. Você nasceu para ser mãe.
Suzanne estava para responder quando Sugar Newcomb entrou na loja.

223
Depois da Chuva Karen White

— Oh, meu Deus! Ela está mais linda a cada dia que passa — Exclamou,
debruçando-se sobre o carrinho.
Cassie sorriu orgulhosa e acenou para Suzanne antes de seguir pela calçada.
— Olá, srta. Paris. Vim comprar um presente de Natal para meu marido.
— Não vendemos roupa íntima masculina, sra. Newcomb — Eu sei, meu bem —
Apanhou um delicado conjunto de renda vermelha que estava sobre o balcão — Ele vai
adorar me ver em um conjunto como este.
Suzanne sorriu e procurou atendê-la com a atenção habitual, embora seu
pensamento estivesse muito distante.
Sentia-se perdida. Pela primeira vez em sua vida, desejava permanecer em
Walton e criar raízes. Porém, não era tola a ponto de acreditar que poderia ficar para
sempre. Anthony de Salvo era parte de seu passado e, por mais que fugisse, algum dia
ele viria a seu encontro.
Maddie não conseguia prestar atenção na aula de história. Estava tão aflita que
não parava de bater os pés no chão enquanto o sr. Dorgan explicava como fora a
aquisição do Texas pelo povo norte-americano. Mantinha o olhar fixo no relógio sobre
o quadro-negro, inconformada com a lentidão do ponteiro.
Àquela hora, o carteiro já deveria ter entregado a correspondência que
esperava com ansiedade. O envelope com o nome do vencedor do concurso deveria
estar lá, à sua espera, na caixa de correio. A correspondência mais importante de sua
vida estava ao seu alcance, e não podia apanhá-la!
Olhou mais uma vez para o relógio e suspirou, desolada ao ver que se passara
apenas um minuto desde a última vez que olhara.
Sentiu alguma coisa bater em sua nuca e apanhou a bola de papel amassado.
Olhou para trás e viu um sorriso no rosto de sua melhor amiga, Clarissa White. Os
professores haviam determinado que se sentassem em extremos opostos da sala, can-
sados da necessidade ininterrupta de se comunicarem durante a aula.
Relanceou o olhar para ter certeza de que o sr. Dorgan não a observava para ler
o bilhete: O que há com você? Está mais nervosa do que no dia que Rob beijou-a pela
primeira vez!
Olhou para trás e piscou para a amiga. Sem se conter, ergueu a mão e fez com
que sua voz soasse o mais dramática possível.
— Sr. Dorgan, não estou me sentindo bem. Posso ir até a enfermaria?
O professor ergueu as sobrancelhas e olhou através das grossas lentes dos
óculos com ar suspeito.
224
Depois da Chuva Karen White

— O que está sentindo?


— Problemas femininos... — Resumiu, corando por mentir.
— Certo, pode ir.
Sem hesitar, apanhou os livros e saiu. Esperou que ele voltasse a atenção para a
sala de aula e seguiu quase correndo para a saída, agachando-se ao passar pela porta
da sala onde seu pai dava aula.
Correu durante todo o caminho para casa e jogou os livros no gramado ao lado
da caixa de correio. Com a respiração ofegante, abriu-a e vasculhou seu interior.
Havia revistas, cartas endereçadas ao pai e um envelope grande com o logotipo
da revista Lifetime no topo.
Com mãos trêmulas, apanhou-o e caminhou para a varanda, sentando-se em um
dos degraus.
Contemplou-o por um longo momento antes de abri-lo, sentindo-se estúpida por
pensar que ali estava seu futuro. Retirou uma folha de seu interior e se pôs a ler, as
palavras embaralhando-se diante de seus olhos.
Ao terminar, sentiu como se um balde de água fria caísse sobre sua cabeça,
tirando o ar de seus pulmões. Olhou novamente para as palavras que pareciam saltar
da página, as letras negras flutuando diante de seus olhos.
Segundo lugar!
Levou alguns segundos para entender o que significava. Claro, era uma ótima
colocação, mas não fora a primeira.....
Então, retirou a revista enviada junto com a carta e sentiu o chão sumir sob os
pés ao ver a fotografia vencedora na capa.
Sentindo-se doente, jogou-a para longe. Tentou chorar, mas suas emoções
oscilavam tanto que não pôde. Raiva, mágoa e decepção confundiam-se em seu peito,
deixando-a confusa, incrédula, olhou novamente para a fotografia da capa.
Era a primeira vez que a via e, mesmo com toda confusão dos sentimentos que
se embaralhavam em seu coração, percebeu que seria impossível que não fosse a
vencedora. Seu estômago se contraiu ao ver o rosto de Suzanne se sobrepondo ao
perfil parcialmente escondido de seu pai. Aquela era a última pose do filme que
Suzanne dissera que não ficara boa e jogara fora!
Então, por que estava ali, com o nome de Charles Harden impresso abaixo da
classificação do primeiro lugar? Fora ela quem havia tirado aquela fotografia! Como
ele vencera o concurso com aquela pose?

225
Depois da Chuva Karen White

Então, lembrou-se de ter mostrado a fotografia de Cassie e Sarah Francês para


Suzanne e ela lhe dissera que estava perfeita e poderia vencer o concurso. Um
segundo lugar, lembrou a si mesma.
Guardou a carta e a revista no envelope, desejando que ninguém soubesse de sua
mágoa e humilhação. Entrou na casa vazia e correu para seu quarto. Depois de
esconder o envelope sob a cama, mergulhou o rosto no travesseiro.
Levou um longo tempo para que as lágrimas finalmente brotassem em seus olhos
e entregou-se a um pranto convulsivo.
Então, o vazio que lhe ocupava a alma foi preenchido pela raiva, renovando suas
energias. Sentou-se diante do toucador e olhou para a imagem refletida no espelho. Ao
sentir que a raiva suplantara todos os outros sentimentos, decidiu que estava pronta.
Escreveu um bilhete para o pai dizendo que passaria a noite com Clarissa e saiu de
casa.
Em primeiro lugar, queria se vingar de Charles. Aquela seria a parte mais fácil.
Deixaria Suzanne por último, especialmente porque não tinha certeza do que fazer. O
que quer que fizesse seria pouco em comparação à mágoa que ela lhe causara.
Suzanne trabalhava na última página do álbum de Maddie na mesa da cozinha,
sob a luz forte do abajur. Estava pronto! Sorriu com satisfação ao pensar que faltava
apenas acrescentar as fotografias da formatura. Tudo que acontecesse dali para
frente seria colocado nas páginas vazias, mas seu trabalho estava completo.
Com um misto de tristeza e esperança, fechou-o e acariciou a capa com carinho.
Harriet ficaria orgulhosa do trabalho que fizera e da história que a filha continuara.
Porém, o término do trabalho a obrigava a tomar uma decisão. Cassie estava
certa: Anthony a encontraria mais cedo ou mais tarde. Seria melhor que, quando a
encontrasse, estivesse longe de Walton. Não suportaria ver o olhar de decepção no
rosto das pessoas que aprendera a amar. Ficaria mais tranqüila se tivesse certeza de
que ninguém jamais saberia de seu envolvimento com aquele homem.
Porém, o vazio que invadiu seu coração ao pensar em Joe foi maior do que
qualquer dor que pudesse imaginar. Ele cultivara o sentimento mais precioso e delicado
que poderia ocupar o coração de uma mulher.
Tomando uma decisão súbita, ergueu-se e saiu, sem nem mesmo vestir uma
jaqueta. Desceu a escada da varanda de dois em dois degraus e correu para o portão.
Seu coração perdeu um compasso ao ver o vulto parado do outro lado, e o teria
derrubado se ele não a segurasse pelo braço.
— Joe! — exclamou quase sem fôlego.

226
Depois da Chuva Karen White

— Não consegui dormir...


A voz suave a acariciou como a mais doce melodia.
— Eu também não... — Balbuciou, espantada pela coincidência. — Acredite ou
não, eu estava indo à sua casa.
As mãos fortes deslizaram por suas costas, e ela se aconchegou ao peito viril,
com a impressão de que as estrelas brilhavam com maior intensidade no céu.
— Cheguei à conclusão de que não quero passar outra noite sem você.
Ela enlaçou-o pelo pescoço e apoiou a cabeça no ombro largo.
— Engraçado... Estava pensando exatamente o mesmo...
Então ele a beijou, a língua ávida penetrando na doce umidade da boca macia.
— Não posso mais fingir. Sei que acha completamente fora de propósito, mas a
quero comigo, e não apenas na minha cama.
Suzanne prendeu a respiração, saboreando cada palavra.
—Estava deitado na minha cama, pensando em como mudei desde que você
chegou a Walton. — Olhou para ela e sorriu. — Lembra-se de quando conversávamos,
na noite em que a levei para pescar quando Sarah Francês estava com catapora?
Falávamos sobre coisas que mais desejávamos na vida...
— E você tinha uma lista enorme! — Ela comentou com um sorriso.
— Mas percebi que há muito mais que gostaria de acrescentar — Tocou-a no
queixo com gentileza — Quero estar com você na mesa de jantar, na igreja, no
supermercado, na arquibancada do campo de futebol... Talvez esteja pedindo muito,
mas gostaria de saber se você poderia ao menos tentar...
Suzanne o encarou e o brilho inequívoco dos olhos aveludados tirou o ar de seus
pulmões. Viu, no rosto iluminado pelo luar, toda a esperança e expectativa que sentia
em seu próprio coração.
Então, lágrimas amargas molharam seu rosto e soube que nem toda uma vida
poderia apagar aquele momento. Tudo o que mais desejava era viver o sonho de um
conto-de-fadas ao lado de Joe! No entanto, não poderia permitir que seu passado
sombrio prejudicasse a maior aspiração dele. Jamais se perdoaria se a carreira
política do homem mais digno que já conhecera fosse afetada por seu envolvimento
com uma suposta criminosa.
Suzanne sentiu um vazio profundo diante da impotência em que se encontrava.
Um mundo se abria à sua frente e deveria recusá-lo para voltar à solitária reclusão de

227
Depois da Chuva Karen White

sua vida. Porém, daquela vez, seria ainda mais intolerável, depois de ter provado as
delícias daquele Paraíso...
Abraçou-o mais apertado e sussurrou no ouvido de Joe:
— Eu o amo, Joe Warner.
Ele beijou-lhe as pálpebras fechadas, sorvendo suas lágrimas, e quando as bocas
se encontraram novamente, sentiu o gosto salgado dos lábios macios.
— Por favor, vamos entrar...
Permaneceram de mãos dadas, olhando nos olhos um do outro por um longo
momento.
Suzanne sabia que precisaria de tempo para pensar nas palavras que acabara de
dizer e nas respostas que ainda não dera. Lembrou-se de Cassie dizendo que deveria
abrir o coração com Joe...
Porém, ao vislumbrar o brilho do desejo nos olhos dele, todas as dúvidas e
indecisões se desvaneceram. Não queria planejar nada que fosse além das horas
seguintes, consciente de que seria apenas uma noite nos braços de Joe e uma vida
toda sem ele.
Estendeu-lhe a mão e conduziu-o para o quarto, deixando todas as confidências
não ditas do lado de fora, adormecidas na noite fria.

228
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XXII

Suzanne sorriu ao ver Joe trancar a porta do quarto.


— Não é preciso trancá-la. Não há mais ninguém aqui.
— É força do hábito...
Sentou-se na cama ao lado dela e abraçou-a, enfiando as mãos sob sua camiseta.
Porém, em lugar do contato macio da pele acetinada, seus dedos encontraram a seda
fria.
— O que é isso?
Suzanne sentiu o rosto queimar quando ele tocou na fina alça da peça íntima que
usava.
— Uma combinação.
— De que cor? — Sussurrou, a voz rouca acariciando-lhe o ouvido.
— Vermelha.
— Oh, Deus...
Á respiração pesada revelava o efeito devastador que aquele simples acessório
provocara.

229
Depois da Chuva Karen White

Fez com que ela ficasse de pé e, com movimentos ágeis, despiu-lhe a camiseta.
Recuou um passo para contemplá-la vestindo a sensual peça de seda e renda moldando
as curvas sensuais do corpo perfeito.
— Não apague a luz... — Suplicou, conduzindo-a para a cama.
Os lábios se encontraram enquanto mãos sôfregas se confundiam na ânsia dos
corpos sedentos de paixão. Suzanne fechou os olhos quando os lábios quentes
percorreram o vale dos seios sobre a fina seda da combinação.
Joe sabia precisamente como tocá-la, fazendo com que o desejo a envolvesse
em ondas cada vez mais intensas. Os olhares se cruzaram e, ao ver o reflexo de seu
próprio desejo nos olhos dele, ficou ainda mais excitada.
Nunca experimentara o verdadeiro sentido de fazer amor... Até conhecer Joe,
aquele ato não passava de uma passiva submissão. Nunca experimentara o prazer que a
união de corpos poderia proporcionar até que aquele homem fizesse desabrochar toda
a sua feminilidade.
As roupas espalhadas pelo chão foram as únicas testemunhas silenciosas da
entrega recíproca que os fundia em um só corpo, embalando-os em uma dança sensual,
quase selvagem
Quando Joe girou o corpo para se deitar de costas, com a respiração ofegante,
ela tocou com a ponta dos dedos as gotículas de suor que lhe banhavam a fronte.
Contemplou o rosto másculo, sentindo que parte dela própria morria ali, naquela
noite. Todas as descobertas, a vida nova que planejava, nada daquilo poderia ser
compartilhado com ele.
— Você estava linda com sua nova roupa de baixo...
Ela sorriu e não disse nada para não quebrar a magia daquelas palavras.
Aconchegou-se de encontro a ele, sentindo a seda macia se colar à pele. Procurou
pelas mãos fortes e colocou-as sobre os seios, pressionando-as com força sobre o co-
ração. Precisava senti-lo, pois sabia que a dor da ausência inevitável a acompanharia
pelo resto da vida.
Joe puxou-a para que se deitasse sobre ele. A corrente de ouro pendeu do
pescoço delgado, fazendo com que o pingente repousasse sobre o peito largo.
—Ganhei essa gargantilha de minha mãe — Respondeu sem pensar.
Os olhares se encontraram e ela enfrentou-o, decidida a revelar seu maior
segredo.
— Eu nunca acreditei que ela me amava, até encontrar a sra. Lena. Ela me contou
que, há muitos anos, tentou adotar minha mãe. Foi ela quem lhe deu a gargantilha e o
230
Depois da Chuva Karen White

pingente... — Com a voz embargada pela emoção, tocou o rosto de Joe com a ponta dos
dedos — A sra. Lena me mostrou que minha mãe me amou à maneira dela. Disse que
minha mãe nunca soubera o verdadeiro sentido de ter um lar e fez o máximo que pôde
para que eu tivesse um destino diferente do dela.
Joe a fitou, os olhos ternos traduzindo a gratidão por revelar um de seus
segredos.
— E meu sobrenome é Lewis — Confessou, sentindo um peso enorme aliviar seus
ombros.
— Por que escolheu Paris? — Joe perguntou com naturalidade.
— Porque sempre quis conhecer Paris.
Ele refletiu por alguns segundos, olhando para o teto, e então se voltou para ela.
— O que mais ainda não me contou?
Suzanne suspirou, disposta a revelar tudo que fosse possível.
— Envolvi-me com um homem apenas por interesse... Deixei-me seduzir pela
promessa de segurança e proteção e me submeti aos caprichos dele... — Respirou
fundo tomando coragem para prosseguir.
O olhar acolhedor de Joe a estimulou a se abrir.
— Eu o conheci em um de seus restaurantes... Costumava frequentá-lo, atraída
pelo cheiro de alho frito que me fazia lembrar da melhor fase de minha infância —
Fechou os olhos, atormentada pela dor que as lembranças lhe causavam — Acho que
acabei confundindo tudo e me senti atraída por uma fantasia, mais do que pela
realidade. Nunca amei meu ex-noivo.
Então, sem mencionar nomes, contou-lhe todos os detalhes do relacionamento
com Anthony, interrompendo-se no ponto em que decidira abandoná-lo.
— Foi assim que vim parar em Walton... — Concluiu, sem se referir à coleção de
fotografias — Graças a pessoas como vocês, percebi que é possível que alguém possa
me amar simplesmente pelo que sou, sem precisar dar algo em troca.
Joe beijou-a com ternura e estreitou-a em um abraço envolvente, sentindo o
amor transbordar em seu coração.
— Obrigado por confiar em mim — Balbuciou, embalando-a — Não importa o que
as circunstâncias da vida obrigaram-na a fazer no passado. Você é uma mulher rara e
especial Suzanne Lewis.

231
Depois da Chuva Karen White

A campainha do telefone ecoou pelas paredes do quarto silencioso, e Suzanne


atendeu na terceira chamada. Sentiu o contato do corpo nu em suas costas e sorriu
enquanto levava o aparelho ao ouvido.
— Suzanne? — a voz de Lucinda soou aflita. — Preciso falar com Joe. É urgente.
Não parou para pensar como Lucinda sabia que ele estava lá e estendeu-lhe o
receptor.
Podia ouvir a voz do outro lado da linha, embora não conseguisse entender o que
dizia. Porém, a expressão séria de Joe a preocupou.
— Você sabe onde ela está? — Um silêncio tenso se seguiu, e ele se levantou de
um salto — Certo. Estarei lá em quinze minutos.
— O que houve? — indagou assim que desligou.
— Alguém roubou o carro de Charles Harden — Enfiou o pé no sapato enquanto
vestia a camisa — A boa nova é que já o encontraram, e a má notícia é que foi
encontrado completamente destruído na parede dos fundos do Café Dixie Diner.
— E por que telefonaram para você? Não seria mais sensato chamarem a
polícia?
Joe a fitou por um momento sem dizer nada. Foi o que bastou para que Suzanne
entendesse.
— Oh, meu Deus! Maddie! — Deu um pulo da cama e acendeu a luz, vestindo-se o
mais rápido que pôde — Vou com você.
Mal teve tempo de vestir o suétêr quando Joe puxou-a pela mão e arrastou-a
para fora do quarto. Ao chegarem à calçada, Suzanne mal conseguiu acompanhar os
passos largos e teve de correr para alcançá-lo.
— Ela não deve ter feito isso, Joe. Não posso imaginá-la roubando um carro!
— Maddie teve ajuda e sei de quem foi — Respondeu sem olhar para trás.
— Rob? Oh, não creio. Ele não faria uma coisa dessas.
— Não, a menos que tivesse boas razões. Maddie deve tê-lo convencido.
— Mas por quê? Eu a vi ontem e ela estava tão... Oh, não! — Ela se deteve e
segurou-o pelo braço — Ela já soube o resultado do concurso de fotografia?
— Não sei. Quando cheguei em casa, ontem à tarde, não havia nenhuma carta
para ela na correspondência.
— Ela não disse nada?

232
Depois da Chuva Karen White

— Não a vi. Ela deixou um bilhete dizendo que estava na casa de Clarissa e que
Lucinda ficaria com as crianças — Então, Joe parou de súbito e levou a mão à cabeça
—Oh, não!
Segurou a mão de Suzanne e começou a correr o mais rápido que pôde. Um
sentimento sombrio o invadiu. Maddie estava preparada para não ganhar. Claro, queria
o primeiro lugar, mas havia comentado com naturalidade que havia muitos concor-
rentes de alto nível na competição. Alguma coisa estava errada.
— Onde ela está agora?
— O xerife Adams levou-a para casa. Ao menos, não se machucou. — Apertou os
dentes e deu um soco no ar — Nem sei o que sou capaz de fazer quando a vir!
— Joe, respire fundo e tente se acalmar. Seja lá o que tenha acontecido, tenho
certeza de que Maddie não fez por mal. Antes de ficar bravo com ela, tente descobrir
o que houve. Ajudará se você conseguir controlar a raiva.
— Mas isso poderá me custar a eleição!
— Você realmente acredita que a atitude impensada de uma adolescente
influenciará tanto assim seus eleitores, que o conhecem desde criança? — Ponderou,
tentando acalmá-lo. — Além disso, todos já foram adolescentes...
— Espero que tenha razão.
E segurou-a pela mão, correndo pelo restante do caminho. Em menos de cinco
minutos chegaram ao quarteirão onde se localizava a casa de Joe.
— Maddie é jovem e vulnerável, não se esqueça disso. Por favor, seja gentil com
ela. A relação de vocês vale mais do que uma eleição — Segurando-o pela mão, pousou
um beijo gentil nos lábios tensos.
— Vou tentar me lembrar. Venha, preciso de você comigo.
A sensação de desconforto se intensificou em Suzanne ao ver o carro do xerife,
a caminhonete de Sam e o conversível de Lucinda estacionados à frente da casa.
Todas as luzes estavam acesas. Por um breve momento, passou por sua cabeça a
familiar necessidade de fugir para a calma solidão de seu quarto. Porém o breve flash
se apagou ao pensar na importância de sua presença ao lado de Maddie.
Joe abriu a porta da frente, e correram para a cozinha. O xerife Adams os
saudou com uma inclinação de cabeça e Sam, Lucinda e Cassie ergueram os olhos para
ele, sem dizer nada. Maddie estava sentada à mesa, com Rob e Clarissa em pé às
costas dela. Todos se voltaram quando eles se aproximaram da mesa.
— Oh, papai... Parece que nós dois nos demos mal mais uma vez...

233
Depois da Chuva Karen White

— O que você quer dizer? Não fui eu quem foi trazido para casa pelo xerife.
— Você estava com ela, não é? Dê uma olhada nisso e diga qual de nós dois foi o
mais traído.
Ela colocou o envelope sobre a mesa, retirou a revista e segurou-a no ar, diante
do rosto do pai. Um silêncio sepulcral caiu sobre o ambiente quando todos viram o
retrato de Suzanne e Joe um segundo depois de terem se beijado. O erotismo sutil
ficava ainda mais óbvio pelo efeito da luz etérea que emprestava um contorno
prateado aos traços do rosto enlevado de Suzanne.
Ela começou a tremer, sentindo que seu mundo acabara de sair do eixo.
— Você ficou em segundo lugar — Joe comentou ao pegar a revista — Isso é
maravilhoso, Maddie! Não há razão para cometer tamanho ato de vandalismo com um
carro alheio.
Ela se ergueu com tanta violência que a cadeira caiu no chão.
— Veja quem ficou com o primeiro lugar! — Gritou, apontando para o nome de
Charles Harden abaixo da fotografia.
— E daí? Achei que você fosse madura o suficiente para...
— Não, papai! Você não percebe?
Suzanne sentiu um súbito desejo de fugir, morrer, ou fazer qualquer coisa que a
impedisse de continuar. Porém, permaneceu onde estava, esperando. Merecia aquilo.
Quase podia ouvir a voz acusadora de Anthony: Você teve o que mereceu, Suzanne.
Tocou o pingente de ouro, buscando forças, e fechou os olhos. Quando os abriu,
encontrou o olhar de Maddie.
— Essa fotografia é minha! — vociferou. — Estava no rolo de filme que deixei
com Suzanne. Quero saber como Charles a conseguiu?
De súbito, Suzanne percebeu o colossal erro que cometera. Como pudera ter
sido tão ingênua a ponto de jogar o negativo na lata do lixo e deixar Charles Harden
sozinho no laboratório fotográfico?
— Por que fez isso comigo, Suzanne? Eu confiei em você. Até achei que...
Um pranto convulsivo a impediu de continuar, e Cassie a abraçou, acariciando os
longos cabelos. Olhou para Suzanne sobre a cabeça da sobrinha, mas seu olhar não era
acusador. Ao contrário, parecia esperar por uma explicação que esclarecesse tudo.
— Não dei o negativo para Charles — Disse com firmeza, ela própria sentindo-se
traída — Naquela noite, depois que você saiu, vi os negativos do filme que você usara

234
Depois da Chuva Karen White

para registrar a festa de Sarah Francês. Recortei a última pose e joguei-a no lixo. Ele
deve tê-la apanhado depois que saí.
— Por que fez isso? Devia saber que seria uma fotografia para o primeiro lugar!
Suzanne resistiu à urgência de fugir dali. Procurou as melhores palavras para
explicar sem revelar seu maior segredo.
— Eu não podia correr o risco de ter minha fotografia estampada na capa de
uma revista nacional.
— Por quê? O que está escondendo é pior do que o mal que me causou?
— Acredite, não tive intenção de lhe causar mal algum. Fui tão enganada quanto
você.
Inconformada, Maddie a encarou entre soluços, incapaz de ouvi-la.
— Achei que gostasse de mim. Cheguei a desejar que você fosse parte da minha
própria família. Mas agora... Jamais! Prefiro morrer a olhar para você novamente! —
Ao dizer isso, correu para o quarto.
O silêncio foi quebrado pelos passos subindo os degraus até o piso superior. A
seguir, a porta do quarto bateu com estrondo e o silêncio voltou a reinar.
Suzanne respirava com dificuldade, evitando levantar o rosto. Sentiu-se nos
portões do inferno ao perceber que todos os olhares se focalizavam nela.
— Prometo que não vou permitir que essa injustiça fique impune — Armando-se
de coragem, ergueu os olhos para encará-los. — Já fiz alguns trabalhos para a
Lifetime e conheço a seriedade da revista. Estou certa de que revogarão o prêmio ao
saber da fraude. Com isso, além de Maddie passar automaticamente para a primeira
colocação, será duplamente premiada quando se tornar público que a fotografia
vencedora também é da autoria dela.
— Isso será maravilhoso, querida — Lucinda estimulou-a, fitando-a com os
adoráveis olhos azuis.
Ela fez menção de sair, mas alguma coisa a impedia. Não esperava que a
perdoassem, mas ao menos podia tentar fazê-los entender.
— Fiz isso porque amo Maddie, as crianças, Joe... Não queria que isso tivesse
acontecido, mas não pude evitar. Tudo que queria era ganhar tempo, porque... Porque
não queria partir! — Sussurrou em um fio de voz, contendo o pranto — Infelizmente,
não posso mais adiar esse momento.
E saiu sem olhar para trás, correndo o caminho todo até chegar em casa. Fechou
a porta e se recostou no batente, escorregando para o chão. Perdeu a noção do tempo

235
Depois da Chuva Karen White

enquanto estava ali, respirando pesadamente e se forçando a não chorar. Seus dedos
encontraram o coração pendurado na gargantilha e acariciou-o em busca de conforto.
Tentou se lembrar do que a sra. Lena lhe dissera sobre o amor de sua mãe.
Olhou para o teto como se pudesse vê-la.
— Estou feliz que não esteja aqui para ver isso, mamãe. Fiz tudo errado! Talvez
Anthony tenha razão. Eu mereço ser castigada!
Então, o pranto convulsivo sacudiu seu corpo e deitou-se no chão, abraçando as
pernas. Não conseguia esquecer o semblante de Maddie, aquela imagem permaneceria
pelo resto de sua vida. Como fazê-la entender que a pessoa que jogara aquele negativo
não era a mesma daquele momento? A sra. Lena a ajudara a descobrir uma nova força.
Podia quase acreditar que Cassie, Lucinda, Joe e todas as pessoas que conhecera a
ajudariam a encontrar seu lugar no mundo. Mas a expressão no rosto de Maddie era
implacável. Não havia como voltar atrás.
Lentamente, subiu os degraus e abriu o armário. Jogou todas as peças de roupa
dentro da mochila sem se preocupar em dobrá-las.
O vento soprava forte na janela, anunciando a chegada do inverno, o mesmo
inverno que já chegara em seu coração. Ao pensar em Joe e em todas as esperanças
que teria de deixar para trás, Suzanne sentiu-se morrer um pouco. Caminhou para a
cozinha e retirou a fotografia da torre Eiffel e o desenho de Amanda da geladeira,
antes de sair da casa pela última vez.
Trancou a porta da frente e colocou a chave na caixa do correio. Com um
esforço sobre-humano, caminhou com passos firmes pelas ruas ermas. Aquela casa
fora seu primeiro e único lar e ficaria apenas em sua lembrança. Por um momento, de-
sejou tirar uma fotografia. Talvez quando aquela terrível noite houvesse terminado,
poderia contemplá-la e se lembrar que, ao menos uma vez, fora feliz. Porém, desistiu.
A idéia de limitá-la a um registro em duas dimensões a faria aparecer irreal.
Seguiu para casa de Cassie com o álbum nos braços, ouvindo o eco de seus
próprios passos. Ficou surpresa por encontrá-la sentada nos degraus da varanda,
enrolada em um xale de lã.
— O que está fazendo? — Sussurrou, aproximando-se.
— Eu ia lhe perguntar a mesma coisa. São quatro horas da madrugada! Apenas
quem tem filhos recém-nascidos deveria estar acordado a essa hora.
— Pensei em esperar até que o dia amanhecesse para lhe trazer o álbum, mas...
— Abaixou o rosto, agradecendo pelas sombras da noite que escondiam a tristeza de
seus olhos — Eu não saberia como encará-la — Subiu os degraus e est deu-o para ela

236
Depois da Chuva Karen White

— Está pronto. Por favor, entregue-o por mim. Harriet gostaria que fosse um presente
de formatura, mas suponho que isso não importa mais.
— Por que não fica e o entrega você mesma?
Suzanne meneou a cabeça em negativa, sentindo o peito oprimido pela dor.
— Ela não quer me ver e não posso culpá-la. O que fiz foi imperdoável.
Permaneceram em silêncio por um momento, ouvindo apenas o vento na copa das
árvores.
— Não, Suzanne. Talvez o que nós fizemos tenha sido imperdoável. Nós a
aceitamos com muita facilidade, não tivemos nenhuma consideração por quem você era
ou de onde vinha.
— Se soubessem, teriam me rejeitado?
— Não. Se soubéssemos, poderíamos ter percebido sua fragilidade e cuidado
melhor de você.
Grossas lágrimas molharam o rosto de Suzanne.
— Por favor, não tente ser gentil comigo agora, Cassie. Não mereço. Fiz uma
grande confusão e não há como consertá-la — Implorou.
Suzanne se surpreendeu ao vê-la inclinar a cabeça para e rir.
— Oh, meu Deus! Você me faz lembrar de mim mesma três anos atrás. Aposto
que a próxima coisa que vai dizer é que, vai partir para o bem de todos.
Magoada, Suzanne relutou em dizer que era exatamente o que ia fazer.
— Isso mesmo. Não há como ficar depois de tudo. Além disso, minha fotografia
está na capa da revista Lifetime... Anthony vai pegar o primeiro vôo para cá e me
colocar na cadeia. Vou partir ainda hoje.
Com expressão séria, Cassie se pôs de pé.
— Não cometa outro erro, você vai se arrepender pelo resto de sua vida. Sei do
que estou falando. Lembra-se do que comentei quando fui com Susie à butique?
— Sim, eu me lembro.
— Briguei com Harriet por causa de uma estúpida paixão adolescente e, em vez
de ficar para encará-la, fugi e fiquei fora de Walton por quinze anos. Quando voltei,
minha irmã estava morrendo. Perdi todo aquele tempo em que poderia estar ao lado
dela, e nunca a terei de volta. Não cometa o mesmo erro que eu, Suzanne.

237
Depois da Chuva Karen White

— Não é a mesma coisa. Aqui é um lugar ao qual você pertence. Eu não. Nunca
pertenci a lar algum e é muito tarde para começar — Começou a descer os degraus. —
Não é preciso, dizer a Maddie quem fez o álbum, se você não quiser.
— Suzanne, não vá embora... E quanto a Joe?
Ela olhou para o céu coberto pelas nuvens, com suas sombras envolvendo a
cidade.
— Ele vencerá a eleição e seguirá a vida dele. Tenho certeza de que encontrará
alguém para amar.
— Não, não encontrará. Ele já encontrou. Você.
Suzanne se deteve. Quando falou, sua voz estava embargada pela emoção.
— Não depois desta noite. Não depois da verdade...
— Você não o conhece, Suzanne. Você pode amá-lo, mas certamente não sabe
quem ele é.
— Eu o conheço o bastante para saber que preferiria morrer a perder a eleição
para Stinky Harden e ver a cidade que ama ser destruída. Ter uma namorada que traiu
a própria filha e que será mandada para a prisão não fará com que as pessoas votem
nele. — Tentou não pensar no calor dos braços musculosos, na grandeza do coração e
no modo como a fazia se sentir — Creio que Joe ficará aliviado por me ver partir.
Adeus.
— E para onde você vai?
— Vou tomar o mesmo ônibus que me trouxe e ficar longe pelo maior tempo que
puder. Já fiz isso antes.
— Ao menos vai me telefonar se precisar de alguma coisa?
— Provavelmente não.
Cassie segurou-a pelo braço, impedindo-a de sair.
— Isso não é um adeus. Portanto, não vou dizer nada.
Suzanne tocou a mão sobre seu braço desejando que aquele simples gesto
pudesse expressar toda gratidão que sentia por aquela mulher.
— Adeus, Cassie — murmurou para si mesma ao dar-lhe as costas e sair.
E continuou caminhando lentamente, olhando para as estrelas até que a
escuridão da noite encobrisse suas últimas esperanças.

238
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XX

Maddie abriu a torneira e viu suas esperanças serem levadas com a água que
escorria pelo ralo. Jogou água fria no rosto mais uma vez e vislumbrou seu reflexo no
espelho do banheiro. Seus olhos ainda estavam inchados e vermelhos pelo pranto que
parecia não ter fim.
Nada mais importava. Lembrou-se de quando perdera a mãe... Naquela ocasião,
julgara que mais nada poderia magoá-la tanto. Porém, percebeu que estivera enganada.
Ao menos, a mãe não fizera nada intencionalmente.
Ouviu o ruído da porta da frente se abrindo, e a voz de Cassie ecoou pela casa
vazia.
— Maddie? Você está em casa?
Lentamente, saiu do banheiro e desceu os degraus para encontrar a tia na sala.
— Estou aqui. Não fui à escola, mas meu pai sabe.
Cassie olhou para a sobrinha com semblante sereno, fazendo-a relaxar. Depois
da noite anterior, podia jurar que sua tia estava do lado de Suzanne. Amava a única
irmã de sua mãe e odiaria nunca mais ter de falar com ela pelo resto da vida, o que
seria inevitável se descobrisse que estava apoiando sua maior inimiga.
Recebeu o abraço afetuoso e só então percebeu que Cassie carregava alguma
coisa sob o braço.
— O que é isso?
— Vamos para a cozinha. Vou lhe mostrar.
Seguiu a tia e se acomodou à mesa. Ao vê-la colocar a caixa com o álbum a sua
frente, ergueu a sobrancelha, curiosa ao notar que seu próprio nome fora escrito com
a caligrafia feita que conhecia tão bem.
— Sei que é um tanto precoce dá-lo a você agora, mas imaginei que seria bom.
Deveria ser seu presente de formatura.
— Quem me deu este presente?

239
Depois da Chuva Karen White

— Sua mãe. E Suzanne. Foi um trabalho feito com muito amor pelas duas.
Maddie tentou jogá-lo para longe, mas mãos firmes a detiveram.
— Vamos vê-lo juntas. É necessário.
— Não quero! Não quero nada que esteja relacionado com aquela mulher!
— Suzanne completou o trabalho que sua mãe havia começado. Sei que está
magoada com ela, mas tente ser imparcial. A mão de sua mãe também está aí.
— Vou olhar apenas a parte que minha mãe fez, e nada mais.
— Querida, não há como distinguir onde sua mãe parou e Suzanne começou. Você
terá de olhar tudo.
— Não quero!
Cassie colocou a mão sobre o braço da sobrinha.
— Pare de agir como uma criança birrenta! Sei que está furiosa com Suzanne.
Ela cometeu um erro terrível e sabe disso, mas foi por amor.
— Por amor? Só se for amor por ela mesma!
— Não é verdade. Se o ex-noivo de Suzanne visse a fotografia na revista, viria
atrás dela. O nome dele é Anthony de Salvo e é um homem perigoso. Ela não fez nada
de errado, mas ele pretende mandá-la para a cadeia. E ela não queria deixá-la. Pode
entender agora por que se desfez daquele negativo?
— Não me importo! — Maddie cruzou os braços sobre o peito. — Ela mentiu para
mim! Eu fui traída! Não quero nem ouvir o nome dela.
Cassie respirou fundo, como se procurasse reunir paciência.
— Ouça, quero que veja esse álbum como um favor para mim. Apenas olhe. O que
Vai sentir depois de vê-lo depende apenas de você.
Maddie hesitou, contendo o desejo de atirá-lo para longe. Porém, saber que as
mãos de sua mãe haviam trabalhado ali a fez mudar de idéia.
Pegou o álbum e uma fotografia em preto-e-branco deslizou do seu interior.
Colocou-a sobre a mesa para que ambas pudessem ver o retrato de uma tempestade no
deserto.
As nuvens carregadas encontravam-se no horizonte com a areia branca
formando uma névoa que tornava impossível saber onde a terra começava e o céu
terminava. A chuva caía, enchendo as crateras do solo árido. E, como se houvesse sido
acidentalmente registrada pela câmera, via-se a silhueta de uma mulher sentada em
um platô, os braços abertos e a face voltada para a fúria da tempestade.

240
Depois da Chuva Karen White

Era belo e assustador ao mesmo tempo e fez Maddie se lembrar das


fotografias que vira na exposição de Gertrude Hardt.
— De quem é esta fotografia?
— Não sei — Cassie passou os dedos pela figura — Acho que Suzanne a
esqueceu aqui. Mas vamos deixá-la de lado por enquanto e nos dedicarmos ao álbum.
Maddie olhou de relance para a tia, e a expressão determinada no rosto dela a
impediu de argumentar. Sabia que seria melhor obedecer, além de estar interessada
em ver o que a mãe fizera.
Lentamente, abriu a primeira página e viu a caligrafia da mãe. Seu peito se
apertou e sentiu os braços da tia ao redor dos ombros.
— Será difícil no começo, mas se sentirá feliz por ver o que ela fez.
Maddie concordou com um gesto, sabendo que não conseguiria falar e começou a
virar as páginas, esquecendo em poucos minutos a raiva e a amargura. Cada página
mostrava um capítulo de sua vida, a vida de uma criança amada e bem, cuidada.
Olhou para as fotografias que contavam sua história desde quando era bebê,
aninhado nos braços da mãe, até a festa de catorze anos, quando a perdera. Seu
coração chorou pelos anos vividos, ao mesmo tempo em que exultava pela alegria que
aqueles anos haviam proporcionado.
Então, chegou às páginas mais recentes: fotografias que Suzanne havia tirado
dela no time de futebol, na festa de aniversário da irmã, no laboratório da escola...
Olhou para elas fingindo não prestar atenção.
Havia uma em que estava ao lado dos irmãos e em seu semblante transparecia a
jovialidade e a gratidão pelo amor qual recebera na vida. Reconheceu a bela caligrafia
de Suzanne documentando os eventos e as pessoas responsáveis por fazê-la o ser
humano que se tornara.
Momentos difíceis, ao lado de momentos bons, organizados pelas duas pessoas
que haviam trabalhado para registrar sua vida e suas origens, deixando implícita a
noção indestrutível de que sempre teria um lugar para voltar.
Depois de vê-lo, soube por que sua tia insistira para que olhasse o álbum. Não
era para que sua raiva e mágoa fossem embora... Era para ajudá-la a ver por detrás da
mulher para quem abrira o coração e dissera coisas que nunca ousara dizer em voz alta
para mais ninguém.
— Seja mais madura do que fui, meu bem — A voz de Cassie soou gentil — Não
deixe que ressentimentos e mágoas obscureçam seu amor por Suzanne. O que vocês
tiveram foi especial, e você nunca a terá de volta se deixá-la partir. Nunca.
241
Depois da Chuva Karen White

Havia tristeza naquelas palavras, e Maddie soube que sua tia lamentava os
quinze anos que seu orgulho a separara da irmã. Quinze anos que nunca poderiam ser
trazidos de volta!
Depois de refletir por um longo tempo, apanhou a fotografia em preto-e-branco
e se pôs a observá-la.
— Esta deve ser a fotografia favorita de Suzanne — Comentou em voz baixa,
como se estivesse pensando alto — Parece ser o retrato dela própria, sozinha no
deserto, castigada pela tempestade... Acho que está assim porque não tem ninguém
para protegê-la.
— Talvez tenha razão. — Cassie tirou a fotografia das mãos dela e colocou-a
sobre a mesa. — Mas creio que revela a perspectiva de Suzanne. Na verdade, ela
própria se sente sozinha e desamparada. Creio que está na hora de mostrar-lhe que há
pessoas que a amam e se importam com ela.
Grossas lágrimas rolaram pelo rosto de Maddie, e ela acariciou a capa do álbum
com a ponta dos dedos.
— Ela me deve muitas explicações! E terá de pedir desculpas! — Exclamou,
tentando fazer com que o orgulho soasse mais forte que a ternura.
— Suzanne sabe disso — A voz da tia revelou uma nota de alívio — Porém, você
terá de dar o primeiro passo.
— O erro não foi meu!
— Sei disso, meu bem. Mas você está mais preparada para abrir o coração do
que ela. Suzanne acredita que está sozinha no mundo.
— Está bem — Maddie suspirou, simulando desinteresse — Onde ela está?
— Ela foi embora.
— E voltará? — Os olhos verdes se arregalaram com um brilho de pânico.
— Creio que não esteja planejando voltar para Walton nos próximos cem anos.
Ela pediu que eu lhe entregasse o álbum por acreditar que você não queria vê-la.
— Oh, meu Deus! Não podemos deixá-la partir! Você acha que há alguma forma
de trazê-la de volta?
— Não será fácil, mas podemos tentar encontrá-la. Tenho certeza de que você
pensará em uma forma de convencê-la.
— Oh, fui tão dura com ela...

242
Depois da Chuva Karen White

— Não se culpe, querida. Você estava furiosa e tinha suas razões para odiá-la
naquele momento — Cassie pousou a mão sobre o braço da sobrinha — A grande beleza
da vida está exatamente na capacidade de compreender e perdoar.
— E se eu não conseguir encontrá-la? Papai vai sofrer muito com a ausência
dela... Todos nós vamos sofrer sem Suzanne!
— Sendo filha de Harriet, sei que você a encontrará.
Maddie sorriu pela primeira vez.
— Sim, eu sei. Preciso apenas pensar.
— Vá em frente, mas não faça nada ilegal! — Provocou, com um sorriso terno. —
E me avise sobre o que planejou antes de executar.
— Certo. Obrigada, tia Cassie.
— Agora, preciso encontrar seu pai. Ele está na Prefeitura?
— Sim. Está tentando fingir que nada mudou.
— Vou até lá. Mas se encontrá-lo antes de mim diga-lhe que preciso falar com
ele o quanto antes. Joe precisa saber sobre Suzanne e Anthony de Salvo.
— Por quê?
— Bem, receio que ele virá para Walton assim que o exemplar da revista
Lifetime estiver nas bancas e pressinto que Stinky Harden não vai perder a
oportunidade de se associar a ele. Seu pai precisa estar preparado.
Joe estava sentado em sua sala na Prefeitura, sentindo que vivia uma
experiência única. Desde que Suzanne se fora, a mesma sensação o afligira mais de
uma vez. Era diferente da forma como se sentira quando Harriet morrera, embora a
solidão e o desamparo fossem os mesmos. Porém, daquela vez, a culpa era dele por
cometer o grande erro de abrir o coração para uma mulher e confiar nela.
Tentou focalizar a atenção nos documentos sobre a mesa. Acabara de receber o
último exemplar do jornal Sentinela de Walton, que trazia uma reportagem sobre a
audiência para anexar as terras de Stinky Harden ao município de Mapleton.
Antes que acabasse de ler a matéria, Stinky entrou na sala sem ser anunciado.
Trazia um jornal nas mãos e agitou-o ostensivamente no ar.
— Aqui está, prefeito! Dê uma olhada.
— Já v — Joe não se dignou a erguer os olhos. — Charles deve estar feliz por
ter conseguido o primeiro lugar no concurso.

243
Depois da Chuva Karen White

— Foi uma disputa justa. Ninguém poderá dizer que ele não tirou a fotografia.
Ele tem o negativo!
— Stinky, pode ter certeza de que isso não vai ficar assim.
— Se acha que vai conseguir alguma ajuda da srta. Paris poderá ter uma grande
decepção. A essa altura, ela já deve estar longe de Walton.
Joe passou as mãos pelos cabelos, pensando em tomar mais um analgésico além
dos quatro que já tomara uma hora atrás.
— Aonde você quer chegar?
— Bem, hoje pela manhã, eu vi um homem chegar do aeroporto de Mapleton em
um carro alugado. Ele estava à procura de Suzanne Lewis, afirmando que ela roubara a
coleção de fotografias de Gertrude Hardt — Stinky fez uma pausa, saboreando o
efeito das palavras — Creio que foi falar com o xerife Adams.
Joe lutou bravamente para esconder a perplexidade. De súbito, sentiu-se
atingido como se houvesse levado um soco no estômago. A pequena fortuna guardada
em uma caixa no armário de Suzanne...
Lembrou-se da conversa que tivera com Cassie naquela manhã, quando ficara
sabendo que as fotografias de Gertrude Hardt haviam sido roubadas antes de serem
entregues a ela... Quem estaria dizendo a verdade?
Não, não podia ser! Recusava-se a acreditar que aquela mulher fosse uma
criminosa!
— Meus rapazes já estão trabalhando no próximo slogan da campanha: Stinky
Harden não se envolve com criminosos.
Joe se ergueu abruptamente, fazendo a cadeira bater na parede atrás dele.
Contornou a mesa e se aproximou de Stinky, chegando tão perto que sua presença
imponente fez com que o outro parecesse um anão.
— Você não sabe nada a respeito dela!
— Sei muito mais do que você, pelo que vejo... Ela traiu o acordo que fizemos.
— Que acordo?
Stinky pareceu pouco confortável pela primeira vez de que chegara.
— A srta. Paris se comprometeu a revelar tudo que eu quisesse saber sobre ela
se Charles vencesse o concurso.
— E se ele perdesse?
— Nesse caso, eu abriria mão da minha candidatura para prefeito.

244
Depois da Chuva Karen White

Daquela vez, Joe não conteve o ímpeto e segurou-o pelo colarinho.


— Você foi o responsável pela derrota de Maddie, não foi? Não deve ter
apanhado aquele negativo da lata do lixo, mas estimulou seu filho a trapacear... —
Soltou-o com violência, fazendo-o quase cair ao chão.
— Espere aí! — Stinky se recompôs, ajeitando a gravata — Charles venceu o
concurso com a fotografia dele, e ninguém pode provar o contrário.
— Veremos... — Joe caminhou com passos decididos e abriu a porta com
impetuosidade — Sei do que você é capaz, mas não vou permitir que continue a jogar
sujo!
Ao dizer isso, saiu do escritório e seguiu com passos rápidos pelo corredor, mas
teve tempo de ouvir a voz de Stinky atrás de si:
— Você deveria ir para sua casa imediatamente. Eu disse ao sr. de Salvo que
vocês estavam dormindo juntos...
— Vá para o inferno, Stinky!
Então, desceu correndo os degraus e alcançou a rua.
Quando parou diante de sua casa, reconheceu o carro do xerife Adams e um
Mustang vermelho conversível que nunca vira antes.
— Bom dia, xerife — Saudou ao entrar na sala, voltando-se para o homem
estranho sentado na poltrona ao lado da lareira. — Sou Joe Warner. Há alguma coisa
que possa fazer por você?
— Onde está Suzanne?
O homem elegantemente vestido se levantou e encarou-o com prepotência.
— Joe, este é Anthony de Salvo, de Chicago. Ele afirma que Suzanne é uma
ladra.
— Ela não roubou nada — Encarou-o e manteve a expressão impassível.
— Bem, ele diz que Suzanne está envolvida no roubo da mansão de um
colecionador de Chicago. Fiz alguns telefonemas e verifiquei que, de fato, a coleção a
que se refere estava desaparecida.
— E pode provar que foi Suzanne quem a roubou?
— É por isso que precisamos encontrá-la. Você sabe onde ela está?
— Não. Sei apenas que não está aqui.

245
Depois da Chuva Karen White

Lucinda surgiu da cozinha, carregando uma bandeja com uma jarra de chá
gelado. Colocou-a na mesa de centro e, ao retirar um livro de Maddie esquecido lá,
alguma coisa deslizou do meio das páginas para o chão.
Anthony de Salvo se abaixou para pegar e ergueu no ar uma fotografia em
preto-e-branco.
— Aqui está a prova! — Exclamou com um sorriso exultante. — Estendeu-a para
o xerife, ostentando um sorriso vitorioso no rosto — Eu trouxe um catálogo das
fotografias roubadas. A que vocês estão olhando está localizada na segunda página.
Joe apanhou o catálogo. Não havia dúvida, era a mesma fotografia.
— E o que isso prova?
— Bem, ah... — O xerife Adams tossiu e olhou para Lucinda — Sinto muito, Joe,
mas se o material roubado está em seu poder, há uma evidência forte para que seja
acusado de cúmplice do roubo.
— Você deve estar brincando! Xerife, você sabe que não roubei isso!
— Claro que sei! No entanto, tenho de cumprir meu dever — Ergueu os ombros
em um gesto de desculpa — Preciso retê-lo e levá-lo para interrogatório. Acho que
será melhor chamar seu advogado.
— Meu advogado? Xerife Adams, sou eu, lembra-se? Seu pai é meu advogado!
— Por favor, Joe, não piore as coisas. Vamos até a delegacia para esclarecermos
tudo o mais rápido possível.
— O que está esperando para prendê-lo, xerife? — Anthony de Salvo se
impacientou.
— Estou agindo de acordo com a lei, senhor. Sei que este homem é inocente,
mas vou cumprir todas as formalidades para que não reste a menor dúvida. Vamos,
Joe.
Seguiram para a calçada e ele entrou no carro. Ser levado para a prisão era
tudo que faltava àquela altura de sua vida! Aliás, desde que conhecera Suzanne, nada
mais o surpreendia, pensou com desgosto.
Suzanne abriu a torneira e olhou ao redor, sentindo-se deslocada naquele quarto
frio e impessoal. Sentia falta da geladeira na cozinha com a gravura da torre Eiffel e
do desenho de Amanda, de uma grande cama em um quarto aconchegante e da voz das
pessoas que preencheram sua solidão.
Olhou para seu reflexo no pequeno espelho do banheiro e suspirou. Seus olhos
ainda estavam vermelhos e inchados como se houvesse chorado durante uma semana.

246
Depois da Chuva Karen White

Ouviu leves batidas na porta da frente e fechou a torneira para se certificar de


que não se enganara.
— Não preciso do serviço de quarto agora — Gritou sem abrir a porta. — Volte
mais tarde.
A resposta foi outra batida mais alta seguida de uma voz familiar.
— Srta. Paris? Sou eu, Rob Campbell, amigo de Maddie. Posso entrar?
Suzanne ficou paralisada por um segundo e então correu para abrir a porta.
— Rob! Como é bom vê-lo! Como me encontrou? — Ele dirigiu-lhe um sorriso
malicioso.
— Você ficaria surpresa por saber como as pessoas respondem às perguntas de
um adolescente muito mais rapidamente do que fariam a um adulto.
Ela lhe indicou que entrasse, tentando manter a calma.
— Quer dizer que não é o único que está a minha procura?
— Não. O dr. Parker, Lucinda, o sr. Crandall... E tenho certeza de que, se o
treinador Warner não estivesse na prisão...
— O quê? Joe foi preso? O que aconteceu?
— É uma longa história, mas não é nada grave. Ainda não o soltaram porque ele
se recusa a falar, mas o xerife Adams disse que ele será posto em liberdade logo que
mudar de idéia.
— Meu Deus! — Suzanne cobriu a boca com a mão, horrorizada — E por que veio
até aqui?
— Para tentar convencê-la a voltar.
— Sinto muito, Rob, mas não posso. Maddie me odeia e não quer me ver pelo
resto da eternidade.
— Não é verdade, srta. Paris. Ela ficou furiosa com você, mas quer que volte
para Walton. É por isso que faltou à aula e veio comigo para Biloxi.
— Ela está aqui?
Uma nova esperança aqueceu seu coração.
— Sim. Posso chamá-la?
Suzanne concordou, sentindo-se confusa e apavorada. Assim que Rob saiu,
começou a andar pêlo quarto, insegura sobre a reação de Maddie ao vê-la.

247
Depois da Chuva Karen White

Ouvindo os passos do outro lado da porta, abriu-a de imediato e recuou um


passo para que entrassem.
Como já esperava, Maddie evitava olhar para ela e mantinha a boca apertada em
uma linha fina. Observou que crescera desde a última vez que a vira, apenas uma
semana atrás. Era como se, em uma semana, houvesse abandonado os últimos vestígios
da infância e se tornara mulher.
O coração de Suzanne transbordou de amor e orgulho, sabendo que, em parte,
também era responsável por aquela mudança.
Sem dizer nada, Maddie moveu um passo e abraçou-a.
— Sinto muito — Disse entre lágrimas. — Eu estava furiosa com você e disse
coisas que não devia!
— Eu mereci — Balbuciou, apertando-a de encontro ao peito.
— Tia Cassie me contou tudo, e entendi que jogou aquele negativo no lixo porque
queria ficar.
Suzanne se afastou, tentando controlar o tremor na voz.
— Adultos também cometem atos estúpidos! — Tentou rir, mas tudo que
conseguiu foi uma careta desajeitada — O que fiz foi imperdoável.
— Minha mãe dizia que, quando se ama, não há nada que não possa ser perdoado.
— Você ainda está brava comigo?
— Estou, mas eu a amo mesmo assim.
— Oh, Maddie! Você é maravilhosa! — Suzanne riu e abraçou-a — Espero que,
muito em breve, eu consiga me redimir do erro que cometi.
— Por que diz isso?
— Lembra-se de quando, na noite em que nos conhecemos, você me perguntou se
eu tinha algum trabalho importante publicado?
Maddie meneou a cabeça em afirmativa, e Rob se juntou a elas, interessado em
ouvir.
— Bem, eu menti... Trabalhei por muito tempo como colaboradora da revista
Lifetime e conheço o editor-chefe. Consegui falar com ele ontem e contei-lhe sobre a
fraude do concurso.
— Oh! Por favor, diga que não está brincando!
— E o que ele disse? — Rob quis saber.

248
Depois da Chuva Karen White

— Se a denúncia se confirmar, Charles será desclassificado e terá de se haver


com as implicações legais do que fez... É você ficará com o primeiro prêmio e com a
bolsa para a Escola de Arte de São Francisco!
— Oh, meu Deus! — Os olhos verdes se iluminaram — E o que precisamos fazer
para que isso aconteça?
— Temos de enviar o rolo do negativo para que os peritos o analisem. Será fácil
perceber que a última pose foi cortada, além da similaridade do material da revelação.
Maddie olhou para ela e franziu a testa.
— Então, já que o rolo do negativo está comigo, você teria de voltar a Walton
para apanhá-lo...
— Na verdade, eu ia pedir que Cassie o pegasse com você — Fitou-a com
ternura. — Confesso que estava com medo de encará-la!
— E pode estar certa de que seu medo tinha fundamento srta. Paris — Rob
comentou — Maddie vira uma fera quando está brava!
Ela enviou um olhar fulminante para o namorado e voltou-se para Suzanne.
— Precisamos que volte conosco imediatamente.
— Por quê?
— Papai foi acusado de ser cúmplice no roubo das fotografias de Gertrude
Hardt.
— Meu Deus, mas como isso foi acontecer?
— Lembra-se de uma fotografia em preto-e-branco que deixou dentro do meu
álbum? Bem, deixei-a dentro de um livro na mesa de centro da sala, e o xerife a
encontrou...
Suzanne sentiu o chão sumir sob os pés. Receando que seus joelhos não
pudessem suportá-la, sentou-se à beira da cama e cobriu o rosto com as mãos. Oh,
Deus! Como pôde ser tão estúpida? Recriminou-se.
— Anthony de Salvo a reconheceu e...
— Anthony de Salvo? — Ergueu-se de um pulo, sentindo o coração desenfreado
no peito — Ele deve ter visto a fotografia na capa da revista e descoberto meu
paradeiro...
— E Stinky Harden contou a ele sobre você e o treinador Warner — Rob
completou.

249
Depois da Chuva Karen White

— Oh, não! — Aflita, Suzanne se pôs a andar pelo quarto — Não queria que isso
acontecesse! Queria apenas sair da vida de vocês sem que nenhum mal lhes
acontecesse.
— Você já é parte de nossa vida. Papai não admite, mas está muito triste desde
que você partiu. Não o vejo assim desde a morte de mamãe.
— Srta. Paris sei que não será fácil voltar e, além disso, talvez tenha de passar
uma noite na prisão, mas Maddie tem um plano e, se tudo der certo, os verdadeiros
culpados vão para a cadeia e o treinador Warner ainda será reeleito. Você vem
conosco?
— Vou arrumar minha bagagem em um minuto! — Respondeu sem precisar
pensar.
Precisava voltar para salvar Joe, mesmo que precisasse encarar seu pior
pesadelo.

Capítulo XXIV

Maddie afastou a folhagem do arbusto e olhou mais uma vez para a estrada. Seu
coração bateu descompassado no peito ao ver que já passava da dez e meia da noite. A
qualquer momento, seu mais genial plano seria executado!
O forte cheiro de estérco de gado parecia estar impregnado em todo seu corpo,
mas não se incomodou.
250
Depois da Chuva Karen White

— Lá vêm eles! — Exultou, ao vislumbrar os faróis iluminando a estrada deserta.


— Tirou o telefone celular do bolso da calça e apertou a tecla da memória. — Podem ir,
rapazes! — Ordenou assim que ouviu a voz do outro lado da linha.
Um gigantesco caminhão carregado de estérco saiu do acostamento, entrou na
pista de mão dupla e parou na faixa do meio, interrompendo a passagem. Assim que o
Mustang vermelho se aproximou da carroceria, Maddie agradeceu em silêncio a Kenny
Northcut, o maior especialista em carros de Walton, por impossibilitar que a capota
do conversível pudesse ser fechada. Graças à sorte, o clima de dezembro estava
ameno o bastante para que um cidadão da gélida Chicago não reclamasse por não
conseguir fechá-la.
O carro brecou com um ruído agudo e parou perpendicularmente, quase
encostado à traseira do caminhão.
Maddie pisou no asfalto, tendo o cuidado de não ficar à frente do farol, e
apertou a câmera nas mãos.
De súbito, um rangido ensurdecedor cortou o ar. Os dois ocupantes do carro
olharam para cima um segundo antes que a carroceria se abrisse.
Maddie teve de se conter para não rir ao ver Stinky Harden e Anthony de Salvo
serem soterrados pela carga de estrume fresco.
Conforme haviam combinado, Arnie e Chip Slappey desceram da cabine. Os dois
jovens jogadores de futebol do time da escola eram grandes o bastante para intimidar
qualquer um, sem contar os músculos avantajados desenvolvidos com o trabalho na
lavoura do pai.
— Oh, sentimos muito, senhores! Eu disse a meu pai que o caminhão precisava
ser consertado! — Exclamou Arnie, simulando consternação.
Anthony de Salvo o encarou soltando chispas pelos olhos.
— Seus irresponsáveis! Vejam o que fizeram!
—Imbecis! — Vociferou Stinky Harden, ocupado em limpar o paletó.
— Não foi nossa culpa! — Chip se desculpou com falso ar de inocência — A
carroceria se abaixa automaticamente toda vez que brecamos. É a segunda vez que
acontece em uma semana.
— Vocês vão pagar por isso! Estamos atrasados para um compromisso e não
podemos aparecer assim! — Anthony fez um gesto indicando a própria roupa,
completamente suja de estéreo — Que vamos fazer agora?
— Não se preocupem, vamos ajudá-los — Arnie assegurou — Claro! — Reafirmou
Chip — Podemos levá-los no caminhão.
251
Depois da Chuva Karen White

— Não temos escolha! — Stinky saltou do carro e retirou um lenço do bolso,


tentando limpar o rosto.
— Vamos logo! O que estão esperando? — Anthony reclamou, descendo com
cuidado para não se sujar ainda mais. — Leve-nos para o aeroporto de Mapleton
imediatamente!
— Ei, espere um pouco! — Chip correu atrás dele ao ver que seguia para a
cabine. — Meu pai acabou de limpar o caminhão e vai ficar furioso sé encontrá-lo sujo.
— E o quer que eu faça? Preciso estar lá em dez minutos!
Os dois irmãos se olharam com cumplicidade.
— Bem, podemos levá-los desde que tirem a roupa suja para entrar.
— Emprestaremos toalhas para se enrolarem.
— Boa idéia, Arnie! Tirem a roupa enquanto vamos apanhá-las.
— Por mim está bem — Stinky se apressou em desabotoar o paletó — Tenho
mesmo de tirar essas roupas antes que morra sufocado pelo cheiro!
Os irmãos enviaram um olhar para o local em que Maddie se escondera e
fizeram um sinal discreto.
— Está bem — Anthony grunhiu, embrenhando-se no mato com Stinky atrás de
si.
Quando viu as roupas sujas caírem no chão, Maddie posicionou a câmera e
começou a fotografá-los, tentando alcançar o melhor ângulo.
— Onde estão as toalhas? — Anthony gritou irritado — Estamos congelando!
Como resposta, ouviram o som da partida do caminhão. Desesperados, os dois
homens seminus puseram-se a correr pela estrada, tentando alcançá-lo, sem perceber
que a câmera de Maddie trabalhava sem parar.
Então, quando teve certeza de que conseguira o que queria, ela se esgueirou
pelo mato até o carro de Rob, que a esperava em uma clareira a poucos passos dali.
Assim que ela entrou, Rob deu a partida e acelerou, seguindo para a direção
oposta a toda velocidade, diretamente para o laboratório da escola.
— Você está livre, Joe.
O xerife Adams abriu a porta da cela.
— O que houve?

252
Depois da Chuva Karen White

— Meu assistente está trazendo Suzanne. Ela se apresentou para explicar como
a fotografia roubada foi parar em sua casa.
— Suzanne está vindo para cá?
— Sim. Gostaria de ficar para falar com ela?
Joe saiu da cela sentindo uma onda de esperança crescer em seu peito.
— Gostaria muito.
Quando Suzanne chegou à delegacia, encontrou Joe adormecido sobre um banco
de madeira na recepção. O assistente do xerife se afastou discretamente, deixando-
os a sós.
— Olá, Joe.
Ele abriu os olhos, incerto se estava sonhando. O som daquela voz fez com que
se sentisse renascer. Sentou-se e, ao encará-la, lembrou-se no mesmo instante de
como magoara sua filha, de como se ressentira por ter ido embora sem ver a
devastação que causara...
— Olá, Suzanne. Obrigado por escrever uma carta explicando tudo — Disse com
ironia.
— Na verdade, escrevi várias cartas, mas não tive coragem de enviá-las —
confessou — Achei que não queria ouvir falar de mim.
Ele vislumbrou o rosto pálido emoldurado pelos cabelos ruivos em desalinho e
percebeu com nitidez a fragilidade daquela mulher.
— Maddie já não está tão brava com você. Creio que já a perdoou, o que me
deixa muito orgulhoso dela.
— E deve ficar mesmo. Sua filha é uma pessoa especial. Foi ela quem me
encontrou em Biloxi e me disse que você estava preso.
— Foi Maddie quem a encontrou? — Franziu o cenho, admirado.
— Sim. Ela e Rob.
— Que estavam fazendo em Biloxi?
— Estavam tentando salvá-lo.
— Creio que aprendeu com você sobre os prazeres de viajar, não é? Estou
surpreso que ela e o namorado não tenham tomado um ônibus para a Costa Oeste!
Suzanne o fitou, o peito arfando de indignação, e ele odiou-se por magoá-la
deliberadamente. Porém, ainda não conseguira perdoá-la pelo que fizera à filha e a ele
mesmo.
253
Depois da Chuva Karen White

— Desculpe — Murmurou a contragosto — Estou exausto, preocupado e com uma


terrível dor de cabeça.
— Você já pode ir para casa.
— Acho que vou fazer isso. Mas antes, quero agradecer-lhe por ter vindo me
tirar daqui.
— Não fiz mais do que meu dever. Afinal, você foi preso por minha causa.
— Quanto tempo vai ficar?
— Só até resolver essa confusão toda. Maddie me garantiu que não demoraria
muito tempo.
— Maddie? E como ela pode ter certeza disso?
— Ela tem um plano. Não me contou os detalhes, mas deve estar em execução
exatamente agora, enquanto conversamos.
— Oh, meu Deus! Minha filha vai se meter em encrencas de novo!
Suzanne o contemplou, sentindo a chama do desejo aquecê-la. No entanto, a
hostilidade com que a tratava criava um abismo entre eles.
— Tentei dissuadi-la, mas não consegui. Você sabe como ela é... — Ergueu os
ombros e tentou sorrir — Disse que era uma forma de nos agradecer por tudo que
fizemos por ela.
— E onde ela está?
— Não sei. Talvez Cassie saiba, ela ajudou-a com o plano — Estendeu a mão
como se fosse tocá-lo — Maddie vai ficar bem. Rob mencionou alguma coisa sobre
pedir ajuda para alguns rapazes do time de futebol, e tenho certeza de que não vão
deixar que nada de mal aconteça a ela.
Joe a encarou, furioso.
— E acha que isso me tranqüiliza? — Estendeu o dedo em riste para ela — Nunca
mais tente me ajudar! Da última vez que tentou, acabei na prisão e minha filha ficou
com o coração partido.
Suzanne arregalou os olhos, sem esconder o ressentimento que as palavras lhe
haviam provocado.
— Quer saber de uma coisa, Joe? — Empinou o queixo, recusando-se a permitir
que continuasse a magoá-la — Durante toda minha vida, sempre quis o que encontrei
em Walton.

254
Depois da Chuva Karen White

Nos poucos meses que fiquei aqui, descobri como é maravilhoso ter uma família
e pertencer a um lugar, mas suponho que foi o máximo que pude ter. Não sou
gananciosa a ponto de desejar mais do que a vida reserva para mim. Sinto muito por
ter atrapalhado é esteja certo de que nunca mais vai acontecer.
Sentindo-se derrotado, Joe abaixou os olhos enquanto ela entrava na sala do
xerife. Saiu da delegacia sentindo um peso intolerável sobre os ombros e parou em um
telefone público para ligar para Cassie, furioso por ter perdido seu telefone celular.
Joe abriu com violência a porta do laboratório fotográfico da escola.
— Papai! — Maddie quase deu um pulo quando o viu. — Como soube que eu estava
aqui?
— Tive uma conversa esclarecedora com sua tia Cassie. Onde está Rob?
— Está a sua procura para lhe contar tudo que aconteceu. Mas, agora que já
sabe, poderia me ajudar com essas fotografias?
— O que pretende fazer?
— Convencer Anthony de Salvo a retirar a queixa contra você e Suzanne e
voltar para Chicago o mais rápido possível.
— Maddie, isso não é brincadeira! Você está mexendo em um vespeiro.
— Não se preocupe, papai. Sei o que estou fazendo — Disse sobre o ombro,
ocupada em colocar a impressora fotográfica em movimento — Você sabe que Suzanne
não roubou a coleção de Gertrude Hardt. Precisamos ter certeza de que o sr. de Salvo
também concorda com a inocência dela.
— Não vou deixá-la fazer outra bobagem!
— Você não pode me deter. E antes que resolva tentar, lembre-se de que
Suzanne só voltou para poder tirá-lo da cadeia. Ela não tinha obrigação de fazer isso,
mas fez — Maddie ergueu o queixo em advertência — Você poderia demonstrar um
mínimo de gratidão e retribuir o favor, ajudando-me a expulsar Anthony de Salvo da
vida dela.
Joe ficou em silêncio por um momento, remoendo-se de remorso por Suzanne
estar em uma cela no lugar dele.
— E o que aconteceu com sua determinação em preferir morrer a falar com ela
novamente?
— Já superei.

255
Depois da Chuva Karen White

Olhou para a filha e viu a mesma força e determinação que costumava encontrar
nos olhos de Harriet. Percebeu de súbito que sua menininha se tornara mulher,
sentindo o coração se apertar no peito diante da constatação.
— Um momento de compreensão é maior do que uma vida de perdas, papai.
Joe sentiu o estômago se contrair, lembrando-se da mágoa, nos olhos de
Suzanne quando a deixara momentos atrás.
Ele e a filha permaneceram se olhando por um longo momento e soube que havia
perdido a batalha. Quando ela se tornara tão forte?
— Papai, Suzanne nunca teve intenção de prejudicá-lo. Ao contrário, ela partiu
porque acreditava que o salvaria. Não a deixe ir embora. Você pode imaginar o resto
de sua vida sem ela?
— Não posso nem quero! — Exclamou determinado.
Como conseguia ser tão estúpido a ponto de ter de ser aconselhado por uma
garota de dezessete anos? Olhou para a filha com uma nova esperança.
— Posso ver as fotografias que tirou?
— Só se prometer que não vai tocá-las.
— Prometo — E ergueu a mão solenemente. — Mas não posso prometer que vou
concordar com seu plano.
Maddie forrou o balcão com toalhas de papel e espalhou as fotografias que
acabara de imprimir.
Joe se aproximou e arregalou os olhos, chocado.
— O que é isso, Maddie?
— Calma, papai! Eu posso explicar...
—E que explicação pode haver para fotografar homens nus?
— Não estão nus! Estão usando roupa de baixo.
Joe estava disposto a começar um sermão, mas o ar travesso da filha o
desarmou. Tentou sustentar a expressão grave, como se esperava que um pai severo
fizesse, mas foi vencido pela graça burlesca da deliciosa travessura.
Inclinou a cabeça para trás com uma gostosa gargalhada e abraçou a filha.
— Sua mãe ficaria orgulhosa de sua criatividade — Disse, sem conter o riso — O
que exatamente está planejando fazer?

256
Depois da Chuva Karen White

— Não farei nada — Proferiu com inocência angelical. — Tia Cassie se incumbiu
de tudo! Rob e eu já reproduzimos as poses mais comprometedoras e enviamos a ela
por e-mail. Ela e tio Sam estão a caminho do hotel de Anthony de Salvo em Mapleton.
— Dê-me mais algumas fotografias.
— O quê?
— Eu também vou fazer uma visita ao sr. de Salvo e quero estar preparado no
caso de chegar antes deles.
— Papai, o que pretende fazer?
Ele refletiu por um momento, admirando sua bela filha.
— Vou tentar mostrar ao mundo que posso ser tão generoso quanto você —
Apanhou algumas fotografias e observou-as de perto. — Você ainda terá de me dar
muitas explicações, mocinha!
— Não tantas quantas você terá de me dar se não impedir que Suzanne vá
embora.
Joe resmungou alguma coisa inteligível e saiu, esperando não estar muito
atrasado para mostrar a Anthony de Salvo uma pequena amostra da hospitalidade do
Sul.
Antes de deixar a cidade, Joe parou por cinco minutos na casa de Hall Newcomb
e seguiu pela rodovia deserta a caminho de Mapleton.
Não teve dificuldade em encontrar o Hotel Plaza Inn, próximo ao aeroporto.
Esperou que o funcionário da recepção se distraísse e seguiu para o elevador
sem ser visto, torcendo para que Anthony de Salvo estivesse em seu quarto.
Bateu à porta e apertou com firmeza a alça da valise onde guardara as preciosas
fotografias.
— Finalmente você chegou! — Anthony reclamou antes mesmo de abrir
completamente a porta — Vou reclamar à gerência que o serviço de quarto desse hotel
é de péssima qualidade e... Oh! — Recuou um passo, como se estivesse diante de um
fantasma.
— Boa noite, sr. de Salvo.
— Quan... Quando você saiu da prisão? — Gaguejou lívido — E o que está
fazendo aqui?

257
Depois da Chuva Karen White

— Respondendo à primeira pergunta, saí da prisão há... — Olhou no relógio de


pulso — ...Duas horas e quarenta minutos, e vim conversar sobre um assunto de seu
extremo interesse.
— Não tenho nada para conversar com você!
— Asseguro-lhe que terá muito a perder se não ouvir o que tenho a dizer —
ergueu a valise significativamente — Ou ver o que tenho a mostrar.
Anthony apertou os lábios em uma linha fina.
— Está bem, entre.
Joe passou por ele com determinação e se colocou ao lado da mesa da pequena
copa contígua à sala de estar. Olhou ao redor, admirado com o luxo da suíte, mas não
se deixou intimidar pelo ambiente ostensivo que refletia o poder financeiro de
Anthony de Salvo.
— E, então, o que tem a me dizer? — Anthony parou ao lado dele e cruzou os
braços sobre o peito, enviando-lhe um olhar de descaso.
Sem dizer nada, Joe abriu a valise e espalhou as quatro fotografias que levara
sobre a mesa.
— Mas... Mas o que é isso? — Horrorizado, apanhou as cópias com mãos
trêmulas. — Onde conseguiu essas fotografias?
— Isso não vem ao caso, sr. de Salvo. O que importa é que estão em meu poder.
Em um ímpeto desesperado, Anthony apanhou-as para picá-las em mil pedaços,
enquanto Joe permanecia impassível.
— Pronto! Agora, não estão mais.
— Sr. de Salvo, acredita honestamente que eu seria tolo a ponto de entregar-
lhe essas cópias se não tivesse os negativos? — Joe meneou a cabeça com um sorriso
— Aliás, estão bem guardados em posse do meu advogado. Ele está instruído a abrir o
envelope caso certas condições não sejam cumpridas...
— Que condições?
—Em primeiro lugar, você deve retirar a queixa contra mim e a srta. Paris...
Digo, Lewis — Corrigiu, sem perder a firmeza da voz — Além disso, quero saber toda a
verdade sobre a coleção de Gertrude Hardt.
— Isso é chantagem! — Vociferou, soltando chispas pelos olhos — Posso
processá-lo por...

258
Depois da Chuva Karen White

— Faça como quiser — Joe anunciou calmamente, fazendo menção de sair —


Você verá as fotografias em todos os jornais de Chicago.
— Não, espere! — Segurou-o pelo braço em um gesto desesperado — Eu
concordo. Dou minha palavra que amanhã bem cedo a primeira coisa que farei será
ligar para o xerife Adams para retirar as queixas. Por favor, sente-se.
Joe se acomodou no confortável sofá da sala de estar, mantendo a mesma
expressão inescrutável de quando entrara.
— Conheci Suzanne em um de meus restaurantes de Chicago, dois anos atrás.
Ela não tinha mais ninguém no mundo foi morar comigo em meu apartamento. Sua única
paixão era a fotografia e foi por isso que resolvi presenteá-la com a coleção inédita de
Gertrude Hardt...
Naquele momento, ouviram leves batida à porta. Quando Anthony atendeu, Sam
e Cassie entraram na suíte antes que tivesse tempo de impedi-los.
— Joe! O que está fazendo aqui? — Sam indagou surpreso. Fez um gesto para o
amigo indicando que conversariam depois e indicou que se sentassem.
— O sr. de Salvo estava me contando sobre a coleção de Gertrude Hardt. Por
favor, continue.
Todos se voltaram para ele, em expectativa.
— Bem, um vendedor a ofereceu para mim por uma bagatela... Achei que seria
um excelente negócio, e as comprei. Não sabia que haviam sido roubadas.
— Puxa, é mesmo? — Joe ironizou.
— Por favor, Anthony, continue — Cassie estimulou, lançando um olhar crítico
para o cunhado.
— Meu relacionamento com Suzanne estava em uma fase difícil e pensei em lhe
dar a coleção para reconquistá-la. Ela aceitou e, dois dias depois, desapareceu sem
deixar a menor pista. Então, descobri que havia vendido a coleção quando soube da
exposição em Atlanta onde nos encontramos, Cassie. — Voltou-se para ela, forçando
um sorriso — Descobri o paradeiro de Suzanne pela fotografia publicada na capa da
revista Lifetime.
— A partir daí, nós já sabemos o que aconteceu — Joe anunciou, levantando-se
— Obrigado pelas informações, sr. de Salvo. Vamos para casa, amigos.
Sam e Cassie se ergueram e o seguiram para a porta.
— Ah, antes que me esqueça... — Joe se voltou e retirou o minúsculo gravador
que Hall Newcomb lhe emprestara do bolso da calça — Tomei a liberdade de gravar

259
Depois da Chuva Karen White

seu depoimento. Caso não retire as queixas até as oito horas da manhã, terei como
provar a inocência da srta. Lewis.
Suzanne entrou no Café Dixie Diner e acenou para Sam, sentado com Cassie à
mesa que costumava ocupar todas as manhãs.
Durante o curto trajeto até eles, não houve um só freqüentador do Café que
não a detivesse para cumprimentá-la. Sentou-se ao lado de Cassie e pegou a xícara de
café que estava a sua espera. Ainda não estava completamente refeita da surpresa
que a esperava, logo pela manhã.
O xerife Adams abrira sua cela com um largo sorriso e comunicara que Anthony
de Salvo havia retirado todas as queixas. Como se não bastasse, comprometera-se a
publicar nos jornais da região um pedido de desculpas oficial, isentando Joe e ela
própria de qualquer responsabilidade sobre o roubo.
Ele avisara, também, que seus amigos a esperavam no Dixie Diner para o
desjejum.
— Bem-vinda novamente, Suzanne! — Sam a saudou, pousando a mão sobre seu
braço.
— Eu não disse que não seria um adeus? — Cassie piscou para ela com
cumplicidade.
— Não se precipitem meus caros amigos. Não voltei para ficar — Olhou ao
redor, tentando mudar de assunto — Onde está Susie?
— Ficou com tia Lucinda. Ela ainda é muito pequena para frequentar os mesmos
ambientes que o pai — Sam informou com um sorriso orgulhoso.
— Bem, tome seu café enquanto lhe contamos tudo que aconteceu na noite
passada.
— Sim, por favor! Estou ansiosa para saber como Anthony abriu mão da queixa
com tanta facilidade.
Como resposta, Cassie estendeu-lhe um maço de fotografias, e Suzanne quase
engasgou quando as viu.
— Oh, meu Deus! Presumo que Maddie foi a responsável por isso... — Sorriu, e a
risada transformou-se em uma gostosa gargalhada — Estou orgulhosa em dizer que lhe
ensinei tudo o que sabe!
— Sem dúvida, ela aprendeu rápido. — Sam riu com vontade.
— E o que são essas placas esverdeadas nos cabelos?

260
Depois da Chuva Karen White

— Estrume fresco de gado — Cassie disse, rindo também. Então, passou a


contar todos os detalhes do plano de deixar o caminhão interrompendo a passagem e
despejar todo o conteúdo da carroceria sobre eles.
— Não posso negar, foi um plano genial! Essas posições comprometedoras
sugerem que eles estavam...
— Exatamente! Muito sugestivas, não acha? — Sam sorveu um gole de café — Já
imaginou o que significaria para um latino como Anthony se fotografias como essas,
que comprometem sua masculinidade, fossem publicadas?
— Seria pior que a morte! — Suzanne concordou — E como Maddie conseguiu
reunir Anthony e Stinky Harden?
—Escreveu um bilhete presumivelmente de sua autoria para os dois, dizendo-
lhes que você os esperava no aeroporto de Mapleton para lhes fazer uma proposta
irrecusável. No bilhete, havia a condição de que fossem no conversível alugado, ale-
gando questões de segurança...
— ...e eles não desconfiaram de nada! — Sam completou satisfeito.
— Joe ficará furioso quando descobrir que Maddie planejou tudo isso!
O casal trocou um olhar cúmplice.
— Ele já sabe. Nós nos atrasamos porque tivemos de encontrar alguém para
ficar com Susie, e Joe estava no hotel quando chegamos.
— Ele falou com Anthony?
— Sim. Joe foi o primeiro a lhe mostrar os flagrantes. — Sam riu ao se lembrar.
— Ele comentou que o sr. de Salvo ficou tão impressionado com o talento de Maddie
que picou as cópias em mil pedaços!
— Quando chegamos, Joe já estava conversando com ele — Cassie continuou —
Concordou em retirar a queixa no mesmo instante em que soube que as fotografias
poderiam ir para jornais de Chicago. Além disso, Joe inventou uma história de que
enviara os negativos para seu advogado, com uma carta explicando que abrisse apenas
se fosse instruído. Não foi preciso mais nada para que Anthony concordasse
prontamente em dizer a verdade.
— Então, ele disse que comprara a coleção de Gertrude Hardt por uma ninharia
e que a dera para você em uma tentativa de reconquistá-la... — Sam prosseguiu
enquanto a esposa tomava um gole de café — Claro que sabia que eram roubadas, e
tentou se proteger para o caso de haver alguma investigação.
— Patife! — Suzanne exclamou por entre os dentes.

261
Depois da Chuva Karen White

— E você não sabe da melhor parte! — Antes de ir, Joe pegou um minigravador
com Hall Newcbmb e gravou toda a conversa!
— Bem, mas tudo que importa agora é que ele retirou todas as queixas e voltou
para Chicago no primeiro vôo desta manhã.
— Cassie sorriu com satisfação — Acho que você ficou livre de Anthony de
Salvo de uma vez por todas, querida!
— Nem que eu viva uma eternidade poderei recompensá-los por tudo que
fizeram por mim. Eu... — Suzanne suspirou, sem encontrar palavras para expressar a
gratidão que sentia — Não sei o que dizer...
— Não precisa dizer nada. Apenas fique — Cassie tomou a mão de Suzanne com
carinho.
— Joe vai usar as fotografias para dissuadir Stinky de concorrer ao cargo de
prefeito? — Indagou, mudando rapidamente de assunto.
— Ele disse que vai usá-las apenas para ajudar a convencê-lo a não abrir queixa
contra Maddie e os rapazes, mas quer ganhar a eleição de uma forma justa — Sam
informou, orgulhoso do amigo.
— Ele é um homem admirável! — Suzanne exclamou em um murmúrio.
— E, então, o que vai fazer, agora que está livre de Anthony de Salvo? — Cassie
quis saber.
— Acho que vou viajar por algum tempo e conhecer um pouco mais do Sul —
Tentou sorrir, ignorando a sombra escura que invadia seu coração — Talvez encontre
uma cidade onde possa montar um estúdio fotográfico.
— Por que não faz isso aqui mesmo? Garanto que teria uma clientela formidável!
E você sabe que eu ficaria feliz em fazer a propaganda de seu negócio.
— Obrigada, Cassie. Eu também adoraria, mas não posso encarar Joe todos os
dias da minha vida. Ele deixou claro que não há espaço para mim na vida dele.
Sam e Cassie beberam um gole do café, sem fazer comentário algum.
— Além disso, já fiz tudo que tinha para fazer nesta cidade. Aliás, só falta uma
coisa... — Abriu a bolsa para se certificar de que o envelope estava lá — Já estou com
os negativos de Maddie e vou enviá-los para a revista Lifetime amanhã mesmo. Será a
prova definitiva de que Charles Harden fraudou o concurso.
— Isso será maravilhoso! — Cassie enviou ao marido um olhar significativo antes
de voltar-se para ela — Nós não vamos dizer-lhe adeus.

262
Depois da Chuva Karen White

Suzanne estendeu os braços sobre a mesa e sentiu o contato quente e


acolhedor das mãos de seus amigos sobre as suas.
— Adeus, Cassie e Sam. Vou sentir falta de vocês — Ergueu-se e saiu
rapidamente, antes que vissem as lágrimas em seus olhos.

263
Depois da Chuva Karen White

Capítulo XXV

Suzanne sorriu para o sr. John Carlston e apoiou-se no balcão da loja de


conveniência, a mesma que entrara naquela noite de outono, meses atrás, quando
chegara a Walton pela primeira vez.
— Srta. Paris! Eu não esperava vê-la tão cedo. Na semana passada, quando
deixou a cidade, a senhorita disse que não voltaria mais...
— Eu também não esperava voltar, sr. Carlston, mas aqui estou. No entanto, já
estou de partida mais uma vez — E meneou a cabeça, sensibilizada pela expressão
desolada no rosto marcado pelos anos.
— Que pena... — Os olhos azuis se estreitaram — Achei que, finalmente,
teríamos um estúdio fotográfico na cidade...
— Oh, infelizmente, não será desta vez — E retirou a carteira da bolsa. — O
senhor poderia trocar uma nota de cem dólares para eu comprar a passagem do
ônibus? — Quando colocou a nota sobre o balcão, um burburinho à frente da loja
chamou-lhe a atenção.
Amanda Warner, Knoxie, Joey e Sarah Francês irromperam para o interior
assim que a porta se abriu, correndo para a prateleira de doces com gritinhos de
alegria. Voltou-se para eles com uma pergunta nos olhos quando a voz profunda e grave
soou atrás dela.
— Já me disseram, certa vez, que não há leis neste Estado...
O coração de Suzanne perdeu um compasso. Levou alguns segundos para se
virar, receando que fosse apenas uma alucinação.
A primeira coisa que viu foram os olhos, e a alegria e esperança que os
iluminavam pareceram-lhe inéditas. Pousou o, olhar nos lábios sensuais, que exibiam um
sorriso genuíno, quente e acolhedor.
Uma onda de desejo começou a pulsar dentro dela, fazendo despertar em seu
corpo as sensações inesquecíveis gravadas em sua memória.
Abaixou os olhos para Harry, agarrado às pernas do pai, e sorriu ao notar as
pequeninas botas de caubói escondendo a barra da calça amassada do pijama.
— O que aconteceu? Lucinda o abandonou mais uma vez

264
Depois da Chuva Karen White

— Não exatamente — Ergueu os ombros, desolado. — Ela disse que não vai me
ajudar até que eu tenha readquirido o bom senso.
Suzanne relanceou o olhar para Maddie, parada a poucos passos dali, fingindo
não prestar atenção à conversa.
— Readquirir o bom senso? — Repetiu, esperando que ele explicasse.
— Sim. Ela disse alguma coisa sobre eu ter esquecido tudo que aprendi sobre
perdão e compreensão...
— Não teria sido Maddie quem lhe disse isso?
— Não importa. Ambas estão certas.
— É mesmo? Elas estão certas? — Ecoou, sentindo-se ridícula por repetir tudo
que ele dizia.
Joe meneou a cabeça em afirmativa, constrangido como um adolescente.
O problema era que trabalhara para aquele desempenho por muito tempo e a
reação de Suzanne não era a mesma que antecipara.
Passara horas diante do espelho pensando nas melhores palavras para dizer...
Porém, ao se defrontar com Suzanne, seu cérebro pareceu ter se dissolvido! O único
fato do qual tinha consciência era o pulsar do coração, que parecia ser o único órgão
funcionando em seu corpo.
Depois de se torturar internamente na tentativa de se lembrar das palavras que
havia decorado, decidiu dar voz à emoção.
— Por favor, fique. Sei que fui um idiota por ter sido hostil com você, quando
voltou para me tirar da prisão... Meu Deus, quando penso que permiti que passasse uma
noite presa, tenho vontade de morrer! Sei que não mereço que você nem sequer fale
comigo, mas quero que fique.
Os olhos castanho-esverdeados pousaram em Suzanne, fazendo-a estremecer.
Retraiu os ombros, como sempre fazia em momentos de tensão, e descobriu que
estava tão ansiosa que não conseguia se mover.
— Por quê? — Balbuciou, esforçando-se por encontrar a voz.
— Porque a amo — Foi a resposta simples e direta — Porque quero passar o
resto da minha vida com você.
Suzanne percebeu que se esquecera de respirar e inalou profundamente.
— Mas não temos quase nada em comum...
— É verdade — concordou ele, receando o pior.

265
Depois da Chuva Karen White

— E uso anel no dedo do pé, o que é quase insuportável para você.


— Você pode não acreditar, mas descobri recentemente que não há nada mais
charmoso...
Ela tentou retribuir ao sorriso, mas estava tão tensa, que o máximo que
conseguiu fazer foi uma careta.
— O que posso lhe dar que você já não tenha?
— Você! — Joe deu um passo à frente, arrastando Harry consigo.
Foi então que ela notou que todas as crianças, com exceção de Maddie, haviam
se colocado por detrás do pai.
— Case-se conosco, Suzanne — Amanda disse com um sorriso encantador.
— Sim... Case-se conosco, meu amor! — Ergueu o rosto e deparou com os olhos
de Joe, profundos e solenes, e qualquer dúvida que pudesse ter se evaporou no mesmo
instante.
De súbito, uma imagem invadiu sua lembrança. Rememorou o canteiro de
amores-perfeitos que ela e Joe haviam plantado juntos, as mãos se tocando enquanto
mexiam na terra fértil... Mesmo estando no inverno, aquele era o canteiro mais florido
do jardim!
Lembrou-se da série de moedas reluzentes que pareciam brotar do nada e que
Darlene insistia em afirmar que eram moedas do céu. Por mais descrente que fosse,
passara a confiar que significavam um sinal de otimismo e esperança. Depois de viver
por alguns meses em Walton, passara a acreditar em bênçãos do céu.
Sim, pensou, emudecida pela grandeza da realidade. Sim, sim, sim!
— Sim! — Gritou finalmente, atirando-se nos braços de Joe. As bocas se uniram,
e um mundo de sensações a dominou. As crianças aplaudiram, aos gritos, amontoando-
se ao redor deles e Harry escalou as pernas do pai para pular nos braços de Suzanne.
— Você vai morar comigo, tia Suzanne?
— Sim, meu anjo. Todos nós vamos morar juntos...

266
Depois da Chuva Karen White

Epílogo

Suzanne se sentou ao lado de Joe nos degraus da varanda. O cheiro da grama


molhada misturava-se à tinta fresca, em uma combinação agradável que a fazia
lembrar renovação e vida.
Aquela não seria mais a casa abandonada de Sam por muito tempo. Depois do
casamento, tornar-se-ia o novo lar da família Warner, um lugar para novos começos e
novos sonhos a se realizarem... Sonhos que Suzanne finalmente se permitira ter.
Depois de ter devolvido aos herdeiros de Gertrude Hardt o dinheiro que
conseguira com a venda das fotografias, o advogado de Joe movera um processo por
difamação e calúnia contra Anthony de Salvo. Suzanne o vira ainda uma vez, quando

267
Depois da Chuva Karen White

voltara a Walton para fazer um acordo com Joe. Compraram a casa de Sam com a
quantia que Anthony desembolsara para que as acusações fossem retiradas.
Ela sorriu secretamente ao pensar que a situação havia se invertido. A chuva
caíra sobre Anthony de Salvo enquanto para ela começara a brilhar o mais radiante
sol.
Olhou para as gotas de chuva acumuladas nas folhas da hera no pilar da varanda.
A tempestade que caíra sobre a cidade durante a cerimônia de formatura de Maddie
não abatera o ânimo dos jovens alegres que recebiam seus diplomas.
Sentira-se tão orgulhosa de Maddie que não pudera conter o sorriso por horas.
Ao receber o canudo com o certificado, ela o erguera e procurara Suzanne em meio à
platéia que lotava o salão de audiências da escola para enviar-lhe um olhar de gratidão.
Sim, Maddie era especial, pensou com ternura.
Ela já lhe havia perdoado antes mesmo de saber que conseguira revogar a
classificação de Charles Harden no concurso da revista Lifetime.
Sorriu ao se lembrar da expressão de júbilo no rosto jovial ao receber a
correspondência enviada diretamente pelo editor-chefe da revista...
Além de ter recebido a justa classificação de primeira colocada, a fotografia
que enviara para concorrer sairia na capa da edição seguinte. Mas o que realmente
deixara Maddie exultante fora a reportagem de três páginas sobre a jovem fotógrafa
que conseguira, de uma só vez, o primeiro e o segundo lugar do mesmo concurso. Ela
fizera apenas uma exigência: que aparecesse ao lado de sua mestra e tutora na
fotografia no alto da página.
Uma profunda onda de esperança a aqueceu ao pensar que o futuro de Maddie
seria brilhante, não apenas por ter conseguido a bolsa de estudos para a Escola de
Arte de São Francisco, mas pela inteligência e sensibilidade daquela jovem a quem
aprendera a amar desde o primeiro momento em que a vira.
— No que está pensando? — A voz de Joe tirou-a de seus devaneios.
— Em Maddie. Estou tão feliz por ela!
— Eu também, embora ainda não tenha aceitado completamente a idéia de ver
minha filha se mudar para São Francisco... — Confessou desolado.
— Eu entendo o que está sentindo. Sabe, a única coisa que me consola é que,
quando ela voltar para casa nas férias de verão, nós a teremos em tempo integral!
— Isto é, se Rob permitir...
Mais convidados chegavam para a festa, e Joe se levantou para recebê-los.
Conduziu-os até a porta e voltou a se sentar ao lado de Suzanne.
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Depois da Chuva Karen White

Bill e Sweet pea Crandall apareceram logo depois. Ambos se levantaram quando
o casal se aproximou para cumprimentá-los.
— Prefeito Warner, parabéns pela anexação do bosque ao nosso município. Não
sei como você conseguiu isso!
— Obrigado, Bill. Não foi tão difícil, depois que toda a população de Walton se
dispôs a ajudar. Acredite, eu não teria conseguido nada sozinho. Agora, os limites do
nosso vilarejo se expandiram.
— Ouvi dizer que, logo que soube que havia perdido a eleição por uma
esmagadora diferença, Stinky Harden fugiu para o México.
— Não sei se foi para lá por causa da humilhação ou se estava tentando se
esconder dos credores — Sweet pea Crandall comentou com uma risada.
— Espero que nunca mais coloque os pés aqui! — Joe desabafou, passando o
braço pelos ombros de Suzanne.
— Querida, acabei de ver o álbum de Maddie e é simplesmente a coisa mais
bonita que já vi!
— Obrigada, sra. Crandall, mas o mérito não é só meu. Foi Harriet quem
começou a fazê-lo. Eu não fiz nada mais do que tentar preservar a intenção dela ao
criá-lo.
— Oh, eu sei. Parece até que vocês duas trabalharam juntas.
— Tem razão — Joe tomou as mãos de Suzanne com orgulho — Foi um trabalho
maravilhoso.
— Adorei o álbum que você fez de Cassie e Susie. Eu disse a ela que poderia
ficar rica se enviasse as fotos para uma agência de modelos. Posso até ver o rostinho
rosado em um comercial de fraldas ou comida de bebê! — E abaixou a voz, para dizer:
— Se você puder fazer com que eu fique tão bonita em um retrato, seu estúdio vai ser
um sucesso estrondoso!
— Ela é só uma fotógrafa, Sweet pea. Suzanne não faz milagres. — Bill Crandall
riu com vontade.
A sra. Crandall deu uma palmada no ombro do marido.
— Obrigada por nos convidar para a festa de Maddie, Joe. Eu dei-lhe uma
frigideira para fazer panquecas, mas não tenho certeza de que será útil em São
Francisco. Por favor, diga-lhe que pode trocar por um escorredor de macarrão, ou algo
parecido.
— Não se preocupe, sra. Crandall. Obrigado.

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Depois da Chuva Karen White

— Vamos, meu bem. Não quero perder o episódio de hoje da Roda da Fortuna.
Bill Crandall abriu uma imensa sombrinha e puxou a esposa para si, passando o
braço sobre os ombros dela.
— Fique mais perto, querida, você não pode se molhar — Virou-se para Joe e
deu uma piscadela maliciosa — Açúcar derrete na chuva, e não queremos que você faça
uma poça de melado nos degraus da casa nova de Suzanne e Joe.
Beijou a esposa na testa, conduzindo-a para fora. Joe e Suzanne os observaram
com um sorriso até que viras-sem a esquina.
— Está pronta para entrar?
— Humm. Vamos ficar mais um pouco... Toda aquela energia juvenil é intensa
demais para mim — Acariciou o rosto viril, sentindo a barba espessa despontando na
região do queixo — Sabe, eu chego a invejar Lucinda... Ela parece estar em seu
elemento, especialmente tendo o xerife Adams a seu lado.
Descansou a cabeça nos ombros largos e sorriu ao ver as gotas de chuva
acariciarem o canteiro de amores-perfeitos que haviam plantado juntos.
— Sabe de uma coisa? Estou adorando ficar aqui, ouvindo a chuva cair, sentada
a seu lado... Creio que nunca fiz isso antes.
Ficaram abraçados em silêncio por um longo tempo até que, a porta da frente se
abriu e Ed Farrel e a sra. Lena saíram.
Joe se pôs de pé enquanto Ed ajudava a mãe a colocar o xale cor-de-rosa nos
ombros.
— Você já deu o presente de Maddie, querida? — A sra. Lena indagou, fitando-a
em expectativa.
— Ainda não tive oportunidade.
— Oh, tenho certeza de que ela vai adorar!
— Acredito que sim. — Suzanne endereçou-lhe um sorriso terno.
— Você não precisa mais dele. Já encontrou seu próprio coração.
— Tem toda razão, sra. Lena — E tomou a mão de Joe para levá-la ao peito.
— Querida, todos os apostadores ficaram desolados por não haver vencedores
no banco de apostas...
— Mamãe! — Ed ralhou com ar severo.
— Ora, pare de me recriminar! Ela precisa saber que o palpite "defendendo a
própria pele" não foi cogitado!
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Depois da Chuva Karen White

Todos riram do comentário, com exceção de Ed Farrel, que parecia constrangido


pela indiscrição da sra. Lena.
— Mamãe me contou que vocês vão passar a lua-de-mel em Paris — Apressou-se
em dizer, tentando mudar de assunto.
— Foi idéia de Suzanne. Ela me garantiu que não vou morrer de fome sem meus
ovos com bacon no café da manhã por duas semanas. Espero que esteja certa.
— Oh, isso me faz lembrar... — Um sorriso iluminou o rosto da sra. Lena. —
Tenho um presente para você.
E abriu a imensa bolsa para tirar um grosso livro gasto pelo tempo.
— É para a lua-de-mel. Grifei em vermelho os trechos mais picantes — Pousou a
mão sobre o ombro de Joe — Sempre soube que vocês dois foram feitos um para o
outro! Estou tão feliz que você vai ter uma vida sexual ativa novamente!
— Vamos, mamãe! Você precisa tomar sua pílula! — Embaraçado, Ed puxou-a pelo
braço.
Abriu a sombrinha e a escoltou para a calçada, e Joe e Suzanne ainda puderam
ouviram os protestos indignados enquanto se afastavam:
— Não preciso de pílulas! Minha memória está muito melhor que a sua! Só porque
mencionei sexo e tenho oitenta e três anos, as pessoas acham que perdi o juízo!
Ambos riram, e Suzanne acompanhou a adorável senhora com olhar enternecido
até perdê-la de vista.
— Você tem certeza de que quer ficar em Walton comigo? — Joe provocou com
um sorriso, sentando-se no degrau.— Aqui, todos são meio malucos.
— Certeza absoluta! É exatamente isso que me faz sentir perfeitamente
normal!
Ele beijou-a de leve nos lábios e o contato se aprofundou, interrompendo-se
com a chegada de Maddie.
— Estava procurando por vocês. Devia ter imaginado que estariam namorando
aqui fora.
Suzanne se afastou e abriu espaço entre ela e Joe.
— Sente-se aqui. Estava esperando para lhe dar seu presente de formatura.
— Mais um presente? Você já me deu o álbum. Meus amigos estão disputando
para vê-lo, e todos ficaram morrendo de inveja!
— Todos poderão ter um desse quando meu estúdio estiver funcionando.

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Depois da Chuva Karen White

— Foi exatamente isso que Darlene disse! Ela devia ganhar comissão pela
propaganda sobre seu estúdio fotográfico.
— Quero lhe dar outro presente além do álbum.
— Espere um pouco! — Maddie ergueu a mão. — Eu também tenho um presente
para você. Encontrei esta manhã no meu vestido e não estava lá ontem à noite.
Perguntei a tia Lucinda, ela também não soube dizer de onde apareceu... Então,
concluímos que é uma moeda do céu e decidi dá-la a você como talismã de boa sorte
para o casamento.
Suzanne estendeu a mão e apanhou a moeda. De alguma forma, conseguiu
controlar o tremor na voz.
— Obrigada — Conteve as lágrimas enquanto levava as mãos por detrás do
pescoço e abria o fecho da gargantilha — Quero que fique com isso — Murmurou,
colocando a corrente no pescoço de Maddie — Minha mãe me deu quando eu mais
precisava e agora quero dá-la a você — Olhou para o pingente repousando no colo de
Maddie e viu o amor e a esperança que sua mãe depositara nele, muitos anos atrás. Já
não precisava mais do pequeno coração de ouro. Estava na hora de passá-lo para
alguém que ainda fosse necessitar dele.
— Uma vida sem chuva é como um sol sem sombra — Ouviu Joe ler a inscrição
em voz alta, os olhos verdes inundando-se de lágrimas — Sua mãe estava certa.
Suzanne abraçou-a, aninhando-a em seu peito. Acariciou os cabelos perfumados,
sentindo as lágrimas quentes molharem seu ombro.
Tudo mudara em sua vida. Finalmente aceitara o amor da mãe, assim como sua
própria necessidade de amar e ser amada. Joe e Maddie haviam se tornado parte
fundamental para que sua mudança acontecesse, pois foram os primeiros a fazer com
que descobrisse os dois tipos de amor essenciais à vida: o amor maternal e o amor
entre um homem e uma mulher.
Eles também estavam amargurados com a perda que haviam sofrido, e seus
caminhos haviam se cruzado como se não pudesse ser diferente. Como se, de alguma
forma, o universo conspirasse para que aquele encontro acontecesse.
— Oh, vejam isso! — Maddie apontou para o céu antes de levantar e sair.
Então, Suzanne notou que a chuva finalmente havia cessado e um brilhante e
imponente arco-íris brilhava no céu, como se pudesse iluminar os recantos mais
escuros da Terra.
— Se você não esperar pela chuva, jamais verá o arco-íris — Murmurou, feliz
por ter entendido o significado pleno daquela frase.

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Depois da Chuva Karen White

Joe a abraçou pela cintura delgada, beijando-a ternamente na testa.


Suzanne suspirou ao sentir que poderia contar com o braço forte para ampará-
la. Olhou para as cores brilhantes do arco-íris quase acreditando que podia sentir o
movimento da terra fechando um ciclo que completava uma jornada.
— Obrigado — Joe sussurrou-lhe ao ouvido.
— Pelo quê?
— Pelo que fez por Maddie e pelo que fez por mim. Quero passar o resto de
minha vida demonstrando minha gratidão.
— Meu amor... — Sussurrou ela, entregando-se ao beijo apaixonado.
Naquele momento, a chuva voltou a cair, as gotas tamborilando no telhado em
um ritmo suave, ao mesmo tempo que o sol continuava a bilhar.
Permaneceram ali, abraçados, assistindo ao maravilhoso espetáculo
proporcionado pela natureza.
As cores resplandecentes do arco-íris sobre o céu de Walton iluminavam as
esperanças e os sonhos, e a Terra continuava a girar em seu eixo, trazendo chuva e
sol, inverno e verão, alegrias e tristezas.
Suzanne percebeu que a vida sempre fora daquela forma e provavelmente
sempre seria... A única diferença era que finalmente encontrara seu lugar na
infindável vastidão do mundo.

****** FIM******

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