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MARIE-CATHERINE

LE JUMEL DE BARNEVILLE
MADAME D’AULNOY

TEXTO INTEGRAL TRADUZIDO POR


PAULO CÉSAR RIBEIRO FILHO
© Copyright desta edição: Paulo César Ribeiro Filho, 2021.
SOBRE A AUTORA

Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, a Madame


d’Aulnoy, nasceu em 1652 na pequena vila de Barneville-la-
Bertrand. Casou-se em 8 de março de 1666 com François de La
Motte, barão d’Aulnoy, quando tinha por volta de catorze anos.
Depois de uma separação marcada por grandes polêmicas,
Marie-Catherine passa alguns anos fora da França, transitando
entre a Espanha e a Inglaterra. Sua primeira publicação, um
romance intitulado História de Hipólito, Conde de Duglas (1690)
entrou para a história da literatura mundial por conter o
primeiro conto de fadas literário de que se tem notícia: A Ilha da
Felicidade. Amparado por Zéfiro, deus-vento do Oeste, o
príncipe russo Adolfo protagoniza uma aventura romântica na ilha
inacessível governada pela princesa Felicidade.
Um ano mais tarde, em 1691, Marie-Catherine publica mais duas
obras: Memórias da Corte da Espanha e Relatos da Viagem pela
Espanha. Neste último, mais um relato fantástico, a História de Mira,
que narra a vida e a morte da princesa Mira, mulher cujo olhar fatal
é tão letal quanto o do Basilisco. A Ilha da Felicidade e a História de
Mira são títulos atribuídos a episódios enquadrados em uma
narrativa maior, indiscriminados no
interior das obras em que figuram.
Ainda em 1691, a Madame d’Aulnoy publica sua primeira
paráfrase de um salmo bíblico, Sentimentos de uma Alma Penitente.
Em 1692, é publicado seu romance histórico História de Jean de
Bourbon, Príncipe de Carency e a coletânea Novelas Espanholas.
No ano seguinte, vem à lume uma segunda paráfrase de textos
bíblicos, intitulada O Retorno de uma Alma a Deus, e também as
suas Novelas ou Memórias Históricas, contendo relatos
sobre alguns dos acontecimentos mais importantes da história
da Europa entre 1672 e 1679. Em 1694, Marie-Catherine publica
Memórias da Corte da Inglaterra.
É entre 1696 e 1697 que a primeira edição de seus Contos de
Fadas é publicada. Nessa ocasião, Madame d’Aulnoy instaurou
mais um importante marco na história da literatura: a cunhagem do
termo “conto de fadas”, designação que passou a ser popularmente
atribuída a todo conto ou relato de natureza maravilhosa. Dividida
em quatro tomos, a obra apresenta quinze contos de fadas e duas
novelas. Em 1698, Marie-Catherine lança Novos Contos ou A Moda
das Fadas, contendo mais oito contos e uma novela. Sua última
publicação, O Conde de Warwick, data de 1704.
A autora faleceu em Paris a 14 de janeiro de 1705.
SOBRE O TRADUTOR

Paulo César Ribeiro Filho, é doutorando em Estudos


Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, área de
Literatura Infantil e Juvenil, pela Universidade de São Paulo,
orientado pela Prof.ª Dr.ª Maria Zilda da Cunha. Para formular sua
tese de doutorado, traduziu a contística completa de Marie-
Catherine Le Jumel de Barneville a fim de analisá-la sob as
perspectivas da história cultural e da narratologia estrutural. É
mestre em Literatura Portuguesa, bacharel e licenciado em Letras
pela mesma instituição. Realizou estágios de investigação na
Universidade Nova de Lisboa e na Universidade do Minho, em
Portugal. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES).

A ILHA DA FELICIDADE

A Rússia é um país frio onde os belos dias de um clima


temperado raramente são vistos: suas montanhas estão quase
sempre cobertas de neve e as árvores ficam tão carregadas de
sincelos que quando o Sol lança seus raios sobre elas é como se
estivessem enfeitadas de cristais. Lá existem florestas de prodigiosa
grandeza onde ursos brancos causam estragos terríveis. Os
homens guerreiam incessantemente contra eles, e os matam, mas o
fazem com dificuldade e correndo perigo; tal atividade de caça é
tanto a mais nobre quanto a mais ordinária ocupação dos russos.
Houve uma vez em que esses povos foram governados por um
jovem príncipe chamado Adolfo, tão bem nascido, tão belo, tão
educado e espirituoso que era difícil acreditar que alguém tão bem-
aventurado pudesse ser encontrado em um país tão rude e
selvagem. Ele ainda não havia completado seu vigésimo aniversário
quando empreendeu uma grande guerra contra os Moscovitas, na
qual demonstrou uma coragem intrépida e liderança admirável.
Quando concedia descanso ao seu exército, ele mesmo não
descansava, e seguia rumo à perigosa caça aos ursos.
Um dia em que estava acompanhado de uma grande comitiva,
Adolfo se entregou de tal modo à sua nobre paixão que,
embrenhando-se pela floresta, percorreu diferentes trilhas até que
se perdeu. Logo notou que estava sozinho, que era tarde, que não
sabia onde estava e que uma inesperada tempestade o pegaria de
surpresa. Conduziu seu cavalo por uma larga vereda e soprou a
corneta de caça para chamar a atenção de algum de seus homens,
mas foi em vão. De repente, a escassa luz remanescente do dia deu
lugar à mais obscura noite; só se enxergava algo quando
relampejava. Os trovões faziam estrondos terríveis; a chuva e a
tempestade aumentavam. O príncipe abrigou-se debaixo de
algumas árvores, mas logo foi obrigado a deixar aquela paragem:
torrentes d’água fluíam por toda parte e as trilhas foram inundadas.
Decidiu sair da floresta e procurar por qualquer local onde pudesse
encontrar abrigo de tão grande temporal. Pelejou com dificuldade
para alcançar uma campanha, onde se viu ainda mais exposto ao
impetuoso clima. Olhou ao redor e notou algumas luzes em um
lugar muito elevado. Seguiu naquela direção e, depois de muito
sacrifício, chegou aos pés de um monte praticamente inacessível,
cheio de rochas, cercado por precipícios muito escarpados.
Prosseguiu em marcha por mais de duas horas, às vezes a pé,
outras montado em seu cavalo, até que finalmente encontrou-se
próximo a uma grande caverna, de cuja abertura irradiava a luz que
havia observado. Hesitou um pouco antes de entrar; cogitou que
aquele poderia ser o esconderijo de alguns salteadores que
assolavam o país com frequentes incursões, os quais poderiam
matá-lo e roubá-lo; mas como as almas dos príncipes possuem
nobreza e orgulho tais que os distinguem dos outros homens,
repreendeu a si mesmo por seu medo e avançou para dentro da
caverna com sua espada em mãos, a fim de estar pronto para
defender-se caso alguém fosse corajoso o bastante para atacá-lo.
Assim que entrou, sentiu um frio tão intenso que pensou que fosse
morrer.
Por causa do barulho que fizera ao entrar, uma anciã de cabelos
brancos, cujo excesso de rugas denunciava sua copiosa idade,
surgiu do interior de uma rocha. Ela expressou extremo assombro
ao abordá-lo:
— Sois o primeiro mortal que tenho visto neste lugar — disse-lhe
ela. — Sabeis, senhor, quem aqui habita?
— Não, minha boa mulher — respondeu Adolfo. — Não sei onde
estou.
— Esta é a morada de Éolo[1], o deus dos ventos — ela afirmou.
— É aqui que ele se recolhe com todos os seus filhos; eu sou a mãe
deles. Encontro-me sozinha pois todos estão ocupados, cada um
por si, operando benesses ou malefícios pelo mundo. Pareceis
encharcado pela chuva que acabou de cair. Eu vos aquecerei com
fogo a fim de vos secar. O que me entristece, senhor, é que vos farei
má hospedagem; os ventos fazem refeições muito leves e os
homens precisam se alimentar de algo mais sólido.
O príncipe agradeceu pela gentil acolhida que havia recebido e
se aproximou do fogo, que fulgurou por um momento com a
chegada do vento Oeste no recinto. Instantes depois, o vento
Nordeste e muitos Aquilons também retornaram à caverna. Éolo não
tardou; Bóreas e os ventos Leste, Sudoeste e Norte vieram em
seguida. Estavam todos úmidos, com as bochechas entumescidas e
os cabelos despenteados. Seus modos não eram muito civilizados
nem educados, e, quando começaram a falar com o príncipe, quase
o congelaram com seu hálito. Um deles relatou que havia
dispersado uma armada naval inteira; outro, que havia causado o
naufrágio de várias embarcações; um terceiro disse que era
favorável a certos navios e os salvara de corsários que queriam
saqueá-los; muitos ventos reportaram que haviam arrancado
árvores, destruído mansões e derrubado muralhas. Em suma, cada
um se vangloriava de suas próprias proezas. A anciã os escutava
até que, subitamente, demostrou uma grande inquietação.
— Algum de vós encontrou vosso irmão Zéfiro pelo caminho? —
ela questionou. — Já é tarde e ele ainda não regressou; confesso-
vos que estou aflita.
Enquanto todos diziam em uníssono que não o haviam visto,
Adolfo notou, na entrada da caverna, a presença de um jovem rapaz
tão belo quanto se pinta o Cupido. Tinha asas feitas de plumas
brancas mescladas com uma tonalidade cárnea, tão finas e tão
delicadas que pareciam estar em constante movimento; seus
cabelos loiros formavam milhares de cachos que caíam
graciosamente sobre seus ombros; sua cabeça estava cingida por
uma coroa de rosas e jasmins; seu semblante era risonho e
agradável.
— De onde viestes, pequeno libertino? — indagou a velha
senhora, com uma voz enrouquecida. — Todos os vossos irmãos
estão aqui; sois o único que passa o tempo divertindo-se e que não
se importa com a preocupação que causa.
— Minha mãe — disse ele. — Regressei tão tarde pois tive
problemas, bem sei que não gostais; mas estive nos jardins da
princesa Felicidade. Ela estava passeando por lá com suas ninfas;
uma lhe fez uma guirlanda de flores; outra, que estava deitada na
relva, descerrou os lábios para conceder-me a liberdade de
aproximar-me dela e dar-lhe um beijo; muitas dançavam ao som de
canções. A bela princesa estava num pomar de laranjas. Meu sopro
estufou o seu peito. Diverti-me ao seu redor e docemente agitei seu
véu. “Zéfiro”, disse-me ela, “Como és agradável, como me fazes
feliz! Enquanto estiveres aqui, continuarei caminhando...”. Devo
confessar-vos que estas doces palavras proferidas por tão
charmosa criatura encantaram-me de tal forma que quase perdi meu
autocontrole, e não teria sido capaz de deixá-la se não soubesse o
quanto isso iria desagradar-vos, minha mãe.
Adolfo o escutava com tanta satisfação que lamentou quando
parou de falar.
— Permiti-me, amável Zéfiro, perguntar-vos em que país reina
esta princesa! — disse-lhe ele.
— Trata-se da ilha da Felicidade — respondeu-lhe Zéfiro. —
Ninguém, senhor, pode adentrá-la; muitos não se cansam de
procurá-la, mas a sina dos homens é tal que nenhum deles pode
encontrá-la. Viajam inutilmente por todos os lados, alguns até se
gabam de ter chegado lá, pois às vezes atracam em outros
pequenos portos onde encontram um pouco de calma e
tranquilidade. Várias pessoas ali permanecem com alegria, mas
essas ilhas, que muito parcamente se assemelham à ilha da
Felicidade, estão em constante movimento: em um instante as
encontram, e no instante seguinte as perdem de vista. O desejo de
desfrutar ao menos de uma sombra de repouso é que mantém os
mortais esperançosos em sua busca. Todos os dias vejo homens
distintos perecendo nos arredores da ilha.
O príncipe continuou a enchê-lo de questões, às quais Zéfiro
respondia com grande precisão e inteligência. Era extremamente
tarde e a boa mãe ordenou a todos os seus filhos que fossem para
seus respectivos átrios. Zéfiro ofereceu sua pequena cama ao
príncipe; ficava em um aposento muito limpo e menos frio do que as
outras cavernas daquela gruta. Naquele recinto crescia uma discreta
e fina camada de grama coberta de flores; Adolfo deitou-se ali e
passou o restante da noite com Zéfiro, falando o tempo todo sobre a
princesa Felicidade.
— O quanto eu adoraria vê-la! — dizia ele. — É algo tão
absolutamente impossível que nem com o vosso auxílio eu seria
capaz de conseguir?
Zéfiro afirmou-lhe que a jornada seria muito perigosa, mas que
se ele tivesse coragem o bastante para obedecer aos seus
comandos, poderia haver uma maneira: colocá-lo-ia sobre suas
asas e o carregaria pelos vastos espaços etéreos.
— Possuo um manto mágico que doarei a vós — ele prosseguiu.
— Quando vesti-lo do lado verde, sereis invisível. Pessoa alguma
vos enxergará e essa é uma medida indispensável para a
conservação da vossa vida, pois, não importa o quão bravo sejais,
caso os guardiões da ilha, que são monstros terríveis, virem-vos,
logo sucumbireis, e penosos males vos acometerão.
Adolfo nutria um desejo tão urgente de viver essa grande
aventura que prontamente aceitou de todo coração as condições
que Zéfiro lhe propusera, independentemente dos perigos que
pudesse enfrentar.
Tão logo a aurora despontou em sua carruagem de
madrepérolas, o impaciente Adolfo acordou Zéfiro, que ainda estava
um pouco sonolento.
— Não vos deixei repousar apropriadamente — disse o príncipe
enquanto o abraçava. — Mas parece-me, meu generoso anfitrião,
que já é hora de partir.
— Avante, senhor, avante — respondeu Zéfiro. — Longe de mim
reclamar. Devo agradecer-vos, pois confesso que estou enamorado
de uma rosa petulante e amotinada, e que estarei muito enrascado
se eu não estiver lá para vê-la logo ao raiar do dia. Ela está em um
dos canteiros da princesa Felicidade.
Ao proferir essas palavras, deu ao príncipe a capa que lhe havia
prometido e intentou carregá-lo em suas asas, mas não considerou
que essa maneira fosse conveniente.
— Carregar-vos-ei, senhor, da mesma forma que carreguei
Psiquê pelas ordens de Cupido quando a conduzi ao belo palácio
que ele lhe havia construído — disse ele.
Zéfiro tomou-lhe em seus braços e, posicionando-se à beira de
um rochedo, balançou-se por um tempo em movimento constante
até que abriu suas asas e iniciou seu voo, planando pelos ares.
Embora o príncipe fosse corajoso, não pôde evitar o sentimento
de medo ao ver-se elevado pelos braços de um jovem adolescente.
Para se reassegurar, recordou-se de que Zéfiro era um deus, e de
que o próprio amor, que parecia o menor e mais franzino de todos
os deuses, era o mais forte e mais terrível de todos eles. Deste
modo, entregando-se ao seu destino, recobrou o juízo e contemplou
atentamente todos os lugares sobre os quais voavam. Seria
possível contá-los? Havia tantas cidades, reinos, mares, rios,
campos, desertos, florestas, territórios desconhecidos e pessoas
diferentes! Todas essas miragens lhe causaram uma admiração
tamanha que até perdeu a fala. Zéfiro informou-lhe dos nomes e
costumes de todos aqueles habitantes da terra. Ele voava
docemente e os dois até repousaram sobre os formidáveis montes
do Cáucaso e do Athos, além de vários outros montes que
encontraram no caminho.
— Ainda que a bela rosa a quem adoro me fure com seus
espinhos, eu não posso vos fazer cruzar tamanha vastidão sem vos
dar o prazer de admirar as maravilhas que vedes — disse Zéfiro.
Adolfo expressou seu reconhecimento pela generosidade de
Zéfiro e, ao mesmo tempo, sua preocupação quanto à possibilidade
de a princesa Felicidade ser incapaz de compreender sua língua, e
vice-versa.
— Não vos afligis quanto a isso — disse o deus. — O
conhecimento da princesa é universal e estou convencido de que
em breve falareis a mesma língua.
Ele voou até que a tão desejada ilha enfim estivesse à vista.
Eram tantas as belezas que despontavam aos olhos do príncipe que
ele não podia deixar de crer que aquele era um lugar encantado. O
ar era perfumado com a fragrância do orvalho das excelentes águas
de Nafre e de Córdoba; a chuva cheirava a flor de laranjeira;
gêiseres se elevavam quase até as nuvens; as florestas abrigavam
árvores raras, e o chão era repleto de flores extraordinárias;
flúmenes mais claros que cristal fluíam por todos os lados com um
doce murmúrio; os pássaros performavam concertos superiores à
música dos grandes mestres; as frutas exóticas cresciam
naturalmente ali, e por toda a ilha era possível encontrar mesas
postas que eram cuidadosamente servidas tão logo se desejasse.
Mas o palácio ainda superava todo o resto: as paredes eram de
diamante, os pisos e as coberturas que formavam os aposentos
eram feitos de variadas pedras preciosas; ouro reluzia por todo
lugar; a mobília fora feita pelas mãos de fadas, as mais galantes
dentre todas. Tudo ali era tão bem feito que era impossível saber o
que admirar mais: a magnificência do palácio ou a sua decoração.
Zéfiro pousou o príncipe em uma graciosa relva verdejante e
disse-lhe:
— Senhor, mantive minha palavra; agora, cabe a vós fazer o
resto.
Eles se abraçaram. Adolfo o reverenciou adequadamente, e o
deus, impaciente para estar junto de sua amada, deixou-lhe
naqueles deleitosos jardins. O príncipe se aventurou por algumas
alamedas, viu grutas feitas exclusivamente para os prazeres e notou
numa delas uma estátua do amor esculpida em mármore branco,
tão bem feita que devia ter sido obra de algum excelente escultor.
De sua tocha jorrava um jato d’água ao invés de chamas; ele estava
apoiado contra uma rocha de cascalhos e parecia ler estes versos
que estavam gravados em uma pedra de lápis-lazúli:
Quem os prazeres do Amor preterir
Jamais provará da doçura real.
Só ele pode os desejos suprir
E dar à vida um tom jovial;
Sem ele os grandes bens não têm
charme nenhum que nos encante
E tudo o mais é insignificante.
Adolfo adentrou uma pérgula de madressilvas onde o sol não
podia dissipar as deleitosas sombras. E foi nesse lugar que, deitado
num tapete de grama ao redor de uma fonte, cedeu às doçuras da
sonolência; suas pálpebras pesadas e seu corpo fadigado
imploravam por algumas horas de repouso.
Estava perto do meio-dia quando ele despertou. Ficou
desapontado por ter perdido tanto tempo e, para se consolar, pôs-se
a avançar em direção ao palácio. Assim que chegou perto o
bastante, pôde vislumbrar as belezas com mais atenção do que
quando estava longe. Parecia que todas as artes haviam competido
com igual sucesso para contribuir com a magnificência e perfeição
daquela edificação. O manto do príncipe permanecia do lado verde,
de modo que ele tudo via sem ser visto. Por um longo tempo
procurou uma forma de entrar, mas o vestíbulo estava fechado e
talvez as portas do palácio ficassem em outro lugar. Não encontrava
nenhuma solução, até que viu uma pessoa muito bela abrindo uma
janela toda de cristal. No mesmo instante, um jardineiro pequenino
correu para o local e a figura que estava à janela entregou-lhe uma
grande cesta de filigrana de ouro, ataviada com muitos laços de
fitas. Ela lhe ordenou que fosse colher flores para a princesa; o
jardineiro não tardou em obedecê-la.
Então Adolfo infiltrou-se entre as flores, meteu-se no cesto e a
ninfa o carregou consigo para dentro. Crê-se, portanto, que o manto
verde não só o tornava invisível, mas também o deixava muitíssimo
leve. Seja como for, ele subiu alegremente à janela.
Assim que adentrou o palácio, lançou-se num imenso salão,
onde viu maravilhas bem difíceis de descrever. As ninfas estavam ali
em grande número; a mais velha não aparentava ter mais de
dezoito anos, e muitas pareciam ainda mais jovens. Algumas eram
loiras, outras morenas, e todas com tonicidade e viço admiráveis,
brancas, frescas, com traços regulares e dentes muito bonitos. Em
suma, todas essas ninfas poderiam se passar pelas mais perfeitas
pessoas. Adolfo teria ficado o dia inteiro admirando-as
continuamente sem sair daquele salão caso a sua curiosidade não
tivesse sido aguçada pelo som de numerosas vozes
maravilhosamente harmônicas, acompanhadas de instrumentos
excepcionalmente bem tocados. Ele avançou por uma câmara na
direção daquela agradável harmonia e, assim que adentrou o local,
ouviu as seguintes palavras sendo entoadas:
Sede ternos, sede fiéis,
Perseverai até o fim,
Amando, o coração de vosso amado tocareis,
Os tempos a tudo dão jeito, sim.
Vós que ardeis em mútuo amor,
Se do Destino o tão cruel rigor
Momentos felizes vos recusar,
Esperai uma estação melhor;
E tudo a seu tempo obter-se-á.
Tão logo o príncipe entrou no salão, pensou que nada poderia se
equiparar aos encantos que já havia visto; mas estava errado, pois a
beleza dos músicos ainda ultrapassava a das ninfas que os
acompanhavam. De alguma maneira prodigiosa, ele entendia tudo o
que era dito, mesmo desconhecendo a língua que era usada no
palácio. Adolfo estava bem atrás de uma das mais belas ninfas
quando seu véu escorregou para o chão; sem refletir que
provavelmente haveria de amedrontá-la, pegou o véu e o entregou a
ela. Como a ninfa não viu pessoa alguma, soltou um grande grito, e
talvez aquela fosse a primeira vez que alguém sentia medo naquele
lindo lugar. Todas as suas companheiras reuniram-se ao redor dela
e quiseram saber com urgência o que havia acontecido.
— Vós pensareis que estou vendo coisas — disse ela. — Mas eu
vos asseguro que meu véu veio a cair e voltou para minha mão
através de alguma força invisível.
Todas desataram a rir e várias ninfas correram para os
aposentos da princesa para entretê-la com esta história.
Adolfo as seguiu. Graças à capa verde, atravessou cômodos,
galerias e quartos anonimamente, até que finalmente alcançou o
gabinete da soberana. Ela estava assentada sobre um trono feito de
um único carbúnculo[2] mais radiante que o sol; os olhos da princesa
Felicidade, porém, eram muito mais brilhantes que o carbúnculo.
Sua beleza era tão perfeita que parecia ser filha dos céus. Um ar de
jovialidade e inteligência parecia pairar sobre sua pessoa, bem
como uma majestade que inspirava amor e respeito. Ela estava
vestida de maneira galante e magnificente: seus cabelos loiros
estavam ornados de flores e usava uma echarpe; suas vestes eram
de gaze mesclada de ouro; ao redor dela havia pequeninos amores
que gracejavam e divertiam-se de mil formas diferentes: alguns
pegavam suas mãos e as beijavam, outros escalavam o trono com a
ajuda de seus companheiros e colocavam uma coroa em sua
cabeça. Os prazeres também brincavam ao redor dela. Em suma,
tudo o que se possa imaginar de mais encantador ainda era pouco
comparado com o que se passava diante dos olhos do príncipe.
Mantinha-se ali como um homem arrebatado; suportava com
dificuldade o esplendor das belezas da princesa e, agitado diante de
tal êxtase, sem pensar em mais nada a não ser no objeto de sua
adoração, seu manto verde caiu no chão e ele se tornou visível.
A princesa, que jamais havia visto um homem, ficou
extremamente surpresa. Adolfo, por sua vez, ao notar que estava
descoberto, logo atirou-se aos seus pés com profundo respeito.
— Grande princesa — disse-lhe ele. — Atravessei o Universo
para vir admirar vossa divina beleza. Ofereço-vos meu coração e
minha devoção. Vós os recusareis?
A princesa, que normalmente era cheia de vivacidade,
permaneceu, no entanto, silente e interdita. Até aquele instante ela
nunca havia encontrado alguém tão amável a seus olhos quanto
aquela criatura, a qual ela acreditava ser única no mundo. Esse
pensamento a persuadiu a crer que ele era a tão famosa e muito
rara Fênix; convencida em seu engano, disse-lhe:
— Bela Fênix — disse-lhe ela. — (Pois não posso acreditar que
sejais outro alguém, já que sois tão perfeita e em nada vos
assemelhais com o que há em minha ilha), estou muito emocionada
por ter o prazer de ver-vos; é uma grande pena que sejais única
sobre a terra: pássaros como vós enfeitariam os mais belos aviários.
Adolfo riu daquilo que ela dizia com uma graça e uma
simplicidade maravilhosa. Ele não queria, entretanto, que a pessoa
por quem já sentia uma violenta paixão permanecesse crendo numa
inverdade que pudesse gerar qualquer sorte de desentendimento.
Logo tomou o cuidado de instruir-lhe a respeito de tudo sobre si;
estudante alguma jamais seria capaz de fazer lições sobre o que
acabara de aprender tal qual ela o faria naquele instante: sua
intuição natural ia além do que o príncipe poderia lhe dizer. Ela o
amou mais do que a si mesma, bem como ele a amava mais do que
a si mesmo. Toda doçura que há no amor, toda beleza e vivacidade
que há na mente, e toda delicadeza que há no coração era o que
estava presente no coração daqueles meigos amantes. Nada
poderia atrapalhar o repouso dos dois; tudo contribuía para seu
deleite, nunca ficavam doentes, para eles não havia nem mesmo o
mais leve incômodo e sua juventude em nada se alterava com o
passar os anos. Nesse delicioso lugar todos tomavam generosos
goles da água da Fonte da Juventude. Nem as inquietudes
amorosas, nem as suspeitas ciumentas, nem mesmo as discussões
mesquinhas que às vezes perturbam a tranquilidade das pessoas
que se amam e que lhes proporciona as doçuras de uma
reconciliação, nenhuma dessas coisas os acometia. Estavam
inebriados de prazeres, e até aquele momento mortal algum havia
desfrutado de uma boa fortuna tão constante quanto aquela do
príncipe. Mas sua condição de mortal trazia consigo tristes
consequências; suas bonanças não poderiam ser eternas.
Em um dia em que Adolfo estava com a princesa, ocorreu-lhe
perguntar por quanto tempo ele desfrutava do prazer de vê-la.
— Os momentos passam muito rapidamente aqui onde estais —
ele continuou. — Desde minha chegada, não prestei atenção
alguma no tempo.
— Eu vos direi — respondeu ela. — Mas primeiro dizei-me
quanto tempo pensais que possa ter passado.
Ele ponderou e disse:
— Se eu consultar meu coração e a satisfação que tenho
experimentado, não poderia senão crer que passei apenas oito dias
aqui; porém, minha querida princesa, consoante certas coisas que
me vêm à memória, devo presumir que faz aproximadamente três
meses.
— Adolfo — disse-lhe ela, com um ar mais sério. — Já faz
trezentos anos.
Ah, se ela tão somente soubesse o quanto aquelas palavras
iriam custá-la, jamais as teria pronunciado.
— Trezentos anos! — exclamou o príncipe. — Em que estado se
encontra o mundo? Quem o está governando agora mesmo? O que
fazem lá? Quando eu retornar, quem irá me reconhecer e quem eu
serei capaz de reconhecer? Meus domínios certamente terão caído
nas mãos de outras pessoas que não aquelas próximas a mim; não
ouso esperar que me reste alguma coisa. Serei um príncipe
defraudado, lembrarão de mim como um fantasma, não mais
conhecerei as maneiras nem os costumes daqueles com quem hei
de viver.
A princesa, impaciente, o interrompeu:
— De que vos arrependeis, Adolfo? Não seria esse o preço de
todo amor e de tantas gentilezas que tenho vos demonstrado? Eu
vos recebi em meu palácio, de onde sois o senhor, eu vos preservei
a vida por três séculos, não envelhecestes em nada quanto a vossa
aparência e até este momento não vos entediastes. O quanto disso
teríeis desfrutado sem mim?
— Não sou ingrato, bela princesa — ele replicou, um pouco
confuso. — Eu sei e sinto que devo tudo a vós. Mas se eu estivesse
morto no presente momento, talvez tivesse realizado feitos tão
grandes que teriam eternizado minha memória; vejo com vergonha
minhas virtudes inoperantes e meu nome sem esplendor algum. Tal
era o bravo Renaud nos braços de sua Armide[3], mas a glória o
lançou para longe dela.
— Bárbaro! — gritou a princesa, vertendo um rio de lágrimas. —
A glória vos lançará para longe de mim; ireis me deixar e vos
mostrais indigno da dor que me invade.
Após dizer essas palavras, ela tombou desfalecida. O príncipe
ficou sensivelmente tocado; ele a amava muito, mas se reprovava
por ter passado tanto tempo junto de uma amante sem ter feito nada
que eternizasse seu nome no rol dos heróis. Em vão tentou se
conter e ocultar o desprazer que sentia; entretanto, cedeu a uma
apatia que logo o deixou irreconhecível. Ele, que havia tomado
séculos por meses, agora tomava meses por séculos. A princesa
logo percebeu tamanho desgosto e sentiu a mais pungente dor. Não
mais desejava que a complacência de Adolfo por ela o obrigasse a
permanecer ali. Então declarou-lhe:
— Sois o mestre do vosso destino. Podeis partir quando
desejardes. Temo, no entanto, que algum terrível infortúnio vos
acometa.
As últimas palavras causaram-lhe bem menos pesar que as
primeiras, mas estas também não lhe eram prazerosas. Conquanto
se entristecesse muito tão somente ao pensar numa separação, o
ideal de destino de Adolfo falou mais alto, e enfim disse adeus
àquela que havia adorado e a quem ainda amava tão ternamente.
Ele a assegurou que assim que realizasse qualquer ato de glória e
fizesse de si mesmo alguém mais digno das suas bondades, não
descansaria até retornar aos seus braços para reconhecê-la como
sua única soberana e como o único tesouro de sua vida. Sua
eloquência natural tentava suplantar sua falta de amor, mas a
princesa era muito esclarecida para se deixar enganar; seus tristes
pressentimentos anunciavam-lhe que perderia para sempre alguém
que lhe era muito estimado.
Felicidade sentia uma dor inexprimível, mais forte do que
qualquer golpe violento. Entregou armas magníficas e o mais belo
cavalo do mundo ao tão indiferente Adolfo.
— Bichar (esse era o nome do cavalo) vos conduzirá aonde quer
que preciseis ir para batalhar exitosamente e triunfar — disse-lhe
ela. — Mas não encosteis vossos pés no chão até que tenhais
chegado em vosso país, pois, pelo espírito de fada que os deuses
me concederam, profetizo que se negligenciardes meu conselho,
Bichar jamais será capaz de vos livrar dos infortúnios em que vos
encontrareis.
O príncipe prometeu-lhe que obedeceria os seus desejos; beijou
suas belas mãos milhares de vezes e, de tão impaciente que estava
para partir daquele deleitoso lugar, esqueceu-se até mesmo do
manto verde.
Nos confins da ilha, o vigoroso cavalo lançou-se com seu mestre
em um rio e o atravessou a nado, galopou por colinas e vales,
passou por campos e florestas com tamanha velocidade que parecia
ter asas. Mas uma noite, em uma trilha estreita e acidentada, repleta
de rochas e pedregulhos e cercada de arbustos espinhosos,
encontraram uma charrete que atravessava o caminho e bloqueava
a passagem. Ela estava cheia de velhas asas de diferentes
modelos; havia tombado sobre o ancião que estava a conduzi-la.
Sua cabeça grisalha, sua voz trêmula e sua aflição por estar
pressionado sob o peso da charrete fizeram o príncipe apiedar-se
dele. Bichar quis retornar e atravessar os arbustos; estava prestes a
saltar sobre a charrete quando o velho homem se pôs a exclamar:
— Ó, senhor! Tende alguma compaixão do estado em que me
vedes; se vós não vos decidirdes por ajudar-me, logo hei de
morrer...
Adolfo não pôde resistir ao ímpeto de socorrer aquele ancião;
colocou seus pés no chão, aproximou-se dele e ofereceu-lhe sua
mão. Pobre príncipe! Ficou tremendamente surpreso ao ver o
homem levantar-se por si mesmo de supetão e agarrá-lo antes que
estivesse pronto para se defender.
— Enfim vos encontrei, príncipe da Rússia — disse-lhe com uma
voz terrível e ameaçadora. — Chamo-me Tempo e vos tenho
procurado por três séculos; usei todas as asas que estão nesta
charrete em viagens ao redor do universo a fim de vos reencontrar;
mas não importa onde possais ter vos escondido, não há nada que
possa escapar de mim.
Quando terminou de falar, colocou sua mão na boca de Adolfo
com tanta força que impediu o príncipe de respirar até que morresse
sufocado.
Nesse triste momento, Zéfiro por ali passava e a tudo
testemunhara com profundo desgosto pelo infortúnio de seu querido
amigo. Logo que o velho bárbaro o soltou, Zéfiro aproximou-se dele
e tentou trazê-lo de volta à vida com a doçura de seu sopro, mas
seus esforços foram inúteis. Tomou-lhe em seus braços, assim
como fizera da primeira vez e, chorando amargamente, levou-o de
volta aos jardins da princesa Felicidade. Colocou-o numa gruta,
deitado sobre uma rocha de superfície plana; cobriu-o e o cercou de
flores. Depois de tê-lo desarmado, forjou um troféu com suas armas
e gravou estes versos numa coluna de jaspe que posicionara
próxima ao infeliz príncipe:
O Senhor de tudo é o tempo,
Nada lhe escapa em nenhum momento,
Com os anos se esvai até mesmo a beleza;
O homem sempre tem milhares de anseios,
Seu espírito se turba em meio aos desejos;
Crê na recompensa de sua tristeza;
Passa um dia contente
Por alguma proeza bem-feita,
Mas logo aprende esta triste verdade:
Não há Amores para a eternidade,
E nem Felicidade perfeita.
Essa gruta era o lugar para onde a pesarosa princesa ia todos os
dias desde a partida de seu amado, e ali adicionava uma corrente
de lágrimas ao curso do arroio. Que inesperada alegria sentiu ao
reencontrá-lo no momento em que acreditava que ele estivesse tão
distante! Imaginou que ele havia acabado de chegar e que, exausto
da viagem, estava a dormir. Felicidade cogitou acordá-lo e, cedendo
enfim às suas doces intenções, abriu os braços para abraçá-lo. No
entanto, logo que se aproximou, compreendeu a extremidade de
seu infortúnio. Começou a gritar e a fazer lamentações capazes de
comover até mesmo os indivíduos mais insensíveis. Ela ordenou
que as portas de seu palácio fossem fechadas para sempre e, de
fato, depois aquele dia fatídico, ninguém mais a viu contente. Sua
dor é a causa de aparecer tão raramente e não há quem encontre
essa princesa sem que ela demonstre alguma inquietude, esteja
acompanhada de mágoas ou tomada por melancolia, já que esta é a
sua companheira diária. Assim, os homens puderam compreender
uma máxima certeira, a qual todo mundo passou a repetir depois
dessa aventura deplorável:
O tempo é o senhor de tudo,
e não há felicidade perfeita.

[1] Deus dos ventos, pai de Aquilon (vento oeste), Bóreas (vento norte), Zéfiro (vento
sul) e dos demais ventos mencionados no conto.
[2] Antigo termo vitoriano (do latim carbunculus) popularmente utilizado para designar
qualquer pedra preciosa vermelha, escarlate ou ígnea como o rubi e a granada.
[3] Referência à protagonista da ópera homônima, estreada em Paris a 15 de fevereiro
de 1686. Composta por 5 atos, a obra de autoria de Jean-Baptiste Lully e com o libreto de
Philippe Quinault é baseada no poema épico Jerusalém Libertada, do poeta italiano
Torquato Tasso, de 1581. Narra a história do amor conflituoso que a feiticeira Armide sentia
por seu arqui-inimigo, o cruzadista Renaud. A obra faz referência a seres da mitologia
pagã, como ninfas e demônios.

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