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Sumário
Apresentação 4
Agradecimentos 5
1º Parte 6
Prólogo 6
Capítulo 1 7
Capítulo 2 18
Capítulo 3 31
Capítulo 4 36
Capítulo 6 46
Capítulo 7 50
Capítulo 8 69
Capítulo 9 93
Capítulo 10 134
Capítulo 11 145
Capítulo 12 158
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Apresentação
Esta é uma obra de um novo tempo, mas traz o sabor da literatura
brasileira de um tempo remoto. Relembrando dolorosamente um tempo de
aflorada cultura, onde a arte pairava sobre a pele dos homens simples, e nos olhos
e mãos dos intelectuais que se vão silenciosamente, e com eles um tempo e
lembranças.
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Agradecimentos
“Este livro é dedicado a meu pai e minha mãe já falecidos que me deram
todo um amparo e educação para me transformar no que sou hoje. Minha esposa
Eliane. Meus irmãos Isaac, Gesiel e Vanda, onde tivemos uma infância perfeita.”
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1º Parte
Prólogo
O antigo casarão foi construído no início do século XIX, e pertenceu a
uma nobre família portuguesa...
Este casarão fazia esquina com a rua 16 e a Castronelle, uma rua deserta
da bela cidade de Londres.
A beleza dessa casa via-se em seu interior. Na ampla sala principal, tinha
móveis antigos, mas bem conservados, adquiridos em leilões por toda Europa.
Viam-se também estantes com livros, belos quadros na parede. Subindo alguns
lances de escada, nos fundos, no fim de um longo corredor, dava-se de frente com
uma excelente biblioteca. Ali se encontrava raros livros, uma coleção completa de
Alexandre Dumas filho1Eça de Queiroz entre outros números de grandes autores.
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Capítulo 1
— Pensei isso voltando para a sala, e sentei-me na poltrona que outrora lia
um romance, e voltei a ler.
A última vez que Jorge correspondeu-me foi em 1915. Foi o que vi numa
maleta velha em que eu guardava tudo que recebia do correio.
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Já era tarde da noite, quando deitei o livro na estante, e um pouco exausto
me recolhi.
Por fim, cheguei à rua do endereço, o número 203 indicava uma bela casa,
um pouco antiga com um jardim encantador na frente. Esse jardim tem um toque
feminino. Pensei isso, procurando uma campainha, não tinha. Bati palmas.
Alguém veio me atender. Veio um homem aparentando uns quarenta anos, de
cabelos lisos, a pele clara, olhos castanhos, o nariz em ponta, agudo. Tinha o
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mesmo sorriso simples. Paramos, e nós observamos. Eu estava tão mudado quanto
ele.
Um criado veio nos trazer café. Aquela conversação era numa sala
humildemente mobiliada, mas com luxuosos tapetes, uma estante com raros livros
de coleção. Na parede quadros em cubismo que me chamou atenção enquanto
fixava os olhos detalhadamente por um momento num deles...
No dia seguinte acordei bem cedo, disposto. Jorge ainda dormia “era um
amante da madrugada. Foi o que me disse certa vez... Não era dado a acordar
cedo”.
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— Não. Eu não pratico mais. Com o passar do tempo me veio a velhice.
Agora a mão trêmula não me permite mais o bom traço expressionista. Delinear as
imagens que tenho me tornou um sonho admirável, às vezes cruéis...
Oh deixe me apresentar, me chamo Ruberito, Ruberito de Morais.
— Eduardo Marques. É um prazer conhecê-lo.
Ficamos conversando algumas horas. A conversação foi o suficiente para
eu conhecê-lo. Simpatizei-me com ele, e ele comigo.
Quanto a Jorge, não era diferente. Era um bom músico e bom enxadrista,
mas não tinha gosto para filosofia.
Na cozinha os móveis eram quase todos de cor negra, como umas cozinhas
da época das senzalas.
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— Bom – disse Ruberito – vamos comer, estou faminto — e continuou:—
lamento não ter aqui capuccino, Dr. Marques.
— Ó não, em Londres quando não tomo chá, tomo café.
Ruberito mudou de assunto e disse:
— Jorge, quando conversávamos na sala, dizia a ele, que quadro como
aquele, nunca mais! – Exclamou com pompa o Senhor Ruberito.
Jorge sabia do que se tratava, e rindo um pouco, concordou com um aceno
de cabeça.
— Um livro de memórias?
— Sim, e preciso da sua ajuda, pelo que sei você escreveu um livro assim.
— Realmente, eu escrevi um livro de minhas memórias. Mas não foi lá um
bom livro. Meu passado é simples, de muitos trabalhos, apesar da herança que
meu pai me deixou. Um diploma de medicina na Faculdade de Londres, aos vinte
anos. Depois de alguns anos me casei com uma professora de inglês, que quinze
anos mais tarde a perdi. Ela morreu de câncer.
— Isso foi terrível — disse Jorge me olhando absorto.
— É... Terrível.
Depois desta conversa, Jorge levou-me para conhecer a cidade em que eu
já tinha observado o caminho.
Na volta para casa, Jorge vinha me dizendo que nesta cidade vivera muita
emoção.
— Preciso registrá-las...
Em casa na sala:— Estou velho para viver novas emoções — disse Jorge
dissolvendo um gole de café.
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— Não. Você tem muito que viver
— Sim, estou bem. Não me queixo. Só quero registrar um passado e viver
os anos que me restam.
Olhei para aquele rosto vermelho, aqueles olhos graves. Vi que algo tinha
de muito forte no passado de Jorge. Um desejo não realizado? Um amor perdido
ou não correspondido? A morte de um ente querido talvez? Questões que me
vieram em segundos.
Basílio era soldado Militar, como se fosse seu avô e seu pai. Mas antes
mesmo da carreira de militar, foi aluno duma pequena Faculdade de Letras do
Estado da Bahia. Por falta de dinheiro desistira no meio do curso para seguir a
carreira do pai.
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acolchoada defronte a ele — e antes que me dissesse algo, perguntei-lhe
logo:
— Que barulho foi esse as duas da manhã?
— É isso que vou lhe dizer — dizia olhando-me, muito calmo — era
Jorge, ele tem problemas, talvez distúrbios ou uma perturbação.
— Quando foi a última vez que Jorge teve essas reações?
— Há alguns meses, mas não é sempre.
— A propósito Ruberito, – perguntei com intimidade: – quem és a bela
jovem da foto num porta retrato na estante da sala?
— Chamava-se Ismália, era muito bela, de graciosa postura, porte airoso.
Vinha de Portugal num navio, Jorge a esperava ansioso. Iriam se casar, quando
houve um trágico naufrágio. Jorge quase morrera. Ele sempre foi um fraco. Pensei
que não iria aguentar tão significativa perda, mas agüentara. Todavia, vive aos
cantos. Ainda depois de tantos anos.
Foi a partir dessa fresca manhã que decidi “ajudá-lo”, tratá-lo de um modo
especial.
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— Conversei com Jorge ontem após sua saída – disse a Ruberito que me
olhava sério esfregando as mãos.— Ele disse-me que logo começará a escrever
um livro de suas memórias, e quer minha ajuda nessa obra.
— Curioso, ele tem me falado há muito tempo em escrever um livro, mas
não um livro de memórias – e com um anseio:— receio que isto o aterre mais....
Relembra o drama em que viveu no passado, receio que não agüente...
Fiquei a olhar para Ruberito, que estava pensativo, com os olhos em alvo,
o cotovelo apoiado na mesa, e as mãos fechadas sob o queixo. Era um homem
singular. Seus bigodes e os cabelos grisalhos, e um rosto pálido de olhar sério,
deixava-o com uma aparência às vezes dura de um ditador, mas era de uma grande
alma, muito singular.
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“Aqueles que não são capazes de recordar o passado serão
condenados a repeti-lo".
George Santayana
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Capítulo 2
“Nos reflexos do espelho, o fim de qualquer ilusão”.
Jonathas S. Ribas
Uma semana depois retornei a Londres, mas agora não estava só, Jorge me
acompanhava. Ruberito e eu o convencemos a viajar, o convencemos também que
precisava de férias, e que em Londres faríamos o seu livro. Jorge concordou
contente — ótima ideia! Disse-me muito feliz.
Já em casa:
— Obrigado. Foi herança de meus avós para papai e de papai para mim...
sou filho único, infelizmente – eu disse olhando também em volta — e Jorge me
olhando com um ar de pensativo:
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— Era um velho amigo que eu não via há muito tempo, fazia-me o convite
para seu quadragésimo quinto aniversário. Desculpem-me, não tive tempo de
avisá-los,
— Ainda deve estar dormindo. Jorge, na Bahia, quase que troca a noite
pelo dia.
— Frio como está à Inglaterra, neste fim de setembro, creio eu que seu
hóspede não agüentará fica muito tempo acordado nessas noites – disse Augusto
torcendo as pontas do bigode – e chupando o charuto: — espero que este outubro
nos venha com muito sol.
— Sou aposentado.
— Vim para Londres com esse propósito, meu jovem – disse Jorge sério.
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— Sim – disse Jorge.
Jorge parecia não me ouvir. Folheava alguns livros, lia títulos de outros.
De pé diante duma grande prateleira, e puxando um volumoso livro disse-me:
— Como se sente?
— Sim.
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— Por onde tu pretendes começar sua história?
— Obrigado Casimiro.
— Minha infância?
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Brincavam de tudo que podiam. Eu somente subia num morro através de raízes
espalhadas aos cantos, e ficava a observar ora as crianças ora a bela cidadezinha.
Fazia isso quase sempre. Eles não se importavam com minha mudes.
Nesta época eu contava dez anos. Era eu uma criança gorducha, rosada, de
olhinhos castanhos claros, os cabelos lisos penteados de lado, também em tom
castanho claro. Rui tinha quatorze, andava por outros caminhos com Basílio.
Basílio é o único que está por perto.
Dava seis da tarde. O sol se escondia tristonho por trás dos morros,
deixando o céu amarelado, um pouco dourado, num tom melancólico. Nessas
horas a cidade parecia que parava. Alguns idosos que nos botecos conversavam,
silenciavam com respeito à Ave Maria cantada na igrejinha. As janelas
serravam-se. O vento uivava solitário sobre os telhados alquebrados. Ao longe se
via um fim de luz por trás dos outeiros.
— Tem sono?
— Vou ficar por aqui. Tenho umas lembranças que prefiro não contar.
— Ainda na infância?
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— Não. Dizem que a adolescência é a fase mais complexa... eu contava
treze anos. Quando uma tristeza estranha tinha se apoderado de mim. Tinha agora
um medo medonho da noite. Sofria de pesadelos. Sonhava que cães negros
queriam me pegar. Despertava-me no meio da noite com muito medo, adormecia
encolhido num canto da cama. Molhado em suor.
Ao raiá do dia, vinha com os primeiros raios de luz, minha alegria. Cresci.
Tornei-me um rapaz medroso, tímido e melancólico. Magro e sorumbático.
Foi por esse tempo que, o Clube Café de Londres, um antigo edifício do
século XIX, da rua 25, fazia a festa de inauguração de sua terceira reforma. Nessa
noite estavam presentes os principais sócios e eu era um deles.
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— Como vai Dr.ª Leopoldina? – disse cumprimentando-a.
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— Dr. Marques a sua mesa está reservada, é a número 3 – disse o espanhol
após sair às pressas para a sala de fumantes nos fundos.
— Certamente.
— Pois meus senhores. Vou correr o salão – até mais – disse o jovem
Ícaro.
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— Como é belo esse meu irmão – disse Leopoldina
— O que eu posso dizer nesse instante meu caro Eduardo, é que nunca eu
tinha visto em minha vida uma italianinha tão bela – rimos juntos
— Houve uma época muito boa em minha vida. Dias que nunca mais
voltarão... recuperarei essa época em páginas alegres, com frases de muita
saudade. As letras têm o poder de recuperar e registrar tempos perdidos que uma
memória pouco pode... é o resgate de um tempo. Nas noites mais frias eu me
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consolava com xícaras de café e muita saudade – após outra pausa Jorge
perguntou-me:
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...Mas eis que no oriente, acolá, no fundo por detrás dos outeiros, surge a manhã
vestida de púrpura por entre o orvalho.”
Shakespeare
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Capítulo 3
Fazia-se muito tempo que eu não tinha uma noite tão “agitada” como esta.
Quando o sol clareou, eu estava em meu leito, indisposto, com uma leve dor de
cabeça, quando a porta do quarto rangeu levemente. Era Casimiro que entrava
com um bilhete.
“Eduardo sinto muito a sua falta, ao ver-te ontem meu coração aliviou-se.
Desejo ver-te novamente, se puderes manda-me a resposta e me encontre na
antiga confeitaria de sempre, às dez dessa manhã.”
Leopoldina.
A dor passara. Consultei o relógio, eram oito horas. Rabisquei num papel
amarelado a resposta. “Sim. Às dez eu estarei lá”. E impaciente esperei os
minutos passarem.
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confortável sofá de damasco amarelo, que Leopoldina trouxera não me lembro de
como. Gostava de repousar após o almoço, quando podíamos ficar o dia inteiro. À
tardinha ficávamos no quintal, sem nada tirar nossa paz; nós aquecendo no doce
calor do sol. Nas noites mais frias, quando o vento forte e gelado. Lá fora soprava
as árvores, nós nos aquecemos ao pé da lareira.
— Meu casamento há muito tempo não vai bem, e em todo esse tempo, o
que fiz foi só pensar em você. Mas estou casada meu amor, e devo muito a meu
marido, não posso deixá-lo... O que eu posso fazer... – disse com as mãos na
testa.— E uma lágrima rolou-lhe na face quente. Seus lábios tremiam. Agarrei-a
em meus braços. Ela abraçou-me forte enquanto chorava.
— Me tire daqui, por favor. Leve-me para bem longe. A sua família
estava à beira da falência. Casando-se com um homem rico, as “salvariam”. O
homem com quem Leopoldina se casaria, era católico, devoto de Santa Ana,
assim como eram os pais de Leopoldina. Casaram-se então, convenientemente.
Depois de seu casamento, esse era o primeiro dia que passamos juntos.
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louca, pôs-se de pé, às pressas, com uns olhos de alteração em mim. Pôs-se a
andar de um lado para o outro, indignada com sigo mesma, e com ímpeto de
cólera. Era a Leopoldina de outrora. “Que personalidade tem essa mulher”. Pensei
naquele momento, em que eu a olhava descontente, calado. Então ela se foi.
Os dias que se seguiram foram de tormentos para mim, mas pulamos esses
infortúnios de minha vida.
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“Que importa se estejas ausente!
O teu formoso semblante estou vendo a cada dia.”
Bernardo Guimarães
O Seminarista,
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Capítulo 4
Vivia num casarão de arquitetura francesa, no fim do primeiro quarteirão,
na Rua 25, um senhor de idade. Aparentava ter oitenta anos. Não tinha herdeiros e
vivia sob os cuidados de uma senhora enfermeira francesa. Este tinha no bairro
fama de republicano, também de arrogante, que dava bengaladas na velha
francesa. Era um sujeito magro e esguio, calvo, de olhos azuis, dum azul ligeiro e
profundo. E apesar da idade, era forte e rijo. Este era um dos principais
intelectuais que vinha às sextas feiras para os debates literários no casarão.
Naquele início de maio, numa tarde fria de sexta-feira, reuniram-se em minha
casa.
O Sr. Norbert era um dos poucos que vinha à minha casa desde os tempos
de papai.
— Foi para mim ao correio...— respondi, olhando seu rosto agora mais
velho, com novos óculos.
— No Brasil...
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— Ouvir muito falar deste país, do povo de lá – disse-me com a voz firme.
— Em 1828, numa provável noite, creio. Pois, segundo contam, porque ele
costumava escrever todas as noites, que Stendhal, iniciara o seu melhor trabalho,
que seria mais tarde sua obra prima: O vermelho e o Negro, – disse Eufrásio, com
os olhos na partida, franzindo a testa, com um lance que Jorge acabava de fazer –
interessante, disse depois.
— Baixe o tom de sua voz, meu jovem— disse Jorge sem erguer os olhos
do tabuleiro.
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mesmo sem alcançar sucesso junto ao público, arrancara elogios de vários críticos
inclusive de Balzac – disse o Sr. Crouses.
— Dom Blás foi também, obra que Stendhal arrancara apoio dos críticos, e
também de Balzac – disse eu.
Eufrásio deu uns passos pela sala, pensativo, parou com os olhos numas
fotos na parede. Fizera-se um breve silêncio. O bom Dutra voltara a remexer as
cartas. O Sr. Crouses abria um sorriso de satisfação, seu jogo estava ganho. Jorge
resmungou furioso.
— A quem tu te referes?
— Já tem um título?
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— Pois bem, vamos jantar.
A sala de Jantar ficava após um corredor onde nas paredes pendiam fotos
de família, uma delas em destaque, em rica moldura, tinha o papai, ainda jovem,
ao lado de um amigo português, de quase a mesma idade que ele, com um paletó e
calças brancas, um chapéu Panamá e uma bengala de cabo de osso. Os dois
sorriam, pareciam felizes na foto. Jorge que ainda não tinha reparado naquela foto
perguntou:
— Meu caro Dutra devo lhe informar que ainda esse mês parto, numa
longa viagem a Portugal.
— Vais a trabalho?
— Vou respirar novos ares, e levar comigo o nosso amigo Jorge, que ainda
não conhece aquele belo país.
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— E decerto tu terás muita inspiração para o seu livro — comentou o
Eufrasio.
O Dutra tinha dois filhos em Lisboa. A esposa o deixou, parece que vivia
em Santa Olavia, com uma irmã solteirona e uma tia de idade. Ele, em Londres
vivia só, num velho sobrado onde embaixo, no térreo, funcionava sua livraria. Ao
fim de cada ano, os seus dois filhos, que estudavam na Faculdade de Letras em
Coimbra, vinham passar as férias em seu velho sobrado.
— Sr. Morais, creio que o dia de hoje, estará registrado nas páginas de seu
memorável romance — disse Eufrásio, mexendo lentamente a sopa de milho.
— Será que seremos dignos? — disse eu — olhando para Jorge que nos
olhava banhado num sorriso.
— Decerto, seremos. Já nos disseram que o Sr. Crouses, que o Sr. Morais,
é um homem de espírito. E só um homem de espírito é que nos dará crédito –
disse o Sr. Norbert.
O Sr. Norbert o gritou:- Sr. Casimiro! Venha de lá esses ossos, homem! ...
— Senhores, boa noite, olá Sr. Norbert, como está a saúde?
— Bem. Estou exausto. Não possuo energia para uma prosa, vou me
recolher. Boa noite para todos.
— É que o dia de hoje é uma data triste para ele, é o aniversário da morte
de seu pai, que está sepultado no Rio de Janeiro. – Expliquei a todos.
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— Meu caro Eduardo, de fato estou muito cansado, não tenho mais a
disposição de outrora, mas ainda venho com mais vagar, até mais,— dê um abraço
ao nosso Casimiro – disse galgando as escadas.
O Eufrásio foi o último a sair, e claro, depois de ter lido os seus textos e
imprecado contra os padres. Parando na escada, dissera quase enternecido:
— Sei que ainda estou na obscuridade, Dr. Eduardo, mas não desistirei dos
meus projetos... até logo.
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“Pela janela entrava a manhã alegre, e com ela a brisa do mar, um canto
de pássaro e um sol sem nuvens após tantos dias de chuva. ”
Jorge Amado
(GABRIELA CRAVO E CANELA)
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Capítulo 6
Augusto Conte, que passou algumas semanas em Paris, na companhia de
Guilherme Tavares, veio naquela semana à minha casa. Contara-me as novidades
que havia em Paris, e o que fizeram por lá.
— Vou ao Brasil, tenho negócios a fazer por lá, mas não fique triste, será
só por umas semanas.
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— Eu concordo com o Augusto. Sentem-se, vamos tomar um chá.
Artur era um jovem Oficial do Exército de Londres. Tinha trinta anos e era
ainda solteiro. Era um belo rapaz, como dizem os mais velhos, homem bem
apessoado. Tinha olhos negros, penetrantes. Era alto e robusto, de cabelos pretos.
Nascido e criado na Inglaterra.
— Como está seu pai Sr. Artur? Há tempos não o vejo – perguntei com
bom interesse.
— O velho anda muito bem, obrigado. Mas está fora de forma. Está um
pançudo. Quem o vê hoje, nem imagina que ele fora do Exército de Inglaterra.
Horácio Fitizurse nasceu na Itália como os seus pais. Veio ainda criança
para a Inglaterra. Residiu de início numa humilde casa no interior de Londres.
Fomos muito amigos na juventude, mas nos separamos por longos anos, quando
ele, influenciado pelos pais, entrou para o Exército inglês, e eu para a Faculdade
de Medicina de Londres. Horácio participou de muitos conflitos, ganhou
medalhas de honra. Tive uma brilhante carreira. Casou-se, na época, com uma das
mulheres mais belas da cidade. Uma jovem nascida em Rotterdam. Teve com ela
dois filhos; uma bela menina, e o nosso conhecido Artur. Após sua aposentadoria,
o Governo deu-lhe de presente uma bela casa ao Norte de Londres. Artur herdara
da mãe os belos traços, e do pai, a sabedoria e a coragem.
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Giovanna a filha do Sr. Horácio era casado com um banqueiro inglês e
com este tinha três filhos, dois homens e uma bela menina.
— Estou bem. Pedir licença ao Exército para ver a família, como sabem,
começam rumores de guerra. – e completou – penso que a II Guerra será
inevitável.
— Não achas que ainda é cedo para se falar em guerra Sr. Artur? – disse
Augusto, tranqüilamente, afundado na poltrona, e acendendo o charuto.
— E tudo coopera para uma nova guerra, não é mesmo? – disse eu.
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— O Exército inglês tem procurado estar a par de tudo o que se passa no
resto do mundo. Tem procurado, sobretudo, saber do que se passa na Alemanha, e
entender a filosofia de Hitler, os seus métodos. Contudo, é muito cedo para dizer
algo aos nossos civis. Uma coisa eu lhes digo; estamos lutando pela paz.
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2º Parte
Capítulo 7
Dias depois da mudança de Augusto para a França e da viagem de
Guilherme para o Brasil, eu recebera uma carta do Banco de Portugal. Tinha uma
enorme dívida a quitar. E também por um motivo um tanto quanto peculiar, que
eu já considerava de maior importância, eu necessitava voltar a Portugal.
Meu pai passou uma parte da sua juventude em Portugal. Contou-me que
até tinha se casado em Lisboa. E fizera muitas amizades em Coimbra e em Sintra.
Mas de todas as amizades que fizera naquele velho país, após ter deixado para
sempre Portugal, mantivera contato e correspondências durante muito tempo, com
uma só pessoa. Um senhor de Sintra. Sebastião Damasceno Carpelo.
— Cada dia mais velho e ranzinza, mais ainda possui boa memória.
— Obrigado Eduardo...
— Dr. Eduardo, antes de tudo, quero lhe apresentar este homem, que
trabalha para os Carpelo há uns anos. Lobato Mendes, nosso chofer. O anterior
faleceu.
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— É belíssimo.
— Ranzinza?
— Como sempre.
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— Vamos subir ao meu quarto, meus senhores... que devo a honra de sua
visita, meu menino – disse, adiantando-se lentamente. Com o passo vacilante,
com as mãos a tremer, quando apoiava, com a bengala no assoalho.
— Confesso que desta vez venho a negócio, e para um assunto que devo
lhe consultar depois.
— Ficarei por mais duas semanas nesta cidade. Meu médico está me
atendendo todas as manhãs aqui neste belo hotel, depois disso, parto para Sintra,
para sempre. O ar daqui não me faz bem. Almoçam conosco?
— Ó, sim.
— Ezequiel Prado. Há anos não ouvia falar deste nome... talvez se você
tivesse me consultado sobre ele da primeira vez que nos vimos, eu poderia lhe dar
uma resposta melhor querido Eduardo – disse o velho, torcendo as pontas do fino
bigode, com o olhar enternecido, e continuou: – fora um grande amigo de seu pai.
Andavam sempre juntos. Ambos, bons médicos. Ezequiel Prado..– repetiu,
apoiando as duas mãos à bengala – Não mais o vi, desde que seu pai deixou este
país. Alguns dizem que já faleceu. Outros, que ele foi morar com uma neta na
França. Seu pai não me falara nada de Ezequiel. Uma vez só me perguntou dele
em uma de suas cartas. Nem recordo quando. Mas se realmente tu desejas
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encontrar esse homem, e como foi um pedido do seu pai... digo-lhe que há uma
pessoa que poderá te contar do paradeiro de Ezequiel Prado. Um homem que fora,
durante muitos anos, zelador de um hotel em Coimbra. Seu nome... – ficou a
pensar:— Noronha, Sr. Noronha.
— Não tenho muito tempo nesse país Sr. Damasceno, por isso, parto hoje
mesmo para Coimbra. A forma da viagem, ainda não sei, devo alugar um carro no
Centro Velho. Se é que aqui existe esse tipo de serviço.
— Pois estar com sorte menino – disse ele – sorrindo – tenho negócios a
tratar em Coimbra, de modo que enviarei o Passos para cuidar de aluguéis de
imóveis pendentes por lá.
— Uma carona seria bem vinda – disse eu, me servindo da carne de vitela.
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sociedade lisboeta. O ponto mais nobre de Lisboa, agora está lá, sob poeira e
esquecido pelo tempo. Coisas da vida.
O sol ia alto. Era uma tarde quente, abafada. Tínhamos pegado uma
ruazinha estreita de terra. O carro ia lento. Aqui e além, via-se uma velha Quinta;
uma fazendola florida com romãzeiras. Mais além se erguiam antigas estalagens.
O Sr. Lobato cortara caminho, tinha pressa. Poderia chover. Ainda paramos para
saber do médico naquela região. Contavam saber do homem. “Estás a viver com
a neta para os lados de Évora”. – dissera um senhor ao portão de uma Quinta.
— Ezequiel Prado! Ouvir muito falar desse médico – disse o Sr. Lobato –
uma vez ele estivera na Almada. Esteve a atender as famílias carentes....
Contava-se que era muito caridoso, que fazia suas viagens, distribuía remédios e
atendia muitas pessoas gratuitamente. Por isso chegara à falência.
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Era no cair da tarde. O sol já se escondia atrás dos outeiros. Ao longe, a
pequena Coimbra, sob a luz da lua e dos pingos de luz das ruas e das casas.
— Mas não será difícil encontrá-lo. Ele está, de fato, esquecido pela
sociedade. Mas nas regiões mais pobres, há sempre alguém que se lembre dele –
concluiu o Sr. Lobato.
— Tenho plena certeza que aqui nós saberemos onde encontrar o velho
médico – disse mais uma vez o Sr. Lobato, olhando absorto à iluminada fachada
do hotel.
— Pois, meu senhor, penso que ficaremos aqui até ao meio dia de amanhã.
Se por um acaso não obtivemos sucesso, prosseguiremos à tarde. Obrigado pela
carona. Foi muitíssima proveitosa querido Passos, Sr. Lobato.
Desabei-me no leito exausto, caindo num sono profundo. Sonhei com meu
pai vestido de branco, olhando-me ternamente. Ele sorria, com os braços erguidos,
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eu tentava abraçá-lo, não o alcançava. Tumultuosamente via passar por mim,
Leopoldina, com o seu vestido de cauda longa, escarlate, me chamando, sorrindo
como uma louca, depois chorando. Debalde, eu tentava tocá-la. Não tinha força e
nem voz. E outros rostos se misturavam com o dela e com o de papai.
Despertei-me molhado de suor, com as pancadas de chuva na vidraça. Um vento
forte levava e trazia a chuva. O teto parecia que ia desabar. Pingavam gotas no
meio do quarto. Uma parte do carpete já estava encharcado. E novamente vinha
vergastadas de água contra a vidraça. Depois se fazia um silêncio tenebroso. Do
corredor ouvi passos apressados. Gente corria. Uma luz aparecera debaixo da
porta. Um criado gritou-me:
— Olá Dr. Eduardo. Encontrei aqui uma pessoa que procurávamos. O Sr.
Noronha! – disse o Sr. Lobato, sorrindo de satisfação.
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— Como vai Sr. Noronha?
— Está bem.
— Não sou mais o zelador disto aqui. Sou hóspede, assim como os
senhores... E o que lhes disse sobre mim, o velho Damaceno?
— Bem, meu senhor, como eu disse. O vira pela última vez em 1865. O
que sei é o que muitos dizem também, que ele está a viver para os lados de Évora
e Beja, aos cuidados de uma neta. Pobre homem.
— Certamente...
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— Querido Passos – disse eu em tom de intimidade – não obtivemos
resultado algum com o Sr. Noronha. Tanto que ele não é mais o zelador daqui.
— Ele disse que o médico pode estar a viver para os lados de Beja e
Évora.
— Então, sigam por essa rua defronte ao hotel, ao fim de seis quilômetros
vão encontrar o antigo Casarão de Pensão – disse o Passos – lá obterão boas
informações.
Com efeito, a estrada estava difícil, pois a chuva havia deixado poças de
lama no meio do caminho e estava escorregadio. O dia estava nublado e cinzento.
O carro ia se arrastando lentamente, roçando às vezes uns galhos molhados de
árvores. Mais além, via-se o cerrado verde; umas pobres casinhas despregadas
umas das outras. Coimbra já estava para trás. Ao longe um pobre horizonte.
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— À noite está chegando temerosa, salvo, sem chuvas – disse o Lobato.
— Sim, claro.
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carcomida, que havia provavelmente sofrido sol e chuva, ainda se mantinha firme
em seu lugar. O primeiro andar em total decadência suportava dois janelões
alquebrados, com rachaduras. Estavam ali, pesarosos, de frente para a rua. Numa
lateral da casa, ficava uma fileira de janelinhas abrigadas à beira do telhado. A
casa tinha no topo uma forte lâmpada, que deixava toda a frente clara como o dia,
mas também denunciava como o dia a sombria estalagem.
— É um idôneo estabelecimento?
— Alguma vez o senhor ouviu falar, ou viu passar por aqui um conhecido
médico de nome Ezequiel Prado.
62
— Não. Não senhor, me desculpe – respondeu-me olhando absorto.
— Obrigado.
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Um senhor tão magro, quanto o apático criado, de ar sorumbático,
aparecera depois com o café e a sopa. E apenas nos servira, pousando os olhos
inquietos em nós, perguntou, abafando a voz:
— Tenho algo para lhe entregar, coisa de muita importância para ele, o
senhor pode nos dizer onde poderemos encontrá-lo?
— Não tenho muito tempo. Estou em serviço, mas... – disse ele, coçando a
barba,— e continuou:— vou lhes contar o que sei... muitos já passaram por aqui,
para saber de Ezequiel Prado. Alguns bem vestidos, assim como os senhores.
Gente rica... outro dia, apareceu aqui, um padre de Lisboa. Outrora, uma rica
senhora, com dois filhos, até um advogado! Eu disse a cada um, que não sabia do
médico... O velho Ezequiel está cansado. Não pode ser mais incomodado. Já fez
muito por essa gente. E não teve reconhecimento...
— Sim, senhor.
Uma discussão havia começado numa das mesas, entre dois velhos. Um
dos velhos, mais alterado, batera com a bengala no outro. O Teixeira recomeçara:
64
— Pois, senhores. Graças ao nosso bom Deus, que lhe deu uma neta, o
pobre homem estaria perdido...
Às vezes ela aparece por cá. Para comprar comida... uma bela jovem.
Cuida do avô com muito cuidado.
— Srta. Judite?
— Sim, senhor.
O velho Teixeira, com a mão no queixo, de pé, ante a nossa mesa – disse
com entusiasmo:
Tem vinte e oito anos, de um metro e oitenta. Causa ainda admiração por
onde passa. Têm cabelos negros, com mexas e cacheados, olhos bem azuis da cor
do céu. Um narizinho magnífico e a boca desenhada a capricho. Tem os dentes cor
de pérola e uma pele alva como neve. Um colo bem feito; ombros arredondados,
em fim, uma pintura.
— Se for mesmo como fala, imagino uma obra prima – disse Jorge, bem
ávido.
66
Lá ia o promotor, e onde estava Ezequiel? Nos mais distantes lugares de
nosso Portugal. A servir e a ajudar aos mais necessitados.
Após a fuga dos amantes, a mansão do Bairro das Janelas Verdes ficara
por muitos anos aos cuidados do mordomo Plínio Ventura, um senhor afeminado
de Leiria e da cozinheira D. Remédios. Foi D. Remédios quem casara os meninos
e criara a última herdeira dos Ávaro a Srta Judite. Após a morte de D. Remédios e
a aposentadoria do Sr. Plínio, a mansão ficou abandonada até os dias de hoje. É o
único imóvel que restou em Lisboa. Mas, senhores, o que me deixou mais
impressionado com essa história toda, foi o fato de Ezequiel Prado, meu amigo,
não ter lamentado a partida da adúltera mulher, e de nunca ter citado o nome dela.
— Sim.
— Creio.
— Sim.
68
Capítulo 8
— Se seguirem este caminho – dizia o Teixeira à porta da casa de pensão,
apontando com o dedo indicador, – vocês chegarão logo. Mas devo avisar-lhes
que terão decerto, muita dificuldade. A chuva de ontem deixou o caminho quase
intransitável. Após um quilômetro e meio de viagem, vocês chegarão a uma
humilde vila. Perguntarão por Ezequiel e certamente alguém lhes ensinará a sua
morada.
— Vão com Deus, senhores. Para Ezequiel, diga-lhe que mandei um forte
abraço.
— Não se preocupe Sr. Teixeira, daremos o seu recado, e mais uma vez,
muito obrigado.
— Eu que lhes agradeço. Até a volta, se por aqui pararem, tragam notícias.
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Jorge, saindo de seu pensamento, disse-me animado:
— Para o livro?
— Se for verdade o que dizem sobre ele, tu terás uma vasta e interessante
pesquisa. Não só para seu livro de memórias, mas também para um romance.
— Não deve ser aqui. Talvez num povoado mais adiante – disse o Sr.
Lobato – dando envolta uma ligeira olhada.
— Sr. André, de fato não sabíamos onde encontrar o velho Ezequiel. Logo
vamos saber por que ele veio se instalar nesse fim de mundo. A propósito,
obrigado pela boa informação.
— Não precisa agradecer. Faça-me um favor. Diga a Judite que lhe mandei
lembranças.
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Ficaram os dois à porta do botequim, até o carro sumir no caminho.
Avistamos logo, ao longe, uma casa branca entre árvores altas. Deveria ser aquela.
Paramos defronte.
— Deve ser aqui, Dr. Marques – disse o Sr. Lobato, a meia voz.
— Sim. O Sr. Lobato, deve ser – disse eu, abafando a voz, como se fosse
para evitar qualquer ruído.
— Srta. Judite. Muito prazer – disse ela, me estendendo a mão, com uma
graça nervosa e delicada na voz – queiram entrar.
A caminho da varanda:
— Meu avô ainda deve estar a dormir. Esteve esses dias muito adoentado,
com forte constipação gripe. Está muito fraco...
— Se acomodam, senhores. Vou ver como ele está. Aceitam uma chávena
de chá?
Fiquei a reparar a humilde salinha. Era uma sala estreita, esteirada, com o
forro em verniz claro. Nas paredes havia fotos antigas, quadros e dois diplomas de
medicina. Por sobre uma mesinha, havia uma antiga caixa de música do século
XIX. Ao lado, uma cadeira de marroquim e uma poltrona de couro. O estofado era
fundo, e tinha um tecido gasto... Numa das paredes havia uma foto de um jovem
de cor muito clara, com ar de fidalgo, de cabelo curto, penteados de lado; com um
73
rosto magro e bigodes finos, com as pontas para cima, e ao lado deste jovem, na
mesma moldura, tinha uma bela jovem, muito parecida com a Srta. Judite. Eram
decerto, os pais dela. De frente a mim, tinha um armário envidraçado com vasos
azuis de porcelana e pratos chineses. Bem a meu lado, tinha uma estante com uma
pilha de livros de medicina e literatura, jornais e pequenos porta retratos com
fotos de crianças.
Uma bela jovem, morena, de cabelos negros e olhos castanhos, nos serviu
o chá. A Srta. Judite voltou para sala, em seguida, sentando-se na cadeira de
marroquim escuro, perguntou-me serenamente:
— Por acaso a senhorita, algum dia, ouviu o seu avô mencionar o nome de
meu pai, Carlos Eduardo?
74
A bela jovem sorriu, subitamente, como quem se recorda de algo.
— Algum tempo depois de meu pai falecer, vir a Portugal. Mas não
encontrei o Dr. Ezequiel Prado no endereço que meu pai havia me deixado. Andei
por Lisboa por umas semanas, a perguntar pelo seu avô. Uns disseram-me que o
Dr. Ezequiel Prado havia falecido, outros, que ele vivia em Sintra, e até que estava
para o Brasil. Os mais certos, disseram-me que ele estava a viver com uma neta,
em Évora. Voltei à Inglaterra, mas inquieto e, sobretudo, com um espírito de
aventura, resolvi que era hora de voltar a procurar pelo seu avô; conversando com
o senhor Damasceno, ele me confirmara que a mansão não era mais ocupada pelos
Ávaro e Prado.
Uma calma dormente fizera agora na sala. Um silêncio, que ouvia lá fora o
vento, mesmo que fraco, soprando os galhos das árvores, o tic-tac de um relógio
75
vindo da cozinha e os passos da moreninha. Quando enfim ouvimos um rasto de
chinelos vindos de um quarto. Era decerto, o Dr. Ezequiel Prado. Vimos entrar
depois, na sala, um homem de idade avançada, mas parecia ser forte e rijo. Tinha
os passos firmes. Era um homem alto, gordo, calvo, de olhos azuis, de rosto
redondo, com uma grande barba branca. Parou no meio da sala e ficou a nos olhar
com uns olhos de ressaca, silenciosamente.
Olhei para a Srta. Judite, que estava de pé ao seu lado com uma mão em
seu ombro, e voltei os olhos para o Dr. Ezequiel Prado, que desde então não tirara
os olhos de mim, e disse-lhe:
76
O velho médico de ar patriarcal, sobressaltado, arregalou-me os olhos,
depois se recostando mais na poltrona, ficou a me olhar ternamente, enternecido,
sem dizer uma palavra.
O Dr. Ezequiel balbuciou algumas palavras, e terminou por dizer que meu
pai fora um grande homem, de um enorme coração... falava, quando da cozinha, a
moreninha anunciou o almoço.
— Almoça conosco, senhores — sei que já cumpriu com seu dever, Dr.
Marques, trazendo este documento até a mim, mas fique mais um bocado.
77
fez a Srta. Judite, assustada, agarra-lhe o ombro —– Dá cá um abraço, filho do
Carlos... — repetiu, abraçando-me forte.
Minha mãe faleceu quando eu tinha dez anos. Papai não derramou uma
lágrima. Naquela tarde de chuva, após o enterro, voltei para casa com o Casimiro
e o papai. Ao chegar em casa, papai subiu para a sala de jogos, e pôs-se a jogar
bilhar, como se nada tivesse acontecido. Fiquei no pátio chorando por longas
horas. Nos dias que antecederam a sua morte, no leito com muita dor, ordenara ao
Casimiro que me chamasse embaixo, entrei em seu quarto, naquele quarto em que
poucas vezes eu entrara. As minhas pernas tremiam. Eu não queria vê-lo naquele
estado, sabia que iria morrer. Assim como a mamãe. Eu não gostava de
despedidas... Papai ficou um momento a me olhar, com os olhos secos,
— Tu estás um belo rapaz meu filho, tem os olhos e o sorriso de sua mãe
— e me abraçou forte por um longo momento. Vi seus olhos pela primeira vez,
marejados de lágrimas. Aquele não era o meu pai. As doenças físicas mudam o
caráter das pessoas, as fazem refletir e a reconhecer os valores humanos e a
desvalorizar os bens materiais. Papai já tinha preparado o testamento. Eu era o
único herdeiro. Pedia-me apenas no testamento que eu deixasse a casa de campo
78
ao Leste da Inglaterra para o Casimiro, e os cavalos da fazenda, na França para
um cocheiro que ele tinha muita estima.
— Exatamente.
— Anda muito bem. O Sr. Lobato, que trabalha para o Sr. Damasceno, nos
conduziu até a Central.
79
— É o nosso Jorge, Ezequiel. Jorge de Morais.
— Xadrez... O seu pai adorava jogar xadrez, Eduardo, mas não jogava
bem. Era bom mesmo no bilhar. Eram muito poucos os adversários que o vencia...
Certa vez, na casa de um governador de Lisboa, ele teve a oportunidade de jogar
com um militar, que na época era considerado imbatível. E era de fato imbatível.
Carlos perdera o jogo por duas vezes. Mas não ficou irritado. Ao fim da segunda
partida, cumprimentaram o Militar, esportivamente.
— Quando o conhecera?
— Ah... Fora nas últimas décadas do século XIX. Não recordo o ano que
Virgínia traga meu cachimbo – e a moreninha trouxe-lhe um rico cachimbo de
porcelana.
Mais tarde fui para o hotel, onde estavam alojados todos aqueles jovens
médicos, inclusive eu. Ao entrar no salão, vi o Carlos em uma mesa a um canto,
perto duma grande vidraça, que se podia ver quem passava do outro lado da rua.
Estava tomando café e a ouvir distraído um espanhol que falava rápido, quase a
80
cuspir. Carlos às vezes esquivava-se muito lentamente das gotículas do cuspe do
homem. O senhor, um sujeito, que parecia contar uns trinta anos, dizia:
— Ah Portugal...
— É o que me parece.
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Velásquez, cansado, calara-se e tomou um último calix de vinho tinto e
subiu para uma suíte no último andar do hotel. Não era médico. Conta-se que
tinha herdado de um avô uma pequena fortuna, que estava a gastar por toda a
Europa. De onde Carlos o conhecia não me contara. Carlos ficara só, ainda a olhar
a vidraça e a consultar constantemente o relógio. Lá fora chovia. Era uma noite
fria. Quando, finalmente, um mensageiro atravessou o salão e entregou para o
Carlos um bilhete. Bilhete que Carlos amarrotada, e logo depois subiu para o seu
quarto. Eu me recolhi naquela hora. Estava exausto. Tinha no dia seguinte uma
viagem a fazer. Retornaria a Portugal, de onde eu saíra muito novo. Recordava de
Portugal somente da Rua do Ouro em Lisboa e do Aterro onde era o caminho para
o colégio. Tinha recebido naquele dia uma carta da mamã. Ela esperava-me,
ansiosa e o papá também. Dizia que ele reclamava da minha falta, bebendo nos
botecos. E que estava tão decaído e velho. Eu era o único homem. Tinha uma
irmã, mais nova que eu, que iria se casar com um pobre vendedor de lençóis.
Eu tinha passado toda a minha juventude, até aquela noite em Paris, estava
ansioso, tinha planos para Portugal. Abriria um consultório em Lisboa para
atender a sociedade e viajaria para os povoados; para Alentejo, Beja e demais
lugares.
***
O Dr. Ezequiel encerrou o seu almoço, e ficou pensativo, nos olhando com
seu cachimbo na boca. Um riso lhe resplandecia no rosto, quando, continuou a
narrar sua história:
***
82
Fui despertado por alguém batendo à porta sem parar. Era a camareira,
que eu a tinha pedido para me acordar às oito horas.
O trem apitava alto. Gente corria para todo lado. Entrei num elegante
vagão de piso de madeira, com bancos em estofado vermelho, com o teto em
verniz claro. Era um vagão largo e comprido. Onde havia um bar e mesinhas de
jogos. Apesar da fria manhã, via-se um sorriso em cada rosto, uma correria
animada pelo corredor do vagão. Um senhor bem abotoado numa sobrecasaca
negra gritava ordem, silêncio.
Eu observava da janela uma bela mulher a puxar uma criança loura, que
chorava compulsivamente. A bela mamãe, nervosa e envergonhada, a levava para
um vagão mais adiante – o trem apitava novamente – eu as acompanhava com os
olhos, quando subitamente Carlos e o espanhol, sentaram-se num banco defronte a
mim.
— Vais à Madri?
— Vou a Lisboa.
***
— Nós também – disse o Sr. Lobato, olhando para Jorge que assentiu com
a cabeça.
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— Pois, ainda quando o Sr. Velásquez, o espanhol caturra, se despedia de
nós na parada de Madri, naquele luxuoso vagão, vi entrar uma bela rapariga de
modo estrangeirado. Era uma jovem alta de corpo escultural. Trazia um belo
vestido de seda azul. Tinha longos cabelos negros cacheados sobre as costas e
belos olhos pardos, que me impressionara muito. O froufo de seu vestido foi aos
meus ouvidos como um som de harpa sonora. Foi sentar num banco distante, e
pôs-se a conversar e a rir com uma senhora. Sua risada às vezes ressoava vibrante
pelo vagão, causando horror a um grupo de senhoras que cochichavam, incrédulas
em outro canto.
Nunca tinha visto rapariga tão bela. Quanto ao Carlos, apenas ela penetrou
no vagão, como a aparição de um anjo, seus olhos fixaram-na, grave e
profundamente, mas foi cortês comigo.
— Preciso conhecer aquela jovem, e tem que ser logo, meu caro! – disse
eu para o Carlos, amigavelmente.
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A viagem seguia-se um bocado, longa quando uma senhora, a mulher
com quem a jovem do vestido de seda azul estava a conversar, veio até ao bar do
trem. Era uma mulher exageradamente maquiada. Sob o rosto enrugado, muito pó
de arroz, e nos lábios um batom vermelho, escarlate. Era baixa. Tinha miúdos
olhinhos verdes. Trazia um pequeno chapéu em tom pastel e um vestido antigo de
seda branco, com mangas longas e duas faixas vermelhas que ia do ombro ao
joelho e um laço também vermelho à cintura roliça. Usava luvas finas de seda e
trazia uma pequena bolsa de couro azul. Encostando-se ao balcão do bar, pedira
ao garçom, um rapaz esguio de nariz aquilino, um whisky, e ficara a conversar
com ele prosaicamente.
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como dantes. Notei que só haviam construído um belo edifício, onde há anos
havia um terreno baldio. Olhava curiosamente aquele novo edifício, quando
bruscamente, o coupé parou defronte a uma casa de fachada elegante, que me
lembrara com uma casa de província francesa. Era branca de teto em ponta, de
telhados vermelhos. Na frente tinha um muro de pedras enfileiradas umas nas
outras. Essa era a casa de meu pai, totalmente mudada... Saltei do coupé, paguei o
cocheiro, e fiquei um momento, silenciosamente defronte aquela casa. Quando vi
a mamã aparecer-me de súbito, chorando, abraçando-me forte e o papá, como eu
não esperava, são e forte, com uma boa cor na face, me abraçando feliz e
orgulhoso de me ver médico. Vi também minha única irmã, também chorando.
Depois de longos anos a família estava reunida. Minha maior surpresa foi a minha
irmã Amélia, não era mais uma menina. Como tinha se desenvolvido. Esperava
vê-la franzina e pequena. Estava uma mulher feita. Uma bela loura. A Pérola da
família, como dizia meu pai. Eu concordava, e a chamava assim.
— Mulher com o porte e beleza daquela moça, meu caro Ezequiel, será
alvo fácil aos nossos olhos.
Tínhamos andado por todos os lados. Interrogado muita gente. Nos hotéis,
nos Cafés e Confeitarias de Lisboa, não obtivemos êxito.
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— Talvez ela esteja em Sintra, ó Ezequiel. Terei que ir a Sintra no fim
deste mês. Os ares de Sintra encantam a todos. Sobretudo as mulheres – disse o
Carlos tentando me animar.
Era uma sala no primeiro andar, com uma bela varanda e com duas janelas
para a rua. No Térreo era uma alfaiataria de um italiano. Um senhor de feições
miúdas, muito antigo no lugar.
— Conta-se que a loja pertencia à mãe. Diziam que era uma bela francesa,
assim como Margarete Gautier. Fora concubina de um príncipe espanhol. A filha
herdara da mãe toda a beleza, e aquela loja, como os senhores podem ver. Da filha
se diz muito pouco, apenas que é protestante que se chama Margarida – disse o
alfaiate, apoiado no parapeito da varanda.
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— Tem apenas vinte anos, esse moço, e já é casado, com uma bela
espanhola. Espanholas, são as minhas favoritas — terminava o alfaiate, ainda
apoiado no parapeito, com uns óculos velhos pendurados no meio do nariz e a fita
métrica sobre os ombros.
O edifício tinha mais três andares, todos ocupados por um jornal de nome,
Jornal da Cidade que pertenciam a uns senhores de Coimbra.
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um cliente do doutor passou aqui em minha humilde alfaiataria e me encomendou
dois ternos. Ontem cedo o Dr. Carlos Eduardo me encomendou três... Ah, nunca
vi tanta gente bonita. ”
A Rua Nova Do Carmo, com efeito, era outra. Transitava pelas ruas ricas
charretes, ricas damas se viam agora pelas calçadas. Belas senhoritas angelicais,
andando em pares e senhores fidalgos, em sobrecasacas claras. Naqueles dias de
céu azul ferrete. O novo movimento era devido, sobretudo, às grandes reformas.
Como a rua ganhara um luxuoso consultório, recebendo diariamente ricos
clientes. Era necessário que os demais estabelecimentos se renovassem.
— Mas dessa vez é para valer Ezequiel. Não consigo pensar em outra
coisa.
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Carlos contava-me isso, de pé, vestido com seu roupão de chambre branco,
gesticulando, com o charuto apagado na mão, dando lentas voltas num quarto do
Hotel Central. Eu tinha ido procurar saber de seu sumiço de meu consultório,
agora sabia o motivo. Era a encantadora francesa. E o ouvia, enterrado numa
poltrona, com o Diário de Notícias esquecido no colo, e dissolvendo aos goles um
chá morno. Carlos ia até a janela de vez em quando, e ficava pensativo, vendo a
noite dormente, uma noite típica. E voltava-me banhado num sorriso.
— Sim. Ela tem uma casa bem confortável em Arroios. Tem um pequeno
atelier.... É viúva e tem uma filha de cinco anos de idade de nome Anália que vive
aos cuidados de uma criada, uma prima de segundo grau, mas sonha em ter um
menino. Amanhã vou tomar um chá, à tardinha. Depois vamos ao teatro em São
Carlos.
— Vejo que perdi meu melhor amigo, que lástima – lamentei, levantando
as mãos para o céu exageradamente.
— Vou comprar uma casa em Sintra para Margarida. Ela sonha habitar em
Sintra. Farei para ela uma surpresa.
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— Não me importa o custo, Ezequiel. O que me importa agora é realizar o
sonho de Margarida – disse com uns olhos sentimentais.
— Escrevi para eles. Disse que estou bem e que estou fazendo a minha
vida. Finalizei dizendo que em breve darei notícias.
— Perfeitamente.
— Não seja assim tão romântico. Não espere demais, nem sabes se vai
valer a pena.
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Capítulo 9
Era dezembro. Ricas noites. Num daqueles dias, eu recebera em meu
gabinete, um convite para uma festa em casa do governador de Lisboa. Isto fora
para mim um grande reconhecimento. Afinal eu havia deixado Paris para instalar
um consultório em Lisboa, confesso que fiquei extremamente lisonjeado.
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E olhando em volta, disse-nos, como num de fim de discurso:
— Estão aqui hoje, reunidos nessa festa, uma parte da elite de Portugal,
que é uma coisa muito pouca.
— Dê-me um minuto, mamãe – sorriu para ela, com certo medo nos olhos.
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velhos, sentados numas cadeiras de alto espaldar, descansavam indolentes,
fumando charutos.
— Oh... tu por aqui? Mas deverias decerto, aqui está. Como me disse o
governador, estar hoje aqui uma parte da elite de Portugal.... Tu não deverias
mesmo estar em outro lugar. Dá cá um abraço meu bom Ezequiel.
— Eu verei. Já disse.
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— Lisboa é uma cidade impossível – disse o governador com um suspiro
significativo – impossível numas coisas e possível em outras – corrigiu-se
embaraçado logo depois.
— Essas cambadas.
— Ah! Paris. Aquilo é que é terra. Mas não compreendo Ezequiel, como
tu deixaste Paris?
— Se algum dia eu deixar este país – continuei: – meu caro Domingos será
para ir à Índia, a África, ou a América.
Eu tinha plena certeza, que não voltaria mais à Paris. Ir à Índia era já um
sonho ultrapassado. Eu fui somente ao Brasil, uns anos antes da minha ruína.
Tinha ido visitar a Bahia e conhecer a medicina brasileira. Tinha também o
96
objetivo de conhecer as plantas medicinais. O Sr. Morais é brasileiro, pois não é?
Então deve conhecer muito bem a cidade de Salvador. Que encantadora cidade.
Fiquei hospedado no Hotel da Bahia no Campo Grande. E sair logo para visitar a
Faculdade de Medicina no Terreiro de Jesus. Fui também ver uma rica construção.
Era da Escola de Belas Artes na Rua 28 de setembro. E eu não poderia deixar
também de conhecer os Museus, que um amigo de Beja havia me aconselhado.
Eram de fato, magníficos. Andei pelas feiras livres. Conheci a feira de Água dos
Meninos. Nunca vi coisa igual nessa terra. Era uma festa. Realiza-se no Sábado à
noite e no Domingo de manhã. Viam-se belas negras e mulatas ante as barracas; e
a comida baiana com aquele cheiro maravilhoso. Ah, uma viagem inesquecível.
***
Ezequiel Prado dizia-me isso com o rosto alegre, com o semblante leve.
(Virgínia havia tirado a mesa). Todos em volta o ouviam, atentos. Judite, sentada
defronte a ele, o rosto apoiado à concha da mão, o ouvia com os olhos cheios de
água.
***
97
Carlos dera bruscamente uma gargalhada agressiva, que o sangue lhe
subira ao rosto, concordando com um movimento de cabeça, o que dissera
Domingos.
Uma dupla havia deixado a mesa. Dois de nós foram convidados para o
jogo de cartas. Leopoldo e Domingos aceitaram o convite. O governador ficara a
me apresentar a mim e ao Carlos o Conde de Abranhos, uma excelente pessoa. E
outros fidalgos que ali se encontravam. Um senhor, sentado numa vasta poltrona,
bocejava com um jornal esquecido no colo. “Aquele homem tem uma rica mansão
no Bairro das Janelas Verdes. Chama-se Acácio. É bancário. Aquele outro, de
monóculo no olho, embaralhando as cartas, tem uma rica propriedade em Arroios,
um luxuoso palacete, como poucos que entrei neste país. A gente pode até se
perder lá dentro”.
Carlos por fim, perde para o Sr. De Almeida. Que sem dar uma chance de
revanche a Carlos, fora logo embora com o Conde de Abranhos.
— Ó sim.
— Despida de gostos.
— De fato...
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Por isso, em nome de todos. Dou-lhe uma placa de Ilustre Sr. de Lisboa. Para que
sua passagem nesta terra seja sempre lembrada.
Naquela semana Carlos partira para Sintra com a bela francesa. Eu ficara o
resto daqueles dias de dezembro em casa, na Rua do Ouro, rascunhando o início
de um livro de medicina que há muito tempo pretendia escrever – A Medicina
Moderna – que há anos desde os tempos do Liceu Português e da Universidade
em Paris, havia juntado em papéis avulsos, diversas pesquisas. Passava assim
então aqueles raros dias de minha vida, entretido na salinha de casa, bem
acomodado em mangas de camisa e com umas velhas chinelas do papá; sentado à
mesa – uma grande mesa de pinho no centro da sala. Por sobre esta mesa, tinha
todo o material de trabalho para o livro. Havia de um lado uma pilha de
rascunhos, de um papel já muito velho, e perto um tinteiro de prata, com penas e
bicos novos, uma caixa de lápis e um caderno novo de papel. Para o meio da
mesa, erguido severamente, o velho castiçal francês. De frente à mesa numa
parede clara, pendia uma foto do meu avô Alonso Prado, em colarinho branco,
com uma gravata preta e uma longa sobrecasaca negra. Estava de pé, meio de
perfil, apoiado à bengala de cana da Índia. Tinha um olhar penetrante, com umas
pupilas muito verdes. Tinha bigodes negros, muito cheios; os cabelos grisalhos,
penteados de lado. Era o meu avô que eu não conhecera. Sabia apenas que ele
nascera no Porto e que estudara Direito em Coimbra e que fora casado com Emília
Aranha, uma italiana, filha de pais brasileiros, que foram nascidos no Sul da
Bahia.
Carlos estava em Paris com Margarida nesse ano, mas para a minha
surpresa, ele tinha aparecido com sua francesinha na noite do lançamento.
— Brilhante obra Dr. Ezequiel Prado. Obra está, concebida decerto, com
muita pesquisa pelo mundo. E é orgulhosamente portuguesa. Por isso meu
menino, tens o meu apoio no que precisar. Se por acaso fores a Sintra, faça-me a
honra de hospedar-se no meu modesto hotel. Hotel Lawrence. Sem cerimônias
meu caro, dá cá um abraço – disse-me comovido, desta maneira, o bom Sebastião
Damasceno.
***
101
— Esta cadeira dura estar a me matar. Vamos para a minha sala.
***
***
102
política; às influências de Antero de Quental e, sobretudo, de Paris. Muitos
daqueles jovens vieram de Lisboa, do Porto, de países vizinhos e até do Brasil.
— Bom descanso Ezequiel. Repito. Meus parabéns pelo seu prestígio hoje
– continuou o Sr. Noronha, emocionado.
103
— Preciso agora dormir. Até de manhã.
Carlos desceu para o café, sorrindo leve e largamente ao lado de sua doce
Margarida, que vestida com uma roupa leve e clara, e sorrindo também, parecia
mais bela. Poucas vezes eu vi Carlos assim tão feliz.
— São esses ares de Coimbra – disse eu, sem olhar para Margarida.
— Ontem foi uma noite para guardar na memória, não é mesmo Ezequiel?
104
— Talvez eu siga o seu conselho, Carlos, mas ainda preciso viver mais,
realizar muito mais.
— Ela está cada dia mais bela. Parece que a viagem à Paris a fizera muito
bem.
— O que tu achas?
— Já era tempo...
105
Seguimos um momento, calados, numa ruazinha estreita, onde havia
muitas árvores em volta, e viam-se umas belas e antigas casas ao longe, um doce
aroma de flores. Carlos exclamou:
— O Dr. Ezequiel, temei que já tivesse partido... onde está o nosso jovem
Carlos?
— Carlos partiu com sua noiva para Lisboa, ainda a pouco professor.
106
— Pois bem, meu caro, vim lhe convidar para um solene jantar em minha
residência.
— E mais uma vez, quero lhe dar meus parabéns pelo excelente trabalho.
— Obrigado.
Era aquela bela casa branca que na manhã tínhamos visto sair Antero e
seus amigos.
Naquela tarde, não saí do meu quarto. Fiquei pensando já no que faria
quando retornasse a Lisboa – quando subitamente lembrei-me de Joana, ainda não
a tinha esquecido. Eu tinha ainda esperança de conhecê-la. E pensava, sobretudo,
no plano que tinha quando deixara Paris. Que era de levar a medicina aos lugares
mais distantes do mundo, ao povo mais necessitado. Aos povoados e lugarejos de
Portugal...
***
***
— Meus cavalheiros, temos hoje em nosso meio, nos honrando com sua
rica presença, nosso jovem Dr. Ezequiel Prado. Herdeiro de uma família de
elevada cultura...
109
Eles costumam se reunir aqui todas as terças feiras, Dr. Ezequiel Prado.
Isso há quase um ano – disse-me o diretor, tocando-me o ombro a caminho da
outra sala.
Teófilo Braga conversava muito sério com João de Deus, que há muito
tempo não vinha à Coimbra, os senhores mais próximos os escutavam. Depois
Antero de Quental que estava calado, tomou a palavra num discurso longo.
Ramalho Ortigão, falou em seguida, Teófilo Braga também fez o seu discurso.
110
a Estrada de Ferro Beira Alta, que fazia grande sucesso entre os estudantes de
Coimbra.
O diretor continuou:
111
Davam onze horas, quando os senhores se ergueram para sair. Um terço
deles ficou ainda mais umas horas. Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Teófilo
Braga partiram com o maior número. Os que ficaram foram para a sala de música,
onde se encontrava um piano negro e duas rabecas velhas, uma estante de
pau-preto com mais encadernações de música e muitas partituras avulsas por
sobre uma mesinha ao lado do piano.
Ó menino ouça cá... nada poderia ser mais puro do que uma poesia não
é mesmo? Poderíamos somente citar da beleza de nossas mulheres; da natureza,
do amor; o culto da arte pela arte, como dissera uma vez, Antero; o Tejo, os
Olivais; os jardins floridos de Sintra e até mesmo de nossas conquistas ao longo
dos tempos. Todavia, contradigo... Como a poesia destes meninos portugueses,
muito influenciados por Berlim, Londres e Paris, poderia ser tão pura, romântica,
112
casta e como dizem Vestais, neste país impuro, despido de gostos, onde só há uma
sociedade egoísta e de tanto mau gosto... por isso temos agora a poesia
revolucionária – dizia erguendo o braço, mudando o tom da voz – moderna e,
sobretudo realista de Antero de Quental, Teófilo Braga, Oliveira Martins e os
demais... parece-me justo, não te parece?
113
satisfeito recostado na cadeira de forro de palha. Talvez com aquela doce e
agradável manhã de Coimbra, ou com o sol que já brilha através das vidas do
velho hotel onde passara os maiores intelectuais de Portugal e ali ele estava. E
com o mesmo sorriso de satisfação, perguntou-me?
— Diga-me uma coisa caro Ezequiel, que é feito de seu amigo Carlos?
— Que tem feito o Carlos em Portugal? Eu soube que ele chegara de Paris,
não faz muito tempo – perguntou o professor João Bonifácio.
114
Uma carroça estacou na calçada. Do bar se ouviu o cavalo soprar de
cansaço e bater com o casco nas pedras da rua. Logo depois uma mulher de
cabelos mal penteados entrou no hotel. Trazia um vestido velho e sujo e botinas
de elásticos sujas de barro. Estava com a face pálida como cera, e as mãos sem
luvas, maltratadas, amarelas e ossudas. Conversou com um recepcionista que a
deteve e, depois de muita insistência da mulher, o rapaz me apontou confuso. A
mulher aparentava trinta anos. De perto pareceu-me mais feia, suja e raquítica.
Tinha olhos pisados e pregas de velhice nos cantos da boca.
— Pois olhe doutor... eu não quero lhe incomodar, é que meu pai está de
cama há dias. Está a sofrer duma forte gripe e febre alta. Não temos dinheiro para
uma consulta. O que ele deve tomar? O que posso fazer, doutor?
A tipoia rolou por quase meia hora. Aqui e alem via-se uma casa pobre. E
ouvia-se alguém cantando melancolicamente o fado, ou toques de guitarra e
realejo. De uma triste casinha alguém cantava a traviata. Noutras casas de
edificação mais acabadas, via-se uma gente alegre, debruçada nos parapeitos das
varandas, onde se mirava sempre uma planta colorida e viva, em pequenos vasos
raros.
115
O Sol batia mais forte. Um calor abafado fazia dentro da tipóia, que há
mais de uma hora rolava puxada por dois cavalos velhos. A senhora como eu,
nada falava, às vezes ria desconfiada. Falaram-me apenas o seu nome, era Luiza
Mendes e o pai Augusto. A tipoia subiu uma ladeira e enfim pararam defronte a
uma casa baixa e pobre. Dentro estava quase nua de móveis. Num quarto meio
escuro, encontrei sobre um leito de madeira carcomida, e forrado num lençol de
chita, com remendos, o velho Augusto. Era um homem gordo, com longas barbas
de apóstolo. Estava pálido como cera, e com os cabelos despenteados como
abandonado.
***
116
Enfim, o dia amanhecera. O sol apareceu brilhante entre as altas árvores da
velha Quinta dos Prado.
— Ó não, Sr. Jorge. O avô adora contar suas histórias. E tem ainda muito
mais a contar. Se os senhores tiverem paciência. A propósito, obrigada por darem
ouvidos a meu avô. Ele fica muito feliz quando o escutam. Sei, no entanto, que o
senhor tem um interesse maior nessa história devido a seu pai fazer parte dela Dr.
Eduardo. Mas agradeço-lhe mais uma vez.
***
— Não se recorda para que fora tão honrado convite, Dr. Prado? —
indagou o Sr. Lobato, levando os lábios à chávena de café...
— Traga uma chávena de café para o Sr. Paula, Virgínia – disse Ezequiel,
que se manteve sério.
***
Era o rapaz, que jogava cartas na mercearia, que nos ensinará a casa de
Ezequiel, quando tínhamos entrado na pequena vila.
***
118
— Estive a andar por estas bandas, desde cedo, à procura de uma Quinta
velha e barata – disse com tédio, torcendo as pontas dos bigodes.
— Os vem de Évora?
— Somos amigos do bom Ezequiel, meu rapaz. Assim como V. Ex. – disse
Jorge, ironicamente.
***
***
119
Sintra. E outra carta, que alguns anos depois, ele recebera em Lisboa, de Antero
de Quental. Datada de 1870.
***
— Olá. Por cá? Que grande surpresa! — disse Ranunfo, correndo para me
abraçar.
— Vou-me muito bem... obrigado... procurei-te por todos os lados. Até seu
velho pai me dizer que tu estavas em Coimbra, Ezequiel.
— E tu quando chegaste?
— Tu estás muito bem, hein meu caro. Boa cara, uma bela cor face, sem
uma branca, nem uma ruga. És ainda como aquele menino que eu conhecera em
Paris.
120
— E você não está nada mau, elegante como sempre.
— E Paris, ó Ezequiel, por que não voltaste lá? Quem lá vai nunca se
esquece. É o berço esplêndido do mundo. Toda alma deseja lá voltar... que viste tu
nesse país, que o prendestes? Por acaso foi um róseo corpo de graciosa postura e
cintura breve?
— É verdade — disse ele — mas nem todos os habitantes daqui tem essa
sua visão.
— E Carlos o viu?
— Ah. Vai haver logo mais um jantar no Hotel de Paris, onde eu estou
hospedado. O Carlos vai estar lá, e vai levar a sua francesa... dizem que é de uma
beleza extraordinária. Onde ele a encontrou, ó Ezequiel?
— Obrigado. Pois, a francesinha tem uma loja de véus, lençóis, etc. Onde
Carlos passou logo a espreitar. Enfim, o resto já se sabe.
122
Uma tipoia descoberta apontava na esquina. Vimos Carlos. Sério, de terno
preto e uma gravata de cetim preta, com os cabelos bem anelados, tingidos de
preto. Ao seu lado, a Margarida toda de luto, com um véu de renda preta sobre o
rosto quase irreconhecível. Vinham de um velório de uma prima de Margarida.
Mas ao nos ver, sorriram num riso ligeiro e triste. A tipoia estacionou junto a nós.
Carlos saltando, gritara:
123
— Bem – murmurou – até a noite – ia dobrando a esquina gritou – o
Domingos e o Castro também estarão lá.
— Esse Castilho, meu rapaz, é um dos maiores educadores que este país
possui – rosnou furioso o maestro – e depois, aquele Antero chamou o fútil. Não
respeitou os seus cabelos brancos.
125
— Antero de Quental é para mim um grande poeta, como poucos que
conheci. Quanto ao velho Castilho...
— Há de chegar logo.
Ranulfo consultou mais uma vez seu relógio de bolso, e depois olhando a
rua para cima e para baixo:
— Uma sala no segundo andar está reservada para nós. Carlos a conhece.
Vamos subir.
126
— Mas a comida daqui não passa nem perto. Mesmo havendo aqui um
cozinheiro francês – disse Ranulfo.
— Sim. Fale.
— Sei que tu és um bom moço. Por isso trato-o de filho... O vira nascer...
essas questões literárias não podem nos desunir...
— Claro. Claro...
127
— Será para mim um imenso prazer. A propósito, belo cachimbo.
— Ó sim.
— Ó Ezequiel, meu caro irmão, quero dar-te a nova. Vou me casar com
Margarida e fazer uma longa viagem pela Europa, a começar pela Espanha.
— Isso é sério?
— Pois fale...
— Faça uma boa viagem, Sr. Armindo. E não se esqueça de levar muitos
agasalhos – disse eu.
128
Numa sala ao lado eu percorria uns jornais soltos sobre a mesa, enquanto
Carlos ainda se despedia do velho poeta. De aspecto pachorrento, o velho gordo,
de dentes estragados e barba mal aparada, ia a Londres exilar-se por dois anos,
para se dedicar a um livro de poesias realistas.
Era a foto de corpo inteiro duma bela rapariga ao lado de duas ricas
senhoras.
— Meu caro, é de fato muito parecida, ao talvez seja ela mesma — disse
eu desanimado, contemplando a bela figura de traços magníficos, de dentes cor de
pérola, com um longo cabelo solto sobre as costas, em belas madeixas negras e
com lindos lábios finos.
129
Era de fato, Joana ao lado da Condessa de Abranhos e a senhora Grevy,
uma portuguesa viúva de um milionário americano.
— Mas ela já deve estar casada, com algum Conde ou Marquês ou até
mesmo com alguém da Família Real.
— Creio que não Ezequiel. Veja as suas mãos –— disse mais uma vez
apontando a foto — não há nenhum anel, exceto um anelzinho de rubi no dedo
miudinho – e leia mais isto:
130
lentamente, e com a outra, acenando num gesto mudo, como sempre, um
conhecido que passava na outra calçada. Uma charrete passou. De dentro alguém
o cumprimentou, e outro mais devagar, com os estores erguidos. Reconhecemos
logo uns amigos.
— Era o André?
— João Miguel casou-se com uma bela espanhola, não faz dias.
Contara-me o Domingos.
— Sim, a conheceu?
— Um corpo escultural...
— Já era tempo...
131
— Me veio esses dias uma vontade de aquietar-me, me casar. Viver num
lar feliz, numa casa florida, aberta ao sol. Ao Norte da França ou até mesmo aqui
em Portugal.
— Ah...
— Que te parece?
132
“ Esse ano passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram,
arvoredos murcharam. Outros anos passaram. ”
Os Maias.
Eça de Queiroz
133
Capítulo 10
Carlos casou-se com Margarida uns meses depois, numa cerimónia
simples, no bairro de S. Vicente onde Margarida tinha uns parentes pobres.
Compareceram aquele dia os fiéis amigos. Entre eles estavam: Domingos,
Leopoldo, Augusto de Castro, Armindo Braga e Ranulfo Peres; uns amigos da
casa Havaneza, do Grêmio e do Jockey Club da Travessa da Conceição. Eu fui
com Joana, um dos padrinhos, e William, o irmão de Joana, com sua bela
parisiense também. William já era amicíssimo de Carlos, se deram muito bem.
Casei-me com Joana no ano seguinte e fui morar com ela na residência dos
Ávaro na mansão do Bairro das Janelas Verdes, onde vivia a nata da sociedade
lisboeta. Era em janeiro de 1866 a “década das revoluções”. Em dezembro de
1865, um domingo cedo, eu fui com Carlos e Margarida a um culto na pequena
Igreja Presbiteriana da Rua das Flores. E de tarde eu os acompanhava, sob uma
chuva fina e miúda, até a Estação de trem de Santa Apolónia. Viajaram pela
Europa por quase seis anos. Por esse tempo nasceram meus dois filhos; Miguel o
mais novo e Maurício o primogênito e neto favorito dos Ávaro. Nesse período, no
entanto, os pais de Joana retornaram a Paris, com o pretexto de que não se
adaptaram ao clima de Portugal. O velho Ávaro andava pela Inglaterra. Eu me
mudei para a Rua de S. Francisco o consultório médico, num edifício elegante,
numa sala maior, com o gabinete separado por um reposteiro de repés vermelho.
Num endereço de maior conhecimento.
135
— Olá Ezequiel — disse o Domingos tocando-me o ombro, já quando eu
estava a entrar em meu consultório – preciso falar-lhe, um instante.
— A Joana...
— Sim.
136
— Tu estás mesmo falido meu caro... — me espere um momento. – Corri
até uma estante, puxei uma pasta, e tirei dela um envelope que continha cinqüenta
tostões, era um pagamento de um cliente.
— Me escreveu... disse que tudo está a correr muito bem em Paris, e que
logo aparecerá por cá.
— Oh. Paris...
137
Em 1871 Carlos veio a Lisboa com Margarida. Chegou robusto, mais
corado, agora no rosto gordo; usando barba. Uma barba negra e bem aparada, e já
com sinais claros de calvície. Margarida chegara também mudada. Grávida de seis
meses e com manchas na pele da gravidez, mas ainda muito encantadora. Ficaram
hospedados em minha casa. Carlos veio a negócios, mas pretendia passar uma
temporada em Sintra e depois retornaria à Paris, onde pretendia habitar por longos
anos.
— Arrancou muitos elogios dos críticos ingleses. Mas não obteve sucesso
junto ao público, nem de lá e nem daqui.
— Velho Armindo...
— Muito em breve, até ficaria por cá, mas Margarida prefere criar o nosso
filho em Paris.
138
— Margarida tem bom senso.
Carlos acendeu um charuto, dando lentos passos pelo gabinete. Com o seu
sorriso de sempre me dissera:
De súbito, Carlos fez-se sério. Dera uma tragada nervosa no charuto, outra
mais longa. E pensativo, disse cravando-me um profundo olhar:
Ele calou-se respirando fundo, dando lentos passos pelo gabinete, com a
cabeça levemente inclinada, olhando-me de vez em quando muito sério.
Carlos era muito conservador. Agora mais que nunca. Jamais se afastaria
da família, e se possível, não mudaria sequer a sua rotina de trabalho.
— Deixe lá isso homem – disse com um riso triste, e continuou num tom
de preocupação na voz:— isso é coisa para a Saúde Pública, para o governo. Não
são coisas para nós, profissionais conceituados.
139
— Prefiro ficar a atender ao povo pobre, do que ficar a atender a essa
gente hipócrita de Lisboa... E o porquê desse espanto? Eu já tinha lhe dito isto
muito antes.
142
143
Tudo que te vier à mão para fazer , conforme as tuas forças, porque no
além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem
sabedoria alguma.
Eclesiastes 8, 10
144
Capítulo 11
No Grêmio, na Havaneza e no Jockey Club da Travessa da Conceição,
comentavam de um só assunto: às Conferências Democráticas no Casino
Lisbonense. Fora dessas conferências há um ciclo de palestras. Era a
consequência da agitação política, social e cultural, iniciada no ano de 1860 e
intensificada em 1864, quando foi inaugurada a Estrada de Ferro Beira Alta. A
essas agitações dera-se o nome de Questão Coimbrã.
145
No dia 18 de maio numa edição histórica, o Jornal Revolução de Setembro,
publicara o programa dessas conferências:
No dia vinte um, numa noite fria e seca, houve em minha casa um jantar
de confraternização. Participaram com alegria, demonstrando ainda amizade e
cordialidade a mim: O Domingos, agora mais pobre e magro, vestido com uma
velha sobrecasaca verde, faltando dois botões, com calças gastas e sapatos bem
envelhecidos e com os dentes inteiramente estragados. Entretanto, vinha com os
bigodes frisados e os cabelos grisalhos bem anelados. Estava também o Leopoldo,
vestido em trajes ricos. Tinha se casado com uma solteirona rica. Leopoldo era um
belo e robusto português bem disputado. Casaram-se com um dote de cem mil
contos. Estava também o Ranulfo Peres, recém chegado de Paris, com algumas
suíças ruivas, e ainda solteiro. E Carlos com Margarida, sempre risonhos. O
professor Afonso Almeida, louvando sempre a Antero de Quental. Sua pessoa
incomparável. Afonso Almeida era esguio e forte, e tinha o dom da simpatia. Era
Casado com D. Olga Almeida Freitas. Uma gorda senhora de Coimbra. Afonso
Almeida, depois de casado, trazia pela primeira vez, a D. Olga a Lisboa. Olga
tinha um belo rosto, com olhinhos bem azuis. Era uma das mulheres mais
intelectuais de sua época em Portugal. Possuía um vasto conhecimento da
146
Literatura Européia. Deixara a sua sala, com muito custo. Pois sofria de
reumatismo. Mas havia declarado que não perderia por nada as Conferências
Democráticas. Estivera sentada a um canto toda à noite.
Ela adorava dar jantares e receber visitas ilustres. Exibir seus caros
vestidos, os anéis de ouro e rubi, um colar de diamantes e as pulseiras de ouro,
compradas em Paris. Mas adorava, sobretudo, exibir sua casa: A sala de musica,
com um piano negro de cauda, mandado vir da Itália; as cortinas de Cretone, os
quadros em pintura a óleo, adquiridos em Paris e Londres. A sala de jantar com
uma enorme mesa de carvalho lavrado e ao centro um armário envidraçado com
pratos de porcelana italiana.
147
— Eu não vejo a hora de ver o nosso Antero subir à tribuna – comentou o
professor rindo regaladamente.
Houve uma grande surpresa quando um criado anunciou duas visitas. Era
Adolfo Coelho e Augusto Soromenho que vinha do Central.
— Totalmente.
148
Adolfo Coelho pronunciaria o “ensino” na quinta conferência, em 19 de
junho. Começou logo a falar do assunto com o professor. Augusto Soromenho
pronunciaria a “Literatura portuguesa” em 5 de junho. Augusto Soromenho
penetrou na salinha, com um olhar vivo e cumprimentara a cada um até parar em
Carlos, abraçaram-se, se conheciam. Carlos logo o apresentou a Margarida. Feliz
mostrou a barriga dela. “Será um homem, creio, com os olhos da mãe”. Do outro
lado, o professor Afonso Almeida apresentava com orgulho para todos, o seu
ilustre amigo Adolfo Coelho. Afonso Almeida era uma figura modesta. Não
possuía riqueza alguma. Mas era muito respeitado em Coimbra, pelo seu
conhecimento e pela forma de como lecionava. Era feliz com o emprego que tinha
e, sobretudo por ser amigo de Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins
e Antero de Quental.
149
— Senhoras e senhores, espero que não fiquemos só neste dia — disse eu
na cabeceira da mesa – que possamos nos encontrar mais vezes nessa sala.
— Ah... Minha menina. Sou muito grata. Até viria mais vezes se eu
pudesse, mas as dores aumentam sempre que me desloco de casa. Há anos vivo só
em Coimbra.
— Meus parabéns pelo seu filho Miguel Dr. Ezequiel. É um belo garoto.
Todos riram.
151
— Mas, no entanto, é na infância que a criança aprende sobre a moral e os
bons costumes – disse D. Olga — cravando um significativo olhar em Sebastião.
— Sim. Minha rica Joana. Assim como o meu menino. Quero vê-lo como
um homem de luta e braços fortes – continuou Carlos, animado – sem essas
meninices de agora.
Não esperávamos mais nada, quando vimos meu filho mais posso penetrar
na sala de música, vinha com aquela carinha de choro que é peculiar aos caçulas.
152
— Este é meu filho mais novo – disse ela, imediatamente.
— Toque filho.
153
— Eu digo o mesmo Dr. Ezequiel. Temos ainda que passar no Grêmio —
disse Leopoldo.
— É por isso que nossos melhores artistas deixam este país — disse ela
voltando-se, com um ar de indignação na face, que a deixou mais linda.
154
Recordar
E do futuro, esperanças...
155
França, quando vinha a Lisboa. Além disso, pertencia-lhe uma vitória com duas
éguas brancas e uma charrete; uma casa em Sintra, outra no Porto, e umas casas
de aluguel em Leiria.
O velho Sr. Aloísio Ávaro, não viria tão cedo a Lisboa, ou talvez não
viesse mais. Apesar de ser português, devido aos seus pais o criarem mais em
Paris que em Lisboa, o velho não se adaptou ao clima português e aos maus
costumes do “povo” de cá. Algum dia mandaria vir a Portugal o seu procurador
para pôr à venda as casas em Leiria, a casa do Porto, a Quinta de Sintra e o
casarão do Bairro das Janelas Verdes. Pois me perguntavam sempre, franzindo o
nariz, uns e outros mais interessados: “quando vem cá o velho Ávaro?” O seu fiel
procurador, um senhor de quarenta anos, seco e arrogante, vinha todo verão a
Portugal para tratar dos negócios da família. “Logo colocarei à venda todas essas
moradias, já tão alquebradas”. Dizia o procurador, torcendo o nariz, batendo com
a ponta da bengala no assoalho.
— Creio que o Sr. Aloísio não se abalará para o nosso Portugal – respondi
ao professor, com a certeza no que estava falando – algum dia ele mandara vir
definitivamente o seu procurador a Lisboa, para pôr à venda os imóveis que aqui
possui inclusive esta casa – completei tranqüilamente, de minha poltrona para o
professor.
156
— E tu Sr. William, o que pensas disso? – perguntou o professor,
acendendo um charuto.
Em 1880 o Sr. Pádua veio a Lisboa para pôr à venda a casa do Bairro das
Janelas Verdes e os demais imóveis.
157
Capítulo 12
As Conferências do Cassino.
O Espírito das Conferências
Na tarde do dia vinte e dois de março, um dia sem chuva, viam-se grupos
caminhando religiosamente sérios para o Casino Lisbonense. Apesar de muitos
ouvirem falar e dizer, das conferências, nos botecos, jornais e revistas e nas
conversas do Grêmio e da casa Havaneza, havia ainda quem se perguntava: “para
onde vão aqueles homens tão sérios ``.O que se passa no Cassino? ” “O que fazem
em Lisboa esses meninos de Coimbra? ”.
Causas da Decadência
Literatura Portuguesa
159
Pois lá estivemos. Augusto Soromenho propunha a criação de uma
literatura efetivamente nacional e ao mesmo tempo criticava a literatura
setecentista e romântica. Terminou o jovem Augusto Soromenho, aclamado por
todos.
No dia 12 desse mês foi a vez de Eça de Queiroz subir à tribuna. Eu não
pude comparecer nesse dia, pois fiquei a sofrer de um forte resfriado. Mas eu
soube depois por Carlos e o Diário de Notícias que Eça de Queiroz, que estivera
alheio a Questão Coimbrã, em 1865 participara com grande destaque nas
Conferências.
Havia ainda quem não o conhecia, mas entre os intelectuais, seu nome e
seus artigos e folhetos já eram muito citados.
160
Na Quarta Conferência intitulada “O Realismo como nova Expressão da
Arte", Eça de Queiroz atacou o Romantismo e expôs os valores realistas,
ressaltando o caráter social da literatura e o seu valor como agente de
transformação, atuando sobre uma sociedade obsoleta.
161
No dia 19 de junho, Adolfo Coelho subiu à tribuna. Pronunciara o
“ensino” na quinta conferência. Sua proposta era um ensino científico e a
valorização das ciências humanas. Também propunha o fim da influência religiosa
no ensino. “O fim da influência religiosa no ensino do país, não fora também
aceito".
162
O Cassino fora fechado e as conferências proibidas pelo Governo porque,
“Atacavam a religião e as instituições políticas do estado”.
— Era o fim das Conferências. Lisboa voltava a seu curso normal e sua
pobre e cotidiana vida.
***
***
Eça de Queiróz é hoje o mais lembrado, pelo fato de nos ter deixado
simplesmente a melhor obra de nossa literatura. Quanto a Antero de Quental,
apesar de ser o guia daquela brilhante geração, (a chamada geração de 70), pouco
é lembrado, por nos ter deixado miúda obra. Aos demais realistas, exceto Guerra
Junqueiro, Ramalho Ortigão, Teófilo Braga e Oliveira Martins, quase ficaram no
esquecimento.
***
163
A recordar...
O meu pai jazia, assim como quase todos que com quem ele andara.
“Ainda há dias”. Contava-me ele, que uma mulher da redondeza, sabendo-o como
bom médico, levaria-lhe uma criança muito adoentada. “A tratei”. Foi a derradeira
vez que ele exerceu a função de médico. Com tudo, sentia-se feliz em ter a
companhia de Judite, a única neta. O melhor presente que a vida lhe deu. Muito
fez na vida. Ajudará tanta gente. Poderia agora descansar em paz. Não como a
mim. Egoísta... que nunca estendeu a mão ao maior necessitado. Sair do meu pai.
Tenho câncer. Vou morrer como ele.
***
***
Já era muito tarde. Não tínhamos sentido o tempo passar. Lá fora era só
treva. Num silêncio, que ouvia o piar duma coruja.
***
***
— O que devo contar-te agora irá chocá-lo. E decerto, seu pai nunca lhe
contara... mas sinto a necessidade de contar-lhe.
— Seja o que for – sorrir – estou com o espírito preparado para saber do
Sr. Ezequiel – terminei com intimidade.
— Que houve?
165
Não era o menino que ele tanto esperava... uma menina loura, com duas
rosas nas fáceis. Nascera com perfeita saúde. Margarida de parto complicado não
sobrevivera.
***
***
166
começou a reclamar de fortes dores, que aumentava a cada momento. O Dr.
Eugênio estava por cá justamente nesse maldito dia! Disse-me que precisava
comprar luvas e máscara médica. Não tinha um hospital próximo, sem contar que
chovia muito desde sexta e Margarida não aguentava nem se movia na cama...
gritava tanto – disse com as mãos trêmulas, tentando acender o charuto, ria
novamente como louco... E continuou:
— Foi quando pela tarde a ama apareceu-me com uma velha parteira, uma
parteira Ezequiel! – falou chorando. – e eu a consentir que fizesse o parto...
— Não culpe a criança Carlos, ela não tem culpa. Arrepende-se! – disse eu
impaciente.
— Era parto de risco Ezequiel – falava mais calmo – não era minha área,
mas eu poderia ter percebido. Consentiu que o Dr. Eugênio voltasse a Lisboa e a
velha fizesse o parto. Eu sou então o culpado. Hein, eu matei minha mulher! –
gritou chorando, erguendo as mãos.
167
No gabinete um cansaço pesava. Terminei por ficar calado, dando tristes
passos. Mas Carlos, em fim emergiu-se de seu silêncio:
— E as crianças?
— Vão bem! Vão todos bem. Obrigado... agora se levante Carlos. Vamos
almoçar. Tu necessitas comer e tomar um banho.
— Anda homem!
169
— Não conseguir chegar a tempo. Fizeram o que pôde. Bom trabalho —
repetir, sem saber o que falar.
— Não, minha senhora. Está muito fraco e não consegue ainda reagir e
nem raciocinar.
— Coitado... sofrera muito, com a sua mão a dela, até que ela dera o
último suspiro.
— Na casa de uma amiga minha. Pedir que a levasse. Para comer alguma
coisa.
— Compreendo.
— Era tão bela e tão jovem. Que triste fim. Morreu só, como a mãe – disse
ainda ao meu lado ama, ante o caixão.
— Sim... Era uma boa mulher... tão bela! ... falecera quando Margarida era
ainda uma criança de berço... se não fosse o meu marido e alguns amigos nossos,
não haveria quem velasse e carregasse o caixão.
— Deixe-o comigo.
Parei para comer alguma coisa. Com esforço, pois sabia que teria que me
alimentar. Na cozinha da casa, uma paz estranha se fazia.
Já era noite. Ainda voltamos para velar o corpo. Quatro velas esguias
ardiam em redor do caixão; um lenço de seda cobria o rosto de Margarida.
Suspendi o lenço e fiquei a fitá-la por um longo momento. Tinha um rosto pálido
como cera, mesmo assim era ainda bela... não consegui segurar o choro e, pela
primeira e única vez chorei amargamente.
O enterro saiu bem cedo. Carreguei com mais três homens da pequena
Vila o caixão até o túmulo.
Deixei a Quinta onde nunca mais voltei. Há meio quilômetro dali, fica o
Cemitério de Sintra onde Margarida está sepultada. Por alguns anos a ama, a
enteada e a filha de Carlos, sempre na data de sua morte, levaram flores a seu
túmulo, até que num certo dia, após o almoço, a velha Do Carmo veio a falecer de
apoplexia. Sobre a menina? Deixarei esse assunto para o fim de minha história. A
enteada de Carlos, após a morte de D. Do Carmo, casou-se com um caixeiro e foi
viver em Povoa do Varzim.
171
Na manhã daquele dia, após deixar o cemitério, sob uma fina chuva, vi sair
a porta do Hotel Lawrence, quando eu galguei as escadas da frente, o bom Sr.
Damasceno, que me gritaram, surpresa:
— Sim, com todo o prazer meu menino. E como me andas, minha querida
Joana?
— São dias taciturnos... E chove muito por cá – disse ele, absorto, olhando
para o céu cinzento.
172
A chuva estava se intensificando. Agora batia fortemente as vidraças do
quarto, o vento soprava as árvores que vinham bater violentamente as janelas.
Num aposento próximo ouviu um bater de portas e janelas. Reclamei a um criado
que passara, “e traga-me um cálix de genebra”. O Sr. Sebastião Damasceno veio
cuidadosamente me ver em meu quarto.
173
Fiquei de pé ao lado da cama, com as mãos à cintura.
— Descanse...
— Sim!
— E quanto à criança?
— Não te esqueças de que Margarida lhe deixara uma filha, fora o maior
desejo dela.
Pela manhã bem cedo partimos como numa comitiva para Lisboa.
Viajamos com duas charretes. Numa delas estava a ama com a criança e com duas
criadas italianas, com seus pertences; e na outra, ia o Carlos comigo e com um
criado de quarto, e mais uns pertences pessoais. Carlos estava estranhamente
compenetrado, disse-me poucas palavras, mas corretas e sensatas. No entanto, não
mencionou o nome da criança.
Foi com a criança para o interior da casa, seguida da velha ama e das duas
criadas italianas. Seguimo-las em silêncio, maquinalmente.
— Agora aqui será o seu novo lar, minha menina – dizia, quando parou e
voltou-se para nós:— Ela já tem um nome?
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— Melaine! Que belo nome. Vamos para o seu quarto Melaine. És linda! –
seus olhos brilhavam – és linda como a mãe Carlos. Calou-se, constrangida de ter
recordado aquele momento a pessoa de Margarida.
***
— Sim Eduardo. Uma linda menina. Aliás, deve ser agora uma bela
mulher. Você tem uma sobrinha.
— Sobrinha?
***
***
177
Ezequiel Prado cerrou seus olhos, e assim terminou sua história. Como me
disse ele: “a memória tem o dom de resgatar o passado” Então não apegamos a
datas e anos. O que valeu foi o desfecho de sua história e o seu passado com meu
pai. Creio que nem tudo fora lembrado.
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Era na primavera de 1870. Sob o céu de outubro. O pátio do asilo estava
fresco e muito florido. Naquela tarde, o velho Dr. Eduardo Marques, ao terminar
de narrar sua história curvou-se com os olhos no chão. Ficou assim por um
momento, após me olhar com um sorriso melancólico, quando a gorda enfermeira,
pontualmente veio buscá-lo. Foi a última vez que o vi.
Outubro de 1870
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Jorge de Morais se casara na Bahia com uma bela mulata e tivera com ela
dois filhos. Vendera muitos exemplares de seu romance. Com o consentimento de
Judite. Quanto a Judite Prado, trocaram muitas correspondências, até que em 1940
ela se casou em Lisboa e não mais se falaram.
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