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Todos os direitos reservados. É proibido a reprodução total ou parcial
desta obra sem o consentimento prévio da editora.

Preparação de texto, revisão, capa, diagramação: Isaac S. Ribas


Edição e publicação: Onbook Mídia.

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Sumário

Apresentação 4
Agradecimentos 5
1º Parte 6
Prólogo 6
Capítulo 1 7
Capítulo 2 18
Capítulo 3 31
Capítulo 4 36
Capítulo 6 46
Capítulo 7 50
Capítulo 8 69
Capítulo 9 93
Capítulo 10 134
Capítulo 11 145
Capítulo 12 158

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Apresentação
Esta é uma obra de um novo tempo, mas traz o sabor da literatura
brasileira de um tempo remoto. Relembrando dolorosamente um tempo de
aflorada cultura, onde a arte pairava sobre a pele dos homens simples, e nos olhos
e mãos dos intelectuais que se vão silenciosamente, e com eles um tempo e
lembranças.

Com sua força poética, o autor cria imaginosos personagens, trazendo


momentos históricos da questão Coimbrã, de Portugal de 1865.

Protestos e revoluções literárias será contada a partir da ótica e literatura e


autobiográfica de quem viveu esse tempo, Dr. Eduardo Marques, psiquiatra.

Intenso, nostálgico, Sob o céu de Outubro vai te transportar na história.


Você se verá num casarão do século XIX e não vai desejar sair. Leia, se deixe
envolver.

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Agradecimentos

“Este livro é dedicado a meu pai e minha mãe já falecidos que me deram
todo um amparo e educação para me transformar no que sou hoje. Minha esposa
Eliane. Meus irmãos Isaac, Gesiel e Vanda, onde tivemos uma infância perfeita.”

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1º Parte

Prólogo
O antigo casarão foi construído no início do século XIX, e pertenceu a
uma nobre família portuguesa...

De arquitetura já muito velha. Tinha na frente uma lâmpada fraca,


amarelada que dava um ar assustador para quem por ali passava.

Este casarão fazia esquina com a rua 16 e a Castronelle, uma rua deserta
da bela cidade de Londres.

A beleza dessa casa via-se em seu interior. Na ampla sala principal, tinha
móveis antigos, mas bem conservados, adquiridos em leilões por toda Europa.
Viam-se também estantes com livros, belos quadros na parede. Subindo alguns
lances de escada, nos fundos, no fim de um longo corredor, dava-se de frente com
uma excelente biblioteca. Ali se encontrava raros livros, uma coleção completa de
Alexandre Dumas filho1Eça de Queiroz entre outros números de grandes autores.

Esta casa fora frequentada assiduamente por muitos intelectuais da época.


A maioria deles brasileiros, amigos meus.

Estes reunidos, falavam e relembravam o Brasil.

Ainda no primeiro andar, com janela para a rua, funcionara o consultório


de meu pai, agora fechado para sempre.

Dr. Eduardo Marques. Psiquiatra

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Capítulo 1

Lembro-me duma noite de Sexta feira de setembro, de 1930.

Eu tinha quarenta e cinco anos. Nesta noite sentado em minha poltrona na


sala, lia um romance de Alexandre Dumas Filho e tomava um chá, quando às
vinte horas meu mordomo Casimiro, apareceu subitamente na sala, dizendo:

— Desculpe incomodá-lo, Dr. Marques, é que chegou hoje uma carta do


Brasil. Trata-se de um Sr. Jorge de Morais.

— Obrigado Casimiro – disse isso indo ao gabinete. No caminho fui


pensando no que teria escrito naquela carta, porque já se fazia anos que Jorge não
me correspondia.

Jorge de Morais foi um grande amigo meu. O conheci no Brasil, na cidade


de São Paulo em 1910 no clube de xadrez da Praça da República.

No gabinete sentei-me à escrivaninha e lentamente deslacrei o envelope.


Era a sua velha letra num papel amarelado. Imediatamente comecei a ler.

“Meu caro Eduardo.


Faz-se muito tempo que não lhe escrevo. Através desta, convido-lhe para meu
aniversário e também para tratarmos de um assunto de grande importância para
mim...”

Fiquei muito feliz com o convite de aniversaria e com a pequena carta,


quanto ao assunto, fiquei intrigado e preocupado.... Que assunto seria esse?

— Pensei isso voltando para a sala, e sentei-me na poltrona que outrora lia
um romance, e voltei a ler.

A última vez que Jorge correspondeu-me foi em 1915. Foi o que vi numa
maleta velha em que eu guardava tudo que recebia do correio.

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Já era tarde da noite, quando deitei o livro na estante, e um pouco exausto
me recolhi.

No dia seguinte acordei cedo para providenciar tudo para a viagem. Eu


estava ansioso para rever um velho amigo. Nesta época eu não exercia mais a
profissão de médico, portanto pretendia correr pelo mundo, a começar pelo Brasil.

— Casimiro, deixarei mais uma vez a casa em sua responsabilidade. Vou


ao Brasil, e não sei quando voltarei.

Casimiro era um grande amigo, muito mais que um mordomo. Era um


homem alto, robusto, amorenado. Um homem de pouca conversa e de muita
responsabilidade. Trabalhou com meu pai durante anos. Depois continuou
trabalhando comigo no casarão. Também brasileiro, nasceu no estado do Rio de
Janeiro, na Baixada Fluminense.

Depois de três dias partir para o Brasil. Desembarquei na capital da Bahia,


Salvador.

Fiquei impressionado com as lindas praias e com o forte calor do sol, e


com os belos lugares que visitei. Dias depois partir para o interior, numa bela
cidade cujo nome não me recordo agora, mas que não me saiu da lembrança —
uma bela cidade para se descansar. Pensei isso indo para casa de Jorge. No carro
fui observando as humildes casas em fachadas mesquinhas, praças ajardinadas.
Nas janelas, viam-se rostos simples, nas causadas mulheres conversando, nos
botecos pequenos, em portas de duas partes, idosos e rapazes bebiam e jogavam,
mas todos me observavam com um olhar de curiosidade. Depois, a essas
observações, tive vontade de conhecer aquelas pessoas, de saber como era morar
numa cidade como aquela; saber o que eles esperavam do futuro, e se eles eram
felizes ali...

Por fim, cheguei à rua do endereço, o número 203 indicava uma bela casa,
um pouco antiga com um jardim encantador na frente. Esse jardim tem um toque
feminino. Pensei isso, procurando uma campainha, não tinha. Bati palmas.
Alguém veio me atender. Veio um homem aparentando uns quarenta anos, de
cabelos lisos, a pele clara, olhos castanhos, o nariz em ponta, agudo. Tinha o

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mesmo sorriso simples. Paramos, e nós observamos. Eu estava tão mudado quanto
ele.

Houve um silêncio. Não tínhamos palavras. Depois de alguns segundos,


nos abraçamos, num forte abraço.

— Eduardo meu caro amigo! Há quanto tempo? Vamos entrando — disse


pegando-me pelo braço.
— É bem verdade que os tempos se passaram.
Jorge estava muito bem acomodado naquela cidade. Tinha uma bela casa,
muito confortável.

Na varanda, de piso de pedra, com plantas samambaia aos cantos duma


parede branco gelo, sentia-se logo o embalsamado aroma do jardim.

— O que há de novo meu amigo? — Perguntou-me ele, sentando-se numa


cadeira de estofado marrom, defronte a mim.
— Como você sabe — eu disse também me sentando. — Estou na
Inglaterra há muitos anos. Nesses últimos meses, estou vivendo, só da renda de
uns imóveis alugados. De resto, fico a receber os amigos no casarão. Quanto a
você, o que faz aqui?
— Trabalhei por muito tempo lecionando português, agora sou só um
velho aposentado, a receber em casa uns poucos amigos.
— Não me chame de velho, temos a mesma idade, e tu me parece mais
novo.
Conversamos muito naquela ensolarada tarde. Perguntei a ele, como era
morar numa cidade como aquela. Ele me falou da cidade, risonho, com um brilho
nos olhos. E depois de um silêncio, contou-me um pouco do que passou em sua
vida naquela pequena cidade.

Um criado veio nos trazer café. Aquela conversação era numa sala
humildemente mobiliada, mas com luxuosos tapetes, uma estante com raros livros
de coleção. Na parede quadros em cubismo que me chamou atenção enquanto
fixava os olhos detalhadamente por um momento num deles...

— É um quadro do meu irmão Rui, pintou-o ainda jovem. É o que eu


tenho de mais valor – explicou-me Jorge.
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— Onde está ele?
— Quem o Rui? Ele mora comigo, e já está para chegar...
— A propósito Jorge, eu recebi sua carta, dizia-me algo sobre o seu
aniversário, cheguei tarde? – Perguntei-lhe rindo.
— Para ser sincero só alguns dias de atraso – disse-me rindo também.
— Também me dizia de um assunto que me preocupava.
— Agradeço-lhe pela preocupação, meu caro amigo, mas fique tranqüilo.
Falaremos disso amanhã no café da manhã.

Eram sete horas da noite, quando encerramos esta conversa. Eu estava


exausto, fui me recolher logo depois. Despertei-me às dez da noite. Tive sede, fiz
um grande esforço para me levantar da cama, e fui tomar água. Encontrei Jorge no
mesmo lugar em que eu o deixara antes. Ele lia um romance de Machado de
Assis—Jorge tem o mesmo costume que eu – pensei isso indo para a cozinha.

No dia seguinte acordei bem cedo, disposto. Jorge ainda dormia “era um
amante da madrugada. Foi o que me disse certa vez... Não era dado a acordar
cedo”.

Desta vez, só na sala de estar, fiquei a observar o compartimento que


outrora estive. Aquele quadro que eu ficara atentamente a reparar, voltara a
prender-me atenção. Era uma figura de uma mulher negra de mãos e pernas
atadas, a cabeça raspada e estava nua. Seus braços cobriam os seios fartos. Tinha
uma melancólica tristeza nos olhos. Estava toda encolhida numa posição
humilhante. Levantei-me do sofá em que estava, aproximei-me bem pertinho do
quadro, para ver melhor os detalhes. No cantinho da peça tinha um título. Mulher
à beira da melancolia. Ruberito de Morais.

Ainda observava o quadro de moldura envelhecida, quando alguém me


tocou o ombro, era o próprio autor da obra.

— Notei que aprecias expressionismo — comentou Ruberito com os olhos


fixos na tela – e continuou: — desenhei-o quando era ainda jovem. Eu tenho uma
perene convicção que não farei outro igual!
— Algum esboço novo? – Perguntei com interesse.

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— Não. Eu não pratico mais. Com o passar do tempo me veio a velhice.
Agora a mão trêmula não me permite mais o bom traço expressionista. Delinear as
imagens que tenho me tornou um sonho admirável, às vezes cruéis...
Oh deixe me apresentar, me chamo Ruberito, Ruberito de Morais.
— Eduardo Marques. É um prazer conhecê-lo.
Ficamos conversando algumas horas. A conversação foi o suficiente para
eu conhecê-lo. Simpatizei-me com ele, e ele comigo.

Ruberito foi um jovem muito talentoso. Estudou filosofia na Faculdade do


Estado da Bahia. Participara de torneios de xadrez pelo o Estado. Todavia, sua
principal ocupação era a leitura. Por outro lado, suas experiências tornaram-a
promissora em suas aulas de filosofia.

Quanto a Jorge, não era diferente. Era um bom músico e bom enxadrista,
mas não tinha gosto para filosofia.

Jorge já estava na cozinha. Um criado alto, de calças brancas e colete


preto, e sapatos bem engraxados, veio nos chamar:

— Dr. Eduardo, senhor Ruberito. Jorge os aguarda na cozinha para o café


da manhã. Obrigado Luiz – disse Ruberito consultando o relógio.

Na cozinha os móveis eram quase todos de cor negra, como umas cozinhas
da época das senzalas.

A mesa estava farta, tinha: bolo de milho e de fubá; mandioca cozida,


cuscuz, pão de forno e aipim. Um café que eu não tomava há muitos anos. E numa
das paredes, uma gravura da ceia de Jesus com os doze discípulos.

— Por que não me chamou logo para esse banquete?— perguntou


Ruberito, rindo.

— Vejo que já conheceu meu irmão — disse-me Jorge, que já estava à


mesa – e continuou:
— Os vi na sala, e não quis incomodá-los. Parecia que a conversa de
vocês estava muito boa.
— Ó sim estava – eu disse rindo também.

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— Bom – disse Ruberito – vamos comer, estou faminto — e continuou:—
lamento não ter aqui capuccino, Dr. Marques.
— Ó não, em Londres quando não tomo chá, tomo café.
Ruberito mudou de assunto e disse:
— Jorge, quando conversávamos na sala, dizia a ele, que quadro como
aquele, nunca mais! – Exclamou com pompa o Senhor Ruberito.
Jorge sabia do que se tratava, e rindo um pouco, concordou com um aceno
de cabeça.

O criado, dos sapatos bem engraxados e colete preto, penetrou na cozinha,


como um garoto ligeiro, com um telegrama para Ruberito, que, ao receber pediu-
nos licença, e saiu com pressa. Neste momento aproveitei para tocar no assunto da
carta. O assunto tratava-se de um livro de memórias.

— Um livro de memórias?
— Sim, e preciso da sua ajuda, pelo que sei você escreveu um livro assim.
— Realmente, eu escrevi um livro de minhas memórias. Mas não foi lá um
bom livro. Meu passado é simples, de muitos trabalhos, apesar da herança que
meu pai me deixou. Um diploma de medicina na Faculdade de Londres, aos vinte
anos. Depois de alguns anos me casei com uma professora de inglês, que quinze
anos mais tarde a perdi. Ela morreu de câncer.
— Isso foi terrível — disse Jorge me olhando absorto.
— É... Terrível.
Depois desta conversa, Jorge levou-me para conhecer a cidade em que eu
já tinha observado o caminho.

Fomos a lugares que Jorge costumava frequentar: ao Clube de Xadrez da


Rua João Pessoa, ao Bairro Brasil, e a casa de um amigo na Rua Castro Alves; um
jovem poeta de muito talento, amigo de infância de Jorge e Ruberito.

Na volta para casa, Jorge vinha me dizendo que nesta cidade vivera muita
emoção.

— Preciso registrá-las...
Em casa na sala:— Estou velho para viver novas emoções — disse Jorge
dissolvendo um gole de café.

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— Não. Você tem muito que viver
— Sim, estou bem. Não me queixo. Só quero registrar um passado e viver
os anos que me restam.
Olhei para aquele rosto vermelho, aqueles olhos graves. Vi que algo tinha
de muito forte no passado de Jorge. Um desejo não realizado? Um amor perdido
ou não correspondido? A morte de um ente querido talvez? Questões que me
vieram em segundos.

— O que tu achas? – Perguntou-me num ligeiro sorriso.


— Ótimo! Meu caro — exclamei animado. Jorge virou os olhos para uma
foto na estante. Era de uma jovem encantadoramente linda...— houve um
silêncio.— uma morena de cor belíssima; tinha os cabelos longos e uns olhinhos
negros e plácidos; sorria como se quisesse mostrar seus lindos dentes brancos.
Tinha o narizinho perfeito e lábios finos.

Pensei em perguntar quem era, mas não ousei perguntá-lo.


O silêncio foi quebrado com a entrada de um criado com uma visita.
— Basílio! O que houve com você? Por onde andou esses dias? — E
deu-lhe um forte abraço.
— Estive nas Minas Gerais, para os lados de Juiz de Fora; visitando um
parente.
Era um jovem de modos simples. Um pouco alto, amorenado, com
sobrancelhas cheias e olhos muito escuros. Vestia trajes simples. Trazia na mão,
sempre um livro de poesia. Era de fato uma pessoa singular. Era amigo de Jorge,
mas dava-se melhor com Ruberito.

Basílio era soldado Militar, como se fosse seu avô e seu pai. Mas antes
mesmo da carreira de militar, foi aluno duma pequena Faculdade de Letras do
Estado da Bahia. Por falta de dinheiro desistira no meio do curso para seguir a
carreira do pai.

Casou-se muito cedo com uma jovem da mesma idade. Contaram-me,


Jorge, que Basílio tinha um grave problema, era muito melancólico, queixava-se
de tudo, o casamento não o curou. Suas poesias Modernistas foram anos depois
consagradas, e classificadas como uma obra prima. A sua mais conhecida e
premiada fora, O caminho da perdição.
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— Como me anda seu velho pai?

— Tosco e beberrão como sempre. Mas cuida da família como ninguém.


Será que esse é um pai de família exemplo para o mundo? Não sei dizer –
respondeu Basílio.

— Etevaldo é um bom homem – completou Jorge – mas a bebida é o que o


atrapalha. No mais, é boa pessoa.
— Sim – disse Basílio com um riso triste – a propósito, estou aqui apenas
de passagem. Mas deixo-lhe este exemplar de umas poesias minhas.
Muito obrigado — disse Jorge pegando o livro da mão de seu amigo —
irei ler mais à tarde com profundo cuidado.
— Recomendo-lhe o número dez — apontou — boa leitura.
— Obrigado Basílio.
— E Ruy. Por onde anda nosso talentoso pintor? —Sorriu — ou diria
nosso melhor enxadrista?
— Aquele não para em casa. É hiperativo – ressaltou Jorge, encolhendo os
ombros.
— Bom... Devo partir agora. Abraços ao Ruy.
Basílio deixou a casa. Quando ficamos o resto daquela tarde numa
conversa de livros e amigos do passado. Na madrugada do dia seguinte,
exatamente às duas da manhã ouvi passos pela casa. Eu estava no andar de cima
tentando dormir, mas alguém embaixo incomodava-me. Parecia andar a passos
firmes e lentos de um lado ao outro. Sussurrava palavras que eu não compreendia,
e às vezes quase não ouvia. Esse incômodo durou quase meia hora. Depois um
silêncio profundo cobriu a casa.

Na manhã desse dia, na sala, fiquei esperando uma explicação do que


houve na madrugada, quando Luiz, o criado, chegou dizendo:

— Dr. Eduardo, o Sr. Ruberito o espera no gabinete.


Num compartimento ao lado da varanda, defronte para o jardim estava o
gabinete.
— Bom dia Dr. Marques. Sente-se, mandei chamar-lhe — disse
ligeiramente.— Bom dia — eu disse sentando-me numa cadeira

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acolchoada defronte a ele — e antes que me dissesse algo, perguntei-lhe
logo:
— Que barulho foi esse as duas da manhã?
— É isso que vou lhe dizer — dizia olhando-me, muito calmo — era
Jorge, ele tem problemas, talvez distúrbios ou uma perturbação.
— Quando foi a última vez que Jorge teve essas reações?
— Há alguns meses, mas não é sempre.
— A propósito Ruberito, – perguntei com intimidade: – quem és a bela
jovem da foto num porta retrato na estante da sala?
— Chamava-se Ismália, era muito bela, de graciosa postura, porte airoso.
Vinha de Portugal num navio, Jorge a esperava ansioso. Iriam se casar, quando
houve um trágico naufrágio. Jorge quase morrera. Ele sempre foi um fraco. Pensei
que não iria aguentar tão significativa perda, mas agüentara. Todavia, vive aos
cantos. Ainda depois de tantos anos.

Ruberito calou-se, pousou os olhos nos papéis espalhados à mesa, e pôs-se


a arrumá-los lentamente.

E pensando no que tinha acabado de ouvir, fiquei a observar o pequeno


compartimento. Era um gabinete bem arranjado. Numa das paredes em tom verde
claro pendiam velhos diplomas empoeirados, com os vidros rachados e, noutra
parede em moldura oval, uma foto de casal de dois velhinhos. Eram decerto, os
seus pais; noutro canto, havia uma prateleira tumultuada de gastos livros de
literatura e filosofia. A escrivaninha tinha o tom verniz escuro, era de um modelo
muito antigo, coberta nesta manhã de livros, papéis avulsos que Ruberito ainda os
arrumavam; mais a um canto um tinteiro de prata do século XIX.

Voltando meus pensamentos para Jorge, e no que tinha acabado de ouvir:


— Por que Jorge nunca me contou isso? Eu tinha pressentido que algo de muito
forte ligava Jorge ao passado.

Foi a partir dessa fresca manhã que decidi “ajudá-lo”, tratá-lo de um modo
especial.

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— Conversei com Jorge ontem após sua saída – disse a Ruberito que me
olhava sério esfregando as mãos.— Ele disse-me que logo começará a escrever
um livro de suas memórias, e quer minha ajuda nessa obra.
— Curioso, ele tem me falado há muito tempo em escrever um livro, mas
não um livro de memórias – e com um anseio:— receio que isto o aterre mais....
Relembra o drama em que viveu no passado, receio que não agüente...

Fiquei a olhar para Ruberito, que estava pensativo, com os olhos em alvo,
o cotovelo apoiado na mesa, e as mãos fechadas sob o queixo. Era um homem
singular. Seus bigodes e os cabelos grisalhos, e um rosto pálido de olhar sério,
deixava-o com uma aparência às vezes dura de um ditador, mas era de uma grande
alma, muito singular.

Disse a Ruberito do propósito que tinha de ajudar a Jorge.

— Ele não aceitará, Jorge é carrancudo, e achará isso ridículo.


— Ele não saberá, farei meu trabalho de um modo diferente, sutilmente,
com a sua permissão nobre colega.
— Dr. Marques meu irmão precisa de cuidado “especial”, ajude-o como
achares melhor.
— E digo-lhe meu caro Senhor Ruberito que para Jorge, escrever um livro
de suas memórias, será uma ótima terapia. Reviverá bons momentos e encarará a
perda de Ismália, como coisa do destino, como, tivera que ser assim.
— Então – me direcionou sua mão direita – tem meu apoio, nobre colega.

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“Aqueles que não são capazes de recordar o passado serão
condenados a repeti-lo".

George Santayana

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Capítulo 2
“Nos reflexos do espelho, o fim de qualquer ilusão”.

Jonathas S. Ribas

Uma semana depois retornei a Londres, mas agora não estava só, Jorge me
acompanhava. Ruberito e eu o convencemos a viajar, o convencemos também que
precisava de férias, e que em Londres faríamos o seu livro. Jorge concordou
contente — ótima ideia! Disse-me muito feliz.

Eram os últimos dias de setembro, numa fria tarde de Segunda-feira. Ao


entrar novamente na Inglaterra, nesse dia, veio-me uma nostalgia, e um certo
prazerzinho de saudade de um tempo de felicidade...

Eu amava a Inglaterra. Seus restaurantes e cafés. As idas de fim de ano


para o interior. Mas após o falecimento de minha esposa a vida não me foi mais a
mesma. Depois quis sair da Inglaterra. Viajar por toda Europa e a América. Seguir
então para América Central e depois para América do Sul. Viajei para Costa Rica,
Honduras e Guatemala e por fim, para o Brasil em 1910, onde, numa certa manhã,
conheci Jorge. Nesta época eu ainda carregava em mim a mágoa da perda... triste
coincidência a minha e a de Jorge.

Já em casa:

— Tens uma bela casa – disse Jorge olhando em volta.

— Obrigado. Foi herança de meus avós para papai e de papai para mim...
sou filho único, infelizmente – eu disse olhando também em volta — e Jorge me
olhando com um ar de pensativo:

— Quando começaremos a trabalhar em meu livro?

— Logo! Meu caro Jorge. Preciso tratar de alguns assuntos pendentes,


enquanto isso, tome um chá e descanse. Você me parece cansado. Ah.... Deixo
apresentar-lhe alguém – disse a Jorge, quando Casimiro entrava na sala — este é
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Casimiro, meu grande amigo e mordomo. É ele quem toma conta de tudo, quando
viajo. Casimiro, este é Jorge de Morais, intimo amigo, ficará conosco por um
tempo.

— Seja bem vindo Sr. Morais.

— Obrigado Sr. Casimiro.

— Cassimiro é um idêntico intelectual, Jorge, uma rara pessoa, como


poucos que conheci. Além de ser bom entendedor da literatura europeia é também
um grande artista plástico.

Jorge e Casimiro passaram aquela tarde conversando. À noite uns amigos,


que vieram me visitar, juntaram-se a eles. Eram alguns brasileiros da Rua 12, e da
Folha literária de Londres.

O dia amanhecera com uma doce frescura de ar outonal. Um ânimo súbito


de viver, de fazer novos planos veio-me aquela manhã.... Lembro que eu estava só
na cozinha. Lia um jornal da cidade, quando Casimiro anunciou-me umas visitas.
Eram três velhos amigos, vinha à minha casa desde os tempos das férias da
Universidade. No entanto, fiquei surpreendido.

— Como souberam que eu já estava aqui hoje? — Indaguei-lhes.

— Vimos ontem aqui, Casimiro avisou-nos que tu chegarias hoje — disse


Augusto num largo sorriso.

— O que lhe prendeu tanto no Brasil? Por acaso há alguma mulata? —


Perguntou-me Miguel.

— Acho que ele se esqueceu dos pobres amigos – disse Guilherme.

— Meus nobres amigos, eu não me esqueci de nenhum de vocês, e nem


conheci mulata alguma. Fui ao Brasil a pedido de um amigo, de um outro antigo
amigo. Recebi sua carta e três dias depois, numa manhã fiz as malas e parti.

— Tão rápido – disse-me Guilherme.

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— Era um velho amigo que eu não via há muito tempo, fazia-me o convite
para seu quadragésimo quinto aniversário. Desculpem-me, não tive tempo de
avisá-los,

A propósito, amigo, este que vos falo, veio comigo.

— E onde está o novo hóspede? — Perguntou-me Augusto, acendendo um


charuto.

— Ainda deve estar dormindo. Jorge, na Bahia, quase que troca a noite
pelo dia.

— Frio como está à Inglaterra, neste fim de setembro, creio eu que seu
hóspede não agüentará fica muito tempo acordado nessas noites – disse Augusto
torcendo as pontas do bigode – e chupando o charuto: — espero que este outubro
nos venha com muito sol.

Era um jovem advogado de vinte e oito anos. Nascido em Porto Alegre.


Augusto Conte, com seus pais e uma bela irmã, mudou-se para Inglaterra, onde já
residia há muitos anos os seus avós italianos. Anos mais tarde Augusto formou-se
em Direito pela Faculdade de Londres e se casou com uma rica jovem de Turim.
Augusto residia em Londres por opção sua. Adorava o clima de Inglaterra. A
esposa de modos simples preferia Turim. Augusto tinha boa personalidade, odiava
a política Inglesa, todavia amava a Inglaterra e seu trabalho, quanto ao Brasil,
nunca voltara, mas pretendia. Voltar a andar pela Rua do Ouvidor, como
costumava a andar quando ia ao Rio. Era um homem esguio, louro de olhos azuis,
bigode fino, bem castanho. Parecia-se com um legítimo Lorde inglês. Vestia-se
como um fidalgo. Nesse dia aparecera com um terno preto e um sobretudo de
casimira.

Guilherme Tavares e Miguel vestiam-se parecidos. Exceto um chapéu


marrom que Guilherme sempre trazia na cabeça grande, e calças brancas que
Miguel quase sempre vestia. Miguel era baixo e pançudo, tinha já cabelos
brancos, olhos pardos. Era um escritor sem sucesso. Quanto a Guilherme, sujeito
beberrão de cabeleira castanha, e vasta barba negra e em cores brancas. Era um
empresário bem sucedido, de origem muito humilde em Curitiba. Miguel, este
viera do Ceará. De uma nobre família de cearenses, descendentes de portugueses.
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Nesse dia tomávamos todos juntos o café da manhã em grande prosa.

— Senhores. – Dizia Guilherme levantando-se com uma xícara de café na


mão – aproveito esse momento de confraternização para convidá-los para a
inauguração de minha nova fábrica de ferramentas.

— Então vamos fazer um brinde à nova fábrica de Guilherme – disse


Miguel levantando-se.

— Faremos também um brinde ao retorno de Eduardo para Londres —


disse Augusto com um largo sorriso.

— Um brinde também a esta agradável manhã de domingo – disse eu


defronte a eles.

Todos brindaram com café.

Estávamos todos ainda à mesa, quando Jorge penetrou na cozinha


lentamente.

— Senhores. Este é Jorge de Morais.

E foram feitas as apresentações formais.

— O que faz no Brasil? – perguntou Augusto com interesse para Jorge.

— Sou aposentado.

— E o que faz um aposentado no Brasil? – Perguntou Guilherme.

— No Brasil eu ficava passando as horas num clube de xadrez. Quando


não, ficava a ler romances na velha poltrona e a rascunhar num caderninho de
anotações.

— E está aí a diferença do homem culto para o homem simples – disse


Augusto – e olhando com ar pensativo para Jorge:— por que não escreves um
livro, um romance, já pensou nisto?

— Vim para Londres com esse propósito, meu jovem – disse Jorge sério.

— Um romance? – Perguntou Miguel demonstrando interesse.

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— Sim – disse Jorge.

— O senhor já andou pelas ruas de Londres? É uma encantadora cidade,


terá muita inspiração – disse Augusto com pompa.

— Logo teremos tempo para isso – eu disse a Augusto, interrompendo-o.

A conversação que iniciaram nesta manhã durou toda à tarde. Só à noite,


tive tempo para conversar com Jorge e mostrar a ele todos os compartimentos da
casa. E como eu tinha imaginado, Jorge se encantara com a biblioteca.

— Aqui será seu ambiente de trabalho, sinta-se em casa meu velho.


Quando criança eu costumava vir aqui, passava horas...

Jorge parecia não me ouvir. Folheava alguns livros, lia títulos de outros.
De pé diante duma grande prateleira, e puxando um volumoso livro disse-me:

— Está aqui um livro que eu procurava há muito tempo, a Divina


Comédia, de Dante.

— É uma grande obra, de um grande autor. Preciso ainda tratar de uns


assuntos no escritório, logo volto.

— Não tenhas pressa. Vou ficar na companhia de Dante – disse-me rindo.

Voltei para a biblioteca duas horas depois. Encontrei-o sentado numa


poltrona, entretido numa leitura.

— Como se sente?

Jorge fechando o livro, cruzando as pernas, disse-me muito calmo:

— Eu sempre quis conhecer a Europa, Portugal e a Itália. Hoje estou aqui,


mas sinto já falta da Bahia. Todavia, estando fora do cenário de minhas paixões,
fico inteiramente inspirado para escrever minhas memórias.

— Aceitas uma xícara de café? – Perguntei-lhe.

— Sim.

Toquei a campainha, pedi a Casimiro.

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— Por onde tu pretendes começar sua história?

— Ainda não tenho ideia.

Casimiro entrou com o café.

— Obrigado Casimiro.

Consultei o relógio, ia para uma hora, não tínhamos sono.

— Aconselho-te que comece logo a exercitar sua memória. Fale-me de sua


infância.

— Minha infância?

— Uma fase dela, por favor.

Jorge olhou-me piscando os olhos, e recostando-se na poltrona, disse:

— Recordo-me de um dia, uma fresca tarde.... Tinha dado cinco e meia, as


crianças ainda brincavam naquele lugar deserto. De cima de um morro eu as
observava. A poucos metros dali, de onde as crianças brincavam, tem uma
cidadezinha e entre o lugar deserto e a cidade tem uma rodovia. De um lado ou
outros caminhões viajavam carregados de mercadorias pesadas, ônibus e veículos
pequenos. Todos corriam num “movimento muito grande”.

A cidade é pequena e encantadora. Com praças ajardinadas, igrejas


antigas, ruas calçadas, de calçamento muito antigo, casas pequenas e velhos
casarões; botecos pobres nas esquinas, muitas árvores esverdeadas e floridas.

Foi nessa cidade que eu e Rui passamos nossa infância...

A tarde caia e o lugar escurecia. As crianças em grupo, de tamanhos e


idades quase as mesmas, já estavam ao pé da rodovia, esperando o movimento do
carro acabar para atravessá-la. Neste momento eu já estava entre eles, silencioso,
acompanhando-os somente. Eles iam falando alto, comentando as brincadeiras
que tiveram naquele lugar.

“Deserto”. Digo deserto porque era um lugar... um grande descampado.


Era nesse espaço, que as crianças, livres, brincavam longe dos olhos dos pais.

23
Brincavam de tudo que podiam. Eu somente subia num morro através de raízes
espalhadas aos cantos, e ficava a observar ora as crianças ora a bela cidadezinha.
Fazia isso quase sempre. Eles não se importavam com minha mudes.

Nesta época eu contava dez anos. Era eu uma criança gorducha, rosada, de
olhinhos castanhos claros, os cabelos lisos penteados de lado, também em tom
castanho claro. Rui tinha quatorze, andava por outros caminhos com Basílio.
Basílio é o único que está por perto.

Dava seis da tarde. O sol se escondia tristonho por trás dos morros,
deixando o céu amarelado, um pouco dourado, num tom melancólico. Nessas
horas a cidade parecia que parava. Alguns idosos que nos botecos conversavam,
silenciavam com respeito à Ave Maria cantada na igrejinha. As janelas
serravam-se. O vento uivava solitário sobre os telhados alquebrados. Ao longe se
via um fim de luz por trás dos outeiros.

A noite chegava linda e convidativa. As crianças ainda na rua brincavam


com a lua, sem tristezas, de qualquer maneira.

Que saudade da aurora da minha vida.

A noite passava devagar. Eu agora brincava com as crianças, brincava até


a meiga voz de mamãe me chamar.

A minha infância não é minha saudade, não é a plenitude de minha


saudade.

Jorge deu uma pausa e perguntou-me:

— Tem sono?

— Não. Continue se quiser...

— Vou ficar por aqui. Tenho umas lembranças que prefiro não contar.

— Ainda na infância?

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— Não. Dizem que a adolescência é a fase mais complexa... eu contava
treze anos. Quando uma tristeza estranha tinha se apoderado de mim. Tinha agora
um medo medonho da noite. Sofria de pesadelos. Sonhava que cães negros
queriam me pegar. Despertava-me no meio da noite com muito medo, adormecia
encolhido num canto da cama. Molhado em suor.

Ao raiá do dia, vinha com os primeiros raios de luz, minha alegria. Cresci.
Tornei-me um rapaz medroso, tímido e melancólico. Magro e sorumbático.

Os dias iam passando, e Jorge ia-se muito bem. Tinha já se acostumado


com a casa. Tinha iniciado seu livro que ainda não tinha título. E ficava à tarde na
varanda a discutir literatura e política com Casimiro.

Foi por esse tempo que, o Clube Café de Londres, um antigo edifício do
século XIX, da rua 25, fazia a festa de inauguração de sua terceira reforma. Nessa
noite estavam presentes os principais sócios e eu era um deles.

— Esse velho edifício ainda continua firme – dizia um senhor à porta do


salão.

— Dizem que foi reformado por um arquiteto francês. – disse outro.

A estrela da noite era Leopoldina Albuquerque. Dr.ª Leopoldina esposa do


prefeito da cidade. Um velho gordo sem ideia nenhuma de política, apenas um
falastrão.

Entrei com Jorge no salão, e avistei logo Leopoldina, que ao me ver,


chamou-me com um aceno de mão. Fazia-se muito tempo que eu não a via.
Parecia-me nessa noite mais encantadora. Aliás, Leopoldina nunca estivera tão
bela.

Estava soberana em seu longo vestido de seda vermelho, que levemente


prendia-lhe a fina cintura e seguia-se em forma de um corpete prendendo seus
mimosos seios. Os louros cabelos estavam soltos nas costas. A boca fina,
caprichosamente desenhada tinha uma cor escarlate. Seus olhos pareciam mais
azuis.

— Olá Eduardo – disse-me ela com um ar jovial.

25
— Como vai Dr.ª Leopoldina? – disse cumprimentando-a.

— Muito bem, obrigada – e depois de um silêncio: — por onde esteve


nesses dias, meu doutor?

— No Brasil, a passeio, na casa desse homem – disse tocando o ombro de


Jorge a meu lado – o Sr. Jorge de Morais.

— Oh, deixe-me apresentar, sou Leopoldina Albuquerque.

— Muito prazer, minha senhora.

Leopoldina corou, e delicadamente disse:

— Prefiro que me chame somente de Leopoldina.

— Jorge é um amigo de longa data...

— Brasileiro, percebi que esse sotaque me era familiar – disse Leopoldina


me interrompendo.

— Aqui na Inglaterra, ele está em minha casa. Estamos trabalhando num


livro.

— Um livro! – Exclamou Leopoldina – e com um belo riso simples – eu


adoro livros; os romances franceses e portugueses são meus favoritos. Sei
também, no entanto, que a Literatura brasileira é ótima.

— De fato, temos uma boa Literatura – disse Jorge.

Leopoldina vinha sempre com um ar jovial e doce. E em sua voz tinha às


vezes um tom meigo de menina.

— Estou escrevendo um livro de minhas memórias Leopoldina –


completou Jorge.

— Já estou curiosa em conhecer uma interessante obra – disse ela com um


acolhimento.

A conversa se estendia amistosamente, quando o gerente do Café, um


espanhol maciço veio me dizer:

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— Dr. Marques a sua mesa está reservada, é a número 3 – disse o espanhol
após sair às pressas para a sala de fumantes nos fundos.

— Com licença Leopoldina.

— Estou sozinha, senhores, não espero ninguém. Pode me fazer


companhia?

— Será um imenso prazer, não é Jorge?

— Certamente.

— Então esteve no Brasil – disse Leopoldina, enchendo uma taça de vinho


tinto – e após dissolver um gole do vinho, pousando levemente a taça sobre a
mesa:— Tenho vontade de conhecer o Brasil e a Argentina. Penso que são países
exóticos.

— São países encantadores ricos em cultura — disse Jorge bem


acomodado na cadeira.

Crescia o movimento de pessoas pelo salão. Os que me conheciam


acenavam-me, quando não, vinham me cumprimentar. Veio o doutor Ícaro
Albuquerque, irmão de Leopoldina.

— Hora! Mas quem está aqui. Por onde esteve doutor?

— Esteve no Brasil meu irmão – adiantou Leopoldina – e esse senhor, –


continuou ela, com graciosidade:— é o Sr. Jorge de Morais.

— Como vai Sr. Morais? Seja bem vindo à Londres.

Leopoldina e Ícaro eram italianos, mas filhos de pais portugueses. Ícaro


tinha vinte e nove anos. Era um rapagão de cabelos negros bem anelados,
sobrancelhas grossas e olhos claros. Era solteiro. Tinha se formado em Direito
pela Universidade de Roma. Freqüentava assiduamente o Café Londres.
Leopoldina formou-se também em Direito na mesma época que o irmão.

— Pois meus senhores. Vou correr o salão – até mais – disse o jovem
Ícaro.

27
— Como é belo esse meu irmão – disse Leopoldina

— E como está o nosso prefeito, seu marido?

— Ficou em casa com as crianças – disse Leopoldina muito séria.

—Diga a ele que a cidade ainda necessita mudanças.

— O Sr. Prefeito meu marido está um velho rabugento e teimoso – disse


sorrindo tristemente.

— Compreendo – disse eu, sem prosseguir no assunto – a propósito, tudo


aqui está muito lindo, mas não pretendo ficar por muito tempo.

— Eu digo o mesmo, logo o Adamastor irá me buscar.

— Oh. O cão de guarda do prefeito? – Sorrir com ironia.

— Exatamente – sorriu ela.

Essa festa encerrou sem mais novidades. Despedi-me de Leopoldina com


um aceno de mão, quando ela ainda bebia vinho em sua mesa, na companhia de
duas mulheres, que eu não lembrava quem. Em casa nessa mesma noite estive a
conversar com Jorge:

— Está cansado meu caro?

— Não, tenho ainda disposição para uma conversa.

— Então vamos conversar um pouco meu bom Jorge.

— O que eu posso dizer nesse instante meu caro Eduardo, é que nunca eu
tinha visto em minha vida uma italianinha tão bela – rimos juntos

— De fato Leopoldina é encantadora.

E após uma larga pausa, Jorge disse-me com tom de saudade:

— Houve uma época muito boa em minha vida. Dias que nunca mais
voltarão... recuperarei essa época em páginas alegres, com frases de muita
saudade. As letras têm o poder de recuperar e registrar tempos perdidos que uma
memória pouco pode... é o resgate de um tempo. Nas noites mais frias eu me
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consolava com xícaras de café e muita saudade – após outra pausa Jorge
perguntou-me:

— Como você define a saudade, caro doutor?

— Penso que a saudade é uma sensação dolorida e fácil de alimentar e


difícil de rejeitar. É ao mesmo tempo gostosa, dolorosa, proveitosa e perniciosa.
Em alguns casos, ela cura. Em outros, ela mata. É um paradoxo.

— E você está muito bem Jorge.

— Digo em minha concepção que “ela” envelhece. Todavia, meu bom


Eduardo,— citei:

O homem nascido de mulher vive breve tempo, cheio de inquietação.


Nasce como a flor e murcha. Forje como a sombra e não permanece...
porque a esperança para a árvore,
pois mesmo cortada ainda renovara e nasceram seus rebentos.
Envelhecem-se na terra suas raízes e no chão morre seu tronco.
Ao cheiro das águas brotará e dará ramos como planta nova.
O homem morre e fica prostrado.
Jó capítulo 14.

Fomos dormir às cinco da manhã. Jorge, muito tinha me contado. Eu já


compreendia as ideias de sua mente. E se tu ainda não o compreendeste, logo o
compreenderás.

29
...Mas eis que no oriente, acolá, no fundo por detrás dos outeiros, surge a manhã
vestida de púrpura por entre o orvalho.”
Shakespeare

30
Capítulo 3
Fazia-se muito tempo que eu não tinha uma noite tão “agitada” como esta.
Quando o sol clareou, eu estava em meu leito, indisposto, com uma leve dor de
cabeça, quando a porta do quarto rangeu levemente. Era Casimiro que entrava
com um bilhete.

— Sr. Eduardo, um moleque veio trazer-lhe um bilhete, e espera sua


resposta. — Um credor? – Pensei me erguendo.

“Eduardo sinto muito a sua falta, ao ver-te ontem meu coração aliviou-se.
Desejo ver-te novamente, se puderes manda-me a resposta e me encontre na
antiga confeitaria de sempre, às dez dessa manhã.”

Leopoldina.

A dor passara. Consultei o relógio, eram oito horas. Rabisquei num papel
amarelado a resposta. “Sim. Às dez eu estarei lá”. E impaciente esperei os
minutos passarem.

Fui de encontro a Leopoldina numa antiga confeitaria da Rua Velha, onde


se erguia um casarão de uns senhores romanos, a meio quilômetro do centro de
Londres; onde por muitas vezes nos encontrávamos. Após estes encontros, íamos
para um chalé que eu tinha comprado para as nossas noites. Era num lugar
escondido entre muitas árvores, a uns dois quilômetros da cidade. Em dias de
muito calor o sol ali penetrava entre os galhos floridos das árvores, e vinha
docemente queimar nossa pele.

Dentro, tinha tudo de mais simples, confortável e belo. Leopoldina


arrumou a casa com a graciosidade e delicadeza de suas mãos. Colocou tapetes
pela casa; vasos de plantas, rosas. Fizera tudo com muito gosto. Eu tinha
pendurado fotos de meus avós e de meu pai nas paredes. Nos fundos havia um
velho fogão a lenha quase destruído, eu mandara reformá-lo. E tinha mandado um
amigo construir uma pequena lareira para os dias frios. Na salinha tinha um

31
confortável sofá de damasco amarelo, que Leopoldina trouxera não me lembro de
como. Gostava de repousar após o almoço, quando podíamos ficar o dia inteiro. À
tardinha ficávamos no quintal, sem nada tirar nossa paz; nós aquecendo no doce
calor do sol. Nas noites mais frias, quando o vento forte e gelado. Lá fora soprava
as árvores, nós nos aquecemos ao pé da lareira.

Após o casamento de Leopoldina com um velho fidalgo, possuidor de


muitos imóveis, de dinheiro e de muita influência na cidade, nos separamos.

Depois de tanto tempo eu recebi esse bilhete.

A encontrei num cantinho da confeitaria, sentada a uma mesa redonda de


marroquim, muito calma, tomando uma taça de vinho branco. Quando me viu
sorriu levemente, e logo disse:

— Por que demoraste tanto?

— Fiz o que pude para chegar no horário determinado, minha querida –


respondi com a voz um pouco baixa e ofegante.

— Tudo bem, por essa passagem, mas não me abuse. Tu me conheces


muito bem! – Disse-me isto com uma intimidade gostosa e com um tom de voz
que me tinha confortado muito – e após uma pausa, docemente perguntou-me:

— E o nosso chalezinho ainda se mantém como dantes?

— Sim, ainda o tenho conservado como dantes.

Seus olhos encheram de água, esforçou-se para não chorar, e continuou


agora com desabafo:

— Tenho muita saudade daquele lugar, dos momentos em que passamos


juntos; das tardes de sol no quintal; dos dias frios ao pé da lareira. Mas não sei se
posso voltar a este lugar novamente...

— Por que me chamou? – Perguntei comovido.

— Queria vê-lo novamente. Eu o tinha procurado por toda parte. Nos


lugares que você costuma frequentar, até ir a tua casa. Casimiro dissera-me que tu
estavas para o Brasil. Depois eu soube da sua chegada, mas não tive coragem de
32
procurar . Esperei então o dia da inauguração do Clube. Tinha certeza que lá o
veria. Ir à tua casa era-me arriscado. O Adamastor é astuto como uma serpente.
Cheguei cedo ao Clube, e ansiosa lhe esperei. Ao ver-te acompanhado, e com
pessoas, com os olhos todo tempo cravados em nós, disfarcei meus sentimentos e
agir normalmente... – Leopoldina coçando a testa, com os olhos na taça de vinho,
continuou:

— Meu casamento há muito tempo não vai bem, e em todo esse tempo, o
que fiz foi só pensar em você. Mas estou casada meu amor, e devo muito a meu
marido, não posso deixá-lo... O que eu posso fazer... – disse com as mãos na
testa.— E uma lágrima rolou-lhe na face quente. Seus lábios tremiam. Agarrei-a
em meus braços. Ela abraçou-me forte enquanto chorava.

— Me tire daqui, por favor. Leve-me para bem longe. A sua família
estava à beira da falência. Casando-se com um homem rico, as “salvariam”. O
homem com quem Leopoldina se casaria, era católico, devoto de Santa Ana,
assim como eram os pais de Leopoldina. Casaram-se então, convenientemente.

Contra o adultério, Leopoldina afastou-se de mim.

Depois de seu casamento, esse era o primeiro dia que passamos juntos.

Leopoldina era dotada de personalidade e caráter muito forte e tinha um


talento especial para as contabilidades. Regia com mão de ferro as finanças da
família. Trabalhou na campanha política do marido para prefeito da cidade e teve
uma campanha vitoriosa. E lembremo-nos que ela é advogada, de um ar altivo e
senhoril. Todavia, na véspera, esteve frágil como uma criança, desabando-se em
lágrimas em meus braços. Esteve irreconhecível, e de certa maneira mais bela.
Teve um olhar de bondade fixado em mim, enquanto estive humildemente aos
seus joelhos. E após secarem as lágrimas e os desabafos, calou-se. O Chalé estava
nesse momento num profundo silêncio.

Está aí a natureza complexa de Leopoldina e de muitas mulheres.

Depois desta tarde de contemplação para ambos. Pareceu-me que


Leopoldina seria minha para sempre. Por um instante pareceu. Ao ver que a tarde
caia, ela se deu conta da situação, em que se encontrava e bruscamente, como

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louca, pôs-se de pé, às pressas, com uns olhos de alteração em mim. Pôs-se a
andar de um lado para o outro, indignada com sigo mesma, e com ímpeto de
cólera. Era a Leopoldina de outrora. “Que personalidade tem essa mulher”. Pensei
naquele momento, em que eu a olhava descontente, calado. Então ela se foi.

Os dias que se seguiram foram de tormentos para mim, mas pulamos esses
infortúnios de minha vida.

34
“Que importa se estejas ausente!
O teu formoso semblante estou vendo a cada dia.”
Bernardo Guimarães
O Seminarista,

35
Capítulo 4
Vivia num casarão de arquitetura francesa, no fim do primeiro quarteirão,
na Rua 25, um senhor de idade. Aparentava ter oitenta anos. Não tinha herdeiros e
vivia sob os cuidados de uma senhora enfermeira francesa. Este tinha no bairro
fama de republicano, também de arrogante, que dava bengaladas na velha
francesa. Era um sujeito magro e esguio, calvo, de olhos azuis, dum azul ligeiro e
profundo. E apesar da idade, era forte e rijo. Este era um dos principais
intelectuais que vinha às sextas feiras para os debates literários no casarão.
Naquele início de maio, numa tarde fria de sexta-feira, reuniram-se em minha
casa.

— Olá, Sr. Norbert. Há muito tempo não o vejo.

O Sr. Norbert era um dos poucos que vinha à minha casa desde os tempos
de papai.

— Estive a sofrer de uma forte gripe – disse ele olhando em volta.

— E como o senhor está agora?

— Estou bem obrigado. Era coisa pouca para mim.

— De fato o senhor é de muita saúde – vamos entrando.

Penetrou na sala, com os passos firmes, tocando levemente com a bengala


no tapete, procurando com os olhos o Casimiro.

— Sente-se senhor Norbert.

— Onde está o Casimiro? – Perguntou, se sentando na poltrona, onde


sempre ficava bem acomodado por quase todo o dia.

— Foi para mim ao correio...— respondi, olhando seu rosto agora mais
velho, com novos óculos.

— A propósito, tu estiveste na América?

— No Brasil...
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— Ouvir muito falar deste país, do povo de lá – disse-me com a voz firme.

— É um país duma gente acolhedora...

— Ainda vem cá aquele petulante jovem – disse o velho, franzindo a testa


– referindo-se a Eufrásio, outro que vinha sempre discutir literatura com
Casimiro. A implicar contra os padres. E se declarando sempre um ateu, convicto.

— É bem provável que ele venha cá hoje.

— Preciso vê-lo e lhe dizer umas verdades.

— É só um jovem Sr. Norbert...

— Um jovem teimoso! – Exclamou o velho.

Eufrásio tinha vinte anos. Estudava literatura européia. Trazia sempre


consigo um novo texto, e dizia:— um dia irei publicá-los. Eram crônicas do
século XVIII. Contudo, jovem como era, dizia ter já opinião formada sobre as
coisas. E era duma teimosia irritável.

— É provável que venha por cá também o Crouses e o senhor Dutra.

— Desejo muito ver o Dutra, me deve no jogo de cartas.

Com efeito, logo depois, numa feliz coincidência, chegaram juntos: os


Crouses, o senhor Dutra e o Eufrásio. Animados, felicitando-me por eu ter voltado
à Inglaterra. Espalharam-se pela sala principal. O senhor Dutra, um velho
português, refugiava-se de início a um canto da sala, a jogar cartas com o velho
Norbert. Jorge descera da biblioteca, há horas escrevia, apresentei-á todos. Ficou a
jogar xadrez com o senhor Crouses, o único inglês do grupo, exímio jogador de
xadrez.

— Estive hoje a ler uma crítica interessante na Revista Literária de


Londres, sobre Stendhal. Dizia o colunista:

“A obra, O vermelho e o negro, me é de fato uma obra


prima, No entanto, acho a longa e cansativa”

– comentou o senhor Dutra, embaralhando as cartas.


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— Quem foi o miserável? Diga-me o nome, que mandarei expulsá-lo da
Revista, e lhe direi injúrias que ele jamais ouviu – disse exaltado, o Eufrásio,
charutando, de pé, ante a mesa, assistindo com curiosidade a partida de xadrez de
Jorge e Sr. Crouses.

— Nos deixe em paz, Eufrásio, a partida está equilibrada...— disse o Sr.


Crouses.

— Quem foi o miserável? – Repetiu Eufrásio.

— Um pobre... – disse com desprezo o Dutra.

— Sabiam que meu pai, por volta de 1837, conheceu pessoalmente o


brilhante Stendhal, já em grande fase literária? – Disse o velho Norbert sorrindo.

— Em 1828, numa provável noite, creio. Pois, segundo contam, porque ele
costumava escrever todas as noites, que Stendhal, iniciara o seu melhor trabalho,
que seria mais tarde sua obra prima: O vermelho e o Negro, – disse Eufrásio, com
os olhos na partida, franzindo a testa, com um lance que Jorge acabava de fazer –
interessante, disse depois.

— Me desculpe, jovem Eufrásio, mas concordo com o pobre colunista,


essa obra a que tu se refere, acho-a também, longa e cansativa – disse o Dutra, que
era ávido leitor da literatura francesa e inglesa.

— Sr. Dutra, fico admirado de ouvir tão minguado e impróprio comentário


de sua parte. – Disse o Eufrásio, olhando seriamente para o Dutra.

— É que para mim, meu caro Eufrásio, A cartuxa de Parma, é a principal


obra de Stendhal, é a sua obra prima – completou.

— Não te entendo... Como me diz isso – disse Eufrásio, erguendo os


braços, de pé, ainda assistindo a partida de xadrez do Sr. Crouses e Jorge.

— Baixe o tom de sua voz, meu jovem— disse Jorge sem erguer os olhos
do tabuleiro.

— O vermelho e o Negro: foi considerada a mais significativa obra da


literatura francesa do século XIX. E A cartuxa de Parma, obra fantástica, que

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mesmo sem alcançar sucesso junto ao público, arrancara elogios de vários críticos
inclusive de Balzac – disse o Sr. Crouses.

— Célebre Balzac – disse Jorge.

— Dom Blás foi também, obra que Stendhal arrancara apoio dos críticos, e
também de Balzac – disse eu.

— É verdade, mas para mim, A cartuxa de Parma continua sendo a


principal obra de Stendhal – disse por fim o velho Dutra.

Eufrásio deu uns passos pela sala, pensativo, parou com os olhos numas
fotos na parede. Fizera-se um breve silêncio. O bom Dutra voltara a remexer as
cartas. O Sr. Crouses abria um sorriso de satisfação, seu jogo estava ganho. Jorge
resmungou furioso.

— Estes europeus — recomeçou o Eufrásio, com um ar estupendo.

Respirou fundo, dramaticamente, como é de sua idade e continuou:

Não reconheceram em vida nossos principais autores – referiam se


novamente a Stendhal.

— Quando tu se referir há nossos principais autores, não se esqueça de


mencionar um brasileiro e um bom português – disse o Dutra, com os olhos em
seu jogo.

— A quem tu te referes?

— Ao nosso bom Eça de Queiroz e a Machado de Assis.

— De fato, foram brilhantes, mas estes tiveram reconhecimento de seus


leitores, ainda em vida. Stendhal foi velado com cerimônia simples, numa
humilde igreja de Assompton e enterrado no cemitério de Montmatre.

— Então lembremos nesta hora solene do poeta, entre todos os poetas, o


mais lembrado, mais celebrado, Luís de Camões – comentou o Dutra.

— E enterrado como indigente – completou o velho Norbert...

— Na mais profunda miséria – disse Jorge.


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— A propósito, senhores, o nosso querido Jorge está escrevendo um livro
de suas memórias.

— Temos cá um homem de espírito, muito singular – disse o Sr. Crouses,


cordialmente – e completou – é necessário que ele aprimore o seu inglês, pouco
entendo o que diz.

— É verdade. – Disse eu,— porém, convivendo conosco aqui em Londres,


logo falará fluentemente.

— Por quanto tempo pretendes ficar em Inglaterra, Sr. Morais? –


Perguntou Eufrásio, chupando o charuto, olhando-o com admiração.

Jorge, com a barba grisalha, com um aspecto tranqüilo de romancista,


respondeu-lhe rindo:

— Quando eu encerrar meu livro.

— Já tem um título?

— Ainda não meu jovem.

Pousaram os olhos novamente no tabuleiro. Fizera-se novo silêncio.


Noutra sala ouvia se os criados, numa movimentação, pondo a mesa. No relógio
bateu sete horas. Um criado tocou a sineta do jantar.

— Vamos jantar, meus senhores.

— Pontualmente às sete hein Dr. Eduardo – disse o Dutra.

— Como está aí está partida de xadrez que nunca acaba? Já é hora de


jantar – disse eu para os dois, sorrindo.

— Perdida para mim – disse Jorge, amuado, derrubando em seguida o seu


Rei negro no tabuleiro, e estendendo a mão amistosamente ao Sr. Crouses, que
num largo sorriso, apertando a sua mão, lhe dissera:— boa partida Sr. Morais.

— De fato, foi uma boa partida! – Disse Jorge.

— Uma ótima partida! – Exclamou o Eufrásio.

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— Pois bem, vamos jantar.

A sala de Jantar ficava após um corredor onde nas paredes pendiam fotos
de família, uma delas em destaque, em rica moldura, tinha o papai, ainda jovem,
ao lado de um amigo português, de quase a mesma idade que ele, com um paletó e
calças brancas, um chapéu Panamá e uma bengala de cabo de osso. Os dois
sorriam, pareciam felizes na foto. Jorge que ainda não tinha reparado naquela foto
perguntou:

— O seu pai é o da esquerda, não é? Como era elegante, e quem era o


outro?

— Só sei que foi um grande amigo do papai em Portugal.

— Era também muito elegante – disse o Dutra.

— Ele se chama Ezequiel Prado – disse eu com os olhos na gravura – há


um mistério que envolve o seu nome e seu passado com papai.

— Interessante – disse Jorge, pensativo.

— Bem... se acomodam à mesa — disse eu.

Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa.

— Está com um bom cheiro – comentou Jorge.

— Meu caro Dutra devo lhe informar que ainda esse mês parto, numa
longa viagem a Portugal.

— Vais a trabalho?

— Vou respirar novos ares, e levar comigo o nosso amigo Jorge, que ainda
não conhece aquele belo país.

— Almejo conhecer Lisboa – disse Jorge.

— Não é como Paris e Londres, mas tem lá os seus encantos – disse o


Dutra, passando o guardanapo sobre os lábios.

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— E decerto tu terás muita inspiração para o seu livro — comentou o
Eufrasio.

— E muito mais para contar – completou o velho Norbert.

— Oh querida Lisboa... Velha Lisboa...

— Está picante esta sopa – disse o Dutra – enchendo mais o prato.

— Há quanto tempo tu não vais a Lisboa, Sr. Dutra? — perguntou o


Eufrásio.

— Já se vão lá muitos anos, Sr. Eufrásio, muitos anos.

— Eu digo o mesmo – disse eu — já se vão lá muitos anos da minha


primeira entrada no Velho Mundo.

O Dutra tinha dois filhos em Lisboa. A esposa o deixou, parece que vivia
em Santa Olavia, com uma irmã solteirona e uma tia de idade. Ele, em Londres
vivia só, num velho sobrado onde embaixo, no térreo, funcionava sua livraria. Ao
fim de cada ano, os seus dois filhos, que estudavam na Faculdade de Letras em
Coimbra, vinham passar as férias em seu velho sobrado.

— Já se vão lá muitos anos – repetiu ele, num triste tom...

— Sr. Morais, creio que o dia de hoje, estará registrado nas páginas de seu
memorável romance — disse Eufrásio, mexendo lentamente a sopa de milho.

— Também creio que os nossos nomes, tão modestos, estarão registrados


nessas dignas páginas – completou, num tom humilde o bom Dutra.

Era a humildade em pessoa.

— Será que seremos dignos? — disse eu — olhando para Jorge que nos
olhava banhado num sorriso.

— Decerto, seremos. Já nos disseram que o Sr. Crouses, que o Sr. Morais,
é um homem de espírito. E só um homem de espírito é que nos dará crédito –
disse o Sr. Norbert.

— O que diz a nós, Jorge? – Perguntei.


42
— Esperem e verão.

— Esperaremos... – disse o Dutra.

Houve um longo silêncio, que se ouviam os talheres tocando os pratos, e


uns criados trocando as velas num castiçal, quando ouvimos a sonora voz de
Casimiro da outra sala, que aumentava no corredor.

O Sr. Norbert o gritou:- Sr. Casimiro! Venha de lá esses ossos, homem! ...
— Senhores, boa noite, olá Sr. Norbert, como está a saúde?

— Bem obrigado. Como um forte varão francês.

— Bem. Estou exausto. Não possuo energia para uma prosa, vou me
recolher. Boa noite para todos.

— Oh que pena... – Lamentou o Sr. Norbert.

— Boa noite Sr. Casimiro – disse o Dutra.

Quando o Casimiro saiu:

— Este é outro homem que eu tenho profunda admiração – disse o Sr.


Crouses, olhando para todos.

— De fato, é um homem singular – disse Jorge.

— E ele deve está mesmo muito exausto, porque deixou de se sentar


conosco – comentou tristemente Eufrasio.

— É que o dia de hoje é uma data triste para ele, é o aniversário da morte
de seu pai, que está sepultado no Rio de Janeiro. – Expliquei a todos.

— Pobre Casimiro – disse o Dutra enternecido – e erguendo-se disse,


cansado:— também vou me recolher já faz tarde.

O velho Dutra, de grandes óculos no rosto encaveirado, de cabelos


grisalhos; baixo e franzino, tomando o chapéu de sobre uma mesa — dissera:

43
— Meu caro Eduardo, de fato estou muito cansado, não tenho mais a
disposição de outrora, mas ainda venho com mais vagar, até mais,— dê um abraço
ao nosso Casimiro – disse galgando as escadas.

O Eufrásio foi o último a sair, e claro, depois de ter lido os seus textos e
imprecado contra os padres. Parando na escada, dissera quase enternecido:

— Sei que ainda estou na obscuridade, Dr. Eduardo, mas não desistirei dos
meus projetos... até logo.

44
“Pela janela entrava a manhã alegre, e com ela a brisa do mar, um canto
de pássaro e um sol sem nuvens após tantos dias de chuva. ”
Jorge Amado
(GABRIELA CRAVO E CANELA)

45
Capítulo 6
Augusto Conte, que passou algumas semanas em Paris, na companhia de
Guilherme Tavares, veio naquela semana à minha casa. Contara-me as novidades
que havia em Paris, e o que fizeram por lá.

— Definitivamente, deixarei a velha Inglaterra, meu caro Eduardo.

— Então vai mesmo habitar Paris.

— Sim, definitivamente. Não se pode morar na França e trabalhar na


Inglaterra.

— E tu Guilherme, também vai me abandonar?

— Vou ao Brasil, tenho negócios a fazer por lá, mas não fique triste, será
só por umas semanas.

— A última vez que tu me disseste isso, Guilherme, ficou dois anos.

— Oh... tu se lembras disso?

— Recordo muito bem...

Casimiro entrou na sala. Anunciara uma interessante visita. Vimos entrar


em seguida, um belo rapaz. Em traje oficial do Exército inglês, com o cabelo
cortado rente e tão sério como um general.

— Mas não é mesmo o Sr. Artur – disse Guilherme, olhando-o com


admiração.

— Estás um belo rapagão Sr. Artur – disse eu.

— O Exército muda as pessoas do Dr. Eduardo – disse Artur, bem


abotoado na sua longa sobrecasaca.

— Tu estás um típico soldado Sr. Artur... muito sério – disse Augusto,


rindo.

46
— Eu concordo com o Augusto. Sentem-se, vamos tomar um chá.

Artur era um jovem Oficial do Exército de Londres. Tinha trinta anos e era
ainda solteiro. Era um belo rapaz, como dizem os mais velhos, homem bem
apessoado. Tinha olhos negros, penetrantes. Era alto e robusto, de cabelos pretos.
Nascido e criado na Inglaterra.

— Como está seu pai Sr. Artur? Há tempos não o vejo – perguntei com
bom interesse.

— O velho anda muito bem, obrigado. Mas está fora de forma. Está um
pançudo. Quem o vê hoje, nem imagina que ele fora do Exército de Inglaterra.

— Horácio... Bom Horácio. Esteve comigo, fora figura presente, após a


morte de minha esposa e de papai. Deu-me muitos conselhos, ensinou-me a
viver... devo muito a ele, preciso vê-lo.

— O papai anda enfurnado naquela antiga casa...

Horácio Fitizurse nasceu na Itália como os seus pais. Veio ainda criança
para a Inglaterra. Residiu de início numa humilde casa no interior de Londres.
Fomos muito amigos na juventude, mas nos separamos por longos anos, quando
ele, influenciado pelos pais, entrou para o Exército inglês, e eu para a Faculdade
de Medicina de Londres. Horácio participou de muitos conflitos, ganhou
medalhas de honra. Tive uma brilhante carreira. Casou-se, na época, com uma das
mulheres mais belas da cidade. Uma jovem nascida em Rotterdam. Teve com ela
dois filhos; uma bela menina, e o nosso conhecido Artur. Após sua aposentadoria,
o Governo deu-lhe de presente uma bela casa ao Norte de Londres. Artur herdara
da mãe os belos traços, e do pai, a sabedoria e a coragem.

— E agora o Horácio vive enfurnado naquela antiga casa? – disse eu.

— Ninguém mais “ouvi falar dele”. Ninguém mais o vê em lugar algum.


O que ele anda fazendo meu jovem Artur? – Perguntou Guilherme, com um leve
interesse.

— Estar agora se dedicando aos netos – respondeu Artur. Imediatamente,


cofiando os bigodes.

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Giovanna a filha do Sr. Horácio era casado com um banqueiro inglês e
com este tinha três filhos, dois homens e uma bela menina.

— E tu como estás? – Perguntou Guilherme.

— Estou bem. Pedir licença ao Exército para ver a família, como sabem,
começam rumores de guerra. – e completou – penso que a II Guerra será
inevitável.

— Não achas que ainda é cedo para se falar em guerra Sr. Artur? – disse
Augusto, tranqüilamente, afundado na poltrona, e acendendo o charuto.

— A guerra vai arrebentar, Sr. Augusto, vai arrebentar... E será breve –


disse Artur, gravemente – e continuou:— o Exército inglês já está em alerta! O
pensamento agora não é mais sobre a guerra passada, mas sobre o que está por vir.

— O que te faz pensar nisso? – Perguntou Augusto, com o mesmo tom na


voz.

— Bem... – ficou a pensar, torcendo as pontas dos bigodes, e disse:— em


breve Hitler tomara o poder por completo na Alemanha. Aí, adeus minhas
encomendas... – terminou num ligeiro sorriso.

— E tudo coopera para uma nova guerra, não é mesmo? – disse eu.

— Exatamente, o Dr. Eduardo.

— Não só na Inglaterra, mas em todo o mundo... Em Paris, por exemplo, o


que se ouve é o risco duma nova guerra. No entanto, os jornais pouco têm a dizer
– disse Augusto.

— A verdade é que não se arriscam a falar – Disse Guilherme. Abafando a


voz.

— É necessário esperar. Há de fato muito a dizer. Mas a nossa mídia


prefere esperar... vamos esperar Hitler subir ao poder – disse Artur... – aí veremos.

— E o que o Exército inglês anda falando? – indagou Augusto.

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— O Exército inglês tem procurado estar a par de tudo o que se passa no
resto do mundo. Tem procurado, sobretudo, saber do que se passa na Alemanha, e
entender a filosofia de Hitler, os seus métodos. Contudo, é muito cedo para dizer
algo aos nossos civis. Uma coisa eu lhes digo; estamos lutando pela paz.

Um criado penetrou na sala, trazendo o chá. Era italiano. Sujeito raquítico,


de olhos esbugalhados na cara chupada. Um pouco assustado com o assunto,
pousando os olhos em Artur, perguntou:

— Se me permitem lhe perguntar algo?

— Sim, pergunte – disse ele.

— O que nós, estrangeiros, podemos fazer?

— Acertem suas documentações neste país e aguardem – disse o bom


Artur, vivamente.

A II Guerra Mundial rebentou no ano de 1936. Artur faleceu no terceiro


ano de operações, após um violento ataque aéreo, ao Norte da Inglaterra.

49
2º Parte

Capítulo 7
Dias depois da mudança de Augusto para a França e da viagem de
Guilherme para o Brasil, eu recebera uma carta do Banco de Portugal. Tinha uma
enorme dívida a quitar. E também por um motivo um tanto quanto peculiar, que
eu já considerava de maior importância, eu necessitava voltar a Portugal.

— Meu caro Jorge. Partiremos para Portugal amanhã, ao raiar do dia.


Querido Casimiro, deixarei mais uma vez esta casa em tuas mãos.
Desembarcaremos em Lisboa.

Meu pai passou uma parte da sua juventude em Portugal. Contou-me que
até tinha se casado em Lisboa. E fizera muitas amizades em Coimbra e em Sintra.
Mas de todas as amizades que fizera naquele velho país, após ter deixado para
sempre Portugal, mantivera contato e correspondências durante muito tempo, com
uma só pessoa. Um senhor de Sintra. Sebastião Damasceno Carpelo.

Tínhamos chegado a Lisboa, numa doce manhã de Domingo.

— Que bela cidade! – disse Jorge, encantado com a velha Lisboa.

Ataúfo Passos, velho procurador dos Carpelo, e antigo amigo de Sebastião


Carpelo, vieram nos buscar naquela manhã com um chofer.

— Olá Dr. Eduardo. Recebi seu telegrama. Bem no horário em – e me


olhando com contemplação – folgo em revê-lo. Já se faz tantos anos. Cá o vejo
novamente, e nada mudara.

— Olá Passos. O tempo passou de fato. Também é um prazer vê-lo


novamente, como vai o seu velho patrão?

— Cada dia mais velho e ranzinza, mais ainda possui boa memória.

— Este é Jorge de Morais. Um velho amigo da Bahia.

— Muito prazer Sr. Morais.


50
— O prazer é meu Sr. Passos.

— A Bahia sempre nos traz bons poetas – disse o Passos, estalando o


monóculo para enxergar melhor a bela figura de Jorge, — és um poeta?

— Escritor – respondi por Jorge.

— Como Jorge Amado?

— Jamais serei – disse Jorge, sorrindo.

— É muito modesto o nosso amigo – disse eu – ele está escrevendo um


livro de suas memórias. Estou acompanhando tudo. Já se demonstra um excelente
escritor.

— Obrigado Eduardo...

— Desde já, eu dou-lhe os meus parabéns Sr. Morais... A propósito, o Sr.


Damasceno está à nossa espera no Hotel Central. Queiram me acompanhar
cavalheiros, por favor.

— Como queira Sr. Passos.

— Dr. Eduardo, antes de tudo, quero lhe apresentar este homem, que
trabalha para os Carpelo há uns anos. Lobato Mendes, nosso chofer. O anterior
faleceu.

— Muito prazer Sr. Mendes – cumprimentei o chofer.

— O prazer é meu doutor. Chame-me apenas de Lobato.

— Vamos indo – disse Passos se adiantando.

Depois de percorremos cerca de cinco quarteirões, o carro parou à porta do


Central. A fachada era quase a mesma. No interior parecia que, em todos aqueles
anos, nada se movera do lugar.

— Isto é mais do que eu imaginava, Eduardo, é magnífico – disse Jorge ao


penetrar no saguão do velho hotel.

— É o famoso Hotel Central...

51
— É belíssimo.

— Aí vem o nosso homem!— exclamou o procurador, ao ver o velho


Damasceno galgando as escadas e vindo em nossa direção, banhado num sorriso.
Vinha mais magro, com rosto enrugado e com os cabelos inteiramente brancos. O
andar muito vagaroso, apoiado na bengala de castão de ouro. Fiz um movimento,
ia ajudá-lo descer as escadas, quando o Passos agarrou-me o braço:

— Deixe o vir, não gosta de ser ajudado.

— Ranzinza?

— Como sempre.

— Por onde anda os filhos?

— O mais moço vive em Paris e o outro administra o Hotel Lawrence em


Sintra, a filha, que veio com ele, foi à modista. Uma encantadora mulher...

— Como estar envelhecido.

— O tempo passou para ele...

— Olá meu menino – disse o velho se aproximando – dá cá um abraço...


Como me lembra do pai e parece que o tempo não passou para você..– disse,
olhando-me, enternecido – e este senhor? – perguntou a voz cansada, olhando
para Jorge.

— Um velho amigo do Brasil. Jorge de Morais.

— Morais... – pensou – tem parentes em Leiria?

— Não, meu senhor.

— Muito prazer Sr. Morais.

— Existe uma numerosa família Morais em Leiria – explicou-nos o


procurador.

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— Vamos subir ao meu quarto, meus senhores... que devo a honra de sua
visita, meu menino – disse, adiantando-se lentamente. Com o passo vacilante,
com as mãos a tremer, quando apoiava, com a bengala no assoalho.

— Confesso que desta vez venho a negócio, e para um assunto que devo
lhe consultar depois.

— Ficarei por mais duas semanas nesta cidade. Meu médico está me
atendendo todas as manhãs aqui neste belo hotel, depois disso, parto para Sintra,
para sempre. O ar daqui não me faz bem. Almoçam conosco?

— Ó, sim.

— Passos, é necessário que me ajude agora nas escadas.

Ao entrar no imenso quarto, o velho deixou-se logo cair na poltrona,


ofegante.

— Se acomodam – disse apontando um sofá a um canto – ufa. Estou velho


meu menino... E diga me, qual é o assunto? Será que posso ajudá-lo?

— O senhor bem sabe – comecei a falar, compenetrado,— que meu pai


fizera muitos amigos por aqui. No entanto, só se corresponderá com o senhor...
uma semana antes de ele vir a falecer, pediu-me para que eu procurasse um
senhor; um médico, de nome Ezequiel Prado e entregar- lhe uma carta. Eu prometi
no leito de sua morte, que faria isso. Na minha última passagem por Portugal,
procurei-o no endereço deixado por papai, mas ali não havia uma família sequer –
o senhor sabe desse homem?

— Ezequiel Prado. Há anos não ouvia falar deste nome... talvez se você
tivesse me consultado sobre ele da primeira vez que nos vimos, eu poderia lhe dar
uma resposta melhor querido Eduardo – disse o velho, torcendo as pontas do fino
bigode, com o olhar enternecido, e continuou: – fora um grande amigo de seu pai.
Andavam sempre juntos. Ambos, bons médicos. Ezequiel Prado..– repetiu,
apoiando as duas mãos à bengala – Não mais o vi, desde que seu pai deixou este
país. Alguns dizem que já faleceu. Outros, que ele foi morar com uma neta na
França. Seu pai não me falara nada de Ezequiel. Uma vez só me perguntou dele
em uma de suas cartas. Nem recordo quando. Mas se realmente tu desejas
53
encontrar esse homem, e como foi um pedido do seu pai... digo-lhe que há uma
pessoa que poderá te contar do paradeiro de Ezequiel Prado. Um homem que fora,
durante muitos anos, zelador de um hotel em Coimbra. Seu nome... – ficou a
pensar:— Noronha, Sr. Noronha.

— Senhor Noronha – disse eu, gravando o nome.

— Exatamente, menino – sorriu o velho.

— Muito obrigado pela rica informação Sr. Damasceno.

— Não precisa me agradecer. Apenas almoce conosco.

Uma camareira ruiva de olhar tímido preparou o almoço ali mesmo no


quarto.

— O que pretende fazer esta tarde Eduardo? – perguntou-me o velho,


cortando a carne em seu prato.

— Não tenho muito tempo nesse país Sr. Damasceno, por isso, parto hoje
mesmo para Coimbra. A forma da viagem, ainda não sei, devo alugar um carro no
Centro Velho. Se é que aqui existe esse tipo de serviço.

— Pois estar com sorte menino – disse ele – sorrindo – tenho negócios a
tratar em Coimbra, de modo que enviarei o Passos para cuidar de aluguéis de
imóveis pendentes por lá.

— Uma carona seria bem vinda – disse eu, me servindo da carne de vitela.

— Iremos com o Lobato, cavalheiros – disse o Passos.

— Sr. Damasceno, tu disseste que eu poderei saber do paradeiro de


Ezequiel prado com o senhor Noronha em Coimbra, no entanto, no envelope aqui,
está descrito um endereço, do qual encontrei na minha primeira passagem em
Lisboa, Rua dos Franqueiros Bairro das Janelas Verdes, onde há uma imponente
mansão. O que houve com a família deste curioso lugar?

— A mansão do Bairro das janelas verdes..– disse o velho Damasceno,


novamente enternecido – estive lá certa noite em um célebre jantar. Era a nata da

54
sociedade lisboeta. O ponto mais nobre de Lisboa, agora está lá, sob poeira e
esquecido pelo tempo. Coisas da vida.

— Intrigante – disse eu num curto sorriso.

— Há muitas histórias que envolvem aquele lugar, coisas que requerem


mais tempo.

— Compreendo perfeitamente o Sr. Damasceno.

— Quem sabe um dia lhe contarei tudo.

— Quem sabe... – disse eu, enternecido – oxalá, viveremos para isso.

Partimos aquela tarde.

O sol ia alto. Era uma tarde quente, abafada. Tínhamos pegado uma
ruazinha estreita de terra. O carro ia lento. Aqui e além, via-se uma velha Quinta;
uma fazendola florida com romãzeiras. Mais além se erguiam antigas estalagens.
O Sr. Lobato cortara caminho, tinha pressa. Poderia chover. Ainda paramos para
saber do médico naquela região. Contavam saber do homem. “Estás a viver com
a neta para os lados de Évora”. – dissera um senhor ao portão de uma Quinta.

— Ezequiel Prado! Ouvir muito falar desse médico – disse o Sr. Lobato –
uma vez ele estivera na Almada. Esteve a atender as famílias carentes....
Contava-se que era muito caridoso, que fazia suas viagens, distribuía remédios e
atendia muitas pessoas gratuitamente. Por isso chegara à falência.

— Um homem de espírito caridoso de fato – o que não é o meu caso –


disse o Passos, com os olhos no caminho.

— Ouviu também falar nesse homem, Sr. Passos? – perguntou-lhe Jorge.

— Ó. Sim. Era eu ainda um adolescente estúpido, querendo aparecer na


vida boemia – sorriu – em fim; nas agremiações e nos bares; não havia quem não
falasse dele. Aquele que possuía a mais bela mulher de Lisboa e a melhor casa do
país, mas parece que ele nunca se importara com isso – olhou para todos – como
disse o Sr. Damasceno, requer tempo para contar sua história – sorriu cinicamente.

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Era no cair da tarde. O sol já se escondia atrás dos outeiros. Ao longe, a
pequena Coimbra, sob a luz da lua e dos pingos de luz das ruas e das casas.

— Mas não será difícil encontrá-lo. Ele está, de fato, esquecido pela
sociedade. Mas nas regiões mais pobres, há sempre alguém que se lembre dele –
concluiu o Sr. Lobato.

Entramos em Coimbra por uma ruazinha estreita, calçada de pedras, com


belas casas, alquebrados casarões e velhos sobrados. Paramos de súbito, defronte
a um velho hotel. Conhecido na época pela arquitetura, pelos raros móveis e,
sobretudo, por ter sido principal estalagem dos estudantes das Universidades de
Direito e Literatura no ano de 1865.

— Tenho plena certeza que aqui nós saberemos onde encontrar o velho
médico – disse mais uma vez o Sr. Lobato, olhando absorto à iluminada fachada
do hotel.

— Pois, meu senhor, penso que ficaremos aqui até ao meio dia de amanhã.
Se por um acaso não obtivemos sucesso, prosseguiremos à tarde. Obrigado pela
carona. Foi muitíssima proveitosa querido Passos, Sr. Lobato.

— Não há de quê. Mas já se faz tarde – disse o Passos, olhando para o


Lobato – também repousaremos por cá.

— Então nos acompanhe no jantar.

— Com todo prazer.

Jantamos e subimos aos nossos quartos. No meu aposento, perguntei a um


criado magro que batia o pó do leito e da cômoda, sobre o médico:

— Ezequiel Prado! Um médico. Nunca ouvir falar deste homem, meu


senhor, me desculpe. – depois de desviar os olhos de mim para as janelas – é bem
capaz que chova hoje estar um céu carregado. Boa noite, meu senhor.

— Boa noite e obrigado – dei-lhe uma gorjeta.

Desabei-me no leito exausto, caindo num sono profundo. Sonhei com meu
pai vestido de branco, olhando-me ternamente. Ele sorria, com os braços erguidos,

56
eu tentava abraçá-lo, não o alcançava. Tumultuosamente via passar por mim,
Leopoldina, com o seu vestido de cauda longa, escarlate, me chamando, sorrindo
como uma louca, depois chorando. Debalde, eu tentava tocá-la. Não tinha força e
nem voz. E outros rostos se misturavam com o dela e com o de papai.
Despertei-me molhado de suor, com as pancadas de chuva na vidraça. Um vento
forte levava e trazia a chuva. O teto parecia que ia desabar. Pingavam gotas no
meio do quarto. Uma parte do carpete já estava encharcado. E novamente vinha
vergastadas de água contra a vidraça. Depois se fazia um silêncio tenebroso. Do
corredor ouvi passos apressados. Gente corria. Uma luz aparecera debaixo da
porta. Um criado gritou-me:

— Meu senhor é necessário que eu veja o seu quarto.

— Está tudo bem! – Disse eu abrindo a porta. E o criado penetrou no


quarto trazendo um candeeiro, iluminando o leito.

— O tapete está encharcado e há pingos por toda a parte – disse o criado –


não prefere trocar de quarto, meu senhor?

— Não, obrigado. O dia já está amanhecendo.

— Como dizem os portugueses... estar um dia de Inglaterra... E aqui o teto


está velho, os pingos penetram. Tu ficarás aqui, mesmo meu senhor?

— Sim. Não se preocupe.

— Então – olhou mais uma vez em volta – até logo.

Eu tinha agora um grande interesse em encontrar Ezequiel Prado. Aquela


aventura me animou, e também pelo fato do médico mostrar-se uma pessoa muito
interessante.

Fui encontrar logo cedo no salão do velho hotel, o Sr Lobato, na


companhia de um senhor de meia idade. Um homem muito gordo, baixo e calvo,
de olhos azuis intensos, barba alva e cheia. Pairava animadamente com a face
rubra, sorrindo, com dentes estragados, com as carnes na cadeira.

— Olá Dr. Eduardo. Encontrei aqui uma pessoa que procurávamos. O Sr.
Noronha! – disse o Sr. Lobato, sorrindo de satisfação.
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— Como vai Sr. Noronha?

— Em que posso ser útil aos senhores? – perguntou-me logo, com


empolgação.

— És tu o zelador deste hotel. O Sr. Noronha, em que me falara o Sr.


Damasceno?

— Sr. Damasceno... como está ele?

— Está bem.

— Não sou mais o zelador disto aqui. Sou hóspede, assim como os
senhores... E o que lhes disse sobre mim, o velho Damaceno?

— Que o senhor poderia nos dar uma rica informação.

— Informação? ... pois perguntem.

— Procuramos um médico de nome Ezequiel Prado. O senhor sabe nos


dizer deste homem? ...

O velho Noronha ficou a nos olhar, absorto, enquanto eu e o Sr. Lobato


olhávamos esperando ansiosos pela sua resposta.

— Sabe senhores, quando eu era jovem, vinha muito à Coimbra, e me


hospedava quase sempre aqui nesse hotel.... Lembro-me claramente de muitas
pessoas que aqui se hospedaram. – dizia o velho, deleitoso de nossa atenção. Com
os olhos pequenos, brilhando de prazer. Era eu então um pobre estudante recém—
casado, tinha descontos, por ser estudante em minha hospedagem, mas,
necessitava de renda para viver, de modo que passei a trabalhar aqui como
faxineiro, depois de mensageiro, até chegar ao cargo de zelador – pois, meus
senhores, entre muitos, conheci o jovem doutor Ezequiel prado... um belo rapaz,
educado em Paris. Um grande lisboeta, um excelente português, como o pai...
conheci o pai... um bom homem... Ezequiel Prado tinha um luxuoso consultório
em Lisboa. Muitas senhoras com suas filhas iam visitá-lo. E numa consulta e
outra, lhe deixava sempre um convite para uma ceia em suas casas. Certa vez, ele
recebera um convite do governador de Lisboa. Contudo, Ezequiel Prado, sempre
foi humilde. Viajou muito ao redor de Lisboa, a distribuir remédios e a atender
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gratuitamente a muitos carentes. A última vez que o vi foi em 1865. Num ano de
muita agitação política, social e literária em Coimbra. Neste ano estiveram por
aqui, os principais intelectuais da época... E entre estes, o jovem médico Ezequiel
Prado, lançando um livro de medicina...

— E onde devemos encontrá-lo agora? – perguntei já impaciente.

— Bem, meu senhor, como eu disse. O vira pela última vez em 1865. O
que sei é o que muitos dizem também, que ele está a viver para os lados de Évora
e Beja, aos cuidados de uma neta. Pobre homem.

— Obrigado Sr. Noronha – disse eu, quase desanimado.

O Sr. Noronha pouco ajudará. Mas havia a possibilidade de ir a Évora e


Beja. Talvez por lá, colheria pistas de seu paradeiro.

— Se o encontrarem, fale sobre mim.

— Certamente...

— Ah. Quando forem a Lisboa, visitem a minha humilde residência na


Rua do Alecrim 23.

— O visitaremos ao Sr. Noronha. Bons dias.

Daí há instante o Passos descia de seu quarto, esbravejando contra seu


país.

— Um hotel histórico. Aqui passara a nata da Literatura portuguesa. E


agora tão abandonado e esquecido pelo tempo e por todos.

— O povo não tem memória, Sr. Passos – disse o Lobato.

— Isso é uma pena – disse eu maquinalmente.

Jorge também descera para o café, mas ao contrário do Passos, trazia no


rosto um ar de satisfação e aventura.

— Olá, Cavalheiros – tivemos uma noite e tanto não?

— Uma noite para esquecer Sr. Jorge – declarou o Passos.

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— Querido Passos – disse eu em tom de intimidade – não obtivemos
resultado algum com o Sr. Noronha. Tanto que ele não é mais o zelador daqui.

— Lamento profundamente Dr. Marques – disse o Passos.

Um garçom veio trazer o seu café.

— Mas tivemos a sorte de o encontrá-lo aqui.

— Isso é verdade – disse Lobato – mastigando uns biscoitos amanteigados


que estava por sobre uma baixela no centro da mesa.

— Ele disse que o médico pode estar a viver para os lados de Beja e
Évora.

— Isso não ajuda em nada... Mas.

— Ficamos por aqui Passos. Partiremos no cair da tarde. Vamos arriscar.

— Se isso ajudar, antes de cobrar os credores do velho Damasceno, irei me


juntar com os rapazes da sociedade literária de Portugal. Ficarei em Coimbra por
duas semanas. Sei que depois dessa chuva torrencial as ruas ficam quase
intransitáveis. De modo que deixarei o Lobato para guiá-los até Évora. Confesso
que também fiquei enternecido com sua procura pelo médico Ezequiel Prado.

— Isso será de grande ajuda, Passos.

— É claro, se o Lobato não fizer objeção.

— De modo algum. Será um prazer – disse o chofer.

— Então, sigam por essa rua defronte ao hotel, ao fim de seis quilômetros
vão encontrar o antigo Casarão de Pensão – disse o Passos – lá obterão boas
informações.

Com efeito, a estrada estava difícil, pois a chuva havia deixado poças de
lama no meio do caminho e estava escorregadio. O dia estava nublado e cinzento.
O carro ia se arrastando lentamente, roçando às vezes uns galhos molhados de
árvores. Mais além, via-se o cerrado verde; umas pobres casinhas despregadas
umas das outras. Coimbra já estava para trás. Ao longe um pobre horizonte.

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— À noite está chegando temerosa, salvo, sem chuvas – disse o Lobato.

— Estamos com sorte – disse eu.

— Que influência temos no Brasil, hein Sr. Morais? – perguntou o Sr.


Lobato, com os olhos fixados no caminho.

— A boa poesia, as Artes Plásticas e a música – disse ele seriamente.

— Hoje se encontra no Brasil: bons teatros, boa comida, boa bebida e,


sobretudo, belas mulheres, Sr. Lobato – completei.

— Tenho que contar-lhes algo muito curioso... – começou o Sr. Lobato,


sorrindo – meu pai, que Deus o tenha, me deixara no testamento uma boa e
confortável casa na Almada; Duas éguas brancas, e o mais curioso, uma casa em
Porto Seguro, na Bahia.

— Em Porto Seguro? – disse Jorge franzindo a testa.

— Na Rua da Lama, o Sr. Morais. Decorei até o endereço. Se por um


acaso o senhor se interessar pelo imóvel, tenho em casa toda a documentação. E
eu lhe faria um bom preço.

— Interessante – disse Jorge.

— Chegamos Dr. Marques. Olha quem nos aguarda...

— É aqui? – franzir a testa.

— Uma sombria estalagem – completou o chofer.

— Senhor Lobato. Por obséquio, encoste mais adiante, por favor.

— Sr. Lobato – disse Jorge, antes que eu me esqueça, me interesso pela


casa. Conversaremos.

— Sim, claro.

Paramos defronte a uma velha casa de pensão. Era um velho casarão


esquecido pelo tempo. Tinha a calçada de pedras quebradas; as paredes
descascadas; uma larga porta de duas partes, com a madeira ressecada e

61
carcomida, que havia provavelmente sofrido sol e chuva, ainda se mantinha firme
em seu lugar. O primeiro andar em total decadência suportava dois janelões
alquebrados, com rachaduras. Estavam ali, pesarosos, de frente para a rua. Numa
lateral da casa, ficava uma fileira de janelinhas abrigadas à beira do telhado. A
casa tinha no topo uma forte lâmpada, que deixava toda a frente clara como o dia,
mas também denunciava como o dia a sombria estalagem.

— Uma edificação perfeita para uma casa de pensão – disse Jorge. – Ao


descermos do carro.

— Ficaremos essa noite aqui, Sr. Lobato.

— Tu és de fato um aventureiro Dr. Marques.

— Tenho esse espírito, Sr. Lobato. E creio que Jorge também.

— Estou vivendo um grande momento em minha vida, e me sinto


rejuvenescido cavalheiros – confessou Jorge.

— Como queiram senhores, mas prefiro a capital com o seu murmúrio de


festa – terminou o chofer.

Penetramos na sombria pensão. De imediato um senhor de cara larga e


pálida, com um grande bigode negro, nos recebera é nos conduzira até a um pobre
gabinete onde se achava uma velha escrivaninha e duas velhas cadeiras; uma
estante de pau preto, com livros e com uma pilha de jornais velhos.

— Obrigado por escolherem o meu humilde estabelecimento, meus


senhores – disse o homem, num largo sorriso.

— É um idôneo estabelecimento?

— Sim. Pertencera a meu pai – respondeu-me o senhor, franzindo a testa.

— Alguma vez o senhor ouviu falar, ou viu passar por aqui um conhecido
médico de nome Ezequiel Prado.

— Sim senhor – respondeu-me o homem, depois de um breve momento.

— E o senhor sabe por acaso, onde eu posso encontrá-lo.

62
— Não. Não senhor, me desculpe – respondeu-me olhando absorto.

— Quando o senhor o viu por aqui?

— Já se faz muitos anos...

— Obrigado.

— Tenha um bom descanso. Senhores.

— Obrigado – dissemos quase juntos.

Depois de nos acomodarmos nuns quartos indecorosos descemos para o


refeitório onde curiosamente se via numa das paredes uma gravura de Fernando
Pessoa e um desenho de Antero de Quental. Nessa humilde sala já havia uns
homens mal vestidos, num murmúrio, tomando sopa numas mesas rudes com
toalhas quadriculadas. Arregalaram-se os olhos, quando nos viram entrar em
sobrecasacas escuras e com luvas luxuosas. Pareciam estar bem famintos. Nós, no
entanto, estávamos.

Numa das janelas entreaberta, entrava baforadas de um vento frio. Um


senhor idôneo adiantará para fechá-la. Ia devagar, com o passo vacilante, com as
costas curvadas e a mão trêmula. Um criado magricela, de rosto apático, o ajudou
a fechar a janela e o conduziu de volta à mesa. Os homens agora, silenciosos, as
cabeças levemente curvadas, tomavam a sopa quente.

O apático criado, ao passar, parou para nos cumprimentar.

— Olá, Cavalheiros. Sejam bem vindos ao nosso humilde estabelecimento.

— Muito obrigado – respondi por todos.

— O que querem para o jantar?

— Café com torradas, meu jovem – disse o Sr. Lobato.

— O mesmo – disse eu.

— Eu vou optar pela sopa – disse Jorge.

63
Um senhor tão magro, quanto o apático criado, de ar sorumbático,
aparecera depois com o café e a sopa. E apenas nos servira, pousando os olhos
inquietos em nós, perguntou, abafando a voz:

— Os senhores estão procurando o Dr. Ezequiel Prado?

— Sim, meu senhor – respondi, imediatamente.

— O que querem com ele? – perguntou franzindo a testa e nos olhando


com um ar de interrogação.

— Tenho algo para lhe entregar, coisa de muita importância para ele, o
senhor pode nos dizer onde poderemos encontrá-lo?

O homem pôs-se a pensar um momento:

— Não tenho muito tempo. Estou em serviço, mas... – disse ele, coçando a
barba,— e continuou:— vou lhes contar o que sei... muitos já passaram por aqui,
para saber de Ezequiel Prado. Alguns bem vestidos, assim como os senhores.
Gente rica... outro dia, apareceu aqui, um padre de Lisboa. Outrora, uma rica
senhora, com dois filhos, até um advogado! Eu disse a cada um, que não sabia do
médico... O velho Ezequiel está cansado. Não pode ser mais incomodado. Já fez
muito por essa gente. E não teve reconhecimento...

Ele foi um médico muito ativo. Um excelente profissional, de um grande


coração. Ajudou muita gente, a troca de sentir-se bem, ao ver as pessoas bem.
Fora assim em quase toda a sua vida.

— Então o senhor aconselha?

— Sim, senhor.

— Qual é a sua graça?

— Teixeira de Freitas. Mas me chame apenas de Teixeira...

Uma discussão havia começado numa das mesas, entre dois velhos. Um
dos velhos, mais alterado, batera com a bengala no outro. O Teixeira recomeçara:

64
— Pois, senhores. Graças ao nosso bom Deus, que lhe deu uma neta, o
pobre homem estaria perdido...

Às vezes ela aparece por cá. Para comprar comida... uma bela jovem.
Cuida do avô com muito cuidado.

— Como se chama esta jovem? – perguntei.

— Srta. Judite – disse o homem, num ligeiro sorriso.

— Srta. Judite?

— Sim, senhor.

— O senhor pode nos descrevê-la.

O velho Teixeira, com a mão no queixo, de pé, ante a nossa mesa – disse
com entusiasmo:

— Como eu disse uma bela jovem. De bons princípios. Mas também


pudera, neta de quem és...

— Creio que sim.

— A criatura tem os traços mais perfeitos que eu já pude ver. Pitorescos e


indescritíveis para mim. Ou posso dizer de constituição delicada...

Tem vinte e oito anos, de um metro e oitenta. Causa ainda admiração por
onde passa. Têm cabelos negros, com mexas e cacheados, olhos bem azuis da cor
do céu. Um narizinho magnífico e a boca desenhada a capricho. Tem os dentes cor
de pérola e uma pele alva como neve. Um colo bem feito; ombros arredondados,
em fim, uma pintura.

— Interessante discrição, Sr. Teixeira – disse o Sr. Lobato.

— Se for mesmo como fala, imagino uma obra prima – disse Jorge, bem
ávido.

— Quanto ao velho Ezequiel – continuou o Teixeira:— está gordo, pesado


e calvo. Está velho, é claro, mas ainda de ideias firmes. Um bom homem, como
poucos que conheci. Ainda é sensível aos trabalhos de medicina, mas prefere a
65
inércia. Passa os dias, quase inteiros, na varanda da casa, numa velha cadeira de
balanço.

O homem era prosaico, mas o ouvíamos atentos.

— Pois irão decerto achá-lo na varanda cachimbando. Às vezes larga o


cachimbo de lado, por interrupção da neta. Ezequiel se levanta cedo, com os
primeiros raios de sol. Abre as janelas de par em par. Prepara um forte café e vai
se recostar na cadeira da varanda.

Ezequiel sofrera muito na vida. Mas agora na velhice, fala do prazer da


missão cumprida, do fato de ter trabalhado muito, de ter sido um bom médico e de
ter salvado muitas vidas. Mas às vezes é encontrado triste na varanda, com os
olhos cheios de água. É a falta dos filhos. O mais moço Miguel Prado, o pai de
Judite, um arquiteto muito conhecido na época. Morreu num naufrágio junto com
o avô Aloísio Ávaro, numa viagem, justamente para o Brasil. Judite tinha nesta
época poucos meses de vida. A jovem esposa enlouqueceu e morreu anos depois.
E outro filho de nome Maurício Ávaro Prado, um arrogante, assim como o avô, o
velho Ávaro. Aventureiro, o rapaz foi para a Inglaterra e nunca mais voltou.
Ninguém soube mais dele. Contavam-se os criados mais íntimos da casa que
Maurício era o filho mais querido, o preferido dos pais... mas o que todos queriam
saber era mesmo da mulher de Ezequiel Prado, e por que, ele não se casou de
novo? Ezequiel nunca tocou no assunto. Mas conta-se que Joana Ávaro Prado,
(filha do Capitão Aloísio Ávaro Filho), fugira com um promotor de Lisboa, um tal
de Castro Alvarenga, que também era casado. Ezequiel dedicava-se tanto à
medicina, tanto que se esquecia da esposa. E Joana. Bela mulher; um corpo
escultural, de largos quadris, como as brasileiras, de longos cabelos negros e com
olhares ardentes de desejo. Já era esperado o resultado. Pois, enquanto Ezequiel
ficava a fazer as suas viagens. Joana ficava a receber em sua luxuosa casa, em
Lisboa, no Bairro das Janelas Verdes, visitas frequentes de Castro Alvarenga. O
bom promotor é bem visto pela sociedade, da nobre família Alvarenga. Os
Alvarengas, os nobres Alvarengas. E lá ia o jovem e belo promotor, cortejar a
encantadora Joana, na mansão do Bairro Das janelas Verdes, residência histórica
dos Ávaro. Família que tem agora como única herdeira a jovem Judite Ávaro
Prado.

66
Lá ia o promotor, e onde estava Ezequiel? Nos mais distantes lugares de
nosso Portugal. A servir e a ajudar aos mais necessitados.

Após a fuga dos amantes, a mansão do Bairro das Janelas Verdes ficara
por muitos anos aos cuidados do mordomo Plínio Ventura, um senhor afeminado
de Leiria e da cozinheira D. Remédios. Foi D. Remédios quem casara os meninos
e criara a última herdeira dos Ávaro a Srta Judite. Após a morte de D. Remédios e
a aposentadoria do Sr. Plínio, a mansão ficou abandonada até os dias de hoje. É o
único imóvel que restou em Lisboa. Mas, senhores, o que me deixou mais
impressionado com essa história toda, foi o fato de Ezequiel Prado, meu amigo,
não ter lamentado a partida da adúltera mulher, e de nunca ter citado o nome dela.

— Mais uma coisa, Sr. Teixeira.

— Sim.

— Como chegaremos ao Dr. Ezequiel Prado – perguntei, apoiando com a


minha bengala no assoalho para me erguer.

— Amanhã, com o dia claro, vou indicar-lhes-ei o caminho. Não é tão


longe.

— Obrigado Sr. Teixeira.

— Interessante história, Sr. Teixeira – disse Jorge.

— E é real, meu senhor.

— Creio.

Ouvimos pesados passos no assoalho do salão, que crescia em nossa


direção. Era o pobre proprietário da casa, o velho dos grandes bigodes negros.

— Teixeira, há horas que tu estás aí a falar! E teus afazeres? – Me


desculpe senhores.

— Oh. O Sr. Osmundo. Dê-me licença, senhores.

— Sim.

— Olá senhores. Ficarão mesmo só essa noite?


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— Só essa noite – respondi, friamente.

— Ora, fiquem mais dias. Serão meus hóspedes de honra.

— Que pena. Teremos mesmo que partir amanhã.

— Há uma suíte reservada – insistia o homem,— para hóspedes.

— Sairemos amanhã, com os primeiros raios de sol.

— Pois, fique o quanto quiserem – disse o homem, saindo amuado.

— Velho arrogante – disse o Sr. Lobato.

— Um perdido – disse eu.

— Sujeito intragável – completou Jorge.

Os velhos voltaram a brigar. Davam bengaladas um no outro. O Teixeira


correu para separá-los.

— Pobres homens – disse o Sr. Lobato.

68
Capítulo 8
— Se seguirem este caminho – dizia o Teixeira à porta da casa de pensão,
apontando com o dedo indicador, – vocês chegarão logo. Mas devo avisar-lhes
que terão decerto, muita dificuldade. A chuva de ontem deixou o caminho quase
intransitável. Após um quilômetro e meio de viagem, vocês chegarão a uma
humilde vila. Perguntarão por Ezequiel e certamente alguém lhes ensinará a sua
morada.

— Obrigado Sr. Teixeira.

— Vão com Deus, senhores. Para Ezequiel, diga-lhe que mandei um forte
abraço.

— Não se preocupe Sr. Teixeira, daremos o seu recado, e mais uma vez,
muito obrigado.

— Eu que lhes agradeço. Até a volta, se por aqui pararem, tragam notícias.

— O traremos, decerto – o cumprimentei, e partimos.

O sol não tinha aparecido naquela manhã. Chuviscava apenas.


Lentamente, o carro seguiu viagem, balançado pelos buracos do caminho,
rangendo alto. Se o carro se quebrasse, seguiríamos a pé, ou em cima de algum
carro de boi, mas seguiríamos.

Viajávamos todos agora, mudos. Jorge parecia estar profundamente


compenetrado num só pensamento. O Sr. Lobato, com a testa franzida, não
despregou os olhos do caminho. Fiquei então a pensar na minha vida corriqueira.
Os dias iam passando tão depressa. Logo eu começaria a sentir o peso dos anos. E
não tinha um filho... teria que ser mais ágil. Correr contra o tempo. Como é de
costume dizer os apressados. Pensei então, quando voltasse para a Inglaterra,
reabriria o consultório de papai. Não voltaria mais a ver Leopoldina. Ou talvez,
colocaria à venda o casarão, e deixaria para sempre a Inglaterra...

69
Jorge, saindo de seu pensamento, disse-me animado:

— Andei fazendo muitas anotações Eduardo.

— Para o livro?

— Sim. E estou na expectativa do que nos terá a dizer o velho médico.

— Se for verdade o que dizem sobre ele, tu terás uma vasta e interessante
pesquisa. Não só para seu livro de memórias, mas também para um romance.

— Andei pensando nisso.

— Está dormindo bem esses dias?

— Dormindo e comendo muito bem, obrigado.

— Vejam! – exclamou o Sr. Lobato.

Era a torre de uma igrejinha que se despontava atrás da serra; humildes


casas e uma carreira de casarões envelhecidos; uma praça ajardinada, com bancos
mesquinhos de cimento e mesinhas onde já se viam uns velhinhos jogando.

— Cidadezinha interessante – disse Jorge, olhando pela janela, como se


estivesse procurando alguém.

— Não deve ser aqui. Talvez num povoado mais adiante – disse o Sr.
Lobato – dando envolta uma ligeira olhada.

— Eu concordo com senhor. Mas devemos procurar saber...

Paramos defronte a um pobre botequim. Um senhor de meia idade, de


cabelos grisalhos, meio despenteados, caído na testa, que enrolava um cigarro
junto à porta do lugar, ficara a olhar-nos meio espantado. Desci do carro e
adiantei-me para perguntar-lhe:

— Bom dia, meu senhor.

— Bom dia – respondeu o homem, desconfiado, olhando-me e olhando


Jorge e o Sr. Lobato no carro.

— Estou a procurar um médico de nome Ezequiel Prado. O senhor...


70
— André. Tu sabes onde estás a viver aquele velho médico meio louco. O
avô daquela bela rapariga? – perguntou ele, bruscamente, voltando-se para dentro
do botequim, onde três rapazes fumavam e jogavam cartas, silenciosamente.

Um rapagão de terno preto, de cabelos bem anelados e sapatos bem


engraxados, saiu. Ficou um breve momento a nos olhar, dando baforadas no
cigarro, e disse:

— Hoje bem cedo esteve cá a Stra. Judite. Esteve a comprar verduras


naquela quitanda... E se foi. Não faz muito tempo... Mas se querem saber de
Ezequiel Prado, a sua casa está a meio quilômetro daqui, é a primeira Quinta fora
da cidade. É uma grande casa branca, envolta de árvores esguias e com plantas de
todos os aromas, com um imenso cercado. Tem defronte um grande portão de
madeira branco – deu uma pausa, e ficou a olhar, copiosamente, franzindo a testa
e perguntou:— são por acaso agiotas? Compradores de terras? Ou bancários?
Pois, há muito tempo, não vejo por aqui, cavalheiros tão bem trajados.

— Somos amigos de Ezequiel Prado, meu senhor.

— Nunca os vi por aqui.

— Pois, somos velhos amigos dele.

— E não sabiam onde ele morava?

— Basta. André! Os senhores devem estar com muita pressa – disse o


velho.

— Sr. André, de fato não sabíamos onde encontrar o velho Ezequiel. Logo
vamos saber por que ele veio se instalar nesse fim de mundo. A propósito,
obrigado pela boa informação.

— Não precisa agradecer. Faça-me um favor. Diga a Judite que lhe mandei
lembranças.

— Direi. E obrigado... Senhor? – olhei para o velho.

— Francisco, seu criado – disse o senhor.

71
Ficaram os dois à porta do botequim, até o carro sumir no caminho.
Avistamos logo, ao longe, uma casa branca entre árvores altas. Deveria ser aquela.
Paramos defronte.

Vinha de dentro um perfume de rosas. Das frestas do portão, via-se a


varanda, com vasos de plantas, um gato gordo dormindo em um canto e uma
cadeira velha de balanço. Da casa fluía também um silêncio sepulcral. As árvores
estavam imóveis. Era um dia nublado, mas sem vento.

— Deve ser aqui, Dr. Marques – disse o Sr. Lobato, a meia voz.

— Sim. O Sr. Lobato, deve ser – disse eu, abafando a voz, como se fosse
para evitar qualquer ruído.

— Me parece que a casa está vazia – disse Jorge.

— Que silêncio! – disse o Sr. Lobato.

— Como me dissera aquele rapaz, é a primeira Quinta, após a cidade... –


disse eu.

— Escutem... – disse o Sr. Lobato.

Veio da casa um ruído de cadeiras no piso, e logo depois ressoou uma


risada cristalina de mulher. Saí do carro e fui para o portão. Chamei com pampas.
A porta rangeu levemente e em seguida apareceu a figura de uma bela mulher.
Tão bela, de uma beleza, que eu nunca tinha visto antes. De linhas ricas, traços
perfeitos. Belas formas de mármore. Jorge e o Sr. Lobato ficou contemplando-a do
carro. Seus olhos azuis, dum azul ligeiro e profundo, ficaram retos em nós. Ficara
ali, na varanda, um momento, com uma mão apoiada na cadeira de balanço.
Parecia assustada. A tranqüilizei, perguntando logo pelo médico:

— Estou à procura do Dr. Ezequiel Prado. Disseram-me que eu iria


encontrá-lo aqui! Estou certo?

— Sim – disse a bela criatura, com uma doçura nervosa na voz.

— Penso que ele é seu avô?

— Sim – disse ela, segurando um sorriso, ainda imóvel na varanda.


72
— Eu preciso falar-lhe... Venho de muito longe para isso...

Enfim, a mulher galgou os degraus da varanda. Caminhou lentamente,


com passos compassados e firmes até ao portão.

— Me chamo Eduardo. O Dr. Eduardo Marques. Colega de profissão de


seu avô – sorrir para ser amistoso – e aqui comigo é o Sr. Lobato Mendes e Jorge
de Morais.

— Srta. Judite. Muito prazer – disse ela, me estendendo a mão, com uma
graça nervosa e delicada na voz – queiram entrar.

A caminho da varanda:

— Me desculpem o embaraço, senhores. É que meu avô há muito tempo


não recebe visitas. E os últimos que aqui vieram, foram só para incomodá-lo.

— Compreendo perfeitamente – disse eu, acanhado.

Fomos introduzidos numa pequena sala humildemente mobiliada. Numa


janela entreaberta, penetrava a claridade fria do dia nublado. A Srta. Judite, ao
entrar na sala, precipitou-se logo para fechá-la, e acendeu umas velas no castiçal,
– e nos disse num tom mais amistoso:

— Meu avô ainda deve estar a dormir. Esteve esses dias muito adoentado,
com forte constipação gripe. Está muito fraco...

Depois de um breve momento:

— Se acomodam, senhores. Vou ver como ele está. Aceitam uma chávena
de chá?

— Sim. Obrigado – disse por todos.

Fiquei a reparar a humilde salinha. Era uma sala estreita, esteirada, com o
forro em verniz claro. Nas paredes havia fotos antigas, quadros e dois diplomas de
medicina. Por sobre uma mesinha, havia uma antiga caixa de música do século
XIX. Ao lado, uma cadeira de marroquim e uma poltrona de couro. O estofado era
fundo, e tinha um tecido gasto... Numa das paredes havia uma foto de um jovem
de cor muito clara, com ar de fidalgo, de cabelo curto, penteados de lado; com um
73
rosto magro e bigodes finos, com as pontas para cima, e ao lado deste jovem, na
mesma moldura, tinha uma bela jovem, muito parecida com a Srta. Judite. Eram
decerto, os pais dela. De frente a mim, tinha um armário envidraçado com vasos
azuis de porcelana e pratos chineses. Bem a meu lado, tinha uma estante com uma
pilha de livros de medicina e literatura, jornais e pequenos porta retratos com
fotos de crianças.

Uma bela jovem, morena, de cabelos negros e olhos castanhos, nos serviu
o chá. A Srta. Judite voltou para sala, em seguida, sentando-se na cadeira de
marroquim escuro, perguntou-me serenamente:

— De onde o doutor conhece o meu avô?

— Não o conheço pessoalmente. Só de muito ouvir falar.

Ela corou e franziu a testa.

— Meu pai o conhecera muito bem. Foram grandes amigos. Ele se


chamava Carlos Eduardo Mendonça Marques. Ele fizera também outros amigos
aqui em Portugal. Foi exatamente um deles que me contou sobre o Dr. Ezequiel
Prado, e me disseram, onde eu poderia encontrá-lo. A propósito, um senhor, que
eu conhecera em Beja, de nome Teixeira, mandou para a senhorita e seu avô,
lembranças.

— Obrigada – disse a Srta. Judite, tranqüilamente.

— Por acaso a senhorita, algum dia, ouviu o seu avô mencionar o nome de
meu pai, Carlos Eduardo?

A Srta. Judite ficou a pensar, com interesse por um momento:

— Não... não recordo.

Houve um breve silêncio. Pigarreei e recomecei:

— No leito muito adoentado, meu pai me falou de seu avô, e pedira-me


que eu o procurasse e lhe entregasse uma carta... prometi a ele que faria conforme
o seu desejo. No endereço tinham, Rua dos Franqueiros. Bairro Das janelas
Verdes.

74
A bela jovem sorriu, subitamente, como quem se recorda de algo.

— Passei toda a minha infância naquela casa, a brincar no jardim com os


filhos dos criados... Poucas vezes o vi entrar em casa. Estava sempre viajando ou
no consultório. Fui criada praticamente pela cozinheira... A minha avó Joana já
não morava mais com ele e meus pais já eram falecidos. A verdade é que não
fomos muito felizes ali – terminou com um sorriso triste, curvando a linda cabeça
pequenina.

Um silêncio embaraçoso fez-se na sala, de maneira que não conseguia


dizer uma palavra. Olhei para o Sr. Lobato, que distraído, dissolvia os goles do
chá. E Jorge que ficara a observar os belos quadros em pintura a óleo, heranças
decerto da outra casa. Pigarrei timidamente. O Sr. Lobato, disse quebrando o
silêncio:

— O chá estava ótimo. Obrigado.

A bela jovem morena voltou à sala para recolher as xícaras.

— Obrigado. Senhorita – disse Jorge.

— Que bela rapariga, hein. – Sussurrou o Sr. Lobato.

Para resumir o assunto, concluir dizendo:

— Algum tempo depois de meu pai falecer, vir a Portugal. Mas não
encontrei o Dr. Ezequiel Prado no endereço que meu pai havia me deixado. Andei
por Lisboa por umas semanas, a perguntar pelo seu avô. Uns disseram-me que o
Dr. Ezequiel Prado havia falecido, outros, que ele vivia em Sintra, e até que estava
para o Brasil. Os mais certos, disseram-me que ele estava a viver com uma neta,
em Évora. Voltei à Inglaterra, mas inquieto e, sobretudo, com um espírito de
aventura, resolvi que era hora de voltar a procurar pelo seu avô; conversando com
o senhor Damasceno, ele me confirmara que a mansão não era mais ocupada pelos
Ávaro e Prado.

— Meu Deus! —disse a Srta. Judite, com belo sorriso.

Uma calma dormente fizera agora na sala. Um silêncio, que ouvia lá fora o
vento, mesmo que fraco, soprando os galhos das árvores, o tic-tac de um relógio
75
vindo da cozinha e os passos da moreninha. Quando enfim ouvimos um rasto de
chinelos vindos de um quarto. Era decerto, o Dr. Ezequiel Prado. Vimos entrar
depois, na sala, um homem de idade avançada, mas parecia ser forte e rijo. Tinha
os passos firmes. Era um homem alto, gordo, calvo, de olhos azuis, de rosto
redondo, com uma grande barba branca. Parou no meio da sala e ficou a nos olhar
com uns olhos de ressaca, silenciosamente.

A Srta. Judite quebrou o silêncio, dizendo:

— Vovô, estes senhores vieram visitá-lo.

— Não conheço estes homens – disse o velho, afundando-se na poltrona,


sem demonstrar nenhum ar de surpresa e interesse por nós e, com o mesmo olhar
de ressaca.

— De fato, o senhor não nos conhece, Dr. Ezequiel Prado. Mas eu o


conheço e, há muito tempo o procurava. E agora tive a felicidade de encontrá-lo.

— E quem são estes dois? – perguntou com um gesto mudo, voltando-se


para Jorge e o Sr. Lobato.

— São dois amigos que me acompanham: O Sr. Lobato Mendes de


Almada e Jorge de Morais do Brasil.

— Brasil! Interessante país aquele... – disse meio desdenhoso, com um


sorriso irônico.

— E eu me chamo Eduardo Marques.

— Marques... E o que o traz aqui? — perguntou-me agora, demonstrando


interesse, com os olhos semicerrados e, com a testa franzida, se recostando na
poltrona.

Olhei para a Srta. Judite, que estava de pé ao seu lado com uma mão em
seu ombro, e voltei os olhos para o Dr. Ezequiel Prado, que desde então não tirara
os olhos de mim, e disse-lhe:

— Trago-lhe uma carta do meu pai, Carlos Eduardo Marques.

76
O velho médico de ar patriarcal, sobressaltado, arregalou-me os olhos,
depois se recostando mais na poltrona, ficou a me olhar ternamente, enternecido,
sem dizer uma palavra.

Tirei do bolso do paletó um envelope amarelado. Um papel seco, quase a


quebrar em meus dedos, como folha de livro ressecado. Ezequiel Prado tomou de
minha mão o envelope e, quando lia no verso, disse-me em fim:

— Estive a notar em seus olhos algo muito familiar..— E guardando a


carta no bolso interno do casaco, perguntou-me, com um riso triste:— que fim
tomou o seu pai?

— Morávamos na Inglaterra numa imensa casa. Imóvel este que do qual


herdei. Sou filho único. Papai Sofria de câncer, a mamãe falecera da mesma
doença, há muitos anos. Papai veio a falecer aos cinqüenta e cinco anos. Foi numa
tarde de Domingo, que ele, muito absorto, tirou do cofre este sobrescrito. Sem me
dar explicações, pedira-me apenas, que eu o procurasse. Promete-lhe no seu leito,
que faria conforme o seu desejo.

— Carlos morreu na Inglaterra... — disse o velho médico absorto.

— Sim — disse eu.

— Na casa em que ele cresceu? ... é justo — disse ele.

— Talvez — disse eu.

O Dr. Ezequiel balbuciou algumas palavras, e terminou por dizer que meu
pai fora um grande homem, de um enorme coração... falava, quando da cozinha, a
moreninha anunciou o almoço.

— Almoça conosco, senhores — sei que já cumpriu com seu dever, Dr.
Marques, trazendo este documento até a mim, mas fique mais um bocado.

— Com todo o prazer, Dr. Ezequiel.

— Me chame de Ezequiel apenas... — disse ele, olhando-me com os olhos


cheios d' água, — filho do Carlos... — ergueu bruscamente, de uma maneira, que

77
fez a Srta. Judite, assustada, agarra-lhe o ombro —– Dá cá um abraço, filho do
Carlos... — repetiu, abraçando-me forte.

Eu tinha agora um interesse maior em conhecer a história de Ezequiel


Prado. E pela primeira vez, quis saber do passado de meu pai e, o que ele havia
deixado escrito naquela carta. Papai passou os seus últimos anos no consultório, a
atender alguns amigos, e a um e outro que sabia de sua fama de bom médico. Nos
fins de semana, ficava a cuidar de seus cavalos numa fazenda ao Norte da França.
Enquanto isso, o bom Casimiro tocava a casa da Inglaterra. Nas noites frias de
Inglaterra, recebia no casarão uns amigos para o jogo de cartas e bilhar. Jogo este
que papai mostrava-se um excelente jogador. Papai trazia sempre, no entanto, um
rosto muito sério. Pouca vez o vi sorrir. Além da dor da doença, trazia no coração
uma dor maior, que eu não sabia. No entanto, nunca o vi chorar. E pouca vez, ele
pousou os olhos em mim ternamente. Às vezes era visto pelos criados, o seu vulto
na varanda, na escuridão da noite, silenciosamente, por horas e horas. Quando eu
lhe perguntava o que tinha, não me respondia. Dizia sempre:— vá para o seu
quarto. Não fique a andar pelos corredores. Ia para o bar da casa, e ficava a
preparar o seu grog, solitariamente.

Minha mãe faleceu quando eu tinha dez anos. Papai não derramou uma
lágrima. Naquela tarde de chuva, após o enterro, voltei para casa com o Casimiro
e o papai. Ao chegar em casa, papai subiu para a sala de jogos, e pôs-se a jogar
bilhar, como se nada tivesse acontecido. Fiquei no pátio chorando por longas
horas. Nos dias que antecederam a sua morte, no leito com muita dor, ordenara ao
Casimiro que me chamasse embaixo, entrei em seu quarto, naquele quarto em que
poucas vezes eu entrara. As minhas pernas tremiam. Eu não queria vê-lo naquele
estado, sabia que iria morrer. Assim como a mamãe. Eu não gostava de
despedidas... Papai ficou um momento a me olhar, com os olhos secos,

— Tu estás um belo rapaz meu filho, tem os olhos e o sorriso de sua mãe
— e me abraçou forte por um longo momento. Vi seus olhos pela primeira vez,
marejados de lágrimas. Aquele não era o meu pai. As doenças físicas mudam o
caráter das pessoas, as fazem refletir e a reconhecer os valores humanos e a
desvalorizar os bens materiais. Papai já tinha preparado o testamento. Eu era o
único herdeiro. Pedia-me apenas no testamento que eu deixasse a casa de campo

78
ao Leste da Inglaterra para o Casimiro, e os cavalos da fazenda, na França para
um cocheiro que ele tinha muita estima.

— O Dr. Marques também és um médico, vovô — disse a Srta. Judite,


desdobrando o guardanapo.

— Qual é a sua área? — perguntou ele com interesse.

— Psiquiatria — respondi timidamente.

— Como um Alienista... — disse ele.

— Exatamente.

— Como descobriu minha morada, Dr. Márques? — perguntou Ezequiel,


limpando os lábios.

— Chame-me apenas de Eduardo – sorrir – a propósito, papai se


correspondia com o Sr. Damasceno...

— O Sr. Sebastião Damasceno?

— Sim. Conheci aquele bom homem, na minha primeira viagem a


Portugal. Fiquei hospedado em seu hotel em Sintra. Desta vez fiquei hospedado
no Hotel Central. Marcamos de nos encontrar lá. O Passos já nos esperava na
estação.

— Passos. Como está o Passos?

— Anda muito bem. O Sr. Lobato, que trabalha para o Sr. Damasceno, nos
conduziu até a Central.

— Não recordo do senhor. Muito prazer em conhecê-lo — disse o Dr.


Ezequiel, para o Sr. Lobato.

— O prazer é meu Dr. Ezequiel Prado. Eu não o conhecia, mas já ouvira


falar muito de seus feitos.

— E este brasileiro? – perguntou, sorrindo, o Dr. Ezequiel, voltando-se


para Jorge.

79
— É o nosso Jorge, Ezequiel. Jorge de Morais.

— Belo nome – disse o Dr. Ezequiel. – E o que o senhor faz no Brasil?

— Lecionava português numa escola pública. Agora estou aposentado.


Nas horas vagas, vou a um clube de xadrez.

— Xadrez... O seu pai adorava jogar xadrez, Eduardo, mas não jogava
bem. Era bom mesmo no bilhar. Eram muito poucos os adversários que o vencia...
Certa vez, na casa de um governador de Lisboa, ele teve a oportunidade de jogar
com um militar, que na época era considerado imbatível. E era de fato imbatível.
Carlos perdera o jogo por duas vezes. Mas não ficou irritado. Ao fim da segunda
partida, cumprimentaram o Militar, esportivamente.

— Como era o meu pai?

— Alto, garboso e espirituoso. Tinha cabelos bem anelados, uns bigodes


negros bem frisados. Falava muito bem, tinha bom senso e bom humor. Dava-se
bem com as pessoas. Seu único vício era o tabaco, sem contar as mulheres.

— Quando o conhecera?

— Ah... Fora nas últimas décadas do século XIX. Não recordo o ano que
Virgínia traga meu cachimbo – e a moreninha trouxe-lhe um rico cachimbo de
porcelana.

E quando enchia o cachimbo:

— Tinha-o visto pela primeira vez num encontro de médicos em Paris,


onde eu era palestrante. Carlos estava sentado com os médicos ingleses na
primeira fila do teatro. No lado de cima, nas largas bancadas, tumultuavam-se um
bando de jovens médicos portugueses, e em outras bancadas, viam-se os
brasileiros, espanhóis e franceses. Eu era também jovem, mas já tinha certa
experiência.

Mais tarde fui para o hotel, onde estavam alojados todos aqueles jovens
médicos, inclusive eu. Ao entrar no salão, vi o Carlos em uma mesa a um canto,
perto duma grande vidraça, que se podia ver quem passava do outro lado da rua.
Estava tomando café e a ouvir distraído um espanhol que falava rápido, quase a
80
cuspir. Carlos às vezes esquivava-se muito lentamente das gotículas do cuspe do
homem. O senhor, um sujeito, que parecia contar uns trinta anos, dizia:

— El sacrificio de la torre las blancas impiden el movimiento. Yo estaba


absolutamente perdido. Mi posición no podía defenderse en modo alguno. Por la
tarde estuve analizando todas las posibles variantes.

Sentei-me numa mesa perto deles. Carlos ao me ver, acenou-me logo. O


espanhol caturra, sem me notar continuará:

— Antes yo habia sacrificado um péon en uma defesa eslava. Mi rival era


um francês, un buen ajedrecista y futuro maestro francês.

Fiquei a sorrir, vendo e ouvindo falar a interessante figura do espanhol.

Uns rapazes desciam para o jantar. Começava uma conversa de médicos


portugueses numa mesa próxima, que se misturava com a voz irritante do
espanhol, num murmúrio de festa.

— Ah Portugal...

— Ainda se mantém apegada às glórias passadas.

— O país não chegou a desenvolver ainda uma burguesia empreendedora e


capitalista.

— Não é o que eu penso.

— Portugal está parado no tempo.

— É o que me parece.

Paris, Londres e Berlim, principalmente Paris, estava a crescer de maneira


assombrosa, rápida, enquanto nosso Portugal se mantinha apegado às glórias
passadas. Aqueles rapazes tinham razão.

O espanhol Velasques, como era chamado, continuava a falar, sem pausa,


com o Carlos, que inquieto, olhava a chuva atrás da vidraça, e às vezes consultava
o relógio.

81
Velásquez, cansado, calara-se e tomou um último calix de vinho tinto e
subiu para uma suíte no último andar do hotel. Não era médico. Conta-se que
tinha herdado de um avô uma pequena fortuna, que estava a gastar por toda a
Europa. De onde Carlos o conhecia não me contara. Carlos ficara só, ainda a olhar
a vidraça e a consultar constantemente o relógio. Lá fora chovia. Era uma noite
fria. Quando, finalmente, um mensageiro atravessou o salão e entregou para o
Carlos um bilhete. Bilhete que Carlos amarrotada, e logo depois subiu para o seu
quarto. Eu me recolhi naquela hora. Estava exausto. Tinha no dia seguinte uma
viagem a fazer. Retornaria a Portugal, de onde eu saíra muito novo. Recordava de
Portugal somente da Rua do Ouro em Lisboa e do Aterro onde era o caminho para
o colégio. Tinha recebido naquele dia uma carta da mamã. Ela esperava-me,
ansiosa e o papá também. Dizia que ele reclamava da minha falta, bebendo nos
botecos. E que estava tão decaído e velho. Eu era o único homem. Tinha uma
irmã, mais nova que eu, que iria se casar com um pobre vendedor de lençóis.

Eu tinha passado toda a minha juventude, até aquela noite em Paris, estava
ansioso, tinha planos para Portugal. Abriria um consultório em Lisboa para
atender a sociedade e viajaria para os povoados; para Alentejo, Beja e demais
lugares.

Adormeci naquele quarto, cansado, de roupa. Sonhara com um turbilhão


de coisas, de pessoas. Que eu cheguei a Lisboa. A mamã, a me esperar chorando.
O papá ao seu lado com uma fisionomia de bêbado, com as vestes sujas e uns
olhos injetados de cólera. Mas, como se eu fosse transportado em segundos, me
via num povoado, e em volta de mim, via mulheres com crianças no colo,
chorando em desespero, clamando uma cura, tocando com as mãos sujas, minhas
vestes brancas. Eu as repelia, recuando.

***

O Dr. Ezequiel encerrou o seu almoço, e ficou pensativo, nos olhando com
seu cachimbo na boca. Um riso lhe resplandecia no rosto, quando, continuou a
narrar sua história:

***

82
Fui despertado por alguém batendo à porta sem parar. Era a camareira,
que eu a tinha pedido para me acordar às oito horas.

Tinha deixado na Rua Sant Florentin, no centro de Paris, um consultório


luxuoso, com pacientes ricos, para me “meter” em Portugal, na velha Lisboa. Mas
estava contente. Iria honrar a humilde família Prado, trazê-la de volta à hipócrita
sociedade lisboeta.

Estava-se no fim de agosto. Era uma nublada manhã de Domingo. Seguir


para a Estação de Trem de Paris. Tudo que eu possuía seguiria depois num
paquete para Lisboa.

O trem apitava alto. Gente corria para todo lado. Entrei num elegante
vagão de piso de madeira, com bancos em estofado vermelho, com o teto em
verniz claro. Era um vagão largo e comprido. Onde havia um bar e mesinhas de
jogos. Apesar da fria manhã, via-se um sorriso em cada rosto, uma correria
animada pelo corredor do vagão. Um senhor bem abotoado numa sobrecasaca
negra gritava ordem, silêncio.

Eu observava da janela uma bela mulher a puxar uma criança loura, que
chorava compulsivamente. A bela mamãe, nervosa e envergonhada, a levava para
um vagão mais adiante – o trem apitava novamente – eu as acompanhava com os
olhos, quando subitamente Carlos e o espanhol, sentaram-se num banco defronte a
mim.

Carlos cumprimentou-me e perguntou:

— Vais à Madri?

— Vou a Lisboa.

— Ah. Também vou a Lisboa.

— Eu vou à Madri — disse-me, o espanhol.

O trem passaria por Baiona, Madri e por fim Lisboa.

— Será uma longa viagem – disse-me o Carlos após um silêncio.

E depois me olhando, numa contemplação:


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— Vais a trabalho? — perguntou-me com interesse.

— Estou a voltar para casa.

— Oh. O bom filho à casa retorna – disse-me rindo.

— E tu, vais a trabalho?

— A passeio, doutor. Estou de férias. E recém formado. Não pretendo


voltar para casa na Inglaterra tão cedo.

O trem dera o último apito e partiu...

***

Almoçamos deleitosamente. Eu estava satisfeito. Tinha cumprido com


minha promessa ao meu pai. Era hora de partir. Porém sentia que deveria ficar um
pouco mais. O Dr. Ezequiel Prado ficou um momento a soprar o cachimbo
silenciosamente... na sala de jantar, onde estávamos uma paz súbita, cobriu o
lugar. Era numa salinha estreita, onde havia mais fotos nas paredes, que Ezequiel
Prado ficou a olhá-las, absorto.

Numa janela aberta se via à tarde caindo. As árvores ao redor escurecia a


casa antecipadamente. Judite acendera umas velas, olhando, séria, impaciente, o
avô cachimbando. O velho Ezequiel estava com um pobre paletó cor de pinhão e
velhas calças brancas. No entanto possuía um rico cachimbo de porcelana.

Ezequiel Prado, saindo de seus pensamentos, voltando-se para mim,


perguntou:

— Tu partes ainda hoje? Temos quartos para hóspedes.

— Devo partir logo, Ezequiel, mas gostaria de ouvir um pouco mais de


sua história.

— Nós também – disse o Sr. Lobato, olhando para Jorge que assentiu com
a cabeça.

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— Pois, ainda quando o Sr. Velásquez, o espanhol caturra, se despedia de
nós na parada de Madri, naquele luxuoso vagão, vi entrar uma bela rapariga de
modo estrangeirado. Era uma jovem alta de corpo escultural. Trazia um belo
vestido de seda azul. Tinha longos cabelos negros cacheados sobre as costas e
belos olhos pardos, que me impressionara muito. O froufo de seu vestido foi aos
meus ouvidos como um som de harpa sonora. Foi sentar num banco distante, e
pôs-se a conversar e a rir com uma senhora. Sua risada às vezes ressoava vibrante
pelo vagão, causando horror a um grupo de senhoras que cochichavam, incrédulas
em outro canto.

Nunca tinha visto rapariga tão bela. Quanto ao Carlos, apenas ela penetrou
no vagão, como a aparição de um anjo, seus olhos fixaram-na, grave e
profundamente, mas foi cortês comigo.

— Ela olhou para ti.

— Preciso conhecer aquela jovem, e tem que ser logo, meu caro! – disse
eu para o Carlos, amigavelmente.

— Ou talvez nunca mais – disse o Carlos sorrindo, animado.

— Não me diga isso, meu bom rapaz.

— Penso que ela é lisboeta. Não te parece?

— apesar do modo estrangeirado, penso também que sim. A propósito.


Chamo-me Carlos Eduardo. Nasci no Brasil. Filhos de pais também brasileiros.
Mas fui criado na Inglaterra.

— Quanto a mim – ia contar...

— Dr. Ezequiel Prado. Generalista. O médico da família. Nascido em


Lisboa, onde viveu até os tempos de colégio, formado e crescido na França. Sei
muito bem.

— Exatamente – confirmei, rindo.

— Está no mural de apresentação — disse ele também rindo.

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A viagem seguia-se um bocado, longa quando uma senhora, a mulher
com quem a jovem do vestido de seda azul estava a conversar, veio até ao bar do
trem. Era uma mulher exageradamente maquiada. Sob o rosto enrugado, muito pó
de arroz, e nos lábios um batom vermelho, escarlate. Era baixa. Tinha miúdos
olhinhos verdes. Trazia um pequeno chapéu em tom pastel e um vestido antigo de
seda branco, com mangas longas e duas faixas vermelhas que ia do ombro ao
joelho e um laço também vermelho à cintura roliça. Usava luvas finas de seda e
trazia uma pequena bolsa de couro azul. Encostando-se ao balcão do bar, pedira
ao garçom, um rapaz esguio de nariz aquilino, um whisky, e ficara a conversar
com ele prosaicamente.

Encostei-me também ao balcão do bar e pedira ao garçom rapazola um


whisky, e perguntei a senhora:

— Minha rica senhora, quem és a bela rapariga com quem tu estás a


conversar?

— Quem é que perguntas?

— Dr. Ezequiel Prado.

— É a minha sobrinha, meu bom moço.

— Como ela se chama?

— Joana, meu filho... — me dê licença – disse para o garçom e saiu.

— Joana, Carlos. Ela se chama Joana. É sobrinha da senhora. Uma velha


trigueira – disse eu após me sentar defronte ao a ele.

Enfim o trem chegou a Lisboa. Uma multidão tinha se aglomerado à porta


da estação. Joana e a tia haviam sumido no meio da multidão. Na plataforma,
trocamos endereços e nos cumprimentamos como recém amigos. Carlos foi para o
Hotel Central. Desolado, tomei um coupé de praça para a Rua do Ouro. Dei ao
cocheiro a minha morada. Mas pedir que passasse antes pela Patriarcal e depois
pela Praça do Rocio. O coupé entrou a passo pela Patriarcal. Ergui alegremente os
estores. Um ar mais vivo penetrou. Pude reconhecer aqueles caminhos da velha
Lisboa. O coupé desceu a trote à Rua do Ouro onde havia ainda, velhas casas

86
como dantes. Notei que só haviam construído um belo edifício, onde há anos
havia um terreno baldio. Olhava curiosamente aquele novo edifício, quando
bruscamente, o coupé parou defronte a uma casa de fachada elegante, que me
lembrara com uma casa de província francesa. Era branca de teto em ponta, de
telhados vermelhos. Na frente tinha um muro de pedras enfileiradas umas nas
outras. Essa era a casa de meu pai, totalmente mudada... Saltei do coupé, paguei o
cocheiro, e fiquei um momento, silenciosamente defronte aquela casa. Quando vi
a mamã aparecer-me de súbito, chorando, abraçando-me forte e o papá, como eu
não esperava, são e forte, com uma boa cor na face, me abraçando feliz e
orgulhoso de me ver médico. Vi também minha única irmã, também chorando.
Depois de longos anos a família estava reunida. Minha maior surpresa foi a minha
irmã Amélia, não era mais uma menina. Como tinha se desenvolvido. Esperava
vê-la franzina e pequena. Estava uma mulher feita. Uma bela loura. A Pérola da
família, como dizia meu pai. Eu concordava, e a chamava assim.

Daí a dias o Carlos aparecera em minha casa com uma novidade.

— Sabe quem eu vi ontem à tarde? Tu imaginas quem? Aquela linda


rapariga, como dizem aqui. A Joana, com a senhora do trem, a tia. A velha
trigueira. Numa confeitaria perto do Largo de Camões.

Essa novidade deu-me esperanças de conhecer a Joana. De saber de sua


vida, onde morava, tudo sobre ela. A procurei com Carlos, pacientemente por toda
a Lisboa E essa tal procura animava o Carlos e o divertia e, sobretudo nos unira
ainda mais.

— Mulher com o porte e beleza daquela moça, meu caro Ezequiel, será
alvo fácil aos nossos olhos.

— E tem decerto milhões de pretendentes — disse eu.

— Disso, não tenho dúvida... —– mas fique tranqüilo, iremos achá-la.

Tínhamos andado por todos os lados. Interrogado muita gente. Nos hotéis,
nos Cafés e Confeitarias de Lisboa, não obtivemos êxito.

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— Talvez ela esteja em Sintra, ó Ezequiel. Terei que ir a Sintra no fim
deste mês. Os ares de Sintra encantam a todos. Sobretudo as mulheres – disse o
Carlos tentando me animar.

Certo que não mais a acharias. Desisti de procurá-la. Com isso,


desocupado, e com o pensamento voltado para o trabalho. Decidi então instalar o
consultório médico. Depois de ter percorrido o centro da cidade, sem achar um
bom lugar para o consultório, fui encontrar num velho edifício, na Rua Nova do
Carmo, uma imensa sala.

— Terás que fazer uma reforminha, Dr. Prado — disse o proprietário na


sacada do prédio.

Era uma sala no primeiro andar, com uma bela varanda e com duas janelas
para a rua. No Térreo era uma alfaiataria de um italiano. Um senhor de feições
miúdas, muito antigo no lugar.

— Dr. Prado – dizia-me o alfaiate, entrando comigo e o Carlos, na sala —


esta sala há muito tempo não é ocupada – e pensando, cofiando a barba:—
lembro-me vagamente do último que aqui esteve. Fora um arquiteto de Paris.
Ficou pouco tempo. Na época esta rua não tinha este movimento.

Tinha na esquina da Rua Nova do Carmo uma confeitaria frequentada por


jovens da sociedade. Na rua havia também uma loja de chapéus e bengalas de um
velho espanhol e ao lado um distribuidor de vinho; mais adiante uma loja de
cobertores, lençóis, fazendas, véus e cortinas de cretone, de uma jovem francesa.

— Conta-se que a loja pertencia à mãe. Diziam que era uma bela francesa,
assim como Margarete Gautier. Fora concubina de um príncipe espanhol. A filha
herdara da mãe toda a beleza, e aquela loja, como os senhores podem ver. Da filha
se diz muito pouco, apenas que é protestante que se chama Margarida – disse o
alfaiate, apoiado no parapeito da varanda.

Defronte ao edifício, havia uma livraria que pertencia a um jovem


brasileiro. Era um moço louro, bem apessoado, de ar intelectual. Fixava nas
pessoas, atrás das suas lunetas azuis um olhar muito vivo, penetrante.

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— Tem apenas vinte anos, esse moço, e já é casado, com uma bela
espanhola. Espanholas, são as minhas favoritas — terminava o alfaiate, ainda
apoiado no parapeito, com uns óculos velhos pendurados no meio do nariz e a fita
métrica sobre os ombros.

O edifício tinha mais três andares, todos ocupados por um jornal de nome,
Jornal da Cidade que pertenciam a uns senhores de Coimbra.

Da varanda dei uma última olhada na vizinhança e calado, penetrei


novamente na sala com Carlos e velho alfaiate. A sala estava largada às traças e
baratas e cheirava a mofo e poeira. A um canto tinham deixado esquecido um
antigo armário francês e perto uma caixa que continha rascunhos amarrotados de
um trabalho de arquitetura. Perto duma janela fora deixado também uma
escrivaninha carcomida e coberto de poeira. No outro lado uma boa voltaire de
marroquim escuro e próximo, uma curiosa cadeira de vime da Ilha da Madeira. O
assoalho estava conservado. Mas nas paredes aos cantos havia telhas de aranha, e
o teto estava com o estuque encardido e com muitas rachaduras no meio do forro.
As janelinhas vermelhas tinham muitas frestas e estavam quase a cair. Daí a dias
foi feita uma reforma completa. A sala foi pintada de verde claro-- e o forro novo,
pintado a branco. As janelas foram trocadas por umas de modelo atual.
Vieram-me naquela semana os móveis do antigo consultório de Paris. Só a velha
voltaire que eu tomara gosto, fora aproveitada. Era agora o consultório mais
luxuoso de Lisboa, ou talvez do país, meus senhores. Todavia, no entanto, era um
ambiente triste e solitário. Carlos vinha às vezes me consolar e me fazer
companhia. Dizia ele:

— O consultório ainda não é conhecido na cidade Ezequiel. Logo tu terás


ricos e bons clientes.

Com efeito, apareceram-me bons clientes. Até as pessoas mais ilustres da


cidade. Gente de Sintra, de Arroios, do Porto... as damas de Lisboa, com suas
crianças, às vezes acompanhadas de suas belas filhas e os ricos maridos.

— Tu vieste trazer a luz a este alquebrado edifício, Dr. Ezequiel Prado.


Luz e vida— dizia o velho alfaiate, ao ver a cada dia, estacar à porta do prédio, as
caras charretes – “e sabia que as minhas encomendas aumentaram? Agora a pouco

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um cliente do doutor passou aqui em minha humilde alfaiataria e me encomendou
dois ternos. Ontem cedo o Dr. Carlos Eduardo me encomendou três... Ah, nunca
vi tanta gente bonita. ”

A Rua Nova Do Carmo, com efeito, era outra. Transitava pelas ruas ricas
charretes, ricas damas se viam agora pelas calçadas. Belas senhoritas angelicais,
andando em pares e senhores fidalgos, em sobrecasacas claras. Naqueles dias de
céu azul ferrete. O novo movimento era devido, sobretudo, às grandes reformas.
Como a rua ganhara um luxuoso consultório, recebendo diariamente ricos
clientes. Era necessário que os demais estabelecimentos se renovassem.

O velho edifício tinha nova fachada. Foram pintadas de verde, e as janelas


tinham sido trocadas por outras de modelo atual. O velho alfaiate, o Sr. Taveira,
mudara o forro e o papel de parede da alfaiataria, e colocara uma nova vidraça,
expondo ternos e sobrecasacas novas. Só a sua antiga máquina de costura, uma
peça parisiense, que não abrira mão, não mudara de lugar.

Por esse tempo, Carlos começara intimamente a frequentar a casa da bela


francesa. Aquela francesa da loja de fazendas, a jovem protestante.

— Ó Ezequiel, conheci o seu sorriso, e achei-o magnífico. Margarida


Ryvaje. Interessante nome, tu não achas?

— Curioso e interessante.... Então tu passaste a espreitar a sua casa?

— Sim. Fiquei dias pensando como me introduzir em sua casa e conhecer


mais sobre a sua vida. O que o velho Taveira nos contara foi muito pouco. O
Toledo sabe o Toledo da confeitaria da rua de baixo? Contaram-me mais sobre
ela. É de fato protestante praticante. Numa igrejinha Presbiteriana da Rua das
Flores. Passei a frequentar essa igreja. — disse Carlos num sorriso maroto.

— Por causa dela? Francamente, meu rapaz – falei sorrindo também.

— Percebi que ela ia e voltava sozinha e me ofereci para acompanhá-la.

— E quem resiste a teus charmes?

— Mas dessa vez é para valer Ezequiel. Não consigo pensar em outra
coisa.
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Carlos contava-me isso, de pé, vestido com seu roupão de chambre branco,
gesticulando, com o charuto apagado na mão, dando lentas voltas num quarto do
Hotel Central. Eu tinha ido procurar saber de seu sumiço de meu consultório,
agora sabia o motivo. Era a encantadora francesa. E o ouvia, enterrado numa
poltrona, com o Diário de Notícias esquecido no colo, e dissolvendo aos goles um
chá morno. Carlos ia até a janela de vez em quando, e ficava pensativo, vendo a
noite dormente, uma noite típica. E voltava-me banhado num sorriso.

— É uma mulher encantadora, Ezequiel. De muita virtude. Sensível às


coisas da vida. Adora flores. E é dada a leituras, romance. Disse-me que gostou
muito de Madame Bovary.

— Conheceu bem a sua vida, presumo.

— Sim. Ela tem uma casa bem confortável em Arroios. Tem um pequeno
atelier.... É viúva e tem uma filha de cinco anos de idade de nome Anália que vive
aos cuidados de uma criada, uma prima de segundo grau, mas sonha em ter um
menino. Amanhã vou tomar um chá, à tardinha. Depois vamos ao teatro em São
Carlos.

— Como foi isso?

— Fui chegando sutilmente e descobrindo tudo sobre ela.

— E a menina, gostou de você?

— Anália é encantadora, como a mãe. Vou levar-lhe um presente.

— Vejo que perdi meu melhor amigo, que lástima – lamentei, levantando
as mãos para o céu exageradamente.

Caminhava novamente para a janela e pensativo, ficava a estalar os dedos.


E voltava-me novamente falando de Margarida.

— Vou comprar uma casa em Sintra para Margarida. Ela sonha habitar em
Sintra. Farei para ela uma surpresa.

— Excelente ideia. Mas e o custo? – perguntei sorrindo.

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— Não me importa o custo, Ezequiel. O que me importa agora é realizar o
sonho de Margarida – disse com uns olhos sentimentais.

— Vejo que em fim tu te prendeste a alguém.... Mas vá com calma. E não


me vai estragar a vida da protestante.

— Como disse, agora é pra valer.

— E seus pais, Carlos? – eu disse, mudando de assunto – você deve


vê-los. Já faz tanto tempo que deixaste a Inglaterra.

— Escrevi para eles. Disse que estou bem e que estou fazendo a minha
vida. Finalizei dizendo que em breve darei notícias.

— Perfeitamente.

— E tu ainda estás a esperar a jovem do trem?

— Algo me diz que vou encontrá-la.

— Não seja assim tão romântico. Não espere demais, nem sabes se vai
valer a pena.

— Às vezes é necessário arriscar.

— O tempo dirá se estou certo ou não, querido Ezequiel.

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Capítulo 9
Era dezembro. Ricas noites. Num daqueles dias, eu recebera em meu
gabinete, um convite para uma festa em casa do governador de Lisboa. Isto fora
para mim um grande reconhecimento. Afinal eu havia deixado Paris para instalar
um consultório em Lisboa, confesso que fiquei extremamente lisonjeado.

— É de fato, um honrado convite Ezequiel. Tu vais comparecer a esta


festa? – perguntou-me o Carlos, numa tarde em meu consultório.

— Vamos comparecer, querido Carlos. Tu vens comigo?

— Vamos conhecer então parte da sociedade lisboeta – disse ele


esfregando as mãos.

— E os líderes políticos que ela constitui. O que não me será agradável.

Era uma noite fresca e tranquila. Via-se destacar a portaria da residência


do governador, a cada momento uma rica charrete, coupés de praça. Fomos
recebidos por dois guarda portões esguios, que nervosos, insistiram que Carlos
apresentasse seu convite. Por fim, a mando do próprio governador, na voz de seu
mordomo, pediu-os, que fizéssemos a gentileza de entrar.

O próprio mordomo nos conduzira até uma grande sala, onde se


encontrava um grupo numeroso de senhores; belas damas, uns rapazes e umas
jovens senhoritas, vestidos todos a caráter. Entre os senhores, estavam: o Cônsul,
o secretário da delegação, o empregado do Tribunal de Contas e o Conde de
Abranhos. O governador ao nos ver entrar, deixara a companhia de um
parlamentar para nos vir cumprimentar. Apresentei-lhe o Carlos “Carlos Eduardo
Marques. Amigo e colega de profissão”. O governador sorriu satisfeito. Tinha um
sorriso simples e cheio. Era uma figura interessante. Sujeito baixo e gordo, de
barba bem aparada. Tinha uma cabeça grande, com uns poucos fios de cabelo. Era
prosaico e simples. Mas possuía grande fortuna.

— Dr. Ezequiel Prado tenho um imenso prazer em recebê-lo em minha


humilde casa. E digo o mesmo ao Dr. Carlos Eduardo Marques.

93
E olhando em volta, disse-nos, como num de fim de discurso:

— Estão aqui hoje, reunidos nessa festa, uma parte da elite de Portugal,
que é uma coisa muito pouca.

— Uma seleta gente – disse uma senhora gorda, de vestido vermelho e


com muito pó de arroz num rosto enrugado, vindo tirar o governador para um
canto.

— Dê-me um minuto, mamãe – sorriu para ela, com certo medo nos olhos.

— Senhores, governador, com licença — disse a senhora quando saiu


furiosa.

— Minha querida mãe. Tem modos rudes e impacientes. Desculpem-me


senhores.

— Não se preocupe, governador – disse eu, sorrindo para quebrar o


embaraço.

— Elas nos tratam ainda como crianças – disse o Carlos, tentando


confortá-lo do vexame que acabara de passar.

O governador nos apresentou a primeira Dama. Senhora D. Carmem


Cirqueira. Uma mulher que aparentava ser vinte anos mais nova que o
governador. Era jovial e tinha toilette. Ficara um momento com os olhos fixos em
Carlos. Depois das apresentações, desapareceu com outras senhoras para uma
sala. O governador fora receber um jovem casal que havia chegado. Ficamos
então a observar aquela sala. Era espaçosa e luxuosa. Carlos sorriu quando viu uns
velhos fidalgos de ares patriarcais sentados em um sofá, sustentando a custo o
cálice de vinho. E outros a dormitar com seus jornais esquecidos no regaço. Um
de monóculo no olho, de sobrecasaca militar, dormia profundamente. Em outro
canto, algumas senhoritas nos observam curiosas, risonhas, cochichando. Carlos
havia notado uma senhora, discretamente sentada, perto de um piano de cauda
longa, numa cadeira de pau-preto, folheando a Revista dos Dois Mundos, e
trocando discretos olhares com um rapaz, que conversava com dois outros
senhores de farda militar. E perto duma enorme estante, junto de uma parede, três

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velhos, sentados numas cadeiras de alto espaldar, descansavam indolentes,
fumando charutos.

Um escudeiro inglês nos servira champagne. Quando o governador voltara


sorridente, acompanhado de um sujeito que logo conheci. Era o Domingos, um
jovem poeta. Vinha com uma bela sobrecasaca, com uma rosa de chá na botoeira,
com um charuto na mão e uma bengala de cabo de osso na outra. Vinha
exclamando, num largo sorriso:

— Oh... tu por aqui? Mas deverias decerto, aqui está. Como me disse o
governador, estar hoje aqui uma parte da elite de Portugal.... Tu não deverias
mesmo estar em outro lugar. Dá cá um abraço meu bom Ezequiel.

Outro sujeito aparecera com uma rosa na botoeira. Era um amigo do


Domingos, o Leopoldo, outro poeta. Ficamos todos ali um bom momento
conversando. Mas agora numa animação de festa. O governador mostrara-me ser
um bom homem. Carlos sorria com ele. Leopoldo citou uma de suas poesias.
Parecia realista. Ainda conversávamos, quando do nosso lado, dois senhores,
indiferentes à nossa presença, negociavam sobre uma casa em Coimbra.

— Uma casa humilde, sim, mas próximo às universidades... E ofereço


muito pouco por ela. Um conto e quinhentos mil réis.

— Eu verei Adamastor, eu verei — disse o outro.

— Mas ande logo homem, ande logo com isso.

— Eu verei Adamastor, eu verei.

— Tu não me pareces interessado ó Teles.

— Eu verei. Já disse.

— Ó pequena Lisboa de sujeitos loquazes – disse a meia voz o Leopoldo.

— De canalhas – completou o governador.

— Isto é um país perdido – disse o Domingos, inconsolável.

— Aqui em Lisboa há muita gente piegas – disse o Leopoldo.

95
— Lisboa é uma cidade impossível – disse o governador com um suspiro
significativo – impossível numas coisas e possível em outras – corrigiu-se
embaraçado logo depois.

Houve um breve silêncio. O Domingos fez estalar os dedos e com um ar


nostálgico, dissera:

— Paris! Aquilo é que é terra.

Dois parlamentares vieram buscar o governador para uma sala no primeiro


andar. Quando os velhos políticos e o governador haviam saído, ouvimos dos
lados os claros comentários:

— Essas cambadas.

— Péssimos políticos... ruim administração.

— São umas cavalgaduras.

— O país necessita de reforma.

Fez-se novo silêncio...

Domingos ainda com o mesmo ar de nostalgia, continuara:

— Ah! Paris. Aquilo é que é terra. Mas não compreendo Ezequiel, como
tu deixaste Paris?

— Já era hora, Domingos.

— Quando voltas tu à França.

— Talvez nunca mais — eu disse tranqüilamente para o Domingos, que


me arregalara os olhos, espantado.

— Se algum dia eu deixar este país – continuei: – meu caro Domingos será
para ir à Índia, a África, ou a América.

Eu tinha plena certeza, que não voltaria mais à Paris. Ir à Índia era já um
sonho ultrapassado. Eu fui somente ao Brasil, uns anos antes da minha ruína.
Tinha ido visitar a Bahia e conhecer a medicina brasileira. Tinha também o

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objetivo de conhecer as plantas medicinais. O Sr. Morais é brasileiro, pois não é?
Então deve conhecer muito bem a cidade de Salvador. Que encantadora cidade.
Fiquei hospedado no Hotel da Bahia no Campo Grande. E sair logo para visitar a
Faculdade de Medicina no Terreiro de Jesus. Fui também ver uma rica construção.
Era da Escola de Belas Artes na Rua 28 de setembro. E eu não poderia deixar
também de conhecer os Museus, que um amigo de Beja havia me aconselhado.
Eram de fato, magníficos. Andei pelas feiras livres. Conheci a feira de Água dos
Meninos. Nunca vi coisa igual nessa terra. Era uma festa. Realiza-se no Sábado à
noite e no Domingo de manhã. Viam-se belas negras e mulatas ante as barracas; e
a comida baiana com aquele cheiro maravilhoso. Ah, uma viagem inesquecível.

***

Ezequiel Prado dizia-me isso com o rosto alegre, com o semblante leve.
(Virgínia havia tirado a mesa). Todos em volta o ouviam, atentos. Judite, sentada
defronte a ele, o rosto apoiado à concha da mão, o ouvia com os olhos cheios de
água.

***

— Havia na Bahia uma ligeira semelhança com Lisboa. Em alguns


casarões uma perfeita semelhança. Com efeito, eu me esbarrava quase sempre
com algum português. Eu conhecera uns senhores de Sintra e um velho senhor da
Ilha da Madeira. Todos comerciantes...

Na casa do governador a madrugada entrava. Um langor de sonolência


passara pela sala. Os criados entraram para trocar as velas. Um grupo de senhores
já haviam se retirado. O Domingos enternecido com a sua nostalgia e com a
melancolia da sala, palavra com as mãos pousadas no colo:

— Ah! Doce Paris... Foi lá que eu conheci a Eleura. Encantadora rapariga.


Tinha os cabelos magnificamente negros. Seu olhar era doce como carícia. Tinha
um perfume de verbena na pele. A pele... Era duma adorável brancura, onde se via
em destaque lindos olhos negros. Era encantadora como Paris. Paris! ...aquilo é
que é terra. Isto aqui é um chiqueiro. Ainda penso em habitar Paris... – terminou
com um gesto mudo.

97
Carlos dera bruscamente uma gargalhada agressiva, que o sangue lhe
subira ao rosto, concordando com um movimento de cabeça, o que dissera
Domingos.

Domingos, procurando nos bolsos da sobrecasaca a charuteira, ria também


com o Carlos. Umas senhoras que estavam por perto os olharam espantadas.
Quando um criado de gravata de merino negra, a pedido do governador viera nos
convidar para a sala de jogos.

Fomos introduzidos pelo criado de gravata, num compartimento do


segundo andar, aos fundos, no fim de um corredor. Passamos por um reposteiro
claro e vimos uma sala acarpetada, com mesinhas de pé de galo aos cantos, duas
bancas de bilhar ao centro; uma mesa redonda a outro lado, com cadeiras de repés
vermelho em volta, onde alguns senhores já jogavam cartas, fumando charutos.

— Meus cavalheiros, sintam-se à vontade – disse-nos o governador se


aproximando, ao nos ver entrar.

Uma dupla havia deixado a mesa. Dois de nós foram convidados para o
jogo de cartas. Leopoldo e Domingos aceitaram o convite. O governador ficara a
me apresentar a mim e ao Carlos o Conde de Abranhos, uma excelente pessoa. E
outros fidalgos que ali se encontravam. Um senhor, sentado numa vasta poltrona,
bocejava com um jornal esquecido no colo. “Aquele homem tem uma rica mansão
no Bairro das Janelas Verdes. Chama-se Acácio. É bancário. Aquele outro, de
monóculo no olho, embaralhando as cartas, tem uma rica propriedade em Arroios,
um luxuoso palacete, como poucos que entrei neste país. A gente pode até se
perder lá dentro”.

Um senhor que se aproximara, bem abotoado na sua longa sobrecasaca


militar, convidara a um de nós para umas partidas de bilhar. Carlos aceitara logo o
convite e me deixou a conversar com um velho poeta lírico, um bom senhor de
olhos miúdos, e com negros bigodes bem aparados. Havia me profetizado que eu
teria uma excelente carreira como médico em Portugal. Assenti para ser cortês.

Carlos iniciou a partida com uma violenta tacada. O Sr. de sobrecasaca


militar, respondeu mais levemente. Era um homem de San Carlos, filho de uma
nobre família de Lisboa. Chamava-se André De Almeida. O Conde de Abranhos
98
acompanhou a partida, sorrindo com as boas jogadas de André De Almeida. Outro
senhor assistia com uma caixa de rapé na mão, admirado com as boas jogadas de
ambos. O Sr. De Almeida jogava concentrado, com os anéis louros do cabelo
sobre a testa. Eu fiquei distraído, com os olhos no pano verde escuro da banca de
bilhar. Pensando ainda em encontrar Joana. E pensando por onde ela deveria
estar... E eu tinha visto a somente uma vez... sorrir, com a alma vazia...

Carlos por fim, perde para o Sr. De Almeida. Que sem dar uma chance de
revanche a Carlos, fora logo embora com o Conde de Abranhos.

— Quatro placas. Dei-me! – gritou alguém do jogo de cartas.

A madrugada passava lenta e quente. Na sala, as velas ardiam indolentes


sobre os tristes castiçais. Os parlamentares e os amigos do governador iam se
retirando. O governador que tinha já bebido muito, palavra muito animado, muito
risonho, com as bochechas vermelhas, com um senhor, que o ouvia muito sério.

— Lisboa é uma cidade de poucos confortos...

— Ó sim.

— Despida de gostos.

— De fato...

— Lisboa é um lugar chinfrim.

— O senhor está embriagado! Governador. — disse o velho, já impaciente.

— Este mundo é um vale de lágrimas — terminou o governador agora


enternecido, limpando o suor do rosto redondo, com um lenço de seda da Índia.

Às três da manhã, todos deixaram a sala de jogos. Na Sala central, onde


todos se reuniram por fim, em volta de uma grande mesa oval de carvalho
lavrado, como numa reunião, o governador dissera:

— Mais uma vez apresento aos senhores, o nosso ilustre médico


português, Dr. Ezequiel Prado. Que tem colaborado para o desenvolvimento de
nossa cidade. Transferindo assim de Paris o seu Consultório Médico para Lisboa.

99
Por isso, em nome de todos. Dou-lhe uma placa de Ilustre Sr. de Lisboa. Para que
sua passagem nesta terra seja sempre lembrada.

Com efeito, eu tinha ouvido muito falar em meu nome. Em muitas


ocasiões desta vida fui lembrado. “Dr. Ezequiel Prado, o médico dos Fidalgos”.
“O médico das nobres famílias portuguesas. ”

Tínhamos deixado a casa do governador na Rua de S. Francisco, já quando


o dia clareava, e partimos para o Hotel Central. Leopoldo ficara no Grêmio e o
Domingos nos acompanhou até a Rua do Alecrim.

Naquela semana Carlos partira para Sintra com a bela francesa. Eu ficara o
resto daqueles dias de dezembro em casa, na Rua do Ouro, rascunhando o início
de um livro de medicina que há muito tempo pretendia escrever – A Medicina
Moderna – que há anos desde os tempos do Liceu Português e da Universidade
em Paris, havia juntado em papéis avulsos, diversas pesquisas. Passava assim
então aqueles raros dias de minha vida, entretido na salinha de casa, bem
acomodado em mangas de camisa e com umas velhas chinelas do papá; sentado à
mesa – uma grande mesa de pinho no centro da sala. Por sobre esta mesa, tinha
todo o material de trabalho para o livro. Havia de um lado uma pilha de
rascunhos, de um papel já muito velho, e perto um tinteiro de prata, com penas e
bicos novos, uma caixa de lápis e um caderno novo de papel. Para o meio da
mesa, erguido severamente, o velho castiçal francês. De frente à mesa numa
parede clara, pendia uma foto do meu avô Alonso Prado, em colarinho branco,
com uma gravata preta e uma longa sobrecasaca negra. Estava de pé, meio de
perfil, apoiado à bengala de cana da Índia. Tinha um olhar penetrante, com umas
pupilas muito verdes. Tinha bigodes negros, muito cheios; os cabelos grisalhos,
penteados de lado. Era o meu avô que eu não conhecera. Sabia apenas que ele
nascera no Porto e que estudara Direito em Coimbra e que fora casado com Emília
Aranha, uma italiana, filha de pais brasileiros, que foram nascidos no Sul da
Bahia.

Pois, meus queridos senhores, o livro foi publicado em folhetins, pela


Revista Médica Literária de Coimbra, no ano seguinte. Era no ano de 1865. Com
o título de: A Medicina Moderna. O lançamento desta obra foi feito em abril do
mesmo ano, no Hotel Mondego, em Coimbra... Coimbra! Velha Coimbra... Cidade
100
universitária, responsável pela formação de gerações e gerações de intelectuais
brilhantes.

Carlos estava em Paris com Margarida nesse ano, mas para a minha
surpresa, ele tinha aparecido com sua francesinha na noite do lançamento.

Era uma doce noite de abril. Muito fresca, calma e convidativa. Eu


recebera no salão nobre do Hotel Mondego, a visita ilustre do Grande Oficial da
Ordem de S. Tiago, o governador de Lisboa, os professores e alunos das
Universidades de Medicina e Direito de Coimbra.

— A Medicina Moderna! Esplêndida obra Dr. Ezequiel Prado. O assunto


que faltava para o estudo de nossos alunos da Universidade de Medicina. Meus
parabéns Dr. Ezequiel – disse-me o Diretor da Universidade de Medicina, Adalto
Correia de Castro.

— Brilhante obra Dr. Ezequiel Prado. Obra está, concebida decerto, com
muita pesquisa pelo mundo. E é orgulhosamente portuguesa. Por isso meu
menino, tens o meu apoio no que precisar. Se por acaso fores a Sintra, faça-me a
honra de hospedar-se no meu modesto hotel. Hotel Lawrence. Sem cerimônias
meu caro, dá cá um abraço – disse-me comovido, desta maneira, o bom Sebastião
Damasceno.

Sebastião Damasceno era professor de literatura e já possuía o seu belo


hotel. Ele tinha me aconselhado a escrever um livro sobre a cidade de Sintra.
Sebastião tinha completado aquela semana há quarenta anos. Com um belo
sorriso, abraçou-me novamente e saiu. Saiu lentamente com os passos lentos e
pesados, porque era muito robusto. A Herdara dos Carpelo tem essa característica
genética.

Muitos apertos de mão e muitos abraços apertados, com tapinhas nas


costas, recebi naquela noite. Sobretudo, elogios, muitos elogios. E onde está agora
essa hipócrita gente? ...

***

Ezequiel Prado ergueu-se em silêncio e disse, com o mesmo semblante:

101
— Esta cadeira dura estar a me matar. Vamos para a minha sala.

O seguimos. Ele fora lentamente dizendo:

— Receberei a todos no salão nobre do velho hotel, onde havia nas


paredes gravuras e fotos de grandes intelectuais que ali estiveram.

Além da gente de Coimbra, vieram-me alguns amigos de Lisboa. Em


suma, um bom número de pessoas. Recordo vagamente de poucos. Seu pai ficou
toda aquela noite ao meu lado, como um bom companheiro...

***

Ezequiel sorriu, recordando-se de algo, sentando-se na poltrona:

***

— Recordo agora de um patético elogio que me fizera um estudante de


medicina de Leiria – dissera-me ele:

— Se todos os portugueses fossem como o senhor Dr. Ezequiel Prado,


nosso Portugal seria muito melhor hoje. Não é mesmo? Tu estás a modernizar
nossa medicina, e a enriquecer o nosso país. Pois não é verdade? Rica obra.
Grande homem. Bravo Dr. Prado, bravo.

—Talvez não fosse um rapaz patético, talvez fosse apenas um sonhador,


como eu assim era...

Perto das onze chegaram os alunos do Curso de Direito. Chegavam


animados, com seus bonés e jaquetões. Rindo das fotos que tinham nas paredes.
Mas havia uns mais sérios, com ares de intelectuais, vestidos com ternos negros,
com colarinhos brancos, uma flor na botoeira e sapatos bem engraxados.
Observando as fotos com veneração. Circulavam pelo salão, em grupos e aos
pares. Os garçons serviam croquetes e champanhe. Os mais irreverentes bebiam
repetidas vezes. Os mais sérios vêm me cumprimentar e parabenizar-me pela obra,
mesmo não sendo um assunto de seus interesses.

Antes destes, já tinham chegado um grupo de alunos do Curso de Letras.


Sentados num sofá, a um canto, de chapéu sobre os joelhos, discutiam sobre a

102
política; às influências de Antero de Quental e, sobretudo, de Paris. Muitos
daqueles jovens vieram de Lisboa, do Porto, de países vizinhos e até do Brasil.

No fim da noite, chegaram os alunos do Curso de Jurídico. Uma gente da


qual se reluziam Literatura, intelectualidade e beleza. Passara, numa rápida visita,
de repente, o jovem Eça de Queiroz, acompanhado de Oliveira Martins, Guerra
Junqueiro e o professor José Bonifácio. Cumprimentaram-me, deram-me os
parabéns, e sumiram, como numa nuvem de fumaça entre um grupo enorme de
alunos. Foi a única vez que vi Eça de Queiroz.

A festa terminou à meia noite. O salão ficou silencioso e triste. Fiquei


ainda uns minutos encerrando um charuto com Carlos e Sebastião Noronha.

— Tu tens prestígio neste país, hei Ezequiel. Quanta gente importante


compareceu – disse— o Sr. Noronha, sentado numa poltrona defronte a mim –
quebrando complacentemente as cinzas de seu cigarro.

— Eles Reconheceram o meu trabalho. Somente isso Sr. Noronha.

— Ezequiel é modesto Noronha – disse Carlos com os olhos cerrados,


estirado no sofá.

— Meus cavalheiros, estou exausto, vou me recolher...

— Bom descanso Ezequiel. Repito. Meus parabéns pelo seu prestígio hoje
– continuou o Sr. Noronha, emocionado.

— Obrigado. Mas... Estes que me abraçaram hoje – disse eu, depois de um


momento – podem me virar às costas amanhã.

— Não creio Ezequiel. Tu disseste agora mesmo, que reconheceram o seu


trabalho – disse o Sr. Noronha, colocando as mãos à cintura.

— Ezequiel é um pessimista Noronha – disse Carlos, quase dormindo.

— Falta-lhe uma amante – disse o Sr. Noronha, olhando-me, sorrindo.

— Ele ainda está a procurar a rapariga do trem – disse Carlos, sorrindo,


ainda com os olhos fechados.

103
— Preciso agora dormir. Até de manhã.

Na manhã seguinte, às oito horas – quando tomava o café da manhã com o


Sr. Noronha, vi os alunos do Curso de Letras, os mesmos da véspera, discutindo
ainda sobre o efeito da polêmica travada entre os românticos liderados por
Antônio Feliciano de Castilho e os realistas liderados por Antero de Quental.
Diziam também da realidade do país, como eles próprios em seus trajes simples,
mostravam que os desfavorecidos estavam em maior número.

Carlos desceu para o café, sorrindo leve e largamente ao lado de sua doce
Margarida, que vestida com uma roupa leve e clara, e sorrindo também, parecia
mais bela. Poucas vezes eu vi Carlos assim tão feliz.

— Bom dia senhores, como passaram esta noite?

— Muito bem, querido Carlos – disse eu, me erguendo para abraçá-lo e


cumprimentar Margarida.

— Bom dia Carlos. Senhorita Margarida — disse o Sr. Noronha — e


respondendo à pergunta:— dormi tranquilamente. E V.Ex. Como foi sua noite?

— Nunca dormi tão bem. Obrigado.

— São esses ares de Coimbra – disse eu, sem olhar para Margarida.

Os fiéis realistas tinham ido embora. Houve silêncio na sala. Ouviam-se o


rumor alegre da rua – o rolar de uma charrete, o grito de um jornaleiro, risadas de
um grupo de alunos, caminhando decerto para uma faculdade. Era uma linda
manhã de Segunda feira, fresca e luminosa – um dia radiante e glorioso. Ergui-me
para sair. Carlos, que deixara Margarida a conversar com o Sr. Noronha, me
acompanhará, e as uns metros do hotel, travando-me do braço, quando dissera:

— Ontem foi uma noite para guardar na memória, não é mesmo Ezequiel?

— Sim... uma noite, para quando estiver só, relembrar, recordar...

— Decerto, a primeira de muitas. E falando sobre recordar, siga o


conselho do Sr. Sebastião Damasceno, escreva um livro, não sobre Sintra, mas
sobre sua vida.

104
— Talvez eu siga o seu conselho, Carlos, mas ainda preciso viver mais,
realizar muito mais.

— Tu viste Margarida? – perguntou Carlos com os olhos umedecidos de


felicidade.

— Ela está cada dia mais bela. Parece que a viagem à Paris a fizera muito
bem.

— Ó sim. Muito bem.

— E a menina Carlos, a filha?

— Ficou com a prima dela.

— Já te aceitou como pai?

— Sim... — ficou pensativo por uns instantes, depois completou — a


conquistei, e nos damos muito bem.

— Assim como a mãe?

— Sim. Já somos uma família – sorriu feliz.

— Família... que maravilha! – exclamei surpreso.

— Sim. Sabes Ezequiel. Tu acreditas que eu já penso até em me casar.

— Casar? Você? A Margarida te enfeitiçou mesmo.

— O que tu achas?

— Já era tempo...

Margarida era alta e imponente. Clara como o dia e de olhos verdes e


luminosos. Lábios vermelhos e finos. O queixo perfeito e Significativo. De mãos
finas e belas. O nariz pequeno e delicado. Tinha porte e presença.

— Sim. Já era tempo Ezequiel – disse ele se aprofundando num


pensamento.

105
Seguimos um momento, calados, numa ruazinha estreita, onde havia
muitas árvores em volta, e viam-se umas belas e antigas casas ao longe, um doce
aroma de flores. Carlos exclamou:

— Aqui a vida me parece adorável.

Seguimos novamente calados, num silêncio de Quinta, numa paz de


Aldeia, sorvendo a luz brilhante daquela doce e calma manhã de abril.

De frente a uma casinhola, vimos um senhor de cerca de cinqüenta anos,


de pé, com calças brancas, botinas velhas, um paletó cor de pinhão e um chapéu
de palha. Este acenou-nos, timidamente. Carlos e eu acenamos para ele, e
seguimos calados. Pegamos uma rua de casas bem edificadas. Uma charrete
passou devagar com os estores erguidos. Um cheiro de verbena ficou no ar. Carlos
acendendo um charuto repetiu pela derradeira vez:

— Aqui a vida me parece adorável.

Calados, entramos no caminho de pedra, na rua que dava para o hotel –


quando vimos sair duma bela casa branca, um sério grupo de senhores em trajes
elegantes, falando-se baixo. Entre aqueles cavalheiros, estava a brilhante pessoa
de Antero de Quental, com Guerra Junqueiro, Sebastião Damasceno, Afonso
Almeida, Armindo Braga, Oliveira Martins, Teófilo Braga e o bom Ramalho
Ortigão. Armindo Braga acenou-nos levemente com a mão. Afonso Almeida
promete visitar-nos à tarde no hotel. Antero e os outros nos olhando cortesmente,
acenou-nos, e partiram silenciosos, sérios, decerto para uma faculdade que se via
no final da rua. Com trajes negros, seguiam-se seriamente, como para um velório.

— Nobres cavalheiros – disse Carlos, quebrando as cinzas do charuto.

À tardinha Carlos deixou Coimbra a pedido de sua adorada Margarida.


Após eles terem deixado o hotel. O professor Afonso Almeida veio ao meu
quarto:

— O Dr. Ezequiel, temei que já tivesse partido... onde está o nosso jovem
Carlos?

— Carlos partiu com sua noiva para Lisboa, ainda a pouco professor.

106
— Pois bem, meu caro, vim lhe convidar para um solene jantar em minha
residência.

— Será um imenso prazer professor.

— E mais uma vez, quero lhe dar meus parabéns pelo excelente trabalho.

— Obrigado.

— Ouvi dizer que tu fizeres pesquisas até no Brasil.

— Não. Mas andei de fato, estudando sobre as plantas medicinais da


Amazônia, que um colega da Universidade em Paris, tinha feito nas férias uma
vasta pesquisa.

— Pois bem – disse o professor Afonso Almeida, contemplando-me com


admiração: – tens aqui o meu endereço. Até logo.

Era aquela bela casa branca que na manhã tínhamos visto sair Antero e
seus amigos.

Naquela tarde, não saí do meu quarto. Fiquei pensando já no que faria
quando retornasse a Lisboa – quando subitamente lembrei-me de Joana, ainda não
a tinha esquecido. Eu tinha ainda esperança de conhecê-la. E pensava, sobretudo,
no plano que tinha quando deixara Paris. Que era de levar a medicina aos lugares
mais distantes do mundo, ao povo mais necessitado. Aos povoados e lugarejos de
Portugal...

***

Esta constipação estar a me matar – disse Ezequiel Prado, erguendo-se.


Pigarreou forte. Foi até a cozinha encher o cachimbo. Ia com as mãos nas costas,
em passos lentos, rasteando as chinelas velhas. Na sala umas poucas velas ardiam
altas e lentas. Judite já tinha se recolhido. A prima Virgínia, que em tudo,
encantara o Sr. Lobato, entrou na sala com chávenas de café numa bandeja. O Sr.
Lobato, com miúdos olhos avermelhados de sono e prostrado no velho sofá,
recebendo o café de umas mãos tão jovens, tão vivas da bela rapariga, se animara,
arregalando bruscamente os olhos, causando um riso bonito à moreninha. Jorge
muito sério ao meu lado, ouvia atento à história do velho médico, desde o início.
107
O Dr. Ezequiel Prado voltou para sala. E soprando o cachimbo, sentando-se,
continuou:

***

— Às sete horas deixei o hotel, com o propósito de já encontrar na sala da


casa o professor e os nobres senhores, que decerto lá estariam.

Aquela noite estava quieta e imóvel. Havia alguns estudantes vagueando


pelas calçadas, entre as árvores. Um senhor que passava ao lado de duas belas
raparigas acenou-me. Era um velho de barba grande e de monóculo, e as raparigas
pareciam espanholas. Assim entrei no silêncio do caminho de pedra, onde não se
via mais uma alma. Só aqui e além umas árvores esguias e uns pingos de luzes de
uns velhos casarões. Ali caminhando sozinho, com as mãos nos bolsos, o passo
lento, à cabeça inclinada, pensava em Carlos que partira feliz com Margarida. E
eu ali caminhando só... solitário desde Paris, desde o Liceu Português. Todavia
estava feliz. Aquela solidão nostálgica não me incomodava. E assim ia pensando,
recordando de tantas coisas,— quando defronte de uma casa branca, sob uma luz
amarela, dois senhores de preto me chamaram. Era o Sr. Sebastião Damasceno e
Teófilo Braga.

— Vejam só! – exclamou o Sr. Damasceno — temos cá o nosso brilhante


Dr. Prado. Que grande surpresa – e me abraçou fortemente.

— Brilhante jovem — repetira o Sr. Damasceno, sorrindo.

— Como vai o Dr. Prado? — perguntou-me Teófilo Braga.

— Muito bem. Obrigado – disse estendendo-lhe a mão.

— Vamos entrar cavalheiros.

Subimos as escadas ainda conversando, e penetramos numa sala iluminada


por antigos castiçais. Logo o Sr. Damasceno, com sua fala ligeira e ressonante,
apresentou-me a todos. Eram de fato os senhores que eu vira pela manhã, exceto
três rapazes de paletó e chapéu panamá ao lado de Ramalho Ortigão.

Os senhores conversavam amistosamente pela sala, em pequenos grupos.


Um grupo conversava de pé, ao lado de uma estante de carvalho lavrado, onde se
108
via uma rica encadernação de livros de música e poesias. Outro grupo, num sofá,
analisavam os versos de uma poesia de um jovem brasileiro chamado Castro
Alves. E ainda mais em poltronas de couro, num murmúrio de leitura e meditação.

Antero de Quental redigia a lápis, uma carta numa folha de almaço,


sentado a um canto, numa mesinha redonda de marroquim. Teófilo Braga, muito
sério a seu lado, acompanhava o que escreveu o brilhante jovem de Ponta
Delgada.

João de Deus apareceu de surpresa, sorrindo. Tinha chegado aquela tarde


em Coimbra. Abraçara-me e contara-me que tinha conhecido meu avô Alonso
num sarau em Lisboa há uns anos.

O professor Afonso Almeida adiantando-se para o centro da sala, pediu a


atenção de todos, e num tom de entusiasmo dissera:

— Meus cavalheiros, temos hoje em nosso meio, nos honrando com sua
rica presença, nosso jovem Dr. Ezequiel Prado. Herdeiro de uma família de
elevada cultura...

Ezequiel Prado é médico formado em Paris, crescido em Paris. É o autor


da A Medicina Moderna''. Obra esta que, creio eu, alcançará reconhecimento em
toda a Europa e o resto do mundo.

— Bravo... Bravo meu rapaz – disse o Sr. Sebastião Damasceno.

— Meus parabéns, meu rapaz —disse-me depois Antero de Quental.

Entusiasmado e muito feliz confessei a todos, com um sorriso tímido, que


em breve sairia muitos pacotes de meu livro para Paris, no trem, direto de
Coimbra pela nova Estrada de Ferro Beira Alta — Uma salva de palmas fora
dada a essa rica revelação. Decerto, não só para mim, mas a uma obra nova, que
sairia para Paris, pela nova estrada de ferro, que era um dos grandes símbolos do
progresso em Portugal.

Após um longo rumor de vozes, o diretor Afonso Almeida, voltou àquela


sala e, com o mesmo entusiasmo, nos convidara para uma sala maior, onde seria
servida a ceia.

109
Eles costumam se reunir aqui todas as terças feiras, Dr. Ezequiel Prado.
Isso há quase um ano – disse-me o diretor, tocando-me o ombro a caminho da
outra sala.

Pegamos um corredor. Antero de Quental, que ia ao lado de Ramalho


Ortigão, perguntara a Teófilo Braga que ia adiante, se tinha visto o jovem Eça de
Queiroz ainda por Coimbra. Eça de Queiroz tinha partido naquele mesmo dia para
Évora.

Na sala, quase nua de móveis, via-se um armário envidraçado, com


porcelanas francesas e um jarro japonês; uma mesa de carvalho lavrado ao centro,
em volta de cadeiras de alto espaldar forradas com veludo amarelo e uma estante,
que continha uma pilha de livros velhos.

Após todos se acomodarem, um escudeiro serviu vinho de Colares –


quando os passos de alguém às pressas ressoavam no corredor. Vimos entrar um
rapaz de chapéu alto e sobrecasaca azul. Tímidamente fora se sentar ao lado de
Ramalho Ortigão. Chamava-se Augusto Soromenho. Um jovem poeta que foi um
dos principais apresentadores das Conferências Democráticas em 1871.

Teófilo Braga conversava muito sério com João de Deus, que há muito
tempo não vinha à Coimbra, os senhores mais próximos os escutavam. Depois
Antero de Quental que estava calado, tomou a palavra num discurso longo.
Ramalho Ortigão, falou em seguida, Teófilo Braga também fez o seu discurso.

Falaram naquela noite de Inglaterra, de Alemanha e França; da revolução


industrial, social, política e cultural daqueles países. E falaram, sobretudo, da
natural divergência entre os estudantes de Coimbra e os velhos mestres de Lisboa.
Antero criticou duramente a Escola de Lisboa e seus poetas românticos, liderados
por Antônio Feliciano de Castilho. O velho mestre, professor e mentor da Escola
de Lisboa. Depois, com seu difícil sorriso, num tom mais leve, elogiaram a
Teófilo Braga pela publicação de Visão dos Tempos e Tempestades sonoras. Obras
poéticas que causaram grande impacto no ano anterior. Guerra Junqueiro se
lembrou das Odes Modernas do próprio Antero. Obra publicada também no ano
interior. A conversa mudou o rumo quando o diretor Afonso Almeida falara sobre

110
a Estrada de Ferro Beira Alta, que fazia grande sucesso entre os estudantes de
Coimbra.

— Agora de Coimbra, através do caminho de ferro, temos acesso ao que


há de melhor no mundo. Acesso livre à Paris, à modernidade, a coisas, onde em
Portugal não se vê. Acesso, sobretudo ao conhecimento:— O conhecimento
humano, literário, físico e científico.

— Uma revolução — disse o Sr. Damasceno.

O diretor continuou:

— Para os poetas, os livros, a poesia de Victor Hugo, e aos médicos a


medicina modernizada, da qual o nosso jovem Dr. Ezequiel Prado nos trouxe
parte. Aos músicos, os instrumentos modernos, a música e suas traduções.

Dois senhores começaram a servir vinho do Porto.

— Apreciamos essa bebida, o que temos de melhor em Portugal — disse


João de Deus.

— De fato é um bom vinho – ressaltei para ele, levando o vinho à boca,


com prazer.

Os mesmos senhores voltaram com as baixelas com a comida.

— Esses são nossos colaboradores Dr. Ezequiel. O Sr. Aguiar, de Lisboa, e


Willian Filco, da Inglaterra – disse o Sr. Damasceno.

— Muito prazer Sr. Philco. O Sr. Aguiar.

— Sinta-se em casa, Dr. Prado. A propósito, ouvir muito falar do senhor


aqui em Coimbra – disse o Sr. Aguiar.

— Muito obrigado Sr. Aguiar.

— Bom apetite — terminou ele.

— Bom apetite, senhores – disse o escudeiro inglês e saíram juntos para


uma cozinha nos fundos.

111
Davam onze horas, quando os senhores se ergueram para sair. Um terço
deles ficou ainda mais umas horas. Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Teófilo
Braga partiram com o maior número. Os que ficaram foram para a sala de música,
onde se encontrava um piano negro e duas rabecas velhas, uma estante de
pau-preto com mais encadernações de música e muitas partituras avulsas por
sobre uma mesinha ao lado do piano.

João Mendes, poeta e pianista e amigo do diretor Afonso Almeida ficou a


tocar Chopin, enquanto os demais ficaram a fumar charutos e a comentar a nova
política Inglesa. Depois o menino Junqueiro, citara uma de suas poesias. Era a
poesia nova, moderna e revolucionaria. Preocupada com a sociedade, com os
problemas atuais; com entusiasmo de juventude. Mas apesar de suas poesias já
serem revolucionárias e, sobretudo, realistas, Junqueiro, por ser tão jovem, e de
não estudar em Coimbra, esteve àquela noite somente para acompanhar o seu
professor João Bonifácio. Por isso também, ficará alheio à divergência literária
daquele inesquecível ano de 1865.

O pianista tocara a última música, a Sonata de Beethoven, a pedido de


Sebastião Damasceno. Assim a reunião encerrara.

A caminho do hotel, Sebastião Damasceno, que me acompanhava,


travando do meu braço fora dizendo:

Meu menino, sabe que há dias, em Lisboa, eu passeando só pelo Aterro,


encontrei o velho Castilho? O velho mentor ia às pressas, a pé, à Rua do Alecrim.
Eu fazia o mesmo caminho. Então fomos conversando, quando certa altura,
propositadamente, perguntei a ele, sobre o que pensava dos jovens poetas de
Coimbra. Bruscamente ele me olhava sério, como se eu o tivesse insultado, e
entrou quase a correr num edifício velho...

Ó menino ouça cá... nada poderia ser mais puro do que uma poesia não
é mesmo? Poderíamos somente citar da beleza de nossas mulheres; da natureza,
do amor; o culto da arte pela arte, como dissera uma vez, Antero; o Tejo, os
Olivais; os jardins floridos de Sintra e até mesmo de nossas conquistas ao longo
dos tempos. Todavia, contradigo... Como a poesia destes meninos portugueses,
muito influenciados por Berlim, Londres e Paris, poderia ser tão pura, romântica,

112
casta e como dizem Vestais, neste país impuro, despido de gostos, onde só há uma
sociedade egoísta e de tanto mau gosto... por isso temos agora a poesia
revolucionária – dizia erguendo o braço, mudando o tom da voz – moderna e,
sobretudo realista de Antero de Quental, Teófilo Braga, Oliveira Martins e os
demais... parece-me justo, não te parece?

A— A propósito tu pensaste no que eu lhe dissera, em me escrever um


livro sobre Sintra? Aí eu falo por Sintra... já esteve em Sintra?

— Sim – respondi saindo de minha mudez – estive em Sintra com meu


querido pai, uns meses antes de partir para Paris.

— Paris! Paris não me fascina! Prefiro mesmo é o sossego de Sintra.

Já estávamos defronte do hotel. Um nevoeiro frio cobria a cidade, àquela


hora deserta e silenciosa.

— Amanhã à tardinha parto para Lisboa. Ficarei lá somente duas semanas


menino. Se quiseres me encontrar, estarei na Central... agora vou recolher-me, já
se faz tarde, até logo.

— Pensarei com cuidado em seu pedido Sr. Damasceno. Até logo.

Um criado de olhos pisados, que me esperava de pé, na portaria do hotel,


me conduzira com o lume até o meu quarto. Ainda fiquei uns minutos lendo
algumas correspondências, enviada por um menino que eu contratara em Lisboa
para cuidar desses assuntos. Esperava alguma coisa do Carlos. Mas não havia
nada dele. E por algum motivo, inconscientemente entediado, esperava alguma
novidade de Joana. Até cair num sono profundo.

Quase todos os homens vivem inconscientemente no tédio. O tédio é o


fundo da vida, foi o tédio que inventou os jogos, as distrações, os romances e o
amor. Dissera uma vez o escritor espanhol Miguel Unamuno.

Logo cedo, quando o sol já brilhava forte através das vidraças, eu


encontrara no bar do hotel, o velho Armindo, o professor João Bonifácio e Guerra
Junqueiro. Tomavam café e discutiam as ideias e as poesias realistas de Antero de
Quental, e de como ele impunha a suas palavras. Fui ter com eles. Armindo sorria

113
satisfeito recostado na cadeira de forro de palha. Talvez com aquela doce e
agradável manhã de Coimbra, ou com o sol que já brilha através das vidas do
velho hotel onde passara os maiores intelectuais de Portugal e ali ele estava. E
com o mesmo sorriso de satisfação, perguntou-me?

— Diga-me uma coisa caro Ezequiel, que é feito de seu amigo Carlos?

— Ele abalou ontem para Lisboa com a Margarida.

— Que tem feito o Carlos em Portugal? Eu soube que ele chegara de Paris,
não faz muito tempo – perguntou o professor João Bonifácio.

— Ele pensa em abrir um consultório médico. Fala em comprar imóveis


em Lisboa e Sintra, e pensa até em montar uma revista médica.

— Que pensa este brasileiro que cresceu em Londres e estudou em Paris?


Comprar imóveis em Lisboa?— indagou o professor Bonifácio, sorrindo.

— Decerto se encantara com o céu azul ferrete de nosso Portugal — disse


o velho Armindo Braga.

— Ou talvez sejam os caprichos da bela francesa — disse o professor.

— A encantadora Margarida? Eu também cederia a todos os seus


caprichos. – disse depois Armindo Braga.

Quando assim falávamos de Carlos e Margarida, um mensageiro magricela


me entregara um telegrama de Carlos. Armindo e o professor ergueram-se às
sobrancelhas para ler o telegrama. Junqueiro que tomava seu café em silêncio
arregalaram os olhos.

— Isto é surpreendente. O telegrama é de Carlos e vem de Sintra – disse


eu muito surpreso.

— Então o rapaz não está em Lisboa? – disse Armindo.

— Carlos é um perfeito maroto – disse eu sorrindo.

— Carlos com Margarida em Sintra, haverá nisto muitas surpresas – disse


o professor, maliciosamente, passando os dedos no enorme bigode.

114
Uma carroça estacou na calçada. Do bar se ouviu o cavalo soprar de
cansaço e bater com o casco nas pedras da rua. Logo depois uma mulher de
cabelos mal penteados entrou no hotel. Trazia um vestido velho e sujo e botinas
de elásticos sujas de barro. Estava com a face pálida como cera, e as mãos sem
luvas, maltratadas, amarelas e ossudas. Conversou com um recepcionista que a
deteve e, depois de muita insistência da mulher, o rapaz me apontou confuso. A
mulher aparentava trinta anos. De perto pareceu-me mais feia, suja e raquítica.
Tinha olhos pisados e pregas de velhice nos cantos da boca.

— V.Ex. me dê licença. És tu o Dr. Ezequiel Prado de Lisboa?

— Sim. Senhora – respondi cortesmente.

— Pois olhe doutor... eu não quero lhe incomodar, é que meu pai está de
cama há dias. Está a sofrer duma forte gripe e febre alta. Não temos dinheiro para
uma consulta. O que ele deve tomar? O que posso fazer, doutor?

— É necessário que eu veja o doente, minha senhora. Não me custaria


nada examiná-lo.

As lágrimas da mulher saltaram-se e do rosto, comovida. E assuara-se


muito dolorosamente.

Deixei o velho Armindo, Guerra Junqueiro e o professor à mesa,


espantados. Eles pareciam não acreditar que eu iria deixar o luxo do hotel aquela
manhã para me embrenhar adentro pelo o interior de Coimbra.

A carroça havia partido. Então fui a pé com a senhora até o segundo


quarteirão onde eu tomara uma tipoia. Era um meio de transporte muito lento, mas
era o que estava à disposição àquela hora do dia. Então partimos.

A tipoia rolou por quase meia hora. Aqui e alem via-se uma casa pobre. E
ouvia-se alguém cantando melancolicamente o fado, ou toques de guitarra e
realejo. De uma triste casinha alguém cantava a traviata. Noutras casas de
edificação mais acabadas, via-se uma gente alegre, debruçada nos parapeitos das
varandas, onde se mirava sempre uma planta colorida e viva, em pequenos vasos
raros.

115
O Sol batia mais forte. Um calor abafado fazia dentro da tipóia, que há
mais de uma hora rolava puxada por dois cavalos velhos. A senhora como eu,
nada falava, às vezes ria desconfiada. Falaram-me apenas o seu nome, era Luiza
Mendes e o pai Augusto. A tipoia subiu uma ladeira e enfim pararam defronte a
uma casa baixa e pobre. Dentro estava quase nua de móveis. Num quarto meio
escuro, encontrei sobre um leito de madeira carcomida, e forrado num lençol de
chita, com remendos, o velho Augusto. Era um homem gordo, com longas barbas
de apóstolo. Estava pálido como cera, e com os cabelos despenteados como
abandonado.

É grave – disse eu ao deixar o quarto – é muito grave minha senhora

— O que tem? – perguntou-me, ansiosa.

— Infecção no peito... um princípio de pneumonia – eu disse tirando as


luvas e as colocando de volta no bolso interno do paletó, (material este que eu
sempre carregava por precaução) ... – É necessário repouso absoluto e, em
hipótese alguma ele deve deixar o interior dessa casa. Tem que suar muito. Tomar
caldos quentes – e receitei xarope e um remédio para febre.

Acompanhei a doença do Sr. Augusto permaneceu por mais umas semanas


até que ele estivesse totalmente recuperado.

Tomei de volta a tipoia para o hotel com o dever de médico e cidadão


cumprido. Era o que eu sonhava. E depois desta visita, àquele pobre homem, eu
fiquei mais convicto. Iria sim, me dedicar às classes mais necessitadas do país.

Certa manhã em meu consultório, eu recebera uma carta da senhora Luiza.


Dizia que o velho Augusto havia falecido, devido a uma recaída da doença.

***

Ezequiel fechara os olhos de fadiga. O Sr. Lobato há horas dormia


prostrado a um canto do sofá. Jorge de Morais, o bom Jorge, nem piscava os
olhos. E já era tão tarde. Então ambos ficaram encantados e ainda mais curiosos
com o fim desta história. Decidimos dormir por lá, àquela noite.

116
Enfim, o dia amanhecera. O sol apareceu brilhante entre as altas árvores da
velha Quinta dos Prado.

Tínhamos repousado num pequeno quarto com janelas para os fundos. Às


sete horas já estávamos à mesa. Judite que parecia mais encantadora que na
véspera, nos serviu, com belo sorriso, café e pão caseiro.

— O avô ainda está a dormir – disse Judite sentando-se conosco.

- Será que o dia de ontem o deixara mais cansado?—Perguntou Jorge.

— Ó não, Sr. Jorge. O avô adora contar suas histórias. E tem ainda muito
mais a contar. Se os senhores tiverem paciência. A propósito, obrigada por darem
ouvidos a meu avô. Ele fica muito feliz quando o escutam. Sei, no entanto, que o
senhor tem um interesse maior nessa história devido a seu pai fazer parte dela Dr.
Eduardo. Mas agradeço-lhe mais uma vez.

— Obrigado Srta. Judite. Mas não precisa me agradecer. Eu na verdade já


tenho um grande respeito para com o seu avô. E um carinho de filho.

— Obrigada — disse Judite, com um sorriso luminoso e com uma alegria


radiante – que cativara mais o meu coração.

— Temos também um interesse cultural na história de Ezequiel Prado,


Srta. Judite – disse Jorge.

— E o Sr. Lobato? ... — disse ela olhando para o velho chofer.

— Estou impressionado, senhorita.

Daí a instante ouviu-se um rumor. Um rastejar de chinelas e toques firmes


de bengala no assoalho. Era Ezequiel que vinha de seu quarto, sorrindo todo e
exclamando:

***

— Bom dia, cavalheiros, lá fora está um lindo dia, de um glorioso sol


português. Que já está forte. Mas graças a Deus que nos dera as árvores para nos
fazer sombra – e parou como se recordando de algo – eu não lhes contara que eu
passara um inverno em Inglaterra? Tu que vem de Londres Eduardo, sabes muito
117
bem o frio que se faz no inverno de lá... oh... Foi a única vez que eu passei na
Inglaterra. Eu fui a convite da Rainha, com um grupo de alunos da Universidade.
Mas não recordo para que fora o convite.

— Não se recorda para que fora tão honrado convite, Dr. Prado? —
indagou o Sr. Lobato, levando os lábios à chávena de café...

— Uma festa de confraternização nas dependências da casa Real, talvez...


depois, encantado com a Inglaterra, terminei por ficar todo aquele inverno.

— Meu pai o acompanhara?

— Não. Foi quando eu ainda habitava Paris.

Lá fora, ouviu-se um carro a estacar à porta. Ezequiel franziu a testa e


ficou sério. Virgínia fora ver quem era. Após um ronco de carro novo cessar,
entrara daí a instante um sujeito esguio, um pouco encurvado. Era um rapaz de
terno preto, com sapatos bem engraxados e anéis de ouro nos dedos compridos;
cabelos bem anelados, e os bigodes em ponta bem frisados. Após pôr o chapéu no
aparador e apagar as cinzas do cigarro num cinzeiro. Sentou-se à mesa
familiarmente.

— Traga uma chávena de café para o Sr. Paula, Virgínia – disse Ezequiel,
que se manteve sério.

— Obrigado — disse o rapaz com um ar de irreverente — e voltando se


para nós – bom dia senhores. Ainda aqui. Creio que não foi difícil encontrar a
velha Quinta de Ezequiel... tens aí um bom carro. É de 1920?

***

Era o rapaz, que jogava cartas na mercearia, que nos ensinará a casa de
Ezequiel, quando tínhamos entrado na pequena vila.

***

— O que estás a fazer por aqui Sr. Paula? — perguntou-lhe o velho


médico, com um tom altivo na voz.

118
— Estive a andar por estas bandas, desde cedo, à procura de uma Quinta
velha e barata – disse com tédio, torcendo as pontas dos bigodes.

— Como está o seu velho pai? — Perguntou Ezequiel, sentando-se.

— Estar sempre a bater o seu dominó na mercearia do Silveira toda à


tarde. Pela manhã, anda a passear seus ossos. — voltando-se novamente para nós:

— Os vem de Évora?

— De Coimbra, meu senhor? — respondeu o Sr. Lobato.

— É curioso... Cavalheiros tão bem trajados. De modos tão finos, por


essas bandas. Há mistério nisso.

— Somos amigos do bom Ezequiel, meu rapaz. Assim como V. Ex. – disse
Jorge, ironicamente.

— Decerto estão a ouvir as velhas histórias de Ezequiel — depois de uns


goles no café: – há quem diz haver nisto muitas verdades – ergueu-se em silêncio
e punha o chapéu: – agora tenho que ir. Obrigado pelo café. Cuide-se de
Ezequiel. Até logo Judite. Bons dias senhores.

Judite nada dissera. O rapaz se foi.

— Isto é uma besta – disse Ezequiel Pedro, que me pareceu magoado.

***

Houve um silêncio tenso e extenso, que ficamos a ouvir o vento soprado às


árvores, o zunir de uma mosca e o tic-tac do relógio de parede.

Ezequiel Prado ergue-se. De sua cadeira ouviu-se um estalo – foi até a


estante, pegou de um livro e, voltando-se para a mesa.

— Aqui está algo que lhe quero mostrar Eduardo.

***

Era o seu livro. A Medicina Moderna. Primeira edição de 1865. Dentro do


livro, dobrada em duas partes, estava o telegrama em que meu pai lhe mandara de

119
Sintra. E outra carta, que alguns anos depois, ele recebera em Lisboa, de Antero
de Quental. Datada de 1870.

***

— Estão aí as provas de minha história. Para quem não acredita. E tem


mais meus senhores – enternecido, nos mostrou, numa velha maleta de couro,
velhos jornais, com a sua foto, com o seu nome. Era da Gazeta Médica, O Diário
de Notícias, a Revista dos Dois Mundos e a Gazeta Ilustrada, que destacava na
capa, ao centro, a sua foto com o meu pai e outros senhores, no salão nobre do
Hotel Central. Na foto, todos estavam de terno preto e gravatas pretas.

Enquanto eu folheava os cadernos de jornal e lia aqui e ali um artigo e a


coluna social. Jorge, como querendo a continuação desta história, perguntou ao
Dr. Ezequiel Prado:

— Quando o senhor voltou a encontrar Carlos Eduardo Marques?

— Assim que eu cheguei a Lisboa, mas, primeiro naquele dia, uma


dourada tarde de quinta feira, quando eu deixara o Café Alince, eu vira passeando
só no Loreto, um antigo amigo, Ranunfo Peres. Caminhava de guarda-chuva sobre
o braço, muito lentamente, sobrecasaca e luvas pretas de peliça e um chapéu à
moda de 1830.

— Olá. Por cá? Que grande surpresa! — disse Ranunfo, correndo para me
abraçar.

— Como vai meu rapaz? Há quanto tempo, hein.

— Vou-me muito bem... obrigado... procurei-te por todos os lados. Até seu
velho pai me dizer que tu estavas em Coimbra, Ezequiel.

— E tu quando chegaste?

— Domingo cedo — e me olhando com admiração:

— Tu estás muito bem, hein meu caro. Boa cara, uma bela cor face, sem
uma branca, nem uma ruga. És ainda como aquele menino que eu conhecera em
Paris.

120
— E você não está nada mau, elegante como sempre.

Ranunfo há anos vivia em Paris.

— A propósito, para onde vais?

— Para casa, na Rua do Ouro — respondi ainda surpreso em vê-lo.

— Eu vou para a Rua da Prata. É caminho — disse rindo.

Caminhamos um momento, calados, muito lentamente observando à porta


da Havaneza, um pequeno grupo de senhores fumando charutos e politizando.

— E Paris, ó Ezequiel, por que não voltaste lá? Quem lá vai nunca se
esquece. É o berço esplêndido do mundo. Toda alma deseja lá voltar... que viste tu
nesse país, que o prendestes? Por acaso foi um róseo corpo de graciosa postura e
cintura breve?

— Não. Há outras coisas que aqui estão a me prender. Todavia. Tenho


estado à procura de uma portuguesinha que eu conhecera no trem, na estação de
Madri. Quanto a Paris, Ranunfo, só tenho boas lembranças. E acabou-se. Meus
planos são para estes lados.

— Ah... Portugal. Nada mudou – dizia Ranunfo olhando em volta – veja


aquilo, aquela velha estátua de Camões, esquecida sob poeira. A Havaneza, com
aquela gente atrasada e mesquinha. Como eu havia deixado... mas há algo que
aqui gosto. É este ar de Portugal. Que regalo!

— De fato não há melhor ar para respirar do que o de Portugal. E essa


atmosfera poética que aqui se exala? Não há nada igual no mundo.

— É verdade — disse ele — mas nem todos os habitantes daqui tem essa
sua visão.

Sem perceber, já tínhamos chegado ao Chiado.

A tarde caia. Carruagens atrava-se num bater, descendo e subindo. Os


lampiões de gás já estavam acesos. Paramos maquinalmente, defronte a loja de
velas do senhor Manoel Costa, que dentro discutia sobre mercadorias com uns
senhores mal vestidos.
121
— Que gente rota... – disse Ranulfo.

— E Carlos o viu?

— Ah, aquele belo moço. O vi domingo de noite defronte ao Grêmio.


Gritei-o, e foi um infinito abraço.

— Carlos é outro que anda muito bem.

— Ah. Vai haver logo mais um jantar no Hotel de Paris, onde eu estou
hospedado. O Carlos vai estar lá, e vai levar a sua francesa... dizem que é de uma
beleza extraordinária. Onde ele a encontrou, ó Ezequiel?

— Na Rua Nova do Carmo. Onde eu estalara meu consultório.

— Ah, o seu consultório é na Rua Nova do Carmo?

— Sim. Mas a Rua está mudada.

— O Carlos me disse que tu montaste um excelente consultório.

— Obrigado. Pois, a francesinha tem uma loja de véus, lençóis, etc. Onde
Carlos passou logo a espreitar. Enfim, o resto já se sabe.

Ranulfo puxando o relógio, fitando-o de longe, declarou logo que já eram


dez e um quarto.

— O jantar é às sete horas hein. Não se atrase.

— Eu já me atrasei em meus compromissos?

— Comigo nunca — sorrimos juntos.

— As velhas amizades são as melhores. Pois não é mesmo? — disse ele,


enternecido.

— É verdade. É bem verdade.

— Falando-se em amizade, olhe quem nos vem ali — disse Ranulfo


apontando.

122
Uma tipoia descoberta apontava na esquina. Vimos Carlos. Sério, de terno
preto e uma gravata de cetim preta, com os cabelos bem anelados, tingidos de
preto. Ao seu lado, a Margarida toda de luto, com um véu de renda preta sobre o
rosto quase irreconhecível. Vinham de um velório de uma prima de Margarida.
Mas ao nos ver, sorriram num riso ligeiro e triste. A tipoia estacionou junto a nós.
Carlos saltando, gritara:

— Ó Ezequiel, que bom vê-lo... pensei que iria terminar o ano em


Coimbra, dá cá um abraço homem.

— Onde tu estás hospedado Carlos?

— No Central — voltando-se para Ranulfo — e tu Ranulfo, como vais?


Vejo que encontrou Ezequiel primeiro que eu.

— Bem. Dizia eu agora a pouco sobre o nosso jantar.

— Oh... sim o jantar. – depois de pensar em algo – ah, estávamos vindo de


um velório de uma estimada prima de Margarida – disse ele olhando para ela –
mas não faltarei ao jantar.

— De fato notamos o luto em ambos — disse eu tirando o chapéu —


lamento por tão significativa perda da senhorita Margarida.

— Lamentamos — completou Ranulfo.

— Obrigada — disse ela docemente, limpando uma lágrima.

— Bem... até logo — disse Carlos, voltando jovialmente para a tipoia.

A Margarida nos cumprimentara, sem descer, com um gesto triste e mudo.


Apenas saíram:

— Não exageraram, ó Ezequiel, ela é de fato encantadora.

— Carlos merece – disse eu vendo a tipoia sumir para um quarteirão.

— É verdade. Ele merece... Gabo-lhe a instrução e o espírito —


consultando outra vez o relógio:

123
— Bem – murmurou – até a noite – ia dobrando a esquina gritou – o
Domingos e o Castro também estarão lá.

De noite, com efeito, encontrei na Rua do Arsenal: Domingos, Leopoldo e


velho Castro. Velho maestro de Lisboa. Augusto de Castro, já com os cabelos
inteiramente brancos.

— Oh. O nosso brilhante filho de Lisboa está de volta. Eu soube enfim,


que tu definitivamente deixaste Paris – disse, estendendo-me a mão o maestro.

— E não sinto falta, meu maestro.

— Eu não entendo esses jovens de hoje – disse ele.

— Olá Domingos, Leopoldo.

— Tu és um dos únicos, ó Ezequiel, a não se deixar contaminar-se por


costumes da velha França – disse o maestro.

— Eu não diria contaminar-se, diria apaixonar-se – disse eu – no entanto,


não me contaminei e nem me apaixonei.

— Belas palavras — eu diria o mesmo ó Ezequiel — disse o Domingos,


romântico apaixonado por Paris. Exceto na última frase. Porque eu sim me
contaminei e apaixonei-me.

— Não há ninguém neste mundo mais apaixonado por Paris que o


Domingos – disse o Leopoldo.

— Mas eu sou. Sou e não nego. Pois os melhores da Arte, da literatura, da


vida, meus cavalheiros, não estão em Lisboa, nem em Madri, tão pouco no Rio.
Estão em Paris, Berlim e em Londres, sobretudo, em Paris, disse o Domingos.

— Desculpe-me, Domingos, mas falas como um tolo. É em Portugal que


vive o nosso poeta Soares de Passos. E aqui nasceu Camões. Viva Portugal – disse
o velho Maestro, com os olhos marejados – viva a nossa música e a poesia
romântica.

— Vamos ir senhores, estamos atrasados – disse eu, mudando o rumo da


conversa.
124
— De fato estamos – concluiu Domingos.

Seguimos então calados para o hotel, apressando os passos. Observando


quase ao mesmo tempo, um tumulto à porta da Confeitaria do Costa e Silva,
quando o maestro Augusto de Castro, retardando os seus passos, travando-me do
braço, grave:

— Ó Ezequiel, eu soube que tu participaste de um jantar com um grupo de


alunos de Coimbra.

— Não havia só alunos meu bom Castro.

— Para que tu foras se juntar àqueles rebeldes alunos. Um bando de


meninos que, mal deixaram os berços e já, com petulância, criticam, atacam a
pessoas, que há anos fazem a educação do país... é ultrajante.

— O senhor se refere ao velho Castilho?

— Sabes que circula por aí um indecoroso opúsculo, enviado de Coimbra,


por Antero de Quental, criticando, atacando a pessoa de Castilho...

— Mas esse Castilho o havia atacado primeiro. Tinha criticado duramente


a poesia de Antero e de Teófilo Braga. Antero de Quental só dera a sua resposta.

— Esse Castilho, meu rapaz, é um dos maiores educadores que este país
possui – rosnou furioso o maestro – e depois, aquele Antero chamou o fútil. Não
respeitou os seus cabelos brancos.

Augusto de Castro era íntimo amigo de Antônio Feliciano de Castilho. A


quem o defendia naquele dia. Era o velho Augusto, um grande maestro. No
passado publicara um livro de poesias românticas que ficara em total obscuridade.
Era então romântico dos velhos.

— E tu fora se juntar a eles.

— Refere-se sempre a Antero?

— A todos eles — rosnou novamente.

125
— Antero de Quental é para mim um grande poeta, como poucos que
conheci. Quanto ao velho Castilho...

— Grande poeta meu filho, dos melhores que há em Portugal, já nos


dissera isso Pinheiro Chagas. O romântico Pinheiro.

— Pinheiro Chagas é outro...

— Agora me vem esse menino, o Antero, com suas pobres poesias.


Chamando as realistas, misturando as coisas.

— A poesia hoje tem obrigatoriamente que ser realista e revolucionária.


Preocupada com o seu tempo. Sou a favor de Antero, sou a favor do Realismo —
finalizei, olhando-o nos olhos.

O velho maestro com um profundo ar de indignação na face cravou-me na


alma um infinito olhar, e apressou os passos para se juntar a Domingos e
Leopoldo que ia adiante.

À porta do hotel, Ranulfo nos esperava, ansioso, olhando o relógio e


erguendo os braços:

— Por que tanta demora? – E vendo o maestro ainda indignado: — O que


há contigo Castro? ... E Carlos Ezequiel?

— Há de chegar logo.

Ranulfo consultou mais uma vez seu relógio de bolso, e depois olhando a
rua para cima e para baixo:

— Uma sala no segundo andar está reservada para nós. Carlos a conhece.
Vamos subir.

No bar do hotel Ranulfo ainda parou para cumprimentar dois velhos


democratas. E subimos para uma sala decorada e mobiliada à moda dos hotéis de
Paris.

— Há aqui uma ligeira lembrança de Paris — comentou Domingos.

— É muito elegante – completou Leopoldo, entusiasmado.

126
— Mas a comida daqui não passa nem perto. Mesmo havendo aqui um
cozinheiro francês – disse Ranulfo.

— É devido a uma pitada de tempero português que usam — explicou o


Castro — a pedido de Carlos, a ceia será puramente portuguesa. E o rapaz até
agora – disse Ranulfo rindo.

Meia hora depois, Carlos apareceu. De pé, à porta da sala, procurava-me


com os olhos. Quando me viu sentado numa mesa ao fundo, perto duma janela
entreaberta, ao lado de Leopoldo que me perguntava algo sobre a minha viagem à
Coimbra, e de como eu conhecera Antero de Quental. Carlos vinha ao meu
encontro, com um sorriso e na mão estendida, trazia a Revista Dos Dois Mundos,
quando Ranulfo e o maestro o detiveram, questionando-o pela sua demora, e
porque vinha só. Margarida indisposta ficou em casa.

Após o jantar, enquanto eu acendia um charuto, vi Carlos ainda em


volta de Ranulfo e Domingos.

— És muito amistoso. Muito simpático o Carlos – disse o maestro ao meu


lado, fumando um cachimbo de porcelana — como o adoram.

— Sabes que ainda não consegui falar com ele.

— Creio... Ó Ezequiel... — disse ele, olhando-me bem — a propósito


preciso lhe falar...

— Sim. Fale.

— Sei que tu és um bom moço. Por isso trato-o de filho... O vira nascer...
essas questões literárias não podem nos desunir...

— Claro. Claro...

O maestro agora sorrindo:

— Quero apresentar-lhe o Castilho. Se não lhe importar.

— Eu gostaria muito de conhecê-lo.

— Há de conhecê-lo ainda esta semana.

127
— Será para mim um imenso prazer. A propósito, belo cachimbo.

— Um presente de um aluno. Eu só fumava charutos. Acostumei a usá-lo


— apontou-o, com orgulho o belo cachimbo – experiente um dia.

— Ó sim.

— Então... conversaremos – disse o maestro, feliz, quando saiu para se


juntar ao Domingos e a Leopoldo.

Por fim vi Carlos livre. Deixamos o hotel. Na Rua do Arsenal, pegamos


um coupé de praça.

— Ó Ezequiel, meu caro irmão, quero dar-te a nova. Vou me casar com
Margarida e fazer uma longa viagem pela Europa, a começar pela Espanha.

— Isso é sério?

— Sim – disse-me ele com um brilho nos olhos.

— A propósito, que tens à Revista Dos dois Mundos?

— Uma grande novidade.

— Pois fale...

— Há alguns detalhes. E não se pode falar com o barulho das rodas.

Ordenou ao cocheiro que fosse para o Grêmio, na Rua de S. Francisco. No


Grêmio, reencontramos o velho poeta Armindo Braga, elegantemente vestido,
com uma flor na lapela do paletó azul, com um chapéu panamá e uma bengala de
castão de ouro. Quase bêbado, sorrindo com um bafo de Whisky. Abraçou-me,
abraçou Carlos novamente e beijou-lhe. E anunciou, com pompa, a sua partida
para Londres na manhã seguinte.

— Londres nessa época do ano é formidável – disse Carlos.

— Faça uma boa viagem, Sr. Armindo. E não se esqueça de levar muitos
agasalhos – disse eu.

128
Numa sala ao lado eu percorria uns jornais soltos sobre a mesa, enquanto
Carlos ainda se despedia do velho poeta. De aspecto pachorrento, o velho gordo,
de dentes estragados e barba mal aparada, ia a Londres exilar-se por dois anos,
para se dedicar a um livro de poesias realistas.

— Já tenho o título! – exclamou o velho para Carlos. O trigo e o joio.

— Boa sorte em seu livro. Faça uma boa viagem.

— Lhe mandarei logo um exemplar! – gritou da porta, e partiu.

Carlos pedira um cognac para um garçom que passara e entrara na sala,


espalhando no rosto um sorriso.

— Pois tu conheceste o talentoso Antero de Quental, hein. Que honra –


disse batendo de leve na mesa.

Sentou-se à mesa, abrindo a Revista Dos dois Mundos e disse:

— Veja Ezequiel. Veja essa foto. Não a reconhecem?

Era a foto de corpo inteiro duma bela rapariga ao lado de duas ricas
senhoras.

— É a mesma mulher que vimos entrar no trem, na Estação de Madri –


continuou Carlos,— que fora se sentar no último banco, com uma senhora, a tia...
é a mesma rapariga Ezequiel, a Joana – disse Carlos apontando com o dedo
indicador a foto impressa em destaque.

Franzir a testa e encolhi os ombros e instalei o monóculo que usava só


para ler de perto:

— Meu caro, é de fato muito parecida, ao talvez seja ela mesma — disse
eu desanimado, contemplando a bela figura de traços magníficos, de dentes cor de
pérola, com um longo cabelo solto sobre as costas, em belas madeixas negras e
com lindos lábios finos.

— Que há contigo homem? ...que desânimo.

129
Era de fato, Joana ao lado da Condessa de Abranhos e a senhora Grevy,
uma portuguesa viúva de um milionário americano.

— Vamos agora encontrá-la – disse Carlos animado. – leia isto:

“A Família Ávaro deixou Paris.


Vieram habitar Lisboa na mansão do Bairro das Janelas Verdes...”

— Mas ela já deve estar casada, com algum Conde ou Marquês ou até
mesmo com alguém da Família Real.

— Creio que não Ezequiel. Veja as suas mãos –— disse mais uma vez
apontando a foto — não há nenhum anel, exceto um anelzinho de rubi no dedo
miudinho – e leia mais isto:

“A Família Ávaro é composta por seis ilustres

Portugueses: O patriarca, Sr. Aloísio Ávaro (dono duma companhia


de navios cargueiros). O Sr. Renan e D. Helena e os filhos. William (Advogado
formado em Paris), Joana de vinte e dois anos e uma tia Elizabeth Gordoh.

Serão recebidos oficialmente em Lisboa, numa festa, na residência


de nome: Palacete da Luz. Do Conde de Salesman...”

— O melhor vem agora Ezequiel. Este Conde é amigo de Ranulfo, que


decerto será convidado e dará um jeito de te levar com ele. Afinal de contas, você
já é figura ilustre nessa pobre cidade.

Fiquei um momento a pensar, observando o Carlos, que me olhava, com


um sorriso maroto, esperando a minha resposta.

— Sim... estarei lá.

Deixamos o Grêmio em silêncio e subimos o Chiado a pé. Era uma noite


tépida, serena e quente. Uma calma infinita cobria a cidade. Caminhávamos
enquanto Carlos batia levemente sua mão direita em meu ombro esquerdo, muito

130
lentamente, e com a outra, acenando num gesto mudo, como sempre, um
conhecido que passava na outra calçada. Uma charrete passou. De dentro alguém
o cumprimentou, e outro mais devagar, com os estores erguidos. Reconhecemos
logo uns amigos.

— Era o André?

— E o João Miguel — disse eu.

— Aquele era o Miguel? Como está mudado – disse Carlos.

— Deve estar pensando o mesmo de nós.

— De você, principalmente, já com os fios de cabelos brancos.

— E você, com essas profundas entradas de calvície.

— Oh. Não fale em calvície.

— João Miguel casou-se com uma bela espanhola, não faz dias.
Contara-me o Domingos.

— Aquela rapariga alta, de cabelos encaracolados e de grandes olhos


negros, da Rua de São Marçal? A enteada do Mendonça?

— Sim, a conheceu?

— A vir passar por três vezes defronte a loja de Margarida, a me olhar de


soslaio... que belos olhos negros.

— É verdade. Ela tem grandes olhos negros.

— Um corpo escultural...

— E tu agora resolveste se aquietar.

— Sim. Vou me casar...

— Já era tempo...

131
— Me veio esses dias uma vontade de aquietar-me, me casar. Viver num
lar feliz, numa casa florida, aberta ao sol. Ao Norte da França ou até mesmo aqui
em Portugal.

— O que diz Margarida?

— Já havia me dito isso antes.

— Ah...

— Que te parece?

— Já era tempo — repetir rindo.

Já nas calçadas do Loreto, íamos rindo, relembrando de tantas coisas. De


como Carlos conheceu Margarida e duma antiga paixão que tive na França. A
interessante Adeline.

— Por que tu não se casaste com ela?

— Ela preferiu casar-se com um homem mais rico – rimos juntos.

Vimos sair da casa Havaneza o Domingos e o Leopoldo, a nos olhar com


um ar de interrogação. Juntaram-se a nós. Fomos terminar aquela madrugada no
Hotel Aliace.

132
“ Esse ano passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram,
arvoredos murcharam. Outros anos passaram. ”

Os Maias.

Eça de Queiroz

133
Capítulo 10
Carlos casou-se com Margarida uns meses depois, numa cerimónia
simples, no bairro de S. Vicente onde Margarida tinha uns parentes pobres.
Compareceram aquele dia os fiéis amigos. Entre eles estavam: Domingos,
Leopoldo, Augusto de Castro, Armindo Braga e Ranulfo Peres; uns amigos da
casa Havaneza, do Grêmio e do Jockey Club da Travessa da Conceição. Eu fui
com Joana, um dos padrinhos, e William, o irmão de Joana, com sua bela
parisiense também. William já era amicíssimo de Carlos, se deram muito bem.

Casei-me com Joana no ano seguinte e fui morar com ela na residência dos
Ávaro na mansão do Bairro das Janelas Verdes, onde vivia a nata da sociedade
lisboeta. Era em janeiro de 1866 a “década das revoluções”. Em dezembro de
1865, um domingo cedo, eu fui com Carlos e Margarida a um culto na pequena
Igreja Presbiteriana da Rua das Flores. E de tarde eu os acompanhava, sob uma
chuva fina e miúda, até a Estação de trem de Santa Apolónia. Viajaram pela
Europa por quase seis anos. Por esse tempo nasceram meus dois filhos; Miguel o
mais novo e Maurício o primogênito e neto favorito dos Ávaro. Nesse período, no
entanto, os pais de Joana retornaram a Paris, com o pretexto de que não se
adaptaram ao clima de Portugal. O velho Ávaro andava pela Inglaterra. Eu me
mudei para a Rua de S. Francisco o consultório médico, num edifício elegante,
numa sala maior, com o gabinete separado por um reposteiro de repés vermelho.
Num endereço de maior conhecimento.

Ah se quiserem saber de como reencontrei a Joana e a conheci, foi mesmo


na festa da casa do Conde de Salesman. Depois daquele dia passei a frequentar
sua casa.

Durante dois anos, os dois últimos da histórica década de 60 anos de


grande agitação política, social e cultural, eu passara tristes, entediados e
intermináveis dias, naquele moderno e luxuoso consultório médico, decorado e
mobiliado ao gosto de Joana.

No outono de 1870, eu visitei pela primeira vez um povoado. Ali fiquei


por três semanas. Depois caminhei numa jornada ao Alentejo, pelos descampados:
134
a cavalo, a pé e até num velho coupé de um paciente, que me contara sobre sua
vivência ali desde criança.

De noite eu ia descansar numa velha estalagem, onde, num quarto úmido,


sem forro, havia carpetes velhos no chão, cheirando a mofo e poeira; e as paredes
em reboco grosso, cheirando a tijolo cozido. O leito era tão velho e carcomido,
que parecia estar ali há uns cinqüenta anos, coberto com um lençol de chita
remendado.

Cedo, ao raiar do dia, descia para o café. Sentava-me numa mesa


comprida, retangular, com outros senhores em trajes mais simples, com a bolsa de
trabalho a tiracolo. Tomava um café quente com o pão barrado com manteiga, e
ficava a conversar com um e com outro. A perguntar à família, à saúde dos filhos
— A esposa estava grávida, um dos filhos sofria de febre há dias. Uma criança
morrera de pneumonia. O hospital mais próximo ficava a uns quinze quilômetros.

Num povoado para os lados de Beja, conheci um velho senhor, que há


semanas sofria de pneumonia, num barraco pobre e pequeno. Ali morrera... não
tive tempo de salvá-lo.

Fiquei assim por quase um ano, a distribuir remédios e a atender a pobre


gente carente de tudo. Nos seis primeiros meses eu não estive sozinho. Um primo,
um rapaz miúdo e raquítico, de língua solta, o pai de Virgínia, que se dizia
interessado por medicina, me acompanharam nos primeiros trabalhos. Quando
este retornara a Lisboa, contara tudo o que fiz nas viagens, para um jornalista do
Diário de Notícias. A notícia ecoou por todo o país. Quando retornei a Lisboa,
numa manhã de sol forte, de um céu azul-ferrete, eu fui surpreendido por um
caloroso número de pessoas à porta do meu consultório.

— Tu estás a fazer um excelente trabalho Dr. Ezequiel. Já pensaste em


entrar para a política? – perguntaram-me um jornalista da Gazeta Ilustrada.

— A custo próprio, tu estás a distribuir remédios, e a atender a classe


miserável do país. Parabéns Dr. Prado — disse-me uma velha beata.

— Tu és de fato um homem de bem. Eu tenho uma avó em Beja. É tão


pobrezinha. Obrigado doutor – disse-me depois uma bela rapariga que passava.

135
— Olá Ezequiel — disse o Domingos tocando-me o ombro, já quando eu
estava a entrar em meu consultório – preciso falar-lhe, um instante.

— Pois sim. Vamos entrando.

— Li o Diário de Notícias. Estais a dizer que tu tens gastado uma fortuna


em remédios para os “pobres”, e que fizera inúmeras consultas gratuitamente —
disse, pendurando o chapéu no aparador, e tirando as velhas luvas.

— Exageram Domingos — disse eu tranqüilamente.

— O que pretendes tu com isso?

— O que pretendo? Ajudar esses “pobres” meu caro...— disse, repetindo


com aspas, indignado para o imbecil, que esteve a me olhar com uma fisionomia
de bêbado, sentado defronte a mim, apoiando as mãos ao cabo da bengala. Vinha
com uma velha sobrecasaca parisiense e com calças brancas. — o que te traz
aqui? — perguntei logo.

— A Joana...

— Que tens a Joana?

— Devo lhe falar porque sou seu amigo. O estimo muito.

— Sim.

— Quando tu estiveste fora, a Joana esteve a receber em sua casa visitas


frequentes, de certo advogado...

— É para dizer isso que tu me vieste aqui?

— Não, Ezequiel — disse meio embaraçado, com os olhos baixos —


preciso mesmo de um empréstimo. Estou falido.

— Ah... Porque não disse logo. De quanto precisas?

— Quinze tostões apenas – disse ele, correndo os olhos pelo gabinete.

136
— Tu estás mesmo falido meu caro... — me espere um momento. – Corri
até uma estante, puxei uma pasta, e tirei dela um envelope que continha cinqüenta
tostões, era um pagamento de um cliente.

— Muito obrigado Ezequiel...

— Pague-me quando puder.

— Muito obrigado. É realmente o que eu preciso — disse emocionado,


baixando os olhos marejados.

Domingos Gonçalo de Melo. Era de uma família de classe média de


Leiria, pouco numerosa e sem parentela. O pai. Gonçalo de Melo era dono duma
fábrica de luvas e chapéus. A mãe, Maria Lara Lopes de Melo e sua única irmã
Laurinda, trabalhavam nesta fábrica com o seu pai e alguns empregados, quando
Domingos era ainda criança. Domingos estudou em Paris até aos vinte anos.
Retornou a Portugal e pouco tempo depois, casou-se com uma viúva feia, com
rugas pelo rosto, de Almada, mas com um dote de 60 mil Contos de Reis. A velha
veio a falecer uns meses depois. Domingos, então: belo, viúvo e rico passou a
gastar a sua herança pelos mais belos hotéis de Paris. Lá estudou piano e até tocou
em alguns estabelecimentos parisienses, mais por hobby que por dinheiro. Em
1863 veio definitivamente habitar Portugal. Fez faculdade numa pequena
instituição em Almada e anos depois passou a lecionar Literatura numa tradicional
escola de Lisboa. Mas, solteiro e pobre, logo se habituou aos botequins, à bebida e
ao dominó.

— Lhe pagarei com juros Ezequiel. Muito obrigado amigo. A propósito,


tem notícias do Carlos?

— Me escreveu... disse que tudo está a correr muito bem em Paris, e que
logo aparecerá por cá.

— Oh. Paris...

— Espero vê-lo melhor Domingos.— Ainda tenho esperanças. Até logo

— Obrigado Ezequiel. Até.

137
Em 1871 Carlos veio a Lisboa com Margarida. Chegou robusto, mais
corado, agora no rosto gordo; usando barba. Uma barba negra e bem aparada, e já
com sinais claros de calvície. Margarida chegara também mudada. Grávida de seis
meses e com manchas na pele da gravidez, mas ainda muito encantadora. Ficaram
hospedados em minha casa. Carlos veio a negócios, mas pretendia passar uma
temporada em Sintra e depois retornaria à Paris, onde pretendia habitar por longos
anos.

Carlos tinha deixado Margarida em casa na companhia de Joana. Correu


para o meu consultório. Era um dia ensolarado, mas soprava ligeiramente um
vento fresco. Eu tinha ficado todo aquele dia no consultório, relendo uns
telegramas e à pena, escrevendo cartas para uns ilustres clientes. Pedindo
desculpas por minha longa ausência em Lisboa.

— Ezequiel. Paris é uma terra. Como diz o Ranulfo, é o berço da


civilização.

— Tu viste o Ranulfo por lá?

— Sim. Numa tarde no Hotel Bolívar.

— Sabe o Armindo Braga. Faleceu essa semana em Londres.

— Meu Deus. Que perda para nós.

— É verdade... soubemos pela Revista Literária de Londres. Morreu de


tuberculose.

— Que pena! E o seu livro de poesias Realistas?

— Arrancou muitos elogios dos críticos ingleses. Mas não obteve sucesso
junto ao público, nem de lá e nem daqui.

— Velho Armindo...

— E vocês vão definitivamente habitar Paris.

— Muito em breve, até ficaria por cá, mas Margarida prefere criar o nosso
filho em Paris.

138
— Margarida tem bom senso.

Carlos acendeu um charuto, dando lentos passos pelo gabinete. Com o seu
sorriso de sempre me dissera:

— Viu como a Margarida está linda? E que bela barriga.

— Sim... tu viste os meus meninos?

— O Maurício é a tua cara, o outro é a mãe.

— Este saiu exatamente como a mãe. Ama o luxo da casa. Já acompanha a


mãe aos teatros e tem habilidade com o piano... O Maurício saiu . Adora uma
aventurazinha. Chorou muito quando eu deixara Lisboa. Chorou porque quiseram
me acompanhar.

De súbito, Carlos fez-se sério. Dera uma tragada nervosa no charuto, outra
mais longa. E pensativo, disse cravando-me um profundo olhar:

— Eu soube o que tu andas fazendo... De suas viagens também. Estive a


ler os jornais... andam me interrogando... estais a enlouquecer homem! Tem em
casa uma bela mulher, crianças para educar, um consultório luxuoso. Sem contar a
sua reputação de excelente médico. Ou talvez o melhor que esta hipócrita cidade
possui. Mesmo assim tu estás a largar tudo. Para quê? Para se meter em aldeias;
povoados e lugarejos, para se embrenhar em matas? Foi para isso que estudaste
tanto em Paris? Para isso que viestes a Portugal?

— Oh, acalme-se Carlos. Estás vendo de um anglo diferente. Não é bem


assim.

Ele calou-se respirando fundo, dando lentos passos pelo gabinete, com a
cabeça levemente inclinada, olhando-me de vez em quando muito sério.

Carlos era muito conservador. Agora mais que nunca. Jamais se afastaria
da família, e se possível, não mudaria sequer a sua rotina de trabalho.

— Deixe lá isso homem – disse com um riso triste, e continuou num tom
de preocupação na voz:— isso é coisa para a Saúde Pública, para o governo. Não
são coisas para nós, profissionais conceituados.

139
— Prefiro ficar a atender ao povo pobre, do que ficar a atender a essa
gente hipócrita de Lisboa... E o porquê desse espanto? Eu já tinha lhe dito isto
muito antes.

— A Joana contou-me tudo. Disse-me que tu ficaste quase um ano fora,


com o imbecil do Teixeira, e nada ganhaste.

Arremessou furioso o charuto apagado na lixeira, levando as mãos aos


cabelos.

— A Joana..— continuou enxugando a testa com um lenço, que tinha


acabado de tirar do bolso – mais calmo, disse:— jovem encantadora e rica.
Passando os meses naquele casarão, sozinha, estando a receber visitas frequentes
em sua sala, de raparigas e rapazes de sua mesma idade. Pensaste nisso? Decerto
a muitos que ficam aí, com o sangue a ferver quando a ver. Fique em casa homem.
Retorne ao seu trabalho aqui no consultório... ouvir dizer também que Joana
recebera em casa muitos convites para você. Para palestras sobre a medicina
moderna e as plantas medicinais da Amazônia. Convites vindos da Alemanha,
França e Rússia.

Sorrira de repente, dando novos passos pelo gabinete, levando a boca um


novo charuto apagado, e tirando-o:

— É isso! – exclamou de súbito — faça uma viagem à Rússia e consiga


levar a Joana e as crianças. Respire novos ares. As crianças precisam conhecer
outras culturas. A Joana precisa deixar aquela casa.

— Não tente me convencer disso ao daquilo Carlos. Eu sei muito bem o


que devo e o que não devo fazer. Tenho os meus planos. Que Joana tenha
paciência. E acabou-se. Basta!

Ouvimos passos pelo corredor, quando alguém erguera lentamente o


reposteiro de repes vermelho. Era o William.

— Olá, cavalheiros. Estou a atrapalhar?

— De modo algum William – respondi tranquilamente.

— Eu estava de passagem. Encontrei a porta aberta e...


140
— Como está a Catarine? — perguntou Carlos.

— Muito bem obrigado. A propósito, retornaremos hoje à Paris.

— Já? — disse eu.

— É só por uma semana Ezequiel. Estaremos de volta para acompanhar as


Conferências Democráticas.

— Logo parto definitivamente para Paris. É claro, depois das


Conferências. Quando tu fores novamente William, me visite na Rua Belle
Chasse, 1800. Numa casa de quina, florida com camélias e com grades negras de
ferro na frente, com o teto em ponta.

— Rua Belle Chasse, eu conheço. O visitarei sempre que puder, querido


Carlos.

— Bem. Preciso ir — disse Carlos tomando o chapéu de sobre uma


secretariazinha – vou ao Aterro visitar um antigo amigo.

— Também vou para aqueles lados – disse William apoiando-se aos


ombros de Carlos.

— E tu ficas por aqui? — perguntou-me Carlos.

— Ainda mais umas horas... infelizmente meus queridos.

Saíram animados, conversando como se fossem velhos amigos.

O William, meu único cunhado, se deu muito bem com Carlos.


Tornaram-se grandes amigos.

Era mais do que natural as palavras de Carlos. Eu as compreendia muito


bem. Pois outros já me tinham dito isto. Qualquer cidadão comum diria o mesmo.
Ainda mais em meu caso: Jovem talentoso e rico, casado com uma bela mulher,
(apesar de obter já certa experiência), eu ainda estava em começo de carreira.
Portanto era mais viável ficar em Lisboa, a atender clientes ricos; ir descansar no
final da tarde em casa, no conforto, ao lado da esposa e dos filhos. Longe dos
insetos dos povoados, onde uma criança morre a cada instante de pneumonia.
Dormir num leito quente ao lado da esposa, cheirando a água de alfazema, em vez
141
de ficar a dormir desconfortavelmente num quarto quente e abafado de uma velha
estalagem, cheirando a tijolo cozido? Ou de manhã bem cedo, compartilhar com
os filhos um café primoroso? Ao em vez de ficar a comer pão barrado com
manteiga. Sem nada a ganhar. Ganhar? ... dei-lhes duas moedas se pensarem que
em tudo é necessário ganhar...

142
143
Tudo que te vier à mão para fazer , conforme as tuas forças, porque no
além, para onde tu vais, não há obra, nem projetos, nem conhecimento, nem
sabedoria alguma.

Eclesiastes 8, 10

144
Capítulo 11
No Grêmio, na Havaneza e no Jockey Club da Travessa da Conceição,
comentavam de um só assunto: às Conferências Democráticas no Casino
Lisbonense. Fora dessas conferências há um ciclo de palestras. Era a
consequência da agitação política, social e cultural, iniciada no ano de 1860 e
intensificada em 1864, quando foi inaugurada a Estrada de Ferro Beira Alta. A
essas agitações dera-se o nome de Questão Coimbrã.

As Conferências Democráticas estavam marcadas para o dia 22 de maio.


Nesse mês, sob uma chuva fria e miúda, chegava a Lisboa, três dos principais
conferencistas. Era um domingo cedo de missa. Passaram numa charrete, com os
estores erguidos, pela Rua de São Francisco, Antero De Quental, Augusto
Soromenho e Adolfo Coelho. Augusto Soromenho e Adolfo Coelho acenaram
para um grupo de entusiasmados senhores (apoiadores do movimento realista) à
porta do Grêmio. Antero De Quental acenou por último, com um gesto tímido e
rápido.

Da varanda de meu consultório eu assistira ao lado de Carlos a travessia


dos poetas. Carlos sorrindo falara com seu humor de sempre:

— Que belas figuras fazem aqueles poetas... Adolfo Coelho e Augusto


Soromenho demonstram-me muita modéstia em seus gestos, quanto a Antero de
Quental, talvez por causa de sua simpática pessoa, seu porte e suas palavras
sempre corretas, uma altivez...

— Quase todo mundo pensa assim. Até conhecê-lo.

— É verdade. A propósito Ezequiel, o que tu pensas dessas conferências?

— Sem dúvida será o maior evento do século. E o movimento prevalecerá.

— É por isso que eu comparecerei inteiramente nessas conferências. Tu


não as perderás Ezequiel, perdera? Eu não as perderei por nada.

145
No dia 18 de maio numa edição histórica, o Jornal Revolução de Setembro,
publicara o programa dessas conferências:

“Abrir uma tribuna onde tenham voz às idéias e os trabalhos que


caracterizam esse movimento do século, preocupando-nos, sobretudo com a
transformação social, moral e política dos povos;
Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim, nutrir-se dos
elementos vitais de que vive a humanidade civilizada;
Procurar adquirir a consciência dos fatos que nos rodeiam na Europa;
Agitar na opinião pública as grandes questões da filosofia e da ciência
moderna;
Estudar as condições da transformação política, econômica, religiosa da
sociedade portuguesa;
Tal é o fim das Conferências Democráticas’.

A primeira conferência estava marcada para o dia 22 de maio daquele ano


de 1871.

No dia vinte um, numa noite fria e seca, houve em minha casa um jantar
de confraternização. Participaram com alegria, demonstrando ainda amizade e
cordialidade a mim: O Domingos, agora mais pobre e magro, vestido com uma
velha sobrecasaca verde, faltando dois botões, com calças gastas e sapatos bem
envelhecidos e com os dentes inteiramente estragados. Entretanto, vinha com os
bigodes frisados e os cabelos grisalhos bem anelados. Estava também o Leopoldo,
vestido em trajes ricos. Tinha se casado com uma solteirona rica. Leopoldo era um
belo e robusto português bem disputado. Casaram-se com um dote de cem mil
contos. Estava também o Ranulfo Peres, recém chegado de Paris, com algumas
suíças ruivas, e ainda solteiro. E Carlos com Margarida, sempre risonhos. O
professor Afonso Almeida, louvando sempre a Antero de Quental. Sua pessoa
incomparável. Afonso Almeida era esguio e forte, e tinha o dom da simpatia. Era
Casado com D. Olga Almeida Freitas. Uma gorda senhora de Coimbra. Afonso
Almeida, depois de casado, trazia pela primeira vez, a D. Olga a Lisboa. Olga
tinha um belo rosto, com olhinhos bem azuis. Era uma das mulheres mais
intelectuais de sua época em Portugal. Possuía um vasto conhecimento da

146
Literatura Européia. Deixara a sua sala, com muito custo. Pois sofria de
reumatismo. Mas havia declarado que não perderia por nada as Conferências
Democráticas. Estivera sentada a um canto toda à noite.

Esteve presente também o bom Sebastião Damasceno, mais gordo e


pálido, com um enorme bigode amarelado pela fumaça do cigarro. E estava cada
dia mais próspero. O seu hotel em Sintra estava a lucrar muito, pois a época era
propícia. Ficara a andar pela sala, em passos lentos, silenciosamente, com um
charuto cubano. Também contei com a presença do bom William, vestido como
um perfeito inglês, integralmente belo, pomposo e gracejador, ao lado de sua
formosa espanhola Catarine. Uma jovem bem feita de corpo, de pele alva e olhos
vivos. Brilhando quando sorrir. E por fim Joana, rastreando um belo vestido de
seda azul. Indo cumprimentar um e outro, já comovida com a D. Olga. Rindo para
todos, e voltando-me para mim, feliz e orgulhosa.

Ela adorava dar jantares e receber visitas ilustres. Exibir seus caros
vestidos, os anéis de ouro e rubi, um colar de diamantes e as pulseiras de ouro,
compradas em Paris. Mas adorava, sobretudo, exibir sua casa: A sala de musica,
com um piano negro de cauda, mandado vir da Itália; as cortinas de Cretone, os
quadros em pintura a óleo, adquiridos em Paris e Londres. A sala de jantar com
uma enorme mesa de carvalho lavrado e ao centro um armário envidraçado com
pratos de porcelana italiana.

Estávamos numa sala ao lado da sala de jantar – uma salinha mobiliada e


decorada com móveis Luiz Quinze, tapetes e peças exóticas. Objetos de
decoração.

Conversávamos pela sala numa excitação de festa, de reencontro. Pois


alguns daqueles dias não se viam desde 1865, no jantar em Coimbra.

As Conferências Democráticas iniciaram no dia seguinte. O professor


Afonso Almeida esfregava suas mãos, muito ansioso e sorrindo.

— O dia de amanhã ficará para a história – disse— o professor.

— Será um marco na história da literatura no mundo – ressaltei.

147
— Eu não vejo a hora de ver o nosso Antero subir à tribuna – comentou o
professor rindo regaladamente.

Um criado alto servira champagne. Domingos pegara uma taça. Era


festeiro, bebia até ficar bêbado e ficavam a dizer bobagens contra Antônio
Feliciano de Castilho e Augusto de Castro. Falara que o velho Castilho havia
deixado Lisboa, e voltaria no final das conferências. A verdade é que ninguém viu
aqueles dias em Lisboa os dois velhos poetas românticos.

Houve uma grande surpresa quando um criado anunciou duas visitas. Era
Adolfo Coelho e Augusto Soromenho que vinha do Central.

— Queiram entrar cavalheiros, sejam bem-vindos em minha humilde


residência – disse eu maravilhado, com tão ricas personalidades.

— Não se incomode, Dr. Ezequiel Prado e obrigado, mas estamos apenas


de passagem. Sabemos que o velho Afonso anda por cá – disse-me Adolfo
Coelho.

Sim, está por cá. E não é nenhum incomodo, esta noite é de


confraternização. Começaremos o primeiro dia de uma semana extraordinária.

— Olá meus queridos! – Gritou vindo da salinha o professor Afonso


Almeida.

— Dá cá um abraço meu velho – disse Adolfo Coelho com um sorriso.

Abraçaram-se forte por uns segundos sorrindo, clamando a vitória do


Realismo.

— Você como vai meu garoto? – disse Afonso para Augusto.

— Muito bem, obrigado, professor.

— Concentrado para sua pronúncia?

— Totalmente.

148
Adolfo Coelho pronunciaria o “ensino” na quinta conferência, em 19 de
junho. Começou logo a falar do assunto com o professor. Augusto Soromenho
pronunciaria a “Literatura portuguesa” em 5 de junho. Augusto Soromenho
penetrou na salinha, com um olhar vivo e cumprimentara a cada um até parar em
Carlos, abraçaram-se, se conheciam. Carlos logo o apresentou a Margarida. Feliz
mostrou a barriga dela. “Será um homem, creio, com os olhos da mãe”. Do outro
lado, o professor Afonso Almeida apresentava com orgulho para todos, o seu
ilustre amigo Adolfo Coelho. Afonso Almeida era uma figura modesta. Não
possuía riqueza alguma. Mas era muito respeitado em Coimbra, pelo seu
conhecimento e pela forma de como lecionava. Era feliz com o emprego que tinha
e, sobretudo por ser amigo de Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins
e Antero de Quental.

— Pois meus queridos, eu me sinto um pouco responsável pela formação


intelectual destes jovens cavalheiros — disse o professor para Sebastião
Damasceno, William, Domingos e Leopoldo, que estavam a um canto.

— Então somos gratos a você — disse William.

— Obrigado Sr. William... Mas seja tu grato a Antero de Quental.

— De fato, Antero de Quental vem fazendo muito para a nossa Literatura


– disse o Leopoldo.

— É o guia de sua geração – disse Domingos.

— Um homem de profunda sensibilidade — terminou Leopoldo.

Essa conversação se prolongou. Sebastião Damasceno comentou de como


adquiriu fortuna. Elogiou a Joana. Sua beleza incomparável, sua postura e seus
modos de rainha. Falou de Sintra. “Visitem-me, faça-me esse favor, dê-me esse
prazer. Todos vocês”. Domingos, em silêncio, contemplava num enlevo de artista
a bela espanhola Catarine.

Augusto Soromenho e Adolfo Coelho voltaram para o Hotel Central.

Um escudeiro anuncia o jantar. Eram oito horas.

149
— Senhoras e senhores, espero que não fiquemos só neste dia — disse eu
na cabeceira da mesa – que possamos nos encontrar mais vezes nessa sala.

— Espero vê-los novamente — reforçou Joana, com um belo sorriso — e


continuou com doçura:— D. Olga, digo isso especialmente para ti.

— Ah... Minha menina. Sou muito grata. Até viria mais vezes se eu
pudesse, mas as dores aumentam sempre que me desloco de casa. Há anos vivo só
em Coimbra.

— Mas temos hoje charretes confortáveis, D. Olga. Mandaria o cocheiro ir


buscá-la – disse eu — e continuei:— é necessário que a senhora fique aqui mais
uns dias, quero vê-la em meu consultório, precisamos tratar esse reumatismo.

A Joana, ao meu lado, ficou com os olhos em mim, brilhando de felicidade


e de orgulho. Por esse tempo eu havia encerrado minhas viagens para o interior de
Portugal. Para ela, isso era como um “rio de alegria que se encontrava com um
mar de felicidade”. Mas eu iria voltar, minha alma clamava por isso.

Um escudeiro passou com as bandejas de arroz e os assados.

— Que cheiro bom! — exclamou Domingos.

— Tu ainda estás a lecionar, professor Domingos? — indagou o professor


Afonso Almeida.

— Tenho cá uma meia dúzia de alunos – disse o Domingos, sem tirar os


olhos da mesa.

— E as suas aulas de piano? Ouvir dizer que tu és um exímio pianista —


disse Sebastião Damasceno.

— Mas eu não tenho o devido reconhecimento, meu bom senhor — disse


o Domingos melancolicamente.

— Ainda o levarei para tocar em meu hotel – disse prosaicamente o bom


Damasceno.

— O Domingos tem inúmeros talentos — ressaltou o Leopoldo, bem


abotoado em seu terno de linho.
150
— E tu Ezequiel. Como me andas tu? Li os jornais — disse o professor,
parando com o talher no ar.

— Exageram Afonso... exageram.

Houve um silêncio embaraçoso. Carlos ficou a me olhar segurando um


sorriso. Ficaram a comer.

D. Olga quebrou o embaraçoso silêncio dizendo:

— Meus parabéns pelo seu filho Miguel Dr. Ezequiel. É um belo garoto.

— Obrigado D. Olga. O Miguel é uma criança muito espirituosa

disse eu bastante lisonjeado.

— Andam comentando no Liceu, de seu talento para com o piano — disse


o Leopoldo.

— Sim. Ele tem talento para a música — afirmei.

— Quanto ao mais velho? – disse D. Olga que não o tinha conhecido


ainda.

— Um menino de virtudes e caráter — disse eu com orgulho.

— Ainda estes dias eu o flagrei lendo poesias realistas. E há outro dia


mesmo, ele havia brigado com uma menina no colégio, porque a pobre de Cristo
defendia a poesia romântica – disse graciosamente a Joana. O Maurício saiu
também com o talento para os debates. Fala como um advogado.

Todos riram.

— Crianças adoráveis – disse o professor Afonso Almeida – e onde eles se


encontram?

— Como todas as crianças, já estão a dormir – disse Joana.

— Em minha modesta concepção, digo eu que, a criança tem que agir


como criança. Tem que brincar, tem que correr, para crescer forte e saudável e
nada mais – disse Sebastião Damasceno.

151
— Mas, no entanto, é na infância que a criança aprende sobre a moral e os
bons costumes – disse D. Olga — cravando um significativo olhar em Sebastião.

— É também nessa fase que se forma o caráter – disse eu.

— Penso eu que a disciplina física na criança, além das demais, é


extremamente fundamental, principalmente para os meninos... é necessário que
durmam cedo e acordam cedo. Que trepam nas árvores, que tomem banho de
cachoeira, que caminhe ao pôr do sol – disse Sebastião Damasceno.

— Nisso eu concordo! – exclamou Carlos – o meu filho que já está para


nascer terá semelhante disciplina.

— O meu Mauricio tem essa natureza — disse a Joana — ele decerto


crescerá como um bom varão, forte e rijo.

— Sim. Minha rica Joana. Assim como o meu menino. Quero vê-lo como
um homem de luta e braços fortes – continuou Carlos, animado – sem essas
meninices de agora.

Com essa declaração de Carlos, a discussão prolongou-se animadamente, e


tomou outros rumos.

O jantar terminara às dez horas.

Na sala de música, ficamos a ouvir a Joana ao piano tocar Chopin.

— Minha menina. Toque para mim a Sonata de Beethoven – pedira


Sebastião Damasceno, já com um carinho paternal.

Ela tocava brilhantemente, com as mãos delicadas e finas, ricas em anéis.


O longo cabelo solto sobre os ombros. Ao final da música, todos bateram palmas
num entusiasmo exagerado e superficial.

Não esperávamos mais nada, quando vimos meu filho mais posso penetrar
na sala de música, vinha com aquela carinha de choro que é peculiar aos caçulas.

— Filho! — exclamou Joana, surpresa, vendo-o entrar, com os cabelos de


quem tinha acabado de acordar.

152
— Este é meu filho mais novo – disse ela, imediatamente.

— Belo menino – disse D. Olga.

— Miguel puxou a mãe, sensível às coisas da vida. Um romântico de


natureza e que já toca piano como um adulto — disse eu, orgulhoso de meu caçula
— terá decerto uma carreira brilhante, como nenhum Prado terá — ressaltei.

Joana cravou-me o olhar, em protesto a esses comentários. Pois seu


favorito sempre fora o Maurício, e isso era visível e notável.

— Toque alguma coisa Miguelzinho — disse D. Olga, encantada com a


beleza do menino.

Ele olhou-me, como pedindo permissão.

— Toque filho.

Sem timidez, Miguel sentou-se ao piano e tocou a trilha sonora de Claude


Debussy, um músico francês que se despontava em Paris com uma música
inovadora e moderna para sua época.

— Que canção extraordinária! — exclamou o professor.

— De fato é de se espantar — disse o Domingo — e que talento tem esse


menino.

— Obrigada Domingos – disse Joana – dirigindo o olhar e um


agradecimento ao Domingos, sujeito a quem ela não se simpatizava.

— Vá para seu quarto filho — disse eu — o Domingos irá tocar também.

Domingos ergue-se para sair com Leopoldo.

— Domingos! Dominguinho. Fique mais um bocado. É a sua vez de se


sentar ao piano. Dê-nos o prazer de ouvi-lo tocar.

— Já se faz tarde Ezequiel – disse ele.

153
— Eu digo o mesmo Dr. Ezequiel. Temos ainda que passar no Grêmio —
disse Leopoldo.

Leopoldo se foi, mas o Domingos, por insistência de todos, se sentiu


importante, ficou, e sentou-se ao piano. Tocou magnificamente, revezando-se com
Joana.

— De fato és tu um excelente pianista Domingos, bravo! — disse William.

— Deveria já está ganhando rios de dinheiro

disse Sebastião Damasceno, muito prosaico, reparando nas vestes


humildes do Domingos.

— Tu és tão talentoso – completou Joana – se rendendo ao talento do


pobre rapaz.

— Neste país a arte é tratada com indiferença – disse o Domingos


melancolicamente.

— A verdade é que aqui tem “um povo” desleixado e despido de gostos –


disse muito sério de sua poltrona, o Ranulfo.

— Pois não é verdade? – disse Joana, concordando com o Ranulfo. Depois


se ergueu, e foi puxar um cordão de campainha que pendia ao lado do piano. Em
seguida, pediu a uma criada que servisse o café.

— É por isso que nossos melhores artistas deixam este país — disse ela
voltando-se, com um ar de indignação na face, que a deixou mais linda.

A criada entrou com as chávenas de café. A conversa seguiu outro rumo.


Domingos, a pedido de Joana, citara uma de suas poesias.

154
Recordar

Tenho do passado boas lembranças

E do futuro, esperanças...

No Presente vivo como se a de viver

De recordações e esperanças vivo.

Numa chávena de café, num som de uma

Banda, na chuva que cai;

No mais puro silêncio vivo.

Oh! ... Bons dias vivi...

Penso agora no que está por vir...

— Muito bem Domingos – disse Joana.

— Tu tens algum trabalho publicado? – perguntou D. Olga.

— Um pequeno volume – disse o Domingos, tímido.

O relógio bateu meia-noite – quando o Domingos se despediu com os


demais. Exceto o professor Afonso Almeida e D. Olga, William, Carlos e
Margarida, que eram hóspedes.

Essa casa, que fora construída por um arquiteto de Paris, em que eu


passara a morar após meu casamento com Joana, pertencia ao velho varão o Sr.
Aloísio Ávaro. Além dessa casa, pertencia-lhe uma parte da mobília. Eram os
móveis da antecâmara e de uma sala, onde continha um divã, a prateleira de
bebidas, poltronas de couro e umas mesinhas redondas de pé de galo, onde ele
recebia o que era raro, seus íntimos amigos do Jockey Club e da embaixada da

155
França, quando vinha a Lisboa. Além disso, pertencia-lhe uma vitória com duas
éguas brancas e uma charrete; uma casa em Sintra, outra no Porto, e umas casas
de aluguel em Leiria.

— E o velho varão, quando vem a Lisboa? – perguntou-me o professor,


franzindo o nariz.

O velho Sr. Aloísio Ávaro, não viria tão cedo a Lisboa, ou talvez não
viesse mais. Apesar de ser português, devido aos seus pais o criarem mais em
Paris que em Lisboa, o velho não se adaptou ao clima português e aos maus
costumes do “povo” de cá. Algum dia mandaria vir a Portugal o seu procurador
para pôr à venda as casas em Leiria, a casa do Porto, a Quinta de Sintra e o
casarão do Bairro das Janelas Verdes. Pois me perguntavam sempre, franzindo o
nariz, uns e outros mais interessados: “quando vem cá o velho Ávaro?” O seu fiel
procurador, um senhor de quarenta anos, seco e arrogante, vinha todo verão a
Portugal para tratar dos negócios da família. “Logo colocarei à venda todas essas
moradias, já tão alquebradas”. Dizia o procurador, torcendo o nariz, batendo com
a ponta da bengala no assoalho.

Em Lisboa. Pádua, como ele era chamado, se instalava quase sempre no


Hotel Sheid, e na mesma semana seguia para Leiria. Mas antes disso, ficava a
andar por Lisboa e a reclamar do país. “Tudo isso não me passa de um pardieiro!
Que péssimo país formamos”.

— Creio que o Sr. Aloísio não se abalará para o nosso Portugal – respondi
ao professor, com a certeza no que estava falando – algum dia ele mandara vir
definitivamente o seu procurador a Lisboa, para pôr à venda os imóveis que aqui
possui inclusive esta casa – completei tranqüilamente, de minha poltrona para o
professor.

— O avô falava-me muito em Paris, de por a venda os imóveis que há em


Leiria, no Porto e em Sintra – atalhou o William:— mas, nunca mencionaram esta
casa.

156
— E tu Sr. William, o que pensas disso? – perguntou o professor,
acendendo um charuto.

— Eu concordo com o velho Pádua, professor. Penso que também já e


hora de pôr à venda essas velhas moradias... que terás decerto venda fácil a algum
estrangeiro.

Em 1880 o Sr. Pádua veio a Lisboa para pôr à venda a casa do Bairro das
Janelas Verdes e os demais imóveis.

157
Capítulo 12
As Conferências do Cassino.
O Espírito das Conferências

Na tarde do dia vinte e dois de março, um dia sem chuva, viam-se grupos
caminhando religiosamente sérios para o Casino Lisbonense. Apesar de muitos
ouvirem falar e dizer, das conferências, nos botecos, jornais e revistas e nas
conversas do Grêmio e da casa Havaneza, havia ainda quem se perguntava: “para
onde vão aqueles homens tão sérios ``.O que se passa no Cassino? ” “O que fazem
em Lisboa esses meninos de Coimbra? ”.

O Cassino Lisbonense abarrotou-se. A cada instante uma charrete nova


encostava-se à calçada do Largo da Abegoaria. Viam-se ricos senhores saltando e
se cumprimentando ante a porta do Cassino. Entre estes estavam: o Conde de
Salesman, o Marques de Alfairs, o Sr. Alvim, o dono da Livraria Imperial e outros
que eu não recordo agora... sem contar dos rapazes do Grêmio e da Havaneza.

Acompanharam-me nesse dia: Carlos, William, o professor Afonso


Almeida e Ranulfo Peres.

No salão do Cassino, todo rumor de vozes cessou quando Antero de


Quental subiu à tribuna. Falou, gesticulou, ora sério, ora sorrindo. A voz forte,
penetrante. Falou sobre “O Espírito das Conferências”.

Causas da Decadência

A segunda conferência, intitulada "Causas da Decadência dos Povos


Peninsulares nos Últimos três Séculos”, também foi pronunciada por Antero de
Quental, no dia 27 maio. Segundo ele, três eram as causas que explicariam a
decadência de Portugal:— A religião,— O Pensamento Jesuítico da
Contra—Reforma, a— política,— O Absolutismo e a Consequente Centralização
do Poder. Ao terminar de falar da política, houve uma pequena manifestação, com
158
gritos, assobios e aplausos. Gritaram “ordem”. E por fim a,— A Economia
Portuguesa Arruinada pela Política Colonialista. Houve nova manifestação, agora
só com uma forte salva de palmas.

Antero de Quental deixou a tribuna, escoltado por quatro homens, entre


eles, reconheci Oliveira Martins e Guerra Junqueiro. Dirigiram-se para o Hotel
Central. Haveria lá um jantar com os conferencistas.

— Caramba, ó Ezequiel. Como fala bem o Antero, hein — disse-me o


William impressionado.

— Achei-o melhor desta vez, mais disposto – disse Carlos.

— O tema desse segundo dia foi-me mais propício — explicou o professor


Afonso Almeida.

— Concordo plenamente — disse eu a todos.

Eram dez horas. Conversávamos no Grêmio. Outros ali conversavam


sobre o mesmo assunto. De fato, não havia quem não se comentasse sobre Antero
de Quental e de suas palavras. Naquela noite de tantos comentários no Grêmio e
nas ruas do quarteirão, poderia já se sentir a vitória e a aceitação definitiva do
Realismo.

Com efeito, no dia seguinte, lia-se em alguns jornais a vitória de Antero de


Quental sobre o inofensivo Castilho.

Apesar do regalo, que se sentia o professor Afonso Almeida em ouvir e


ver a pessoa de Antero de Quental, com sua postura e sua voz firme, o professor
esperava, ansioso, esfregando as mãos, a terceira conferência, marcada para o dia
cinco de junho, a “Literatura Portuguesa”.

Literatura Portuguesa

159
Pois lá estivemos. Augusto Soromenho propunha a criação de uma
literatura efetivamente nacional e ao mesmo tempo criticava a literatura
setecentista e romântica. Terminou o jovem Augusto Soromenho, aclamado por
todos.

No dia 12 desse mês foi a vez de Eça de Queiroz subir à tribuna. Eu não
pude comparecer nesse dia, pois fiquei a sofrer de um forte resfriado. Mas eu
soube depois por Carlos e o Diário de Notícias que Eça de Queiroz, que estivera
alheio a Questão Coimbrã, em 1865 participara com grande destaque nas
Conferências.

Com efeito, foi um dos mais importantes do movimento.

— Surpreendentes pessoas Ezequiel, Eles impunham suas palavras com


muita clareza. Os senhores os ouviam atentos e maravilhados – diziam Carlos
charutando em meu gabinete. “Quem é esse brilhante jovem? ”, perguntaram uns
cavalheiros ao meu lado. “É o nosso Eça de Queiroz” Afirmaram outros – Creio
oh Ezequiel que esse rapaz, o Eça de Queiroz, vai longe. Já se pode notar isso em
seus folhetos.

Havia ainda quem não o conhecia, mas entre os intelectuais, seu nome e
seus artigos e folhetos já eram muito citados.

Naquele ano de 1871, Eça de Queiroz, além de participar brilhantemente


das Conferências Democráticas, fundara com Ramalho Ortigão um folheto mensal
intitulado: As Farpas. Caracterizou-se pelas críticas e sátiras à sociedade
portuguesa e suas instituições.

No Grêmio os comentários dividiam-se entre Eça de Queiroz e Antero de


Quental. Havia quem comentasse sobre Augusto Soromenho.

O Realismo, A nova Expressão da Arte

160
Na Quarta Conferência intitulada “O Realismo como nova Expressão da
Arte", Eça de Queiroz atacou o Romantismo e expôs os valores realistas,
ressaltando o caráter social da literatura e o seu valor como agente de
transformação, atuando sobre uma sociedade obsoleta.

No Grêmio, nos botequins e nas confeitarias, prolongavam-se os assuntos


de cada palestra.

— Vem aí o dia da pronúncia de Adolfo Coelho. Será quente! Causará


polêmica! — disse o professor Afonso Almeida, ao meu lado, caminhando para
casa.

— Promover a mudança no ensino do país. Um país tão idôneo como


nosso Portugal. Causará decerto uma polêmica.

Com efeito, causara.

A valorização das Ciências Humanas &


A Influência Religiosa

161
No dia 19 de junho, Adolfo Coelho subiu à tribuna. Pronunciara o
“ensino” na quinta conferência. Sua proposta era um ensino científico e a
valorização das ciências humanas. Também propunha o fim da influência religiosa
no ensino. “O fim da influência religiosa no ensino do país, não fora também
aceito".

Um murmúrio ressoou no salão. Risadas irônicas, e até protestos, mas


duma minoria.

O próprio Governo, num artigo do “Jornal do Estado” protestou.

“Preocupados com a reação do povo mais idôneo...”

Artigo este que não encontrara mais em nenhum arquivo. Documento


perdido.

Dias depois, com efeito, o Cassino Lisbonense fechara as suas portas.

Salomão Saragga versaria sobre “Os Historiadores Críticos de Jesus, ”


em 26 de junho.

O Fim do Cassino &


O Veto às Conferências

162
O Cassino fora fechado e as conferências proibidas pelo Governo porque,
“Atacavam a religião e as instituições políticas do estado”.

Houve protestos? Sim. Revolta? Não! Pois já representavam, no entanto, a


vitória definitiva do Realismo. Além desta quinta, os temas seguintes seriam:— O
Socialismo,— A República,— A Instrução Primária e,— Dedução Positiva da
Ideia Democrática.

— Era o fim das Conferências. Lisboa voltava a seu curso normal e sua
pobre e cotidiana vida.

***

— O velho Ezequiel suspirou fundo... Olhando-nos com olhos de ressaca e


nostalgia.

***

— Aqueles brilhantes autores e ilustres portugueses, no entanto, mudara o


modo de pensar da sociedade e da Literatura Portuguesa. Rica literatura.

Eça de Queiróz é hoje o mais lembrado, pelo fato de nos ter deixado
simplesmente a melhor obra de nossa literatura. Quanto a Antero de Quental,
apesar de ser o guia daquela brilhante geração, (a chamada geração de 70), pouco
é lembrado, por nos ter deixado miúda obra. Aos demais realistas, exceto Guerra
Junqueiro, Ramalho Ortigão, Teófilo Braga e Oliveira Martins, quase ficaram no
esquecimento.

***

163
A recordar...

Ezequiel Prado nos olhou novamente com esforço, cansado, suspirando.


Lá estava ele, o corpo pesado, afundado na velha poltrona francesa que usava no
gabinete do consultório. Estava falido; sentindo já o peso dos anos. Com a alma
cheia de nostalgia; sentindo a vida passar. Na varanda ficava a repousar todas as
tardes do dia longo. Talvez como eu, ficava a recordar os anos passados.

O meu pai jazia, assim como quase todos que com quem ele andara.
“Ainda há dias”. Contava-me ele, que uma mulher da redondeza, sabendo-o como
bom médico, levaria-lhe uma criança muito adoentada. “A tratei”. Foi a derradeira
vez que ele exerceu a função de médico. Com tudo, sentia-se feliz em ter a
companhia de Judite, a única neta. O melhor presente que a vida lhe deu. Muito
fez na vida. Ajudará tanta gente. Poderia agora descansar em paz. Não como a
mim. Egoísta... que nunca estendeu a mão ao maior necessitado. Sair do meu pai.
Tenho câncer. Vou morrer como ele.

***

— “Na velhice, depois dos setenta é só cansaço e fadiga...” Feliz do


homem que possui de boa saúde e péssima memória – disse Ezequiel Prado.

***

Suspirou tristemente já cansado, com um olhar pensativo. Ficou um


momento a soprar em silêncio o cachimbo.

Já era muito tarde. Não tínhamos sentido o tempo passar. Lá fora era só
treva. Num silêncio, que ouvia o piar duma coruja.

Virgínia entrara com um candeeiro para trocar as velas. Estava com os


olhos vermelhos de sono. Era uma bela morena. Tinha cabelos lisos e rosto fino,
com lindos olhos pardos. Ainda voltou com chávenas de café. Ezequiel Prado,
recostando-se em sua poltrona, saiu em fim de seu silêncio:

***

— Eduardo, já se faz tarde, mais devo contar-te algo – disse, quando de


um quarto ouvimos Judite gritar:
164
— Ó avô! Não está cansado? Há horas que tu estás aí a falar.

O velho sorriu serenamente, mas continuou:

***

— O que devo contar-te agora irá chocá-lo. E decerto, seu pai nunca lhe
contara... mas sinto a necessidade de contar-lhe.

— Seja o que for – sorrir – estou com o espírito preparado para saber do
Sr. Ezequiel – terminei com intimidade.

— Uma manhã, quando tudo parecia estar calmo e na Rua de S. Francisco,


um estranho silêncio fazia. No gabinete do consultório, uma paz de Aldeia. Eu
percorria distraído, as páginas da Gazeta Ilustrada, quando ouvir a porta da frente
se abrir violentamente. Ergui-me sobressaltou, lançando o jornal de lado, quando
vir já, defronte a mim a figura de um homem. Era Carlos, sujo, com a calça
enlameada, com gotas de sangue na camisa; mudo e desalinhado, com os lábios a
tremer de desespero e com os olhos injetados de cólera. Vinha sem o chapéu, com
os cabelos revoltos e a face rubra.

— O que houve Carlos! O que há homem? – gritei .

— A Margarida! Ezequiel... – esforçava-se para falar.

— Que houve?

— Nos deixou... A perdemos Ezequiel... A perdemos...

Foi prostrar-se na poltrona chorando em soluços, fiquei a olhá-lo, absorto,


paralisado, sem entender. Fiquei a pensar no que poderia ter acontecido. Talvez
Margarida o houvesse abandonado e partido para França. A verdade é que eu só
queria pensar nessa possibilidade. Mas lembrei do súbito que Margarida
esperava-lhe um filho...

— E a criança Carlos, nasceu criança?

— Uma menina, Ezequiel. Uma menina.

165
Não era o menino que ele tanto esperava... uma menina loura, com duas
rosas nas fáceis. Nascera com perfeita saúde. Margarida de parto complicado não
sobrevivera.

Após o fim das Conferências Democratas, Carlos partiu com Margarida e


a enteada para Sintra acompanhados do Dr. Eugênio, um velho médico
especialista em partos complicados, que fora amigo da mãe de Margarida.

Na madrugada desse dia, após Margarida suspirar pela derradeira vez,


Carlos desvairado e possesso— “disse-me depois a ama”,— que ele ordenou aos
gritos ao cocheiro, que prudentemente, já o esperava com uma charrete pronta,
que fosse para Lisboa. “Era uma madrugada chuvosa. De modo que a charrete
havia atolado no caminho por duas vezes”— disse-me o cocheiro, muito
espantado, e tão sujo quanto o Carlos. Assim Carlos aparecera àquela manhã em
meu consultório.

***

Ezequiel calou-se. E ficou um momento imóvel, com os olhos fechados.


Pareceu-me por um momento que cochilava. Ficamos esperando. Jorge ficou a me
olhar com os olhos arregalados. O Sr. Lobato já dormia a um canto do sofá. Mas
de fato o Dr. Ezequiel Prado ficou a dormitar por um breve momento. Então eu
tinha uma irmã? Por que meu pai nunca me revelara isso? Fiquei a pensar,
olhando para Jorge.

***

— Carlos ergueu-se como um sonâmbulo, com o charuto apagado na boca


e ficou a andar em silêncio pelo gabinete. Os passos às vezes vacilavam. Não mais
chorava, ria de nervoso.

— Tente se acalmar Carlos, fale comigo, meu querido! Conte-me o que


realmente aconteceu! – clamei a ele.

A voz rouca, cansada, esforçava-se para falar.

— Logo cedo Margarida começou a chorar, mas eu não dei a devida


importância. Era assim todo o dia, desde que chegamos a Sintra. Mas depois

166
começou a reclamar de fortes dores, que aumentava a cada momento. O Dr.
Eugênio estava por cá justamente nesse maldito dia! Disse-me que precisava
comprar luvas e máscara médica. Não tinha um hospital próximo, sem contar que
chovia muito desde sexta e Margarida não aguentava nem se movia na cama...
gritava tanto – disse com as mãos trêmulas, tentando acender o charuto, ria
novamente como louco... E continuou:

— Foi quando pela tarde a ama apareceu-me com uma velha parteira, uma
parteira Ezequiel! – falou chorando. – e eu a consentir que fizesse o parto...

Sentou-se exausto na poltrona em silêncio. Uma lágrima correra na face.


Conseguira enfim acender o charuto.

— Maldita criança! – gritou de súbito.

— Não culpe a criança Carlos, ela não tem culpa. Arrepende-se! – disse eu
impaciente.

Ficou absorto, dando fortes tragadas no charuto.

— Era parto de risco Ezequiel – falava mais calmo – não era minha área,
mas eu poderia ter percebido. Consentiu que o Dr. Eugênio voltasse a Lisboa e a
velha fizesse o parto. Eu sou então o culpado. Hein, eu matei minha mulher! –
gritou chorando, erguendo as mãos.

— Basta! Acalme-se! Também não é assim — disse preocupado.

— Poderíamos escolher entre ela e a criança, não é Ezequiel? —


perguntou-me, sem mais força.

— Talvez Carlos. De qualquer forma ela jamais deixaria de ter a criança.


Fora o desejo dela.

Carlos deixou-se cair no canapé, com os olhos em alvo, lacrimejando.


Ficou assim por um longo momento. Fiquei a olhá-lo tentando achar uma palavra
de consolo.

167
No gabinete um cansaço pesava. Terminei por ficar calado, dando tristes
passos. Mas Carlos, em fim emergiu-se de seu silêncio:

— Como me achas a Joana? – perguntou-me com um estranho interesse,


num tom melancólico.

— Anda vaidosa e fútil como sempre. Mas tem um fato interessante e


curioso: Agora deu para ir às igrejas.

— Ela sofrerá com a notícia, não é?

— Sim... Ela sempre me pedia notícias de Margarida.

— E as crianças?

— Vão bem! Vão todos bem. Obrigado... agora se levante Carlos. Vamos
almoçar. Tu necessitas comer e tomar um banho.

Carlos sacudia as cinzas do charuto, esforçava-se para erguer-se. As


lágrimas abraçaram-lhe os olhos.

— Anda homem!

Ergueu-se em fim, bruscamente, limpando as lágrimas. Caminhou até a


escrivaninha.

— Estavas a ler a Gazeta. Que há de novo?

Ria. Em seu riso havia um tom de loucura e uma cólera no olhar.

— Chega Carlos – disse eu impaciente — precisamos ir.

Seguiu-me maquinalmente como um sonâmbulo.

No Aterro, alguns conhecidos que passavam, estranharam a rudeza que


havia nos trajes de Carlos, quando eu sem querer, ergui os estores da charrete para
entrar um ar mais fresco. Estranharam também a tristeza que havia em seus olhos.
Outrora tão felizes. Sempre respondia com entusiasmo aos acenos.

— Foi a melhor parte de minha vida — murmurou após um longo suspiro.

— E a criança Carlos? Com quem está a criança?


168
— Com a ama. Está com a ama a prima de Margarida– disse sem erguer a
cabeça, e não disseram mais nada, até chegarmos em casa.

Também eu não lhe fizera mais perguntas.

Em casa os criados por um acaso, já sabendo da tragédia, andavam pelos


corredores em pontas de pés, evitando o menor ruído. Joana ficara a chorar a um
canto, sem falar e nem responder a ninguém, com o rosto orvalhado de lágrimas,
chorando em silêncio.

Carlos não tocou no almoço, ficou a olhar o prato, bolinando o talher.


Estava com o rosto envelhecido, o olho fundo. Dormira mal nos últimos dias.
Quando bruscamente se ergueu e caminhou mudo, maquinalmente para o quarto
de hóspedes. A criada do quarto de Joana o seguiu, carregando as roupas de cama,
onde um criado batia o pó dos móveis.

— Carlos venha cá um momento. Deixem os criados arrumarem o quarto


— disse-lhe Joana.

Carlos se trancou no quarto minutos depois. Não sei se consegui dormir.


Ordenei a um criado da casa que ficasse de olho em seu quarto. A qualquer ruído
que houvesse que entrasse para ver o que era. Partir após o almoço para Sintra.
Teria que tratar do velório. Naquela semana ainda chovia. No caminho havia
muita lama. Tardei... cheguei ao crepúsculo triste do dia.

Na sala da casa de Sintra – uma sala estreita, mobiliada com móveis


pequenos, de teto baixo, confortavelmente tapetado, numa Quinta florida. Havia
um corpo ao centro, por sobre uma mesa comprida, envolta de algumas pobres
senhoras. Era o corpo de Margarida, já em um humilde caixão.

— Foi o que podemos arranjar com o Dr. Ezequiel Prado— disse-me a


ama abafando a voz ao meu lado, de ante do rude caixão.

— Obrigado... fizeram o que pôde... obrigado.

Um padre rezava. Um pequeno número de mulheres chorava de pena, em


silêncio.

169
— Não conseguir chegar a tempo. Fizeram o que pôde. Bom trabalho —
repetir, sem saber o que falar.

— Ele não veio? — perguntou-me a ama.

— Não, minha senhora. Está muito fraco e não consegue ainda reagir e
nem raciocinar.

— Coitado... sofrera muito, com a sua mão a dela, até que ela dera o
último suspiro.

— Onde está a enteada de Carlos?

— Na casa de uma amiga minha. Pedir que a levasse. Para comer alguma
coisa.

— Fez bem... E os parentes dela de São Vicente?

— Mandamos um mensageiro. Mas decerto não vem ninguém...

— Compreendo.

— Era tão bela e tão jovem. Que triste fim. Morreu só, como a mãe – disse
ainda ao meu lado ama, ante o caixão.

— Conheceste a mãe? — indaguei-a.

— Sim... Era uma boa mulher... tão bela! ... falecera quando Margarida era
ainda uma criança de berço... se não fosse o meu marido e alguns amigos nossos,
não haveria quem velasse e carregasse o caixão.

— E a criança? – perguntei de súbito.

— Vem cá ver – disse ela saindo para um quarto.

Num berço luxuoso de madeira a menina dormia tranquilamente. Era loura


e rosada. Procurei nela a semelhança com Carlos.

— Quero que a senhora venha amanhã comigo a Lisboa e leva consigo


esta criança – disse com a voz baixa.
170
— E o Dr. Carlos? – disse a ama sobressaltada.

— Deixe-o comigo.

— Quanto aos preparativos do velório, tratei de tudo, tinha umas


economias para uma urgência – disse ela, olhando a criança dormir
tranquilamente no berço. Ainda conseguir meios para que o corpo ficasse por
mais tempo sem ser enterrado, para que os parentes dela de São Vicente se
despedissem.

— Que meios? – perguntei com curiosidade ao médico.

— Ervas – coisa do povo antigo daqui.

— A compensarei depois. Obrigado? Senhora?

— Do Carmo. O Dr. Ezequiel.

Parei para comer alguma coisa. Com esforço, pois sabia que teria que me
alimentar. Na cozinha da casa, uma paz estranha se fazia.

Já era noite. Ainda voltamos para velar o corpo. Quatro velas esguias
ardiam em redor do caixão; um lenço de seda cobria o rosto de Margarida.
Suspendi o lenço e fiquei a fitá-la por um longo momento. Tinha um rosto pálido
como cera, mesmo assim era ainda bela... não consegui segurar o choro e, pela
primeira e única vez chorei amargamente.

O enterro saiu bem cedo. Carreguei com mais três homens da pequena
Vila o caixão até o túmulo.

Deixei a Quinta onde nunca mais voltei. Há meio quilômetro dali, fica o
Cemitério de Sintra onde Margarida está sepultada. Por alguns anos a ama, a
enteada e a filha de Carlos, sempre na data de sua morte, levaram flores a seu
túmulo, até que num certo dia, após o almoço, a velha Do Carmo veio a falecer de
apoplexia. Sobre a menina? Deixarei esse assunto para o fim de minha história. A
enteada de Carlos, após a morte de D. Do Carmo, casou-se com um caixeiro e foi
viver em Povoa do Varzim.

171
Na manhã daquele dia, após deixar o cemitério, sob uma fina chuva, vi sair
a porta do Hotel Lawrence, quando eu galguei as escadas da frente, o bom Sr.
Damasceno, que me gritaram, surpresa:

— Ó Ezequiel, por cá. Que grande surpresa.

— Como vai Sr. Damasceno?

— Ah! Ando a passear os meus ossos, apesar desses dias de chuva –


sorriu.

— Ainda não sabe do acontecido? – perguntei-lhe, mudando o tom da voz.

— Que sucedera meu menino? – perguntou franzindo a testa. Preocupado.

— A Margarida, a esposa do Carlos. Veio a falecer na madrugada de


ontem.

— Meu Deus! E como está o nosso Carlos?

— Não está nada bem, até me preocupa os modos.

— Onde está ele? Preciso vê-lo.

— Ficou em minha casa em Lisboa.

— Que lástima! ... qual foi a causa da morte.

— Veio a falecer após o parto.

— Ah. De fato, ela estava grávida – disse, franzindo melancolicamente a


testa – que lástima... mas entre, tenha a bondade.

— Prepara-me um quarto, Sr. Damasceno, preciso repousar-me.

— Sim, com todo o prazer meu menino. E como me andas, minha querida
Joana?

— Estar a sofrer tristemente. Ela tinha muito carinho por Margarida.

— São dias taciturnos... E chove muito por cá – disse ele, absorto, olhando
para o céu cinzento.

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A chuva estava se intensificando. Agora batia fortemente as vidraças do
quarto, o vento soprava as árvores que vinham bater violentamente as janelas.
Num aposento próximo ouviu um bater de portas e janelas. Reclamei a um criado
que passara, “e traga-me um cálix de genebra”. O Sr. Sebastião Damasceno veio
cuidadosamente me ver em meu quarto.

— Foi cauteloso e astuto em se hospedar aqui ó Ezequiel. Seria demasiado


arriscado pegar a estrada com esse tempo... se precisares de alguma coisa que não
tenha em nosso bar é só mandar me chamar em meu escritório.

— Obrigado Sr. Damasceno, estou satisfeito.

Ia saindo quando parou:

— Que fatalidade não é mesmo? Estive agora a pouco a recordar de como


Carlos era feliz com Margarida, como a amava. Não tinha me dado conta da
tragédia. Até mais tarde.

Fiquei a dormir toda aquela tarde. Despertei-me, quando ouvimos nós de


dedos baterem a porta, já era quase noite.

— Dr. Ezequiel Prado uma pessoa deseja muito vê-lo. É um rapaz, me


parece aflito. Pediu-me insistentemente que o chamasse.

— Fez muito bem, senhorita. Obrigado – disse a uma bela jovem de


langorosos olhos negros e franzina de corpo, que esperava complacente à porta
minha resposta. E meio sonolento, com um roupão de chambre branco, fiquei a
reparar a bela rapariga junto à porta – mande-o subir.

Poucos minutos depois Carlos surgiu no quarto, como a figura de um


fantasma. Estava pálido, sem sangue. Mas vinha com um terno negro e os cabelos
bem penteados, com os olhos fundos, numa profunda tristeza, que eu nunca vira
igual.

Penetrou mudo no quarto e sentou-se numa poltrona, com as mãos na


cabeça, ficou a olhar para o chão.

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Fiquei de pé ao lado da cama, com as mãos à cintura.

Seguiu-se aí um longo silêncio. Por cima de uma cômoda, as velas ardiam


indolentes sobre os tristes castiçais.

— Como foi tudo? – murmurou Carlos sem erguer a cabeça.

— Triste Carlos, muito triste... questionaram-me a sua presença.

— Estava sem forças.

— Descanse...

— Te peço uma coisa, Ezequiel – disse erguendo a cabeça e olhando-me


nos olhos.

— Sim!

— Que o seu procurador trate de meus negocias aqui em Portugal. A


começar pela casa de Sintra... E mais uma coisa, acerte-me as contas com os
empregados da casa.

— O que tu tencionas fazer?

— Voltar para a Inglaterra. Morar com meus pais e abrir um consultório.


Realizar o sonho deles. Quando puder vou a Paris cuidar dos negócios de lá.

— E quanto à criança?

— Tenho lá belos cavalos – disse sem me olhar.

— Quanto a criança Carlos – repetir, com calma.

Ficou a procurar uma resposta. Terminou por não me dizer nada.

— Não te esqueças de que Margarida lhe deixara uma filha, fora o maior
desejo dela.

— Mas não foi o meu. De qualquer forma, veremos...

— Conte comigo no que precisar.


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— Preciso de uma bebida forte, por enquanto.

Tínhamos decidido ir ao bar do hotel. Aqueles dias havia um fraco


movimento em Sintra, de modo que não vimos nenhum conhecido, que nos
abordasse e nos questionasse pela nossa estadia fora de época, naquele famoso
hotel de Sintra.

Pela manhã bem cedo partimos como numa comitiva para Lisboa.
Viajamos com duas charretes. Numa delas estava a ama com a criança e com duas
criadas italianas, com seus pertences; e na outra, ia o Carlos comigo e com um
criado de quarto, e mais uns pertences pessoais. Carlos estava estranhamente
compenetrado, disse-me poucas palavras, mas corretas e sensatas. No entanto, não
mencionou o nome da criança.

Em Lisboa o sol reaparecia timidamente por entre as nuvens, após longos


dias de chuva.

Quando as charretes adentraram ao Palacete das Janelas Verdes, Joana já


se encontrava no pátio. Chorava, suando-se muito dolorosamente, com um lenço
de seda. Mas ao ver a ama saltar-se cuidadosamente da charrete, com uma criança
no colo, abriu-se em seu rosto um jovial sorriso e, correu para ampará-la. A
criança dormia profundamente, toda ela sorria. O sol resplandecia a sua facezinha
tenra. Joana, com a menina no colo, ficou a olhá-la durante um momento.

— És linda. É um anjo Ezequiel – dizia Joana abafando a voz, com um


belo sorriso.

Foi com a criança para o interior da casa, seguida da velha ama e das duas
criadas italianas. Seguimo-las em silêncio, maquinalmente.

— Agora aqui será o seu novo lar, minha menina – dizia, quando parou e
voltou-se para nós:— Ela já tem um nome?

— Melaine – disse Carlos, sem alterar o seu humor.

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— Melaine! Que belo nome. Vamos para o seu quarto Melaine. És linda! –
seus olhos brilhavam – és linda como a mãe Carlos. Calou-se, constrangida de ter
recordado aquele momento a pessoa de Margarida.

***

— Melaine é o nome de minha única irmã – interrompi Ezequiel Prado,


instintivamente.

— Sim Eduardo. Uma linda menina. Aliás, deve ser agora uma bela
mulher. Você tem uma sobrinha.

— Sobrinha?

***

— Desde a chegada de Carlos aquela manhã, pouco falava, na maioria das


vezes respondia as perguntas que lhe eram feitas apenas. Poucas vezes deixou o
seu quarto. Adoeceu de febre por muitos dias, chegou a delirar. Em sua
convalescência, em momento algum, fora ao berço da menina, e quando Joana,
com a criança no colo, aparecia-lhe de súbito na sala ou em algum corredor da
casa, Carlos virava-lhe os olhos e saía para outro cômodo.

Alguns amigos mais considerados foram visitá-lo em casa. Alguns mais


íntimos sentiram-se magoados e desconsiderados, por não terem sido avisados do
enterro.

Carlos era agora também um viúvo cobiçado. Chegavam-lhe através dos


criados, bilhetes perfumados, que ele ao recebê-los, amarrotava-os e arremessava
a um canto, desdenhosamente.

Um jornal relatou a morte de Margarida Ryvaje Marques. Esposa de


Carlos Eduardo Marques. Mas num pequeno canto de uma coluna social. Pois
Carlos sempre tivera antipatia com os jornalistas e políticos.

Naquela semana mesmo Domingos se suicidou em seu pobre quarto da


Rua do Alecrim. O Leopoldo não deu mais notícias. Ranunfo Peres, curiosamente
viajara com um grupo de mineradores portugueses para a América e morrera
numa revolução de mineiros. Em 1891 o professor Afonso Almeida falecera
176
sentado na poltrona da sala de sua casa, após ler num jornal o anuncio do suicídio
de Antero de Quental. D. Olga veio a falecer no ano seguinte de apoplexia. Eu
voltara a trabalhar atendendo aos mais necessitados no Alentejo, Évora, Beja,
Setúbal e parte de Santarém. Em virtude disto, Joana, desalentada da vida, fugiu
de casa com um belo jovem advogado levando consigo a filha de Carlos. Nunca
mais voltei a vê-la... Mas Em 1889 eu soube por um velho conhecido, que
habitava Paris, que o jovem advogado morrera numa briga com um cliente à porta
duma confeitaria e, que uns meses depois Joana se casara com um Arquiteto
Inglês e Melaine havia entrado para faculdade de medicina de Paris e passava por
ser uma das jovens mais belas da França. Mas em 1925 Joana faleceu de
tuberculose e Melaine se casara e tinha uma linda filha. Meu filho mais moço o
Miguel com meu sogro, faleceu em um trágico naufrágio quando iam explorar as
riquezas e entender a arquitetura do Brasil. O Maurício... esse saiu a viajar pela
Europa e não deu mais notícias. O que todos não sabem é que a casa do Bairro das
Janeiras Verdes não mais pertence a mim e nem à minha neta Judite. Certa manhã,
vindo de mais uma de minhas peregrinações, fui convidado com os meus filhos e
minha neta a deixar a casa. Meu sogro havia vendido a casa para uma família de
brasileiros. Eu estava falido.

— Quanto ao meu pai?

Dias depois da nossa chegada de Sintra, Carlos, curado da sua febre,


passou a viver de bordel em bordel, além de frequentar bares e jogar intermináveis
partidas de bilhar com altas apostas. Eu cumpri com o seu pedido de pagar os seus
empregados da casa de Sintra e por a venda a Quinta da Vila. Mas, numa tarde,
Carlos apareceu-me de surpresa no gabinete do meu consultório. Quando me ergui
muito surpreso de vê-lo são e forte, ele sem dizer uma palavra, abraçou-me e
depois de uns intermináveis segundos, declarar-me que estava desapontado com a
vida e com sigo mesmo.

Naquela semana, Carlos partiu sozinho para a Inglaterra. Nunca mais


voltei a vê-lo. Quanto a mim, encerrei-me aqui, pobre e esquecido para sempre.

***

177
Ezequiel Prado cerrou seus olhos, e assim terminou sua história. Como me
disse ele: “a memória tem o dom de resgatar o passado” Então não apegamos a
datas e anos. O que valeu foi o desfecho de sua história e o seu passado com meu
pai. Creio que nem tudo fora lembrado.

Deixamos sua casa às oito da manhã e partimos para Évora. Nunca


descobrimos o que havia escrito na carta em que meu pai me mandara lhe
entregar. Também não tive coragem para perguntá-lo. O que foi falado aqui fora
registrado por Jorge de Morais em um romance.

Dias depois tínhamos deixado Portugal. Na Inglaterra eu colocaria à venda


o casarão e parti para o que você possa ter imaginado. Em busca de minha Irmã
Melaine e minha sobrinha

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Era na primavera de 1870. Sob o céu de outubro. O pátio do asilo estava
fresco e muito florido. Naquela tarde, o velho Dr. Eduardo Marques, ao terminar
de narrar sua história curvou-se com os olhos no chão. Ficou assim por um
momento, após me olhar com um sorriso melancólico, quando a gorda enfermeira,
pontualmente veio buscá-lo. Foi a última vez que o vi.

Outubro de 1870

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Jorge de Morais se casara na Bahia com uma bela mulata e tivera com ela
dois filhos. Vendera muitos exemplares de seu romance. Com o consentimento de
Judite. Quanto a Judite Prado, trocaram muitas correspondências, até que em 1940
ela se casou em Lisboa e não mais se falaram.

Em dezembro de 1935. O Dr. Eduardo Marques encontrou sua irmã


Melaine e sua sobrinha. Conversaram por longas horas... choraram abraçados.
Mas, isso é uma outra história.

Por Jonathas Sousa Ribas.

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