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Para a minha família

Eles circulavam o corpo na neve. Carniceiros. À procura de qualquer coisa


que pudessem tirar do cadáver.
Estava meio enterrado, congelado à deriva. Pernas e braços estendidos. Um
anjo de neve perfeito. Olhos azuis brilhantes rodeados de pestanas geladas
olhavam para um céu azul igualmente brilhante. A tempestade já tinha
passado.
Eventualmente, um dos elementos do grupo ganhou coragem. Pousou no
peito do morto e espetou-lhe com cautela o rosto, bicando os lábios e o nariz.
Depois enfiou o bico num dos olhos azuis. Puxou e puxou e, finalmente,
arrancou o olho com um pequeno estalido.
Satisfeito com o seu prémio, saltitou para longe e voou para um pinheiro
próximo.
O resto dos corvos, mais confiantes, pousou sobre o cadáver, formando uma
névoa de asas negras.
Em minutos, o corpo estaria completamente sem rosto, irreconhecível.
Mais tarde, nessa mesma noite, viriam predadores maiores. Pela manhã,
nada mais restaria a não ser uma carcaça esfarrapada.
Uma semana depois, um caçador dispararia sobre um lobo. Um animal de
aspeto doente, mas a carne de lobo era tão boa como qualquer outra para
alimentar a sua família.
Pouco depois, o caçador ficaria doente e morreria. Depois, a família dele.
Depois, os amigos da família dele.
E os corvos cairiam do céu.
O CEMITÉRIO ESTÁ CHEIO
DE PESSOAS INSUBSTITUÍVEIS
Hannah

Havia um alarme de relógio a tocar. Estava alguém a vomitar. Alto, perto


dela. Havia várias pessoas deitadas em ângulos aleatórios e estranhos sobre
os assentos de autocarro arrancados. Sangue acumulado nos olhos e a pingar
de bocas abertas.
Hannah observou tudo de forma desapaixonada, clínica. A natureza do
seu pai a vir ao de cima, teria dito a mãe. Sempre capaz de se abstrair.
Algumas vezes, esta falta de empatia emocional tornava a vida difícil. Outras
vezes, como agora, esse lado era útil.
Desapertou o cinto de segurança e soltou-se do seu lugar. Usar o cinto de
segurança provavelmente salvou-lhe a vida quando o autocarro capotou.
Tinha rolado duas vezes por uma encosta íngreme abaixo, originando a
maioria da carnificina, e depois parado suavemente, assente sobre a lateral,
envolvido por um monte de neve.
Ela está magoada. Equimoses, arranhões, mas não parece ter nada
partido. Sem grandes hemorragias. Claro, pode haver lesões internas. Não
há como ter a certeza. Mas, por enquanto, neste preciso momento, estava
bem. Ou dentro do possível.
Havia pessoas a mexer-se. Hannah conseguia ouvir gemidos, choro.
Já não se ouviam vómitos, por agora. Ela olhou em volta pelo autocarro,
avaliando. Havia uma dúzia de estudantes a bordo. Não precisavam de um
autocarro tão grande, mas era o que a Academia lhes tinha arranjado. Dos
alunos, ela diria que quase metade estavam mortos (principalmente aqueles
que não se tinham dado ao trabalho de colocar o cinto de segurança).
Havia outra coisa, pensou Hannah, enquanto observava o cenário. Um
problema que ela ainda não tinha compreendido completamente. Uma
tempestade de neve lá fora, um autocarro capotado e meio enterrado na
neve. O que era? Os seus pensamentos foram interrompidos por uma voz a
gritar:
– Ei. EI! Alguém pode ajudar aqui? A minha irmã está presa.
Hannah virou-se. Na parte de trás do autocarro, um jovem com excesso
de peso e um amontoado de caracóis escuros estava debruçado sobre uma
rapariga ferida, embalando a sua cabeça no colo dele.
Hannah hesitou. Disse a si própria que estava apenas a recompor-se, a
preparar-se. Não que estivesse à espera que outra pessoa avançasse, que se
aproximasse, para não ter de o fazer. Não gostava de contacto físico ou
emocional próximos. Mas mais ninguém estava em condições de ajudar e,
como ela tinha conhecimentos médicos, era o seu dever. Começou a
avançar, desajeitadamente, tropeçando no caminho ao longo do corredor
central inclinado, passando por cima dos corpos.
Alcançou o homem e a irmã dele. Soube logo, como se diz nos filmes, que
a miúda não se ia safar. Isto nada tinha a ver com o que Hannah tinha
aprendido durante a sua formação médica. Foi apenas simples instinto.
Hannah tinha quase a certeza de que o irmão da rapariga também sabia,
mas que se agarrava à esperança, como fazem as pessoas nestas situações,
porque era tudo o que lhes restava.
A rapariga era bonita, de pele pálida e cabelo volumoso, ondulado e
escuro. O tipo de cabelo com que Hannah sempre desejara ter sido
abençoada, em vez dos fios finos e desinteressantes com os quais nunca
conseguia fazer nada e acabava sempre a atar num rabo de cavalo
desleixado. Hannah percebeu que provavelmente era estranho sentir inveja
quando a rapariga estava a morrer, mas a natureza humana era imprevisível.
Os olhos da rapariga estavam vidrados, a respiração fraca e sibilante.
Hannah conseguia ver que a sua perna esquerda estava presa sob dois
assentos de autocarro que tinham sido forçados um contra o outro na
colisão. Uma confusão de metal deformado e osso esmagado; provavelmente
tinha múltiplas fraturas. Mas o grande problema era a perda de sangue, sem
falar na respiração sibilante da rapariga, o que levava Hannah a pensar que
ela poderia ter outras lesões, menos visíveis. Essas é que poderiam ser fatais.
A princesa britânica – Diana – morreu de um pequeno rasgo na veia do
pulmão que ninguém percebeu que estava a sangrar lenta e fatalmente.
– Temos de lhe libertar a perna – dizia o homem. – Podes ajudar-me a
levantar este assento?
Hannah olhou para o assento. Podia dizer-lhe que isso não faria qualquer
diferença. Podia dizer-lhe que o melhor que ele podia fazer era ficar aqui
com a irmã pelo pouco tempo que lhe restava. Mas lembrou-se de o pai lhe
ter dito: «Em situações extremas, sentir que se está a executar algo pode fazer
a diferença psicologicamente, mesmo que não tenha qualquer efeito no
resultado final.»
Ela abanou a cabeça.
– Ainda não podemos mexer no banco.
– Porquê?
– Pode ser a única coisa que impede a perna de sangrar ainda mais.
– Então o que fazemos?
– Estás a usar cinto?
– Ah, sim.
– Preciso que o tires e faças um torniquete aqui, acima do joelho. Depois
podemos tentar mover o assento, OK?
– Está bem. – Parecia atordoado, mas, ainda assim, colocou as mãos sob o
casaco para tirar o cinto. A barriga caiu sobre as calças de ganga. A irmã dele
olhou para cima, mexeu os lábios, mas sem conseguir pronunciar as
palavras. Todo o seu esforço se concentrava em combater a dor, em inalar
aqueles sopros vitais de oxigénio.
– Pareces um pouco jovem para ser médica – disse o homem,
entregando-lhe o cinto.
– Estudante de medicina.
– Ah, certo. – Ele acenou com a cabeça. – És aluna do Grant.
A Academia não se especializava em medicina. Habitualmente,
especializava-se em pais suficientemente ricos para comprar aos filhos uma
educação universitária obscenamente dispendiosa. Mas há alguns anos tinha
sido escolhida pelo Departamento como a localização para um novo centro
de pesquisa médica. Tinha sido construída uma ala extra e o professor
Grant, um dos principais virologistas do mundo, foi destacado para
supervisionar o progresso. Agora, jovens estudantes brilhantes de todo o
mundo eram escolhidos para estudar no campus isolado no topo da
montanha.
– Enrola o cinto por aqui – instruiu Hannah. – Aperta bem, com força.
Boa. Muito bem.
A rapariga gemeu um pouco, mas isso era bom sinal. Se ainda estava
suficientemente consciente para sentir desconforto, o cérebro ainda não
tinha começado a desligar-se.
– Está tudo bem – sussurrou o homem no cabelo da rapariga, colocando
um pouco da sua própria melena escura atrás da orelha. – Tudo bem.
– Bom – disse Hannah. – Vamos tentar levantar isto.
O homem deitou suavemente a cabeça da irmã e juntou-se a Hannah na
tentativa de levantar o assento do autocarro. Não serviu de nada. Rangeu e
cedeu um pouco, mas não o suficiente. Eles precisavam de outra pessoa.
Duas para levantar. Uma para puxar a perna da rapariga sob o metal
retorcido.
Hannah conseguia ouvir mais vozes, movimento em redor do autocarro,
pessoas a recuperar os sentidos, a verificar se os seus companheiros ainda
estavam vivos ou não.
Virou-se e gritou:
– Ei, precisamos de uma mão aqui! Alguém pode ajudar?
– Um pouco ocupado por aqui – respondeu um engraçadinho, mais
acima no autocarro.
Mas, nesse momento, uma figura alta e esbelta pôs-se de pé e dirigiu-se a
eles. Pálido, cabelo loiro curto, emaranhado em sangue de um lado. Parecia
grave, mas Hannah sabia que mesmo pequenas feridas na cabeça sangravam
imenso.
– Chamou? – A voz era culta, com um ligeiro sotaque alemão.
– Precisamos de ajuda para levantar esta cadeira para podermos libertar a
perna dela – disse Hannah.
O homem loiro olhou para a rapariga, depois para Hannah, e ela viu a
cruel perceção nos olhos dele. Ela abanou ligeiramente a cabeça e ele anuiu,
compreendendo.
– Muito bem. Upa!
Hannah permitiu que os dois homens levantassem o peso enquanto ela
aliviava a perna da rapariga por debaixo dos assentos. Foram precisas
algumas tentativas, mas, finalmente, a perna libertou-se.
O irmão da rapariga colocou-a numa posição ligeiramente mais
confortável, despiu o casaco e colocou-o debaixo da cabeça dela. Sob o
casaco, vestia uma camisola larga que tinha escrito: Dá-me licença enquanto
complico isto. Estranho, pensou Hannah, as pequenas coisas em que
reparávamos.
Ela sentiu uma mão a tocar-lhe no braço e voltou-se para o homem de
cabelo loiro. Ariano, pensou Hannah. Ficaria mesmo bem de collants de rede
e um chapéu com uma pena.
– Quantos achas que estão mortos? – perguntou ele.
– Quatro ou cinco, outros podem estar feridos.
Ele olhou para a rapariga e acenou com a cabeça.
– Lembras-te do que aconteceu?
Hannah tentou pensar. Ela estava sentada no autocarro, a dormir. Estava a
nevar muito lá fora. Uma buzina a apitar. Um chiar de travões, e de repente
saíram da estrada, a rolar e a rolar, e depois a escuridão. Foi uma loucura
terem sequer tentado fazer a viagem com esta tempestade, mas a Academia
estava ansiosa por levar os alunos para o Retiro. Para um lugar seguro.
– Não muito – admitiu ela.
Ela olhou de novo em volta pelo autocarro. Os seus olhos observaram os
corpos, as pessoas sentadas, gemendo, chorando. Estava a tentar lembrar-se
do que lhe tinha escapado antes.
O autocarro tinha ficado imobilizado sobre a lateral direita. De onde
Hannah estava, olhando até à zona da frente no lugar do motorista, as
janelas à sua esquerda estavam intactas, apontando na direção do céu
escuro. A neve aglomerava-se em camadas, grandes flocos começando já a
assentar. Os danos mais severos estavam à direita: metal amolgado, vidro
estilhaçado. Todo aquele lado do autocarro estava soterrado num grande
monte de neve, o que significava…
A porta, pensou ela. A porta está soterrada. Não conseguimos sair.
– Estamos encurralados – disse ela.
O homem loiro acenou com a cabeça, como se estivesse contente por ela
ter chegado à mesma conclusão.
– No entanto, mesmo que pudéssemos sair, não duraríamos muito nestas
condições.
– E a saída de emergência? – perguntou Hannah.
– Já tentei… parece estar encravada.
– O quê?
O homem pegou-lhe no cotovelo e guiou-a ao longo do corredor. À sua
esquerda, três degraus levavam à casa de banho e a outra porta. Um sinal
acima dizia: EM CASO DE EMERGÊNCIA, PUXAR ALAVANCA
VERMELHA. EMPURRAR A PORTA PARA SAIR. O homem loiro puxou a
alavanca e empurrou a porta. Esta não cedeu.
Ele afastou-se e fez um gesto para Hannah tentar. Ela tentou. Várias vezes,
a frustração a crescer. A porta estava presa.
– Merda – praguejou. – Como?
– Quem sabe? Talvez tenha sido danificada no acidente?
– Espera… – Hannah lembrou-se de algo. – Não devia haver um martelo
a bordo, para partir as janelas?
– Correto. Esse é o outro problema.
Hannah franziu o sobrolho.
– Como assim?
O homem deu um passo atrás e apontou para uma caixa localizada logo
acima das janelas à sua esquerda. Onde o martelo deveria estar havia um
espaço vazio.
– Devia haver outro aqui em cima, para as claraboias. – Ele fez um gesto
em direção ao teto. – Também foi retirado.
A cabeça de Hannah rodou.
– Mas porquê?
O homem loiro sorriu sem humor.
– Quem sabe? Talvez algum Arschgeige1 os tenha roubado num ato de
brincadeira. Talvez ninguém tenha inspecionado este autocarro antes de ele
sair… – Ele deixou a frase por terminar.
– Precisamos de pedir ajuda – disse Hannah, tentando dominar o pânico.
Este foi o momento em que outro facto a assolou.
– Os nossos telemóveis.
Todos os telemóveis tinham sido confiscados quando os alunos
embarcaram e arrumados dentro da bagagem. Não eram permitidas
comunicações durante a viagem.
Ninguém podia saber para onde iam.
Hannah olhou para o homem loiro. Não há maneira de pedir ajuda. Não
há maneira de saber quanto tempo pode levar até chegarem equipas de
salvamento. Quanto tempo levará até serem dados como desaparecidos? E,
mesmo assim, quem viria em seu auxílio nesta tempestade?
Ela olhou de novo através das janelas, na direção do céu. Já há neve
a acumular-se, bloqueando a ténue luz cinzenta.
Estavam encurralados. Com os mortos. E, se a ajuda demorasse muito,
seriam enterrados com eles.

1 Arschgeige (adjetivo alemão) significa «idiota». (N. da T.)


Meg

Balanço. No início suavemente. Uma canção de embalar. Dorme, bebé.


Depois com mais intensidade. Mais força. A cabeça dela bateu contra
o vidro. O corpo rolou para o outro lado e ela caiu. No chão. Com força.
– Au. Merda.
O coração disparou e os olhos dela abriram-se.
– Que merda é esta?
Ela esfregou o cotovelo dolorido e olhou em volta. Sentia como se alguém
lhe tivesse esfregado areia nos olhos. O cérebro feito em papa.
Caíste da cama. Mas onde?
Ela sentou-se. Não é uma cama. É um banco de madeira. Encostado à
lateral de um quarto oval. Um quarto que se movia de um lado para o outro.
Lá fora, céu cinzento, flocos de neve flutuantes. Vidro em toda a volta. As
náuseas tomaram conta dela. Ela resistiu-lhes.
Havia mais pessoas aqui, deitadas nos bancos de madeira. Cinco. Vestidas
com fatos de neve azuis idênticos. Como ela, Meg percebeu. Todos eles
estavam aqui, neste pequeno quarto oscilante. Fustigado pelo vento, a neve a
cobrir os vidros.
Isto não é um quarto. Os quartos não se mexem, estúpida.
Fez um esforço para se levantar. As pernas dela tremiam. As náuseas
voltaram em força. Tens de controlar isso, pensou. Não havia nenhum sítio
para vomitar. Ela cambaleou até um dos lados do quarto-que-não-era-um-
quarto. Olhou através do vidro, pressionando contra ele as mãos e o nariz,
como uma criança a olhar para o primeiro nevão de Natal.
Lá em baixo – muito abaixo –, a floresta coberta de neve. Acima, um
frenesim de flocos num vasto céu cinzento.
– Foda-se.
Mais balanço. O rugido do vento, abafado pelo vidro grosso em toda a
volta, como um animal esfomeado preso atrás das grades. Mais salpicos
brancos atingem o vidro, distorcendo a sua visão. Mas Meg já tinha visto o
suficiente.
Um gemido atrás dela. Outro dos corpos vestidos de azul estava a acordar,
a desenrolar-se como uma lagarta desajeitada. Ele ou ela – era difícil de
dizer com o capuz – sentou-se. Os outros também começavam a mexer-se
agora. Por um momento, Meg teve uma ideia louca de que, quando eles
virassem o rosto para ela, seriam mortos-vivos em decomposição.
O homem – na casa dos trinta anos, barba espessa – olhou para ela com
um ar confuso. Empurrou para trás o capuz e coçou a cabeça, que estava
praticamente rapada com resquícios de cabelo escuro.
– Que merda é esta? – Ele olhou em volta. – Onde estou?
– Estás num teleférico.
– Um quê?
– Teleférico. Sabes, aqueles compartimentos que se penduram em cabos…
Ele olhou para ela de forma agressiva.
– Eu sei o que é um teleférico. Quero saber que raio estou a fazer num.
Meg olhou calmamente para ele.
– Não sei. Lembras-te de chegar até aqui?
– Não. E tu?
– Não.
– A última coisa de que me lembro é… – Os olhos dele esbugalharam-se.
– Vais… vais para o Retiro?
O Retiro. O nome deliberadamente ambíguo faz com que pareça um spa.
Mas não trouxe a Meg qualquer sentimento de bem-estar. Pelo contrário,
provocou-lhe arrepios por toda a espinha. O Retiro.
Ela não respondeu. Olhou lá para fora.
– Neste momento, não vamos a lado nenhum.
Ambos olharam para o vazio cinzento, mais manchas de neve a cobrir o
vidro. Uma tempestade de neve. Intensa.
– Estamos presos.
– Presos? Disseste que estávamos presos?
Meg virou-se. Estava uma mulher atrás dela, mais ou menos da sua idade.
Cabelo ruivo. Aspeto frágil. Pânico na voz. Possivelmente um problema.
Meg não respondeu de imediato. Olhou para as outras pessoas no
teleférico. Uma ainda estava enrolada a dormir, com o capuz sobre a cara.
Algumas pessoas conseguiam dormir em qualquer contexto. As outras duas
– um homem baixo e robusto com caracóis escuros e um homem mais velho
de cabelo branco e óculos – estavam sentadas, a espreguiçar-se e a olhar em
volta. Pareciam atordoadas, mas calmas. Ótimo.
– Parece que sim – disse ela à mulher. – Provavelmente é só uma falha de
energia.
– Falha de energia. Oh, espetacular. Maravilhoso como o raio.
– Tenho a certeza de que o teleférico vai voltar a andar em breve. – Isto
veio do homem barbudo. A sua agressividade anterior tinha-se dissipado.
Ele ofereceu à mulher um pequeno sorriso. – Nós vamos ficar bem.
Uma mentira. Mesmo que o teleférico começasse a andar, mesmo que
chegassem ao seu destino, não iriam ficar bem. Mas a vida dependia de
pequenas mentiras inofensivas. A mulher sorriu de volta para o homem.
Mais tranquila. Bom trabalho.
– Disseste que estamos num teleférico? – perguntou o homem mais velho.
– Não me lembro de alguém ter falado em entrar num teleférico.
– Alguém se lembra de alguma coisa? – perguntou Meg, olhando em
volta.
Eles olharam uns para os outros.
– Estávamos nos nossos quartos.
– Eles trouxeram o pequeno-almoço.
– Era uma porcaria.
– Depois… Devo ter adormecido outra vez…
Olhares mais confusos.
– Ninguém se lembra de nada depois disso? – perguntou Meg. – Nada até
acordarem aqui?
Eles abanaram a cabeça.
O homem barbudo expirou lentamente.
– Eles drogaram-nos.
– Não seja ridículo – disse a mulher ruiva. – Porque fariam isso?
– Bem, obviamente para não sabermos para onde estamos a ir ou como
chegámos até aqui – disse o homem baixo.
– Eu só… não consigo acreditar que eles fariam isso.
Engraçado, pensou Meg. Mesmo agora, depois de tudo o que já aconteceu,
as pessoas tinham dificuldade em acreditar nas coisas que «eles» seriam
capazes de fazer. Mas, claro, não se consegue perceber a dimensão da
tempestade quando se está no meio dela.
– OK – disse o barbudo. – Já que estamos literalmente presos aqui e com
tempo livre, porque não nos apresentamos? Eu sou o Sean.
– Meg – disse Meg.
– Sarah – disse a mulher ruiva.
– Karl. – O homem baixo fez um pequeno aceno.
– Max. – O homem mais velho sorriu. – Prazer em conhecê-los a todos.
– Acho que estamos todos aqui pela mesma razão, então? – disse Sean.
– Não é suposto falarmos sobre isso – disse Sarah.
– Bem, eu acho que é bastante seguro presumir…
– Presumir faz de nós «idiotas».
Meg olhou para Sarah.
– O meu chefe costumava dizer isso.
– A sério?
– Sim. Costumava irritar-me como o caraças.
Sarah comprimiu os lábios. Max interrompe.
– Então, o que fazem… quer dizer, o que faziam todos antes?
– Eu era professora – disse Sarah.
Quelle surprise, pensou Meg.
– Eu era advogado – disse Max. Ergueu as mãos no ar. – Eu sei,
processem-me.
– Eu trabalhava com castelos insufláveis – disse Karl.
Eles olharam para ele. E desataram a rir. Um súbito alívio da tensão
nervosa.
– Ei! – Karl pareceu ofendido, mas apenas moderadamente. – Os
insufláveis dão bom dinheiro. Pelo menos, costumavam dar.
– Então e tu? – perguntou Meg a Sean.
– Eu? Oh, de tudo um pouco. Tive alguns empregos.
Uma rajada de vento fez com que o teleférico balançasse com mais força.
– Oh, Deus. – Sarah colocou a mão no pescoço. Usava um pequeno
crucifixo prateado. Meg perguntou-se quantas mais razões poderia
encontrar para não gostar da mulher.
– Então somos um grupo eclético – disse Max.
– E, «idiotas» ou não, presumo que vamos todos para o Retiro? – disse
Karl, erguendo as suas sobrancelhas fartas.
Lentamente, um a um, todos acenaram com a cabeça.
– Voluntários?
Mais acenos de cabeça. Apenas dois tipos de pessoas iam a lugares como o
Retiro. Voluntários e aqueles que não tinham escolha.
– Então, é agora o momento de revelar as nossas razões? – Max
perguntou. – Ou vamos guardar isso para quando lá chegarmos?
– Se lá chegarmos – disse Sarah, olhando nervosamente para os cabos de
aço acima deles.
Sean estava de olho na figura adormecida no canto.
– Acham que devíamos acordar a Bela Adormecida?
Meg franziu o sobrolho. Depois levantou-se e caminhou para a figura
deitada. Sacudiu-lhe o ombro suavemente. Ele rolou do banco e bateu no
chão com um baque.
Atrás dela, Sarah gritou.
De repente, Meg apercebeu-se de duas coisas.
Ela conhecia este homem.
E ele não estava a dormir. Estava morto.
Carter

– Vem aí uma tempestade.


Carter resmungou e rolou sobre o sofá. Ele conhecia aquela voz. Caren.
Com C. Como ela lhe tinha dito quando se conheceram. Como se isso
interessasse para alguma coisa. Como se ele lhe fosse enviar um maldito
cartão de Natal.
– Sabes, Carter, uma ressaca não te vai safar da ida à mercearia.
Caren soava animada. Parecia sempre animada. Carter abriu um olho e
olhou fixamente para ela. Pois. Leggings de corrida, colete, cabelo puxado
para trás num rabo de cavalo saltitante. Estava provavelmente a caminho do
ginásio. Carter fechou os olhos e enterrou a cara na almofada fedorenta.
Caren continuou a sua tortura auditiva.
– Precisamos de abastecer a despensa, para o caso de a tempestade nos
deixar outra vez sem poder sair.
Ouve o som do frigorífico a abrir e a fechar, algo a ser cortado
e o zumbido do processador de alimentos. Depois, um baque, quando Caren
coloca um copo na mesa de café ao seu lado.
– Bebe. Vai ajudar.
Carter espreitou por detrás da almofada. Estava um copo com um líquido
avermelhado em cima da mesa.
– Bloody Mary?
Caren ergueu uma sobrancelha e levantou-se. Carter esforçou-se para se
sentar, pegou na bebida e tomou um gole.
– Jesus!
A boca a arder. A queimar. Cristo, quanto arde! Ergueu-se de supetão e
correu para o lavatório. Cuspiu o líquido ardente, abriu a torneira fria e
colocou sob ela a boca, engolindo a água gelada. Finalmente, salpicou água
nos olhos e no rosto e ficou de pé, a pingar sobre o chão.
Ele virou-se. Caren estava a observar da porta, braços cruzados, a sorrir.
– Disseste que ia ajudar.
Ela encolheu os ombros.
– Levantaste-te, não foi?

Depois de tomar um banho e fazer a barba, ele sentiu-se quase humano.


Mas o espelho não refletia isso.
As pessoas aqui já se tinham habituado à aparência de Carter. Já não se
encolhiam de horror quando ele se aproximava. Era fácil esquecer a sua
verdadeira aparência.
As queimaduras do frio tinham dizimado o lado direito do seu rosto.
A bochecha e grande parte da testa e do queixo estavam enegrecidas
e mortas. O centro do seu rosto era um buraco aberto e os seus lábios
pendiam para o lado onde o músculo tinha sido destruído. Quando ele
comia ou bebia, muitas vezes babava-se. Apenas os seus olhos permaneciam
intactos. Azuis, perspicazes. Uma lembrança da pessoa que tinha sido
outrora.
Carter esforçou-se para não se lamentar. Nunca tinha sido bonito. Com
excesso de peso na sua juventude, e também mais tarde, as suas feições
tinham sido sempre um pouco cruas. Mas às vezes tinha sonhos onde o seu
rosto estava intacto novamente e, quando acordava, a perceção da realidade
deixava a sua almofada húmida de lágrimas. Ele não era homem de chorar.
Nem um homem vaidoso. Mas são as pequenas coisas que doem mais.
Como ter um nariz.
Arrastou-se lá para baixo para encontrar Nate, Miles e Julia a tomar café
na grande sala de estar. Um tabuleiro de Monopólio tinha sido aberto sobre a
mesa do café (Miles estava sem dúvida a ganhar, novamente) e Julia estava a
enrolar um charro – o que irritaria Caren quando esta voltasse do seu treino.
Nem sinal de Jackson e Welland, os membros mais recentes do grupo.
Jackson estava provavelmente a meditar ou a fazer ioga. Welland
provavelmente estava soterrado num monte de neve. Com alguma sorte.
Eram um grupo eclético aqui no Retiro, juntos pelas circunstâncias e pela
necessidade, mas conseguiram trabalhar e viver juntos sem se matarem uns
aos outros. Na grande maioria do tempo.
Felizmente, o Retiro era grande. E luxuoso. O chão da sala era todo de
madeira polida, tapetes grossos e desgrenhados e sofás de couro
desgastados. Havia uma enorme TV de ecrã plano e um leitor de DVD,
consolas de jogos e uma aparelhagem de som. Um aparador de madeira
continha pilhas de CD, romances e uma coleção de jogos de tabuleiro.
A cozinha era moderna e elegante, com um enorme congelador americano e
uma ilha de granito polido.
Os residentes no Retiro eram bem tratados.
Em geral.
Nate olhou para cima enquanto Carter entrava.
– Meu, estás com péssimo aspeto.
– Eu sei que a minha habitual boa aparência te ameaça.
Nate mandou-lhe um beijo.
– Adoro-te, e adoro esse teu rabo apertado, meu.
– Não digas isso. Estás a fazer-me corar.
Nate sorriu. Mesmo de ressaca, mantinha o aspeto de surfista
descontraído, com músculos brilhantes, o cabelo queimado pelo sol
apanhado numa bandana. Por estas razões, Carter deveria odiá-lo, mas, de
alguma forma, nos últimos três anos tornaram-se amigos.
– A que horas foram para a cama? – perguntou Julia, prendendo uma
mecha de cabelo escuro atrás da orelha e colocando um filtro no charro.
Californiana, magra e tatuada, Julia tinha crescido numa comuna e ainda
parecia ter mais a ver com uma cabana ou com estar de pé atrás de um
cartaz, protestando contra algo.
Carter franziu o sobrolho. Doeu.
– Talvez um par de horas depois de teres subido.
Miles arqueou uma sobrancelha. Ele não parecia estar nem um pouco
ressacado. Parecia tão elegante como sempre, de polo e calças chino, como
se estivesse prestes a andar num barco a remos no rio Tamisa.
– Foi um pouco mais tarde do que isso – disse ele no seu culto sotaque
inglês. – Mas acho que nessa altura já devias ter desmaiado, Carter.
– É meu costume em festas.
– Desmaiar? – perguntou Miles.
– Algumas pessoas fumam charutos pelo rabo. Eu desmaio.
– Eles fazem mesmo isso? – perguntou Julia.
– Vi com os meus próprios olhos.
Nate riu.
– Meu, porque é que fazemos isto a nós próprios?
– Porque não há muito mais para fazer? – disse Julia.
Todos eles sorriram e anuíram, embora a verdade dessa afirmação tivesse
doído.
Claro, havia coisas para fazer no Retiro. Tarefas do dia a dia para manter o
lugar em funcionamento. Fazer a manutenção das várias áreas, por dentro e
por fora. Cozinhar, limpar, tratar dos mantimentos. A todos eles tinham
sido atribuídas tarefas – Miles tinha-se certificado disso. Havia instalações
de lazer: o ginásio, a piscina, as pistas. Ah, e havia a ida à mercearia.
Carter foi até à lista afixada num grande quadro de cortiça na cozinha.
Claro, lá estava o nome dele. De novo. O tempo neste sítio. Parecia passar de
forma diferente.
Ele detestava ir à mercearia. Até porque não era exatamente um salto
rápido até à loja da esquina. Envolvia esquiar por encostas traiçoeiras até à
aldeia lá em baixo, depois uma caminhada dura e ascendente arrastando o
saco das compras, amarrado aos esquis.
Carter era sem dúvida o pior esquiador do grupo. Ao contrário dos
outros, nunca tinha ido de férias de inverno «para as montanhas» quando
era criança. Para ele, desporto de inverno era descer uma encosta de pedra
gelada num velho capô de carro com a sua irmã.
Era ele quem demorava mais tempo a chegar à aldeia, para não falar da
lenta escalada de volta. E isso foi antes de se habituar à vida selvagem na
floresta.
Já sentia a dor de cabeça a voltar.
– Tem de ser hoje? Quero dizer, temos muito…
– Nem pensar. – Julia abanou a cabeça. – Tu conheces as regras.
As regras. Sim, ele conhecia-as.
– A Julia tem razão – disse Miles num tom irritantemente sensato. – Além
disso, está a aproximar-se uma tempestade, e já não deve demorar.
Carter olhou através da enorme janela de vidro que ocupava quase toda
uma parede do Retiro. Era uma vista espetacular, sobre as encostas, as vastas
florestas de pinheiros, até ao topo agreste da cordilheira rochosa.
Depois de algum tempo, transformava-se em papel de parede. Quase nem
se reparava nela.
E Miles estava certo. A neve já começava a ganhar força, e uma nuvem de
tamanho considerável pairava à distância. Sinal de que uma tempestade
severa estava a aproximar-se. Dependendo da gravidade, poderia significar
que ficariam de novo impedidos de sair durante dias, até mesmo semanas.
– Tem de ser hoje, meu – disse Nate. – Vai ficar feio.
Nesse exato momento, a porta do átrio de entrada do andar térreo abriu-
se, deixando entrar uma rajada de vento gelado e neve pelas escadas em
espiral até à zona da sala de estar. Ouviram-se passos escadas acima.
– Meu, o tempo está uma merda.
Welland. Gordo e cheio de acne, Welland. Aos vinte e cinco anos, era o
mais novo do grupo, mas também o que mais sabia sobre a gestão do Retiro.
Então, apesar de ser um gajo miserável e irritante com uma barriga
proeminente e um caráter conflituoso, eles eram obrigados a tolerá-lo.
Ainda assim, com Welland chegou uma figura mais bem-vinda: Dexter,
que entrou na sala e se lançou para os braços de Carter, lambendo-lhe o
rosto e as mãos com a sua língua molhada e malcheirosa.
– Olá, rapaz. Foste dar um passeio? – Carter baixou a cara na direção do
pelo frio e crespo do terrier e sussurrou:
– Mijaste na perna do Welland? Sim? Lindo menino.
– Como é que está o gerador? – perguntou Miles.
Welland sacudiu os seus espessos caracóis escuros e bateu os pés.
– Está bom, mas estou preocupado com este atraso. Estes cortes estão a
ficar mais frequentes.
O seu otimismo era outro dos seus belos atributos.
– OK, bem, não há necessidade de te passares. Eu vou verificar…
– Eu não me estou a passar, meu. Só estou a dizer. Seis segundos é muito
tempo. Sabes o que acontece se houver corte de energia…
– Eu sei – disse Miles, num tom que paralisou a sala
Welland corou e dobrou-se para retirar as suas botas.
– Acho que tenho queimaduras de frio – murmurou ele. – É só o que me
falta agora, que os meus dedos dos pés fiquem pretos e caiam… – Olhou
para cima, para Carter. – Oh. Merda. Desculpa, meu.
Ele não estava arrependido.
Carter sorriu e colocou Dexter no chão.
– ’Tá tudo bem.
Não estava tudo bem.
Mas não teve tempo para pensar nisso porque de repente – como se
Welland fosse o mensageiro da desgraça – a energia foi abaixo e o alarme
disparou.
– Merda! – gritou Welland. – Eu disse-vos.
Miles levantou uma mão. Olhou para o relógio no seu outro pulso.
A contar. Um, dois, três, quatro, cinco…
Ouviu-se um sinal sonoro quando o gerador começou a funcionar
e a energia voltou. O alarme parou de tocar.
Nate soltou um suspiro.
– Isto pareceu longo.
– Seis vírgula vinte e seis segundos – disse Miles, e baixou o pulso. – Nada
de muito grave.
– Como assim? – perguntou Carter.
Miles refletiu.
– O corte teria de durar pelo menos oito segundos para ser um problema.
– Porquê oito? – perguntou Nate.
– No caso de um corte de energia, as fechaduras automáticas abrem-se.
Mas não é instantâneo. A energia residual traduz-se num atraso de oito
segundos – disse Miles. – Durante um corte inesperado, é suposto o gerador
arrancar dentro de quatro a cinco segundos, para que as fechaduras
permaneçam seguras.
Mas parecia apertado, pensou Carter. Demasiado apertado.
– Eu devia dar uma vista de olhos nas fechaduras da cave – disse Welland.
– Vai pensando em fazer o reset dos controlos lá em baixo. Se o atraso estiver
a ficar mais longo…
– Já disse, vamos monitorizar a situação. – Miles olhou à sua volta. –
Estamos entendidos?
Desta vez, até Welland recebeu a mensagem.
– Certo – murmurou ele.
Todos os outros acenaram com a cabeça.
– Ótimo.
– Muito bem – disse Nate, levantando-se. – Vou para o ginásio, suar a
cerveja de ontem à noite. Alguém me acompanha?
– Eu fazia meia hora de sauna. – Julia deu uma passa e depois apagou o
charro num cinzeiro. O par saiu da sala em direção ao elevador.
Welland ainda estava a saltitar, a despir o fato de neve.
– Vejo que és tu a ir à mercearia, Carter. Que treta.
– Sim, bem, calha a todos. – Carter estalou os dedos. – Oh, espera. Exceto
a ti. Tu nunca foste.
– Eu não sei esquiar.
– Junta-te ao clube.
– Eu tenho asma.
– Engraçado. Não me passaria pela cabeça que alguém como tu fosse
aprovado no processo de seleção para trabalhar aqui.
– Sim, bem, pelo menos eu não apareci do nada como…
– Podem parar os dois com a briga de namorados? – Miles irritou-se. – E,
Carter, preciso de falar contigo antes de saíres.
– Porquê?
Miles olhou para Welland, que tinha acabado de despir as suas camadas
de roupa exteriores, deixando-as numa pilha molhada no chão, e agora
investigava os armários da cozinha em busca de comida.
Miles levantou-se e caminhou em direção ao elevador.
– Vem comigo.
Carter suspirou.
– Está bem.
No caminho, ele passou por Welland, perto o suficiente para sussurrar:
– Eu sei que não tens merda nenhuma de asma.

As portas do elevador abriram-se e eles entraram. Miles encostou o seu


passe ao botão B no painel de controlo. O elevador moveu-se
silenciosamente para baixo.
O Retiro foi construído em quatro níveis na encosta da montanha. A sala
de estar, a cozinha e o ginásio eram no primeiro andar. No segundo andar:
quartos – dois grandes dormitórios e doze quartos individuais para o
pessoal. No piso térreo havia um enorme corredor, uma piscina e saunas.
Era também onde estavam localizadas as áreas de serviço e de
armazenamento.
A cave era de acesso restrito para todos, exceto Miles (e para quem ele
considerasse confiável o suficiente para levar com ele).
As portas abriram-se e eles saíram para um corredor branco e iluminado.
Estava sempre frio na cave, mas não era por isso que os pelos nos braços de
Carter se arrepiavam. A iluminação era sensível ao movimento, ligando-se à
medida que avançavam pelo corredor, revelando uma fila de portas à sua
esquerda. Duas eram de escritórios, agora vazios. Miles parou na terceira,
encostou o seu passe contra outro painel de controlo, e eles entraram.
Havia mesas de trabalho em aço inoxidável encostadas ao longo de uma
parede. Na outra, um grande frigorífico e armários de metal.
– Então, o que se passa? – perguntou Carter, o mais casualmente que
pôde.
Miles olhava-o friamente. Carter já tinha visto cadáveres com um olhar
mais amistoso do que o de Miles.
– Alguém tem andado a roubar medicamentos.
– O quê?
Miles abriu uma gaveta num dos armários. No interior, filas e filas
de embalagens – antibióticos e analgésicos.
– Parece-me muito bem abastecido.
Miles remexeu na fila de cima das embalagens e selecionou uma da parte
inferior. Abriu-a. E segurou-a de cabeça para baixo. Vazia.
– Eu diria que cerca de metade dos pacotes foram remexidos.
– E ali… – Carter fez sinal na direção do frigorífico.
– Não dei por nada em falta, então decidi testar aleatoriamente alguns dos
frascos.
– E?
– Vários contêm um placebo.
– Tipo, sem ser plasma verdadeiro?
– Água.
Carter sentiu a sua tensão a subir. A pergunta seguinte era óbvia.
– Como? Quero dizer, só tu é que tens o passe.
– Que nós saibamos.
Verdade.
– O que me leva ao nosso outro problema – continuou Miles.
– Há outro problema?
– O Jackson está desaparecido.
Carter ficou a olhar para ele.
– O quê? Tens a certeza?
– Ele não dormiu no seu quarto ontem à noite. Não o consigo encontrar
em lado nenhum.
Carter refletiu. Jackson era provavelmente a pessoa que ele menos
conhecia aqui. Um homem calmo e contido com trinta e muitos anos.
Abstémio, vegetariano. Fã de ioga e meditação. Apesar disso, Carter nunca
tinha tido problemas com ele. Mas, lá está, não havia o suficiente para ter
problemas. O homem era um fantasma.
– Achas que é ele o ladrão e que fugiu?
– Talvez. Mas para onde?
Miles tinha razão. Havia apenas a aldeia. O aeródromo ficava a uma hora
de distância e havia apenas uma estrada estreita e tortuosa. E onde arranjaria
Jackson um veículo? A única opção seria a estação do teleférico. Mas isso
não era realmente uma opção.
– Talvez não seja o que parece – perguntou Carter. – Talvez ele esteja
apenas a… fazer uma caminhada?
Miles olhou para Carter.
– Sem o seu fato de neve?
Outra boa questão.
– Por agora, mantemos isto entre nós – disse Miles. – Se aconteceu algo
ao Jackson, é mau para os ânimos, especialmente depois do infeliz incidente
com a Anya.
Infeliz. Certo. Carter engoliu em seco.
– E se o encontrarmos?
Os lábios de Miles curvaram-se. Os tomates de Carter recolheram-se para
o interior do seu corpo.
– Então é um homem morto.
Hannah

Os sobreviventes reuniram-se na parte de trás do autocarro.


Os mortos estavam, na sua maioria, na frente.
Hannah tinha verificado ela mesma todos eles. Cinco homens e mulheres
jovens que não iriam chegar aos seus próximos aniversários. A morte tinha
sido súbita e violenta. Era muitas vezes a sua natureza. Aqui não havia
cadáveres bonitos. Raramente havia.
Foi uma sorte, em alguns aspetos, a maioria dos alunos no autocarro
serem estranhos ou apenas conhecidos. Além do homem e da sua irmã, que
ainda estavam juntos no chão das traseiras, ninguém estava a chorar por
causa de um parceiro ou melhor amigo. Por outro lado, nenhum deles tinha
motivos para olhar pelo outro. Cada homem ou mulher por si mesmo. Isso
podia ser um problema. Claro que, neste momento, havia um muito maior.
Mas Hannah não estava preparada para o abordar com ninguém. Ainda não.
Além do seu ajudante ariano, a moribunda e o seu irmão, havia três
outros sobreviventes: um jovem atlético de cabelo escuro e um rosto bonito,
uma rapariga esbelta de cabelo castanho curto e óculos e um jovem magro
com rabo de cavalo e piercings faciais, o que vomitara. Eles falavam entre si.
– Como é que vamos sair daqui?
– Viste a tempestade? Vamos morrer congelados lá fora.
– Podemos morrer aqui dentro.
– Então, o que é suposto fazermos?
– Não acredito que nos tiraram os telemóveis.
– Não acredito que ninguém tenha trazido um às escondidas.
– Quanto tempo vão demorar a encontrar-nos?
– Oh, Deus. Não podemos ficar aqui presos a noite toda. Não com
pessoas mortas.
Hannah poderia ter-lhes dito que os mortos eram a menor das suas
preocupações. A preocupação mais imediata seria a descida da temperatura.
Já estava a ficar frio no autocarro. Todos eles vestiam casacos grossos e
calças de ganga, mas não fatos de neve térmicos, e se ficassem presos aqui
durante a noite, a hipotermia poderia atingi-los rapidamente.
Outras preocupações: a alimentação. Eles tinham pacotes de lanches
preparados pela Academia e água. Mas esses alimentos eram só para o
almoço. Talvez precisassem de os fazer durar muito mais tempo. Havia uma
casa de banho e, apesar do posicionamento desequilibrado, deveria estar
utilizável, para que essas necessidades fossem atendidas. Por enquanto.
Lá fora, a neve ainda estava a acumular-se sobre o autocarro, no vidro.
Quanto tempo levaria até soterrar o veículo e fazê-lo desaparecer de vista? A
tempestade podia parar antes disso, dando-lhes mais opções. Ou talvez não.
– Muito bem. Todos calados!
O homem alto e loiro levantou-se e olhou para os estudantes. Apesar de
todos terem uma idade aproximada – os alunos da Academia variavam dos
dezoito aos vinte e três anos –, ele tinha uma presença imponente
e lentamente o grupo foi ficando em silêncio.
– Primeiro – disse ele –, para facilitar a comunicação, sugiro que nos
apresentemos. Eu sou o Lucas.
– Josh – disse o jovem atlético.
– Ben – disse o jovem dos piercings.
– Cassie – disse a rapariga magra.
– Eu sou a Hannah – disse Hannah.
Ela olhou para trás para o jovem que cuidava da irmã. Ele olhou para
cima.
– Daniel e Peggy.
– Muito bem. – Lucas acenou com a cabeça. – OK. A situação é a
seguinte: não podemos pedir ajuda. Não podemos sair.
– És bom para animar, meu – murmurou Ben.
– E a saída de emergência? – perguntou Josh.
– Está encravada – disse Hannah.
– Tens a certeza?
– Experimenta tu.
Josh levantou-se e desapareceu no autocarro. Em poucos segundos estava
de volta.
– Sim. Está estragada.
– Foda-se – amaldiçoou Ben.
– E parece que não estamos equipados com as ferramentas necessárias
para partir as janelas – continuou Lucas.
– O quê? – perguntou Josh.
– Os martelos de emergência desapareceram – disse Hannah.
– Cristo! – Ben revirou os olhos. – Não posso acreditar que nos puseram
a viajar nesta merda.
Uma observação válida, pensou Hannah. O autocarro era velho.
A Academia não trocava de veículo há já algum tempo. Talvez não tivesse
sido considerada uma prioridade. A maioria dos estudantes chegava de
limusina ou de helicóptero.
– De nada adiantaria – sublinhou Lucas. – Nenhum de nós sobreviveria
por muito tempo nesta tempestade.
– Então, o que sugeres? – perguntou Josh.
– Senta-te e espera que a ajuda chegue.
– E se não chegar?
– Reavaliamos a situação. Poderemos ser capazes de encontrar uma saída.
Nesse caso, nomeamos as duas pessoas mais capazes para tentar obter ajuda.
Mas não vale a pena enviar alguém lá fora se não vai sobreviver.
– Ele está certo – disse Hannah. – É melhor esperar.
– E porque deveríamos dar-te ouvidos? – perguntou Cassie, olhando para
ela friamente.
Hannah notou que a rapariga não tinha questionado a autoridade de
Lucas. Ela manteve uma voz agradável e tranquilizadora:
– Eu tive alguma formação em gestão de crises.
Não tinha propriamente, mas o pai dela sim.
– Numa situação como esta – continuou Hannah –, a nossa melhor
aposta é ficar onde estamos, pelo menos até que a tempestade tenha passado.
Temos comida, temos abrigo e, o mais importante, temo-nos uns aos outros.
– Queres que nos abracemos? – perguntou Cassie sarcasticamente.
– Sim – respondeu Hannah. – Porque o nosso maior desafio se ficarmos
presos aqui esta noite será o frio. Precisamos de nos manter juntos para
maximizar o calor do corpo.
– Achas que vamos ficar presos aqui tanto tempo? – perguntou Ben, com
um ar preocupado.
– Talvez. Talvez não seja possível enviar ajuda até que a tempestade tenha
abrandado.
– Eles vão enviar ajuda, não vão? – perguntou Cassie, dirigindo a
pergunta a Lucas.
– Sim – disse Lucas, tão convincentemente que até Hannah quase
acreditou nele. – Porquê darem-se a este trabalho todo para nos tirar daqui,
para ficarmos em segurança, só para nos abandonarem agora?
Fazia sentido, mas Hannah sabia que parte da razão pela qual a Academia
estava tão interessada em retirar os alunos era para que não pudesse ser
responsabilizada por mais mortes.
Ben levantou uma mão, e isso agradou a Hannah, porque significava que
o grupo estava a aceitá-la e a Lucas como uma espécie de líderes, e isso
tornaria as coisas mais fáceis.
– Sim? – disse ela.
– Devemos, tipo, verificar se algum dos outros tem telemóvel, só por
precaução?
– Por outros, queres dizer os mortos? – disse Hannah.
Ele pareceu constrangido.
– Bem, sim. E, quer dizer, eles não precisam dos casacos ou da comida,
pois não?
Hannah olhou para Lucas. Era uma boa sugestão.
– Devemos fazer uso de todos os recursos disponíveis – disse ele.
– Então, quem vai, tu sabes… – disse Josh.
– Eu vou – disse Hannah.
– Eu vou contigo – ofereceu-se Lucas.
Ela acenou com a cabeça. Foram até à frente do autocarro.
– Na verdade, queria falar contigo – disse Lucas em voz baixa.
– E eu queria falar contigo.
– Está bem.
– Diz tu primeiro – disse Hannah.
– Reparaste em alguma coisa sobre os mortos? – perguntou Lucas.
– Como assim?
– São todos estudantes, certo?
– Bem, sim.
– E todos os sobreviventes são estudantes…
– Onde queres chegar?
– Onde está o motorista?
Ela olhou para ele. Claro. Devia ter reparado. Onde estava o motorista?
Que descuido, Hannah. Ela olhou em volta, como se de repente ele pudesse
aparecer de trás de um banco. Surpresa!
– Isso é impossível – disse ela.
– Lembras-te de como ele era? – perguntou Lucas.
Hannah franziu o sobrolho. Ela tinha visto o motorista fora do autocarro,
a fumar, quando embarcava, mas não tinha prestado muita atenção. Ele era
baixo, pensou ela. E magro. Era basicamente isso.
– Nem por isso.
– Mas não o vês por aqui?
Ela olhou em volta outra vez.
– Não.
– Então só há duas soluções. Ou há uma saída…
– Ou?
– Ele escapou pela saída de emergência e desativou-a depois.
– Mas porquê?
– Sim, porquê? – Lucas sorriu. – Agora, o que é que me querias dizer?
Hannah engoliu em seco, um pouco perturbada pela súbita mudança de
assunto.
– Temos cinco alunos mortos.
– Sim?
– Quatro, como seria de esperar de um traumatismo devido ao acidente.
– E o quinto?
Hannah guiou-o até à frente. Num assento, estava estendido um jovem de
cabelo frisado, com uma grande mossa sangrenta na cabeça.
– Ele provavelmente morreu devido a um traumatismo craniano
provocado por pancadas múltiplas – disse ela.
Lucas olhou para ela com ar confuso.
– Então, ele também morreu no acidente.
– Sim, mas… já era um morto-vivo. Olha para os olhos dele.
Lucas inclinou-se para a frente. Ela ouviu a sua inspiração. As córneas do
estudante eram de um evidente vermelho-rosado. Olhos raiados de sangue.
Lucas empalideceu.
– Mas fomos todos testados!
Era suposto os testes serem infalíveis.
– Alguma coisa deve ter corrido mal – disse ela.
– Verdammt. Achas…
– Não há forma de saber até alguém apresentar sintomas.
– Acabaste de dizer a todos para se abraçarem.
– Ou podemos morrer de hipotermia.
– Mas podemos infetar-nos uns aos outros.
– É demasiado tarde para te preocupares com isso. Estamos a respirar o
mesmo ar, a tocar nas mesmas coisas há horas. Ou temos sorte… ou não.
Ela deixou esta afirmação assentar.
– Então, mesmo que a ajuda venha – disse Lucas lentamente –, alguns de
nós morrerão.
Ele era esperto, mas mesmo assim não percebeu.
Hannah abanou a cabeça.
– Se a ajuda vier, e o Departamento perceber que há uma infeção
a bordo… nenhum de nós vai conseguir chegar ao Retiro.
Meg

O morto era o sargento Paul Parker e ela tinha trabalhado com ele no
Departamento de Homicídios. Mais tarde, ambos foram transferidos para o
Controlo de Infeções e Instabilidade Pública. Ou como todos no
departamento lhe chamavam: «Matar e Queimar.»
«Tens de te lembrar, Hill, eles não são como nós. Estamos a fazer-lhes um
favor.»
Um favor. Pois. Meg lembrava-se. Às vezes ela desejava poder queimar
essas memórias. Arrancá-las da cabeça como uma lobotomia. Esquecer
também pode ser um favor.
Claro que agora nada disso interessava porque o nome na correia enfiada
sob o fato de neve do homem dizia: Mark Wilson – Segurança.
– Quem é ele? – perguntou Sarah. – Ele está bem?
– O nome dele é Mark Wilson. – Meg repetiu a mentira. – E ele está
morto.
Sarah colocou a mão sobre a boca.
– Oh, meu Deus.
– Como? – perguntou Sean.
Boa pergunta. Ela tocou-lhe no pescoço. Não à procura de pulso. Meg
sabia quando um morto estava morto. Foi mais para ter uma ideia da
temperatura do corpo. Estava frio, mas não ainda gelado e ceroso. Ela
pegou-lhe no braço e levantou-o. Ainda solto e flexível. Então o rigor mortis
não se tinha instalado, o que significava que ele tinha morrido
recentemente, o mais provável nas últimas duas horas.
– Pode ser uma reação às drogas que nos foram dadas? – perguntou Max.
Foi uma boa sugestão. Sensata, até. Meg ajoelhou-se ao lado do corpo.
Agora é só um corpo. Nem Paul, nem Mark, nem o que quer que ele se
tivesse chamado. Ela examinou-lhe a cara, a boca. Uma boca que ela tinha
beijado. Por luxúria, solidão, conveniência, desespero. Nunca amor. Nem
mesmo no início. Há relações que começam com menos. Mas precisavam de
mais para se manter.
Agora, ela abriu-lhe os lábios e espreitou, procurando vestígios de vómito,
uma indicação de overdose. Não havia vómito, mas conseguia ver sangue em
redor dos dentes. Também conseguia cheirá-lo. Ela franziu o sobrolho.
Depois levou a mão ao fato de neve dele e abriu-lhe o fecho. Por baixo, ele
vestia uma camisola térmica branca. Ou o que costumava ser uma T-shirt
branca. Agora, a frente estava manchada de castanho.
– Grande merda! – exclamou Karl. – Isso é sangue?
– Sim.
Meg cerrou os dentes e puxou a T-shirt, sentindo uma leve repugnância
perante a rigidez do tecido empapado em sangue e a sensação de o separar
da carne. A ferida estava logo abaixo do osso do peito. Entre a segunda e a
terceira costelas. Um golpe no fígado dele, pensou ela. Preciso, fatal.
– Ele foi esfaqueado – disse ela sem rodeios, e voltou para o grupo.
Eles permaneceram ao redor dela, parecendo assustados e confusos. O
seu infortúnio, o balançar do teleférico encalhado, momentaneamente
esquecidos perante o morto. Meg perguntou-se se algum deles já teria visto
um cadáver de perto antes.
Mesmo com tudo o que tinha acontecido nos últimos dez anos, algumas
pessoas não tiveram contacto com o verdadeiro terror. Viram corpos na
televisão, é claro. Ou pelo menos viram o que a comunicação social queria
que eles vissem. Mas muitas áreas rurais tinham sido poupadas ao pior.
Assim como aqueles ricos o suficiente para viver dentro de um dos
condomínios privados que surgiram fora dos grandes aglomerados urbanos.
Se não vivessem nas cidades, poderiam nunca ter encarado de perto a
carnificina.
– Porque é que alguém faria isso? – perguntou Sarah, com uma voz
hesitante, agarrada ao crucifixo dela.
Meg encolheu os ombros. A quase histeria constante da mulher fê-la
querer ser implacável com ela.
– Quem sabe? Mas sabiam qual era o melhor sítio para o esfaquear
e tornar o ferimento fatal, a não ser que tenham tido sorte.
– Pareces saber muito sobre ferimentos de faca – disse Sean.
– Eu era polícia – admitiu ela.
– Eras? – indagou Karl.
– Sim.
Ela olhou para eles, desafiando-os a perguntar-lhe mais. Ninguém
perguntou. Todos tinham um passado, hoje em dia. E ninguém queria falar
dele.
– Consegues dizer há quanto tempo está morto? – perguntou Max. –
Presumo que ele deve ter sido esfaqueado antes de embarcarmos.
– E eles puseram aqui um cadáver? – disse Karl.
– Talvez ninguém se tenha apercebido – disse Sean. – Todos pensávamos
que ele estava a dormir, certo?
Meg olhou para trás para o corpo. Era possível que ninguém tivesse
reparado, mas parecia improvável. Talvez eles simplesmente não se
importassem.
– Possivelmente – disse ela. – Ele não está morto há muito tempo. Não
mais do que algumas horas, diria eu.
– Que outra explicação haverá? – perguntou Sarah.
– Um de nós apunhalou-o – disse Karl, olhando para Meg. – É isso que
estás a pensar, não é?
– Mas estávamos todos inconscientes – disse Sarah.
– Supostamente – disse Max.
Sarah levantou as mãos.
– Isto é ridículo. Ninguém o esfaqueou. Nenhum de nós sequer
o conhece.
Meg ficou em silêncio. Sarah cruzou os braços como se dissesse: «Faz
sentido, certo?»
Max coçou o queixo.
– Claro, a suposição de que ele foi morto antes do embarque não exclui a
possibilidade de um de nós ser o responsável.
Sarah ficou a olhar para ele.
– O quê?
– Ele quer dizer que – disse Sean –, só porque um de nós não o
apunhalou a bordo, isso não significa que não o matámos antes de
entrarmos.
– Oh, pelo amor de Deus!
Max olhou para Meg.
– Seja como for, de uma maneira ou de outra, vamos ficar presos aqui uns
com os outros durante algum tempo, por isso gostaria de ter a certeza de que
ninguém está na posse de uma arma.
– Todos nós tivemos os nossos pertences confiscados – disse Sean. – Quer
dizer… – Ele olhou para o seu fato de neve e para as botas. – Estas roupas
nem sequer são minhas.
Meg refletiu. Depois começou a abrir o fecho do fato de neve. Por baixo,
tinha vestida uma T-shirt térmica branca e calções. Tal como Paul. Não eram
dela. Ela tinha sido vestida de novo enquanto estava inconsciente. Tirou as
botas e despiu o fato de neve, tremendo imediatamente de frio.
– O que estás a fazer? – perguntou Sean.
– A provar que não tenho nada a esconder.
Ela atirou o fato a Sarah.
– Verifica os bolsos.
Sarah parecia estar prestes a discutir, mas não voltou a abrir a boca. Deu
palmadinhas no fato de neve.
– Nada.
– Ótimo.
Ela devolveu o fato a Meg, que o vestiu de bom grado.
– OK. Quem é o próximo? – perguntou Meg.
Max já estava a despir o seu fato. Seguiu-se Sean. Sarah revirou os olhos,
mas alcançou o seu fecho. Trocaram os fatos de neve, batendo nos bolsos e
sacudindo-os.
Karl foi o último. Olhou em volta como se alguém lhe pudesse conceder
uma suspensão de pena de última hora. Depois abanou a cabeça e alcançou
com relutância o seu fecho. Enquanto ele despia o seu fato de neve, Sarah
soltou um arquejo audível.
Os braços e as pernas de Karl estavam cobertos de feias tatuagens pretas.
Pela crueza da arte, Meg supunha que foram feitas na prisão: suásticas,
caveiras, o número 1 4 8 8, o círculo e o punho arianos, as palavras «Sangue
e Onra». Não havia um centímetro de pele imaculada abaixo do pescoço.
Todos eles sabiam o que aquelas tatuagens significavam. Símbolos de
supremacia branca cheios de ódio.
Karl olhou com ar desafiador para Meg, mas ela podia ver a vergonha nos
seus olhos. Sentiu os outros a observá-la. Claro que sim. Ela era uma mulher
negra. As tatuagens deviam chateá-la mais. Um fardo para ela, não para eles.
Ela sorriu para Karl.
– Sabes que escreveram mal «honra».
Ele curvou a cabeça.
– Sim, eu sei.
Ela anuiu.
– Dá-me o teu fato.
Karl despiu o fato e estendeu-lho. Meg pegou nele.
Alguma coisa bateu no chão do teleférico com um ruído.
Uma faca pequena, manchada de sangue.
Carter

Estava no início do caminho, lá no topo, mesmo fora dos limites do


Retiro. O velho sinal – o que ninguém já usava – balançava sobre o gancho
com ruído.
Carter certificou-se novamente de que tinha tudo, e encheu-se de
coragem. Eram cerca de vinte minutos para chegar à aldeia num dia bom, se
fosse um bom esquiador. Ele não era um bom esquiador e hoje – a julgar
pelas nuvens que se acumulavam, pelo vento e pela neve que girava em
torno dos seus óculos de esqui – não era um dia bom.
E depois havia o bosque. Não havia como evitá-lo. A meio do caminho,
fila após fila de pinheiros altos cerrados em ambos os lados. Denso, sinistro.
Cheio de coisas que observavam e sussurravam… e assobiavam.
Carter odiava bosques e florestas. Sempre odiara. A culpa era do pai.
Quando Carter era criança, o pai contou-lhe uma história sobre uns miúdos
que ele conhecia que tinham encontrado o corpo de uma rapariga no
bosque. Ela tinha sido desmembrada. Os membros foram escondidos sob
montes de folhas. Eles apanharam o tipo que a matou, mas nunca
encontraram a cabeça dela.
Carter não tinha a certeza se isto era verdade ou não. O pai dele dizia
muitas tretas, sobretudo quando estava bêbado. Mas essa história tinha-o
marcado. Carter acordava em sobressalto de pesadelos com a rapariga
morta, a cabeça desaparecida a rastejar na direção dele como uma aranha
humana mutante. O pior pesadelo do Dr. Moreau. Nunca nada de bom
acontecia num bosque escuro. Ele sabia bem.
Carter ajustou os óculos e respirou fundo. Que se lixe. Ele deu balanço
com os seus bastões. Não de forma elegante, nem rápida. Como um miúdo
nas pistas dos iniciantes. Ele detestava aquela sensação de perder o controlo,
de ser tomado pela gravidade e pelo gelo escorregadio e cristalizado. Preferia
um carro ou mesmo uma bicicleta. Tudo menos duas placas de madeira e a
merda de uns paus.
Ele imaginava Caren a observar da enorme janela de vidro, troçando do
seu caminho tremido e inseguro. Ele apanhava muitas vezes Caren a
observá-lo. Ele não tinha nenhuma ilusão de que isso significasse que ela
tinha um fraquinho secreto por ele. A não ser que ela se sentisse atraída pelo
grotesco. Era mais como se ela conseguisse ver através dele. Como se ele
estivesse tão nu para ela como o imperador com as suas roupas novas e
brilhantes.
Carter tentou livrar-se de pensamentos sobre Caren com C e concentrar-
se antes em não partir o pescoço. O suor surgiu e arrefeceu sobre as suas
costas. O vento fazia bater a neve na sua cara e ele tinha de continuar a
arriscar o seu equilíbrio para levantar um braço e limpar os óculos
novamente. O peso do céu negro abateu-se sobre ele. Ele precisava de ser
rápido hoje. Não podia correr o risco de ser apanhado pela tempestade.
Alcançou um planalto na encosta e conseguiu parar. Abaixo, o caminho
estreitava, os pinheiros altos dificultavam a visão. Ele tentou acalmar a sua
preocupação, depois deu novamente balanço o mais rápido que conseguiu,
mantendo os olhos focados sempre em frente, longe das curvas sombrias do
bosque. Ainda era cedo, mas a tempestade já estava a desencadear um
crepúsculo prematuro. A caminhada de volta seria a parte perigosa.
Mais à frente, ele conseguia ver o declive a aumentar, a achatar, e a sua
respiração começou a ficar um pouco mais branda. À sua direita, surgem à
vista os restos enferrujados de um velho teleférico de esqui. Noutros tempos,
tinha transportado pessoas para o topo das pistas. Agora, metade da
estrutura tinha caído, havia cadeiras enterradas na neve, como um grande
animal morto devolvido à terra.
Carter passou pelos destroços, descendo até à aldeia. Não era uma aldeia
grande, mas no seu auge deve ter sido movimentada. Alegadamente, havia
um boutique hotel chique, alguns bares e restaurantes elegantes, uma
farmácia e um pequeno supermercado – a Loja de Conveniência de Quinn.
O suficiente para servir os esquiadores que aqui passavam férias.
Porém, ninguém aqui passava férias há muito tempo. O boutique hotel
estava agora entaipado e coberto de graffiti. Os restaurantes e bares também
estavam abandonados. A farmácia tinha-se aguentado por um tempo, mas
eventualmente não conseguia arranjar os medicamentos, e depois foi
saqueada, então também fechou. E assim restava a loja de Quinn.
Carter suspeitava que, no caso de um apocalipse nuclear, as únicas coisas
que sobreviveriam seriam as baratas e Jimmy Quinn.
Ele tirou os esquis e caminhou ao longo da estrada principal, reparando
num ponto castanho no canto do olho: um veado em fuga. Ficou um pouco
tenso, na eventualidade de algum predador o seguir – um puma ou cães
selvagens. Mas a rua principal continuava vazia. Carter relaxou um pouco.
A loja de Quinn estava a meio caminho. A fachada da loja estava suja, as
janelas tinham grades; arame farpado decorava o telhado. Várias câmaras de
segurança giraram na direção de Carter à medida que ele se aproximava. No
entanto, quando ele empurrou a porta, ela balançou ao som de uma
campainha antiquada.
No interior, a loja estava pouco iluminada e poeirenta e cheirava sempre a
peixe e a algo azedo. As prateleiras estavam repletas de produtos enlatados
de vários continentes e dois enormes frigoríficos continham pedaços de
carne de origem duvidosa. Carter nunca tinha tido a coragem de perguntar
o que eram, não fosse ter de se juntar a eles.
O resto da loja estava entregue a uma bizarra e eclética seleção de itens
que parecia nunca mudar. Carter passou por uma exposição de ovos de
Páscoa, collants de senhora, boias de piscina insufláveis, misturadores
de cocktail e pacotes de cassetes de vídeo. Nem sequer DVD – cassetes de
vídeo. E Betamax também. Carter perguntava-se se, antigamente, a loja teria
sido mais elegante, abastecida com vinhos finos e iguarias frescas. Ou talvez
não.
Uma vez por mês, Quinn mandava vir mantimentos através do pequeno
aeródromo a uma hora de carro da aldeia. Ele também tinha lá dois dos seus
quatro filhos, então nada entrava ou saia da aldeia sem a aprovação de
Jimmy Quinn. Incluindo as pessoas. O Retiro e Quinn tinham formado uma
aliança desagradável. Carter duvidava que fosse possível ter qualquer outro
tipo de aliança com Jimmy Quinn.
Miles tinha dito uma vez a Carter que a família de Quinn geria um
grande sindicato do crime no Reino Unido e que Quinn ainda mantinha
ligações com o crime organizado. Carter estava disposto a acreditar nisso.
No entanto, perceber como Quinn tinha acabado aqui, a milhares de
quilómetros de distância, a gerir uma loja de conveniência nas montanhas,
era a dúvida de qualquer um. Carter tinha o pressentimento de que era
melhor não saber.
Quando Carter chegou ao balcão da loja, Jimmy Quinn surgiu das
traseiras.
– Olá, Carter. Como estás, pá? Há muito tempo que não te via. Pensei que
podias estar morto.
Dizer que Jimmy Quinn tinha um metro e oitenta de altura era ser
generoso. Era um homem minúsculo, cabeça repleta de caracóis negros e
um grande sorriso que não condizia bem com os seus olhos cruéis e
cinzentos. Se a expressão dele dizia: «Bem-vindo», os olhos dele diziam:
«Mas cuidado com a retaguarda.»
Carter sorriu.
– Olá, senhor Quinn. – Sempre senhor Quinn. Nunca Jimmy. – Ainda
não morri.
– Bom. Isso é bom, certo? É o melhor que podemos esperar, não é?
Jimmy Quinn falava a um ritmo acelerado, como o Yoda depois de tomar
anfetaminas. Se o Yoda falasse com um sotaque quase impenetrável de
Liverpool.
– Tem tudo o que está na nossa lista? – perguntou Carter.
Miles telefonava para Jimmy a cada quinze dias, fornecendo os elementos
necessários para as compras.
– Sim, sim, a maioria. – Jimmy acenou com a cabeça. – Fiz umas
substituições. Tu sabes.
Carter sabia. Jimmy Quinn uma vez substituiu latas de feijão por selante
de madeira e farinha por uma planta de vaso falsa. Era inútil perguntar quais
eram as substituições, e Carter apenas acenou com a cabeça.
– Não há problema. O Miles já acertou o pagamento, certo?
– Sim. O Miles é porreiro. Não é como alguns. Para alguns clientes tenho
de mandar lá os meus filhos para resolver, sabes?
Carter nunca tinha visto outro cliente vivo na loja de Quinn. Mas uma vez
tinha visto os restos de um a ser arrastado para a rua por um dos dois
guarda-costas corpulentos de Quinn.
Ele tirou um pacote do bolso.
– O Miles acrescentou um extra, pelo seu bom serviço.
Jimmy Quinn olhou para o pacote com ganância, agarrou-o e empurrou-
o para debaixo da caixa registadora.
– Bom trabalho. O Miles é um tipo porreiro, certo?
Errado, pensou Carter. Mas era tudo relativo.
Ele esperou enquanto Jimmy desaparecia pelas traseiras e voltava com os
seus filhos. Carter nunca havia sido formalmente apresentado, mas tinha a
certeza de que o que tinha uma cara ameaçadora, com tatuagens pretas a
aparecer do colarinho da camisa, se chamava Sam e o que tinha uma cara
assustadora, com cabelo comprido liso e uma cicatriz à vilão do James Bond,
que ia dos olhos ao queixo, se chamava Kai. Mas podia estar enganado. Ele
sempre pensou neles carinhosamente como Coisa 1 e Coisa 2.
– Aqui tens, rapaz. – Jimmy piscou o olho.
Carter pigarreou.
– Ah, posso ir à casa de banho?
Jimmy Quinn ficou a olhar para ele.
– É um longo caminho de volta a subir a montanha – acrescentou Carter.
Jimmy deu uma gargalhada.
– Claro. Não queres cagar as calças, certo?
Ele acenou para o Coisa 2 à sua esquerda.
– Deixa-o usar a cagadeira.
O Coisa 2 acompanhou Carter até ao WC localizado à esquerda do
balcão. Tirou uma chave de uma corrente à volta do pescoço e abriu-o. O
cheiro a esgoto atacou as narinas de Carter. O Coisa 2 sorriu enquanto ele
empalidecia.
– Bom proveito.
Carter entrou e fechou a porta atrás dele. Depois jogou a mão ao seu fato
de neve, procurou na sua roupa interior e tirou dois embrulhos envoltos em
plástico que tinha guardado lá dentro. Levantou a tampa da cisterna e
deixou cair os embrulhos. Depois puxou o autoclismo. O sinal para o Coisa
2 de que ele estava despachado. Quando ele saísse, o Coisa 2 entraria e
recuperá-los-ia. Amanhã, um dos pacotes estaria a caminho de uma
pequena cidade suburbana a muitos quilómetros de distância. O outro
ficaria para o Coisa 2.
Mesmo em famílias como os Quinns, não havia lealdade absoluta.
O Coisa 2 e Carter tinham chegado a um acordo. Carter precisava de enviar
os pacotes sem que Jimmy (ou seja, sem que Miles) soubesse. O Coisa 2 não
se importava de desviar mais alguns fundos para si mesmo.
Carter saiu da casa de banho. O Coisa 2 nem sequer olhou para ele.
Carter foi até às mercearias, que Jimmy Quinn e o Coisa 1 já tinham
amarrado aos esquis lá fora.
– Adeus, senhor Quinn.
Jimmy sorriu.
– Até à próxima vez, se não estiveres morto.
Carter riu e acenou, mesmo pensando que Jimmy não estava tão longe da
verdade.
Enviar os pacotes era um grande risco. Mas era um que ele estava
disposto a correr. Por ela. Agora, o risco tinha aumentado. Miles sabia que
havia armazenamento em falta.
A pergunta era: quanto tempo até ele perceber que era Carter que o estava
a roubar?

Carter tinha esperança de voltar para o Retiro antes de escurecer. Mas a


tempestade tinha outras ideias. Era meio da tarde, ele estava apenas a meio
da encosta, e já a luz escasseava, miseravelmente. A sumir-se para o seu
canto, como uma adolescente amuada.
O vento batia-lhe no corpo, tentando empurrá-lo pela encosta abaixo.
Chicotadas de neve a voar freneticamente pelo ar. Nada agradável. Nem um
pouco. Carter resmungou e cravou os seus bastões com mais força na neve,
ajeitando as mercearias amarradas aos esquis atrás dele.
Seria mais fácil caminhar mais perto da floresta. A neve não seria tão
profunda e ele ficaria protegido do vento. Mas a floresta estava cheia de vida
selvagem, que tinha ganho força nos últimos anos. Menos humanos e menos
civilização tinham-nos colocado numa posição mais equilibrada. Os
humanos já não eram os senhores de tudo o que viam.
E depois havia os Whistlers.
Carter deu por si a lançar olhares em direção à floresta. Aqui as árvores
ainda eram bastante esparsas. Mais acima na encosta, elas tornavam-se mais
densas, inclinando-se para cada um dos lados, arrastando sombras como
mortalhas esfarrapadas.
Ele engoliu em seco. Tentou concentrar-se na tarefa que tinha em mãos.
Ainda havia alguma luz do dia, apesar das crescentes nuvens negras. Os
Whistlers preferiam a escuridão total. Escuro como breu. O sol era mau para
a sua pele frágil. Os Whistlers eram sobrenaturalmente pálidos, quase
translúcidos. Como fantasmas. Só que, ao contrário dos fantasmas, eles não
andavam à deriva silenciosamente. A sua chegada era precedida pelo
horrível e sibilante barulho que eles faziam enquanto tentavam inalar
oxigénio através dos seus pulmões perfurados e cicatrizados.
Para com isso, Carter.
Ele colocou uma bota na frente da outra, cravando os seus bastões na
neve para se arrastar pela encosta. As nuvens inchavam e brilhavam
sombriamente por cima dele. A neve colava-se aos seus óculos. Carter
cerrou os dentes. Limpou os óculos novamente. E depois uma coisa chamou
a sua atenção.
Movimento mais à frente. Uma mancha preta no meio do branco. Ele
piscou os olhos. Um corvo? Demasiado grande. Um animal? Demasiado
alto. Uma figura humana, ele percebeu. Parada, cambaleante, a cair na neve
e a levantar-se novamente. Carter ainda estava muito longe para conseguir
dizer se era homem ou mulher. Ou um Whistler.
Ele fez uma pausa. A figura estava a bloquear o seu caminho de volta para
o Retiro. Desengatou as correias à volta da cintura que o amarravam ao
trenó improvisado atrás dele. Depois cravou os bastões na neve e prendeu-
lhes os esquis. A neve era profunda. Deviam aguentar por um tempo. Ele
não queria ter de perseguir as malditas mercearias até à aldeia lá em baixo.
Aliviado da sua carga, Carter avançou em direção à figura. Se o tinha
visto, não aparentava. Parecia confuso, a andar às voltas na neve. Perdido?
Ferido? Quando Carter se aproximou, conseguiu ver que era um homem.
Cabeça rapada. Roupa escura. Sem fato de neve. O mal-estar de Carter
aumentou. Havia manchas vermelhas em volta do homem, a pintar a neve.
Faltava-lhe um braço, arrancado da articulação, deixando à vista um coto
aberto em ferida. Tinha havido luta com um animal. Ou talvez tivesse sido
atacado por Whistlers.
Então o homem virou-se, e Carter compreendeu porque é que ele
gesticulava de forma tão aleatória. Ele estava cego. Um globo ocular tinha
saído da órbita e estava preso, congelado, à sua bochecha. O outro tinha
desaparecido, bem como metade do seu rosto. Arrancado à dentada, não
deixando nada além de cartilagem e osso.
Apesar da mutilação, Carter ainda conseguiu reconhecê-lo.
Jackson.
Que diabo andaria ele a fazer aqui fora? Como teria chegado até aqui sem
morrer de perda de sangue ou de hipotermia? Além dos outros ferimentos,
as queimaduras de frio já tinham começado a consumir a carne de Jackson.
Era um milagre ainda estar vivo. Sem cuidados médicos, não duraria muito
mais tempo.
Carter tornou a olhar para o trenó improvisado. Mesmo que quisesse, não
conseguiria arrastar as compras e Jackson de volta para o Retiro. Se ele
voltasse sem as compras, a conversa com Miles seria curta e grossa. Mas ele
não podia deixar Jackson a morrer aqui fora. Não desta maneira.
– Foda-se – amaldiçoou. Depois, a gritar para o vazio: – FODA-SE!
Ou és boa pessoa ou és um sobrevivente, alguém lhe tinha dito uma vez. O
cemitério está cheio de pessoas insubstituíveis.
Foi um conselho pertinente. Naturalmente, a pessoa que o tinha dito
estava morta.
Carter tinha-a matado.
Jackson caiu para a frente, mais sangue a escorrer do seu corpo e a tingir a
neve à sua volta. Ele tentou abrir caminho em direção a Carter. Desta nova e
pouco lisonjeira posição na bochecha, o seu olho remanescente parecia
olhar para ele acusadoramente.
Carter colocou a mão no bolso e sacou de uma arma. A boca de Jackson
abriu-se num apelo silencioso.
Ou és boa pessoa ou és um sobrevivente.
Havia alturas, pensou Carter, em que ser um sobrevivente era mesmo uma
porcaria.
– Desculpa, meu – sussurrou ele.
E depois ergueu a arma e baleou Jackson na cabeça.
Hannah

– Não podemos dizer aos outros – disse ela, convictamente.


Lucas ergueu as sobrancelhas.
– Porquê?
– Porque eles podem entrar em pânico. Neste momento, precisamos de
manter toda a gente calma.
– Então o que sugeres?
– Levamos a roupa e os mantimentos como planeado. Depois levamos os
mortos para a frente do autocarro, deitamo-los nos assentos, escondemos o
corpo infetado sob um deles e esperamos que ninguém verifique.
– E esperamos que mais ninguém apresente sintomas?
Hannah mordeu o interior do lábio, mas acenou com a cabeça.
– Concordo – disse Lucas.
Eles despiram os corpos. Com os primeiros dois foram mais delicados,
ambos sentindo a intrusão, a indignidade. Várias vezes, Hannah quase pedia
desculpas à pessoa morta que estava a manipular.
Ao terceiro, trabalharam rapidamente e com menos cuidado, retirando as
roupas, verificando os bolsos em busca de algo útil, pondo lanches e água
num saco de plástico que tinham encontrado numa das raparigas. Talvez ela
costumasse enjoar nas viagens, pensou Hannah, e sentiu uma pontada
momentânea de empatia. Acabaram-se as viagens para aquela rapariga.
Nunca mais.
Ela afastou a emoção e continuou. Dependendo do tamanho, poderiam
isolar-se duplamente com a roupa exterior extra. Tinham agora mais água,
barras proteicas e fruta. Não era muito, mas daria para os gastos. Até chegar
a ajuda. Se chegasse. E depois como seria? E quanto ao aluno infetado?
Se não informares o Departamento, Hannah, serás cúmplice na propagação
do vírus e colocas os outros em perigo.
Tentou calar a voz do pai. Mas ela permanecia. Hannah conhecia
a política estabelecida pelo Departamento. Como um dos principais
virologistas do mundo, o pai dela ajudou a elaborá-la. Conter a infeção a
todo o custo. Acabar com ela. As pessoas acharam que isso significava
isolamento, quarentena. Mas este era um vírus como nenhum outro. Que se
propagava como nenhum outro. A única forma segura de acabar com ele era
acabar com os portadores. Permanentemente.
Se quisessem ultrapassar isto, não podiam informar ninguém sobre o
corpo infetado.
Hannah suspirou e olhou para o jovem ao qual acabara de retirar as
calças. Se não tivéssemos em conta o ângulo antinatural do pescoço, estava
incólume. Agora apenas vestido com uma T-shirt e ceroulas, podia estar
apenas a descansar, descontraído. Ela franziu o sobrolho. Algo chamou a sua
atenção. Uma protuberância não natural na zona do baixo-ventre das
ceroulas. Ela inclinou-se e estendeu uma mão.
– O que estás a fazer?
Ela saltou e virou-se. Lucas. Ele estava a segurar um monte de roupa e a
olhar para ela curiosamente.
Ela corou.
– Este estudante. Tem algo… nas calças.
Uma sobrancelha arqueada.
– Estou a ver.
Ela sentiu a irritação a aumentar.
– Olha.
Ele seguiu o olhar dela.
– Oh. Estou a ver, sim.
Ela inclinou-se para a frente e tocou na protuberância retangular. Dura,
metálica. Olhou de novo para Lucas e depois enfiou a mão dentro das
ceroulas, tentando ignorar a sensação agreste dos pelos púbicos. Pelos
púbicos frios. Ela reprimiu um arrepio de repugnância. Os dedos dela
fecharam-se sobre o objeto e retirou-o para fora.
Um telemóvel.
Lucas sorriu.
– Acho que, como se diz em Inglaterra, bingo.
– Talvez. – Hannah olhou para o telemóvel. Pressionou o botão de
«iniciar». Ele ganhou vida. O protetor de ecrã era uma foto de outro jovem:
cabelo loiro despenteado, rapado de um lado, piercings ao longo de uma
orelha, no nariz e no lábio. Estava a sorrir e a fazer um sinal de paz para a
câmara. Um namorado, talvez? Mais uma vez, Hannah sentiu aquela
pontada de tristeza. Este rapaz tinha tido um parceiro que o amava, que
talvez, ainda agora, estivesse à espera de uma mensagem ou chamada, e aqui
estava ela a roubar bens ao seu cadáver.
Nunca vais conseguir ser médica se deixares que as emoções se
sobreponham.
O pai dela outra vez.
A empatia é uma distração. Eles são pacientes, não pessoas. Vais perceber
que há uma grande diferença.
OK. Bem visto. Neste momento, ela precisava de estar lúcida.
– Há rede? – Lucas fez sinal com a cabeça para o telemóvel.
Hannah levantou-o no ar. Zero barras. Claro.
– Isso pode mudar se a tempestade passar – disse ela. – Mas é inútil, está
bloqueado.
Lucas deu explicações.
– Precisamos da palavra-passe. Scheisse.
Hannah olhou de novo para o aluno morto. O seu rosto estava imaculado,
os olhos abertos, ainda não toldados pela morte.
Pacientes, não pessoas.
– Há outra opção.
– Qual?
– Reconhecimento facial.
Lucas franziu o sobrolho.
– Será que vai funcionar? Quero dizer, o software tem alguma forma de
detetar se, sabes…
– … estamos mortos ou vivos? – Hannah encolheu os ombros. – Só há
uma maneira de descobrir.
– EI!
Ambos se sobressaltaram perante o grito vindo da parte de trás do
autocarro.
– A minha irmã precisa de um pouco de água – disse Daniel.
– Eu vou lá – disse Lucas. – Vê se consegues desbloquear o telemóvel.
Ela anuiu. Lucas caminhou pelo autocarro com o monte de roupas e o
saco de lanches e água. Hannah voltou-se para o corpo.
– Muito bem.
Ela inclinou-se e segurou o telemóvel na frente da cara do aluno.
A primeira tentativa falhou. Raios. Ela colocou a mão atrás da cabeça dele
para a endireitar. Esta mexeu-se sobre o pescoço dele com uma facilidade
repugnante. Ela posicionou o aparelho mais diretamente na sua linha de
visão. Sucesso. Desbloqueado o pequeno cadeado no topo do ecrã. Lá se vai
a segurança cibernética. Ela deslizou o dedo rapidamente no telemóvel e
voltou para junto dos outros. O grupo estava a separar as roupas e os
mantimentos. Eles olharam para cima quando ela se aproximou.
– Estamos a dividir a comida e a água igualmente – disse Lucas.
– As roupas estamos a separar consoante o tamanho – acrescentou Josh.
– Depois pensámos em fazer um desfile de moda – disse Cassie,
indolentemente.
Hannah perguntou-se novamente qual seria o problema desta rapariga.
Talvez quisesse estar no comando. Ou talvez fosse apenas da autoridade –
qualquer autoridade – que ela não gostasse. Mas Hannah não tinha tempo
para jogos de poder mesquinhos.
– Encontrámos isto num dos alunos – disse ela, energicamente, a segurar
o telemóvel.
– Meu, eu disse-te que alguém ia trazer um à socapa – disse Ben, a sorrir.
– Já o desbloqueei, mas não há rede.
Hannah viu a esperança surgir e a desaparecer dos seus rostos.
– É possível que consigamos um sinal quando a tempestade tiver
abrandado – acrescentou ela.
– E que tal uma mensagem? – disse Daniel. Ele sentara-se um pouco
afastado dos outros, segurando a mão da irmã enquanto esguichava água na
boca dela. Ela ainda estava a aguentar-se, pensou Hannah, mas mal. E o que
significaria para o Daniel quando ela morresse?
– Se não há sinal… – começou ela por dizer.
Ele interrompeu-a.
– Às vezes a qualidade do sinal não é suficiente para localizar a largura de
banda larga necessária para uma chamada de voz, mas ainda se pode enviar
e receber mensagens porque a largura necessária para isso é muito pequena.
Hannah olhou para ele. Ele fez um pequeno encolher de ombros.
– Trabalhei numa loja de telemóveis por um tempo.
– Parece que vale a pena tentar – disse Lucas.
– Mas a quem devemos mandar uma mensagem? – perguntou Ben.
Eles entreolharam-se. Era uma boa pergunta.
– Precisamos de contactar alguém envolvido na evacuação – disse Lucas.
– Alguém no comando.
– Referes-te ao professor Grant? – disse Ben. – Ele é o chefe, certo?
– Certo. – Cassie resmungou. – Por mero acaso, alguém tem o número
dele?
Hannah hesitou. Eles não sabiam. Ela nunca tinha contado a ninguém na
Academia. Nem ele. Era assim que ambos preferiam. Mas e agora?
– Eu tenho – disse ela. – O professor Grant é meu pai.
Todos olharam para ela.
– Meu, isso é o que eu chamo de reviravolta – disse Ben. – O teu pai é o
chefe do Departamento?
– Não tinhas dito nada sobre isso antes. – Cassie olhou para ela com
desconfiança.
– Nunca pensei que fosse preciso dizer – respondeu Hannah. – Ninguém
na Academia sabia. Eu usei o apelido da minha mãe, Weston.
Todos ficaram em silêncio por um momento.
– Então, se o Prof. é o teu pai, porque não te levou com ele no seu
helicóptero no início da evacuação? – perguntou Josh.
Hannah sentiu-se corar.
– Eu não queria ir – disse ela, o que era verdade. – Ainda tinha trabalho
que precisava de acabar. – Uma mentira.
– Recusaste a oportunidade de fazer uma viagem rápida por causa de
trabalho? – disse Ben.
Não. Porque o pai dela não a tinha convidado.
– Sim. – Hannah acenou com a cabeça.
– Não acredito em ti – disse Cassie.
– Porque haveria de inventar?
– Para te fazeres de importante.
Hannah suspirou.
– Só vos estou a dizer agora porque fui obrigada. Porque pode ajudar.
– Tudo bem. – A Cassie fez sinal com a cabeça na direção do telemóvel. –
Manda uma mensagem ao papá, então.
O pai dela era a pessoa óbvia a contactar, mas algo nela ainda resistia.
Encerramento. Conter o vírus a todo o custo. Mas que escolha tinha ela?
Olhou para o ecrã e percebeu que havia uma conversa de mensagens ainda
aberta.
As últimas mensagens que o aluno morto recebera. Ele devia estar
a responder quando aconteceu o acidente.

O Sr. Jet está a bordo?

No porão da bagagem.

Sabes o que tens de fazer?

Chegar, confirmar e tratar do Sr. Jet.

[Um emoji de polegar erguido.] Estás a sentir-te bem?

Sinto-me bem. [Seguido de três emojis – um confete


de festa, uma garrafa de champanhe e fogo.]
Ela franziu o sobrolho. Sr. Jet. Quem ou o que era o Sr. Jet? E quanto aos
emojis?
– Esqueceste-te do número dele? – perguntou Cassie.
Hannah olhou para cima.
–Não. É só… estas mensagens. São um pouco estranhas.
Ela viu Cassie e Josh a trocar olhares.
– Olha. – Ela entregou o aparelho a Lucas.
Ele leu-as e encolheu levemente os ombros.
– Estudantes, já sabes, talvez algum tipo de piada?
– Podemos ver? – perguntou Josh.
Lucas entregou-lho. Cassie e Ben aproximaram-se para olhar para ver
também.
– Pode ser tráfico de droga – disse Ben.
– Talvez o senhor Jet seja… – Josh imitou uma linha de cocaína.
– Disseste senhor Jet? – perguntou Daniel lá de trás.
O grupo virou-se. Relutantemente, pensou Hannah. Como se estivessem a
tentar esquecer-se de que ele estava lá, sentado com a irmã moribunda. Uma
dose exagerada de realidade.
– Sim. Porquê? – perguntou Josh.
– Posso ver?
Ben passou-lhe o telemóvel. Daniel leu a mensagem. Hannah viu o pânico
no rosto dele.
– O que foi? – perguntou ela.
– Bem, eu posso estar errado… pode significar algo completamente
diferente, mas…
– O quê?
Ele olhou para ela. Os olhos dele estavam muito azuis, pensou ela.
Assustador.
– Eu trabalhei num cinema – disse ele. – A vender refrescos.
– Pensei que trabalhasses numa loja de telemóveis? – questionou Lucas.
– Eu tive alguns trabalhos.
– Continua – disse Hannah.
– Na maioria dos edifícios públicos, há códigos, para quando é preciso
evacuar as pessoas sem causar pânico. Por exemplo, se houver um incêndio,
o código para isso é senhor Sands. O senhor Sands está no edifício.
Todos eles acenaram com a cabeça. Hannah pressentiu instintivamente
algo desagradável.
– Então, para que é o código do senhor Jet?
Daniel pigarreou e olhou à sua volta.
– Uma bomba.
Meg

Eles olharam para a faca.


– Não é minha. Nunca a tinha visto antes! – Karl olhou em volta para o
grupo com olhos selvagens. – Têm de acreditar em mim.
– Não temos de acreditar em nada do que dizes – ripostou Sarah. – Caiu
do teu bolso.
– Alguém deve tê-la posto lá.
Sarah troçou.
– Certo. Como se eles te tivessem feito essas tatuagens nazis.
– É uma possibilidade – disse Max calmamente. – A faca, quero eu dizer.
Porque é que Karl concordaria em ser revistado se soubesse que a faca estava
lá?
– Ele foi o último. Não queria tirar a roupa – disse Sarah.
– Por causa disto. OK? – Karl estendeu os braços, corado e zangado. – Eu
não queria que as vissem.
– A sério? Não querias que soubéssemos que estamos a partilhar o nosso
espaço com um supremacista branco de extrema-direita?
– Não sei se há outro tipo de supremacista branco – disse Meg
imparcialmente.
Sarah olhou para ela.
– Isto não te incomoda?
Antes que Meg pudesse abrir a boca para lhe dizer que sim, claro, mas que
deveria incomodar a todos eles, Karl entrou em cena:
– Eu não sou racista ou um supremacista branco. Eu tive de o fazer. Eu
estava na prisão, OK? Era a única maneira de ficar a salvo. – Ele olhou em
volta para todos eles, em jeito de súplica. – Tive de o fazer – concluiu, já sem
forças.
– Porque é que foste preso? – perguntou Meg.
Uma hesitação. Não olhou para ela.
– Fraude.
– Certo. – Meg anuiu lentamente. Depois estendeu-lhe as suas roupas.
– Veste-te.
– Não. – Sarah arrancou-lhe as roupas. – Ele não as terá de volta até
confessar ou explicar.
Meg ficou a olhar para ela.
– Não é assim que nós fazemos as coisas.
– Nós? Quem diabo somos nós? A polícia? Caso não tenhas reparado, já
não és polícia. Estamos só nós aqui.
– E então? Perdemos o sentido da decência?
– Ele pode ser um assassino.
– Inocente até prova em contrário.
– A Meg tem razão – disse Sean. – Devolve a roupa ao homem.
Sarah olhou fixamente para todos eles, atirou a roupa para o chão
e afastou-se até ao canto mais distante do teleférico. O que não foi muito
longe. Esse era o problema de fazer uma birra num teleférico, pensou Meg.
Não havia para onde fugir.
Karl recuperou a roupa com cuidado e vestiu-a rapidamente, quase
tropeçando com a sua pressa de se vestir. Meg sentiu alguma pena dele.
Tinha sido humilhado e amedrontado. E ela sabia como era a vida na prisão
para pessoas como Karl. Fraco e novo no sistema. Eram grandes alvos,
violados, em constante medo pelas suas vidas. A única forma de sobreviver
era afiliar-se a um gangue, para proteção. Às vezes, todos nós tínhamos que
fazer o necessário para sobreviver, por muito desagradável que fosse.
A faca era incriminatória, sim. Mas o seu instinto dizia-lhe que Karl não
era um assassino. O choque dele ao ver a arma parecia genuíno. O que
significava que provavelmente alguém lá teria colocado a faca antes – ou
depois – de terem entrado no teleférico. Se foi depois, então alguém aqui
dentro não tinha sido drogado. Alguém estava a mentir.
– Não fui eu – murmurou Karl novamente. – Nem sequer conheço o tipo.
Meg podia ter-lhe dito que muitas pessoas matam estranhos. Na maioria
dos casos, matar um estranho era mais fácil. Mas geralmente havia algum
motivo: raiva, álcool, dinheiro, sexo. Neste momento, ela não conseguia
conceber porque é que um ex-vendedor de insufláveis iria querer esfaquear
um ex-polícia. A não ser que…
– Tens a certeza de que não o conheces? – perguntou ela a Karl.
– O quê? Sim. Nunca tinha visto o tipo até, bem, agora mesmo.
– A identificação diz que ele é segurança – continuou ela. – Muitos dos
seguranças são ex-polícias. Nunca tiveste um desaguisado? E viste aqui uma
hipótese de vingança?
Ele olhou para ela com olhar sentido.
– Pensei que estavas do meu lado.
– Eu não estou do lado de ninguém, Karl. Só estou a tentar chegar
à verdade.
– E quem fez de ti a chefe? – disse Sarah, de repente.
Meg sorriu friamente.
– Estamos apenas a conversar, Sarah.
Antes que Sarah pudesse responder, Meg voltou-se para Karl.
– Então?
– Não. Eu não o conhecia e, mesmo que o conhecesse, por que raio
o mataria aqui? Quero dizer, estamos prestes a ficar juntos no mesmo espaço
durante meses. Tempo de sobra para, precisamente – ele fez aspas no ar –,
uma «vingança».
Ele tinha razão.
Max parecia pensativo.
– O facto de a arma estar escondida na roupa de um de nós não torna
mais provável que tenha sido alguém neste teleférico a matar o senhor
Wilson?
– Como é que chegas a essa conclusão? – perguntou Sean.
– Bem, se o culpado tivesse atacado nas instalações, ele ou ela teria tido
mais opções para se livrar da faca.
– Talvez – disse Meg. – Ou talvez não. Talvez a intenção fosse sempre
incriminar um de nós.
– Está bem. – Sean suspirou. – A meu ver, não importa quem o matou…
– Para mim importa – disse Sarah. – Não quero ficar aqui fechada com
um psicopata que me vai apunhalar enquanto durmo.
– OK – disse Sean. – Mas o que achas que nos vai acontecer se
aparecermos no Retiro com um tipo morto e uma faca ensanguentada?
Seremos todos detidos, presos, ou pior.
– Devemos deixar as autoridades competentes lidar com o assunto – disse
Sarah com ar pedante, e cruzou os braços.
Sean captou a atenção de Meg. Max baixou os olhos para os seus pés.
– Não sei quanto a vocês – disse Sean –, mas eu não sou grande fã das
autoridades.
– Sou obrigado a concordar – disse Max.
– Eu não posso voltar para a prisão – murmurou Karl.
Sarah fixou o seu olhar em Meg.
– Tu eras polícia. Diz-lhes.
Então, de repente, já importava que Meg tivesse sido polícia. Ela olhou
para trás, para o corpo de Paul/Mark. Porque estaria ele aqui com um nome
falso? Porque estaria ele aqui, nestas montanhas remotas, de todo? Meg já
não o via há anos. Ele podia ter mudado de departamento, de país. Talvez
estivesse aqui nalgum tipo de missão secreta. Mas, se assim fosse, isso
significava que eram todos suspeitos do assassinato de um agente da polícia.
Ela olhou para trás, para a lâmina ensanguentada no chão.
– Precisamos de nos livrar da faca – disse ela.
– O quê? – Sarah olhou para ela com ar incrédulo. – Encobrir um crime?
– Não – disse Meg com calma. – Mas, sem a faca, eles não podem prender
nenhum de nós.
– Mas sabemos que foi um de nós. Ele. – Ela apontou para Karl.
– Eu não o matei – disse Karl novamente, começando a parecer zangado.
Ele olhou de relance para Sarah. – Como sabemos que não foste tu? Estavas
a dormir perto de nós. Podes tê-lo apunhalado e escondido a faca na minha
roupa.
– Não sejas ridículo – respondeu Sarah, agressivamente.
– OK. – Meg ergueu as mãos. – Nós não sabemos de nada. E, neste
momento, a melhor maneira de nos protegermos é livrarmo-nos da arma do
crime.
– E como sugeres que a façamos desaparecer? – disse Sarah. – Estamos
num teleférico suspenso a mil pés de altura.
– Há um alçapão – disse Sean.
Meg olhou para ele.
– O quê?
– No chão. Para emergências. Como – ele ergueu uma sobrancelha –
ficarmos presos.
– Oh, a ironia – disse Meg.
– Sim.
E agora eles conseguiam vê-lo. Um pequeno quadrado alojado no metal.
– Como é que o abrimos? – perguntou Max.
Sean franziu o sobrolho.
– Acho que precisamos de algum tipo de ferramenta para o libertar. Mas
– os olhos dele recaíram sobre a faca –, provavelmente, consigo fazê-lo com
aquilo.
– Está bem – disse Meg.
– Posso fazer outra sugestão? – acrescentou Sean.
– Força.
– Vemo-nos livres tanto da faca como do nosso falecido companheiro.
– Oh, ótimo – disse Sarah. – Isto está a ficar cada vez melhor.
Meg olhou para Sean.
– Nós nunca dissemos nada sobre vermo-nos livres do corpo.
– Ouve. Nunca ninguém o encontrará na neve. Vai ser comido por
predadores. Poderíamos dizer que ele se assustou, entrou em pânico, abriu o
alçapão, houve uma rajada de vento e ele caiu. Se todos nos cingirmos à
mesma história, ninguém pode provar o contrário.
Meg olhou fixamente para ele.
– Vejo que pensaste bem nisto.
Ele encolheu os ombros.
– Só estou a tentar encontrar uma saída para todos nós.
– Devíamos votar. – Meg olhou em volta. – Todos aqueles a favor de
despejar o corpo, levantem a mão.
Sean ergueu a mão. Seguido por Karl.
Max franziu uma sobrancelha.
– Eu não sei. Parece uma admissão de culpa. Eu abstenho-me.
O típico advogado.
– E eu voto contra – disse Sarah. – É criminoso. Ele devia ter um enterro
condigno. – Ela atirou a Karl outro olhar maligno. – É óbvio quem é o
assassino. Ele estava na prisão. E as tatuagens dizem-nos exatamente o tipo
de homem que ele é. Não sei porque estamos sequer a debater. Quando
chegarmos ao Retiro, entregamo-lo.
– Parece que és tu a ter o voto decisivo – disse Sean, olhando para Meg.
Ela refletiu. Tinham passado seis anos desde que ela e Paul se separaram,
cinco desde a última vez que o tinha visto. Tinha sido uma separação
amarga. Quaisquer sentimentos antigos que ela tivesse tido eram apenas
isso – antigos. E, fosse como fosse, tivesse ela gostado ou não de Paul, ele
estava morto agora. Pior, ele era um problema. Um do qual se podiam livrar.
Um do qual ela se podia livrar. Se alguém descobrisse a ligação entre eles, ela
seria a principal suspeita. Sean estava certo. Eles não podiam chegar ao
Retiro com um cadáver a bordo.
– Está bem. – Ela acenou com a cabeça a Sean. – Vamos largar o peso
morto.
Sarah ergueu as mãos.
– Não quero fazer parte disto.
– Ninguém abre a boca sobre o assunto – disse Meg. – É esse o acordo.
Sean abriu o alçapão rapidamente, encontrando a fechadura e soltando-a
com um clique. Meg ficou com a impressão de que não era a primeira vez
que ele arrombava coisas. Karl e Max carregaram o corpo e colocaram-no ao
lado do alçapão. Meg tentou não olhar para a cara de Paul.
– Afastem-se todos – disse Sean. – Vai estar vento e frio e não vão querer
cair.
O resto do grupo afastou-se.
– Quando disser três – disse Sean a Meg. – Um, dois, três…
Juntos, levantaram o alçapão de metal. Abriu-se para trás com um
estrondo. Imediatamente, uma rajada de ar gelado e uma nevasca entraram
no teleférico. O rugido do vento foi ensurdecedor. Já se sentia o frio antes.
Qualquer resquício de calor estava agora a dissipar-se.
– Temos de fazer isto rapidamente! – Meg gritou a Sean, sobrepondo-se
ao barulho do vento.
Ele acenou com a cabeça e deixou cair a faca pelo alçapão. Desapareceu
num instante.
Ele virou-se para o corpo.
– Pronta?
A palavra «sim» estava na ponta da língua de Meg quando, de repente, ela
pensou em algo. Agarrou o braço de Sean.
– Espera!
– O que foi?
– Ainda não o revistámos.
– Para quê?
– Não sei.
Ele olhou-a com um ar exasperado, mas anuiu.
– Despacha-te. Estamos a perder calor rapidamente.
Ela inclinou-se sobre o corpo, dando palmadinhas, enfiando as mãos nos
bolsos. Não sabia do que estava à procura. Na verdade, ela pensava que não
veria nada de importante quando os seus dedos se fecharam sobre um
pequeno pedaço de cartão.
Ela puxou-o para fora. Uma foto antiga.
– Isso pode esperar? – gritou Sean.
– Sim, claro.
Ela enfiou a foto no seu bolso. Eles fizeram rolar o corpo até à beira do
alçapão. Os seus olhos encontraram-se. Meg acenou com a cabeça.
Empurraram o corpo borda fora e observaram como foi engolido pela
tempestade faminta, em poucos segundos uma mera mancha preta sobre o
branco.
Meg manteve o olhar, o vento a fazê-la lacrimejar. E depois uma súbita
rajada de vento balançou o teleférico. Ela caiu para trás. Outra rajada de
vento balançou-o para o lado oposto. Ela sentiu-se a deslizar em direção ao
alçapão, pés no ar. Sean agarrou o braço dela, puxando-a de volta. Atrás
deles, alguém gritou. E, depois, tudo aconteceu rapidamente. Enquanto o
teleférico balançava, Max agarrou o corrimão, mas Karl cambaleou para a
frente, desequilibrado. Sarah moveu-se em direção a ele, os braços
estendidos. As pontas dos dedos dela tocaram-lhe nas costas… e, com um
empurrão, ela fê-lo cair de cabeça através do alçapão aberto.
Carter

Não era suposto deixares os corpos abandonados. Era uma das regras.
Havia risco, por menor que fosse, de uma infeção através da sexta via de
transmissão.
O vírus era sobretudo transmitido pelo ar. O problema era que existiam
muitas variantes. Sangue, fezes, fluidos corporais, pele, medula óssea. Todos
canais para a infeção. Até a carne cozinhada tinha vestígios da
particularmente desagradável variante Choler.
Carter olhou para o corpo de Jackson. Ele não tinha condições para
arrastar um Jackson vivo de volta para o Retiro e de certeza não iria arrastar
um morto. Não com a noite a cair mais rápido que as calças de um
adolescente num encontro com a namorada, e a neve a tornar-se mais
frequente a cada segundo. E não com o uivo do vento a disfarçar qualquer
outro som.
Claro, a tempestade ajudaria. Jackson ficaria enterrado em minutos.
Ninguém saberia e quando o corpo dele fosse encontrado – se fosse
encontrado – estaria tão decomposto que não haveria maneira de saber
como ele tinha morrido.
Carter ter-se-ia permitido um pequeno sorriso se o seu rosto já não se
encontrasse congelado num esgar ricto. Ele baixou a cabeça e começou a
subir a encosta.

O primeiro sinal de que algo não estava bem, ainda não era mau – isso
viria depois –, mas definitivamente algo não estava bem, foi quando Carter
finalmente chegou ao topo da pista de esqui. À sua frente, podia ver a
vedação de segurança elétrica que delimitava o Retiro. Lá fora, à sua direita,
abrigado entre os pinheiros, estava o incinerador. Camuflado do campo de
visão, por razões óbvias.
Mas foi o Retiro que chamou a sua atenção e fez com que o fôlego se
prendesse na sua garganta. A grande janela da sala estava escura. Carter
franziu o sobrolho. Ele podia ver outras luzes acesas, pontilhando ao redor
do edifício. Mas não havia luzes na sala principal.
Isso era estranho. A maioria das vezes, as luzes estavam sempre acesas. Ao
contrário da maioria das aglomerações urbanas, eles não precisavam de
racionar a energia. A eletricidade era fornecida por uma combinação de
duas enormes turbinas eólicas colocadas mais acima na montanha e painéis
solares. Uma bateria armazenava a energia e fornecia o Retiro a um ritmo
constante sempre que necessário.
Pelo menos, era suposto ser assim.
Nas últimas semanas, Welland tinha reparado num problema. A bateria
estava a perder energia. Isto significava que o fornecimento era
inconsistente, causando picos e cortes de energia. O gerador de reserva
podia compensar, mas eles só tinham uma quantidade limitada de
propano… além disso, havia aquele atraso entre o corte de energia e o
arranque do gerador.
Welland parecia não saber como resolver o problema. Geradores
e aquecimento não eram a especialidade de Miles. Era a ciência e a
medicina. Como Welland gostava de dizer: «Os médicos podem fazer
neurocirurgias, mas ainda precisam de alguém para manter as luzes acesas
enquanto o fazem.» Carter tinha de lhe dar razão.
Ele avançou lentamente em direção ao Retiro. Aquela extensão escura de
vidro deu-lhe um mau pressentimento. Felizmente, ao aproximar-se do
portão, ainda conseguia ouvir o zumbido baixo da vedação elétrica. Ele tirou
uma luva para inserir o seu código, colocando-a de novo apressadamente
enquanto os dedos formigavam com o frio. O portão abriu-se e ele
empurrou-o, arrastando as compras atrás de si. Os pelos na parte de trás do
pescoço dele arrepiaram-se, como sempre. Atravessar a fronteira, do perigo
à segurança. Baixar as defesas. Um último momento de vulnerabilidade
antes de o portão se fechar e ele estar seguro.
Claro, as vedações e o portão eram apenas uma ilusão. Na realidade,
Carter sabia que corria tanto perigo lá dentro como cá fora. Apenas os
inimigos eram diferentes. Enquanto ele fosse útil a Miles, estaria a salvo.
Mas Welland adoraria uma desculpa para o atirar para debaixo de um
autocarro (ou pela montanha mais próxima abaixo). O sentimento era
mútuo. Caren tolerava-o e, apesar de Carter gostar de Julia e considerar Nate
um amigo, o facto era que todos eles aqui eram sobreviventes.
E a sobrevivência era um negócio solitário.
Carter aproximou-se da porta da frente, inseriu um segundo código e
entrou, arrastando as compras para o enorme átrio da entrada. A porta
fechou-se com força atrás dele. Ele tirou as luvas e olhou à sua volta,
ouvindo.
Parecia tudo sossegado. Demasiado sossegado? O alarme não soava, o que
era bom, achava ele. Olhou para as escadas escuras em espiral que levavam à
sala principal. Se ninguém estivesse lá em cima, ele não esperaria ouvir
nenhum barulho. Mas, mesmo assim, aquele silêncio.
E Dexter?
Apesar de não ser o cão de guarda mais alerta do mundo – costumava
continuar a dormir mesmo com alarmes a tocar –, geralmente notava
a ausência de Carter e descia para cumprimentá-lo quando regressava.
Ao invés disso, silêncio.
Carter levou os mantimentos para o armazém, libertou o saco dos esquis
e empurrou-o para dentro. Arrumá-lo-ia mais tarde. Depois prendeu os
esquis na prateleira, tirou as luvas e as botas e despiu o fato de neve. Por
baixo, vestia uma camisola, calças de ganga e meias grossas. Conseguia
sentir o efeito do calor do piso aquecido a começar a chegar aos seus pés.
A porta para a piscina e spa estava à sua frente. À sua direita, o armazém e
a despensa, que continha as caixas de fusíveis e os controlos do sistema do
Retiro. Os elevadores e as escadas ficavam à sua esquerda. Carter caminhou
em direção a eles e depois parou. Ninguém ia estar numa sala às escuras. Ele
voltou para trás e caminhou até à porta para o spa e a piscina. Empurrou-a
para abrir. Era pesada e insonorizada, como todas as portas do Retiro.
Ele entrou nos balneários amplos. Bancos corridos de um lado e cacifos
do outro. No centro, havia uma pequena área de vestir com espelhos
e secadores de cabelo. À sua esquerda, uma porta de vidro fosco levava aos
chuveiros e sanitários. À sua direita, um pequeno corredor levava à piscina.
O balneário estava vazio. Carter sacou da arma e tentou verificar os
chuveiros e sanitários, empurrando as portas do cubículo uma a uma com o
pé. Ninguém, nem sequer um flutuador.
Ele voltou para os vestiários. Conseguia ouvir o som ténue da água
a remexer na piscina. Caminhou pelo curto corredor. No final, havia
pequenos jatos de água direcionados para uma base de duche. Carter
descalçou as meias e enfiou-as no bolso e depois atravessou em direção à
área da piscina.
O ar húmido colou-se à sua pele. O cheiro do cloro picou-lhe os olhos.
A iluminação aqui era fraca. Havia pequenos focos de luz dispostos em volta
nas paredes de pedra. Espreguiçadeiras nas laterais. No final, outra grande
janela reproduzia a vista da sala de estar no cimo das escadas. A piscina em
si tinha metade do comprimento olímpico, mas mais estreita. A iluminação
inferior da piscina dava-lhe uma bela tonalidade azul.
Havia um corpo no fundo.
Longos caracóis flutuavam como algas marinhas. À deriva numa nuvem
de vermelho.
– Foda-se.
Carter avançou, precisando de ter a certeza, mesmo que realmente só
pudesse ser uma pessoa. Não havia como confundir aquele cabelo.
Julia.
A Julia cool e hipster. Eles não eram próximos, mas ele gostava dela. Da
companhia dela. E agora ela estava morta.
Ele engoliu em seco, tentando manter a calma. Como? Porquê?
Foda-se. Precisava de encontrar Miles. Ele virou-se e voltou pelo
balneário, empurrando a porta para o corredor. A porta da despensa abriu-
se.
Carter rodou sobre si mesmo, arma levantada, dedos prontos no gatilho.
Welland saiu, abanando a cabeça ao som do que quer que estivesse a tocar
nos auscultadores de ouvido presos sobre as orelhas. Olhou para cima e viu
Carter.
– MERDA! – Os olhos dele arregalaram-se. – Por que caralho estás a
apontar-me uma arma?
– O que estavas a fazer ali dentro?
– A tentar resolver o problema da energia.
Carter olhou para ele. O cabelo atado num rabo de cavalo, manchas de
suor debaixo dos braços, a barriga apenas contida pelo tecido manchado.
Mas sem manchas de sangue.
Ele baixou a arma.
– Que raio se passa?
– Diz-me tu. A energia foi-se outra vez. Quando voltou, apenas metade
dos sistemas estavam a funcionar. O Miles mandou-me cá abaixo para ver se
eu conseguia arranjá-los.
E obviamente não conseguia.
– Há quanto tempo estás aí dentro?
– Há cerca de uma hora. Acho que as luzes do Sistema 1 podem ter
fundido, mas não sei onde raio param os fusíveis sobresselentes. Vou ter de
tentar reencaminhar parte da energia…
– A Julia está morta.
– O quê?
– A Julia está morta. Na piscina.
Welland continuava a olhar para ele, com a boca aberta como se alguém
lhe tivesse aberto a mandíbula.
– Eu não… A Julia?
Carter acenou com a cabeça.
– Afogada?
Carter pensou naquela nuvem de vermelho.
– Acho que não.
– Foda-se.
– Onde estavam todos quando vieste cá abaixo para verificar a energia?
– Ah… O Nate estava a fazer algo para comer. A Julia estava a ver
televisão. Não sei onde estavam a Caren ou o Jackson.
– O Jackson desapareceu.
– Desapareceu?
– Foi-se embora.
– Quando? Onde é que ele foi?
– Quem sabe? Provavelmente já é carne para lobos.
Welland piscou os olhos. Como se alguém o tivesse posto em modo de
poupança de energia.
– Onde está o Miles? – Carter perguntou com mais urgência. Agora não
era o momento para falar sobre Jackson. Pelo menos, ainda não.
– Ele foi até à cave para verificar se estava tudo seguro.
Carter sentiu a garganta dele a estreitar-se.
– De quanto tempo foi o atraso desta vez, Welland?
Welland piscou de novo os olhos. Depois o seu rosto foi invadido pelo
desânimo.
– Eu avisei. Eu avisei que estava a piorar, meu.
– Quanto tempo?
– Oito segundos.
Oito segundos e as fechaduras automáticas na cave eram abertas.
– Jesus Cristo. – Carter passou uma mão pelo cabelo. – E viste se o Miles
voltou da cave?
– Não, meu. Ele disse-me para vir logo cá abaixo para tentar resolver o
problema.
Oh, eles precisavam de resolver o problema. A questão era: qual era
mesmo a dimensão do problema?
– Precisamos de encontrar os outros – disse Carter.
Welland assentiu, lábio e queixo a tremer.
– Viste o Dexter?
Welland abanou a cabeça.
Carter olhou para ele.
– E tira a merda dos auscultadores.
Eles atravessaram o corredor. Welland dirigiu-se aos elevadores. Carter
agarrou-lhe o braço.
– Vamos pelas escadas.
– Porquê?
– Porque não queremos anunciar a nossa chegada.
Embora, pensou Carter quando começaram a subir as escadas em espiral,
com plano aberto, se alguém estivesse lá em cima, sem dúvida já os teria
ouvido por esta altura. Ele ficou a olhar para cima. A escuridão tomava conta
da área. Ele tirou a sua lanterna.
– Tens uma lanterna? – sussurrou ele por cima do ombro para Welland.
– Sim. – Ruído, um resmungo e um súbito feixe de luz ofuscante que
iluminou toda a escadaria.
– Por amor da santa – sussurrou Carter. – Mantém a luz baixa.
– Oh. Está bem.
A luz diminuiu. Carter suspirou. Mais valia terem ido até ao cimo e
disparado fogos de artifício.
Finalmente chegaram à sala. Lá fora, a tempestade rugia violentamente,
sendo audível mesmo através do vidro triplo. Enormes pedaços de neve
colavam-se ao vidro, quase apagando o mundo exterior, envolvendo-os num
túmulo branco.
O resto da sala estava estranhamente sossegado. Carter apontou a luz da
sua lanterna em volta.
– Meu, não gosto disto – murmurou Welland.
– A sério? – respondeu Carter. – Eu estou a divertir-me como o caraças.
A lanterna iluminava pequenos recantos da sala, agora pouco familiares
tomados pela escuridão. Mas Carter conseguiu perceber que a zona de estar
parecia ter sido desocupada à pressa. Havia canecas de café sobre a mesa,
meio cheias. Um cinzeiro continha um charro parcialmente fumado.
– Não está ninguém aqui – queixou-se Welland. – Podemos então…
Um gemido. À sua esquerda. Vindo da cozinha. Carter apontou a sua
lanterna. As bancadas estavam uma confusão. Comida espalhada, pedaços
de vegetais por todo o lado. O que, para ser justo, era normalmente como
Nate cozinhava.
Carter caminhou rapidamente, e Welland seguiu-o, ofegante e suado. À
medida que contornavam a grande ilha, Carter apontou a luz para baixo.
Nate estava deitado no chão, de lado, meio enrolado. A sua T-shirt branca
estava manchada de castanho com sangue.
Carter agachou-se.
– Nate?
Outro gemido, mas um olho abriu-se. Ainda bem, porra.
– Ei, meu. É o Carter.
– Cuh-ter? – Nate murmurou. Parecia que tinha perdido um dente.
– O que aconteceu?
Nate sentou-se com dificuldade, agonizando com dores. Havia mais
sangue no chão sob ele. Carter pôs um braço em volta dos ombros do seu
amigo.
– Welland – instruiu ele. – Arranja-lhe água.
Welland apressou-se até ao lava-loiça e remexeu desastradamente,
voltando com um copo de água, que derramou por todo o lado. Passou-o a
Carter, que o encostou aos lábios de Nate. Nate bebeu metade da água,
deixando a outra metade verter sobre a sua camisola. Carter retirou-lhe
gentilmente o copo.
– Consegues lembrar-te do que aconteceu? – perguntou ele.
Nate franziu o sobrolho.
– Eu estava a cozinhar… e…
– A energia foi-se – interrompeu Welland. – Foi quando o Miles me
mandou para a despensa para verificar o que se estava a passar.
– Obrigado, isso já percebi – disse Carter rispidamente. Concentrou a sua
atenção em Nate. – O que te aconteceu?
Nate pestanejou lentamente. Carter não gostou. Olhou de volta para a T-
shirt ensanguentada.
– Vou só levantar a tua T-shirt, está bem?
Nate continuava a olhar apaticamente para ele. Carter puxou o algodão
húmido para cima. O tronco de Nate parecia imaculado. Sem feridas
visíveis. Talvez o sangue fosse do dente desaparecido. Mas havia muito
sangue no chão.
– Eu estava a cozinhar… – disse Nate arrastadamente.
– E a Julia? – perguntou Carter.
– Julia… – Nate semicerrou os olhos, como se lhe doesse forçar as
palavras a sair.
Vá lá, meu, pensou Carter.
– Velas – disse Nate triunfantemente, como se tivesse acabado de
desvendar o significado do universo. – Ela foi… buscar velas.
Velas. Certo. Isso explica porque Julia teria descido as escadas, mas não
como tinha acabado morta na piscina.
– Viste-a? – perguntou Carter a Welland.
Welland abanou a cabeça.
– Não. Não me vais culpar por isto.
– Julia… – disse Nate de novo.
– A Julia está morta – disse Carter, não vendo sentido em eufemismos. –
Encontrei-a na piscina. Parece que foi esfaqueada.
Nate esfregou os olhos.
– Julia.
– Lamento. – Carter suspirou.
Ele sabia que Nate e Julia eram amigos. Talvez mais do que amigos de vez
em quando.
– Nate – disse ele. – Precisamos de encontrar quem fez isto. Viste quem te
atacou?
– Eu estava… – Nate fez uma pausa. Depois inclinou-se para a frente e
vomitou, café e bílis espalhados pelo chão.
Carter levantou-se de supetão, a esquivar-se ao jato.
– Porra, meu! – gritou Welland. – Que raio se passa com ele?
Nate ficou imóvel, meio curvado, a babar-se.
– Não sei. Talvez tenha um traumatismo – disse Carter, enquanto o cheiro
amargo a vómito lhe subia pelas narinas. – Temos de o levar para um sítio
seguro e depois descobrir o que raio se passa. – Ele curvou-se e ajudou Nate
a pôr-se de pé. – E precisávamos de alguma luz – disse ele a Welland.
– Eu estava a tentar, meu.
– Bem, esforça-te mais. Vamos levar o Nate lá para baixo. Leva-o para a
despensa. Tranquem-se lá dentro.
– O que é que vais fazer?
– Tentar encontrar o Miles.
– E a Caren?
– Ela sabe tomar conta de si.
– O Miles também.
– Sim, mas precisamos do Miles.
Carter colocou o braço de Nate por cima do ombro e cambalearam de
volta pelas escadas até à luz do corredor. Carter sentiu que respirava um
pouco mais facilmente. É incrível a segurança que a luz nos dá. Como se
ainda acreditássemos que pode transformar todos os monstros em pó.
Claro, agora que estavam de volta à luz, Carter podia ver Nate como deve
ser. Ele parecia mal. Mesmo muito mal. E isto vinha de um homem que não
era propriamente uma obra de arte em termos de aparência física. Aguenta-
te, pensou Carter. Não te quero perder, meu. Já perdi o suficiente.
– Estava só a cozinhar – disse Nate arrastadamente.
– Sim, tu disseste.
Os olhos de Nate estavam desfocados, e a bandana começava a preocupar
Carter. Talvez tivesse por baixo uma ferida grave na cabeça. Nate balançou.
Carter agarrou-o.
– Eu estava só a cozinhar.
– Porque é que ele continua a dizer isso? – lamuriou-se Welland.
Carter não sabia. Mas sabia que Nate estava a usar uma bandana cinzenta
esta manhã.
Esta era vermelho-escura.
– Nate, acho que devíamos ver a tua cabeça, está bem? – disse ele.
Nate olhou para ele, sem reação. Carter desamarrou a bandana e tirou-a
gentilmente.
O topo da cabeça de Nate escorregou e bateu no chão com um ruído
molhado.
– Jesus Cristo, porra! – Welland virou-se e contorceu-se com vómitos.
Carter olhou para o cérebro de Nate, pulsando suavemente. Cinzento e
enrugado como uma esponja encolhida. O topo tinha sido serrado,
juntamente com o crânio. Depois tinha sido de novo colocado no sítio e
tapado, como se fosse um zombie.
Quem diabo faria…
– Carter – disse Welland.
E foi aí que ele ouviu. Claro.
Assobiar.
Ambos se viraram lentamente.
Uma figura magra num macacão azul manchado de sangue estava de pé
atrás deles. A pele era pálida, quase translúcida. Lábios gretados sobre
dentes amarelos e os olhos carmesim-escuros. Numa mão, segurava um
cutelo, ainda repleto de sangue de Nate.
E aqui estava o «pequeno» problema.
Oito segundos e as fechaduras automáticas abriam-se.
E na cave não estavam só trancados os medicamentos.
O Whistler sibilou enquanto olhava para eles, olhos vermelhos a brilhar
de ódio.
O dedo de Carter estava a postos no gatilho. Mas ele não disparou. Não
por empatia ou simpatia. Mas porque não lhes era conveniente acabar com
ele.
– Não te quero matar.
O Whistler sorriu, mostrando gengivas pretas. Ele deu um passo em
frente.
– Não tem de ser assim – disse Carter.
O Whistler atacou. Carter apontou para a perna dele. Ouviu-se um
disparo. A cabeça do Whistler explodiu. Ele cambaleou alguns passos, o
cutelo ainda no ar. Um segundo disparo e sangue vermelho brilhante surgiu
no centro do seu macacão. O cutelo caiu com um som estridente e ele caiu
desamparado no chão. O assobio abrandou e eventualmente parou.
Carter virou-se. Caren surgia vindo das escadas, com a arma presa em
ambas as mãos, ainda apontada para o corpo no chão.
– Por que raio fizeste isso? – gritou Carter.
Ela baixou a arma e olhou para ele.
– Salvar-te a pele? Oh, não tens de quê.
– Sabes como é. Não há mortes a menos que seja absolutamente
necessário.
– Verdade. Salvar a tua vida não é absolutamente necessário. Mas eu tenho
de pensar na minha.
Caren desceu rapidamente pelas escadas e caminhou até ao corpo. Ela
empurrou-o com o pé.
– Reserva 01 – murmurou ela. – Eu devia ter adivinhado. – Ela virou as
costas. Os olhos dela pousaram sobre Nate. – Jesus.
Nate continuava a balançar, a babar-se. Ouviu-se o barulho de água a
correr. Uma grande mancha escura espalhou-se sobre as calças de Nate e
formou-se uma pequena poça no chão.
– Ele mijou-se todo! – gritou Welland.
– Onde raio está a cabeça dele? – perguntou Caren.
Nate olhou para eles com ar queixoso.
– Eu estava só a cozinhar.
Carter sentiu o seu coração a conformar-se.
– Eu sei que estavas, meu. Eu sei que estavas.
Ele ergueu a sua arma. Mas havia autopreservação suficiente no que
restava do cérebro de Nate para que os olhos dele se esbugalhassem. Ele
virou-se e entre tropeções correu para a porta da piscina. Carter disparou
um tiro, mas foi ao lado, atingindo a madeira enquanto Nate desaparecia.
– Merda – praguejou ele.
– Ótimo. Feriste a tua presa – murmurou Caren.
Ele olhou para ela.
– Ele não é a porra de uma presa. É meu amigo.
Eles correram atrás de Nate, pelos vestiários até à zona da piscina. Julia
ainda estava no fundo.
– Merda! – gritou Caren. – Há um corpo na água.
– Eu sei – disse Carter. – É a Julia.
Nate cambaleava em torno da piscina. Depois parou. Olhou para
a piscina.
– Julia.
Carter não sabia se a noção de profundidade de Nate tinha desaparecido
ou se simplesmente se tinha esquecido de que não conseguia andar sobre a
água, mas caminhou diretamente na direção da zona mais funda. Embateu
na água como uma rocha. O velho Nate sabia nadar como um campeão
olímpico. Mas esse seu lado tinha desaparecido. Veio à tona, com os olhos
bem abertos, a boca a pronunciar palavras que não conseguia encontrar,
chapinhando na água com as mãos como se estivesse a tentar agarrá-la para
se manter à tona.
– Eu estava só a cozinhar – balbuciou ele. – A cozinhar.
Carter baixou a arma. Nate afundou-se mais uma vez.
Caren abanou a cabeça.
– Está feito.
Meu, que cabra cruel.
Carter esperou. Desta vez, Nate não reapareceu. Algo comprimiu
brevemente o coração de Carter e depois, como Nate, desapareceu.
Ele virou-se para Caren.
– Precisamos de ir à cave e verificar as câmaras de isolamento.
– Tens a certeza de que é uma boa ideia?
– Não. – Ele fez uma pausa. – Mas precisamos de ver o que mais anda à
solta.
Hannah

– Ele disse bomba?


Todos falavam ao mesmo tempo. Vozes a sobreporem-se umas às outras
para serem ouvidas. Não entrar em pânico já não era obviamente uma
opção.
– Temos de sair daqui.
– Isto pode explodir a qualquer momento.
– Ele pode estar errado.
– Porque é que alguém colocaria uma bomba a bordo?
– Está bem! Está bem! – Lucas tentou gritar por cima deles. Mas, desta
vez, nem o seu tom autoritário foi suficiente.
Um guincho agudo e ensurdecedor reverberou ao redor do autocarro.
Eles cobriram os ouvidos.
– Jesus! – gritou Hannah.
E, de repente, parou. Daniel estava lá atrás, a segurar o telemóvel. Ele
agitou-o.
– Botão de pânico – disse ele. – Se não querem que pressione de novo,
calem-se, porra.
– Olha, meu – disse Ben. – Foste tu que nos disseste que há a merda de
uma bomba a bordo. – Ele tossiu e estendeu o braço para alcançar uma
garrafa de água. Parecia pálido. Hannah fixou esse pormenor.
– Não – disse Daniel pacientemente. – Eu disse que o senhor Jet é às vezes
código para uma bomba. Não sabemos ao certo se é isso que as mensagens
significam.
– Ele tem razão – disse Josh, como se estivesse a tentar convencer-se a si
mesmo tanto como qualquer outro. – Pode ser apenas uma coincidência.
– Mas e se não for? – perguntou Ben.
As vozes começaram a subir novamente de tom.
– Um de cada vez – disse Hannah. – Eu sei que estamos todos assustados,
mas temos de nos manter calmos.
– Está bem – disse Cassie. – Então, vamos pensar no pior dos cenários. Se
há uma bomba a bordo, o que fazemos… além de morrer horrivelmente, em
pedaços?
– Porquê explodir um autocarro cheio de estudantes? – perguntou Josh.
– Talvez o autocarro não seja o alvo – disse Lucas, pensativo. – A
mensagem diz Chegar. É mais provável que o alvo seja o nosso destino,
o Retiro. – Ele olhou de relance para Hannah. – E, possivelmente, o teu pai.
Hannah refletiu. O terrorismo anticiência estava a proliferar, sobretudo
entre os jovens. Tinha havido ataques na capital e noutros países. Os
ativistas tinham começado a formar grupos organizados e a dar-lhes nomes
como Stormers e, mais recentemente, Rems (como a banda que escreveu: «É
o fim do mundo como o conhecemos»). Um centro como o Retiro, onde
novas drogas experimentais eram testadas, estaria no topo da lista de alvos
de qualquer grupo. Assim como o pai dela.
Ela acenou com a cabeça.
– Podes ter razão.
– O-K – disse Josh. – Então, se o alvo é o Retiro… então o morto teria
planeado acionar a bomba quando lá chegasse, o que não pode fazer agora
porque, como sabem, está morto.
– A menos que a bomba tenha temporizador – disse Daniel.
– Ótimo – murmurou Ben entre dentes.
– Quais são as probabilidades? – perguntou Hannah.
Daniel prendeu o cabelo escuro atrás das orelhas.
– Bem, a maioria das bombas improvisadas são detonadas ou por um
temporizador ou manualmente, através do sinal do telefone. Nós sabemos
que a rede móvel é má aqui. Se estes tipos forem minimamente organizados,
não arriscariam não poder acionar a bomba por causa da falta de rede.
Hannah olhou para ele. Tinha de admitir que tinha menosprezado
Daniel. Por causa do seu peso, da sua aparência descuidada. Tinha-o
rotulado como lento, preguiçoso, estúpido. Era o seu preconceito, um que a
mãe lhe tinha incutido desde tenra idade. Os gordos, como a mãe lhes
chamava desdenhosamente, eram criaturas gananciosas e preguiçosas.
Sentados o dia inteiro a encher a pança. Não tinham respeito por eles
mesmos. Não tinham autocontrolo. Nem disciplina. A mãe dela tinha muito
orgulho na própria disciplina, mantendo rigidamente o seu corpo tamanho
trinta e seis através de uma combinação de dieta, exercícios e comprimidos
de emagrecimento. Uma elegante confusão de ossos.
Ela esperava de Hannah essa mesma disciplina. Pesava constantemente a
sua única filha, restringia-lhe a comida e obrigava-a a saltar à corda até cair
de exaustão. Aos dez anos, Hannah ainda usava as roupas de uma criança de
seis anos.
Depois da morte da mãe, Hannah sentara-se no chão da cozinha e
comera o conteúdo do frigorífico: quase um frango inteiro frio, metade de
um bolo, um bloco de queijo, um presunto pequeno, azeitonas, sobras
de piza, Coca-Cola original. Comida de conforto que a mãe comprava para o
seu pai, mas nunca comia. Hannah comeu até a barriga ficar tão distendida
que parecia grávida, e mal conseguia mexer-se com as dores de estômago.
De alguma forma, tinha conseguido alcançar a casa de banho e vomitado a
sua dor e o sofrimento durante a maior parte da noite. Quando o pai voltou
do trabalho, encontrou-a deitada, inconsciente, numa pequena poça do seu
próprio vómito.
Ele tinha-a deixado lá.
– Então, quanto tempo temos? – perguntou Josh.
Lucas verificou o relógio, um Rotary volumoso e caro.
– São agora quinze e quarenta e cinco. Deixámos a Academia ao meio-
dia. Devíamos estar a viajar há cerca de hora e meia quando o autocarro
embateu…
– Mas não sabemos até onde temos de ir, a que distância fica o Retiro –
salientou Cassie.
– Eu sei – disse Hannah. – Fui lá uma vez com o meu pai. Diria que deve
estar a umas cinco horas de carro da Academia em boas condições
atmosféricas, por isso talvez seis ou sete horas hoje.
– Isso significa que temos uma hora de chegada mais ou menos para as
sete da tarde – disse Lucas. – Imagino que o nosso bombista não arriscaria
ajustar o temporizador para antes das oito da noite, o que nos dá pelo menos
quatro horas.
Não era muito, e mesmo assim era um palpite.
– Temos de encontrar a bomba e livrar-nos dela – disse Josh.
– Sim. Vamos fazer isso – respondeu Cassie com ironia. – Ups. Pequeno
problema, meu. Estamos presos aqui dentro e lá fora estão menos dez graus.
Enquanto ela falava, Hannah notou que a sua respiração formava uma
pequena nuvem branca. Também estava a ficar mais frio no autocarro.
– Então, o que sugeres que façamos? – perguntou Josh, parecendo
irritado.
Cassie fez sinal com a cabeça na direção de Hannah.
– A filha do Prof. poderia alertar o papá, para começar. Depois, acho que
podíamos procurar algo que se possa usar para partir uma janela, para que
alguém possa sair e tentar chegar ao porão da bagagem… se não congelarem
até à morte primeiro, é claro.
Boas sugestões, Hannah tinha de admitir. Embora quebrar uma janela
também aumentasse as probabilidades de congelarem até à morte cá dentro.
Mas era um risco que teriam de correr.
Daniel estava a mexer no telemóvel.
– O que estás a fazer? – perguntou Hannah.
– A mudar o bloqueio automático para «nunca». – Ele devolveu-lhe o
telemóvel. – Para não teres de recorrer ao reconhecimento facial de um
cadáver de cada vez que o quiseres desbloquear agora.
– Obrigada – disse ela. Mas logo Hannah reparou noutro problema. A
bateria já estava a meio. Certamente não ia durar toda a noite. Ela abriu uma
nova mensagem. O pai dela poderia não responder a um número
desconhecido. Podia pensar que era uma partida, mas ela tinha de tentar.
Ela começou a escrever:

Pai, é a Hannah. Este telefone é emprestado. Tivemos um acidente com o


autocarro. Sete sobreviventes. Bomba artesanal na bagageira – possível hora de
detonação às 20h. Por favor, envia ajuda o mais rápido possível. Hannah.

Ela pressionou Enviar e viu a barra azul a progredir. Mais perto e mais
perto da conclusão. E então parou. Foda-se. Surgiu um ponto de exclamação
dentro de um círculo vermelho. Envio de mensagem falhado.
– Não seguiu – disse ela, entorpecida.
– Merda, meu. – Ben passou os dedos pelo seu cabelo, soltando-o do rabo
de cavalo. – Estamos feitos. – Ele tossiu outra vez e tremeu.
Hannah olhou para cima.
– Posso continuar a tentar, mas a bateria já está a meio. Talvez seja melhor
conservar a bateria e tentar novamente se conseguirmos mais rede?
Ela considerou o silêncio deles como consentimento.
– Está bem. – Lucas bateu palmas. – Plano B. Tentamos partir uma janela
para chegar ao porão da bagagem. LoS2. Vamos lá.
Foram até à parte dianteira do autocarro, uns com mais vontade do que
outros. Lucas e Josh iam à frente, Hannah seguia-os, depois Cassie. Ben
arrastou-se atrás deles, e Daniel na retaguarda, obviamente relutante em
deixar a irmã.
Hannah não podia deixar de pensar que esta era provavelmente uma
tarefa inglória. O vidro era reforçado, então precisavam de algo pesado para
ter uma hipótese de o partir. Muitos dos assentos do autocarro estavam
meio soltos do chão, mas não o suficiente para que pudessem ser
arrancados.
– Ei, aqui!
Josh e Lucas agacharam-se entre dois lugares do lado direito do autocarro:
o lado meio soterrado pela neve.
– Esta janela já está partida – disse Lucas enquanto Hannah e os outros se
juntavam a eles.
Hannah olhou para o vidro, estilhaçado num mosaico de cacos. Talvez
seja possível pontapear o vidro para fora. Mas ainda havia um problema.
– Está enterrado na neve – disse ela. – Como pensas sair?
Josh olhou em volta.
– Algum de vocês fez treino de sobrevivência?
Cassie ergueu uma sobrancelha.
– Demasiado ocupada a beber e a tomar drogas.
Josh ignorou-a.
– Uma das coisas que aprendemos foi como fazer um túnel de neve, para
nos abrigarmos em condições extremas. Se o autocarro estiver sobre um
grande amontoado de neve, poderá haver neve solta suficiente para escavar
um túnel.
Hannah refletiu.
– Mas a neve não estará demasiado compactada pelo peso do autocarro?
– Não necessariamente, e só há uma maneira de descobrir.
Lucas franziu o sobrolho.
– É uma ideia corajosa, meu amigo, mas primeiro temos de desimpedir
vidro suficiente para fazer um buraco grande e seguro o bastante para
rastejarmos. Depois há o risco de a neve desabar e enterrar-te.
– Vou correr esse risco – disse Josh. – Já fiz túneis de neve antes.
– É perigoso – disse Lucas, com tensão na voz. – Há apenas uma pequena
hipótese de sucesso.
– Mas uma pequena hipótese é melhor do que nenhuma hipótese – disse
Daniel. – Se conseguirmos encontrar aquela bomba, podemos sobreviver a
esta noite. Mas há outras coisas no porão da bagagem que podemos usar
para nos ajudarem a sobreviver até a ajuda chegar. Telemóveis, comida, mais
roupas. Tenho analgésicos na minha mala. Fortes. A Peggy precisa deles.
Ele estava certo. Não se tratava apenas de sobreviver a esta noite. Era
sobreviver no geral.
Eles entreolharam-se.
– Deixa-o ir – disse Cassie. – Quero dizer, ninguém tem ideias melhores,
pois não?
– Devíamos deixar o Josh decidir – disse Hannah.
Todos acenaram com a cabeça, embora Lucas ainda parecesse um pouco
relutante. Hannah ficou com a impressão de que ele estava confortável ao
comando e não gostava que a sua autoridade fosse questionada.
– Eu quero tentar – disse Josh com convicção.
– Muito bem. – Lucas suspirou. – Então nós vamos ajudar.
Josh acenou com a cabeça.
– Vamos precisar de luvas ou algo para proteger as mãos ao remover o
vidro… e para cavar.
– Encontramos algumas luvas nos outros alunos – disse Lucas. Ele virou-
se para Ben, que estava encostado a um banco.
– Ben – disse Lucas. – Podes ir buscar as luvas às roupas que conseguimos
juntar?
Ben devolveu-lhe um olhar um pouco atordoado.
– Luvas?
– Sim. É importante. Precisamos da tua ajuda.
– Certo. – Ben voltou lentamente à vida. – Está bem. Claro.
Ele tropeçou ao longo do autocarro, tossindo novamente. Hannah tentou
conter a sua preocupação. Ela voltou-se para Josh.
– Quanto tempo achas que vai demorar a fazer o túnel? – perguntou ela.
Josh pensou.
– Difícil de dizer. Depende realmente da consistência da neve e da
profundidade do monte. Uma hora. Talvez duas.
Hannah olhou de novo através das outras janelas. Ela podia apenas ver o
céu cinzento. Mas estava a escurecer.
– Provavelmente só nos resta uma hora e pouco de luz. – Ela tirou o
telemóvel do bolso dela. – Devias levar isto. Podes usá-lo como lanterna.
– Mas depois não tens como contactar ninguém para pedir ajuda.
– Se isto correr mal, estamos todos mortos de qualquer maneira –
relembrou-lhe Lucas.
– Isto vai ser-te mais útil. Assim que abrires a porta… – Ele calou-se
repentinamente. – Verdammt!
– O quê? – disse Josh.
– O porão da bagagem vai estar trancado.
– Merda – sussurrou Hannah. Porque é que ela não tinha pensado nisso
antes?
– O motorista devia ter uma chave – disse Cassie.
Hannah e Lucas olharam um para o outro.
– Hannah – disse Lucas firmemente –, porque não vês se consegues
encontrar as chaves do condutor?
Ela acenou com a cabeça.
– Está bem. – Começou a virar-se.
– Eu vou contigo – disse Cassie.
Hannah queria dizer que não. Mas isso iria parecer suspeito.
– Muito bem. – Ela forçou um grau de simpatia na sua voz.
– Muito bem. – Cassie esboçou um sorriso falso.
Passaram por cima dos assentos amolgados até à dianteira do autocarro.
Era provavelmente a imaginação de Hannah – não tinha passado tempo que
chegasse nem estava quente o suficiente para que a decomposição já tivesse
começado –, mas parecia que já havia um odor um pouco desagradável
vindo dos cadáveres. Ela viu Cassie a olhar para eles.
– Sinto muito se conhecias algum deles – disse ela.
– Não conhecia. Eu não tinha amigos na Academia.
– Oh. – Hannah ficou a olhar para ela.
Cassie olhou de volta.
– O quê? Pensavas que eu era a Miss Popular?
Hannah encolheu os ombros.
– Para mim não faz diferença.
Tinham chegado à cabina do motorista. O motorista que desapareceu,
pensou Hannah. Todos os outros provavelmente presumiram que ele estava
morto. Só ela e Lucas sabiam a verdade. Onde estava ele? Teria conseguido
escapar? A porta de saída só tinha encravado depois?
– Sabes… sais mesmo ao teu pai – disse Cassie.
Hannah virou-se bruscamente.
– Desculpa?
– Não mencionei? Tive aulas com o teu pai. Virologia. Às vezes também
ajudava no laboratório. Ele é um homem brilhante. Mas muito… qual é a
palavra? Clínico.
– É um cientista – disse Hannah firmemente.
– Suponho que deve ter sido difícil.
– Não sei a que te referes.
– Fiquei com a impressão… de que é difícil chegar aos calcanhares dele.
Acho que foi por isso que seguiste medicina geral e não investigação.
Hannah conteve a fúria crescente.
– Podes ter sido aluna do meu pai, mas isso não te dá nenhum
conhecimento sobre ele ou sobre mim.
Ela deslizou para o lugar do condutor, indicando que a conversa tinha
acabado. O casaco do motorista ainda estava pendurado nas costas. Cor
verde, o logótipo da escola. Tamanho S. Hannah tentou combater a raiva.
Não deixes que a emoção te domine. Não sejas como a tua mãe.
Ela olhou para o tabliê. O volante estava à distância de um braço. Ela mal
conseguia alcançar os pedais, e não era especialmente baixa. Algo chamava a
sua atenção.
– Há uma chave? – perguntou Cassie, interrompendo os seus
pensamentos.
Hannah espreitou por baixo do volante.
– É um botão de arranque.
Mas ainda era necessário uma chave estar por perto para que funcionasse.
Hannah pegou no casaco. Tamanho S. Aquela chamada de atenção de novo.
Ela enfiou as mãos nos bolsos. Algo volumoso tinha sido colocado num
deles: um boné de basebol com o logótipo da Academia. Franziu o sobrolho
e depois colocou a mão no outro bolso. Sim. Os seus dedos fecharam-se à
volta de um porta-chaves com uma chave menor acoplada. Ela retirou-a
triunfantemente.
Até Cassie esboçou um pequeno sorriso.
– Sabes – disse ela –, o motor foi provavelmente danificado no acidente.
Mas se a bateria não estiver muito danificada pode haver alguma energia
residual, para as luzes e talvez para aquecimento.
Quando não estava a afogar-se no seu próprio sarcasmo, Cassie conseguia
realmente ser útil, pensou Hannah. Ia escurecer em breve e ficar ainda mais
frio. Se conseguissem ter mais umas horas de luz e calor, isso ajudaria.
Ela pressionou a ignição. O motor fez um som crepitante e desligou-se
imediatamente, mas o tabliê e as luzes piscaram, e Hannah sentiu o leve
cheiro a queimado do aquecimento a entrar em ação. Provavelmente não ia
durar muito, mas era alguma coisa.
– Temos energia? – Uma voz gritou. Lucas.
– Sim! – Hannah gritou de volta. – E uma chave.
– Excelente.
Mas nenhum condutor, pensou ela, e de novo aquela estranheza a
incomodá-la. Casaco pequeno. Mas ela não conseguia alcançar os pedais do
chão e o volante estava longe, indicando que o motorista era alto, com
pernas e braços longos.
– O que foi? – perguntou Cassie.
– Lembras-te de como era o condutor?
Cassie coçou o rosto.
– Encorpado. Cabelo escuro. Chapéu. Só o vi de costas.
Hannah olhou para ela.
– Encorpado?
– Sim. Quero dizer, não prestei muita atenção, mas fiquei com essa
impressão. Porquê?
Hannah pensou na figura que tinha visto do lado de fora do autocarro, a
fumar. Pequeno, baixo, com o boné oficial da Academia. Provavelmente do
tamanho certo para o casaco sobre o assento.
– Este casaco é tamanho S – disse ela a Cassie. – Mas a posição do assento
indica um indivíduo muito maior.
– Então, talvez o casaco pertença a um motorista diferente?
Hannah olhou para ela. Claro que sim. Um motorista diferente.
– Não era o mesmo motorista – murmurou ela. – Alguém tomou o lugar
dele.
– E então? – disse Cassie. – Porque é que isso importa?
Hannah hesitou. Poderia confiar em Cassie?
– OK – disse ela. – Não podes contar a ninguém, mas o condutor
desapareceu.
– O quê?
– Ele não está entre os mortos.
Hannah observou Cassie a processar isto.
– Achas que ele saiu do autocarro de alguma forma? – perguntou ela.
– Sim. Mas a questão é como e porquê.
– Talvez fosse ele o cúmplice do bombista.
– Talvez.
– Não me pareces convencida.
– Não sei – admitiu Hannah. – Sinto que há algo mais.
Cassie parecia pensativa. Então olhou rapidamente em volta do autocarro,
para ter a certeza de que ninguém estava a ouvir, e baixou a voz:
– OK. Há uma coisa que preciso de te dizer. Há pouco disse-te que
trabalhava no laboratório do teu pai.
– Sim?
– Ajudei com alguns dos testes para a evacuação.
Hannah olhou para ela.
– E?
– Obviamente, os alunos com testes negativos deveriam ser evacuados
para o Retiro, para a quarentena. Qualquer pessoa com sintomas ou um
teste positivo deveria permanecer na Academia.
– Sim. É claro.
– Pois. Não foi isso que aconteceu.
– O quê?
– Eu sei que pelo menos dois alunos deste autocarro deram positivo.
Hannah olhou para ela.
– Tens a certeza? Talvez os tenhas confundido.
Cassie sorriu amargamente.
– Quando se é a rapariga impopular em que ninguém repara, damos por
nós a observar tudo. Eu sei exatamente quais foram os alunos cujo teste deu
positivo e dois deles embarcaram neste autocarro.
Hannah refletiu.
– Um deles era um miúdo magricela com cabelo frisado?
– Sim. O Jared. Como é que sabes?
– Quando eu estava a despir os mortos, achei que ele tinha sinais de
infeção.
– Mas não disseste nada.
– Nem tu.
– Touché.
A mente de Hannah entrou em polvorosa.
– Não faz sentido. O meu pai nunca deixaria estudantes infetados saírem
da Academia… – Ela vacilou.
O pai dela nunca deixaria estudantes infetados saírem da Academia. Mas
nem tudo era decisão dele. Havia governadores, investidores e estudantes
com pais ricos e poderosos.
Hannah tinha notado que a maioria dos que ficaram na Academia
pareciam ser funcionários e estudantes bolsistas. Ela tinha achado que era
coincidência. Mas e se não fosse? E se alguns dos alunos infetados tivessem
sido autorizados a sair para tranquilizar os pais? E se o pai dela tivesse
descoberto? Ela podia imaginar a reação dele. Nunca deixar o vírus alastrar.
Conter a infeção a todo o custo.
Mas será que ele chegaria mesmo ao ponto de engendrar um acidente de
autocarro e fazer com que parecesse um acidente? Será que ele deixaria a
própria filha morrer?
Sim, pensou ela. Deixaria. Encerramento.
Foi por isso que a saída de emergência fora danificada, que os martelos
tinham sido removidos.
– Acho que o motorista bateu com o autocarro de propósito – disse ela a
Cassie. – Nenhum de nós era suposto chegar ao Retiro.
– Estás a falar a sério?
Hannah acenou com a cabeça.
– Eu conheço o meu pai.
– Ele deixar-te-ia morrer?
– Sem perder um minuto de sono.
Cassie abanou a cabeça.
– Clínico, certo?
– Certo.
Ambas ficaram em silêncio enquanto processavam esta informação.
Hannah percebeu que havia outra pergunta que precisava de fazer.
– Disseste que sabias que dois dos alunos que embarcaram tinham testado
positivo. Um está morto. Quem é o outro?
Uma longa pausa. Depois Cassie disse:
– Tu.

2 Linha de Visão (LoS) é um tipo de propagação que pode transmitir e receber dados
apenas onde as estações de transmissão e receção estão à vista uma da outra, sem qualquer
tipo de obstáculo entre elas. (N. da T.)
Meg

– Tu mataste-o.
Sarah olhou para Meg com olhos selvagens.
– Eu estava a tentar salvá-lo.
– És uma mentirosa. Acabaste de assassinar um homem inocente.
– Pouco inocente.
Meg avançou, com os punhos cerrados. Sean agarrou-lhe o braço.
– Não. Já chega.
Ela soltou o braço da sua mão.
– Será? Antes só suspeitávamos que tínhamos um assassino a bordo.
Agora sabemos que temos um.
Max pôs um braço em volta de Sarah enquanto ela se acobardava.
– És louca – murmurou ela.
– Meg – disse Sean em voz baixa. – Estavas preparada para dar ao Karl o
benefício da dúvida. Não achas que a Sarah merece o mesmo?
– Eu vi-a a empurrá-lo. Nenhum de vocês viu?
– Não posso afirmar com toda a certeza – disse Max. – Aconteceu tudo
tão depressa.
Sean suspirou.
– Não sei. Pode ter sido apenas um acidente.
Meg abanou a cabeça.
– Muito bem. Acreditem no que quiserem. Eu sei o que vi.
Eles permaneceram de pé e olharam uns para os outros. Um impasse. O
alçapão tinha sido fechado. Ambos, Karl e Paul, eram agora cadáveres
congelados na neve. Só que Karl estava vivo quando caiu. Tinha sentido a
velocidade do ar gelado, o terror da queda, a noção de que a sua vida estava
prestes a acabar. Apenas segundos. Mas os segundos que antecedem a morte
podiam parecer uma eternidade. Ela sabia bem.
– Olha – disse Sean. – Não sei se isto faz alguma diferença, mas a história
do Karl, sobre ter estado preso…
– O que tem? – perguntou Max.
– Acho que estava a mentir.
– Eu disse-vos – fungou Sarah.
– Não estou a dizer que ele matou o tipo da segurança. Mas aquelas
tatuagens. Não te juntas a um gangue para proteção e fazes tatuagens como
aquelas se fores só um pobre diabo qualquer preso por fraude.
– O que queres dizer? – perguntou Max.
Meg sabia. Só não se queria comprometer com essa linha de pensamento.
– Estou a dizer – continuou Sean – que só um tipo de prisioneiro se junta
aos gangues para evitar ser morto.
– Criminosos sexuais – disse Meg com um suspiro.
Sean assentiu.
– Eu sabia – disse Sarah. – Estão a ver. Eu sabia que havia algo de errado
com ele.
– Claro que sabias – murmurou Meg.
– Parece que estás familiarizado com o sistema prisional – disse Max a
Sean.
Sean hesitou e depois disse:
– Estive preso durante quase dez anos.
Agora todos eles olharam fixamente para Sean.
– Porquê? – perguntou Max.
– Roubo.
– Dez anos parece um pouco duro – disse Meg.
– Roubei um veículo. Houve um acidente. Morreram pessoas. A culpa foi
minha. – Ele engoliu em seco, parecendo desconfortável.
– Eu também estive na prisão – disse Max.
– Pensava que eras advogado?
– E era. Aceitei algum dinheiro das pessoas erradas.
– Então – Sean olhou em volta para os outros –, algum de nós aqui
é voluntário ou somos todos recrutas?
– Eu voluntariei-me para o Retiro – disse Sarah. – Achei que era o meu
dever cristão.
Claro que pensaste, porra, pensou Meg.
– E o que diz a Bíblia sobre empurrar pessoas para a morte? – perguntou
ela docemente.
Sarah lançou-lhe um ar venenoso.
– E porque estás tu aqui?
Boa pergunta.
Era uma vez uma jovem mulher que teve uma filha que amava muito,
muito. Ela teria dado a vida por aquela menina. Mas não podia. A sua
menina tinha morrido e não havia nada que ela pudesse fazer. Não havia
maneira de curar a enorme ferida aberta no seu coração. Ela tinha tentado.
Álcool, drogas, sexo. Nada funcionou. A mulher tinha percebido que a vida
tinha perdido todo o sentido sem a sua filha. Restava apenas um caminho
interminável de dor. Cada dia era um novo despertar de mágoa. Rasgando a
ferida, que abria de novo e de novo. Ela estava muito fraca. Não conseguia
suportá-lo.
Ela decidiu que se juntaria à sua filha. Tentou enforcar-se, mas um amigo
encontrou-a. Ela não morreu. Mas acabou por ir parar a um hospital
psiquiátrico. Na vez seguinte, ela tentou comprimidos. Acabou por voltar
para o hospital. Tentou ingerir lixívia que uma empregada de limpeza tinha
deixado descuidadamente na casa de banho e, depois de lhe terem feito uma
lavagem ao estômago, colocaram-na numa camisa de forças e dentro de um
quarto almofadado. Durante os anos seguintes, ela passou mais tempo no
quarto almofadado do que fora. Atacava o pessoal do hospital porque eles a
mantinham afastada da sua filha. Porque não a deixavam simplesmente
morrer.
E depois foi-lhe dada uma oportunidade. Ela tinha sido deixada na área
de convívio, altamente medicada, juntamente com o resto dos residentes do
hospital, de boca aberta e olhos vidrados, quando chegaram os homens de
fato. Homens de cabelo grisalho com caras cansadas e sapatos muito usados.
Eles fizeram-lhe perguntas. Ela ignorou-as. Depois um deles mencionou
«as experiências». As experiências. Ela tinha ouvido falar delas. A maioria
das pessoas ouvira. Por portas e travessas. Em canais de comunicação
piratas. Pelos habituais teóricos da conspiração. Laboratórios secretos em
lugares remotos onde o Departamento fazia experiências em «voluntários»
vivos. Para tentar encontrar uma forma de vencer o vírus.
– Sabemos que teve uma filha que morreu – disse um dos homens de
cabelo grisalho. – Se nos ajudar, pode impedir que outras crianças morram.
– Talvez eu não queira – disse ela. – Talvez queira que as mães delas
sintam a dor que estou a sentir.
O homem de cabelo grisalho tinha abanado a cabeça e levantara-se,
retirando-se para outra mesa. O segundo homem de cabelo grisalho
permaneceu, olhando para ela com curiosidade.
– Acho que não está a falar a sério – disse ele.
– Não sabes de merda nenhuma.
– Eu sei que quer morrer. E eles não a vão deixar. – Ele endireitou os
papéis em cima da mesa à sua frente. – Acho que nos podíamos ajudar um
ao outro.
Ela olhou-o com desconfiança.
– Como?
– As experiências são de alto risco. A maioria dos voluntários não
sobrevive. – Ele encolheu os ombros. – Mas pelo menos as suas mortes têm
algum proveito. Pelo bem da humanidade, certo?
– Que se foda a humanidade.
– Como queira. – Ele começou a levantar-se.
– Espere! – Ela olhou para ele. O seu cérebro estava confuso e ela não
conseguia disfarçar o desespero na sua voz. Esforçou-se ao máximo para
formar as palavras: – A maioria não sobrevive?
Ele inclinou-se e piscou um olho.
– Ainda não vi nenhum. – Ele empurrou uma folha de papel sobre a mesa
na direção dela e ergueu uma caneta. Depois de um momento de hesitação,
ela pegou nela.
Ele sorriu.
– Assine aqui… e aqui.
Isto acontecera há mais de seis meses. Eles tinham feito com que Meg
deixasse as drogas. Curaram-na. Declararam-na uma candidata ideal.
E agora aqui estava ela, presa num teleférico avariado, sabe Deus onde, com
um possível assassino psicopata. Pelo bem da humanidade. Certo.
Ela olhou em volta para os olhos expectantes.
– Será que importa porque estamos aqui? Se não queremos ir para
a prisão, temos de acertar as nossas versões da história. Agora temos dois
corpos desaparecidos para explicar.

Karl tinha-se passado e tentara abrir o alçapão. Mark, o tipo da segurança,


tinha tentado detê-lo. Ambos tinham caído na luta. Essa era a história e
todos eles precisavam de a manter a todo o custo.
Meg sentou-se no canto do teleférico mais afastado de Sarah. O teleférico
balançou novamente. O estômago dela ressentia-se. Pelo menos um
homicídio e a eliminação de um cadáver tinham-na distraído dos enjoos.
Quando é que eles iriam voltar a ligar o raio da energia? Certamente alguém,
em algum momento, iria colocar o teleférico em movimento?
Quis verificar o seu relógio e percebeu que não estava a usar nenhum.
Tinha sido levado, juntamente com o resto dos seus pertences. Sem relógio.
Sem telemóvel. Não havia como saber as horas. Há quanto tempo estavam
pendurados aqui? Há duas horas? Três horas? Mais?
Na extremidade oposta do carro, Max e Sarah sentaram-se juntos a falar
em voz baixa. Meg não conseguia ouvir o que estavam a dizer por causa do
rugido do vento lá fora, mas as suas expressões pareciam sérias. Sean ficou
no meio do teleférico por um tempo, olhando para a névoa branca, e depois
veio e sentou-se ao lado de Meg. Os grupos estavam definidos, pensou ela.
– Olá – disse ele.
– Olá.
– Estás bem?
– Nem por isso.
– Pois.
O teleférico balançou novamente. O estômago de Meg revirou-se.
E depois ela tremeu. Estava definitivamente a ficar mais frio aqui dentro. Ela
conseguia sentir um leve calor vindo dos ventiladores debaixo dos bancos.
Havia luz à volta do tejadilho do teleférico. Alimentada separadamente por
algum tipo de gerador, presumiu ela. Mas quanto tempo é que isso duraria?
Quando caísse a noite, as temperaturas iriam mesmo baixar. Se perdessem
essa pouca energia, estariam aqui pendurados com temperaturas negativas
no escuro. Não era uma perspetiva animadora.
Sean inclinou-se para mais perto. Meg resistiu ao impulso de se afastar.
Não por achar que ele era uma ameaça. E certamente não era feio ou
repulsivo. Ele tinha um rosto agradável com olhos azuis brilhantes. Era
óbvio que fazia muito exercício. Ela pôde perceber pela definição dos
músculos quando ele despiu o fato de neve. Mas ela ainda não o conhecia. E
Meg não gostava muito que invadissem o seu espaço pessoal. As últimas
pessoas que o tinham feito estavam a amarrá-la enquanto a enchiam de
drogas.
– Quando revistaram o tipo da segurança, encontraram alguma coisa? –
sussurrou Sean.
Claro que sim. A fotografia. Ela olhou para o outro lado do teleférico.
Sarah e Max ainda estavam a conversar. Se ela não conseguia perceber o que
estavam a dizer, calculou que eles também não a conseguiam ouvir e ao
Sean.
– Sim. Quase que me esquecia. – Ela pôs a mão no bolso e tirou a
fotografia.
Eles inclinaram-se e olharam para ela. Era uma selfie, com um pano de
fundo de neve. Via-se um grande edifício – igreja, universidade? Era um
jovem com o braço em volta de uma rapariga. O jovem era moreno, com um
rosto redondo e gorducho e cabelos longos e encaracolados. A rapariga era
espantosamente bonita. Cabelos escuros encaracolados, rosto de fada e
grandes olhos azuis. Meg franziu o sobrolho. Não conhecia nenhuma destas
pessoas. Olhou para Sean, que também estava a olhar para a foto com
atenção.
– Alguma ideia? – perguntou ela.
Ele abanou a cabeça.
– Talvez sejam parentes dele, filhos.
Meg olhou para a parte de trás da fotografia. Ela tinha a certeza de que
nenhuma daquelas pessoas era parente de Paul, e ela sabia que ele não tinha
filhos.
– Não sei – disse ela. – Ele não parecia velho o suficiente para ter filhos
desta idade. Parece que estão no final da adolescência ou com vinte e poucos
anos.
– Irmãos, então?
– Talvez. – Ela virou a foto. Escrito no verso estavam dois nomes.
Daniel e Peggy. Academia Invicta.
– Diz-te alguma coisa? – perguntou ela a Sean.
– Não. E a ti?
Academia Invicta. Soava-lhe familiar. Muito remotamente, mas Meg tinha
a certeza de que já tinha ouvido este nome antes, algures. Ela olhou de novo
para a foto. Porque é que Paul tinha isto com ele? Quem eram estas pessoas?
Se não eram amigos ou família, podiam ser suspeitos, vítimas? Ou estaria a
presumir demasiado? Já não via Paul há anos. Ele tinha uma vida nova.
Talvez tivesse novos amigos ou enteados. E, no entanto, o seu instinto dizia-
lhe que não era isso. Algo estava errado naquela fotografia. Academia
Invicta. O que era?
O teleférico voltou a agitar-se, rangendo ruidosamente acima deles. Sarah
gritou. Meg levantou os olhos para o tejadilho. Toda a cabina estava coberta
de neve, camadas e camadas, a assentar. Durante a noite congelaria. E,
depois, cairia mais.
– O que se passa? – perguntou Sean.
– Só me pergunto quanto peso estas cabinas estão preparadas para
transportar.
– Pelo menos vinte pessoas, eu diria. Porquê?
– Estava a pensar em toda aquela neve.
Ele olhou para cima.
– Tenho a certeza de que está preparado para suportar a neve. – Ele fez
uma pausa. – Mas de facto, habitualmente, a neve é limpa no terminal. O
teleférico não ficaria parado tempo suficiente para ela se acumular.
– Mas os cabos aguentam, certo?
– Não sei.
Outro ranger alarmante. Na outra ponta da cabina, Max levantou-se e
caminhou, em desequilíbrio, até eles.
Sorriu de forma envergonhada.
– Temos um pequeno problema.
– O quê? – perguntou Sean.
– Bem, é um pouco delicado.
Meg ergueu uma sobrancelha.
– Mais delicado do que empurrar um homem pela borda fora?
– Olha, eu não concordo…
– Desembucha – disse Sean.
– É a Sarah.
Meg olhou por cima do ombro dele até onde Sarah estava sentada,
curvada, com os braços enrolados em volta da barriga.
– O que tem ela? – perguntou ela sem empatia. – Está doente? Está
a morrer? Está a ter uma crise de consciência?
Max suspirou.
– Ela precisa de cagar.
Carter

Eles continuavam no corredor a olhar para o elevador.


Não havia escadas para a cave. Não havia saídas de emergência. O único
acesso era através do elevador, com o passe de segurança que só Miles
possuía.
Tanto quanto eles sabiam.
O que deixou Carter num impasse.
– Como é suposto irmos lá abaixo se o Miles tem o único passe? –
perguntou Welland.
– Boa pergunta. – Carter olhou para Welland. – Há alguma forma de
contornar os controlos de segurança?
– Acho que não.
– Podes tentar?
Welland considerou. Carter podia praticamente ouvir as engrenagens a
girar e ver o vapor a sair-lhe dos ouvidos.
Welland abanou a cabeça.
– Não, não há hipótese.
Welland era mesmo o tipo de pessoa para «quem tudo era um custo».
– E agora? – disse Caren.
Carter sentiu-se em conflito consigo mesmo. Eles não faziam ideia do que
iriam encontrar lá em baixo. Miles podia já estar morto. Nesse caso, pelo
menos não poderia matar Carter por lhe ter mentido.
– Está bem. – Carter começou a meter a mão no bolso secreto das calças
de ganga onde guardava o seu passe roubado. Retirado do corpo de uma
rapariga que ele conhecia…
Antes de conseguir apanhá-lo, Caren já tinha enfiado uma mão dentro da
sua T-shirt e retirado…
Carter olhou para ela.
– Isso é…?
Ela ergueu um passe para a cave por entre os dedos.
– Não que eu não confie no Miles, mas… – Ela encolheu os ombros.
– Onde diabo conseguiste isso? – perguntou Welland.
Caren sorriu de forma marota.
– Não me faças perguntas, eu não te conto mentiras. Então… vamos fazer
isto?
Carter acenou com a cabeça.
– Parece que sim.
Ele carregou no botão do elevador.
– Temos de ir todos? – perguntou Welland, torcendo a T-shirt entre as
mãos e oferecendo a todos um vislumbre da sua pálida e peluda barriga. –
Quero dizer, não devia ficar alguém aqui em cima para ser, tipo, um vigia?
– Boa ideia – disse Carter. – Vamos separar-nos. Funciona sempre bem
em filmes de terror.
– E tu definitivamente não pareces ser o tipo mais provável de ser
assassinado antes dos créditos iniciais – acrescentou Caren, mostrando um
senso de humor nunca visto nos três anos em que Carter tentou evitá-la.
Talvez tudo o que era preciso para trazer à tona o melhor de algumas
pessoas fosse uma pequena e horrível matança.
Welland soltou um suspiro profundo.
– Que merda, meu.
O elevador deu sinal. Caren e Carter levantaram as suas armas. As portas
abriram.
Algo pequeno, castanho e branco e peludo saltou cá para fora, ladrando
excitadamente.
– Dexter! – exclamou Carter.
Caren baixou a arma e franziu o nariz.
– Ele cheira mal.
Carter tomou o cão nos seus braços.
– Olá, amigo. Ficaste preso no elevador?
– Bem, ele dificilmente o chamou – acrescentou Caren, enfiando um pé
para impedir o fecho da porta. – Parece que também nos deixou
um pequeno presente.
Carter afagou as orelhas do cão.
– Oh, fizeste um cocó? Fizeste?
Caren rolou os olhos.
– Está bem, o amor aos animais é ótimo. Podemos continuar agora?
Carter pôs Dexter no chão.
– Está bem. Fica aqui em cima, amigo.
Eles entraram, tentando evitar ficar perto do depósito no canto. Mas
Dexter não ia abrir mão da sua nova companhia. Foi atrás deles.
Carter olhou para Caren e encolheu os ombros.
– Parece que ele vem connosco.
Ela encostou o seu passe aos controlos e premiu «C».
– Ótimo. Quando morrermos todos, ele pode banquetear-se com os
nossos cadáveres.

O elevador deslizou silenciosamente para baixo. Carter e Caren sacaram


das suas armas quando as portas se abriram.
O corredor estava vazio, apenas iluminado pelas luzes de emergência,
faixas verdes ao longo de cada lado. Ajudava a dar um brilho assustador ao
cenário.
– Meu, parece a merda do Halloween aqui em baixo – lamentou Welland.
Para variar, até tinha razão, pensou Carter.
Eles saíram do elevador. Carter ia à frente, Caren atrás dele e Welland
seguia-os como uma criança amuada. Dexter andava à volta das pernas
deles. As portas à esquerda estavam abertas, o que não era normal.
Habitualmente, quando havia energia, estavam fechadas. Os sistemas
tinham mesmo ido abaixo. Ele olhou de relance para Caren.
– Alguma vez usaste esse passe para vir aqui abaixo?
– Uma ou duas vezes – disse ela. – Só para verificar.
– O quê?
– O que achas?
Armas ainda em punho, caminharam em direção à primeira porta aberta
e espreitaram para dentro. Este tinha sido o consultório dos médicos mais
jovens. Três secretárias, computadores portáteis antigos a ganharem pó.
As pessoas hoje em dia não eram tão ligadas aos seus computadores ou
aparelhos eletrónicos. Para quê? A Internet e as redes telefónicas tinham má
ligação, as notícias eram só propaganda, a TV mostrava os mesmos
programas repetidos e as redes sociais não eram remotamente sociais.
Na outra parede, um grande quadro de cortiça, pendurado, salpicado com
pedaços de papel enrolado. Piadas, desenhos animados, mantras
«engraçados» sobre o local de trabalho. Um menu de takeaway do
restaurante da vila. E uma página de um jornal:
ACADEMIA INVICTA.
Novo departamento de investigação inaugurado pelo professor Grant.
Carter olhou para ela por um momento e depois virou-se.
– Vamos verificar a próxima.
Eles saíram e entraram no segundo escritório. O escritório dele, pensou
Carter. Do professor. Aqui só havia uma grande secretária de mogno, com
uma cadeira de couro cara ao fundo. Havia um louceiro pesado encostado a
uma parede. Outrora, conteve copos de cristal e garrafas de bom vinho e
uísque. Há muito tempo que esses tinham sido bebidos. Diretamente das
garrafas.
A secretária estava vazia, à exceção de um pisa-papéis de vidro e uma foto
numa moldura de madeira. Uma rapariga, com cabelo fino e olhos
cinzentos. Não era muito bonita. O seu nariz era muito comprido e o rosto
um pouco fino. Mas marcante. Determinado.
– Carter?
– Sim? – Ele virou-se.
Caren estava a franzir-lhe o sobrolho.
– Não há nada aqui. Vamos.
Ele pegou na fotografia e colocou-a virada para baixo.
– Já vou.
Eles saíram do escritório e verificaram os laboratórios. Todos vazios. Os
únicos sons eram os seus próprios passos e o zumbido da unidade de
refrigeração.
– Não está ninguém – disse Caren.
– Então, vamos voltar para cima? – perguntou Welland, esperançoso.
Carter olhou para ele.
– Claro. Depois de verificarmos as câmaras.

Havia uma dúzia de câmaras de isolamento na cave. Oficialmente. Não


oficialmente, eram treze. Havia uma décima terceira câmara, incrivelmente
segura e incrivelmente bem escondida. Oficialmente, é claro, nenhuma das
câmaras existia. A sua verdadeira função era conhecida apenas por algumas
pessoas importantes. E pelos sobreviventes.
Carter conseguiu sentir o odor forte e metálico do sangue antes mesmo
de virarem a esquina. Dexter ia à frente. Quando chegou à porta das câmaras
de isolamento, parou e ganiu.
Sei o que estás a sentir, amigo, pensou Carter.
A porta para as câmaras, normalmente selada, estava meio aberta. Eles
olharam para ela.
– Então, estamos todos prontos? – perguntou Caren, como se estivessem
prestes a começar uma aula de aeróbica de alto impacto ao invés de
entrarem no sétimo círculo do inferno.
Não, pensou Carter, mas anuiu sucintamente e entrou. Caren seguiu-o.
Welland choramingou: «Oh, meu», e entrou atrás deles.
Carter estava certo. Sangue vermelho-escuro. Pelo chão e pelas paredes
acima. Espalhado pelos vidros das Câmaras 1 e 2. A origem estava a meio
caminho, entre as Câmaras 3 e 4.
– Foda-se – gemeu Welland atrás dele.
Caren soltara um assobio baixinho entre dentes. Dexter sentou-se
e começou a lamber os testículos.
Carter seguiu em frente. Com cuidado, tentando não tocar no sangue.
Estavam todos vacinados, mas isso não era cem por cento infalível. Como já
tinha sido provado no passado.
Ele alcançou o corpo. Não era Miles. Outro Whistler. Macacão azul,
cabelo branco comprido. O rosto destruído, uma catástrofe de ossos
esmagados e sangue. Como se chamava ela? Carter não se lembrava. Era
uma das enfermeiras, Miles tinha-lhe dito. Carter só a tinha conhecido
como Reserva 02.
Levantou-se e olhou para os outros.
– Morto.
– Dois mortos – disse Caren.
Ele acenou com a cabeça. Onde raio estava Miles?
Eles passaram por cima do corpo. Na Câmara 3, uma figura agachada ao
canto, rosto escondido por longos cabelos emaranhados. Já não sobrava
muito deste corpo. Tinha sido drenado. Um esqueleto envolto em pele.
– Ele era médico, antes de ficar infetado – tinha dito Miles a Carter. –
Trazia voluntárias para aqui às vezes, sedava-as e, bem, podes calcular o
resto.
Carter virou o rosto. Dexter tinha terminado a sua limpeza masculina e
andou alegremente à frente deles. Parou à porta da Câmara 4 e sentou-se,
ofegante e feliz. Caren e Carter trocaram olhares. Três Whistlers tinham sido
contidos aqui em baixo. Três exemplares de reservas. Dois estavam mortos.
Um não ia a lado nenhum.
Restava então…
Eles caminharam até ao vidro reforçado. Cada câmara continha uma
cama, uma cadeira, uma televisão montada na parede, uma pequena estante
e uma área de duche e casa de banho isolada. Uma pequena luz vermelha na
porta indicava que a câmara estava trancada.
Miles estava sentado lá dentro, a folhear um velho livro de bolso com ar
aborrecido. Olhou de relance para eles quando se aproximaram.
– Finalmente. – Ele fechou o livro e atirou-o para cima da cama. – Já me
perguntava quanto tempo demorariam a encontrar-me e a deixar-me sair.
Hannah

Ela tinha dez anos quando a mãe dela se matou.


O pai sempre disse que tinha sido um pedido de ajuda. Simplesmente os
comprimidos para dormir e o álcool foram de mais para o corpo frágil da
mãe. Mas Hannah sabia que a mãe nunca fazia nada sem intenção. Se a dose
excessiva tinha sido um pedido de ajuda, era para ser o último. Ela tomou o
controlo da sua morte da mesma forma rígida como tinha controlado a sua
vida.
Para além de Hannah, controlo era tudo o que a mãe tinha. O pai tinha
sido uma figura ausente nas suas vidas, desde que Hannah se lembrava. Uma
sombra fugaz no canto do olho dela. Um fantasma que entrava e saía das
divisões, mas nunca se demorava. Hannah conhecia maus cheiros que se
prolongavam por mais tempo.
– A minha mãe morreu por tua culpa! – Ela tinha-lhe gritado uma vez,
numa rara manifestação de angústia adolescente. – Não a amavas o
suficiente.
O pai tinha olhado para ela friamente e dito: «O amor não salva as
pessoas, Hannah. Só a ciência salva as pessoas. Um dia vais compreender
isso.»
Hannah compreendeu. Ela entendeu que a mãe não queria ser salva se
não fosse amada. Ela percebeu que a ciência salvava a maioria, não a
minoria. E, neste momento, se ela quisesse sobreviver, teria de se salvar a ela
própria.
Estatisticamente, se Hannah estivesse infetada, tinha 98 por cento de
hipótese de apresentar sintomas. Se de facto apresentasse sintomas, tinha 75
por cento de probabilidade de morrer. Se sobrevivesse, bem, essa era a outra
percentagem na qual não queria pensar. Claro, eles tinham cerca de 99,999
por cento de hipóteses de irem pelos ares nas duas horas seguintes, por isso
talvez não importasse.
– Isto fica entre nós – disse ela a Cassie. – Neste momento, a nossa
prioridade é a bomba.
– Claro que sim. – Cassie acenou com a cabeça. – A meu ver, não vamos
sair disto vivos. A única questão é se vamos sair inteiros.
Hannah olhou para ela.
– E eu a pensar que era eu a pessimista.
– Prefiro pensar que sou realista. O facto é que, se apenas um de nós
estiver infetado, provavelmente todos nós estamos…
– Isso não significa que vamos todos morrer – disse Hannah.
– Não. Mas se a alternativa é tornar-me um Whistler de merda…
– Não lhes chames isso – respondeu Hannah com agressividade.
– Porquê?
– Desumaniza as pessoas.
Cassie ergueu uma sobrancelha.
– Pensei que já estávamos a desumanizá-las ao colocá-las em quintas… –
Ela parou de falar e tapou a boca. – Ups, provavelmente também não é
suposto chamá-las assim. Qual é o termo oficial… Centros de isolamento?
Hannah sentiu-se tensa.
– O que queres que o Departamento faça? Essas pessoas podem ter
sobrevivido, mas ainda estão infetadas. Não vão recuperar. Algumas são
perigosas pela variante Choler. Os centros de isolamento são uma solução
humana.
– Prendendo-as. Usando-as sem o seu consentimento.
– Isso não é verdade.
– Sabes – disse Cassie –, parece que me lembro de uma época na história
em que as pessoas eram postas em lugares como esse. Como é que lhes
chamavam na altura? Ah, sim, campos de concentração.
– Não é remotamente a mesma coisa – disse Hannah com confiança.
Cassie sorriu.
– Acho que já devia saber que eras uma negacionista, tendo em conta de
quem és filha.
– Eu não sou como o meu pai. E tu não devias acreditar em teorias loucas
da conspiração nas redes sociais.
– Ainda o defendes quando ele está disposto a deixar-te morrer. Isso é
devoção.
Antes que Hannah pudesse retorquir, houve um grito atrás delas.
– EI! – A voz de Lucas. – Podem guardar os mexericos para mais tarde?
Nós precisamos das chaves.
Hannah empurrou Cassie para passar.
– Nem uma palavra – disse ela entre dentes.
Voltou à parte de trás do autocarro e entregou as chaves a Lucas.
– Aqui tens.
Josh e Lucas tinham limpado o vidro e Josh já tinha feito um túnel de
tamanho considerável na neve. Lucas tinha recolhido o excesso num grande
monte que estava a derreter. Hannah ficou surpreendida. Isto poderia
funcionar.
– Impressionante.
– Sim – respondeu Josh, ofegante, a tentar sair do túnel. – A neve não está
muito compactada. Parece que consigo ter profundidade suficiente e depois
começar a escavar o túnel na direção do exterior.
– Precisas de ajuda?
Ele abanou a cabeça.
– Obrigado, mas isto é trabalho para um homem só. Além disso, sem
ofensa, não quero que ninguém estrague tudo.
– É justo.
Ele regressou ao túnel, desta vez apenas os pés dele se viam. Hannah
sentou-se e cruzou os braços. O calor fraco das saídas de ar já estava a
dissipar-se. Sem o motor ligado, era simplesmente residual. Em breve,
começaria a arrefecer. Eles teriam sorte se tivessem mais meia hora de
energia da bateria. Ela esfregou os braços. Se não explodissem primeiro,
havia uma grande possibilidade de adormecerem esta noite, entrarem em
hipotermia e não mais acordarem.
Cassie tinha-se sentado por perto, ignorando-a propositadamente. Daniel
estava novamente na parte de trás do autocarro, a cuidar da irmã. O lado
menos caridoso de Hannah (que herdou do pai) desejava que a rapariga se
despachasse e morresse de uma vez. Em algum momento, ela tornar-se-ia
um problema. Estava a ser um desperdício de recursos. O tempo de Daniel
já poderia ter sido mais bem empregue a ajudar Lucas e Josh. Ele era um
tipo grande. Outro par de mãos teria dado a Lucas uma oportunidade de
descansar. Ela franziu o sobrolho. Falando em outro par de mãos, faltava
aqui alguém.
– Onde está o Ben? – perguntou ela a Lucas.
– Oh, ele, ah, teve de ir à casa de banho.
Ótimo. Isso deve melhorar o aroma já ligeiramente agreste dentro do
autocarro.
Ouviu-se o autoclismo e Ben saiu aos tropeções, limpando a boca. O seu
cabelo liso estava colado ao couro cabeludo e estava cheio de olheiras.
Parecia que se tinha aliviado por ambos os lados.
– Estás bem? – perguntou Hannah.
Ele acenou com a cabeça, depois tossiu.
– Meu, quem me dera ter tirado aquele Pedialyte da minha mala.
Se calhar, ah, não entrem ali por algum…
Um baque sacudiu o tejadilho do autocarro. Todos saltaram com o susto.
– Merda! – gritou Ben, a medo. – Que raio foi aquilo?
– Avalanche? – sugeriu Cassie. – Queda de meteoritos?
Outro baque. Todos olharam para o tejadilho. Ao baque seguiram-se
ruídos de algo a arrastar. E depois uma silhueta cinzenta passou pelas janelas
cobertas de neve.
Lucas pressionou a língua dele contra os dentes.
– Acho que temos visitas.
– Lobos – disse Hannah, cheia de desânimo.
Josh deslizou para fora do túnel de neve.
– Disseste «lobos»?
Mais baques, e o raspão de garras, desta vez mais à frente no autocarro.
Os olhos deles percorreram as janelas, acompanhando o movimento.
– Pensava que os lobos tinham medo das pessoas – disse Ben.
– Normalmente – disse Hannah. – Mas eles não sabem que somos
pessoas. Neste momento, só lhes cheira a presa.
E os animais desesperados e famintos tornam-se mais ousados
e agressivos. Animais infetados ainda mais. Mas não vale a pena mencionar
isso ainda.
Mais arranhões no tejadilho. Eles estavam a farejar, pensou Hannah. À
procura de uma presa que conseguiam cheirar, mas não conseguiam
alcançar. E depois um uivo. Primeiro singular, depois acompanhado por
mais quatro ou cinco. Pela primeira vez, Hannah compreendeu o significado
de «gelar o sangue».
Uma figura grande dirigiu-se à parte dianteira do autocarro. Daniel.
– Sabiam que há lobos lá fora?
– És de raciocínio rápido – murmurou Cassie.
– Nós sabemos – disse Lucas friamente.
– O que é que fazemos?
Lucas suspirou.
– Esperamos. Quando perceberem que não conseguem alcançar-nos,
procurarão presas mais fáceis noutro lugar.
– Mas quanto tempo é que isso vai demorar?
Lucas encolheu os ombros.
– Difícil de dizer.
– Que horas são? – perguntou Josh.
Lucas verificou o relógio.
– Cinco e cinquenta e sete.
Faltariam cerca de duas horas, se os seus cálculos estivessem corretos.
Talvez mais. Talvez menos.
Josh abanou a cabeça.
– Vou continuar a fazer o túnel. Não podemos perder tempo. – Ele
rastejou de volta para a neve.
Os outros permaneceram, ouvidos atentos, olhos presos ao tejadilho do
autocarro. Além de Josh a cavar o túnel de neve, havia agora silêncio.
– Já não os ouço – murmurou Ben.
Não, pensou Hannah. E, por alguma razão, isso deixava-a mais nervosa.
– Talvez se tenham ido embora – disse Cassie.
Um som de raspar, desta vez à sua direita.
– Ou talvez não – acrescentou ela.
O suave raspar continuou.
– Mas eles não nos conseguem alcançar, certo? – disse Ben nervosamente.
– Quero dizer, não há forma de entrar aqui.
Mas havia, apercebeu-se Hannah. O túnel. Merda.
– Eles podem escavar – disse ela, a olhar em volta.
– O quê? – perguntou Cassie.
– Os lobos. Eles podem escavar. Eles escavam para chegar às presas.
– Tens a certeza?
– Sim. Vi num documentário.
– Scheisse – sussurrou Lucas.
Hannah agachou-se.
– Josh, sai do túnel!
– O quê?
– Sai. Agora!
Lucas agarrou nos tornozelos de Josh e puxou-o de volta para o autocarro.
– Mas que raio…
O túnel desmoronou numa pequena avalanche de neve. Cassie gritou
quando, de rompante através do branco, surgiram mandíbulas a rosnar,
manchando a neve de saliva rosa.
– Foda-se! – gritou Josh, arrastando-se para longe.
Lucas pontapeou o lobo. Josh juntou-se a ele, empurrando a neve com os
calcanhares para bloquear o focinho saliente.
– Mata-o, meu! – gritou Ben.
– Com o quê, porra? – gritou Josh de volta.
– É só fome e desespero. Precisamos de o afugentar – gritou Hannah.
– O telemóvel. O alarme! – gritou Daniel.
– Onde está?
Josh meteu a mão nos bolsos.
– Devo tê-lo deixado cair – disse ele. – No túnel.
– Espera – disse Lucas. – Estou a vê-lo.
Hannah também o via. Perto dos pés de Josh, meio enterrado na neve.
Ela atirou-se para a frente. O focinho do lobo surgiu pelo meio da neve
junto ao ouvido dela. Hannah sentiu o seu hálito quente, viu os dentes
amarelados.
Ela levantou o telemóvel e premiu o alarme. A sirene ensurdecedora soou.
O lobo uivou, mas desta vez com medo, não em fúria. O focinho e as garras
recuaram. Hannah manteve o polegar pressionado no alarme. Olhos
fechados, coração a mil. Ela não conseguia parar, não conseguia mexer-se.
Alguém a agarrou. Ela virou-se e quase lhe deu um murro. Daniel pegou no
braço dela.
– Já chega. É suficiente. Já se foi.
Hannah soltou o botão. A voz dele soava estranhamente distante. Os seus
ouvidos estavam a zunir. Ela sentou-se, respirando ofegantemente.
Todos permaneceram num silêncio atordoado. Os lobos tinham
desaparecido. Mas o túnel que Josh tinha feito também. A neve tinha cedido
na janela partida novamente.
– Acho que o túnel está fodido – observou Cassie.
– O que é que fazemos agora? – perguntou Ben.
– Cavamos de novo – disse Lucas, olhando para Josh.
Josh acenou com a cabeça, cansado.
– Desta vez sou capaz de precisar de ajuda.
– Vais tê-la.
– E se os lobos voltarem? – perguntou Daniel.
Lucas comprimiu os lábios.
– Trabalhamos depressa. – Ele fez sinal com a cabeça na direção de
Hannah. – E ainda temos o alarme.
Mas por quanto tempo?, pensou Hannah, a olhar para o telemóvel.
A bateria estava reduzida a um quarto.
E nesse momento ela percebeu outra coisa. Havia uma nova mensagem. O
telemóvel deve ter encontrado algum sinal. Ela olhou para cima. Os outros
estavam preocupados com o túnel de neve.
Ela abriu a mensagem.
Quando a tempestade abrandar, vamos encontrar-vos. Em breve. P. G.

P. G. Ele nunca tinha conseguido assinar como papá ou mesmo pai.


Mas tinha recebido a mensagem de Hannah. Sabia que eles estavam vivos.
Vamos encontrar-vos. Em breve.
Hannah ficou em conflito com ela mesma.
E depois rapidamente apagou a mensagem.
Estavam a ficar sem tempo, em mais do que um sentido.
Meg

Nos filmes nunca era assim. Quando havia um desastre – um sequestro de


avião, terroristas a tomar de assalto um arranha-céus, o apocalipse dos
zombies –, nunca ninguém parava para dizer: «Preciso mesmo de cagar.»
Discutiu-se a logística. Acabaram por decidir que Sarah o «faria» num
canto, o recolheria com uma das suas meias e atirá-lo-ia fora pelo alçapão.
Os restantes ficavam no canto oposto, virados para o vidro, olhando para o
céu que escurecia rapidamente, tentando fingir que não conseguiam ouvir
ruídos ou sentir o mau cheiro.
Uma pequena parte de Meg estava solidária com a vergonha da outra
mulher. Ser forçada a cagar no canto de um teleférico abandonado a mil pés
de altura não estava na lista de desejos de ninguém. Mas, por outro lado,
karma.
Finalmente, Sarah aproximou-se, parecendo envergonhada. Sean abriu o
alçapão e ela mandou a meia suja e o seu conteúdo para fora do teleférico. O
cheiro e uma ligeira mancha castanha no chão permaneceram.
– Obrigada – murmurou ela a Sean.
– Ei, todos temos de o fazer.
– Sim. – Ela lançou-lhe um olhar de gratidão.
– Sabem, talvez fosse bom considerar esta situação – disse Max.
– Eu realmente preferia deixar morrer o assunto – disse Sarah.
Difícil, pensou Meg, quando todo o teleférico cheirava a merda.
– O que quero dizer é que – continuou Max –, se vamos ficar aqui presos
por algum tempo, todos nós podemos precisar de nos aliviar de uma forma
ou de outra.
– Bem, o Max e eu podemos mijar para fora do alçapão – disse Sean.
– Que bom para vocês – disse Meg. Ela olhou em volta. Eles não tinham
nenhum recipiente, nenhuma garrafa vazia. Nem comida ou água, pensou
ela, o que em breve poderia ser outro problema.
– As nossas botas – disse ela de repente.
– O quê?
– Se precisarmos de fazer chichi, podemos fazer numa bota e depois
esvaziá-la pelo alçapão.
– Oh, meu Deus – murmurou Sarah.
– Bom, tens uma ideia melhor? – Ela olhou para Sarah.
Sarah baixou os olhos e abanou a cabeça.
– Suponho que não.
– Esperemos que não seja preciso – disse Max num tom reconfortante. –
Quero dizer, tenho a certeza de que as pessoas estão a tentar consertar a
energia neste momento.
Sean e Meg trocaram olhares. Ela sabia o que ele estava a pensar.
«As pessoas» já não eram tão confiáveis como em tempos foram. Mesmo
aquelas que trabalhavam para o Departamento. Agora tudo estava fraturado.
Sociedade, ordem, infraestrutura. Acrescentando a isso o facto de que «as
experiências» eram projetos secretos geridos por uns quantos. Oficialmente,
estavam a ser gradualmente eliminados. Se alguma coisa acontecesse, havia
muito menos «pessoas» para reverter a situação.
– Se calhar é melhor estar preparado para qualquer eventualidade – disse
Sean.
– Tudo bem. – Sarah tocou na sua cruz. – Mas eu fiz uma oração e tenho
a certeza de que teremos energia novamente em breve.
Estava na ponta da língua de Meg perguntar-lhe se ela tinha feito a oração
a Deus enquanto cagava, mas, antes que ela pudesse dizer alguma coisa,
houve uma guinada… e o teleférico começou a mover-se.
Sarah ofereceu a Meg um olhar triunfante.
– Vês.
O teleférico avançou lentamente no sentido ascendente. Meg pressionou a
cara contra o vidro. Mais à frente, ela podia ver o topo da montanha e uma
esfera cinzenta que sobressaía, aquilo devia ser o terminal superior. O seu
coração começou a animar-se. Eram só mais algumas dezenas de metros.
Cada vez mais perto.
Houve outra guinada, um guincho metálico horrendo. Meg virou-se. A
cabina baloiçou para a frente e depois começaram a recuar, pelos cabos. A
velocidade inversa era tão rápida e inesperada que Meg voou do chão e foi
atirada contra a parede oposta. Atordoada, ela procurou algo para se agarrar,
colocando os dedos em redor de um corrimão. Max caiu com força no chão,
a cabeça batendo contra a lateral de um banco. Sarah agarrou-se a outro
corrimão e Sean caiu contra Meg. Houve um segundo solavanco, atirando-
os a todos para o outro lado, e depois a cabina imobilizou-se, balançando
suavemente. Eles permaneceram agarrados ao que podiam, respirando
ofegantemente.
Por um momento, ninguém falou. Sarah estava a chorar.
– Jesus – acabou Sean por dizer. – Estão todos bem?
Meg acenou com a cabeça. Sarah choramingou. No chão, Max gemeu.
– O que aconteceu? – perguntou Meg.
– Acho que houve um pico de energia… e depois o cabo de transporte
partiu-se – disse Sean.
– Oh, Deus. Vamos todos morrer – gritou Sarah.
– Não – disse Sean. – Há um cabo suplente. Aquele solavanco foi o travão
de emergência a atuar.
– Pareces saber muito sobre teleféricos – disse Meg.
Ele encolheu os ombros.
– Apenas o básico.
Max estava a tentar sentar-se. Meg foi até ao outro lado da cabina para o
ajudar. Os óculos dele estavam rachados e tinha um corte feio na testa na
zona onde tinha batido num dos bancos. Havia sangue a escorrer pela cara
dele. Meg procurou algo que pudesse usar para limpar e decidiu-se pela
manga do seu fato de neve. Felizmente, a ferida parecia superficial, e
começou a formar-se um galo, o que ela tinha uma vaga ideia de ser uma
coisa boa em ferimentos na cabeça.
– Tens aí um corte jeitoso na cabeça – disse ela. – Não te sentes mal, pois
não? Não perdeste a consciência?
– Não. Argh. – Ele gemeu outra vez. – O meu pulso. Isso é que realmente
me dói.
Meg pegou gentilmente no braço dele. Analisou o pulso. Estava magoado
e dobrado num ângulo ligeiramente antinatural.
– Consegues mexê-lo?
Max franziu o sobrolho e depois abanou a cabeça.
– Não.
– Acho que pode estar partido. – Ela olhou em volta desesperadamente. –
Nem sequer temos um kit de primeiros socorros.
Sean começou a despir o fato de neve. Meg ficou a olhar para ele.
– O que estás a fazer? – perguntou ela.
– Primeiros socorros.
Ele tirou a T-shirt. Meg reparou numa tatuagem no peito dele. O rosto de
uma rapariga. Envolto em cabelos escuros ondulados. Familiar, de alguma
forma. Ela franziu o sobrolho. E depois o rosto desapareceu de novo
enquanto ele voltava a vestir o fato.
Ele rasgou a T-shirt pela costura, dividindo-a em dois pedaços de tecido, e
depois agachou-se ao lado de Max.
– Isto pode doer um pouco – disse ele.
Ele pegou no braço dele e enrolou uma parte do tecido à volta do pulso
para o manter imóvel. A outra metade transformou numa ligadura
improvisada, enrolando-a à volta do pescoço de Max. Ele assentou
suavemente o pulso de Max sobre ela.
Max encolheu-se, mas acenou com a cabeça.
– Obrigado.
Meg olhou para Sean com olhos curiosos.
– És um homem de muitos talentos.
– Nem por isso. – Ele esboçou um pequeno sorriso. – Só sei um pouco
sobre muitas coisas.
O teleférico balançou de novo, com mais força. Acima deles, o cabo
rangeu. Todos eles ergueram os olhos para o tejadilho.
– Disseste que havia um cabo suplente – disse Max. – Se a energia voltar,
o teleférico vai andar ou temos de esperar pela ajuda?
– Isso eu não sei – admitiu Sean.
Outra rajada de vento. O movimento parecia mais forte. Agora só há um
cabo. Todas as suas vidas penduradas, literalmente, por um fio de aço
gigante. E depois havia aquilo que todos se esforçavam para não serem os
primeiros a dizer.
Foi Max que o verbalizou:
– E se a ajuda não vier?
Olharam todos uns para os outros, mas ninguém tinha uma resposta.
O que, claro, aconteceu quando as luzes tremeluziram e a energia da
cabina se foi.
Carter

A reviravolta tinha acontecido antes de Carter chegar ao Retiro.


Tinha havido um surto entre o pessoal médico. Um grave – variante
Choler. Em quarenta e oito horas, a maioria do pessoal morreu. Alguns
escaparam. Alguns ficaram confinados nas câmaras. Para evitar a
propagação. E por outras razões.
Miles e os outros sobreviventes acabaram por se tornar os únicos
responsáveis pelo Retiro.
E eles queriam que assim continuasse.
Tanto quanto o Departamento sabia, o Retiro era uma zona de morte.
As experiências já começavam a abrandar há algum tempo. Dizia-se que
poderiam terminar por completo. Para todos os efeitos, o Retiro nunca tinha
existido sequer. Era mais fácil para todos se nunca mais existisse.
Encerramento.
Tinham-se passado três anos. Até agora, o Departamento não tinha
mostrado sinais de querer reativar o Retiro. Talvez se tivessem realmente
esquecido.
Mas isso podia sempre mudar.
Monstros adormecidos poderiam despertar.
O Departamento podia decidir enviar pessoas novamente.
Sobretudo se alguma vez descobrissem a Câmara de Isolamento 13.

Reuniram-se os quatro na sala, sentados nos sofás. Dexter aninhou-se no


colo de Carter. Caren tinha ido buscar velas ao armazém e agora acendia-as
enquanto Miles contava o que tinha acontecido.
– Quando a energia foi abaixo, fui diretamente à cave para verificar a
segurança das câmaras de isolamento. Quando lá cheguei, a 02 já estava fora
da cela dela e o 01 estava no chão. Sabemos que a 02 há muito que exibia
sintomas avançados da variante Choler. Pensei que ela o tinha atacado.
Estúpido da minha parte ter caído num estratagema tão óbvio, mas
aconteceu muito depressa. Apontei-lhe a minha arma, mas depois o 01
levantou-se. Ele derrubou-me e atirou-me para o elevador. Eu disparei
alguns tiros, mas ela atacou-me e, enquanto eu lutava com ela, ele fugiu.
Porque só era preciso um passe para descer para a cave, não para subir.
– Como diabo acabaste dentro de uma câmara?
– Dadas as circunstâncias, com um preso louco a tentar estrangular-me,
parecia o lugar mais seguro. As portas trancam automaticamente assim que
estão fechadas.
– Trancaste-te a ti próprio lá dentro? – disse Caren.
– Claro que sim. Presumi que eventualmente me encontrariam, se algum
de vocês ainda estivesse vivo. – Ele olhou-a com astúcia. – Afinal, não sou o
único que tem um passe para a cave, pois não?
Caren olhou para ele.
– É só para prevenir.
– Alguém tem de guardar o guardião, certo?
– Certo.
Miles acenou com a cabeça e disse, com uma voz mais dura:
– Vou precisar desse passe, Caren.
Ela hesitou. Mas nem sequer a Caren com C discutia com Miles.
Relutantemente, retirou o passe e entregou-lho.
– Obrigado. – Miles meteu-o no bolso.
– E se não te tivéssemos encontrado? – perguntou Carter, ansioso por
mudar de assunto.
– Eu tinha a minha arma. Uma bala teria sido suficiente.
– Então não mataste a 02?
– Não. Na verdade, observei enquanto ela esmagava os próprios miolos
contra o vidro.
– Ela fez aquilo a si própria? – perguntou Welland.
Miles encolheu os ombros.
– Nós sabemos o que a Choler faz aos infetados. Ela queria morrer.
Sacrificou-se para que o 01 pudesse escapar.
– Ele também queria morrer – disse Carter. – Mas queria levar-nos com
ele.
Miles acenou com a cabeça.
– Compreensível. Se eu estivesse preso lá em baixo, provavelmente iria
querer fazer o mesmo.
Eles refletiram sobre isto. A maioria do tempo, pensou Carter, eles
tentavam não pensar nos ocupantes das câmaras de isolamento e para que
eram usados. A necessidade aguçava o engenho, mas também a capacidade
de nos borrifarmos para os outros.
Miles era o único que ia lá regularmente, para retirar plasma sanguíneo
para as vacinas. Extraído de sobreviventes vivos da infeção, era a única
maneira de conseguirem uma imunidade confiável. Os métodos tradicionais
de vacinação não funcionavam. Os cientistas do Departamento tinham
tentado e tentado. As maiores mentes. Milhares de milhões de dólares.
Centros de «ensaio» secretos, como o Retiro. Mas o vírus escapava sempre.
Só o plasma da fonte podia dar proteção. E eram necessários reforços
regulares.
Daí as quintas. Enormes centros de detenção fora das cidades onde os
infetados vivos eram contidos (para seu próprio bem) e «ordenhados» para
o plasma. Pelo bem de todos.
Engraçado, quantas coisas terríveis foram feitas pelo «bem de todos».
Carter às vezes questionava-se em que ponto estava o equilíbrio. Quando é
que o bem de todos começou a favorecer os poucos afortunados – e a lixar
todos os outros?
No entanto, Carter não estava em posição de moralizar. Os Whistlers
tinham sido mantidos aqui exatamente por essa mesma razão. Reforços
regulares. Reservas.
Os grupos sanguíneos tinham de corresponder, claro, mas tinham tido
sorte. O 01 era O+, a 02 era AB+ e o 03 era O- (o dador universal). Bons
tipos de sangue. Mas agora apenas lhes restava uma reserva enfraquecida.
– Então, o que fazemos? – perguntou Caren. – Só nos resta o 03. E está
praticamente acabado. Não é suficiente.
– Mas agora só restam quatro de nós – disse Welland.
– Sim, vamos olhar para o lado positivo – referiu Carter, a afagar Dexter.
Caren franziu o sobrolho.
– E o Jackson? – Ela olhou para ambos. – Alguém viu o Jackson?
Carter e Miles trocaram olhares.
– O Jackson já se foi – disse Miles.
– O quê? Como?
Miles suspirou.
– É provável que andasse a roubar plasma. Ele fugiu. Provavelmente está
morto.
– O Jackson? – disse Caren no mesmo tom incrédulo. – Mas ele não o
faria. Ele…
– Ele o quê? – Miles aproveitou a sua hesitação.
Caren abanou a cabeça.
– Nada. Só acho difícil de acreditar. Quero dizer, ele não é como a Anya…
Carter ficou tenso ao ouvir o nome dela. Ninguém falava de Anya.
– Infelizmente, o que tu achas pouca diferença faz na nossa situação –
respondeu Miles agressivamente, e Carter percebeu que também o tinha
afetado. – A questão é que – continuou ele –, embora agora sejamos apenas
quatro, precisamos de reforços a cada quatro a seis semanas. O nosso
armazenamento atual vai acabar rapidamente. Poderíamos esticar até oito
semanas, talvez até doze, no limite. Na pior das hipóteses, poderíamos não
necessitar. Estamos seguros e isolados aqui. Mas, caso algum de vocês se
esqueça, ainda precisamos de fornecer o Jimmy Quinn. Se não o fizermos…
– Ele olhou em volta e deixou a frase no ar. O tempo suficiente para eles
imaginarem o que de mau poderia acontecer.
Até agora, o acordo que Miles tinha feito com Jimmy Quinn tinha servido
a todos eles. Mesmo com as quintas, a procura de plasma sanguíneo
ultrapassava a oferta. Por isso, havia um grande mercado negro para isso –
para todos os medicamentos, na realidade – e Quinn tinha sócios que
pagavam bem. Em troca de reforços regulares, Quinn e os seus filhos
corpulentos tinham deixado os habitantes do Retiro em paz. Mas era um
acordo com o diabo. Se os reforços falhassem, os seus dias na neve estariam
contados.
– Precisamos de novas reservas – concluiu Miles.
Carter abanou a cabeça.
– Não.
– Não temos opção.
– Há sempre uma opção.
– O plasma precisa de ser extraído de sobreviventes vivos. Se tiveres uma
sugestão melhor, sou todo ouvidos.
Carter olhou para ele, abriu a boca e depois fechou-a com tanta força que
sentiu os dentes ranger.
– Como é que nós… – Welland gaguejou, torcendo de novo a T-shirt. –
Quero dizer… queres dizer…
– Ele quer dizer Whistlers – respondeu Carter, zangado. – OK? Ele quer
dizer apanhar os malditos Whistlers… lá fora.
Caren empalideceu. Welland parecia ter acabado de se descuidar nas
calças.
– Mas como? – perguntou Caren.
– Nós temos a arma tranquilizante – disse Miles. – Entramos
rapidamente, atacamos os mais fracos, afugentamos os outros. Depois
arrastamos os corpos de volta para o Retiro.
– Fazes parecer simples – disse Caren. – Todos sabemos que eles não são
tão fáceis de afugentar. A maioria tem Choler. São perigosos.
Miles suspirou e olhou à sua volta.
– E é por isso que não devemos deixar arrastar isto. Podem ser precisas
várias tentativas para conseguirmos o que precisamos.
Carter abanou a cabeça.
– Foda-se.
– Entretanto – continuou Miles –, temos preocupações mais imediatas.
Precisamos de nos livrar das reservas redundantes e dos outros corpos. Não
podemos ter cadáveres por perto, especialmente quando a nossa imunidade
está comprometida.
Todos eles acenaram com a cabeça. Os sobreviventes, mesmo os mortos,
ainda eram um foco de infeção – através da decomposição e do sangue.
– Precisamos de limpar tudo e de levá-los para o incinerador o mais
rápido possível. Estás encarregue disso, Welland.
– Oh, pá – choramingou Welland. – Quero dizer, isso são, tipo, quatro
viagens.
– Verdade – respondeu Miles sem simpatia. – O que me leva ao próximo
ponto. A situação da energia.
– Mais a situação da falta de energia – murmurou Caren.
– Verdade – disse Miles novamente.
Carter conseguiu perceber que ele estava a ficar irritado. O aborrecimento
de Miles tendia a ter correlação direta com o momento em que começava a
parecer que alguém lhe tinha enfiado um monte de ameixas pelo rabo
acima.
– As fechaduras automáticas nas câmaras estão a funcionar novamente.
Por enquanto. Mas o sistema ainda está comprometido. A bateria e o
gerador estão ambos a falhar. O Welland não parece ser capaz de nos
fornecer uma solução fácil.
– Eu tentei, meu – queixou-se Welland. – A culpa não é minha. São
ambos uma porcaria.
– Precisamente.
– O quê?
– Precisamos de os substituir.
– Eu não tenho um gerador enfiado no cu – resmungou Welland.
– Mas podemos tratar disso – disse Carter.
O lábio de Miles retorceu-se.
– Estou ciente disso, Welland. No entanto, a estação do teleférico tem a
sua própria bateria e gerador, não tem?
– Bem, sim – disse Welland a medo, como uma cabra que é atraída pelo
isco na direção de uma armadilha.
– Então, se os formos buscar e os trouxermos para cá, então podemos ter
uma solução para o nosso problema.
A expressão de Welland desvaneceu-se.
– Mas a estação do teleférico fica, tipo, a uma caminhada de quase cinco
quilómetros. E é muito alto, meu. Com a minha asma…
Carter deu uma risada.
Miles sorriu pouco.
– Verdade.
Oh. Terceira vez. Nada bom.
– Não estou a sugerir que venhas, Welland. Seria uma pena trazer uma
bateria e um gerador e perder-te pelo caminho. Vais dar instruções para a
sua remoção. O Carter e eu vamos buscá-los.
Carter sentiu o seu mundo abalar um pouco e imaginou que o seu rosto
deveria parecer agora tão pálido como o de Welland.
– Ai vamos?
– Sim.
– Não queria ser pessimista sobre a nossa pequena caminhada, mas já
viste como está lá fora? – Carter acenou para a janela panorâmica, agora
quase totalmente coberta de branco.
– O pior da tempestade deve passar hoje à noite – disse Miles. –
Partiremos logo de manhã.
– Se nos conseguirmos desenterrar.
– Se tiver de ser. – Os olhos de Miles estavam gelados. Carter sabia que
não valia a pena discutir com aquele tom.
– E quanto a mim? – perguntou Caren. – Fico aqui a fazer bolachas?
– Alguém precisa de ficar aqui a defender o forte – disse Miles. – E ficar
de olho na Reserva 03.
Ela suspirou.
– OK.
Miles olhou para Carter.
– Tudo bem?
Não, pensou Carter. Não está tudo bem. Mas ele não podia explicar
porquê, não à frente dos outros, e Miles sabia disso.
– Espetacular – disse ele.
Ele passou Dexter do seu colo para o sofá, levantou-se e caminhou em
direção às escadas.
– Onde vais? – perguntou Caren.
– Pescar o meu melhor amigo morto na merda da piscina.

A rede da piscina não era suficientemente grande. Foi feita para pescar
óculos e outras merdas, não cadáveres.
O melhor que Carter conseguiu foi empurrar Julia e Nate ao longo
do fundo da piscina para a extremidade rasa. Foi um trabalho duro.
Os cadáveres pesavam sempre mais. E cadáveres com roupas encharcadas
pesavam mais ainda.
Carter já tinha despido a sua camisola e já estava coberto de suor no
momento em que tirou as calças e entrou na água para os arrastar para a
beira da piscina. Ele apoiou os corpos contra os degraus. Depois saiu e
puxou-os para a beira da piscina.
A pele deles estava branca – como a dos Whistlers – e enrugada.
Repugnou-o ao tocá-la. Quando é que aquilo teria acontecido?, perguntou-
se. Quando é que deixávamos de ser pessoas que os outros queriam tocar
e abraçar e nos tornávamos nestes invólucros nojentos? Ou talvez tivéssemos
sido sempre isso mesmo? Pedaços de carne que ganharam vida com um
toque da varinha do feiticeiro. Talvez a morte não nos tirasse nada. Talvez
apenas nos devolvesse ao nosso estado natural.
Ele olhou fixamente para eles. Algo mais não batia certo. Não apenas a
morte deles. Não só o facto de Nate não ter o topo da sua cabeça. Era Julia.
Carter agachou-se e levantou a T-shirt dela. A água tinha lavado o sangue
e ele conseguia distinguir três facadas separadas. Profundas. Denteadas.
Feitas com uma lâmina grande. Uma faca de pão ou de bife, era o seu
palpite.
Mas o 01 não tinha uma faca.
Carter supunha que a podia ter deixado cair algures. Podiam não a ter
visto. Mas não estava na piscina. Não estava em Julia.
Ele franziu o sobrolho, tentando imaginar a sequência dos
acontecimentos: 01 escapa dos laboratórios, sobe no elevador. Será que aí se
cruza com Julia, quando ela está a sair do armazém, antes de subir para a
sala? Se sim, como é que Julia foi parar à piscina e porque é que não havia
sangue no corredor? E se 01 matou Julia antes de matar Nate, onde arranjara
ele a faca?
Ou terá ido direto para a sala, atacado Nate, roubado uma faca e voltado
lá abaixo para esfaquear Julia? Não, pensou Carter. Não haveria tempo
suficiente. Julia só tinha saído para ir buscar velas. Teria voltado lá para cima
e descoberto o 01. Além disso, porquê roubar uma faca e esfaquear Julia se
já tinha o cutelo? Não fazia sentido.
A não ser que o 01 não tivesse matado Julia.
– Carter?
Ele sobressaltou-se e pôs-se de pé.
Miles estava à entrada da piscina. Olhou para os corpos.
– Está tudo bem?
– Para além do óbvio?
– Sim.
Carter hesitou. A faca. Julia. Depois abanou a cabeça.
– É uma treta. Toda esta merda. É uma merda total.
Miles anuiu.
– Mas sempre soubemos que poderia chegar a isto.
– Soubemos?
– É por isso que tínhamos um plano de contingência, para conseguir
reservas novas.
Carter encarou-o.
– Podes parar de lhes chamar isso?
– Como preferes que chame? Whistlers? Os infetados? Nada disso
importa. O que eles são. O que eles eram. Tudo o que importa é o que eles
podem fornecer. Nunca tiveste problemas com isso antes.
– Era diferente.
Miles esboçou um pequeno sorriso.
– Não. Não era. Moralmente, eticamente, era a mesma coisa. A única
diferença agora são os teus sentimentos pessoais.
Ele tinha razão.
– Eu vi-a – disse Carter. – Na floresta.
Miles abanou a cabeça.
– Não. Viste um fantasma… alguém ou alguma coisa que se parecia um
pouco com ela.
– E se estiveres errado? E se ela sobreviveu e anda por aí?
Miles mostrou impaciência.
– E se andar? Sabes no que ela se tornou. A tua preocupação é comovente,
mas não muda nada.
Carter olhou para ele, pensando – não pela primeira vez – se teria
coragem de matar Miles. De segurar a sua cabeça loira e presunçosa debaixo
de água enquanto ele se debatia e lutava até dar o último suspiro.
Carter não o fez. O homem tinha-lhe salvado a vida. Ele estava em dívida
para com ele. E, sem Miles, nenhum deles teria sobrevivido tanto tempo.
– Carter – disse Miles calmamente. – A Anya está morta.
Carter ficou a olhar para ele.
– Espero que sim – disse ele. – Espero bem que sim, porra.
Hannah

Eles revezaram-se na escavação do túnel, trabalhando de acordo com as


instruções de Josh. Ele estava demasiado cansado para fazer tudo sozinho.
Eles precisavam de trabalhar rapidamente, não meticulosamente. A noite
estava a cair rapidamente e o tempo escasseava. Menos de duas horas.
Aqueles que não estavam a escavar o túnel transportavam a neve de volta
para o autocarro, onde derretia no chão.
Era melhor escavar o túnel, pensou Hannah. Pelo menos mantinha-a
quente. Já não havia aquecimento. A iluminação era ténue. Se eles
conseguissem encontrar e livrar-se da bomba, sobreviver à noite seria o
próximo teste. Sem luz ou calor, estavam vulneráveis. O frio conseguia ser
um assassino dissimulado.
Ela olhou em volta para o resto do grupo, avaliando-os. Josh estava de
volta ao túnel, a escavar. Ele era fisicamente forte e ponderado. Hannah não
estava preocupada com ele. Nem com Lucas, com o seu pragmatismo
inabalável. Cassie podia ser irascível, mas era dura. Daniel, ela não
conseguia bem perceber. Ele tinha recuado novamente para cuidar da irmã.
Quando Peggy morresse, porque iria morrer, de uma maneira ou de outra,
como iria ele reagir?
Neste momento, estava preocupada com Ben. Ele tinha lutado para
escavar o túnel e estava enrolado num banco um pouco mais atrás.
A respiração dele era audível, tinha os olhos semicerrados. Exaustão?
Hipotermia? Ou infeção?
Hannah atirou um monte de neve para o chão. Mesmo com luvas
calçadas, o frio estava a corroer-lhe os ossos. Baixou a voz para que só
Cassie a pudesse ouvir:
– Estou preocupada com o Ben.
Cassie deu uma olhadela.
– Sim, ele não parece muito bem.
Os olhos delas encontraram-se. As suspeitas não verbalizadas foram
evidentes.
– Vou buscar mais roupa para nós lá atrás – disse Hannah. – Pode ser do
frio. Nenhum de nós deve deixar a temperatura do corpo baixar muito.
Cassie acenou com a cabeça.
– Já que vais lá, talvez queiras dizer ao Daniel que a seguir vai ele escavar
o túnel, esteja a irmã moribunda ou não.
Hannah passou por cima dos bancos retorcidos até às traseiras. Daniel
estava agachado ao lado de Peggy, dando água aos seus lábios secos.
Um desperdício, Hannah não conseguiu deixar de pensar. Dar-lhe água não
adiantaria de nada. Só se traduzia em menos água para os vivos. De certa
forma, tentar mantê-la viva era uma crueldade; talvez fosse melhor deixá-la
ao invés de prolongar o inevitável.
Mas, de facto, Peggy não era irmã dela. Quando se amava uma pessoa,
tentava-se agarrá-la porque deixá-la ir significava admitir que nunca mais se
voltaria a abraçá-la. Poucos de nós estavam preparados para isso. Por isso,
agarrávamo-nos, mesmo quando a Morte fosse a opção mais generosa.
Daniel olhou em volta enquanto Hannah se aproximava.
– É a minha vez, certo?
– Sim.
– Podes tomar conta da Peggy?
– Claro. – E depois, porque sentiu que tinha de o fazer, Hannah
perguntou: – Como está ela?
Daniel olhou para ela com os seus olhos azuis penetrantes. Não era lento,
nem estúpido, relembrou ela.
– Porque não me dizes tu? – respondeu ele.
Sem pensar, Hannah agachou-se ao lado da rapariga. A pele dela estava
pegajosa, a respiração ofegante. A perna ainda estava muito mal. Hannah
podia sentir o cheiro da morte a pairar sobre ela. Não era uma metáfora
nem um exagero. Conseguia-se mesmo cheirar quando alguém estava a
morrer. Quando o corpo começava a falhar, libertava um odor de acetona
distinto. Mudanças no metabolismo afetavam o cheiro que emanava da
respiração, pele e fluidos corporais. Parte dos danos do colapso químico do
corpo.
Era um milagre que a rapariga ainda não tivesse morrido de perda de
sangue. Embora fosse provavelmente por isso que a sua consciência ia e
vinha de forma intermitente. Quando o oxigénio é escasso, o corpo
concentra-se em encaminhá-lo para os órgãos mais vitais para nos manter
vivos. A consciência não é necessária para a sobrevivência.
Hannah suspirou.
– Nada bem.
– Ela vai morrer, não vai?
– Acho que esse é o resultado mais provável.
Daniel reprimiu as lágrimas.
– Bem, obrigado por seres franca. – Ele olhou para a irmã. – Os nossos
pais morreram novos. Eu jurei que cuidaria sempre da Peggy. Irmão mais
velho, sabes.
Hannah não sabia, mas anuiu na mesma.
– Sinto muito.
– Tens irmãos ou irmãs?
– Não, sou filha única.
– Certo. Bem, suponho que os teus pais deviam adorar-te.
– Nem por isso. A minha mãe matou-se quando eu tinha dez anos e o
meu pai estava sempre ocupado com o trabalho. Andei num colégio interno
e depois vim para a Academia.
– Certo. Isso parece… cruel.
– Nunca pensei muito nisso.
Mas pensara, é claro. Tinha-se perguntado porque é que o pai não a vinha
buscar para passar os feriados em casa, como faziam os pais das outras
crianças. Desejava ter uma mãe que lhe enviasse lindas encomendas
decoradas com fitas e bilhetes com corações (não que a mãe o fizesse sequer
quando era viva). As encomendas que o seu pai enviava eram monótonas e
práticas. Sempre assinadas com P. G., ao invés de Com amor, pai. Por toda a
sua genialidade na medicina e na ciência, o pai nunca havia conseguido
entender o conceito de amor. Era incapaz de compreender uma coisa que
não podia colocar sob um microscópio ou dissecar.
Daniel ainda estava a olhar para ela. A intensidade dos seus olhos azuis
deixava Hannah desconfortável.
Ela sorriu de forma tensa.
– Seja como for, o meu pai certificou-se de que eu recebia a melhor
educação.
– Bem – disse ele. – Isso é o mais importante, claro.
Antes que ela pudesse perceber se ele estava a troçar dela, ele virou-se e
beijou a testa da sua irmã.
– Já volto, Peg.
Ela deu por si incomodada com o gesto. Tal e qual o seu pai.
Desconfortável perante o afeto. Incapaz de amar.
– Com licença. – Daniel levantou-se, contornou Hannah e começou a
caminhar pelo corredor do autocarro.
Hannah sentou-se e olhou para a rapariga. Agora desejava não ter
concordado em ficar com ela. Porque não morres de uma vez? Seria melhor,
pensou ela. Melhor para todos eles. A presença de Peggy na parte de trás do
autocarro era uma distração. Mau para a moral. Num hospital, uma
enfermeira provavelmente teria aumentado a dose de morfina, só o
suficiente para facilitar a sua morte. Mas eles não tinham drogas aqui, nem
mesmo paracetamol. Hannah olhou em volta. Os olhos dela recaíram sobre
o monte de roupa. Bastava um casaco, colocado sobre a boca e o nariz.
O pai dela novamente a falar. Mas talvez desta vez ele estivesse certo.
Ela vai morrer de qualquer maneira. E quem saberia?
Hannah esticou a mão e pegou numa pesada parca almofadada. Ela olhou
para o autocarro. Daniel tinha alcançado os outros. Ninguém estava a olhar
para ela. Bastariam uns segundos. Ela ergueu o casaco sobre o rosto da
rapariga.
– Sinto muito – mentiu ela.
Peggy abriu os olhos. Hannah saltou.
A mão da rapariga agarrou-lhe o pulso. Ela abriu a boca.
– Salva-a!
Hannah retraiu-se com o cheiro de decadência do seu hálito.
– Salvo quem?
Os olhos de Peggy foram ao encontro dos dela. O mesmo azul penetrante
do irmão.
– Por favor. Salva-a.
De repente, a mão da rapariga caiu. Os olhos dela tremeram, fechados.
Hannah caiu para trás, o coração a bater.
Salva-a.
Ouve-se um grito mais acima do autocarro.
– Ele conseguiu!
Ela virou-se. Daniel estava a olhar para ela. Teria visto? Teria adivinhado a
intenção dela? Hannah apertou o casaco contra o peito, depois agarrou num
monte de outras roupas, como se fosse essa a sua intenção desde o início.
Sem olhar para ele, correu de volta para se juntar aos outros.
– Disseste que o Josh tinha conseguido? – perguntou ela.
– Sim – respondeu Lucas. – Ele está só a abrir a saída para que seja
suficientemente grande para escalar sem desabar.
Hannah espreitou para dentro do túnel. Podia apenas ver os pés de Josh e
a luz fraca do telemóvel, que – depois da mensagem apagada – ela lhe tinha
devolvido. Bom, conseguir sair dali era uma coisa. Depois Josh teria de abrir
o compartimento da bagagem, encontrar o saco que continha a bomba, tirá-
lo do autocarro e rastejar de volta para o interior sem que o túnel
desmoronasse e o asfixiasse.
Mesmo assim, as suas hipóteses de sobrevivência tinham aumentado. Só
um pouco.
– Porque não rastejamos todos para o exterior?
A pergunta partiu de Ben, que se tinha levantado do seu assento e estava
de pé, com os braços enrolados à sua volta, a olhar fixamente para eles com
olhos inchados. Ele tossiu.
– Quero dizer, porque é que estamos aqui parados, à espera de irmos
pelos ares?
Era uma pergunta óbvia. E uma que Hannah se admirava de ninguém a
ter perguntado antes. Talvez porque não acreditavam que Josh fosse bem-
sucedido.
Lucas olhou para Ben com atenção.
– Não estás com muito bom aspeto, meu amigo. Estás a sentir-te bem?
– Estou bem, e ainda não responderam à minha pergunta.
Ben não parecia nem soava estar bem. Estava pálido, a tremer, e
a agressão nervosa era outro sinal preocupante. Ou sintoma.
– Em primeiro lugar, meu amigo – sorriu Lucas –, quantos mais de nós
tentarem sair pelo túnel, mais hipóteses há de desabar e nos enterrar.
Ben apoiava nervosamente o peso do corpo num pé e no outro.
– Eu sou mais magro que o Josh. Eu podia ir.
– Segundo – Lucas continuou no mesmo tom perigosamente calmo –, a
temperatura lá fora está a descer rapidamente. Está escuro. Lobos e outros
animais selvagens vão estar a caçar. O Josh está a correr riscos por nós. Nós
estamos mais seguros à espera aqui dentro.
– Não se o autocarro for todo pelos ares.
– Dá ao Josh uma oportunidade de encontrar a bomba – disse Hannah
firmemente. – Temos uma saída de emergência, se precisarmos dela.
O Lucas tem razão. Não vamos durar muito lá fora.
– Não. – Ben abanou a cabeça. – Eu posso ajudar o Josh.
– Ouve, pá – disse Cassie. – Estou contigo na cena de não ir pelos ares.
Mas também estou numa de não ser comida por lobos ou de sufocar em
neve gelada. Então, porque não te acalmas e esperas?
– Vai-te foder! – rosnou Ben. – Eu não vou ficar aqui, à espera de morrer.
Vocês podem esperar pelo vosso funeral. Eu não.
– Ben – disse Lucas. – Por favor, não faças isso.
– Quem me vai impedir?
Lucas suspirou. Depois deu um murro na cara de Ben.
Sem alterar a expressão, praticamente sem tomar fôlego. Como um
lagarto que lança a língua para agarrar uma mosca. Hannah poderia não ter
visto se tivesse pestanejado.
Ben cambaleou e caiu como uma pedra.
– Jesus! – Hannah olhou para Lucas, depois agachou-se ao lado de Ben.
Ele perdera os sentidos. – Puseste-o inconsciente.
– Era essa a intenção. Ele estava a tornar-se irracional e era um perigo
para si próprio e para nós.
– Para não dizer que é um grande chato – acrescentou Cassie. Hannah
levantou-se.
– Então, a violência é a solução?
Lucas olhou para ela friamente.
– Às vezes, é a única solução.
– Pessoal. – A voz de Josh ecoou do túnel. – Vou sair. Faço-vos sinal
através do para-brisas quando encontrar o dispositivo.
Lucas inclinou-se.
– Um bom homem. – Ele olhou para trás para os outros. – Sugiro que nos
reunamos na frente do autocarro e esperemos.
Hannah franziu o sobrolho.
– Vou deitar o Ben sobre uns assentos primeiro.
– Como quiseres. – Lucas virou-se e caminhou em direção à frente do
autocarro.
– Vou com o Rocky – disse Cassie, seguindo-o.
Hannah curvou-se e agarrou Ben, segurando-o sob as axilas. Ele era mais
pesado do que parecia. Peso morto.
– Aqui. Deixa-me ajudar – disse Daniel.
Juntos agarraram Ben e levaram-no para um assento do autocarro.
Hannah verificou-lhe a pulsação (irregular) e puxou as suas pálpebras para
trás. As córneas já tinham um tom rosado. Se Hannah tinha alguma dúvida
antes, isto confirmou-o. Ben estava infetado e sintomático. Porra.
– O que foi? – perguntou Daniel.
– Nada – disse ela rapidamente.
– Tens a certeza? – Ele fez sinal com a cabeça na direção de Ben. – Porque
me parece que o Ben evidencia sinais típicos de infeção: febre, tosse,
comportamento imprevisível.
Ela suspirou.
– Possivelmente.
Ele acenou com a cabeça.
– Já sabias, não sabias?
Não adianta negá-lo agora.
– Nós achamos que alguns dos estudantes do autocarro podem ter sido
infetados quando entraram.
As sobrancelhas dele ergueram-se.
– Foda-se. – Depois olhou para ela mais de perto. – Nós?
– O Lucas e a Cassie sabem.
– Estou a ver. E quando é que iam partilhar isso com o resto do grupo?
– Quando fosse necessário.
– Necessário? – Ele deu uma gargalhada sonora. – Antes ou depois de
estarmos todos mortos?
– Eu não queria causar pânico e piorar as coisas.
Ele olhou para ela.
– Então é provável que já estejamos todos infetados?
– Possivelmente.
Ele esboçou um sorriso ténue.
– Então talvez ir pelos ares fosse mesmo a melhor opção, afinal.
– Podemos ter sorte. Algumas pessoas são mais resistentes à infeção do
que outras.
– Pensava que só dois por cento das pessoas tinham essa sorte.
– Talvez seja o nosso dia de sorte.
Daniel ergueu as sobrancelhas.
– Achas?
Eles olharam um para o outro. Depois começaram a sorrir. Algo forçado
pelo puro horror da situação.
– Não pode piorar muito mais, certo? – disse Hannah.
– Às vezes, a vida dá-nos limões. Às vezes, diarreia.
– Vou lembrar-me dessa.
– Era algo que a Peg costumava dizer… – Ele interrompeu a frase. Pela
primeira vez, falou sobre ela no passado.
Os sorrisos deles desapareceram.
– Sinto muito pela tua irmã – disse Hannah. – Se houvesse alguma coisa
que eu pudesse fazer…
– Eu sei. Não podes salvar toda a gente, certo? – Houve uma pausa, e
depois ele disse: – Se pudesses, embora isso significasse que outra pessoa
morreria, serias capaz de o fazer?
– Bem, espero que isso nunca aconteça.
– Mas e se acontecesse?
Ela refletiu. Tinha havido histórias de hospitais a ficarem lotados com
infetados. Os médicos tinham de tomar decisões.
– O meu pai disse que é importante não pensar nisso como uma escolha
de valor. Não estás a dizer que uma vida tem mais valor. Trata-se de
determinar quem tem a melhor hipótese de sobrevivência a longo prazo.
– Então, os jovens têm prioridade sobre os velhos.
– Às vezes. Não necessariamente. – Ela franziu o sobrolho. – Porque
perguntas?
Daniel hesitou antes de responder.
– Acho que estou a pensar muito em morte. – Ele endireitou-se. – OK. Eu
vou sentar-me junto da Peggy. Quero estar lá quando… bem, tu sabes.
Ela sabia. Mas a conversa tinha deixado Hannah insegura. Salva-a. Algo
estava a escapar-lhe. Outra vez. Abanou a cabeça. Depois virou-se e dirigiu-
se para a frente do autocarro.
Lucas estava sentado no lugar do condutor. Cassie estava ao lado dele. A
maioria das janelas do lado esquerdo estavam agora completamente
cobertas de neve. De vez em quando, o autocarro rangia com o vento, mas
de resto o silêncio imperava. Como se já estivessem a sufocar lentamente. O
para-brisas oferecia alguma visibilidade. No entanto, o que mais se via era
neve e a orla escura do bosque. O céu era agora escuro como o carvão. O Sol
tinha desaparecido ao fundo do horizonte. A Lua oferecia uma luz prateada
e melancólica.
– Então, agora, esperamos – disse Lucas com um pequeno sorriso.
Hannah lançou-lhe outro olhar. Talvez estivesse enganada, mas achou que
tinha detetado uma ligeira satisfação na voz dele. Como se parte dele
estivesse a apreciar o perigo da situação. Ela pensou novamente naquele
soco certeiro. Dado estritamente para deixar Ben inconsciente. O que estava
Lucas a estudar aqui? Qual era a formação dele?
Ouviu-se uma batida e um baque à sua esquerda.
– O porão da bagagem – disse Lucas. – Parece que ele o abriu.
Hannah sentiu-se a suster a respiração. Quanto tempo demoraria Josh?
Doze alunos a bordo. Um saco de viagem grande para cada um. Primeiro,
ele tinha de encontrar o saco certo. Depois, se ele encontrasse o dispositivo,
teria de o afastar muito do autocarro.
– Que horas são? – perguntou ela a Lucas.
Ele olhou para o relógio.
– Sete e quarenta e nove.
Ela sentiu a tensão a corroer-lhe os ossos, juntamente com o frio. E se ele
não conseguisse encontrá-lo? E se tivessem errado o cálculo do tempo?
Qualquer segundo poderia ser o último.
Para com isso, Hannah. Estás a permitir-te entrar em pânico. Concentra-te
no que está ao teu alcance. Não em coisas hipotéticas.
Mais batidas e baques na parte de baixo do autocarro. Ela tinha vontade
de perguntar novamente a Lucas que horas eram. Mas sabia que não
adiantava. O tempo tornava-se sádico em situações como esta. Arrastando
os pés, esticando os segundos e minutos só para os torturar.
– Talvez devêssemos jogar ao Eu espio – disse Cassie. – Eu espio algo que
começa com N.
– Neve – disse Hannah automaticamente.
– Demasiado fácil, certo?
– Olhem! – Lucas apontou para fora da janela.
Uma figura surgiu. Josh. Tinha algo na mão. Um pequeno dispositivo
retangular. A bomba.
– Ele conseguiu! – gritou Cassie. – Foda-se!
Agora, só tinha de se livrar dela, pensou Hannah.
– Tem cuidado, meu amigo – sussurrou Lucas.
Josh fez um gesto em direção à floresta.
– Livra-te disso, meu – murmurou Cassie. – Livra-te dela.
Josh puxou o braço para trás e lançou a bomba como uma bola de
râguebi. O dispositivo voou do braço dele na direção da floresta.
Eles esperaram.
Cassie levantou uma sobrancelha.
– Bem, que anticlima…
O BOOM fê-los saltar. O céu iluminou-se de cor de laranja, adquirindo a
cor do fogo momentaneamente. O autocarro balançou com o abalo
secundário, rangendo e inclinando-se, assentando ainda mais sobre a lateral.
Hannah cambaleou e agarrou-se aos assentos para evitar cair. Cassie caiu
para trás, quase aterrando na pilha de cadáveres.
– Foda-se, meu.
Lucas agarrou o volante. Atrás deles, Hannah ouviu Daniel a gritar e a
praguejar. Se o impacto tinha ativado a bomba ou se tinha sido o próprio
temporizador, uma coisa era certa. Não era um embuste.
– Estão todos bem? – perguntou Hannah.
– Cinco estrelas – murmurou Cassie.
Lucas acenou com a cabeça.
– Tivemos sorte. Isto foi, como se diz, na hora H.
– E o Josh? – perguntou Hannah.
Eles espreitaram pela janela. Podiam apenas ver a figura de Josh, deitado
na neve. Vivo? Morto? Depois a figura mexeu-se e levantou-se com
dificuldade. Graças a Deus.
Josh sacudiu a neve e acenou para eles, a sua silhueta recortada pela cor
laranja enquanto as chamas devoravam a floresta. Hannah sentiu uma
pontada. Havia animais no bosque. Ela esperava que a neve atenuasse
o fogo, para que não alastrasse.
Josh apontou, indicando que ia contornar o autocarro. Ocorreu a Hannah
que o autocarro se tinha deslocado; o túnel poderia ter-se desmoronado.
Josh teria de escavar o seu caminho de volta. Mas, quase imediatamente, esta
preocupação foi ultrapassada por outro problema maior.
Um rugido ecoou vindo do bosque. Agonizante, brutal. Algo se moveu no
canto do seu campo de visão e depois emergiu da sombra das árvores
fumegantes; algo enorme, preto e laranja.
Havia animais no bosque.
Um urso – pardo, pela forma e tamanho – caminhava aos ziguezagues
pela neve. O pelo estava chamuscado e enegrecido, uma perna em chamas.
A besta balançava a cabeça de um lado para o outro. Os seus rugidos
reverberavam pelo autocarro. Cheios de agonia, medo, fúria. Uma
combinação perigosa.
Josh olhou para ele. Não faças movimentos bruscos, pensou Hannah. Fica
calmo. Afasta-te devagar. Mas, enquanto o urso coxeava na sua direção, Josh
colocou a mão no bolso. O telemóvel, Hannah percebeu. O alarme. Não.
Não para o urso. Está ferido, imprevisível. Não o enfureças.
– Nein – sussurrou Lucas, verbalizando os seus pensamentos.
Tarde de mais. A sirene pulsante tocou. O urso abanou a cabeça mais
furiosamente, rugiu novamente e depois ergueu-se nas patas traseiras.
– Isto não é bom – murmurou Cassie.
Quase imediatamente, o alarme parou. A bateria deve ter acabado. O urso
voltou a apoiar-se nas quatro patas. Josh ainda tinha uma hipótese. Não
corras, implorou Hannah silenciosamente. A pior coisa a fazer é correr. Os
ursos são rápidos. Não é possível fugir-lhes. Josh tinha irritado o urso-
pardo, mas ainda poderia evitar o ataque. Deita-te na neve, formulou ela em
pensamento. Tiveste treino de sobrevivência. Deita-te, porra.
Josh virou-se e fugiu.
Foda-se.
O urso atacou. Mesmo com uma perna lesionada, em apenas segundos
alcançou Josh. Um golpe da sua enorme pata deitou-o por terra, de joelhos.
Josh tentou rastejar para longe. Outro golpe da pata quase lhe arrancou a
parte de trás da cabeça. Jorrou sangue. Josh caiu de rosto na neve.
– Jesus! – balbuciou Cassie.
O urso lançou-se sobre Josh, a arranhar e a rasgar. A escuridão oferecia-
lhes alguma misericórdia, ocultando-lhes o pior. Mas eles ainda conseguiam
ouvir os gritos. Gritos de agonia e uivos de fúria. Quando o urso recuava a
cabeça, Hannah via filas de intestinos vermelhos e cinzentos entre os seus
dentes. Perante o brilho do fogo, a neve ensanguentada parecia preta.
Hannah voltou costas…
– Deviam ter-me deixado ir com ele.
… e quase gritou. Uma figura magra e pálida estava de pé atrás dela. Com
a luz ténue, a pele era translúcida, os olhos de um vermelho assustador, um
deles inchado e meio fechado depois do soco de Lucas.
– B-ben – gaguejou Hannah.
Ele olhou para ela e tossiu.
– Deviam ter-me deixado ir com ele.
Lucas voltou-se.
– Então também estarias morto, meu amigo.
Os lábios de Ben arreganharam-se num esgar.
– Não sou teu amigo e já sou um homem morto. Olha para mim. – Ele
balançou, agarrando-se a um assento para se segurar. – Estou infetado.
– Sim.
– Tu sabias.
– Suspeitávamos que houvesse uma infeção a bordo – respondeu Lucas.
Ben começou a rir, um riso cru, seco. Quando ele inspirava, a sua
respiração chiava horrivelmente. Por momentos, Hannah desejou que ele
tivesse ido com Josh. Seria melhor que ambos estivessem mortos lá fora do
que aqui dentro.
– Bom, agora são todos mortos-vivos – vociferou Ben. – O que achas
disso, seu nazi de merda? – Ele sorriu, depois deixou-se cair no chão.
Instintivamente, Hannah avançou para o ajudar.
Lucas agarrou-lhe o braço.
– Não te arrisques mais. Deixa-o.
– No chão?
– Não podes fazer nada por ele.
– Podia arranjar-lhe um casaco e água.
– Para quê? Ele estará morto em breve, a infeção está a avançar
rapidamente. Estás a desperdiçar recursos.
Hannah abanou a cabeça. Mas, vendo bem, não tinha ela pensado o
mesmo sobre Peggy?
– Pareces o meu pai – disse ela.
– Danke.
– Não era suposto ser um elogio.
– Eu sei. – Lucas olhou de relance para o corpo de Ben e depois passou
por cima dele. – Devíamos descansar um pouco. É quase noite. Precisamos
de conservar energia.
– Esperas que durmamos? – perguntou Cassie incredulamente. – O Ben
está a morrer e acabámos de ver o Josh a ser estropiado por um maldito
urso!
Lucas suspirou.
– A morte do Josh é lamentável. Mas ele fez o seu trabalho. Desfez-se da
bomba. O importante é que nós estamos vivos. – Ele sorriu. – Zur Zeit. – E
depois virou-se e foi para as traseiras do autocarro.
Hannah seguiu-o com os olhos. O alemão dela era básico, mas ela
entendia o suficiente.
Zur Zeit.
Por enquanto.
Meg

– Empurra-me mais alto, mamã. Mais alto.


O sol aquecia-lhe as costas. Devia ter posto mais protetor solar, pensou ela.
Lily tinha um chapéu de sol, um lindo vestido amarelo e as suas novas
sandálias cor-de-rosa. O cabelo encaracolado estava atado em dois totós.
– Mais alto, mamã.
– Não te posso empurrar mais. Vais cair.
– Mais alto.
Era atrevida, a filha de Meg. Seis anos de idade e destemida, porque o
medo era adquirido, herdado. Lily pendurava-se nas barras, subia para o
escorrega, saltava do topo do aparelho de escalada. Mais alto, mais alto.
Depois, Meg perguntava-se se Lily sempre tentara alcançar os céus, mesmo
quando era viva.
Foi um dia de verão perfeito – foi mesmo? Acontecera mesmo? Teria
havido um dia de verão perfeito enquanto Lily estava viva? Às vezes, era
difícil de lembrar. As coisas já tinham começado a mudar. A alterar-se.
Novas regras. Uma nova maneira de viver. Mas ela supunha que todos eles
ainda acreditavam que voltariam ao normal novamente. Ou a um novo
normal, pelo menos. Isto foi apenas um desvio. Um buraco na estrada. A
ciência iria salvá-los. Claro que sim. E todos eles se agarraram a essa ideia,
numa fé tão cega quanto a dos religiosos fanáticos. Haveria uma cura, ou
uma vacina, e a humanidade poderia voltar à rotina habitual do
consumismo, da guerra e da destruição, a destruir descuidadamente o
planeta para as gerações futuras, enquanto os ricos iam para o espaço em
viagens de um dia e os pobres imploravam por comida. Normal.
Meg estendeu os braços para o baloiço. Mas estava vazio. Ela franziu o
sobrolho.
– Lily?
Ela não conseguia ver a filha.
– Lily?
Ela saiu a correr pelo portão. Um sinal dizia que estava ENCERRADO
DEVIDO A RESTRIÇÕES GOVERNAMENTAIS. Meg olhou para trás. O
pátio estava agora devoluto, os baloiços atados no topo das barras, o
escorrega manchado de ferrugem, a roda rachada e podre. O Sol tinha
desaparecido. Nuvens de tempestade aglomeraram-se sobre ela.
Ela estremeceu e chamou por Lily novamente, embora, no seu âmago,
soubesse que Lily tinha desaparecido. Ela tinha desaparecido há anos. Isto
era apenas mais uma miragem, a mente de Meg a pregar-lhe partidas,
conjurando memórias que não eram reais. Um passado fabricado, feliz,
quando, na realidade, as coisas já estavam a desmoronar-se.
Tinham-lhes dito que as crianças estavam seguras, mesmo quando o vírus
se espalhou. Mesmo depois da mutação. Mesmo quando se tornou evidente
que as vacinas tradicionais não estavam a funcionar. Mas tinham mentido.
Eles tinham mentido sobre tudo. E depois Lily adoeceu e foi levada para um
hospital. E ela deveria ter sobrevivido. Ela teria sobrevivido, se o hospital
tivesse camas, enfermeiras ou equipamento suficientes. Mas não tinham e,
embora Meg tivesse de boa vontade arrancado uma máscara de oxigénio a
um octogenário se isso salvasse a filha, não podia porque todos os outros
doentes também eram jovens. Jovens que não deveriam ter morrido.
Mentiras. Tantas mentiras.
Meg empurrou o portão, entrou no parque infantil devoluto e sentou-se
num banco podre. Só que já não era o parque infantil, era o Jardim da
Memória no crematório onde tinham enterrado as cinzas de Lily. Uma
pequena lápide branca assinalava o local onde estavam todas as esperanças e
sonhos de Meg. Filha amada. Para sempre nos nossos corações e memórias.
Iluminaste as nossas vidas e a tua luz nunca se apagará.
O agente funerário tinha escolhido as palavras, porque Meg não
conseguia encontrar as certas. Não havia palavras certas. Nada era suficiente
e tudo era de mais. Tentar resumir o seu amor e a perda em poucas frases
bonitas era impossível. A única coisa que ela se lembrava de vociferar foi:
«Não me fale em Deus, foda-se. Se Deus existe, então é um cabrão.»
Tinham estado três pessoas presentes no funeral. Só eram permitidos
familiares e companheiros, e Meg não tinha família. Tinha perdido a mãe
aos dezassete anos e o verdadeiro pai de Lily estava morto, restando apenas
Paul (já na expectativa de se tornar seu ex) e a sua avó, em avançado estado
de demência, que passou a maior parte do funeral a perguntar onde estava
Lily e quem estava a cuidar dela enquanto cremavam o avô.
Meg olhou fixamente para a lápide. As datas estavam erradas, pensou ela.
Lily não pode ter morrido há já sete anos. Como é possível? Lily não podia
estar morta há mais tempo do que aquele que esteve viva. Apenas seis anos.
Seis anos preciosos e curtos. Um piscar de olhos. Um sopro. Um prólogo. O
resto da sua história por escrever. Como pode o tempo ser tão implacável?
Não vou parar. Tenho de continuar. Muito para atropelar, esmagar e destruir.
Deixando Meg para trás com nada mais do que memórias. E até essas eram
falsas e imperfeitas.
Quando o mundo começou a acabar, não com um queixume ou estrondo,
mas com um suspiro lento e sussurrante, Meg não se importou. Tinha
assistido às notícias numa espécie de casulo adormecido de luto e
medicação. À medida que as infeções se espalhavam e a sociedade se
desmoronava, a princípio lentamente e depois como a beira de um penhasco
que cede e cai ao mar, ela mal tinha erguido uma sobrancelha. O seu mundo
já tinha sido destruído. Todos os outros estavam apenas a segui-la.
Ela sentiu-se cansada, por isso deitou-se no banco. Costumava dormir
frequentemente no Jardim da Memória, saltando por cima da vedação e
bebendo vodca até desmaiar. Ela fechava os olhos e imaginava que podia
sentir o corpo quente da filha ao seu lado. Abraçava-a com força e prometia
que desta vez nunca a deixaria ir…
O banco inclinou-se. Um solavanco. Meg rolou. Os olhos dela abriram-se.
Onde estava ela?
Num lugar frio. Escuro. Apertado.
E depois lembrou-se. Eles estavam deitados no chão do teleférico, a tentar
dormir. Juntaram-se para partilhar o calor do corpo. Ela tinha-se encostado
às costas de Sarah. Outro corpo, que ela julgava ser Max, estava deitado do
outro lado, roncando suavemente.
Provavelmente não era assim tão tarde. Não tinham relógios nem noção
do tempo. Mas estava escuro e, tal como os animais, começaram a bocejar à
medida que a luz do dia diminuía, derrubados pela exaustão. Talvez não
fosse só isso. Provavelmente ainda tinham vestígios de sedativos no sistema,
e havia outra possibilidade. Privação de oxigénio. O teleférico não estava
selado hermeticamente, e eles podiam abrir o alçapão, obviamente. Mas não
deixava de ser um espaço pequeno e de qualquer forma o ar por esta altura
era mais rarefeito. Era algo a ter em conta.
Agora que Meg estava acordada, conseguia sentir de novo os efeitos do
frio, podia ver o seu hálito no ar. Sem aquecimento, a temperatura tinha
descido rapidamente. A escuridão era quase total, apenas um leve reflexo de
luar por entre as nuvens, revelando formas vagas. Foi quando ela percebeu
algo. Sean não estava a dormir junto deles. Ela virou-se.
Ele estava sentado no banco ao fundo do teleférico, a olhar para fora da
janela coberta de neve. Enquanto Meg se movia para se levantar, ele olhou
de relance.
– Olá – sussurrou ele.
– Olá.
Ela aproximou-se e sentou-se ao lado dele, enrolando os braços em volta
do corpo.
– Não consegues dormir? – perguntou ele.
– As condições não são as melhores.
– Não.
Ele olhou-a mais atentamente.
– Estás a chorar.
– Oh. – Ela esfregou os seus olhos lacrimejantes e fungou. – Apenas um
sonho de merda.
– Sobre o quê?
Ela hesitou e depois disse:
– A minha filha, Lily.
– Tens uma filha? De quantos anos?
– Tinha seis anos quando morreu.
– Oh, lamento.
– Obrigada.
– Vírus?
– Em parte. Mas também falta de cuidados, instalações, pessoal. Ela devia
ter sobrevivido.
Ele acenou com a cabeça.
– O povo sofre e morre enquanto a elite paga por cuidados privados e
sobrevive.
– O mesmo de sempre – disse ela amargamente. – Dizem que a vida não
tem preço, mas para eles tem, sempre. Eu costumava martirizar-me, a pensar
que, se ao menos a Lily tivesse nascido numa família rica, ainda estaria aqui.
– Sim. – Ele fez uma pausa. – Eu sei como te sentes.
– Perdeste alguém?
– Não uma filha, mas… alguém de quem gostava. Muito.
– Sinto muito.
– Sempre jurei que a protegeria, mas não consegui. Ela era tudo o que eu
tinha.
Meg acenou com a cabeça.
– A Lily era a minha única filha.
– Não tinha pai?
– Morreu num acidente de moto.
– Certo.
– Houve outra pessoa, durante algum tempo, mas não resultou. A minha
filha estava sempre em primeiro lugar. Ela era o meu mundo. – Ela engoliu
em seco. – E depois o meu mundo acabou.
– Acho que o apocalipse não significa assim tanto para ti.
– Nem por isso.
– Não consigo imaginar perder um filho. Deves ser forte para resistir.
Meg sorriu amargamente.
– Não. Eu sou egoísta.
– Egoísta?
– Porque devo continuar a viver agora enquanto a Lily está morta? Porque
devo acordar e ver o Sol a brilhar quando ela não pode? E ela está sozinha.
Eu sempre jurei que nunca a deixaria… – Ela fez uma pausa, sentindo um
nó na garganta. – Foi por isso que me tentei matar. Mais do que uma vez.
– Não te censuro.
Ela soltou uma pequena gargalhada.
– Obrigada. Normalmente as pessoas dizem-me que há tanto para viver.
– A sério?
– Eu sei. Já olharam bem lá para fora?
Ambos sorriram. Ele compreendia, pensou Meg. Quanto mais profundas
as feridas, mais negro o humor.
– Eu pensei em matar-me – disse Sean. – Mas não consegui ir em frente.
– Porquê?
– Sem mim, não há ninguém que se lembre de como ela era especial. Ou
para fazer justiça por ela.
– Justiça? – Ela olhou para ele de surpresa. – Alguém a matou?
– Sim. – Ele acenou com a cabeça. – E, quando eu os encontrar, vou fazê-
los pagar.
Mesmo na escuridão, Meg pensou ver uma sombra no rosto dele.
– E isso vai fazer-te sentir melhor? – perguntou ela.
Ele sorriu ligeiramente.
– Depois digo-te quando chegar a altura.
Eles ficaram em silêncio por um momento, olhando para os pedaços de
céu estrelado através da neve.
– Parece que a tempestade está a abrandar – disse Meg.
– Sim.
– Achas que vamos sair daqui?
– Temos de sair – respondeu ele, a voz tensa de repente. – Não cheguei até
aqui para morrer aqui em cima.
– Talvez seja o que merecemos – disse Meg. – Gostemos ou não,
encobrimos um homicídio e colaborámos e fomos cúmplices doutro.
O facto de nenhuma dessas coisas parecer estar a incomodar-nos
provavelmente diz algo sobre todos nós.
– Eles eram estranhos – respondeu Sean. – Estamos todos tão habituados
à morte que já é difícil encontrar energia para nos preocuparmos com
pessoas que não conhecemos.
Só que ela tinha conhecido Paul. Noutros tempos. Em todos os sentidos
da palavra. Então, o que é que isso dizia sobre ela?
– Achas que o Karl matou o tipo da segurança? – perguntou-lhe ela.
– Não sei. Talvez.
– Eu vi a Sarah a empurrá-lo.
– Talvez tenhas visto. Mas ela nunca o admitirá, nem sequer a si própria.
Ele estava certo, pensou Meg. As maiores mentiras são as que contamos a
nós mesmos.
– Eu não gosto dela – confessou Meg.
– Que novidade. Mas eu concordo, ela é estranha.
– Ela é professora.
– Bem, isso é o que ela diz.
– Não acreditas nela?
– Acredito nela tanto quanto acredito em qualquer um de vocês.
– Ótimo. Obrigada.
– Quero dizer, todos escondemos alguma coisa. Não faz mal. É o que as
pessoas fazem. Mas a Sarah… – Ele abanou a cabeça. – Há algo mais. Os
tiques, as mudanças de humor. Reparaste na cruz?
– Difícil não reparar. Ela está sempre a mexer naquilo.
– Não sou fã de religião.
– Deus deixou morrer a minha filha. Ele pode ir-se foder.
– É justo. Talvez a Sarah seja apenas religiosa. Mas eu sei que muitas
pessoas encontram Deus quando deixam o álcool.
– AA?
– Sim. – Ele fez uma pausa. – Mas muita gente tem recaídas e tem de
voltar a entrar nos eixos.
Ele estava certo. E isso podia explicar muita coisa. Cristo. Estaria o raio da
mulher a passar por algum tipo de abstinência?
– Devíamos ficar de olho nela – disse Meg.
– Concordo.
Meg refletiu.
– E o que te diz a tua intuição sobre o Max?
– Acho que é advogado. Acho que já esteve na prisão. Provavelmente por
mais tempo do que ele diz. Já não se vai parar à prisão logo no primeiro
delito, sobretudo quando não é grave. Eu não confiaria nele para me
representar. Mas acho que tem sido honesto connosco.
– E eu?
– Tu? Bem, tu és dura de roer. Tinhas de ser, e eu vejo porquê. Tu és
definitivamente ex-polícia… – Ele olhou para ela atentamente. – Mas acho
que és boa pessoa.
– Obrigada. – Ela olhou para ele mais de perto. – E tu? És boa pessoa?
– Costumava achar que sim. – Ele encolheu os ombros. – Mas as pessoas
mudam.
Uma pausa.
– Acho que o assassino ainda está a bordo – disse Meg, surpreendendo-se
a si mesma ao verbalizar o pensamento.
Sean acenou com a cabeça.
– Acho que tens razão.
Eles olharam um para o outro.
– O que vamos fazer em relação a isso? – perguntou ele.
Ela virou as costas.
– Depois digo-te quando chegar a altura.
Carter

Ele já a salvou uma centena de vezes.


E perdeu-a outra centena.
O resultado final é sempre o mesmo.
Ele acorda a chorar.
E então ele ouve a bebé.
O corredor está escuro. Ele percorre-o aos tropeções, escorregando e
deslizando. O chão está coberto de gelo. A neve sopra das janelas, algures
acima dele. Lá fora, a tempestade uiva.
Lá dentro, a recém-nascida chora.
Ele vai em direção ao som, tentando apressar-se, mas os seus pés continuam
a escorregar. Ele não consegue aproximar-se, por mais que tente.
No fundo, ele sabe que isto é um sonho. A bebé está a salvo. Ela já não é
uma bebé. É crescida. Uma adolescente. E ela é a razão pela qual ele tem
roubado o plasma e os medicamentos e os tem enviado para um endereço
numa pequena cidade suburbana, onde ele a imagina a apanhar um
autocarro amarelo para a escola e a balançar-se num pneu nas traseiras da
sua casa rodeada por uma cerca branca.
Ele nunca viu a casa dela. Ele nem sequer sabe se ela recebe as suas
encomendas. Mas, mesmo assim, ele tenta. Porque não a pode perder. Não a
pode perder também.
Os seus pés conseguem finalmente apoiar-se no chão. Ele está a avançar ao
longo do corredor e a entrar num quarto.
É pequeno e parece que está a mover-se, balançando de um lado para o
outro.
Ao fundo está um berço. Está a balançar com o quarto.
Dorme, bebé.
E depois o berço vira. A bebé cai, de cara no chão. O choro sobe de tom. Ele
tenta avançar, mas o movimento do quarto desequilibra-o e ele cambaleia.
Nesse momento, percebe que o choro mudou. Já não é o choro de uma bebé.
É um som diferente. Arfado, sibilado… A bebé está a rastejar na sua direção. E
ela é pálida, tão pálida. E sempre que ela inspira faz um som. Um assobio.
Em vez de correr para ela, ele começa a recuar. Mas a porta desapareceu.
Ele está encurralado, encostado a uma parede de vidro, enquanto a tempestade
liberta a sua fúria lá fora.
A bebé olha para cima.
Ele grita… o vidro parte-se e ele cai na escuridão.

Foda-se. Sempre o mesmo.


Carter sentou-se. Por um momento, desorientado.
Estava no quarto dele, na cama. Deitado sobre as cobertas. Não estava
totalmente escuro lá fora, mas, depois dos acontecimentos do dia, ele
precisou de descansar.
O quarto dele ficava no extremo oposto do Retiro. Ao invés de vistas
panorâmicas sobre as encostas, tinha vista para a face da montanha atrás
deles. Branco total. Carter gostava disso. Ele não precisava de uma vista. Não
precisava de um lembrete de que havia mundo lá fora. Em suporte avançado
de vida. Mas ainda a respirar.
Eles tinham colocado os cadáveres na cave. Estava mais fresco lá em
baixo. E, embora ninguém o dissesse, longe da vista, longe do coração. Na
manhã seguinte, Welland levá-los-ia, um a um, para o incinerador. Sem
funeral. Sem orações. Nada de últimas despedidas.
Nenhum deles era religioso, mas às vezes Carter sentia o despojamento
dessas coisas; aqueles pequenos atos de cerimónia a que nos agarrávamos,
para nos iludirmos de que éramos mais do que macacos demasiado grandes
que haviam aprendido a fazer o laço nos atacadores dos sapatos. Atualmente
a morte era encarada pelo que realmente era. Um final. Muitas vezes brutal,
poucas vezes justo, raramente gentil.
Carter e a sua irmã ainda eram jovens quando perderam os seus pais.
Embora, sendo honesto, o pai deles não tivesse sido realmente uma perda.
Era um bêbado que pouco participava nas suas vidas, até que um dia se foi
embora para sempre, a flutuar num rio depois de uma briga à entrada de um
bar. Para a mãe foi difícil lidar com a morte do pai, e um ano depois
enforcou-se no quarto deles. Foi Carter quem encontrou o corpo. Ele tinha
nove anos.
Depois disso, Carter e a irmã foram morar com os avós. Eram pobres,
trabalhadores e pouco sentimentais. Na idade deles não esperavam ter de
cuidar de crianças e deixaram claro que o faziam por obrigação e não por
amor. Esperavam que os irmãos os ajudassem na loja que geriam, fizessem
as suas tarefas semanais, não incomodassem quando os seus amigos vinham
jogar póquer e não fossem um fardo, em geral.
Enquanto Carter depressa se revoltou, a sua irmã procurava apaziguar. Se
ela trabalhasse mais, sorrisse mais abertamente, fosse mais gentil e mais
prestativa, então ganharia o amor que estava certa que os seus avós tinham
algures no fundo deles.
Ela estava errada. Mas a sua irmã era assim. Ela via o melhor das pessoas.
Pensava que o amor as podia mudar. Enquanto ele se preparava para a
tempestade, ela esperava pelo arco-íris.
E agora ela também estava morta. Brutalmente, injustamente,
maldosamente. Carter colocou as pernas para fora da cama e sentou-se,
observando o que o rodeava. Não demorou muito. Mesmo estes quartos, os
antigos quartos do pessoal, eram pequenos e impessoais. Tons de cinza e
branco. Realmente, não havia tanta diferença entre a sala de estar e as
câmaras de isolamento. Eram todos prisioneiros aqui, de certa forma.
A única diferença no seu quarto/cela era a pequena cama de cão
encostada a um canto. Dexter olhou-o com ar sonolento. A sua cauda
abanou algumas vezes enquanto Carter se erguia e se esticava, depois soltou
um enorme bocejo de cão, fechou os olhos e virou-se para o outro lado.
Dexter tinha pertencido a um dos funcionários. Carter não sabia quem era.
Agora, o cão considerava Carter o seu dono. Os cães não são nem de perto
tão leais como nós achamos. Na verdade, para eles os humanos não passam
de borrões de tinta sem pelo.
Carter andou para cá e para lá, aliviando algumas das dores que tinham
tomado conta dos seus músculos após a escalada da montanha. Parecia que
tinha sido há dias em vez de horas. Apesar da falta de luz na sala, pelo
menos as coisas estavam estáveis novamente. O gerador estava a funcionar.
Por enquanto. Mas, se não conseguissem reparar as falhas de energia, então
aquela situação não iria durar. Welland achava que tinham combustível para
cerca de um mês, «mais ou menos». Mais ou menos o quê?, era a questão.
Entretanto, Carter tinha outras coisas em mente. Coisas nas quais não
queria pensar. Coisas que desejava que lhe tirassem da merda da cabeça.
Julia, para começar. E a faca, ou a ausência dela. Isso ainda o incomodava.
Não estava na piscina. Ou no Retiro. Ou no 01. Então, se não foi ele, quem a
tinha esfaqueado? E, mais importante ainda, porque é que Carter não tinha
mencionado nada disto a Miles?
Era Miles que mandava. O seu líder autoproclamado. No entanto, Miles
era um homem com os seus próprios segredos. Carter conhecia-o melhor do
que os outros, mas ainda assim não era grande coisa. Coisas que ele sabia:
Miles tinha formação médica/científica. Era capaz de recorrer à violência
extrema sem remorsos. E gostava de estar no comando. Na sua vida anterior,
poderia ter sido qualquer coisa, desde assassino em série até líder mundial.
Carter não achava mesmo que Miles tivesse matado Julia. Era demasiado
desleixado para ele. Por outro lado, não conseguia pensar em mais ninguém
que a pudesse ter matado. Então, confessar as suas suspeitas sobre a morte
dela a Miles parecia uma má jogada.
E depois havia Jackson.
Carter mal tinha pensado nele nos três anos em que aqui viveu. Mas, de
repente, Jackson tomava conta dos seus pensamentos.
Carter sabia que não tinha sido ele a roubar o plasma.
Então por que raio teria ele deixado o Retiro? Porque é que ele estava a
fugir?
Tinha de haver outra razão.
Habitualmente, Carter assentava na área sombria entre preocupar-se
muito pouco com os outros e não se importar de todo com mais ninguém.
Mas isso era quando as coisas não afetavam o seu próprio statu quo. Miles
ter descoberto o roubo e a morte de Jackson trazia-lhe um problema.
E grande. Não roubar o plasma não era uma opção. Mas ser apanhado
também não.
A insistência de Miles numa caminhada até à estação do teleférico – só os
dois – só exacerbava o crescente desconforto de Carter. E isso foi antes de se
falar no plano de Miles de adquirir novas reservas. De repente, em menos de
vinte e quatro horas, tudo estava fora de controlo. O que Carter não daria
para estar aborrecido de morte neste momento.
Ele entrou na pequena casa de banho, usou a sanita e salpicou o rosto
com água. Depois virou-se e caminhou pelo seu quarto, saindo para
o corredor. Ouviu o ruído de garras minúsculas atrás dele. Dexter estava de
pé, parecendo expectante. Carter parou. Podia descer as escadas, ir buscar
comida, beber uma cerveja. Ou… ele virou-se e olhou pelo corredor na
direção dos outros quartos. O de Jackson era o n.º 6.
Ele ficou indeciso. As pessoas pensam sempre que querem saber coisas.
Segredos. Respostas. Na verdade, havia muitas coisas que era melhor não
sabermos. Se os humanos não estivessem tão empenhados na busca pelo
conhecimento, provavelmente não estariam numa situação tão fodida neste
momento. Nem todo o conhecimento era bom. E mesmo as coisas que eram
boas nem sempre caíam nas mãos certas. Bastava dar ao idiota errado uma
quantidade enorme de conhecimento e era aí que o mundo implodia.
No entanto, provando novamente o quanto ele era competente em não
seguir o seu próprio raciocínio, caminhou pelo corredor em direção ao
quarto de Jackson. Dexter seguiu-o. À porta, Carter virou-se.
– Fica, Dexter.
Habitualmente, Dexter tinha uma habilidade impressionante para ignorar
a maioria das ordens. Carter costumava perguntar-se se ele teria sido
treinado noutra língua, mas depois chegou à conclusão de que ele era apenas
um cabrãozinho teimoso. Seja como for, por uma vez na vida, Dexter
sentou-se e esperou, olhando curiosamente para Carter.
– Eu sei – disse Carter. – Provavelmente é má ideia, certo?
Dexter inclinou a cabeça para um lado, depois virou-se e começou
a lamber os testículos. Carter abanou a cabeça.
– E se eu conseguisse fazer isso não estaria aqui agora, amigo.
Ele empurrou a porta. Não estava trancada. Quando Carter entrou,
ocorreu-lhe que Miles provavelmente já teria revistado o quarto. Nesse caso,
seria muito improvável que ele encontrasse algo que Miles não tivesse visto.
Mas, mesmo assim, a vontade de tentar permanecia.
O quarto de Jackson era igualzinho ao seu. Mas não tinha o mesmo odor.
Este quarto cheirava a fresco, limpo. A cama estava bem feita. Um relógio
digital e o Fitbit estavam arrumados na mesa de cabeceira. Carter sempre
considerou Jackson, do pouco que lhe conhecia, um indivíduo disciplinado.
Controlado, ponderado, calmo. Não alguém propenso a atos irracionais ou
impulsivos. Então, o que é que andaria a tramar? Porque tinha ele fugido do
Retiro? Para onde raio pensava ele que ia?
Carter andou pelo quarto, procurando em lugares óbvios mesmo que a)
fossem óbvios e b) ele não tivesse ideia do que procurava. Ele vasculhou as
roupas do guarda-roupa. Não demorou muito. Os recrutas recebiam apenas
algumas peças básicas de roupa, assim como artigos de higiene pessoal e
outras coisas essenciais. Devido às circunstâncias da sua chegada, as roupas
de Carter eram emprestadas dos armários dos mortos.
O guarda-roupa de Jackson consistia na habitual mistura de roupa de
lazer e de ginásio. Além disso, um par de chinelos de dedo e ténis. Não havia
muito para procurar, mas Carter verificou os bolsos e virou os ténis ao
contrário, de qualquer maneira. Nada. Ele entrou na pequena casa de banho
branca.
Também não havia muitos esconderijos aqui dentro. Mas, obviamente, a
primeira coisa que Carter fez foi levantar a tampa da sanita e espreitar lá
para dentro. Nada além de água. Ele abriu o armário espelhado por cima do
lavatório. Vitaminas, aparelhos de barbear, desodorizante, pasta de dentes.
Carter fechou-o novamente e, de pé, girou sobre si. Olhou fixamente para o
chuveiro.
Onde esconderia ele algo? Ele entrou no cubículo, alcançou o chuveiro e
desenroscou-o. Ele retirou-o e espreitou lá para dentro. Vazio. Olhou para
baixo, entre os seus pés, para o ralo do chuveiro. OK. Agachou-se e levantou
a tampa circular cromada.
Bingo. O sifão de plástico tinha sido removido e um saco de plástico
contendo um telemóvel tinha sido colado no interior do cano.
Ninguém no Retiro tinha telemóvel. Tinham sido todos confiscados à
chegada. O pessoal estava autorizado a enviar e-mails, mas a comunicação
era estritamente monitorizada. Não havia telefones fixos. Só o professor
tinha o seu próprio telemóvel. Após a tomada de posse, alguns do grupo
tinham-no usado para tentar telefonar a algumas pessoas. Amigos, família.
Ninguém tinha atendido. Tinham deixado mensagens no atendedor de
chamadas, talvez esperando que pudessem ter resposta. Esse dia nunca
chegou. Depois de algum tempo, tinham parado de tentar. Miles mantinha-
o carregado. Para ligar a Quinn e para emergências.
Carter olhou para o telemóvel no cano do chuveiro. Era muito pequeno.
Um Nokia velho. Quase uma antiguidade.
Se Jackson fugiu, porque é que tinha deixado o telemóvel aqui,
escondido?
Carter estendeu a mão para o interior e retirou cuidadosamente o saco da
fita adesiva que o colava ao cano. Ele tirou o telemóvel do plástico.
Pressionou um botão aleatório. O telemóvel ligou-se. Estava carregado. E
desbloqueado.
Ele olhou para o ecrã verde.
Havia mais outra coisa.
Jackson tinha mensagens.
AGORA SOMOS TODOS
FILHOS DA PUTA
Hannah

Dormir parecia um conceito ridículo. Desconfortavelmente entalada


entre os assentos retorcidos na parte de trás do autocarro. Tentando ignorar
o frio gélido, que penetrava até mesmo várias camadas de roupa, e o cheiro
da casa de banho química, que se tinha soltado da instalação e estava agora a
verter líquido pelo chão, agora que o autocarro estava praticamente de lado.
Mas o medo e o trauma tinham-nos deixado exaustos. Apesar do frio e do
desconforto, o som da respiração lenta e controlada encheu gradualmente o
autocarro, quebrado apenas pelos gemidos de Peggy e pela tosse de Ben,
lembrando a presença da morte entre eles.
Hannah fechou os olhos, mas não dormiu. Não propriamente. Mesmo nas
condições ideais, ela nunca tinha tido facilidade em adormecer. Desde
criança, detestava aquela sensação de cair no inconsciente. Sentia medo de
não despertar. Tinha piorado depois do suicídio da mãe. De cada vez que se
sentia a cair, perguntava-se se a morte seria assim e permanecia acordada. O
pai dela não ajudava. Nunca se deitava antes da meia-noite e levantava-se de
madrugada, encarando o sono como uma perda de tempo. Algo para os
preguiçosos e fracos de espírito.
Nenhum humano precisa de mais do que quatro horas de sono. Nós
tornámo-nos complacentes. Desperdiçamos tempo nas nossas camas quando
podíamos estar a trabalhar. Os nossos antepassados sabiam que as horas de
escuridão eram as horas de perigo. Em breve, haverá uma altura em que
precisaremos de estar acordados – bem despertos – e preparados.
Ao invés de dormir, Hannah estava acostumada a permanecer deitada
num estado semiconsciente, deixando o cérebro vaguear. A resolver
problemas que a tinham incomodado durante o dia, terminando ensaios,
resolvendo equações. Às vezes, a vaguear em cenários completamente
diferentes.
Deu por si a pensar em Indiana Jones. Um herói de um filme antigo que a
sua babysitter a tinha deixado ver. Ela tinha adorado aquele filme e o belo
Indiana, até que um espertinho havia dito que, apesar de todo o seu
heroísmo, o papel de Indiana em tudo aquilo era inútil. O resultado teria
sido o mesmo se ele nunca tivesse estado envolvido.
Ela sentia agora o mesmo acerca da situação em que se encontravam.
Ainda estavam encurralados. Apesar do sacrifício de Josh, a situação não
tinha melhorado. É verdade, não estavam mortos, mas se o que Hannah
temia estava correto, isso era apenas uma questão de semântica. Em breve
estariam. Não só era improvável o resgate, como também que quem os
procurasse os viesse ajudar. Viriam para os eliminar.
Foi por isso que apagou a mensagem do pai sem dizer aos outros. Se lhes
tivesse contado sobre a mensagem, isso implicaria informá-los sobre as
infeções e da sua suspeita de que o acidente foi propositado. Parecia cruel
admitir que a situação deles era ainda mais desesperada.
Ironicamente, neste momento, a tempestade era o seu melhor aliado.
Enquanto estivesse em fúria, ninguém conseguiria alcançá-los. Quando
acalmasse, teriam de tomar uma decisão. Ficar aqui e esperar que o
Departamento fosse misericordioso. Pouco provável. Ou tentar escapar.
Eles já não conseguiam desenterrar-se sozinhos. O novo ângulo do
autocarro tornara-o impossível. Mesmo que conseguissem sair, teriam
de sobreviver a temperaturas geladas, fugir aos predadores, encontrar
comida e abrigo. E isso era se nenhum deles apresentasse sintomas ou
adoecesse. Enquanto isso, o Departamento estaria à procura deles.
Estás a pensar muito à frente, Hannah. Compartimenta o problema.
OK. Coisas que ela tinha aprendido com o pai – tentar resolver o
problema todo era como bater com a cabeça numa parede de tijolos. Em vez
disso, era preciso desconstruir lentamente a parede, tijolo por tijolo. Pedaços
mais pequenos.
O problema mais imediato era a contenção. Eles podiam tentar a saída de
emergência novamente. Mas ela tinha quase a certeza de que tinha sido
sabotada. O que restava? Tentar partir uma janela do outro lado do
autocarro. Porém, ainda lhes faltavam ferramentas para isso. Talvez
devessem verificar se algum dos assentos se tinha soltado mais quando o
autocarro se virou novamente.
A mente dela fez uma pausa. Volta atrás. Algo estava a escapar-lhe. Algo
sobre a inclinação do autocarro. A saída de emergência? Não. Ali perto. A
casa de banho. Algo sobre a casa de banho.
Como funcionavam as sanitas dos autocarros? Eram direcionadas para
um tanque, que tinha de ser esvaziado. Então, teria de haver um tubo de
dejetos a sair da sanita na direção do tanque. Para o exterior. Apenas uma
pequena abertura. Mas se conseguissem levantar a sanita e de alguma forma
remover o tanque, talvez houvesse um buraco suficientemente grande para
passar. Hannah lembrava-se vagamente de uma fuga mítica de um avião
num filme antigo, usando um esquema destes. Mas teria sido apenas um
esquema? Funcionaria? E, mesmo que não funcionasse, poderiam usar a
sanita para partir uma janela? Opções, pensou ela. Eles só precisavam…
A sua linha de pensamento estagnou. Os olhos dela abriram-se.
Ruídos. Acima dela. Batidas leves, fazendo vibrar o vidro da janela. Algo
estava de novo a subir o autocarro. Ela levantou os olhos. Poderiam os lobos
ter voltado, atraídos pelo sangue de Josh? Ou talvez fossem novos
predadores: linces ou cães selvagens.
Hannah levantou-se, os músculos a protestar, os olhos a ajustarem-se à
escuridão. O autocarro não estava totalmente às escuras. Isso fê-la pensar
que devia ser já de madrugada. Talvez duas ou três da manhã? E talvez a Lua
e as estrelas já não estivessem camufladas pelas nuvens da tempestade?
Ela olhou em volta, com o pescoço a estalar. Cassie estava em posição
fetal no banco à sua frente. Lucas dormia praticamente sentado noutra
cadeira. Daniel estava desajeitadamente deitado, ao lado da irmã.
Hannah deu por si de novo a pensar nele. Ele não era um típico aluno da
Academia. Os alunos da Academia tendiam a pertencer a dois grupos, os
filhos ricos e mimados de pais ricos e privilegiados e os alunos bolsistas. Os
mais brilhantes e melhores nas suas áreas, fossem elas ciência, medicina,
literatura ou arte. A Academia poderia dar-se ao luxo de contratar os
melhores professores para dar aulas a turmas com pouquíssimos alunos.
Como o pai dela.
Daniel não parecia encaixar em nenhuma das categorias. E ela não se
lembrava de o ter visto nas instalações da Academia. Claro, era uma escola
grande. Grupos diferentes não se misturavam necessariamente. Ela também
não se lembrava de ver Peggy, Cassie ou Lucas. Talvez ela estivesse outra vez
a ser apenas preconceituosa.
Mais sons de arranhões vindos de cima. Hannah não gostava e não iria
conseguir dormir enquanto eles continuassem. Levantou-se e começou a
dirigir-se até à frente do autocarro. Como o corredor estava quase na
posição vertical, isso implicava equilibrar-se nos assentos retorcidos,
tentando não escorregar. Ainda mais difícil no escuro.
Acima da sua cabeça, os ruídos furtivos seguiam-na. Furtivos. Sim,
pensou ela. Era essa a palavra. Um som diferente dos lobos. Mais
intencional. Como se o que os estava a causar estivesse ciente do autocarro e
dos seus habitantes e não quisesse chamar-lhes a atenção.
Ela chegou à frente do autocarro. Apesar do frio, havia um odor percetível
de ranço que emanava dos cadáveres. Gás, pensou Hannah. Embora ainda
não tivessem passado vinte e quatro horas, os órgãos começavam a
decompor-se primeiro. Os sinais exteriores não seriam ainda visíveis por
mais alguns dias, mas, por dentro, os corpos já estavam a decompor-se.
Mais um baque. Hannah saltou. Ela virou-se e subiu para o lugar do
motorista para espreitar através do para-brisas. No vidro, a neve tinha-se
dissipado um pouco, mas estava embaciado pela condensação. Ela levantou
um braço para o limpar.
Uma cara olhou para ela.
Ela saltou para trás, o medo e o choque tomando conta da sua voz.
O rosto era pálido, os dentes amarelados, as córneas avermelhadas. Por
um segundo, os seus olhos encontraram-se. Depois a figura deslizou para
fora do para-brisas e correu de volta para a escuridão do bosque. Hannah
seguiu-a com os olhos, o coração a bater.
Alguém lhe agarrou no ombro. Ela gritou e virou-se, os punhos erguidos.
– Oh! Halt! Sou eu.
Lucas. Ele olhou para ela com preocupação.
– O que se passa?
Hannah olhou de novo para o para-brisas, quase duvidando dos seus
próprios olhos, da sua própria sanidade. Nenhum sinal da figura. Apenas a
floresta escura, ainda a fumegar ligeiramente, e uma mancha ensanguentada
sobre a neve. Os restos mortais de Josh.
Ela engoliu em seco.
– Eu vi alguém. Fora do autocarro.
– O quê? – O rosto de Lucas estava incrédulo. – Ajuda?
Hannah abanou a cabeça.
– Acho que não.
– Então quem mais estaria lá fora nesta tempestade? Um aldeão?
Mas não havia aldeias nas proximidades. Ambos sabiam disso. Só a neve,
as montanhas e o bosque deserto. Um lugar onde viviam animais selvagens.
E outras criaturas.
Ela virou-se e a palavra saiu antes que ela pudesse evitar:
– Um Whistler.

Assim chamado devido à forma como o vírus devastava os pulmões.


Tornando cada respiração um sibilo hediondo e molhado. Ninguém sabia
quem tinha inventado o nome. Mas, como muitas coisas, tinha-se tornado
rapidamente parte da linguagem.
Não havia muitas opções para os Whistlers. Aqueles que restavam, quase
vivos. Sobreviventes, mas ainda contagiosos. Especialmente aqueles
infetados com Choler, uma variante perigosa e dominante que afetava o
cérebro. Foi por isso que o pai dela tinha criado os centros de isolamento.
Lugares seguros onde pudessem cuidar deles e ao mesmo tempo ajudar os
cientistas a combater o vírus.
A opinião pública sobre os centros estava dividida. Alguns achavam que
eram necessários. Outros – como Cassie – afirmaram que os centros não
eram melhores do que prisões ou campos de concentração. Críticos tinham-
nos batizado de quintas, que se generalizou.
Uma vez, quando Hannah se atreveu a perguntar ao pai, ele tinha dito:
«Em qualquer guerra, Hannah, haverá baixas. Estamos a travar uma
guerra contra um inimigo que está em constante mutação. Para protegermos o
mundo, devemos fazer sacrifícios. Para o bem de todos.»
Mas nem todos se queriam sacrificar. Muitos dos infetados fugiram,
esconderam-se, formaram as suas próprias comunidades. Em lugares
isolados, longe da população em geral. Quando eram encontrados, eram
levados para os centros. Mas muita gente era solidária com os Whistlers.
Eles ainda eram pessoas. Ainda eram a mãe, o irmão ou o filho de alguém.
Uns anos antes, tinha havido um surto numa pequena aldeia não muito
longe da Academia. Um dos habitantes da aldeia tinha fornecido alguma
carne infetada. A infeção tinha-se espalhado rapidamente. O pai dela e a sua
equipa foram chamados. A aldeia ficou de quarentena. Mas havia rumores
de que alguns dos infetados teriam escapado para a floresta. Onde ainda
viveriam hoje.

– Achas que são perigosos? – perguntou Cassie.


Eles estavam reunidos nas traseiras do autocarro. O grito de Hannah
tinha despertado os outros e ela não via razão para mentir sobre a situação.
– Eu não sei.
– Merda – murmurou Daniel. – Isto vai ficando cada vez melhor.
– Não temos motivos para pensar que eles representam uma ameaça –
disse Lucas. – Pelo menos, não enquanto nós permanecermos dentro do
autocarro e eles lá fora.
– Mas por quanto tempo é suposto ficarmos por aqui? – perguntou
Daniel.
– As autoridades já devem ter dado pela nossa falta. A tempestade parece
estar a abrandar. Talvez já estejam a organizar uma equipa de buscas – disse
Lucas.
Cassie olhou de relance para Hannah.
– Queres dizer-lhes?
Não, pensou Hannah. Mas provavelmente estava na hora.
– Podemos ter outro problema – disse ela.
Lucas olhou-a com atenção.
– Que é?
– O acidente de autocarro pode não ter sido um acidente.
– O quê?
– Cassie fazia parte do departamento de testes. Dois alunos a bordo
tiveram resultados positivos.
– Então como é que entraram no autocarro? – perguntou Lucas.
– Eu não sei. Mas a questão é que o meu pai nunca teria deixado que
alunos infetados saíssem da Academia… – Hannah olhou em volta para
eles. – E, se descobrisse, nunca os deixaria chegar ao Retiro.
– Mas daí até provocar um acidente de autocarro… vai uma grande
distância – disse Lucas.
Hannah abanou a cabeça.
– Não se conheceres o meu pai.
– Então o motorista bateu de propósito e suicidou-se? – perguntou
Daniel.
Hannah viu a expressão de Lucas a mudar.
– O motorista não está entre os mortos – disse Hannah.
Daniel ficou a olhar para eles.
– Então sabes onde ele está?
– A hipótese mais provável: ele saiu e sabotou a saída, deixando-nos
encurralados.
Mas, assim que o disse, Hannah percebeu o que não fazia sentido neste
cenário. O motorista tinha saído sem casaco ou gorro. Sem qualquer roupa
para o exterior. Como sobreviveria lá fora?
– Claro que há outra possibilidade. – Cassie sorriu ligeiramente. – Ele não
escapou.
– Acabaste de dizer que ele não está entre os mortos – disse Daniel.
– Exatamente. Talvez ainda aqui esteja e um de nós seja o intruso.
– Estás a gozar? – Daniel olhou em volta nervosamente. – Quero dizer, eu
nem sei conduzir.
– OK. – Lucas levantou a mão. – Isto é ridículo. Ninguém é um intruso.
– Então e tu? – perguntou Cassie.
– Eu?
– Sim. Não pareces muito um estudante. Não me lembro de te ver quando
entrámos no autocarro. És tu?
– Podemos mudar de assunto? – disse Hannah firmemente.
Cassie lançou-lhe um olhar gélido.
– Deixa-o responder.
Lucas suspirou.
– Não, não sou eu. Mas tens razão, sou mais velho do que a maioria dos
estudantes aqui. Fui obrigado a fazer uma pausa na minha educação depois
de um acidente… e só regressei há dois anos.
– Que acidente?
Lucas dobrou-se e enrolou a perna direita das calças.
Cassie arquejou.
– Foda-se, meu – soltou Daniel.
Até Hannah sentiu um pequeno abalo de surpresa.
Por baixo do joelho de Lucas estava a prótese de uma perna.
– Perdi-a num acidente de automóvel – disse ele. – Quase perdi a vida.
Tive sorte em sobreviver, mas a recuperação e a reabilitação obrigaram-me a
permanecer fora da escola por algum tempo.
Ele olhou em volta com uma expressão sincera.
– Também significa que não sou capaz de conduzir um veículo manual
sem modificações, por isso não há maneira de poder conduzir este
autocarro.
Hannah não pôde deixar de reparar que ele disse isto com alguma
satisfação. Cassie teve a decência de parecer um pouco envergonhada.
– Peço desculpa – disse ela.
Lucas fez um pequeno aceno de cabeça.
– Aceite.
– Sim – disse Daniel. – Acho que estamos todos a ficar um pouco
stressados.
– Não é de admirar – disse Lucas. – Acabámos de ver um conhecido a ser
morto. Estamos presos com uma pilha de cadáveres, alguns dos quais estão
infetados. Não é bem a viagem que esperávamos.
Uma longa pausa.
– Acreditas mesmo que o teu pai te deixaria aqui para morrer? –
perguntou Daniel a Hannah.
– Não, ele não me deixaria aqui para morrer. Ele não deixaria nenhum de
vocês aqui para morrer. Ele certificar-se-ia disso. – Ela deixou-os absorver
esta informação. – Quando a tempestade abrandar, a sua equipa virá. Mas
não para nos salvar. Para nos matar.
– Está bem – disse Lucas. – Precisamos de rever as nossas opções.
– Que opções? – perguntou Cassie. – Estamos encurralados. Outra vez.
– Precisamos de encontrar outra saída.
E depois Hannah lembrou-se das suas reflexões noturnas.
– Pode haver uma maneira. A sanita.
Cassie ergueu uma sobrancelha.
– O quê? Vamos sanita abaixo como se fôssemos desenhos animados?
– Não. Acho que pode ser uma hipótese remover a sanita. Por baixo, há
um tanque. Se pudéssemos retirá-lo, a abertura poderia ser grande
o suficiente para rastejarmos para fora.
– Pode e hipótese são palavras forçadas nessa frase – disse Cassie.
Hannah cruzou os braços.
– Estou aberta a quaisquer outras ideias.
– Parece que vale a pena tentar – disse Lucas.
– Mas e depois? – perguntou Cassie. – Quero dizer, como é que vamos
sobreviver lá fora? Frio de rachar, animais selvagens, Whistlers. E para onde
diabo vamos?
– Se sairmos, podemos alcançar o porão da bagagem – disse Hannah. –
Mais mantimentos, comida, roupas e telemóveis. Quanto mais pessoas
souberem da nossa situação, menos provável é que o Departamento se safe e
consiga eliminar-nos.
Embora talvez o Departamento devesse eliminá-los, pensava uma pequena
parte dela. Se eles estivessem infetados, poderiam espalhar o vírus. A
sobrevivência era egoísta. Mas, de facto, era-o muitas vezes.
– E a Peggy? – perguntou Daniel. – E o Ben. Eles não vão sobreviver lá
fora.
Hannah olhou para ele. A sua devoção era admirável, mas também uma
ilusão.
– Daniel… – começou ela por dizer.
Lucas interrompeu.
– Temos de ser realistas. Eles não vão sobreviver de maneira nenhuma.
– Então abandonamo-los, para morrerem sozinhos? – Daniel virou-se
para Hannah. – Também pensas assim?
Sim, pensou Hannah. Porque não havia outra opção. E, se formos a ver
bem, todos nós morremos sozinhos. Ninguém nos acompanha nessa
viagem.
– Podemos não ter escolha…
Daniel abanou a cabeça.
– Esquece. – Ele levantou-se e passou por cima dos assentos, para longe
deles.
– Onde vais? – perguntou Lucas.
– À casa de banho, ou também preciso da tua permissão para isso, visto
que agora pareces querer fazer o papel de Deus?
– Cruel – murmurou Cassie.
Hannah suspirou.
– O Lucas está certo. A Peggy e o Ben vão morrer de qualquer maneira.
Não podemos desperdiçar energia ou recursos a tentar tirá-los do autocarro.
O melhor que podemos fazer é garantir que eles permanecem
confortáveis… o tempo que for preciso.
– Isso pode não ser muito – disse Lucas. – Estão a ouvir alguma coisa?
– Não.
– Exatamente. O Ben já não está a tossir.
Ele tinha razão. Hannah devia ter reparado. Ela deu uma vista de olhos
pelo autocarro. Ben não estava deitado onde o tinham deixado. Na verdade,
ela não se lembrava de o ter visto quando há momentos percorrera o
autocarro. Talvez ele se tivesse sentado num assento. Ela não tinha
verificado, pensou com uma pontada de culpa. Nenhum deles o tinha feito.
Eles já o tinham excluído.
– Eu devia ir ver… – começou ela por dizer.
E então ouviram um estrondo e um grito:
– Jesus Cristo!
Daniel saiu disparado da casa de banho, quase escorregando no líquido
desinfetante que vertia. Ele agarrou-se a um assento para se endireitar
e Hannah percebeu que as suas mãos estavam cobertas de sangue.
Instintivamente, ela levantou-se.
– O que é isso?
Ele olhou para ela, o rosto em choque.
– Acho que o Ben já não vai ser um problema.
E depois vomitou.
Meg

Sede. Frio. Fome. Todos poderiam matar. Neste momento, Meg sentiu que
eles estavam na expectativa para ver qual iria ganhar primeiro.
O frio podia ser vencido se continuassem a movimentar-se. Apesar de
fazer o carro balançar precariamente, andar para cima e para baixo pelo
menos gerava algum calor nos músculos. Enquanto isso, apesar da falta de
afeto uns pelos outros, eles amontoaram-se a um canto, compartilhando o
calor corporal.
Inquietantemente, à luz da manhã, Meg conseguiu ver que o gelo se tinha
formado nos cantos das paredes de vidro do teleférico. A temperatura no
interior descia continuamente. O teleférico não estava bem isolado. Não
precisava de estar. Só deveria funcionar em viagens curtas de quinze
minutos. Sem luz ou calor, ficaria ainda mais frio, especialmente se ficassem
presos aqui por mais uma noite.
A fome estava a provocar espasmos na barriga, mas eles podiam
sobreviver sem comida durante algum tempo. O corpo não precisava
fisicamente de comida tanto quanto a desejava mentalmente. Podia ser
doloroso, mas uma semana ou mais sem comida não os mataria.
Já a sede era outra coisa. As suas gargantas estavam secas e os lábios
tinham começado a rachar. Felizmente, o frio significava que eles não
estavam a perder muito suor, mas todos eles sentiam a boca áspera. Apesar
de, por outro lado, o facto de não poderem comer ou beber tivesse, pelo
menos temporariamente, resolvido a questão da higiene. Copo meio cheio.
– Vamos morrer aqui dentro – murmurou Sarah, enquanto andava para
trás e para a frente no teleférico, batendo as palmas das mãos. – É só uma
questão de tempo.
– Não devemos pensar assim – disse Sean.
– Ele está certo – disse Max. – Ainda pode vir ajuda.
– Depois deste tempo todo? Eles esqueceram-se de nós. Ou talvez não nos
queiram salvar. Talvez o plano sempre fosse deixar-nos morrer aqui dentro,
como cobaias numa bola de plástico.
– Hámsteres – disse Meg.
– O quê?
– Não se põe cobaias numa bola de plástico. São hámsteres.
– Ou gerbos – interveio Sean.
– O que interessa isso? – gritou Sarah. – Porcos-da-índia, hámsteres,
gerbos. Nós vamos morrer. – E depois desfez-se em lágrimas, sentou-se no
canto e começou a murmurar uma oração.
Meg não tinha vontade ou empatia para a consolar. Até Max parecia
incapaz de reunir a energia para ser cavalheiro. Mexeu-se ligeiramente no
seu lugar e encolheu-se. Ele não parecia estar bem, pensou Meg. O seu rosto
estava pálido e a respiração um pouco esforçada. O pulso partido estava
obviamente a causar-lhe dor, sem surpresa, e eles não tinham analgésicos.
Meg não tinha a certeza da idade de Max. Obviamente estava em boa
forma, mas devia ter cerca de sessenta e muitos anos, talvez mais. O choque
e a dor da sua lesão, aliados à falta de comida e de água e ao maldito frio,
devem estar a causar impacto. No entanto, estavam a ter impacto em todos
eles. Ela estava preocupada com a noite. A sonolência era um sintoma de
hipotermia. E se eles adormecessem e não acordassem? O teleférico voltou a
ranger. O vento tinha acalmado, o balanço tinha diminuído, mas todos os
movimentos ainda eram instáveis. Quantas horas mais, e se ninguém viesse
salvá-los?
Enquanto Sarah se sentava, Max levantou-se. Ou pelo menos tentou. Ele
cambaleou e caiu para trás. Sean foi ajudá-lo, mas Max abanou a cabeça.
– Eu estou bem – respondeu ele rispidamente, o orgulho a fazer-se sentir
no seu tom de voz.
Ele levantou-se novamente, apoiando-se no braço que não estava
magoado, e começou a andar com cuidado através do teleférico. Os seus
passos eram lentos e hesitantes. Meg apercebeu-se de que, a cada passo que
davam para se manterem quentes, também estavam a gastar energia que não
podiam desperdiçar.
A meio da cabina, na sua segunda volta, Max fez uma pausa repentina, as
pernas dele cederam e caiu no chão. Meg e Sean levantaram-se subitamente.
– Max, estás bem? – perguntou Meg, agachada ao lado dele.
– Sim. Só um pouco instável, só isso.
Mas ele não parecia estar bem. Parecia atordoado. Enquanto Meg e Sean o
erguiam, Meg notou que a pele dele estava húmida e quente. Algo estava
errado. Ela olhou para Sean e percebeu que ele estava a pensar o mesmo.
Merda.
– Vamos sentar-te – disse Sean. – E talvez devêssemos avaliar o teu braço.
Para termos a certeza de que não o magoaste quando caíste.
– Não, não, está tudo bem. Só me senti um pouco tonto.
Eles sentaram-no de novo no banco.
– Bem, o que esperavas? – murmurou Sarah. – Não temos nada para
comer. Não temos água. Estamos todos fracos. Provavelmente é estúpido até
andar de um lado para o outro.
– Obrigada pela visão construtiva – disse Meg.
– Acho que devíamos examinar o teu braço – disse Sean a Max outra vez.
– A sério, está tudo bem. Já vos disse…
– Max – disse Sean. – Não quero mesmo ter de te partir o outro braço,
por isso deixa-me ver, por favor.
O homem mais velho suspirou.
– OK.
Sean retirou-lhe o braço da ligadura e gentilmente desenrolou o curativo.
Meg ficou desolada. O pulso estava inchado, o que era de esperar, mas a pele
parecia sensível e tinha manchas vermelhas. Meg conseguia ver, só de olhar,
que deveria estar quente. Só foi preciso um pequeno corte na pele para que a
infeção se instalasse. Merda.
– Bom – disse Sean. – Isto não tem nada bom ar.
Max suspirou.
– Está infetado, não está?
Sean acenou com a cabeça.
– Eu acho que sim. Celulite?
Ele olhou para Meg e ela acenou com a cabeça. Merda a dobrar.
Max descansou a cabeça dele contra a parede de vidro.
– Sinto muito. Eu não queria ser um fardo ou uma responsabilidade.
– Não és – disse Meg com convicção. – Até agora, a celulite parece
limitada ao pulso. Não se espalhou e a pele não está rachada.
– Dói-me.
– Isso provavelmente é bom sinal.
– Bom? – gritou Sarah do canto. – O pobre homem provavelmente vai
perder o braço. – E então começou a chorar novamente.
Meg virou a cabeça na direção dela.
– Se não consegues dizer nada de bom, podes fazer o favor de calar
a boca, porra?
Sarah olhou para ela, depois agarrou-se à sua cruz.
– Não retribuas o mal com maldade ou o insulto com insulto. Pelo
contrário, retribui o mal com o bem, porque para isso foste chamado para
que herdasses uma bênção.
Meg revirou os olhos.
– Por amor da santa. – Ela virou-se de novo para Max. – Quando
chegarmos ao Retiro, tenho a certeza de que eles vão ter muitos antibióticos.
Ele ergueu uma sobrancelha.
– Se lá chegarmos.
– Como te sentes, no geral? – perguntou Sean, mudando deliberadamente
de assunto. – Lúcido? Algum tremor?
– Tenho alguns tremores – admitiu Max. – Mas não tenho a certeza se
isso se deve ao pulso ou ao frio e falta de alimento.
Ele tinha razão. Seria mais difícil combater a infeção se ele já estivesse
fraco. Sean tornou a ligar o pulso de Max. A mente de Meg começou a
trabalhar. Quanto à comida, não podiam fazer nada. Mas talvez
conseguissem obter alguma água. Água, água, por todo o lado e nem uma
gota para beber. Exceto no interior do teleférico, havia neve por todo o lado.
A cair do céu e a assentar no tejadilho. Já deve haver uma boa quantidade lá
em cima. Se ao menos conseguissem lá chegar, podiam bebê-la.
Meg olhou em volta da cabina. Paredes de vidro, bancos, chão de metal
com um alçapão. Ela franziu o sobrolho. O alçapão do chão serviria se
houvesse um guia experiente a bordo e equipamento para fazer rapel fora do
teleférico. Mas e se não houvesse? Ela tinha a certeza de que tinha visto
notícias em que as pessoas tinham de ser resgatadas de teleféricos por
helicópteros, o que certamente significaria…
Ela olhou fixamente para o teto. Claro que, no canto direito, havia o que
parecia ser mais um pequeno quadrado. Outro alçapão?
– Talvez tenha uma ideia – disse ela.
– Somos todos ouvidos – respondeu Sean.
– Se conseguíssemos chegar à neve no telhado, podíamos bebê-la.
– Boa ideia. Mas como é que chegamos à neve no telhado?
– Acho que há outro alçapão de saída no teto.
Todos eles olharam para cima.
– Claro que sim. Em caso de resgate por helicóptero – disse Sean.
Mentes brilhantes, pensou Meg. Ela aproximou-se e estendeu o braço. Só
conseguia tocar no alçapão com a ponta dos dedos, mas não conseguia
empurrá-lo.
– Deixa-me tentar – disse Sean.
Normalmente, Meg não daria lugar a um homem, mas Sean tinha a
vantagem da altura. Ele foi para o lado dela e estendeu o braço. Sentiu as
arestas do quadrado com os dedos. Depois empurrou com força. O
quadrado não se mexeu. Claro, era apenas uma possibilidade pensar que
o quadrado se abria. Talvez nem sequer levasse ao telhado. Poderia ser
apenas um acesso para o quadro elétrico.
– Pode ser o peso da neve a bloqueá-lo – disse Sean. – Ou talvez esteja
congelado, ou só se abra a partir de cima.
Meg ficou desanimada.
– Foda-se – amaldiçoou ela.
Sean analisou o alçapão.
– Vês aqui, isto é uma dobradiça, o que me faz pensar que de facto se abre.
– Está bem.
– Mas aqui… – Ele apontou para um pequeno orifício hexagonal do outro
lado.
– O que é isso?
– Acho que é uma tranca.
– Então é possível abrir pelo lado de dentro.
– Se pudéssemos empurrá-lo para cima e se tivéssemos a chave ou algum
outro tipo de ferramenta.
– Tipo uma faca?
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Foda-se – amaldiçoou ela novamente.
Atrás dela, conseguia ouvir Sarah a murmurar as suas malditas orações.
– Já agora, podes perguntar a Deus se ele nos pode deixar cair uma chave
de fendas? Dava-nos jeito alguma intervenção divina neste momento.
Foi rancoroso, Meg sabia. Sarah ignorou-a. Provavelmente foi melhor
assim.
– Talvez – disse Max –, a chave esteja algures na cabina, escondida para
que ninguém abra o alçapão por brincadeira.
– Não sei – disse Sean. – Não há muitos lugares para esconder alguma
coisa aqui.
– Mas vale a pena procurar – disse Meg.
E era mais útil do que rezar. Ela pôs-se de joelhos e começou a rastejar
pelo chão, procurando por baixo dos bancos. Era o único sítio onde ela
imaginaria que algo pudesse estar escondido. Sean hesitou e depois fez o
mesmo no outro lado do teleférico.
A cabina tinha obviamente sido exaustivamente limpa. Meg nem sequer
tinha encontrado um pedaço de pastilha elástica seca. Estava prestes a
desistir quando viu alguma coisa. Não era uma chave. Mas algo que se
destacava, apesar de tudo. No canto mais distante, debaixo de um dos
bancos, estava algo preto. Ela estendeu a mão para lhe tocar. Fita adesiva.
Um pedaço de fita preta para cabos elétricos, as bordas rasgadas, como se o
resto tivesse sido arrancado. Meg franziu o sobrolho. Talvez os encarregados
da limpeza não a tivessem visto. Ou talvez tivesse sido lá colocada
posteriormente. Ou usada para prender algo aqui debaixo?
– Meg!
Ela deu um pulo, batendo com a cabeça.
– Au. – Ela rastejou de debaixo do banco.
– Encontrei-a! – disse Sean.
– Conseguiste a chave?
– Sim.
Ela olhou para ele enquanto ele segurava uma pequena chave prateada,
como as que se usam para abrir um contador de gás.
– Estava aqui no chão debaixo do banco.
– Certo.
Meg não acreditava que lhe tinha escapado. Ela levantou-se e caminhou
até Sean. Ele levantou a mão e inseriu-a na fechadura. Ele rodou-a para um
lado e depois para o outro. Meg não tinha a certeza de como se trancava ou
destrancava. Sean empurrou o alçapão. Ouviu-se um som agudo e o alçapão
abriu-se, só um pouco.
Ele olhou para ela e sorriu.
– OK. Acho que estamos no bom caminho.
Meg juntou-se a ele, erguendo-se na ponta dos pés, empurrando o
alçapão o mais que podia. Ela sentiu-o levantar um pouco mais. Mas o gelo
e a neve – a preciosa neve, molhada e aguada – estavam a empurrá-lo para
baixo. Oh, que merda de ironia. Ela olhou para Sarah, que ainda estava
sentada, olhos no chão, com as mãos em jeito de oração.
– Achas que podias adiar a reunião com Deus e ajudar-nos aqui?
Sarah lançou-lhes um olhar sombrio, mas levantou-se e caminhou até
eles. Com três deles a empurrar, o alçapão cedeu mais um pouco. Meg
conseguia ver uns quatro ou cinco centímetros de branco e sentir o vento
gelado.
– Só mais um empurrão – disse Sean.
– Permitam-me.
Eles viraram-se. Max estava ao lado deles, com um ar trémulo, mas
resoluto. Ele ergueu o seu braço bom. Em conjunto, todos eles empurraram
o alçapão. Rangeu e depois cedeu, abrindo-se com um ruído surdo.
Imediatamente, uma pequena avalanche de neve caiu do tejadilho sobre
as suas cabeças e rostos. Estava gelada, como o duche de gelo mais frio. Mas
todos eles começaram a enfiá-la gananciosamente na boca.
– Virem uma das luvas do avesso e encham-na de neve para guardar e
beber – disse Meg. – Podem pôr essa mão no bolso ou na manga para a
manter quente.
Todos eles fizeram o que ela indicou, colocando a neve nas luvas viradas
do avesso. Meg lambeu a neve nas mãos e no rosto, saboreando a água
gelada, respirando o ar glacial do alçapão. E depois colocou a língua de fora.
Flocos de neve caíram sobre ela.
Uma súbita e vívida lembrança veio-lhe à memória. Lily, com cerca de
quatro anos, no seu jardim das traseiras, numa manhã de março. Estava um
frio fora de época e de repente começou a nevar. Meg tinha-a vestido com
roupas quentes, o seu casaco e gorro de lã da Porquinha Peppa, e Lily tinha
rodopiado em círculos, língua de fora, braços esticados, apanhando neve
com a língua.
Meg engoliu, reprimindo as lágrimas.
– Estás bem? – perguntou Sean.
– Tudo bem. – Ela acenou com a cabeça, virando costas.
Ela olhou em volta. Estavam todos de pé, lambendo a neve das luvas
como convidados na pior festa do mundo. Era meio ridículo e hilariante.
– O que foi? – perguntou Max.
– Olha só para nós – disse Meg.
Sean começou a rir, depois Max. Até Sarah esboçou um sorriso.
Provavelmente ainda iriam morrer, mas não agora. Neste momento, tinham
água e um pouco de esperança.
– Pronto – disse Sean. – Se toda a gente já tem neve, devíamos fechar este
alçapão antes que fique ainda mais frio aqui dentro.
Ele esticou-se para o agarrar, mas agora havia um problema. Com o
alçapão aberto para cima, ele não conseguia alcançá-lo.
– Bolas.
– Não chegas lá? – perguntou Max.
– Preciso de subir – disse Sean. Ele subiu até à borda do banco e esticou-
se o mais longe que podia.
– Já está – disse ele. E depois praguejou. – Merda. A neve… está a torná-
lo escorregadio. Não consigo agarrar.
Meg pousou a luva cheia de neve.
– Desce e deixa-me subir para os teus ombros. Talvez consiga esticar-me
mais.
– Não. Eu consigo… – O pé escorregou-lhe e ele caiu no chão. Todo o
teleférico balançou. Max sentou-se abruptamente. Meg e Sarah agarraram-se
aos corrimãos.
– Merda – praguejou Sean no chão.
– Estás bem? – perguntou Meg.
– Sim. – Ele levantou-se, fazendo uma careta enquanto se apoiava no
tornozelo esquerdo.
– Tens a certeza?
– Só o torci um pouco. Eu fico bem.
– Ainda me consegues levantar?
Ele acenou com a cabeça.
– Vamos a isso.
Ele dobrou-se. Meg subiu para o banco e depois para os ombros dele. Ele
agarrou as pernas dela e ergueu-a, impulsionando-a para cima pelo alçapão
aberto.
Ela ofegou. O vento raspou-lhe na cara como se fosse lixa. O ar gelado nos
seus pulmões parecia uma lixívia cáustica. Ela pestanejou, sacudindo o gelo
dos olhos. À sua frente, o longo cabo de apoio estendia-se até ao exterior
cinzento da estação do teleférico. Parecia maior visto aqui de cima. Raios,
pensou ela. Não era assim tão longe. Talvez duzentos e trinta metros. Mas
até podiam ser quatrocentos quilómetros.
Ela alcançou o alçapão. A mão dela bateu noutra coisa, meio enterrada na
neve. Ela franziu o sobrolho e afastou a neve. Tinham fixado um objeto ao
tejadilho do teleférico com fita preta. Ela olhou fixamente para ele.
– Meg? – gritou Sean de baixo. – Não quero ser indelicado, mas não estás
a ficar mais leve.
– Está bem. Espera.
Ela raspou a fita com as luvas, arrancando um canto e libertando o objeto.
– Pronto, já está. – Ela ouviu Sean gemer. – Lá vem a hérnia.
Ela enfiou-o no fato de neve e colocou ambas as mãos no alçapão.
Os dedos dela fecharam-se sobre ele. Ela ajustou a pega.
– Pronto. Podes baixar-me.
Sean agachou-se e ela puxou o alçapão. Fechou-o com um baque
metálico. Algo naquele ruído se assemelhava a um final sombrio. Como um
túmulo a ser selado.
De volta ao teleférico, Meg escorregou pelas costas de Sean, sentindo-se
ofegante e um pouco enjoada. O frio extremo e a altura tinham-lhe dado
uma vertigem momentânea. Ela inclinou-se para a frente, tentando respirar
e controlar as náuseas. A certa altura, endireitou-se.
– Tudo bem? – perguntou Sean.
Ela considerou. Devia dizer-lhes? Mas de que serviam mais segredos?
– Encontrei algo no tejadilho do teleférico – disse ela.
– Um paraquedas ou equipamento de rapel era pedir demasiado? –
questionou Sean.
Meg retirou o objeto que tinha colocado dentro do seu fato de neve.
– Oh, meu Deus. – Sarah benzeu-se imediatamente.
– Isso é…? – começou Max por dizer, depois calou-se.
Era perfeitamente óbvio o que era.
Uma arma.
Carter

Nunca ninguém pensa que é o mau da fita.


Todos nós nos iludimos quando achamos ser os heróis da história.
E normalmente estamos errados.
Nos filmes, o bom e o mau são claramente evidentes. Preto e branco.
O lado da luz e o lado sombrio. Os combatentes da liberdade e o império do
mal. Na vida, não é assim. As linhas estão desfocadas. As pessoas não são
preto e branco, e todos nós vemos as situações de formas diferentes.
O combatente da liberdade de uma pessoa é o terrorista de outra. O génio
louco de um é o psicopata perigoso de outro. O líder de uma pessoa é o
opressor de outra. Foi assim que a sociedade se desintegrou ou se
desmoronou.
Um apocalipse não acontece por causa de homens maus, zombies ou
mesmo um vírus. Acontece por causa de pessoas comuns. Porque, algures
pelo caminho, perdemos a sociedade, perdemos a coesão. Esquecemo-nos
de tentar ver o outro lado. Em vez disso, todos nós nos recolhemos nas
nossas trincheiras, nos recusamos a sair, lançando mísseis contra aqueles
que ousaram desafiar a nossa visão redutora. Nada de tipos bons ou maus.
Apenas um bando de filhos da puta assustados a tentarem encontrar o
caminho para casa.
E por falar em filhos da puta.
– Meu, não posso ir ao incinerador assim. – Welland olhou para Miles de
forma clara. – Ainda está uma tempestade de merda lá fora.
Por uma vez, ele estava certo. Tinha amanhecido, não com o céu mais
limpo, mas com mais nevões fortes. Não tão fortes como na noite anterior. O
vento tinha amainado. Mas os montes de neve estavam amontoados e a
visibilidade era fraca. Seria uma loucura ir fosse aonde fosse com este
tempo.
Mas claro que, agora que Welland tinha dito isto, Carter não ia concordar
com ele, nem que a vaca tossisse.
– Podemos sempre trocar – disse ele, vestindo o seu fato de neve. – É uma
boa caminhada até à estação do teleférico. Ar fresco. Ia fazer-te bem.
Welland olhou para ele.
– Tu sabes que não posso caminhar por causa da minha asma.
– Ah, sim, a tua asma. – Carter lutou contra a vontade de fazer o gesto das
aspas com os dedos em torno da palavra «asma», até porque as pessoas que
o faziam eram umas chatas.
Miles olhava para Welland serenamente, como um predador a olhar para
uma refeição.
– A tempestade vai começar a abrandar dentro de algumas horas. Vai
buscar os corpos à cave e carrega-os no trenó, entretanto. És o único que
sabe mexer no incinerador, Welland. Dependemos de ti. – Ele estendeu o
passe para a cave.
Carter conseguia perceber que Welland estava indeciso entre inchar o
peito como o Sr. Sapo ou protestar por ter de ir lá fora outra vez. No final, o
orgulho venceu. Ele pegou no passe, bufou e dirigiu-se para o outro lado do
corredor em direção ao elevador.
– Pois. Todos dependem do Welland.
Carter mordeu a língua com tanta força que tinha a certeza de que
conseguia sentir o sabor a sangue.
Miles virou-se para ele e ergueu as sobrancelhas.
– Então, pronto?
Não, pensou Carter. Mas encolheu os ombros.
– Acho que sim. – Ele fez uma pausa. – Achas que a Caren vai ficar bem
aqui sozinha?
– Ela tem o Welland.
– Exatamente.
– A Caren sabe tomar conta de si.
Carter não tinha dúvidas sobre isso. Neste momento, ela estava lá em
cima, a levantar pesos no ginásio. Mas poderiam confiar nela para cuidar do
Retiro na ausência deles? Tanto quanto Carter sabia, Miles sempre esteve no
local para tratar das coisas. E por coisas ele não se referia apenas aos
mantimentos. Ele referia-se à Câmara de Isolamento 13.
O que o levou a outro assunto.
– Tens a certeza disto?
– Não. – Miles calçou as botas. – Mas não me parece que tenhamos muita
escolha. Precisamos de um novo gerador. Precisamos de uma bateria. A
estação do teleférico é a nossa única opção.
Carter teria gostado de discordar, mas sabia que Miles estava certo. Ele
tinha pensado muito nisso, tentando encontrar maneiras de evitar uma
caminhada até à estação, mas não tinha chegado a nenhuma conclusão. No
entanto, ele também sabia de algo que Miles não sabia e que poderia afetar
os seus planos.
– Miles, há algo que deves saber…
– O quê?
– Eu estava a pensar no Jackson ontem, e no que a Caren disse, sobre não
acreditar que ele roubaria o plasma.
Miles continuou a olhar para ele. Carter conhecia este truque. Deixar
alguém continuar a falar. Dar-lhe corda suficiente para se enforcar.
– Então – continuou ele –, decidi dar uma vista de olhos pelo quarto dele
e… – Carter retirou o Nokia. – Eu encontrei isto.
Um pequeno tremor. Uma tensão na mandíbula.
– Onde? – perguntou Miles.
– Escondido no cano do chuveiro.
Miles acenou com a cabeça.
– Que… engenhoso. E que inteligente da tua parte procurares lá.
Carter encolheu ligeiramente os ombros.
– Só um palpite de sorte.
Miles estendeu-lhe a mão. Carter entregou-lhe o Nokia.
– Há mensagens. Conversas – disse ele.
– Com quem?
Carter fez uma pausa, preparando a granada.
– Difícil de dizer. O contacto diz simplesmente Lloyd.
– Um amigo, família?
– Acho que não.
Enquanto algumas mensagens mais antigas eram breves e banais – Como
estás? O que se tem passado? –, as mais recentes eram mais específicas:
perguntas sobre a disposição do Retiro, as rotinas, a cave e «o plano».
– Eu diria que é algum grupo Rem – disse Carter.
Os Rems (também conhecidos como X-Men, Stormers e Anons) eram
uma filiação de cultistas do Juízo Final, pessoas antivacinas, céticos da
ciência e religiosos de merda que apareceram na altura em que o vírus
realmente começou a impor-se. Alguns queriam que toda a vida acabasse,
outros queriam que os governos fossem derrubados, outros queriam que o
statu quo fosse redefinido, outros queriam que Deus descesse da sua
carruagem em chamas e eliminasse os incrédulos. A porcaria do costume.
O que esses agitadores do apocalipse não conseguiam entender era que o
planeta estava a conseguir autodestruir-se muito bem sem qualquer ajuda,
obrigado. Então, todos os seus ataques, protestos e assassinatos eram o
equivalente a puxar a roupa interior a alguém que estivesse deitado no chão,
a sangrar de cada orifício, e esperar que se incomodasse.
Carter não achava que Jackson fosse um deles. Apesar das tretas do ioga e
da meditação new age, ele parecia não ser fundamentalista. Mas talvez fosse
apenas um bom ator. Todos encarnávamos papéis diferentes para pessoas
diferentes, alguns mais agradáveis do que outros.
Miles ainda estava a analisar as mensagens.
– Porquê aqui? O que é que eles querem?
Carter esperou. E depois Miles fez uma pausa, o polegar a pairar sobre o
telemóvel, os olhos a abrirem-se. Lá estava. Ele olhou para Carter.
– Eles sabem da Câmara de Isolamento 13. Eles sabem que ele está aqui.
Carter acenou com a cabeça.
– Sim.
Miles franziu o sobrolho, refletindo.
– A última mensagem é de há três semanas: Eu aviso quando tiver mais
notícias. Nada desde então.
– Na verdade – Carter tocou no telemóvel –, foi feita uma chamada, não
uma mensagem, apenas há uns dias.
– Mesmo antes de o Jackson desaparecer.
Carter tinha estado a pensar nisto.
– Não sabemos exatamente quando o Jackson desapareceu.
Poderiam passar dias e nenhum deles veria Jackson. Ele raramente se
juntava a eles para as refeições, nunca socializava à noite. Ia ao ginásio de
manhã cedo, fazia as tarefas que lhe eram atribuídas e fechava-se no quarto
durante o resto do tempo. As sombras davam mais nas vistas.
– Bem, quem mais poderia ter feito a chamada? – Miles bateu ao de leve
com o telemóvel no queixo. – Mas se o Jackson era Rem, porquê fugir?
Porquê roubar o plasma?
– Não sei.
– Uma mudança de opinião? Talvez o Jackson tenha decidido sair?
Carter também tinha considerado isso.
– Então o que é que fazemos?
Miles colocou o telemóvel no bolso.
– Por enquanto, seguimos o plano. Enquanto o fornecimento de energia
estiver comprometido, estamos vulneráveis. Essa continua a ser
a prioridade. Vou pensar nisto e depois decidiremos o que fazer.
– E os outros?
– Por agora, mantemos isto entre nós.
Carter abriu a boca, mas antes de poder dizer alguma coisa ouviu-se um
latido e logo em seguida o som de pés que desciam pelas escadas. Ambos se
viraram. Dexter desceu as escadas, a ladrar freneticamente. Caren seguiu-o.
Ainda tinha vestido o equipamento de ginástica e parecia suada e
preocupada.
– O que foi? – perguntou Miles.
– Temos visitas.
E agora Carter podia ouvir outra coisa. O ruído baixo de motos de neve.
Ele olhou de relance para Miles. Ambos sacaram das armas e dirigiram-se
para a porta. Miles empurrou-a. Carter parou para agarrar em Dexter e
colocou-o nos braços de Caren:
– Não o deixes sair, porra. Percebeste?
Ela fez uma careta enquanto Dexter bafejava para o seu rosto.
– Tens a certeza? O hálito dele pode deter o Godzilla.
Carter fez uma festa na cabeça de Dexter e seguiu Miles até ao exterior.
Três motos de neve azuis e vermelhas pararam junto à vedação, envoltas
numa nuvem branca. Gravado na lateral de cada uma, desgastado, mas
ainda legível: Aventuras Snow-Mo de Bob. As motos de neve já não
pertenciam a Bob. As aventuras de Bob tinham chegado a um fim abrupto
há algum tempo. Como a maioria das coisas no resort, as motos de neve
agora pertenciam aos Quinns.
Enquanto Miles e Carter observavam, armas apontadas, duas figuras
corpulentas de preto trepavam a vedação, metralhadoras presas às costas. Os
filhos de Quinn. Eles colocaram as armas na frente do corpo e olharam para
Miles e Carter. Isto era mau. Jimmy e os filhos nunca tinham, tanto quanto
Carter sabia, feito a caminhada até ao Retiro sem uma razão. E, sendo ele
um bom observador, não parecia que isto fosse uma visita social.
A terceira figura desmontou da moto. Pequena, envolta num fato de neve
branco com um capuz grosso e peludo, e enormes óculos laranja.
Jimmy Quinn caminhou até ao portão. Colocou os óculos para cima.
– Miles! Carter! Belo lugar que têm aqui.
– Obrigado – disse Miles calmamente. – Eu convidava-te para tomar chá,
mas estávamos de saída.
O sorriso desvaneceu-se como se tivesse sido apagado.
– Não vão a lado nenhum. Precisamos de falar.
Hannah

O corpo estava alojado entre a parede e a sanita. A cabeça tinha caído


para um dos lados, revelando um corte vermelho na sua garganta. Havia
mais cortes feios nos braços, no sentido vertical. Um grande pedaço de vidro
ensanguentado e denteado no chão.
– Suicídio – disse Lucas, espreitando por cima do ombro de Hannah.
Ela não respondeu. Agachou-se desajeitadamente no pequeno espaço, a
examinar o corpo de Ben. Os cortes nos braços eram normais para o
suicídio. Pelo menos, para um suicídio em que uma pessoa sabia o que
estava a fazer. Um corte vertical tinha significado. Não era um pedido de
ajuda. Cortar o braço na vertical significava que se sangraria muito mais
depressa.
O corte no pescoço era menos típico. Poucas vítimas de suicídio
escolhiam cortar as suas próprias gargantas. Tornava a morte muito mais
desagradável, para começar. Sufocar, asfixiar no próprio sangue. Era preciso
muito empenho para pressionar a faca, ou pedaço de vidro, com força
suficiente contra a própria carne para fazer o corte. Aqueles tendões eram
mais rijos do que as pessoas imaginavam.
E havia outra coisa. Hannah franziu o sobrolho.
– O que foi? – perguntou Lucas.
Ela hesitou. O que foi? À primeira vista, ela diria que sim, mesmo com a
ferida no pescoço, isto tinha sido um suicídio. Fazia sentido. Ben sabia que
estava infetado, a morrer. Ele tinha pegado nalguns vidros da janela partida
e posto termo às coisas mais cedo, como entendeu. Mas o vidro não era tão
afiado como uma lâmina. Ele teria mesmo de ter serrado aquela artéria.
Por outro lado, Ben estava infetado. O vírus pode afetar o cérebro. Daí a
raiva e a agressão. Houve casos em que os infetados causaram danos
violentos a si próprios e aos outros. Era possível que Ben pudesse ter cortado
o seu próprio pescoço num ataque de raiva viral. Choler.
Qual era a alternativa? Um deles tinha matado Ben. Quem seria capaz de
o fazer? E depois Hannah lembrou-se de como tinha considerado colocar
um casaco sobre o rosto de Peggy.
Lucas ainda a vigiava atentamente.
Hannah suspirou.
– Algumas das feridas são atípicas de suicídio, mas tendo em conta que o
Ben poderia estar a sofrer de raiva viral, concordo, a conclusão mais
provável é a de que ele se matou.
Lucas anuiu como se ela tivesse dado a resposta correta, e ela sentiu
aquela pontada de dúvida novamente. Quem seria capaz?
– Bem, problema resolvido, acho eu.
Hannah não tinha a certeza se ele se referia ao suicídio ou ao próprio Ben.
Ela endireitou-se.
– Temos de o mudar de sítio – disse ela. – E limpar isto aqui dentro.
Lucas olhou à volta para a sanita manchada de sangue e fez uma careta.
Hannah sabia o que ele estava a pensar.
O vírus propagava-se de várias maneiras. Era o mais contagioso e
adaptável que os cientistas já tinham visto. Gotículas de água, respiração,
fluidos, carne e sangue contaminados. De todos eles, a saliva e o sangue
eram os mais suscetíveis de infetar. Se já não tivessem sido infetados antes,
remexer no sangue de Ben era uma forma segura de garantir que o eram.
Mas, fosse como fosse, um deles já estava.
Hannah levantou-se.
– Sugiro que usemos algumas das roupas de reserva para fazer uma maca
e colocar o Ben junto dos outros corpos. Depois limpamos o melhor que
pudermos. Ainda temos água neste momento. Além disso, podemos usar
alguma da neve da janela partida.
Lucas acenou novamente com a cabeça.
– De acordo. Está bem. Vamos informar os outros.
Ele virou-se. Hannah puxou a manga para baixo sobre a mão e pegou
cuidadosamente no pedaço de vidro partido. Era grosso. Reforçado. Ela
colocou-o contra a ferida na garganta de Ben. Demasiado espesso. Como ela
calculava. O golpe tinha sido feito por algo mais pequeno, mais fino.
Nervosa, ela pousou o vidro novamente.

Há sempre um momento, numa crise, em que acontece uma divisão.


Qualquer grupo de pessoas, por menor que seja, começará a formar alianças
e a demonstrar animosidade. A discórdia vai crescer. Começa por ser
pequena no início, mas chegará a um ponto crucial.
No começo, há simplesmente o alívio em estar vivo. Preocupação com a
situação que virá a seguir. Ainda assim, nessa altura, a maioria das pessoas
está unida num objetivo comum. Sobrevivência. Mas, quanto mais longa a
crise, mais a sobrevivência se volta para o interior. «Nós» passa a ser «eu».
Quando isso acontece, surgem os ressentimentos e as discussões.
Eles arrastaram o corpo de Ben para fora da sanita pelos tornozelos. A
morte não tinha dignidade, pensou Hannah. Afinal de contas, assim que
aqueles neurónios de raciocínio rápido que nos imbuíam do nosso senso de
identidade se apagavam, éramos apenas pedaços de carne, nada diferentes
das carcaças penduradas no gancho de um talho.
Usando a neve e algumas T-shirts rasgadas, limparam o vómito e
esfregaram o sangue. Daniel lavou as mãos e vestiu uma camisola limpa. Era
muito apertada para ele, a sua barriga justa contra o tecido. Ele puxou-a
para baixo, sentindo-se constrangido. Momentaneamente, algo passou pela
mente de Hannah como uma traça no escuro e depois desapareceu
novamente. Provavelmente nada importante.
Por fim, envolveram o corpo de Ben em duas camisolas, atadas nos
braços, e usaram-nas para o carregar para a frente do autocarro, onde
o colocaram em cima dos outros mortos.
Havia definitivamente um cheiro vindo da pilha de corpos. Não se pode
negar o processo de decomposição, mesmo nestas condições frias. Soma-se
a isso o aroma a sangue, urina e fezes da sanita, e cada inspiração dentro do
autocarro começava a tornar-se um teste de resistência. Hannah sentia-se
enjoada. Inusitado para ela.
Eles precisavam de sair daqui. Não apenas para sobreviverem, mas pela
sua própria sanidade. A mente humana era uma coisa incrível, capaz de se
adaptar a muitas situações diferentes. Porém, chegava um momento em que
começava a desgastar-se, a sobrecarregar. Neste momento, eles estavam
todos no limite.
– Devemos, tipo, dizer alguma coisa? – disse Cassie, a olhar para os
corpos.
– O que há para dizer? – respondeu Lucas. – O Ben está morto. É melhor
assim.
– Para quem exatamente? – perguntou Daniel.
– Para todos nós.
Daniel olhou de relance para Lucas.
– És um sacana sem sentimentos, sabias disso?
– Tento não deixar que as emoções me controlem.
– Bom, talvez devesses. – Daniel fez um gesto na direção da pilha de
corpos. – Olha para isto. Olha para nós. Acabámos de os largar aqui como
casacos velhos. Eram pessoas com esperanças, sonhos e famílias que os
amavam.
Ele encarou os outros à sua volta. Hannah compreendeu. Ele estava a
olhar para os alunos mortos e a ver lá a sua irmã. Atirada para a pilha com
os outros.
– Nós não matámos estas pessoas – disse Lucas. – O Ben escolheu a sua
própria saída.
– Escolheu?
Lucas virou-se para Daniel.
– O que estás a dizer?
– Nunca tinha ouvido falar de uma pessoa que cortasse a própria
garganta.
– Estás a acusar alguém de matar o Ben? – perguntou Cassie.
– Alguém, não. – Daniel fixou os olhos em Lucas. Sentia-se no ar a tensão
crepitante.
Lucas riu sem humor.
– Estou a ver. E porque é que eu mataria o Ben?
Daniel encolheu os ombros.
– Ele era um problema, não era? É mais fácil para todos agora que ele está
morto. Tu mesmo o disseste. Tal como seria mais fácil se a Peggy morresse,
certo?
Lucas olhou para ele, avaliando.
– Acho que seria mais fácil para ti, meu amigo.
A expressão de Daniel ensombrou-se.
– Seu cabrão.
Ele avançou, braço levantado. Lucas foi mais rápido. Ele cerrou o punho e
acertou na barriga de Daniel. O homem maior gemeu e dobrou-se para a
frente. Lucas bateu depois com um joelho na cabeça de Daniel, derrubando-
o. Ele levantou o pé. Hannah pegou no braço dele.
– Já chega.
Ela sentiu Lucas contrair-se e depois relaxar. Virou-se para Daniel.
– Estás bem?
Daniel estava de joelhos no chão, a gemer.
– Estou ótimo – disse ele, respirando com dificuldade. Olhou para Lucas e
vociferou. – Estás a mostrar agora quem realmente és, pá.
Depois ele pôs-se de pé e cambaleou até às traseiras do autocarro.
Cassie abanou a cabeça a Lucas.
– Má decisão… não se dá um pontapé a ninguém quando está no chão. –
E depois seguiu Daniel.
Hannah ficou.
– Ele tentou agredir-me primeiro – disse Lucas.
– Ainda assim, foi excessivo.
Ele suspirou.
– Tens razão. Eu devia pedir desculpa.
– Não. Deixa isso por um tempo. Deixa-o acalmar-se.
Lucas acenou com a cabeça.
– Estamos todos tensos. Não é febre da cabina, mas é febre do autocarro,
sim?
– Sim.
Hannah virou-se e caminhou até ao para-brisas. A manhã estava a clarear.
A neve tinha parado de cair. As árvores cintilavam. À exceção da confusão
de sangue e restos de carne que outrora foram Josh, parecia quase mágico, e
Hannah foi subitamente tomada por um desejo de respirar ar fresco
novamente, por mais que o frio queimasse os seus pulmões.
– Precisamos de sair daqui – disse ela.
Lucas juntou-se a ela.
– Concordo. Achas mesmo que podíamos sair pela sanita?
– Acho que vale a pena tentar.
Dois pássaros voaram até ao céu, silhuetas escuras a esvoaçar. Atrás deles,
uma forma maior chamou-lhe a atenção. Hannah franziu o sobrolho.
– Estás a ver aquilo?
Lucas estava a examinar o relógio. Agora, olhou para cima.
– O quê?
– Ali.
O objeto era demasiado grande para ser um pássaro. Demasiado lento. E
agora Hannah podia ouvir qualquer coisa. O rodopiar distante das pás.
Um helicóptero. A circular. A procurar. O Departamento.
– Merda.
Eles observaram enquanto o helicóptero pairou, baixou, e depois
começou a subir novamente, antes de se virar e diminuir de tamanho à
distância. Eles estavam a procurar no lugar errado, pensou Hannah. Mas
ainda assim estavam a procurar. E voltariam.
– Achas mesmo que o Departamento nos quer matar? – perguntou Lucas.
– Podes estar errada. Podíamos ser resgatados. Sair desta embrulhada.
– Não conheces o meu pai – disse ela.
– Sei que é um cientista brilhante.
Hannah soltou uma gargalhada desolada.
– Aquele velho tropo. Brilhante. Inspirador. Corajoso.
Lucas franziu o sobrolho.
– Isso tem graça?
Ela olhou para ele:
– Deixa-me falar-te do meu pai. Quando eu tinha onze anos, não muito
depois de a minha mãe se ter suicidado, o meu pai trouxe para casa quatro
cachorros beagle. Ele disse-me que três deles tinham de ir para o laboratório,
para experiências. Mas eu podia ficar com um. Eu tinha de escolher. – Ela
fez uma pausa. – Eu escolhi o mais pequeno, obviamente. O que eu pensava
que não sobreviveria a uma injeção com veneno ou a ter pedaços cortados e
colocados sob um microscópio. Chamei-lhe Buddy, e adorei aquele
cachorrinho durante as quatro semanas que o tive.
– O que aconteceu?
– Um dia, voltei da escola e descobri que o Buddy se tinha ido embora.
Um dos outros beagles tinha morrido e o laboratório precisava rapidamente
de um substituto. Então, o meu pai levou o Buddy. Eu nunca mais o vi.
Lucas susteve o fôlego.
– Scheisse.
– O meu pai ofereceu-se para me arranjar outro cão, mas eu tinha
aprendido a lição. Pedi um peixinho-dourado. – Hannah sorriu. – É difícil
ficar de coração partido por causa de um peixe-dourado.
– Isso é horrível.
– Sim. – Ela virou as costas. – É assim o meu pai.

Eles descobriram imediatamente um problema em relação ao plano de


fuga de Hannah. A base da sanita estava presa a um módulo de plástico.
Embora a base estivesse solta, teriam de remover o módulo inteiro para
alcançar o espaço por baixo. O módulo estava fixado por seis parafusos.
Dois já tinham caído. Restavam quatro.
– Por um acaso não terás uma chave de fendas? – perguntou Hannah a
Lucas.
Ele abanou a cabeça.
– Esqueci-me de pôr isso na mala.
Ela saiu do espaço apertado e fedorento, que não era suficientemente
grande para os dois. Sentia-se quente e suada. Uma onda de tonturas
inundou-a subitamente. Ela agarrou-se a um assento, respirando fundo,
deixando que passasse. A respiração ficou presa na sua garganta. Ela tossiu.
– Um pouco de tosse?
Ela olhou para cima. Cassie estava aconchegada num assento inclinado
a meio do autocarro. Estava a ler um livro de bolso retirado de um dos
alunos mortos. Beco sem Saída3. Apropriado.
– Estou bem – disse Hannah. – É só o pó.
– Certo.
Hannah não gostou do tom de Cassie. Ela estava bem. Tinha de estar.
– Não fazes companhia ao Daniel? – perguntou ela à rapariga, incapaz de
disfarçar o antagonismo na sua própria voz.
Cassie bocejou.
– Sem ofensa, mas a cena da irmã moribunda não é especialmente alegre.
Gostava que ela se despachasse.
Hannah olhou para ela.
– E tu acusaste o Lucas de ser frio.
– Não, isso foi o Daniel. Eu disse que o Lucas pontapeou alguém quando
estava no chão. O que ele fez.
Ela virou uma página do livro. Hannah abanou a cabeça. Sempre que ela
achava que começava a conhecer Cassie, ela surpreendia-a novamente. E
não no bom sentido.
– Tens alguma coisa que possamos usar para retirar alguns parafusos? –
perguntou ela exaustivamente.
– Claro – disse Cassie. – Deixa-me só ir buscar a minha caixa de
ferramentas.
Hannah rangeu os dentes. Não tinha tempo para isto.
– Bem, obrigada pela tua ajuda.
Cassie ergueu uma sobrancelha.
– O que é que queres? Só há espaço para duas pessoas lá dentro. Não há
nada que eu possa fazer pelo Daniel ou pela irmã dele. É melhor conservar
energia. Especialmente tendo em conta que a nossa comida e a água são
bastante limitadas.
Ela tinha razão, Hannah detestava admitir. Os olhos dela vagueavam pelo
autocarro, esperando que pudesse encontrar algo que pudessem usar.
– Uma moeda poderia funcionar – acrescentou Cassie.
– Tens moedas?
– Não.
– Boa.
Cassie fez-lhe uma continência e enterrou o nariz de volta no livro.
Hannah suspirou e olhou para as traseiras do autocarro. Ela não queria, mas
precisava de falar com Daniel.
Ele estava novamente sentado ao lado da irmã. Peggy estava – ainda –
viva. A sua respiração era fraca e rouca e a sua pele estava pálida e pegajosa.
Certamente já lhe restará pouco tempo. Mas era difícil de dizer.
Inicialmente, Hannah tinha pensado que ela morreria no espaço de uma
hora. No entanto, aqui estava ela. A morte era um processo. Levava o tempo
que fosse preciso. E nunca era como nos filmes. As pessoas presumiam
sempre que seria repentina ou prolongada, com muito tempo para nos
prepararmos. Mas a ideia de nos «prepararmos» para a morte era uma
fantasia.
Da mesma forma, os ferimentos mais graves podem levar o seu tempo
para finalmente nos matarem. Primeiro, os órgãos começam a falhar.
Lentamente, um a um. A sensação nos membros desaparece. O cérebro
desliga funções superiores, a consciência fica entorpecida e intermitente. A
necessidade de comida ou de água desvanece e muitos dos moribundos
perdem a capacidade de engolir. A respiração vacila e, finalmente, sem
oxigénio suficiente e com a falha dos impulsos elétricos do cérebro, o
coração para de bater. Dependendo da lesão, isto poderia levar minutos,
horas ou dias. A Morte viria quando estivesse pronta. E ninguém, pela
experiência de Hannah, estava preparado. Ela tremeu e reprimiu novamente
a tosse.
– Não precisas de o dizer – disse Daniel quando ela se aproximou.
– Dizer o quê?
– O Lucas tinha razão. Seria o melhor. A Peggy vai morrer, e isto é pior.
Hannah sentou-se ao lado dele.
– O Lucas não tem razão. A morte nunca é o melhor. Mas chega uma
altura em que é a opção menos dolorosa.
Daniel acenou com a cabeça.
– Esperava que, de alguma forma, pudéssemos sair daqui ainda a tempo.
Hannah franziu o sobrolho. A tempo de quê? De Peggy sobreviver? Isso
foi sempre improvável.
– Sinto muito – disse ela. Uma frase feita.
Daniel ergueu os olhos na direção dos dela. Que olhos impactantes,
pensou Hannah novamente.
– Achava que tinha ouvido um helicóptero – disse ele.
– Acho que o Departamento está à nossa procura.
– E achas mesmo que nos vão matar se nos encontrarem?
Encerramento.
– Acho – disse ela. – É por isso que temos de sair daqui. Temos de
desenroscar a base da sanita. Tens alguma coisa que possamos usar para
desapertar os parafusos? Uma moeda, talvez?
Daniel hesitou, depois meteu a mão no bolso e tirou um centavo antigo e
baço. Hannah já não via um há anos.
– Moeda da sorte – disse ele. – A minha avó deu-ma. Não serviu de muito
até agora. – Ele segurou-a. – Mais vale dar-ta.
Hannah aceitou a moeda.
– Obrigada.
– Achas mesmo que isto vai funcionar? – perguntou Daniel.
– Não sei. Mas temos de tentar. Aqui dentro somos alvos fáceis.
– E se sairmos? O que fazemos então?
Uma boa pergunta.
– Tiramos tudo o que é útil da bagagem no porão. Vamos para a floresta e
procuramos abrigo para a noite. Quando amanhecer, tentamos encontrar o
caminho para uma aldeia ou cidade. Quando as pessoas souberem de nós,
ficará mais difícil livrarem-se de nós.
Daniel acenou com a cabeça, pensativo.
– E qual será a distância até à aldeia ou cidade mais próxima?
– Não sei – admitiu Hannah. – Talvez oitenta quilómetros, talvez
oitocentos.
– E achas mesmo que vamos sobreviver tempo suficiente para conseguir
caminhar oitocentos quilómetros?
– Prefiro morrer a tentar a ficar aqui sentada à espera da morte.
Daniel sorriu.
– Fazes-me lembrar a Peggy às vezes.
– Ai sim?
– Sim. Ela era mais dura do que parecia… – Ele fez uma pausa. Falou dela
no passado.
– Daniel – disse Hannah. – Se sairmos, tens de vir connosco.
– Eu não posso deixar a Peggy aqui.
– Não podes fazer mais nada por ela.
– Não… não se trata apenas da Peggy.
– Então o que é?
Ele não respondeu.
– Olha – disse Hannah. – Sei que é difícil, mas chegará um momento em
que terás de fazer uma escolha.
Daniel olhou para a irmã e ternamente afastou um cabelo da testa dela.
– Eu sei. – Ele voltou-se para Hannah. – Vais estar aqui? Quando chegar a
altura?
– Se quiseres que esteja.
– Promete.
Ela suspirou.
– Prometo.
– Obrigado.
Ela olhou para ele. Havia alguma coisa que ele não lhe estava a contar?
Salva-a.
Antes que ela pudesse perguntar, ouviu-se a voz de Lucas a partir da casa
de banho.
– Encontraste alguma coisa para desenroscar estes parafusos?
Ela gritou de volta:
– Sim. Vou já.
Daniel olhou através do autocarro para Lucas, o rosto fechado.
– Não confio nele – disse ele.
– Não achas mesmo que ele matou o Ben…
Ele olhou para ela.
– Alguém se levantou durante a noite. Eu vi-o a mexer-se.
Hannah franziu o sobrolho. Será que ela não reparou? Ela supunha que
talvez tivesse adormecido um pouco.
– O Lucas? – perguntou ela.
– Estava demasiado escuro para saber.
– Tens a certeza?
Daniel esboçou um sorriso triste.
– Já não tenho a certeza de nada. Só… tem cuidado.

Desapertar os parafusos foi um processo lento e laborioso, ainda mais


desagradável pelo desinfetante e efluência que a sanita invertida derramava.
Eles levantaram a base primeiro e depois fizeram turnos com a antiga
moeda. Quando o último parafuso se soltou, os dedos deles já estavam
feridos e doridos, e a camisola de Hannah estava encharcada em suor.
Apesar dos dedos feridos, Lucas parecia tranquilo e calmo. Ele puxou o
módulo de plástico e arrancou-o. Depois, com dificuldade, retirou-o através
da porta estreita.
Momento da verdade, pensou Hannah.
Ela agachou-se. Por baixo do módulo havia uma zona de plástico cinza e
um pequeno orifício de saída para a sanita. Hannah empurrou o plástico
com a mão. Depois pôs-se de pé e pontapeou-o com o calcanhar. Parecia
frágil, mas mesmo assim ela não tinha a certeza se o conseguia partir. Não
sem cortar a perna.
Lucas voltou a entrar.
– Então?
– Só vejo este soalho de plástico. Acho que o compartimento para
o tanque de retenção está do outro lado. Se conseguirmos ultrapassar isto,
teoricamente, deve haver uma zona de acesso.
– Teoricamente?
– É tudo o que posso dizer. – Ela olhou de volta para o chão. – Só acho
que não consigo parti-lo.
Lucas levantou a perna e deu um pontapé forte no plástico. Partiu-se um
pouco. Ele pontapeou-o outra vez. Desta vez, o pé dele afundou-se até ao
tornozelo. Ele cambaleou. Hannah encolheu-se. Depois percebeu que era a
perna falsa de Lucas. Ele puxou-a, o plástico afiado contra a prótese
metálica.
Ele sorriu-lhe.
– Tem a sua utilidade.
Eles dobraram-se e puxaram o plástico, arrancando pedaços, revelando
um espaço retangular por baixo. Hannah espreitou lá para dentro. Ela podia
ver o tanque de retenção e, acima dele, uma pequena escotilha que deveria
abrir na lateral do autocarro, para permitir que o tanque fosse removido
quando necessário. Sim. E, por uma vez, Deus ou o destino ou apenas a sorte
estava do lado deles. Havia espaço para contornar o tanque, e ela conseguia
ver um feixe de luz onde a porta da escotilha se tinha aberto no acidente.
Outro pontapé forte deveria abri-la.
Havia uma saída. Apertada. Estranha. Mas uma saída.
Hannah sentiu uma onda de alívio. Ela limpou a testa.
– Nós vamos conseguir…
Foi assolada por um ataque de tosse. Ela cobriu a boca com o braço. Não
conseguia recuperar o fôlego. Lucas estava a olhar para ela. Ela viu a
pergunta nos olhos dele. Mas, antes que ele pudesse dizer alguma coisa,
houve um grito vindo da parte de trás do autocarro.
– HANNAH!
Ela recuou da casa de banho. Daniel estava a ir na direção dela. Parecia
desgrenhado e desorientado.
– É Peggy – disse ele.
Ela acenou com a cabeça.
– Está bem.
Daniel virou-se e voltou a descer pelo autocarro. Hannah seguiu-o. Antes
mesmo de chegar às traseiras, já conseguia ouvir os gemidos de dor. Ela
contornou os assentos retorcidos e os olhos dela abriram-se. Peggy estava
apoiada contra a janela, com convulsões, as pernas abertas. A zona genital
das suas calças de ganga estava ensopada em sangue.
– Mas que raio?
Ela olhou para Daniel, confusa, e depois caiu de joelhos, ao lado da
rapariga. De onde tinha vindo todo aquele sangue? Ela colocou uma mão na
barriga de Peggy. Algo se moveu por baixo dos dedos dela. Não. Hannah
puxou gentilmente a camisola larga para cima. A barriga da rapariga estava
distendida, a pulsar com contrações.
Jesus Cristo.
Peggy estava a morrer.
Também estava grávida… e em trabalho de parto.
Hannah virou-se para Daniel com raiva.
– Porque não me disseste que ela estava…
As palavras morreram-lhe nos lábios.
Daniel estava de pé atrás dela. Numa mão, tinha uma faca pequena
e afiada.
– Tu prometeste – disse ele. – Salva-a.

3 No original, Catch-22. (N. da T.)


Meg

– Porque é que alguém esconderia uma arma no tejadilho do teleférico? –


perguntou Max.
– Deve ter sido o Karl – disse Sarah. – Ele devia ter duas armas.
Meg pensou nisso.
– Mas, se tinha uma arma, porque precisaria de uma faca?
– Talvez ele pensasse que um disparo nos acordaria.
– Estávamos totalmente adormecidos. – Meg olhou para a arma. – Além
disso, fomos despojados e revistados. Todos os nossos bens pessoais foram-
nos retirados antes de sermos postos a bordo. Então como é que ele
conseguiu passar uma faca e uma arma para o interior do teleférico?
– Bem, obviamente, não deve ter sido drogado – disse Sarah. – Ele deve
ter estado a fingir.
– Ainda assim, teria passado pelos mesmos procedimentos… – A voz de
Meg foi-se perdendo.
Estava a escapar-lhes algo. Estava a escapar-lhe algo. Ela pensou no
pedaço de fita adesiva por baixo do assento. A fita adesiva a colar a arma ao
telhado. Havia uma ligação, mas ela não conseguia perceber.
Sean parecia pensativo.
– Se o tipo morto era um segurança, talvez a arma fosse dele.
– Então como é que acabou presa no tejadilho?
Ele encolheu os ombros.
– Talvez ele quisesse escondê-la por alguma razão?
Ou, pensou Meg, talvez o assassino a tenha encontrado e escondido lá em
cima? Ela considerou o cenário: o assassino esfaqueia Paul, descobre a arma
e entra em pânico. O que fazer? Ele pode desfazer-se da arma, mas poderia
ser útil. Não há onde a esconder dentro do teleférico, por isso ele prende-a
ao tejadilho. Louco, mas também um pouco engenhoso. Mas, então, porque
é que ele não colocou a faca lá em cima ou não se livrou da faca? E de onde
veio a fita?
– Está carregada?
A voz de Sarah interrompeu o pensamento de Meg no momento em que
ela estava a chegar a uma conclusão.
– Perguntei se está carregada – repetiu Sarah. – Não sei de vocês, mas não
me sinto muito confortável contigo aí parada a segurar numa arma
carregada.
– Achas que vos posso matar a todos? – disse Meg.
Sarah cruzou os braços.
– Prefiro não descobrir.
Meg abanou a cabeça.
– Muito bem. – Ela clicou para abrir a câmara. Seis balas no interior. A
arma estava totalmente carregada, mas não tinha sido usada.
Ela transferiu as balas para a sua mão e segurou-as.
– Quem as quer? Uma arma não serve de nada sem balas.
Sean deu um passo em frente.
– Eu fico com elas.
Ela entregou-as. Ele colocou as balas no bolso.
– Estão todos contentes? – perguntou Meg.
– Porque é que ficas tu com a arma? – disse Sarah.
Meg revirou os olhos.
– Quere-la? Toma. – Ela estendeu a arma, segurando-a pelo cano. Sarah
olhou para ela e depois abanou a cabeça.
– Na verdade, não. Fica tu com ela.
– Tens a certeza?
– Sim.
Meg começou a meter a arma no bolso.
– Na verdade… – disse Max. Ele tinha-se sentado novamente e a sua voz
estava um pouco rouca. – Porque é que alguém precisa de ficar com ela?
Porque é que não nos livramos dela, como fizemos com a faca?
Boa questão. Se eles chegassem ao Retiro com uma arma, seriam feitas
perguntas.
– Acho que devíamos ficar com a arma – disse Sean. – Pelo sim, pelo não.
– Pelo sim, pelo não? – Sarah olhou para ele. – Pelo sim, pelo não, o quê?
Mas Meg sabia. Se eles ficassem aqui presos, diante das opções de morrer
à fome ou congelados, uma bala poderia não ser uma opção tão má.
– Pelo sim, pelo não, o quê? – disse Sarah novamente, o tom de voz
a crescer estridente.
– Para o caso de o resgate não vir – disse Meg sem rodeios.
– Eu não… – Os olhos de Sarah esbugalharam-se. – Queres dizer, matar-
nos?
– Ou uns aos outros.
Sarah olhou para ela horrorizada.
– Não.
– É algo que talvez tenhamos de considerar – disse Meg. – Se as nossas
únicas opções forem morrer lentamente de hipotermia ou de fome, talvez
queiramos tomar um caminho mais rápido. Eu sei qual prefiro escolher.
– Só Deus decide quem vive e morre – murmurou Sarah.
Meg deu uma pequena gargalhada.
– Certo. Então, quando empurraste o Karl para fora do teleférico, essa foi
a mão de Deus, não foi?
– Eu não o empurrei.
– Podemos não fazer isto outra vez? – disse Sean. – Eu acho que devemos
ficar com a arma.
No canto do teleférico, Max começou a tossir. Meg olhou na sua direção.
Apesar de ter bebido água, a pele dele parecia cinzenta e os olhos raiados de
sangue. O cabelo dele estava emaranhado em volta das têmporas. Meg quase
apostava que ele tinha febre. Precisavam de o ajudar.
– Há outra opção – disse ela.
Sean ergueu uma sobrancelha.
– Saltar para fora do alçapão?
– Não. Escalar.
– O quê?
– Dá para ver a estação do teleférico a partir daqui. Não é assim tão longe.
– Até podiam ser milhares de quilómetros – disse Sean.
– Acho que pode ser possível subir ao longo do cabo de apoio – disse
Meg.
Todos eles continuaram a olhar para ela. Depois, Sean desatou a rir.
– A sério?
Meg olhou para ele. Depois da conversa deles ontem à noite, ela pensava
que tinham estabelecido algum tipo de ligação, mas neste momento ele
estava a agir como um idiota.
– É possível – reiterou ela. – São pouco mais de duzentos metros.
– E isso não é muito se estiveres a passear numa avenida iluminada pelo
sol, talvez – disse Sean. – Mas estás a falar de te pendurares pelas mãos e
tornozelos num cabo de aço a trezentos metros do chão, no meio de uma
tempestade de neve.
Meg olhou para ele.
– Eu sou capaz.
– És capaz? A sério?
– Eu bati o recorde da academia de polícia no percurso de obstáculos.
– E eu ganhei a corrida de sacos na escola primária – retorquiu Sean. –
Tem o mesmo valor.
– Devias deixá-la tentar – disse Sarah, a tremer no canto.
Max observou Meg com olhos raiados de sangue.
– Achas mesmo que é possível?
– Acho – disse ela, apesar de não ter a certeza. – É perigoso. Mas pode ser
a nossa única hipótese. Se eu conseguir chegar à estação, posso dar o alarme,
pedir ajuda.
– Olha – disse Sean num tom paciente que a fez querer dar-lhe um murro.
– Eu sei que és forte e destemida e essas merdas todas. Mas nem vais chegar
a meio do caminho.
– Tens uma ideia melhor? – perguntou ela. – Para além de todos
estoirarmos os miolos?
Ela viu algo na cara dele, uma expressão estranha que não conseguia
decifrar.
– Sim – disse ele. – Eu vou.
– Não – disse Meg.
– Eu sou mais forte do que tu.
– Também és mais pesado. Eu sou mais leve e mais ágil.
– Eu tenho mais resistência.
Meg olhou para ele.
– Agradeço a oferta, mas não.
Ele sorriu friamente.
– Não confias em mim.
– Não disse isso.
– Não era preciso. – Ele abanou a cabeça. – O quê? Achas que eu vou
chegar lá e fugir, deixar-vos a todos aqui a morrer? Talvez tenha sido eu
a matar o polícia. É isso o que achas?
– Não – disse Meg. – E para de pôr palavras na minha boca.
Eles olharam um para o outro.
– Muito bem – disse Max sem grande ânimo. – Logicamente, só há duas
razões pelas quais ainda estamos aqui presos: uma, houve uma falha técnica.
Nesse caso, pode haver pessoas a trabalhar para nos pôr em movimento
agora mesmo. Só está a demorar algum tempo.
– Ou? – perguntou Meg.
– Um evento catastrófico. Aconteceu alguma coisa aos operadores. Não há
ninguém para resolver o problema. Talvez ninguém saiba que estamos
encalhados.
A afirmação dava que pensar.
– Seja como for… – continuou ele.
– Estamos fodidos – concluiu Sean.
Max sorriu pesarosamente.
– Ia dizer que, quanto mais tempo ficarmos aqui, maior é a probabilidade
de ser a segunda razão.
– Então estamos fodidos? – disse Sean.
– Basicamente.
Todos eles olharam através do vidro. A neve caía suavemente como
pedaços de renda. Ao longe, o céu ondulava como uma fita prateada acima
da concha cinzenta da estação do teleférico. Eles observavam, impotentes,
de dentro do seu túmulo de vidro e metal.
– Só resta uma pergunta – disse Meg. – Quanto tempo mais vamos
esperar?
Carter

Ninguém falava. Ninguém se mexia. Até o tempo parecia ter parado.


Sob o olhar reptiliano de Jimmy Quinn, com os canos das metralhadoras
apontados para eles, o momento pareceu durar uma eternidade. Carter
engoliu em seco, tendo a certeza de que o som provavelmente poderia ser
ouvido por veados distantes na floresta.
Miles foi o primeiro a quebrar o silêncio.
– Eu falo melhor quando as pessoas não me apontam armas à cabeça.
Jimmy Quinn sorriu.
– Eles não estão a apontar para a tua cabeça, Miles. Eles vão arrancar-te os
tomates primeiro. – Mas depois ele ergueu a mão e os Coisas 1 e 2 baixaram
as armas.
Miles inclinou a cabeça num gesto de agradecimento e baixou a sua
própria arma.
Segundos depois, Carter fez o mesmo.
– Então, qual é o problema? – perguntou Miles.
Quinn fez sinal para o Coisa 1, que prontamente se dirigiu à moto de neve
e retirou um pacote da bagageira. Enquanto ele caminhava de volta, Carter
reconheceu-o como um dos pacotes que ele tinha entregado a Quinn na
manhã anterior.
O Coisa 1 deixou cair a encomenda junto ao portão.
– O teu plasma – disse Quinn.
– Sim – respondeu Miles. – A quantia que pediste. Eu não…
O Coisa 1 ergueu a arma e disparou contra o pacote, que rebentou numa
explosão de papel castanho e cacos de vidro.
Carter e Miles protegeram a cabeça e abrigaram-se.
– Merda! – Carter olhou para Miles e depois para Quinn. – Que merda é
esta?
Quinn caminhou até à caixa destruída. Pontapeou os restos com o pé.
– Achas que sou estúpido, Miles? Tentas vender-me merdas?
Carter começou a suar. Ele sempre teve o cuidado de reorganizar o
plasma para que o Quinn nunca recebesse placebos, mas será que ele tinha
cometido um erro? O Quinn teria recebido plasma falso?
– Não – disse Miles com firmeza. – Nunca faria isso.
– És um mentiroso.
– Não.
Quinn continuou a olhar para ele através da vedação.
– Recebi uma chamada, Miles. De um sócio meu. Um sócio muito
importante. Um sócio muito infeliz. Sabes porquê?
– Não. – Mas havia algo na voz de Miles. Um pequeno tremor de
incerteza.
– A família dele está morta, Miles. Eu enviei-lhe um lote de plasma, como
sempre. Mas o que aconteceu? Duas semanas depois, todos eles ficam
doentes. Esposa, filho, ambos mortos. Agora, ele até pode arranjar uma nova
patroa, mas não pode substituir o filho. Eu disse-lhe que era uma exceção,
talvez um lote mau. Depois recebo mais chamadas. Mais pessoas infetadas.
Então, vou perguntar-te outra vez: vendeste-me merdas?
Carter viu a ténue oscilação da maçã de Adão de Miles enquanto engolia
em seco.
– Eu nunca iria…
Outra explosão de tiros. Carter e Miles lançaram-se ao chão. As faíscas
saltaram quando as balas atingiram o portão. Quando o barulho parou, eles
olharam para cima. O ecrã de segurança que controlava a entrada ficou
pendurado. O portão estava aberto.
Quinn estava mesmo ali.
– Isto é o quão fácil pode ser – disse ele suavemente. – Matar-vos a todos
e tomar conta deste lugar. Mas não o faço. Porque tínhamos um acordo.
Agora, diz-me a verdade antes que eu transforme os teus tomates em carne
picada.
Miles levantou as mãos e levantou-se desajeitadamente.
– OK. – Ele acenou com a cabeça. – Eu só descobri recentemente…
Era agora, pensou Carter. Ele ia dizer-lhe que Jackson tinha andado a
roubar plasma e a deixar placebos.
Miles respirou fundo.
– Notei alguns problemas com a eficiência do plasma.
Carter olhou para ele.
– O quê?
– Nada de mais – continuou Miles. – Uma pequena diminuição de
antigénios. A cada extração, parecia diminuir mais um pouco.
– O que significa? – perguntou Quinn.
Miles suspirou.
– Significa que o plasma extraído é menos eficaz para gerar anticorpos de
resposta. Pode não funcionar tão bem, sobretudo se confrontado com uma
variante diferente.
Quinn continuou a olhar fixamente para eles.
– Fizeste asneira, Miles.
Miles acenou com a cabeça.
– Eu sei e tenho um plano de contingência.
– E eu tenho pessoas mortas, porra. Desapontei-os, Miles. Percebes isso?
Talvez eles venham atrás de mim ou dos meus filhos.
– Eu sei. E eu sinto muito.
– As tuas desculpas não valem merda nenhuma. Diz-me como vais
corrigir isto.
– Arranjamos novas reservas. Totalmente novas. Livramo-nos das nossas
reservas atuais e recomeçamos. Acredito que isso vai resolver o problema.
– Novas reservas? – Quinn olhou-o com curiosidade. – Queres dizer… –
Ele olhou de volta para a encosta em direção à floresta. – Novos Whistlers?
– Sim.
Quinn inclinou a cabeça para trás e riu-se. Os filhos dele riram-se de
forma estranha.
– És um cabrão maluco, sabias disso? – Ele abanou a cabeça. – Está bem.
Tens um dia. Vinte e quatro horas.
– Preciso mais do que isso – disse Miles. – Um dia para arranjar reservas.
Depois para processar.
– Está bem, quarenta e oito horas. Nada mais. Eu quero plasma fresco. Se
não conseguires… estás morto. Todos vocês.
– Compreendo.
– Vais compreender, porra.
Quinn voltou a reajustar os óculos e subiu para a moto de neve. Os Coisas
1 e 2 fizeram o mesmo. Com o rugir dos motores e numa nuvem de neve, os
três veículos desceram pela encosta abaixo.
Carter e Miles ficaram a vê-los partir.
– Bem, isto foi… emocionante – murmurou Miles.
Carter deixou-se cair no chão.
– Mas que merda, Miles. Porque não nos disseste?
Miles rodou sobre si mesmo e apontou a arma à testa de Carter.
– Não me questiones, Carter. Nunca me questiones, porra. Sem mim, já
estarias morto.
Carter ergueu as mãos e acenou com a cabeça.
– Está bem, está bem. Desculpa.
Miles baixou a arma, pigarreou e respirou fundo.
– Isto não é nada que não esperasse.
– Então, o que é que fazemos? – perguntou Carter. – Vamos precisar de
um dia para ir até à estação do teleférico e voltar.
Miles não parecia tê-lo ouvido.
– Nem tão-pouco é um desastre – continuou ele. – Precisávamos de novas
reservas de qualquer maneira. Isto simplesmente tornou essa necessidade
mais premente.
– Mas e a energia, o gerador?
– Mudança de planos. Primeiro temos de conseguir reservas.
Antes que Carter pudesse argumentar ou opor-se, Miles virou-se
e caminhou até à porta.
– Precisamos de informar os outros.
Caren insistiu em ir com eles.
– Precisam de toda a ajuda disponível.
Carter esperava que Miles recusasse. Apenas Welland ficaria aqui,
encarregado de gerir o Retiro. Mas Miles concordou.
– Verdade. E, mais uma vez, desculpa, devia ter-vos informado mais cedo
das minhas preocupações acerca do plasma.
Caren franze os lábios.
– Devias. Mas percebo porque é que não o fizeste.
Ela observou Miles com atenção.
– Quão protegidos estamos, Miles? O Quinn disse que as pessoas foram
infetadas e morreram. Se sairmos para ir buscar reservas e formos
expostos… – Ela deixou a frase no ar, sem precisar de a acabar. Se fossem
expostos, ficariam infetados?
Miles demorou um pouco a responder.
– Sinceramente, não sei. As doses que recebemos anteriormente ainda
devem oferecer alguma proteção, e obviamente usaremos máscaras, óculos,
mas não posso dar-vos garantias.
O que antes já era perigoso era agora virtualmente suicida. Mas, de
qualquer forma, não entregar a Quinn novas reservas era provavelmente
pior. Eles não podiam fugir porque Quinn controlava o aeroporto. Não
tinham outro transporte viável e tentar chegar a qualquer lugar a pé era uma
loucura.
A sua permanência aqui sempre foi um equilíbrio frágil. E agora
o pêndulo tinha balançado, as balanças tinham-se desmoronado e o castelo
de cartas tinha caído. Já para não falar que as metáforas já não faziam
sentido.
Conseguir novas reservas era uma missão suicida.
Não as conseguir era uma sentença de morte.
Welland abanou a cabeça, caracóis suados no ar.
– Meu, não posso acreditar nisto. Esperas que eu trate dos Whistlers sem
proteção?
Miles falou calmamente.
– Os corpos têm de ser incinerados, Welland. Isso é uma prioridade maior
do que nunca.
– Mas e se…
– Toma todas as precauções relevantes que normalmente tomarias
e ficarás bem.
Carter tinha a certeza de que sim. Algumas pessoas, por mais
desagradáveis, cobardes e egoístas que fossem, pareciam sempre safar-se.
Enquanto outras, como a sua irmã… ele abafou o pensamento antes que
pudesse crescer e sufocá-lo.
Miles continuou com assertividade.
– Certo. Já sabem o plano. Entramos, procuramos um grupo. Eles tendem
a descansar mais durante o dia, mas não presumam que seja esse o caso. Eu
vou tranquilizar dois, rapidamente. Caren e Carter, façam o necessário para
afugentar os outros. Depois carregamos as reservas…
– Podes parar de lhes chamar isso? – Carter não conseguiu evitar.
Caren lançou-lhe um olhar esquisito.
– Carter – disse Miles num tom de voz baixo, em jeito de aviso.
– O que quero dizer é que os Whistlers ainda são pessoas, certo? –
continuou Carter, tentando manter a sua voz estável. – Ou, pelo menos,
eram.
– Não podemos pensar neles dessa maneira – disse Miles. – Não se
quisermos sobreviver.
– O Miles está certo – disse Caren. – Do meu ponto de vista, sejam eles
quem forem, somos nós ou eles, e eu sei qual escolho.
Claro. Caren com C, atrevida, prática, perfeita.
Carter suspirou.
– Muito bem.
Miles levantou as sobrancelhas.
– Então, se me permites continuar?
Carter acenou com a cabeça, apesar de não ser realmente uma pergunta.
Com Miles, nunca era.
– Muito bem. Carregamos os corpos no trenó e trazemo-los de volta para
as câmaras, onde começaremos a extração. – Miles olhou para Carter com
mais atenção. – Aqui, os Whistlers vão ser alimentados, cuidados. É
provavelmente uma existência melhor do que a que eles têm lá fora, vivendo
como animais.
Mas, por mais dura que seja a existência, qualquer criatura escolheria
sempre a natureza em vez da prisão, pensou Carter.
Miles virou-se para Welland.
– Entretanto, estás tu aqui no comando, Welland. Leva os corpos para o
incinerador e aguarda, espera pelo nosso regresso.
– E se não regressarem? – lamentou-se Welland. – E se a energia falhar
outra vez? E se o Quinn voltar?
Miles entregou a Welland a sua arma.
– Então usas isto.
Welland olhou para a arma.
– Mas… Eu não sei disparar. Eu nunca conseguirei deter o Quinn e os
filhos com isto.
Miles sorriu.
– Não é para eles.
Hannah

Ela ficou a olhar para a faca.


– Daniel. Eu não posso. Eu…
– A Peggy não. A bebé.
Ele estendeu-lhe a faca.
– Preciso que salves a bebé.
O pedido ficou claro. Hannah olhou para Peggy. A sua barriga dilatada.
Não. Oh, Deus. Não.
– Eu… não posso.
– És estudante de medicina.
– Sim, mas não sou médica nem parteira. Nunca fiz isto.
Ele empurrou a faca na direção dela.
– És a única. – Os olhos dele suplicaram-lhe. – Por favor. Não posso
perder as duas.
Hannah olhou para a rapariga. Ela estaria morta dentro de minutos, de
qualquer maneira. Logo que isso acontecesse e o oxigénio fosse cortado ao
feto, haveria apenas uma pequena janela de tempo para fazer nascer a bebé
ilesa, viva, sem danos cerebrais. Ela tinha de agir agora.
Mas, mesmo que consigas, como irá a bebé sobreviver? Sem leite. O frio. E
será um fardo adicional. Sê racional, Hannah. Deixa-as partir. É para
o melhor.
Ela olhou para Daniel. Viu o desespero na cara dele.
– A bebé pode morrer de qualquer maneira.
– Eu sei. Mas, por favor, tenta. Não merece uma oportunidade?
Hannah. Isto é uma loucura.
Vai-te lixar, pai, pensou ela. Estás a tentar matar-nos a todos. Por isso vai-
te lixar.
Hannah pegou na faca e pressionou-a sobre a barriga dilatada da rapariga.
Cristo. A mão dela tremeu. Ela estava a suar. Merda. Ela inspirou, tentou
não tossir. OK. Ela era capaz. Pensa no que sabes sobre anatomia, Hannah.
Concentra-te na tarefa que tens em mãos.
Claro que a tarefa em mãos significava cortar a barriga de uma grávida
moribunda, sem alívio da dor, matando-a certamente no processo. Mas
Peggy estava a morrer de qualquer forma, e a escolha era salvar uma vida. A
vida que tinha a melhor hipótese a longo prazo.
Ela pressionou com mais força; o sangue surgiu sob a faca. Peggy gemeu,
mas estava fraca. Um último suspiro. Hannah empurrou a faca para dentro
do estômago e deslizou-a com força através da barriga, logo abaixo do
umbigo. Um jato de sangue vermelho-vivo derramou através da ferida.
– Daniel – disse ela sob tensão. – Preciso que vás à pilha de corpos e lhes
retires a roupa interior para eu usar como panos. Pede à Cassie para te
ajudar.
– Está bem. E o Lucas?
Ela hesitou.
– Não lhe digas, a menos que seja necessário.
Daniel dirigiu-se à frente do autocarro. Hannah olhou de novo para a
incisão. Limpou parte do sangue com a mão, mas ainda havia mais. Também
lhe ocorreu que tinha acabado de esfregar o chão de uma casa de banho. Isto
não era de forma alguma um ambiente estéril para se ter um bebé. Mas que
escolha tinham eles?
Ela precisava de se concentrar. OK. Cortar a pele e os tecidos
subcutâneos. A camada seguinte era a fáscia, sobrepondo-se aos músculos
retos abdominais. Hannah inseriu a faca. Era afiada, mas não tanto como
um bisturi, e os músculos eram rijos. Ela sentiu novamente o calor
a atravessar-lhe o corpo, o suor a escorrer-lhe da testa. Mas ela não
conseguia parar. Tinha de fazer isto depressa.
– Trouxe-te a roupa interior.
Ela deu uma vista de olhos. Daniel tinha voltado, com Cassie.
Na realidade, Hannah provavelmente não precisaria dos panos. Mas achou
que era uma boa ideia manter Daniel ocupado.
– Obrigada – disse ela. – Deixem-na aí.
– Jesus – murmurou Cassie. – Não tinha isto no meu cartão de bingo
«Presos no Autocarro».
– Sim, nem eu – disse Hannah. Ela usou os dedos para afastar os
músculos retos. Agora, podia entrar na cavidade abdominal através do
peritoneu parietal… e sim. Aí estava: o útero. Aqui, seria normal ela
preocupar-se em como separar a bexiga, mas nesta situação a sobrevivência
ou a mutilação da mãe não era um problema. No entanto, prejudicar o feto
era.
– Quase lá – disse Hannah, lutando contra mais uma onda de tonturas e
náusea. Ela pressionou a faca para o interior do útero. Três camadas.
Camada exterior (perimétrio), camada muscular (miométrio) e camada
interior da mucosa (endométrio). Mais uma vez, não precisava de se
preocupar em danificar os vasos sanguíneos. Só precisava de retirar o feto.
Hannah cortou. O sangue quente jorrou, salpicando o rosto dela.
– Foda-se! – Ela ergueu a mão. – Pano.
Daniel entregou-lhe um par de boxers térmicos. Hannah usou-os para
limpar os olhos e a boca, mas ainda conseguia sentir o sabor metálico. Ela
olhou para baixo.
– Isso é…? – perguntou Daniel.
Era. Hannah podia ver o saco amniótico esvaziado e a forma
inconfundível do feto enrolado. Ela pôs a faca no chão e estendeu as mãos,
puxando o saco rasgado para o lado.
– Oh, Deus – murmurou Daniel.
Hannah colocou as mãos em volta do feto, mal se atrevendo a respirar.
Esta foi a parte mais difícil. Antes, ela podia apenas concentrar-se na
cirurgia. Mas agora estava a lidar com a vida. Uma vida minúscula e
delicada. Tão gentilmente quanto podia, puxou o bebé do abdómen
e levantou-o. Ela olhou de relance para Daniel.
– É uma menina.
Ela pôs o recém-nascido nas mãos de Daniel. Ele segurou a bebé como se
fosse feita de vidro.
– Só preciso de cortar a placenta – disse Hannah. Ela pegou na faca e
cortou através do tecido duro.
– Não é suposto a bebé chorar ou assim? – disse Cassie.
Ela estava certa. Hannah olhou para a bebé. Estaria a respirar?
– Aqui. – Hannah pegou num par de boxers mais limpos e usou-os para
limpar o muco do nariz e da boca minúsculos da bebé. Depois, ela esfregou-
lhe delicada mas firmemente o abdómen e o peito. Hannah sentiu uma
pequena sacudidela e a pequena bebé abriu a boca e soltou um gemido
saudável.
– Oh, que bom – disse Cassie. – Assim está melhor.
– Uma bebé – sussurrou Daniel. – Peggy, é a tua bebé.
Mas a irmã não respondeu. Hannah percebeu que já não conseguia ouvir
a respiração frenética da rapariga. A pele de Peggy estava fria e os olhos
estavam vidrados. Já não estava ali.
Daniel agachou-se e encostou a bebé ao peito da irmã.
– Peggy. – Ele pegou numa mão fria e colocou-a no corpo da bebé. – Ela é
linda, Peggy. Mesmo linda. Eu vou chamá-la Eva. Como tu sempre quiseste.
Sean para rapaz. Eva para rapariga. E ela também devia ter o teu nome,
certo? Eva Margaret.
A bebé voltou a chorar.
– Ela deve ter frio. Devias embrulhá-la – disse Hannah.
Daniel agarrou num colete térmico e envolveu-o cuidadosamente em
volta da bebé. Hannah olhou para Peggy. De repente, parecia obsceno deixá-
la tão exposta, com o estômago aberto, como se fosse um invólucro usado,
um recipiente sem mais importância.
Disparate sentimental, Hannah. Ela está morta.
Talvez. Mas ainda era uma jovem que merecia alguma dignidade. Hannah
pegou no único casaco sobresselente que conseguia ver e colocou-o sobre a
parte inferior do corpo de Peggy.
Eva gritou com mais força. Ansiosos gritos agudos.
– Achas que ela tem fome? – perguntou Daniel.
Possivelmente. Mas eles não tinham leite. Hannah tentou pensar, apesar
de a exaustão lhe pôr a cabeça em papa – o que se poderá dar aos bebés
quando não há leite materno ou leite em pó? Leite de vaca, mas também não
tinham nada disso. Tinha algo em mente. Um daqueles pedaços aleatórios
de informação que o cérebro apanha como se fosse uma penugem numa
camisola.
– Pedialyte – disse ela.
Cassie olhou para ela.
– Isso não é para os miúdos que têm diarreia?
– É para reidratar – respondeu Hannah. – Contém sais minerais.
– Tens algum? – perguntou Daniel.
– Não, mas o Ben tinha – disse ela. – Lembras-te, ele disse que tinha
Pedialyte na mala.
– Que está no porão da bagagem – acrescentou Cassie.
– Eu sei – disse Hannah mais impacientemente. – Mas talvez tenhamos
encontrado uma saída. O Lucas acedeu ao espaço por baixo da sanita. Há
um alçapão… – Ela fez uma pausa.
Lucas. Onde estava Lucas?
Cassie estava obviamente a pensar a mesma coisa.
– Onde está o nosso amo e senhor, já agora? – perguntou ela.
Hannah virou-se e olhou para o autocarro. Lucas deve ter ouvido
a agitação aqui em baixo e certamente também o choro da bebé.
– Não sei – murmurou ela.
Eles olharam uns para os outros. Hannah limpou o sangue das mãos,
levantou-se e começou a percorrer o autocarro. Cassie seguiu-a.
– Lucas? – Hannah chegou à casa de banho e espreitou lá para dentro.
Vazia.
Ela espreitou pelo buraco. O alçapão na lateral do autocarro estava aberto.
Entrou uma rajada de ar gelado.
Ela olhou para Cassie.
– Ele foi-se embora.
E havia outra coisa.
– Estás a ouvir isto? – perguntou Cassie.
Hannah ouvia.
O mesmo zumbido de antes. O helicóptero estava de volta.
E mais perto.
Muito mais perto.
As duas deslocaram-se ao longo do corredor até à frente do autocarro e
observaram através do para-brisas.
A sombra escura do helicóptero pairava no horizonte, crescendo cada vez
mais. O ruído das pás passou de um zumbido de zangão para um rugido
ensurdecedor.
– Eles sabem que estamos aqui – disse Hannah, levantando a sua voz.
– Não me digas, Sherlock!
Hannah olhou para cima. O helicóptero estava agora quase acima deles.
Suficientemente perto para ela distinguir um piloto e uma outra figura lá
dentro.
– Eles não podem aterrar – disse ela. – A floresta é muito densa
e a estrada é demasiado estreita.
– Então porque estão eles a pairar? – perguntou Cassie.
Boa pergunta. Porque não encontrar outro lugar para pousar e voltar a
pé? Tanto quanto os homens do helicóptero sabiam, ninguém no autocarro
ia a lado nenhum.
A menos que…
Algo se desenrolou do helicóptero.
– Merda – murmurou Hannah.
Uma escada.
– Eles não vão pousar – disse ela. – Vão mandar alguém aqui abaixo.
Cassie olhou para ela, de olhos arregalados.
– O que fazemos?
Uma figura de fato de neve verde do Departamento saiu do helicóptero
e preparou-se para descer a escada. Tinha uma arma pendurada às costas.
– Mexe-te! – gritou Hannah.
Elas voltaram para as traseiras do autocarro.
– Daniel? – gritou Hannah, lutando contra a tosse. – Precisamos de sair
daqui.
– Mas e a bebé?
– AGORA!
Hannah virou-se e empurrou Cassie para a casa de banho.
– Tens de rastejar até ao exterior.
Cassie não precisava que lhe dissessem duas vezes. Agachou-se
imediatamente e passou através da abertura retangular para o tanque de
retenção e subiu pelo alçapão com relativa facilidade. Mas ela era pequena
e elegante. Daniel caminhou desajeitadamente pelo autocarro, agarrando-se
à recém-nascida.
– Tu és o próximo – disse-lhe Hannah.
– E a Eva?
– Passa-a à Cassie.
– Não. – Ele abanou a cabeça. – Tu vais a seguir. Eu passo-te a Eva.
– Daniel…
– Vais ser mais rápida do que eu. Se alguém ficar para trás… não deves
ser tu.
Eles olharam um para o outro. Hannah olhou de volta para o autocarro. O
para-brisas explodiu com uma rajada de tiros. Botas pretas pesadas
surgiram através do buraco recortado.
– Merda.
Hannah agachou-se e enfiou-se pelo buraco. Era apertado na zona do
tanque, mas ela encolheu a barriga e conseguiu passar. Ergueu-se para fora
do alçapão e agachou-se sobre a lateral superior do autocarro. Cassie estava
mesmo ao seu lado, coxas afundadas no espesso monte de neve.
O ar gelado parecia fresco e delicioso. Mas Hannah não teve tempo para o
saborear. Ela enfiou de novo a cabeça através do alçapão e estendeu os
braços. Daniel passou-lhe a bebé minúscula. Hannah agarrou a recém-
nascida e gentilmente retirou-a para o exterior. A bebé agitou-se nos seus
braços e voltou a acalmar.
– Vamos lá – sibilou ela a Daniel.
Ela viu-o a escorregar pela abertura no chão e a tentar passar pelo tanque
de retenção. Mas ele era muito maior do que ela e Cassie, ou mesmo Lucas
(onde quer que ele estivesse, esse cabrão desertor e cobarde).
– Estou preso – gemeu Daniel.
– Faz força – insistiu Hannah. – Precisas de fazer força.
Ele fez força. O tanque de retenção rangeu. Depressa, pensou Hannah.
Depressa. O atirador estava lá dentro. Não demoraria muito até ele perceber
o que estava a acontecer.
– Vá lá – insistiu ela.
Daniel mexeu-se e encolheu-se.
– Pega nela – disse Hannah a Cassie, entregando Eva.
– Eu não sei…
– Pega. – Ela despejou a bebé nos braços dela. Cassie agarrou-a como se
fosse uma bomba.
Hannah agarrou os pulsos de Daniel e puxou. Ouviu-se um rangido.
Hannah puxou de novo, o mais forte que conseguiu. Alguma coisa cedeu. O
tanque de retenção libertou-se dos parafusos e tanto Daniel como o tanque
saíram disparados pelo alçapão numa mistura de água, desinfetante e
efluente. Hannah caiu para trás sobre a neve macia.
– Merda.
Muito literalmente. Mas Daniel conseguira sair. Infelizmente, não foi de
todo uma saída discreta.
– SCHEISSE! – amaldiçoou o atirador.
Alemão, pensou Hannah, algo a passar-lhe pela cabeça. Embora isso não
devesse ser surpreendente. O Departamento era uma operação global. E
agora não era o momento de se preocupar com a nacionalidade do seu
pretenso carrasco.
Ela levantou-se. A cara do atirador espreitou raivosamente através
do alçapão. Ele praguejou novamente e depois desapareceu. Não ia correr o
risco de ficar preso. Ele vai voltar para o autocarro, pensou Hannah. Para
sair pelo para-brisas.
Eles não tinham muito tempo. Hannah olhou para o bosque. Eram vários
metros, e eles estariam expostos, quer ao atirador quer ao helicóptero, que
ainda pairava, mas era a única chance deles.
– Precisamos de correr para a floresta – disse ela.
Daniel sentou-se, ofegante.
– É muito longe.
Cassie olhou para ela.
– Ele está certo. Não vamos conseguir.
– HALT!
Hannah virou-se. O atirador saltou da frente do autocarro e avançou na
direção deles.
Merda. Já é tarde de mais. O que fazer? Eles não tinham armas. Não
tinham onde se esconder. Hannah sentiu a frustração tomar conta de si e
superar o medo. Eles tinham chegado até aqui. Tinham escapado. Isto não
era justo, porra.
E então ela ouviu outra voz:
– VERZEIHUNG!
Uma figura apareceu de repente do bosque, saindo da sombra das árvores
onde devia ter estado escondida.
Lucas.
Ele ficou à vista do atirador e do helicóptero, o ar agitado a revolver-lhe a
roupa e a fazer voar os cabelos em torno da cara.
Quando o atirador se virou para ele, Lucas ergueu os braços num gesto de
rendição.
– Warte ab! Hören. Mein Name ist Lucas Myers. Ich arbeite für die
Department.
– Was tun Sie hier?
– Ich bin hier um sicherzustellen dass die Operation reibungslos abläuft. –
Ele bateu no pulso. – Du hast den Bus wegen mir gefunden.
O atirador parecia hesitante.
– O que está ele a dizer? – sussurrou Cassie, por cima da cabeça da bebé.
– Não tenho a certeza – disse Hannah. Ela sabia um pouco de alemão,
mas a esta distância, com as pás do helicóptero a rodopiar sobre eles, ela
pode estar enganada. – Acho que ele está a tentar convencê-los de que está
do lado deles.
– Vai arranjar maneira de o matarem – disse Daniel.
– Melhor ele do que nós – murmurou Cassie, ajustando Eva
desajeitadamente nos seus braços. – Podes agarrar nisto?
Daniel estendeu a mão e acariciou a cabeça de Eva.
– Cuida dela só mais um pouco.
– Não. Jesus. Porquê?
– Porque, se o Lucas morrer, estamos todos mortos. – Daniel pôs-se de
pé.
– O que estás a fazer? – murmurou Hannah.
Ele esboçou um pequeno sorriso.
– Eu aviso-te quando descobrir.
Depois, ele subiu para o autocarro meio enterrado e começou a rastejar ao
longo da lateral, agora virada para cima. A atenção do atirador ainda estava
focada em Lucas, e mesmo que o piloto do helicóptero conseguisse ver
Daniel, estava demasiado longe para comunicar com o seu colega.
– Warum sollte ich dir glauben? – perguntou o atirador a Lucas.
Hannah traduziu na sua cabeça: Porque deveria acreditar em ti?
– Erkundigen Sie sich beim Professor.
O atirador olhou fixamente para Lucas. Daniel avançou lentamente ao
longo da longa massa de metal do autocarro, mudando agora o rasto e
revelando o logótipo da Academia. Ele estava quase paralelo com o atirador,
olhando de cima para ele.
– Mein Befehl lautet. – O atirador levantou a sua arma. – Sie alle zu töten.
Keine Ausnahmen. Keine Überlebenden.
Não pode haver sobreviventes.
– Nein! – gritou Lucas.
Daniel atirou-se do autocarro, aterrou nas costas do atirador e fê-lo cair
por terra. A arma voou das suas mãos.
– Foda-se. – Cassie arquejou. – Aquilo deve doer.
O par lutou para trás e para a frente na neve, punhos em riste. Mas Daniel
tinha a vantagem do peso. Ele colocou-se sobre o atirador, prendendo os
seus braços com os joelhos. Depois esmurrou-o no rosto e na cabeça, uma e
outra vez, sangue jorrando sobre os seus punhos, até, finalmente, o corpo do
atirador deixar de responder.
Daniel agarrou na arma e levantou-se. O helicóptero ainda pairava sobre
eles. Daniel virou-se e disparou contra ele. Hannah ouviu o ricochete das
balas nas pás de metal. O piloto decidiu não arriscar. O helicóptero subiu até
ao céu, rodopiou e desapareceu nas nuvens distantes, com o reflexo da luz
do Sol a brilhar nas pás.
Daniel voltou-se para a figura inconsciente no chão.
Não, pensou Hannah. Ele já não é uma ameaça. Não tens de o matar.
Daniel premiu o gatilho. Uma e outra vez. O corpo do atirador foi
perfurado pelas balas, tingindo a neve de vermelho. Hannah encolheu-se.
Daniel baixou a arma.
Lucas caminhou sobre a neve ensanguentada na sua direção.
– Salvaste-me a vida. Obrigado, meu amigo. – Ele estendeu a sua mão.
Daniel olhou para a oferenda de paz, virou as costas e afastou-se. Sentou-
se bruscamente na neve, a olhar para as suas botas. Parecia que ia vomitar
outra vez. Lucas encolheu os ombros e aproximou-se do corpo do atirador
morto.
– Espera aqui – disse Hannah a Cassie.
Cassie olhou para ela.
– O quê? Estás literalmente a deixar-me a segurar a merda da bebé?
Hannah atravessou a neve até Lucas. Ele estava de cócoras, a revistar os
bolsos do atirador. Ele olhou para cima, enquanto Hannah se aproximava, e
mostrou um pequeno objeto cinzento, com fios que saíam de uma das
pontas.
– Bomba – disse ele. – Vocês tinham razão. A intenção era matar-nos e
destruir as provas.
– Não devias ter cuidado com isso?
– Não está armadilhada. Olha. – Lucas apontou para um pequeno botão.
– Acho que isto programa um temporizador. Se eu carregar aqui…
O dedo dele pairou.
– Larga isso – disse Hannah agressivamente.
Lucas sorriu e colocou despreocupadamente o aparelho no seu próprio
bolso.
Hannah olhou para ele.
– Abandonaste-nos.
Lucas franziu o sobrolho.
– Não. Saí do autocarro para dar uma vista de olhos e investigar o porão
da bagagem. Quando ouvi o helicóptero, escondi-me no bosque.
– Como sabias que o atirador era alemão? – perguntou ela.
– Ouvi-o falar.
Desde a floresta?
– O que é que lhe disseste?
– Mal me lembro. Estava só a tentar empatá-lo. Porquê?
Hannah olhava-o friamente.
– O meu alemão não é muito bom – disse ela –, aber für mich hörte es sich
so an als hättest du ihnen erzählt dass du für die Abteilung arbeitest. Für
meinen Vater?
Lucas olhou para ela.
– Disseste que trabalhas para o Departamento, para o meu pai – repetiu
Hannah. – Isso é verdade?
– Estás errada – disse ele.
– A sério?
– Sim. – Lucas levantou-se e sorriu com vivacidade. – O teu alemão é
excelente.
– Ei! – Cassie caminhou através da neve, ainda segurando Eva. – Será que
alguém, por favor, me pode tirar isto das mãos?
Lucas virou-se e pestanejou.
– Isso é… um bebé?
Cassie rolou os olhos.
– Bem, não é o Cocas, o Sapo, e não é meu, antes que perguntes.
– A irmã do Daniel estava grávida – disse Hannah. – Enquanto estavas
aqui fora, eu fiz uma cesariana de emergência.
Lucas olhou para ela, absorvendo a informação. Mas nada o abalava
durante muito tempo.
– Um bebé é um fardo desnecessário.
– O nome dela é Eva. – Daniel levantou-se. – E ela não é um fardo.
É minha sobrinha. – Ele ergueu a arma.
Lucas olhou-o com atenção.
– Muito bem. Nesse caso, o tempo urge ainda mais. Eu já revistei
a bagagem, retirei tudo o que é útil. Devíamos ir para o bosque,
distanciarmo-nos ao máximo do autocarro. Agora o Departamento sabe que
estamos vivos. Isso não abona em nosso favor. Isso… – ele fez um gesto na
direção da bebé – vai atrasar-nos ainda mais.
Ele virou-se e caminhou de volta para o porão da bagagem.
Daniel colocou a arma sobre o ombro e estendeu os braços para Eva.
Cassie entregou a bebé. Daniel embalou-a gentilmente.
– Não gostamos mesmo daquele cabrão, pois não, Eva?
– Que querido – disse Cassie. Ela virou-se para Hannah. – O que disseste
ao Lucas?
– Nada de mais. – Hannah seguiu-o com os olhos, a franzir o sobrolho. –
Estava só a certificar-me de que nos entendíamos.
Meg

Todos escondemos alguma coisa.


Isto despertou-a do seu sono. Como um soco certeiro de lado. Um soco
certeiro na mente.
O polícia.
Sean tinha chamado a Paul/Mark «o polícia». Antes, sempre lhe tinha
chamado «o tipo da segurança». Mas, durante a discussão, ele tinha dito:
«Talvez tenha sido eu a matar o polícia.» Talvez tenha sido apenas uma
forma de dizer. Eles tinham falado sobre a possibilidade de Paul/Mark ser
um ex-polícia. Mas só ela sabia que era. E Sean tinha-o dito com toda
a certeza. Teria Sean conhecido Paul? Teria ele mentido?
Havia outra coisa a pairar na mente dela. A fita preta sob o banco. Isso
incomodava-a. Da mesma forma que quando ela era polícia. Coisas que
estavam fora do contexto. Foi isso que lhe ensinaram a procurar na cena de
um crime. Coisas que estavam erradas, que não se enquadravam na
narrativa. A fita preta pareceu-lhe errada. Porque é que aquele pedaço tinha
ficado preso debaixo do banco? Teria sido usada para prender algo? Algo
que alguém queria escondido, até ser preciso.
Como uma faca.
Isso explicaria como é que tinha ido lá parar.
Tinham sido todos despidos. Revistados. Uma faca não teria passado
despercebida.
Mas se alguém tivesse algum conhecimento privilegiado, talvez até um
funcionário descontente do Departamento, que conseguisse fazer passar a
faca para o interior do teleférico antes de embarcarem, então isso faria mais
sentido.
Isso também significava que o crime foi premeditado. Tinha sido
planeado. Pensado. Talvez até orquestrado com outra pessoa. O assassino
sabia que Paul estaria a bordo. Tinha de impedi-lo de chegar ao Retiro.
Tinham sido todos trancados nos seus quartos quando chegaram às
instalações. Não havia maneira de chegar até ele antes. Mas se o assassino
soubesse o que lhes ia acontecer, podia ter fingido estar drogado e, enquanto
todos os outros estavam inconscientes, esfaqueou Paul.
Mas e a arma? Não fazia sentido. Tinha de haver uma ligação, mas ela não
conseguia perceber qual. Ou quem? Karl não lhe parecia o tipo de criminoso
capaz de engendrar um homicídio como este. A não ser que ela o tivesse
subestimado. Ou talvez ele estivesse inocente e o assassino ainda estivesse a
bordo.
Meg sentou-se e retirou-se lentamente do grupo no chão.
Imediatamente, o seu corpo sentiu a falta do calor partilhado. Sarah
estava deitada, em posição fetal. Sean estava deitado atrás dela, em concha.
Quase íntimo.
Não se imaginaria que fosse possível dormir com este frio, mas a falta de
comida e de água estava a esgotá-los. Tornando-os preguiçosos. Os corpos
estavam a desligar-se, tentando conservar energia para as funções mais
básicas, como se estivessem em hibernação. Provavelmente era por isso que
o seu raciocínio parecia mais dificultado do que o normal.
Ela balançou os braços de um lado para o outro enquanto atravessava a
cabina. Os dedos dela formigavam. Não conseguia sentir os pés mesmo com
as meias grossas e as botas de neve. O teleférico rangia, mas não balançava
tanto como antes. A tempestade tinha abrandado, embora a temperatura
não estivesse a subir. A sua respiração formava no ar figuras
fantasmagóricas. Sinal de vida, pensou Meg. Apesar de, depois de Lily, ela se
sentir mais morta do que viva. Um pé neste mundo. Um pé já no outro.
Ela caminhou até ao vidro, observando o céu escuro da noite que acabava
de cair. Ao longe, ela conseguia ver pitadas de pequenas estrelas. Planetas no
seu último suspiro. Literalmente, uma luz moribunda. Seria assim que o
mundo deles ficaria quando finalmente chegasse ao fim? Outrora, Meg tinha
pensado que ficaria feliz por ver o mundo acabar. Porque deveriam as
pessoas continuar a viver as suas vidas quando Lily não tinha mais esse
privilégio? Porque deveriam as coisas continuar como antes? Mas, agora, ela
só se sentia triste com a facilidade com que a raça humana tinha sucumbido.
Dez anos. Foi o que bastou para que a sociedade desmoronasse. Para que
o vírus devastasse o globo. Para os motins, as guerras, o ódio. Para que os
infetados se tornassem párias. Para que as quintas fossem aceites, fizessem
parte da normalidade. Numa luta contra um inimigo em constante mutação,
há que fazer o que é necessário. Tinha de haver sacrifícios. E alguns tinham
de ser humanos. Ou quase humanos.
Eles não são como nós. Os infetados. Os Whistlers. A desumanização tinha
sido gradual, mas deliberada. O plano baseava-se no medo. Tornava mais
fácil esquecer que os Whistlers já tinham sido como nós. Que tiveram o azar
de ser infetados. Ainda mais azar por terem sobrevivido. Estamos sempre
mais perto do que pensamos do limite, pensou Meg. Todos os dias, estamos a
roçar o precipício. Só nunca nos atrevemos a olhar para baixo.
Ela sentiu os olhos marejados de lágrimas. Porque estava ela ainda aqui?
Porquê prolongar isto? Se a missão dela era morrer, porque não fazê-lo
agora mesmo? Abrir o alçapão, sair e deixar-se cair. Um mergulho para a
neve gelada lá em baixo. Seria tão fácil. Quase demasiado fácil.
Ela ouviu movimento atrás de si e virou-se. Sarah estava sentada. Max e
Sean permaneciam em posição fetal com os seus fatos.
– Olá – disse Meg de forma neutra.
Sarah levantou-se e caminhou até ela. Ela esfregou os braços, esticou os
membros. O rosto dela parecia absorto, lábios rachados, olheiras. Raios,
pensou Meg, provavelmente ela também não estaria propriamente uma obra
de arte neste momento.
– Então, mais uma noite a chegar – disse Sarah.
– Sim.
– Ainda estás a planear fazer amanhã o que disseste? – Meg olhou para
trás através do vidro.
– Não sei.
– Não é preciso. Quero dizer, provavelmente é inútil, de qualquer
maneira.
A voz dela era monocórdica. Meg reconhecia esse tom. Derrotada. Era
como ela se tinha sentido depois de Lily. A esperança tinha-se esvaído.
Agarrava-se a ela por um tempo. Mas a esperança era como a areia. Quanto
mais se agarrava, mais ela se esvaía pelos dedos.
Meg percebia como as pessoas podiam morrer de desgosto ou de coração
partido, ou como os idosos podiam simplesmente definhar. Não
compreendemos, nenhum de nós, o quanto a nossa existência depende da
esperança e do propósito, da promessa de um novo dia. Tirem-nos isso e
somos apenas autómatos, vivendo ao sabor da maré até morrermos.
Mas ela não disse isso. Porque, por mais que não gostasse de Sarah, não
conseguia ser cruel agora.
– A tempestade amainou – disse ela. – Ainda há a possibilidade de as
autoridades terem estado à espera que o tempo melhorasse para…
– Não – disse Sarah. – Não precisas de ser condescendente comigo.
– Está bem.
– Eu sei que não gostas de mim.
Meg não respondeu.
– Achas que sou uma fraca. Um problema. Uma idiota estúpida
e histérica.
– Acho que estás assustada – disse Meg. – Estamos todos.
– Lá estás tu outra vez.
– Tudo bem. – Meg suspirou. – Não. Não gosto de ti. Melhor?
– Sim.
Silêncio. Ambas olhavam pela janela. Sarah fungou.
– Eu matei um homem.
Meg virou-se para olhar para ela. Os olhos de Sarah estavam fixos
no horizonte, a expressão desolada.
– Sim – disse Meg. – Mataste.
– Não foi minha intenção.
– Se tu o dizes.
– Eu… Eu não sei o que pretendia fazer. Pensei que estava a tentar salvá-
lo, mas… não sei. Talvez quisesse empurrá-lo.
Confissão. Neste momento, Meg não tinha energia para isto. Ela não era
um padre. Mas a culpa é um furúnculo feio. É preciso lancetá-lo às vezes,
deixar sair o veneno.
– Às vezes – disse ela –, fazemos as coisas por raiva ou medo. Como
agente da polícia, eu vi muito disso. A maioria das pessoas que matam não
são assassinas. Só estão assustadas, zangadas. Quase todas elas se
arrependem.
Sarah acenou devagar, a remexer na maldita cruz.
– Tu não acreditas em Deus, pois não?
– Nem por isso.
– Eu costumava ser como tu.
Meg duvidava, mas deixou a mulher continuar.
– Quando tinha vinte e tal anos, bebia, tomava drogas, dormia com todos.
A minha mãe teve-me muito nova e não fez as melhores escolhas na vida,
nem com os homens. Eu tinha catorze anos na primeira vez que fugi de casa,
depois de o último namorado dela me tentar apalpar uma noite. Não me
interpretes mal, ela expulsou-o assim que eu lhe contei. Mas havia sempre
outro namorado, alguém para lhe dar dinheiro… não foi a educação mais
estável.
Meg acenou com a cabeça. A mãe dela tinha sido mãe solteira, mas era
forte, resiliente, trabalhadora. Ela tinha morrido quando Meg tinha apenas
sete anos. Atropelamento e fuga. O condutor cumpriu apenas doze meses na
prisão. Ele era branco, da classe média, de uma «boa família». Um jovem
com «toda a sua vida pela frente», o juiz teve a audácia de dizer. Como se a
mãe dela não tivesse. Como se esse assassino, que tinha deixado a mulher
mais maravilhosa que ela já conheceu caída no meio da rua como se fosse
lixo, tivesse mais valor por causa da cor da sua pele.
Sarah ainda estava a falar.
– Então, meti-me em muitos sarilhos e um dia tive uma overdose. Devia
ter morrido. Sei que parece piroso, mas vi uma luz. E depois ouvi uma voz a
dizer-me para voltar para trás.
Meg tentou não se rir. Impediu-se a si mesma de dizer que os especialistas
médicos acreditavam que a luz que os moribundos viam era simplesmente
os seus cérebros a desligar.
Sarah continuou.
– No dia seguinte entrei nos AA, aceitei Deus e comecei a minha
recuperação.
– Ainda bem para ti – disse Meg, porque era. O vício era uma doença e
nem todos conseguiam livrar-se daquele diabo nas suas costas.
– Eu fiz formação como professora. A minha mãe tinha muito orgulho
em mim. Até comprámos uma casa juntas.
Meg olhou para ela com curiosidade.
– Então, se conseguiste o teu final feliz, porque estás aqui?
O rosto de Sarah fechou-se.
– A minha mãe ficou doente. Não com o vírus, cancro. Mas tu sabes como
é tentar fazer o tratamento. Os hospitais estão a rebentar pelas costuras.
Todas as coisas a desmoronarem-se.
Sim, pensou Meg. Ela sabia.
– Exceto se tiveres dinheiro, se puderes pagar, aí safas-te. Então, quando
os homens do Departamento vieram pedir voluntários para as experiências,
bem, sabes que eles pagam se fores voluntária?
Meg sabia. Era uma quantia considerável. Significou pouco para ela, mas
para muitas pessoas era um incentivo.
– E ouvi dizer que nos tratariam bem enquanto lá estivéssemos – disse
Sarah. – Um bom quarto. Comida. Instalações: ginásio, piscina, um spa. Se
vou morrer pela ciência, porque não fazê-lo em grande estilo?
– Nem Deus negaria um dia de spa a uma rapariga.
Um sorriso pequeno e amargo.
– Verdade. E, se eu não sobreviver, o dinheiro vai para a minha mãe, para
os tratamentos dela.
Meg engoliu em seco. Ela tinha má impressão de Sarah, ainda não podia
dizer que gostava dela. Mas toda a gente tinha as suas razões para estar aqui.
– Isso é bom – disse ela.
– Será? Se morrermos aqui, ela não vai receber nada. Terá sido tudo em
vão.
– Nós não vamos morrer aqui – disse Meg firmemente. – Nós vamos
safar-nos.
Ela sentiu movimento atrás de si e virou-se. Sean estava acordado,
a esfregar os olhos. O capuz dele tinha caído para trás. Em apenas dois dias,
o seu cabelo tinha crescido e a barba era mais espessa.
– Bela conversa motivacional – disse ele.
– Estou a falar a sério.
– Sim. – Os olhos azuis dele foram ao encontro dos dela. – Eu sei que
estás.
Ele pôs-se de pé e esticou-se. Estremeceu logo em seguida.
– Cristo, está frio. Devem estar menos cinco graus.
– Provavelmente.
– Que horas achas que são? – perguntou Sarah.
Meg olhou para o céu. Tons de cinza, salpicado por tiras de nuvens
esfarrapadas que escondiam um pedaço pálido da Lua.
– Cinco, seis horas, talvez?
Era difícil de dizer sem os seus auxílios habituais. Relógios e telemóveis.
– Preciso de mijar – murmurou Sean. – Com licença, senhoras.
Ele caminhou até ao alçapão, dobrou-se e puxou-o para o abrir. Meg e
Sarah desviaram o olhar. Mas não antes de Meg o ver abrir o fato de neve,
revelando novamente a tatuagem no peito. A menina bonita de cabelo
escuro comprido. Meg franziu o sobrolho. Porque parecia ela tão familiar?
Quem seria: uma amante, irmã, filha? Depois, quando Sean se agachou, ela
desviou os olhos.
O som da urina também lembrou Meg de que ela precisava de ir. Ótimo.
Botas de neve molhadas de urina ou chão alagado de urina. Sean correu o
fecho novamente e fechou o alçapão.
Uma rajada de ar gelado entrou na cabina. Meg tremeu. Todos os três
bateram os pés no chão e expiraram o ar frio. Max ainda estava deitado,
enrolado no chão. Meg olhou para ele. Ele não se tinha mexido. E agora ela
reparou noutra coisa.
– Sean – disse ela.
– O que foi?
– O Max.
Ele seguiu o olhar dela e franziu o sobrolho. Depois ela viu que ele
percebeu.
Não há bafo de ar gelado.
– Merda. – Sean agachou-se ao lado de Max e gentilmente abanou o seu
ombro.
– O que se passa? – perguntou Sarah. – Ele está bem?
Sean levantou o pulso não magoado de Max e verificou se tinha pulsação.
Depois puxou-lhe o capuz para trás.
Sarah reprimiu um arquejo. Meg sentiu o coração apertado. Os olhos de
Max estavam semicerrados e já enevoados, a pele estava branca como a cal e
os lábios azuis.
Sean voltou-se para eles, com a expressão grave. Ele não precisava de o
dizer, mas disse.
– Ele está morto.
Carter

Ele olhou para o rosto dela. O seu rosto perfeito e adorável. Nada como o
dele, mesmo antes do acidente.
Ela tinha conseguido mais do que a sua quota-parte dos bons genes. Mas
ele nunca se tinha importado. Tinha-a amado sem precedentes. De forma
protetora. Teria morrido por ela. Só que ainda aqui estava. Ainda vivo.
Enquanto ela…
– Carter?
Caren estava à porta. Carter mexeu-se rapidamente para guardar
a fotografia que normalmente guardava bem escondida. Mas era desajeitado,
e a foto caiu no chão, pousando perto dos pés de Caren.
Ela curvou-se e agarrou-a, olhando para a fotografia.
– Bonita. Namorada?
– Não. Irmã. – Ele estendeu a mão, lutando contra a vontade de a arrancar
das suas unhas perfeitamente arranjadas e pintadas.
Ela entregou a fotografia, com um ligeiro franzir do sobrolho.
– Pensei que não tinhas família.
– Não tenho. Ela está… morta.
– Oh. Sinto muito.
– Porquê? Tu não a mataste. – Ele enfiou a foto no bolso, com a intenção
de voltar a colocá-la no seu esconderijo mais tarde.
– Verdade. Mas ainda assim lamento que esteja morta. O que aconteceu?
Estava na ponta da sua língua responder-lhe que se metesse na sua vida.
Caren nunca antes tinha manifestado qualquer interesse na vida de Carter e
eles tinham conseguido passar três anos aqui sem partilhar nenhuma
confidência, então porquê começar agora?
Mas, é claro, ele sabia. Provavelmente todos eles iam morrer hoje. Isso
pode pesar na consciência. A proximidade da morte faz-nos falar de mais,
entre outras coisas.
Ele engoliu em seco.
– Tivemos um acidente… era suposto fugirmos para um lugar seguro. –
Ele fez uma pausa, e de repente conseguiu ver tudo de novo. O sangue, a
faca. Ele abstraiu-se. – Não resultou. Ela não se safou.
– Isso é duro.
Ele acenou com a cabeça.
– Foi há muito tempo. E tu?
– Eu o quê?
– Família?
– Eu tinha… tenho… um pai, irmão e sobrinha. Era suposto eles terem
ido para o Norte, para um lugar que o meu pai comprou há uns tempos. Um
lugar seguro. – Ela encolheu os ombros. – Não sei se lá chegaram.
– Porque é que não foste com eles?
– E perdia isto tudo?
Ele ergueu as mãos.
– Tens razão. Não tenho nada a ver com isso.
Ela suspirou.
– Muito bem. Eu tenho a doença de Huntington. Provavelmente só me
restam uns cinco a dez bons anos. Pensei que, se me voluntariasse para um
ensaio, pelo menos teria algum controlo sobre a minha morte.
– Que merda.
– Sim.
Carter abriu a boca para dizer outra coisa, depois percebeu que já não lhe
restavam mais clichés.
– Então – disse ele. – Querias alguma coisa?
Ela levantou uma sobrancelha.
– Uma queca antes de morrermos os dois?
Ele olhou para ela. Ela sorriu.
– Estou a brincar.
– Claro.
A expressão dela ensombrou-se.
– Não por causa da… – Ela fez um gesto vago na direção do rosto. –
Quero dizer, não somos propriamente amigos coloridos, ou amigos,
sequer…
– Eu sei. Eu percebi. Está tudo bem.
Carter pensava que já tinha ultrapassado o embaraço ou a amargura em
relação ao seu rosto, mas não, ainda podia doer, mesmo que Caren não
tivesse intenção.
Ela olhou para trás e depois entrou no quarto dele, empurrando a porta.
– OK. – Ela olhou para ele com firmeza. – É assim… Não confio em ti,
Carter.
Um bom começo. Ele esperava mesmo que esta conversa não acabasse
com ele a ter de matá-la.
– Espero que haja um «mas» – disse ele.
– Mas – continuou ela –, ainda confio menos no Miles e no Welland.
– Bem, temos algo em comum.
Um sorriso fugaz.
– Não tinhas muito a ver com o Jackson.
– Pensei que era mais o Jackson que não tinha muito a ver com ninguém.
– Eu costumava falar com ele às vezes.
– OK.
– O Jackson era antivacinas.
– O quê? Então que merda estava ele a fazer aqui?
– Como muitos de nós, acho que ele não teve escolha… – Ela olhou
atentamente para Carter porque ambos sabiam que a presença dele aqui se
devia a circunstâncias diferentes das dos outros.
– Pois.
– De qualquer forma, ele disse-me que não estava a tomar as suas doses.
Uma vez que todos eles sabiam manusear razoavelmente uma agulha,
Miles tinha deixado que eles próprios administrassem o plasma. Ele não
tinha razões para suspeitar que eles não iriam obedecer.
– Foda-se – disse Carter. – Sempre soubeste disto?
– Não. Isto foi mesmo antes de ele desaparecer.
– E sabias que ele ia fugir?
– Não. Mas tenho a sensação de que ele queria sair. Por que outra razão
ele confiaria em mim quando eu poderia ter ido diretamente falar com o
Miles?
– Porque não o fizeste?
– Não queria dar ao Jackson uma sentença de morte. – Ela hesitou, depois
disse: – Como à Anya.
Carter olhou para ela.
– Sabes da Anya?
– Eu não sei exatamente o que aconteceu. Tu sabes?
Anya. Loira, linda, zangada Anya. Apenas vinte e seis anos. Ela tinha
pertencido ao grupo original, mas não concordava em manter o pessoal
infetado como reservas. Ela tinha discutido constantemente com Miles
sobre isso. Disse-lhe que não era ético, que eles não eram melhores que o
professor. Numa noite ela tinha tentado libertar os Whistlers das câmaras.
Não tinha conseguido, mas tinha-se infetado a ela própria. Depois tinha
tentado fugir.
Anya estava morta agora. Provavelmente.
Carter ainda se lembrava do sangue dela espalhado na neve branca e pura,
brilhando à luz da pálida Lua. O peso da arma na sua mão. Miles a bater-lhe
no ombro: «Muito bem. Era necessário. Agora, leva-a para o incinerador.»
Carter tinha feito o que lhe mandaram. O que era necessário. Tal como
tinha feito o que lhe mandaram quando Miles o instruiu que matasse Anya.
Esse tinha sido o preço de ser salvo por Miles. Mas quando Carter voltara
para remover o corpo de Anya, com roupas protetoras e com o trenó, ela
tinha desaparecido. Havia um rasto de sangue na direção da floresta e
desaparecia. Miles ficou zangado, mas considerou mais perigoso tentar
encontrá-la. Agora, ninguém falava de Anya.
Carter abanou a cabeça.
– Não – disse ele. – Não faço ideia.
Caren acenou com a cabeça.
– Acho que o Jackson está morto de qualquer maneira, por isso não
importa. Mas a questão é que ele não tinha absolutamente razão nenhuma
para roubar plasma. Ele era contra a extração de plasma. As quintas. Tudo
isso.
Carter engoliu em seco.
– Às vezes as pessoas fazem coisas por outras razões. Talvez ele estivesse a
enviar tudo para outra pessoa?
– Talvez, mas não faz sentido. Além disso, havia alguém além de mim e
do Miles com acesso à cave.
Ele ficou tenso.
– Quem?
– O Welland.
– O Welland? Tens a certeza?
Ela acenou com a cabeça.
– Eu vi-o.
– Quando?
Parecia um pouco acanhada.
– Quando estava lá em baixo.
Cristo. Carter pensava que a cave era um forte, um que só ele tinha
invadido. Afinal tinha mais gente que o velho Piccadilly Circus.
– O que estavas a fazer lá em baixo? – perguntou ele.
– Só a verificar.
– O quê?
– Que o Miles está a ser honesto connosco.
Boa sorte com isso, pensou Carter.
– Seja como for – continuou Caren –, eu estava lá em baixo, no escritório,
e ouvi o elevador. Pensei que era o Miles e sabia que ele me mataria se me
encontrasse.
– Nem sequer metaforicamente.
– Então entrei em pânico e escondi-me debaixo da secretária. Ouvi passos
e alguém entrou, mas não foi o Miles. Foi o Welland.
– O que é que ele estava a fazer?
– Eu não sei. Só consegui ver a parte de baixo. Ele andou por lá, depois
voltou a sair. Arrastei-me por debaixo da secretária e espreitei pela porta.
Vi-o entrar nas câmaras de isolamento.
– O quê? Mas só o Miles tem o código para as câmaras de isolamento.
– Foi o que eu pensei. Mas o Welland sem dúvida que entrou.
– Poderia estar a fazer um favor ao Miles?
Um pequeno encolher de ombros.
– Eu não sei. Não fiquei à espera. Corri para o elevador e saí de lá.
Carter franziu o sobrolho. Poderia Miles ter confiado a Welland o seu
código e mandá-lo fazer um recado secreto? Não parecia provável.
Pessoalmente, ele não confiaria em Welland para lhe encher a merda da
banheira.
– Devemos contar ao Miles? – perguntou Caren.
Ele ponderou. Se Miles não sabia, então Welland estava em apuros. Algo
que não incomodava de todo Carter. Por outro lado, se Miles não queria que
eles soubessem, então eles estavam em grandes sarilhos. Menos vantajoso.
– Vamos guardar isto para nós por agora – disse ele. – Se… quando
voltarmos, podemos confrontar o Welland.
Ela acenou com a cabeça.
– De acordo.
Olharam um para o outro e ambos esboçaram um sorriso hirto. Parecia
estranho.
– Certo – disse Caren. – Vemo-nos lá em baixo.
– Sim.
Ela virou-se. Ele deu por si a dizer:
– Caren?
– Sim?
Ele engoliu em seco.
– Espero que a tua família esteja a salvo.
– Obrigada.
Ela abriu a porta e desapareceu no corredor.
Carter esperou um momento. Depois levantou-se e fechou a porta
novamente.
Mas que merda se passava aqui? Jackson ser antivacinas fazia sentido,
tendo em conta as mensagens no telemóvel dele. Porém, Welland ter acesso
às câmaras? Não. Isso era mau sinal. Carter não era tão ingénuo a ponto de
acreditar que ele e Miles eram amigos. Mas ele sabia que se Miles precisasse
de algo feito secretamente, então Carter seria o primeiro que ele abordaria.
Welland era apenas o lacaio que limpava o servicinho.
Então, o que andava Welland a tramar? Como é que ele conseguiu o passe
para a cave e o código para as câmaras? E que mais andaria aquele merdas a
esconder? Obviamente, todos aqui estavam a esconder alguma coisa. A
única diferença era o tamanho do segredo e a profundidade da mentira. Mas
Carter começava a suspeitar de que havia aqui uma mentira que ia muito
fundo. Até ao coração da existência deles no Retiro.
A questão era: o que é que isso significava para ele?
Carter esperou muito tempo para chegar até aqui, foi paciente. E agora,
ele sentia, estava a dar os seus últimos passos.
Ele retirou a foto de novo. Escrevinhado no verso numa letra desbotada,
quase ilegível, estavam dois nomes. Daniel e Peggy. Academia Invicta. Ele
não precisava da foto, pensou Carter. Ele carregava o rosto dela junto ao
coração. E, se algo lhe acontecesse, ele não podia deixá-la aqui para ser
encontrada. Não por Miles. Não por Quinn. Não por ninguém. Porque, se o
fizessem, isso poderia levá-los até ela. A pessoa para quem ele enviava os
embrulhos. A única ligação que lhe restava à sua irmã.
A filha dela. A sobrinha dele.
Carter tirou o isqueiro, aproximou-o do canto da foto e viu as chamas
comerem o papel macio e amassado.
A bela rapariga de cabelo castanho com um sorriso flamejante enrolou-se
e morreu novamente.
Carter deixou cair as lágrimas, extinguindo as chamas.
Hannah

Eles caminharam através da floresta escura, aquele estranho pequeno


grupo.
Lucas liderava, Hannah seguia-o, depois Cassie e Daniel na retaguarda,
acariciando ternamente a bebé. Ele tinha criado um porta-bebés a partir de
uma camisola retirada do porão e enfiou a recém-nascida no seu interior,
encostada ao seu peito. Colocou o seu casaco por cima para a aquecer. A
bebé adormeceu, embalada pelo movimento.
Lucas tinha sido metódico na revista das mochilas do porão, todas as
onze. Ele tinha retirado comida, água e algum leite (que também poderia
servir para a bebé, se fosse necessário). Também tinha encontrado três
lanternas, dois isqueiros e vários telemóveis. Todos sem bateria, é claro.
Ninguém tinha pensado em desligar o telemóvel quando o entregara,
presumindo que o teria de volta em poucas horas. Era uma coisa em que
nenhum dos sobreviventes tinha pensado. Mesmo que conseguissem ter
alguma rede, sem eletricidade para carregar os telemóveis, seriam inúteis.
Agora havia mais roupa, claro. Mais uma vez, Lucas tinha separado o
essencial e dividido igualmente entre quatro das mochilas maiores. Hannah
encontrou o Pedialyte. Seis saquetas. Seria o suficiente para a bebé, por
agora. Havia também alguns cartões e dinheiro nos pertences. Se
conseguissem chegar a uma cidade, poderiam comprar mantimentos. Isso se
não morressem congelados antes disso, ou fossem comidos por animais
selvagens, ou mortos pelo Departamento. Ou não se matassem uns aos
outros.
A floresta era escura e densa. As copas verdes das árvores ocultavam a
pouca luz do dia que restava. Como as lanternas não penetravam mais do
que alguns metros à frente, então eles caminhavam cuidadosamente,
conscientes da necessidade de se afastarem do autocarro, mas também
cautelosos para não tropeçarem ou torcerem um tornozelo, o que os
atrasaria muito mais. Não havia um caminho, nem mesmo um trilho, por
isso eles fintavam os troncos maciços das árvores, atravessando os arbustos e
trepando os pedaços caídos dos pinheiros antigos.
Era difícil avaliar se estavam a ir na direção certa ou mesmo em qualquer
direção. Até podiam estar a andar em círculos. Lucas parecia estar a verificar
o seu relógio com bastante frequência. Talvez estivesse a tentar usá-lo como
uma bússola ou talvez só a verificar há quanto tempo estavam a andar.
Pareciam dias, mas provavelmente só tinha passado uma hora. Eles
estavam exaustos devido ao choque e à falta de comida. O peito de Hannah
estava comprimido e as inspirações eram curtas. Sob as camadas de roupa, e
apesar do frio congelante, ela sentia o suor a encharcar o seu corpo. Sentia a
cabeça pesada e confusa.
Ocorreu-lhe que ela não sobreviveria. E a perceção não foi tão
assustadora como ela sempre imaginara. Em vez disso, veio com resignação
e um alívio vago. Ela não teria de fazer isto por muito mais tempo. Em
breve, poderia descansar.
– Achas que devíamos parar? – perguntou Cassie. – Tentar construir um
abrigo ou algo assim?
– Ainda não – respondeu Lucas. – Devíamos continuar enquanto temos
energia.
– Pois, bem, odeio ter de te dizer, mas a minha energia está a esgotar-se.
Lucas olhou para trás.
– Esta não é uma zona adequada para fazer um acampamento. Não há
espaço. Precisamos de encontrar uma clareira. Vamos continuar a andar.
– Tudo bem – resmungou Cassie.
Eles continuaram a arrastar-se, quase em silêncio, sendo os únicos sons
uma respiração ofegante e os murmúrios da noite. Uma coruja distante piou.
O matagal fervilhava com coisas que se agitam na vida noturna. Hannah
tremia, mas concentrava-se em pôr um pé à frente do outro.
Ela não tinha a certeza de quanto tempo tinha passado quando reparou
que a copa das árvores estava a começar a rarear. Havia mais luz a passar
através dos ramos. Na frente deles, a floresta abriu-se para uma pequena
clareira. Mas não apenas uma clareira. Emoldurada pelas árvores, coberta de
musgo e fungos, estava a forma distinta de um velho barracão de caçadores.
– Aquilo é… uma casa? – perguntou Daniel.
– Parece mais a cabana de uma bruxa – disse Cassie.
Ela não estava errada. O velho barracão parecia mesmo saído de um
conto de fadas de Grimm. Hannah sabia que havia barracões abandonados
espalhados por estas florestas. Alguns tinham sido construídos por
caçadores, outros por pessoas que tentaram sobreviver na época do primeiro
apocalipse viral.
Este devia estar abandonado há alguns anos. As janelas tinham
desaparecido todas. A madeira estava apodrecida e havia ramos de árvore a
atravessar o telhado e a chaminé inclinada. O barracão estava coberto de
tanta vegetação que parecia que a floresta tinha começado a reclamar a sua
posse.
– Como é aquele verso infantil? – disse Daniel. – Numa floresta escura,
escura…
– … havia uma casa escura, escura – continuou Hannah.
Mas pelo menos o barracão ainda tinha um telhado e paredes e uma
chaminé. Abrigo.
Eles olharam uns para os outros. Lucas sorriu.
– Vamos?

Um mau pressentimento tomou conta de Hannah quando subiram os


degraus raquíticos do alpendre.
Não foi apenas o aspeto sinistro do barracão e as associações aos contos
de fadas e aos filmes de terror. Hannah nunca tinha sido dada a fantasias ou
superstições. A escuridão não a assustava. E as borboletas na barriga
geralmente resumiam-se a indigestões e não a premonições.
Mas algo estava errado aqui.
Lucas estendeu a mão para a porta, podre e meio solta nas suas
dobradiças. Ele abriu-a e eles seguiram-no até ao interior, lanternas
apontadas para a frente. O barracão era pequeno e escuro. Hannah
conseguia distinguir um sofá velho e uma cadeira de aspeto raquítico, duas
mesas, sobre elas velas meio ardidas no interior de garrafas. Não tinha
eletricidade, calculou ela. À sua esquerda, uma lareira de pedra e… Cassie
gritou.
Um par de olhos cor de âmbar observava-os.
– Foda-se!
Hannah ergueu a sua lanterna. Montada na parede acima da lareira estava
a cabeça de um veado. Ela rodou o feixe de luz em torno da sala. Mais olhos
de vidro observavam das paredes. Cabeças de animais. Veados, texugos,
coiotes. Sentiu-se enjoada.
– É bom ter companhia – disse Lucas.
– Pelo menos não são humanos – comentou Daniel.
Cassie lançou-lhe um olhar carrancudo.
– És animador.
Eles caminharam pela sala de estar/matadouro até à pequena cozinha.
«Básica» era a melhor palavra para a descrever. Sem fogão ou mesmo um
frigorífico. Apenas um lava-loiça enferrujado de aço inoxidável e um velho
fogão de campismo. Hannah acionou o interruptor do fogão. Não tinha gás.
Lucas abriu alguns armários. Algumas latas de feijão, sopa e carne enlatada.
Provavelmente fora de prazo, mas ainda poderiam ser comestíveis, se eles
estivessem desesperados, o que era o caso.
Eles verificaram o quarto e a zona de banho. O quarto continha um
colchão manchado com alguns cobertores sujos e um baú de gavetas vazio.
A zona de banho era só mesmo isso. Uma torneira sobre um ralo, com uma
sanita imunda e um lavatório. Hannah girou a torneira. Rangeu e deixou
escapar uma gota de água castanha e malcheirosa. Ela franziu o nariz. Havia
provavelmente um tanque de água atrás do barracão, mas se não tivesse sido
usado durante algum tempo, a água parada teria estagnado. Não havia
banho para eles hoje à noite.
Eles voltaram à sala de estar.
– Bem – disse Lucas –, é o básico, mas mais do que podíamos esperar.
– Ainda assim está um gelo do caraças – disse Cassie, esfregando os
braços. – E que cheiro é este?
Nesse exato momento, a bebé começou a chorar. Daniel mexeu-se
desconfortavelmente.
– Acho que foi a Eva.
Cassie revirou os olhos.
– Oh, espetacular.
Hannah apontou novamente a sua lanterna. O telhado estava intacto ali e,
embora o chão fosse duro e estivesse sujo – à exceção de um quadrado mais
limpo, talvez onde antes estaria um tapete –, ainda era preferível ao colchão
manchado no quarto.
– Está bem – disse ela. – A nossa primeira prioridade é a luz. Há velas
aqui e temos isqueiros. Vamos acender as velas para que o Daniel possa
tratar da bebé.
– É já – disse Cassie, pegando num isqueiro. Ela andou pela sala,
acendendo as velas meio ardidas. As sombras dançantes tremeluziam nas
paredes.
– Próximo: aquecimento. – Hannah ajoelhou-se e apontou a sua lanterna
através da chaminé. Não parecia estar bloqueada. Havia cinzas e pedaços de
troncos queimados na grelha.
– Conseguimos usar… mas precisamos de lenha…
Ela deu um salto de repente quando ouviu um crrrrrack ruidoso atrás de
si. Ela virou-se. Lucas tinha pegado na cadeira raquítica e partira-a contra o
chão.
Ele esmagou-a com a sua perna falsa.
– Agora, temos acendalhas.
Hannah sorriu ao de leve.
– Boa. A Cassie e eu vamos procurar mais madeira lá fora.
– Vamos? – disse Cassie.
– Sim. O Lucas pode tratar de acender o fogo enquanto o Daniel muda a
bebé.
Cassie suspirou.
– Parece mesmo que voltei à casa do avô Joe.
Hannah levantou-se. As tonturas tomaram conta dela. Encostou-se
à lareira. Ela respirava mais superficialmente para evitar os ataques de tosse.
Isso e a dor no peito.
– Estás pronta? – perguntou Cassie.
– Sim – disse ela depois de um momento. – Vamos.
Elas saíram da cabana até à clareira. O céu tinha escurecido durante o
tempo em que tinham estado lá dentro. O crepúsculo pairava sobre elas.
Insubstancial e transitório. Logo se transformaria em noite. Mais uma vez,
Hannah sentiu aquele arrepio de mal-estar. O que tinha este lugar? Ou seria
ela? O vírus estaria a afetar a sua mente? Ela não achava que sim. O
raciocínio parecia lento, mas não tinha febre nem delírios. Algo estava
errado. Algo esquecido. Ela simplesmente não sabia dizer o quê.
– Vamos contornar a clareira – disse ela. – Devemos conseguir encontrar
alguns pedaços de madeira seca.
– Sim, eu sei – disse Cassie. – Eu costumava fazer esta merda quando era
criança. O meu avô tinha uma cabana igual a esta.
– Oh, certo.
Atravessaram a clareira até à floresta e começaram a apanhar pedaços de
ramos.
– Eras próxima do teu avô? – perguntou Hannah.
– Não. Odiava o velho maluco. Mas ele era o meu único avô vivo, por isso
era obrigada a visitá-lo todas as semanas. O meu pai estava bem na vida,
mas achava que me faria bem «conhecer as suas origens».
– Oh.
Elas moviam-se lentamente, iluminando o chão com as suas lanternas.
– Sim. Quando tinha dez anos já sabia como disparar uma espingarda,
esfolar um veado e estripar um coelho. Eu conseguia partir o pescoço de
uma galinha ou cortar a garganta de uma cabra para que sangrasse depressa.
– Parece ser uma educação e tanto.
– Oh, sim. Ele era a verdadeira Mary Poppins.
Elas começaram a caminhar de volta para a cabana. Os braços de Hannah
estavam repletos de madeira com cheiro a mofo. Seca o suficiente para
queimar por algumas horas, pelo menos. Ela olhou em volta para a floresta.
Parecia estar tranquila por agora. Demasiado tranquila? Ou estaria apenas a
ser paranoica? Ela olhou de novo para a cabana. De longe, parecia quase
acolhedora. Chamas de velas laranja a flamejar através das janelas, o brilho
do fogo, o fumo a sair da chaminé.
Errado. O que era?
– Claro, ele era um sobrevivente da velha guarda – disse Cassie, ao lado
dela. – A cave cheia de armas e conservas. O seu «bunker do apocalipse», era
como ele lhe chamava.
Hannah olhou para ela.
– O que é que disseste?
– Bunker do apocalipse?
A tomada de consciência atingiu-a como um murro.
As velas meio ardidas. A chaminé que deveria estar bloqueada pelos
ninhos dos pássaros. O quadrado mais claro no chão. Não era um quadrado.
Era um alçapão.
– Não está abandonado – murmurou ela.
– O quê?
– Uma cave – disse Hannah. – Não procurámos uma cave.
Ela deixou cair os troncos e correu até à porta, empurrando-a para que ela
se abrisse.
Não via Daniel, mas Lucas estava no meio da sala, perto da lareira.
– Lucas!
Ele virou-se.
– O que foi?
O chão moveu-se sob os seus pés.
Lucas foi atirado para trás. Ele tombou e caiu sobre o fogo aceso. Uma
figura imunda coberta de peles de animais com uma crina de cabelo
emaranhado emergiu pelo alçapão. A figura gritou – um guincho terrível e
agudo –, puxou de uma arma do cinto e desfechou uma saraivada de balas
pela sala. Hannah agachou-se. Lucas rolou para fora do fogo, apagando as
chamas, mas enquanto ele tentava rastejar, cabelo e roupas ainda a fumegar,
a figura disparou outra série de balas. Hannah viu o corpo de Lucas a
sacudir-se enquanto era atingido.
Ela tinha de fazer alguma coisa. E depois lembrou-se: ela ainda tinha a
faca. Antes que a figura se pudesse virar, Hannah puxou-a do bolso e
lançou-se, atirando-se para as costas dela e enrolando as pernas em torno da
cintura. O fedor do habitante da cave era desagradável, quase insuportável,
mas Hannah agarrou-se com força, levantou a faca e enterrou-a no pescoço
dele.
O sangue jorrou. Ele uivou. Hannah arrancou a faca e apunhalou-o outra
vez, e outra vez. Ele balançou e contorceu-se. O punho de Hannah
escorregou e ele conseguiu sacudi-la. Ela caiu violentamente de costas,
sentindo espasmos de dor pela coluna.
A figura girava em volta. O rosto era branco como a cal, quase sem
dentes, os olhos vermelhos e selvagens. O que quer que tivesse sido –
caçador, sobrevivente – era agora um puro Whistler. O sangue escorria das
feridas no seu pescoço. Ele mal parecia notar. Podia muito bem já estar
louco antes de a Choler corromper o que restava do seu cérebro, mas era
difícil de dizer.
Ele ergueu a arma e deu um passo na direção dela. Hannah rastejou para
trás no chão. Mas não havia para onde ir. Não viria ajuda. Lucas estava
ferido, Daniel e Cassie estavam ambos escondidos, a tentar salvar a sua
própria pele. Hannah preparou-se para a morte. Ela ouviu o disparo de um
tiro…
Uma cratera vermelha abriu-se na testa do Whistler.
Com um olhar de surpresa, ele caiu de joelhos. A arma escorregou-lhe
das mãos. Outro tiro. O sangue explodiu-lhe do peito. O Whistler olhou
para ela, expressão intrigada, a boca a trabalhar desajeitadamente para
encontrar palavras há muito esquecidas. Mas tudo o que saiu foi mais
sangue. Hannah olhou para ele, sentindo um momento de piedade. Depois
caiu no chão, a contorcer-se. Por fim, com um gemido suave e agudo, ficou
imóvel.
Hannah olhou para cima. Daniel estava à entrada do quarto, agarrado à
arma que tinha retirado ao atirador.
– Estás bem? – perguntou ele.
Não, pensou Hannah. Longe disso. Mas estava viva. Por agora. Ela acenou
com a cabeça.
– Obrigada.
A porta da frente abriu-se e Cassie espreitou para dentro.
– Tu mataste a coisa.
– Ele – disse Hannah. – E obrigada pela tua ajuda.
À sua direita, Lucas gemeu. Hannah rastejou até ele. O ombro dele estava
a sangrar muito e o cabelo e o rosto estavam queimados e escurecidos. Ele
estava a morrer. Não havia dúvidas sobre isso. As feridas das balas eram
más, mas as queimaduras não tardariam a deixá-lo em estado de choque.
Os olhos dele foram ao encontro dos dela.
– Es tut mir leid.
– De que estás arrependido?
A voz de Lucas era um sopro.
– Tu percebeste bem. Eu trabalho para o Departamento. As minhas
ordens… acompanha o autocarro. Disseram… que vocês iam ser levados
para outro local. Não para o Retiro. Apenas… certificar-me de que tudo
corria bem.
– Mentiste-nos?
– Eu não sabia… sobre o acidente. Nem… o condutor sabia. As mesmas
ordens. Acho que ele foi obrigado a provocar o acidente.
Hannah olhou para ele. Mas se o motorista não estivesse envolvido, então
não teria tido necessidade de fugir ou de sabotar a porta.
– Tens a certeza? – perguntou ela.
Lucas acenou levemente com a cabeça e depois tossiu. Havia sangue nos
seus lábios. Ela estava a perdê-lo.
Os olhos dele abriram-se.
– Die Zeit.
– Sim. – Hannah acenou com a cabeça. Chegou a hora.
Lucas esticou-se na direção dela, levantou o pulso e arrancou o relógio.
Ele colocou-o nos dedos dela.
– Die Zeit. – Depois a mão dele caiu. Hannah sentiu o seu último suspiro.
A cabeça dele caiu para trás e os olhos vidraram. A morte. Vieste depressa,
pensou Hannah. Enquanto eu percorro o longo caminho. Ela sentou-se no
chão duro, agarrando o relógio, a tentar processar as palavras de Lucas.
O motorista não tinha sido cúmplice. O que significava que não tinha
sido ele a sabotar a saída de emergência. Isso deve ter sido feito antes de eles
saírem. E agora algo mais sobressaiu do seu subconsciente.
Doze alunos no autocarro. Mas só havia onze mochilas no porão.
O motorista não tinha escapado. Ele tinha estado com eles o tempo todo.
Um intruso. Cassie tinha razão.
Ela virou-se lentamente. Cassie estava a espreitar para dentro da cave.
Daniel ainda estava à entrada do quarto, a segurar a arma.
Hannah olhou para ele.
– Quando é que nos ias dizer, Daniel?
Ele olhou para ela, e ela soube que ele percebeu.
– Sinto muito – disse ele.
Cassie olhou de relance entre eles.
– Dizer-nos o quê?
Daniel suspirou.
– Que era eu o condutor do autocarro.
Meg

Sarah insistiu em dizer uma oração. Meg preferia que ela não o fizesse,
mas enfim, isto não era para seu benefício. Talvez Max tivesse querido a
homenagem. Claro, o que o Max teria realmente querido era continuar vivo.
As orações não conseguiam resolver isso. As orações não conseguiam
resolver nada, pela experiência de Meg.
A morte era um horror, e tudo o que fazíamos – as cerimónias, os
discursos fúnebres, as flores – era apenas uma forma de tentarmos
convencer-nos do contrário. Não havia mortes pacíficas. Aqueles que estão
prestes a morrer normalmente urinavam-se ou evacuavam. Havia medo
naqueles momentos finais, em que a respiração começava a falhar e a
garganta se fechava.
Ninguém caminhava para a morte de livre vontade. Isso era mentira. Meg
tinha mentido à sua filha. Descansa, a mamã está ao teu lado. A mamã estará
sempre ao teu lado. Mas a mamã não estava ao lado dela. A mamã ainda
estava aqui. Uma traição que precisava de ser retificada.
Enquanto Sarah continuava os seus santos murmúrios, Meg e Sean
moveram Max até ao alçapão aberto. Sean tocou nos seus lábios e colocou os
dedos na testa de Max, um gesto de afeto e despedida. Meg perguntou-se o
que deveria fazer. Ela não acreditava em Deus, não tinha nada a que
recorrer.
– Lamento – sussurrou ela a Max, inclinando-se para repetir o gesto de
Sean.
Ela fez uma pausa. A presunção deles fora que a hipotermia e a infeção
tinham sido de mais para o corpo de Max. Mas agora Meg aproximara-se e
podia ver petéquias em torno dos olhos de Max. E algo seco no canto da
boca dele. Vómito?
– Ámen – concluiu Sarah, e benzeu-se.
Vasos sanguíneos estourados em torno dos olhos. Vómito. Esses eram
sinais de asfixia.
– Pronta? – perguntou Sean.
Meg olhou para ele. Ele estava a observá-la com atenção.
Teria a morte de Max sido mais antinatural do que eles supunham?
Alguém teria apressado a sua partida? Talvez um ato de misericórdia ou
talvez o vissem como um fardo.
– Meg? – Sean franziu o sobrolho. – Estás bem?
Boa pergunta. Nem por isso. Nada disto estava bem. Mesmo que alguém
tivesse matado Max, que diferença é que isso fazia? Ele provavelmente não
sobreviveria de qualquer maneira. Era provável que nenhum deles
sobrevivesse. Estavam todos a adiar o inevitável enquanto a Morte ia
mantendo os seus lugares reservados.
Meg desviou o olhar.
– Sim. Vamos a isto.
Eles pegaram no corpo de Max e atiraram-no pelo alçapão aberto. Ele
mergulhou através das nuvens cinzentas, encolhendo até ser um pequeno
ponto e depois desaparecer na escuridão. Três já foram, faltam três, ocorreu
a Meg.
– Que Deus cuide da sua alma – murmurou Sarah.
– E que o diabo nunca te apanhe de costas – acrescentou Meg.
Sarah olhou para ela. Meg encolheu os ombros.
– Algo que a minha mãe costumava dizer. Veio-me à ideia.
E agora Meg lembrara-se de outra coisa que a mãe dela costumava dizer:
«Tem cuidado em quem confias. O diabo já foi um anjo outrora.»
– Devíamos fechar o alçapão – disse Sean. – Antes que nos juntemos a ele.
Eles puxaram o alçapão e olharam uns para os outros. Tudo o que resta,
pensou Meg. O número de ocupantes diminuiu para metade em menos de
quarenta e oito horas. Quem seria o próximo se permanecessem aqui por
mais tempo? E o que os apanharia primeiro: o frio, a fome ou outra morte
«misericordiosa»?
– Não vamos aguentar mais vinte e quatro horas – disse Meg sem rodeios.
– Amanhã de manhã, vou tentar chegar à estação e pedir ajuda. De acordo?
Sarah acenou com a cabeça.
– Não vejo que tenhamos outra escolha.
Sean suspirou.
– Muito bem. Se é isso que queres.
– É – disse Meg.
Ele virou-se e foi até à outra extremidade do teleférico. Colocou as mãos
em concha em torno da cara e espreitou para fora do vidro. A neve estava a
derreter, a deslizar pelos vidros, oferecendo uma visão desfocada da estação
ao longe. Um semicírculo cinzento e de vidro a sobressair da montanha.
Como se alguém tivesse batido com uma nave espacial na rocha, pensou Meg.
Sean girou a cabeça para olhar para o cabo de suporte por cima deles.
Depois voltou-se para trás.
– Quase duzentos e trinta metros… não há muita inclinação neste ponto.
O vento pode ter amainado, mas lá fora ainda vai parecer que está a tentar
arrancar-te do cabo. – Ele ergueu as suas mãos enluvadas. – Estas luvas têm
aderência, mas não oferecem muita sensibilidade. Podes facilmente perder o
apoio sem te aperceberes. Além disso, se estiveres a segurar o cabo com
muita força, a tua circulação vai abrandar e diminuir a temperatura das tuas
mãos. Portanto, precisas de continuar a mover-te o mais rápido que puderes.
– Está bem. – Meg olhou fixamente para ele. – Pensaste bem nisto.
– Sim. – Ele olhou-a de cima a baixo. – Os teus braços vão perder a força
antes mesmo de estares a meio caminho. Física e mentalmente, vai ser uma
tortura.
– Uau. Obrigado pela conversa motivadora.
– Estou só a preparar-te. Tens de perceber como vai ser difícil. Precisas de
saber que podes não conseguir.
– Muito bem. Entendido.
Ele continuou a olhar para ela, como se quisesse dizer algo mais. Depois
abanou a cabeça.
– És teimosa como o caraças.
– E essa é uma das minhas qualidades.
Ele conseguiu esboçar um pequeno sorriso.
– Tens mesmo a certeza disto?
– Eu não tenho medo de morrer.
Os olhos azuis dele foram ao encontro dos dela.
– É isso que me assusta.

Eles adormeceram outra vez. Uma ligeira morte. Uma boa descrição.
Abençoado esquecimento. Sem pensar. Sem sentir. Sem dor. Tudo era nada.
Havia conforto no nada.
Mas não podia durar muito. Havia rostos a flutuar pela mente de Meg.
Lily, a mãe dela, Paul. E uma rapariga. Uma rapariga com cabelo comprido,
ondulado e escuro. A rapariga na tatuagem de Sean. Quem era ela? E como é
que Meg a conhecia? A rapariga estava a flutuar para longe. Meg tentou
mantê-la. Ela era importante. Meg tinha-a visto noutro lugar. Onde?
E depois lembrou-se.
A fotografia.
A que Meg tinha encontrado no bolso de Paul.
Daniel e Peggy. Academia Invicta.
Era a mesma rapariga.
E se era a mesma rapariga…
Os olhos de Meg abriram-se.
– Ele mentiu.
Ela sentou-se. A luz prateada iluminava o teleférico. Era de manhã cedo.
Sarah estava deitada ao lado dela. Meg olhou em volta. A perceção instalou-
se lentamente no seu âmago, como tentáculos venenosos.
Não. Não, não, não.
Ela pôs-se de pé. A sua respiração via-se no ar. Ela caminhou até à janela
e espreitou para fora. A névoa acariciava o vidro. O exterior cinzento da
estação mal era visível através da neblina.
Seria uma loucura tentar atravessar pelo cabo com este tempo.
O cabrão. O maluco, filho da puta.
– Meg?
Sarah estava sentada. Ela bocejou, espreguiçou-se e olhou em volta.
– Onde está o Sean? – perguntou ela.
Meg olhou fixamente para ela.
– Já se foi.
Carter

Estavam fodidos praticamente desde o momento em que entraram na


floresta.
Eles esquiaram até ao ponto em que as árvores engrossavam, o vento a
agredir-lhes o rosto, enquanto levas de neve mais velozes lhes cobriam os
óculos de proteção. Miles tinha conseguido esquiar com um velho trenó
amarrado às costas. Na fronteira do arvoredo, onde a neve tocava numa
cama de agulhas de pinheiro, eles pararam e ele deixou-o cair no chão.
Carter puxou para cima os óculos de proteção. Aqui era mais abrigado. Mas
a escuridão e o cheiro sufocante dos pinheiros já pareciam claustrofóbicos.
Numa floresta escura, escura, havia uma casa escura, escura… e por que
raio estaria ele a pensar naquele velho verso infantil agora mesmo?
Miles retirou uma faca afiada do cinto.
– Para que é isso? – perguntou Caren imediatamente.
– Migalhas.
– Desculpa?
– Nunca leste Hansel e Gretel?
– Eu desisti dos contos de fadas há algum tempo.
Miles virou-se e entalhou um X no tronco da árvore mais próxima deles.
– Para podermos encontrar o nosso caminho de volta.
– Certo – disse Carter, pensando que era otimista imaginar que qualquer
um deles iria voltar, mas, ei, é preciso ver o copo meio cheio.
– Então, prontos? – perguntou Miles, tirando a arma tranquilizante.
– Pronta – disse Caren.
Carter só anuiu. Ele não estava pronto, mas não tinha opção.
Eles entraram na floresta, a cada passo aumentava o mau pressentimento
de Carter. Os troncos das árvores velhas tinham a largura de dois homens, e
o teto isolante de agulhas de pinheiro sobre a copa bloqueava a luz e abafava
o som. Apenas uns poucos flocos de neve penetravam. Os pinheiros estavam
a irritar-lhes os olhos e o nariz. A respiração deles era semelhante a
bramidos.
Ao fim de um certo número de passos, Miles parava e marcava outra
árvore. Carter olhou para trás. Ele conseguia ver apenas uma cruz atrás
deles. Além disso, só escuridão, como se as árvores estivessem a mexer-se
suavemente, fechando fileiras à sua passagem. Isto nunca irá resultar, pensou
ele. Eles não faziam ideia para onde estavam a ir, ou quão longe tinham de
ir, ou mesmo…
Miles parou de repente e levantou uma mão. Carter quase o abalroou e
Caren embateu contra as costas de Carter.
– O que foi? – começou ela a dizer.
– Chiu – sussurrou Miles. Ele agachou-se. Carter e Caren olharam um
para o outro e depois seguiram o exemplo. Carter espreitou por cima
do ombro de Miles. Não via mais nada além de árvores. E depois reparou.
Movimento. O que ele tinha confundido com outro tronco de árvore era
uma figura, vestida com peles castanhas de animais, calças de fato de neve
verde-escuras e um bizarro gorro de lã tricotado. E agora ele conseguia ouvi-
lo – um assobio abafado.
O Whistler parou por um momento, cabeça erguida no ar como um
animal a farejar. Carter só conseguia ver um pedaço de pele branca sob o
gorro. Então, rapidamente, o Whistler virou-se e desapareceu por entre as
árvores. Miles moveu-se para que eles o seguissem. Rastejaram para a frente,
roçando noutros troncos grossos. Carter tinha perdido de vista o Whistler.
Mas conseguia ver que as árvores estavam a rarear. Via-se pedaços do céu,
flocos de neve. Não muitos. Ainda havia claridade na floresta, mas à frente
havia uma pequena clareira. E na pequena clareira… uma colónia.
Normalmente, os Whistlers viviam uma existência nómada. Renegados
pela sociedade com medo da infeção. Escondidos daqueles que os levariam
para as quintas. Muitos estavam infetados com a variante Choler, o que os
tornava violentos, imprevisíveis e perigosos. Geralmente viviam sozinhos ou
em pequenos grupos formados por elementos da ralé. Mas havia rumores de
que alguns tinham criado estruturas sociais mais tradicionais, em lugares
remotos. Onde podiam viver sem serem incomodados.
Estas habitações pareciam sofisticadas. Tendas, obviamente roubadas, um
casebre rudimentar feito de troncos, um grande braseiro no meio da colónia
e uma outra estrutura que parecia ter sido construída com pedaços
metálicos de sucata. Carter olhou para ela.
Num dos lados estava escrito: INVICTA.
A tomada de consciência atingiu-o como um murro no estômago. Não.
Ele deu um passo em frente. Distantemente, ele ouviu Miles sussurrar:
– Carter. Cuidado.
O pé dele ficou preso nalguma coisa. Vidro e metal foram puxados e
tilintaram alto acima dele, pondo fim ao silêncio da floresta.
– Merda!
Carter olhou para cima. Garrafas velhas, latas e outros pedaços de lixo
tinham sido presos entre os ramos das árvores. Ele olhou para baixo. Havia
um pedaço de fio esticado entre dois troncos. Um alarme. Ele tinha
esbarrado numa armadilha.
Figuras encapuzadas surgiram das habitações. Alguma coisa passou a
voar. Uma pedra. Depois outra. Pelo canto do olho, Carter viu alguém a
levantar uma besta.
– Saiam! – ordenou Miles, a recuar para a floresta.
Carter não precisava que lhe dissessem duas vezes. Ele virou-se para
seguir Miles. Algo lhe bateu na cabeça sobre a orelha, com força, e ele
cambaleou, caindo de joelhos. Ele agarrou-se à cabeça. Cheia de sangue e a
doer imenso. A sua visão ficou momentaneamente desfocada.
Uma mão agarrou-lhe o braço.
– Levanta-te.
Caren ajudou-o a pôr-se de pé. Ele balançou, depois estabilizou.
– Eu estou bem.
Ela acenou com a cabeça. Eles começaram a seguir Miles, que já estava
muito à frente. A primeira regra de sobrevivência. Saber quando correr e
nunca olhar para trás. E também não ficar para último. Uma regra que
Carter não estava a cumprir. Caren era mais rápida e estava em melhor
forma. Ele ia ser deixado para trás. Deixado para trás com o…
Algo caiu das árvores e aterrou sobre as costas de Caren, deitando-a ao
chão. Um Whistler. Ela gritou de choque e dor. O par rolou e lutou no chão
da floresta. Uma massa de braços e de pernas agitados. No crepúsculo,
Carter mal conseguia perceber quem era quem. Um flash de cabelo loiro.
Um vislumbre de pele branca. Caren bateu com o punho na cara do
Whistler. O Whistler uivou, um som horrível e agudo.
– Dispara! – gritou Caren.
Carter sacou da sua arma. Mas não conseguiu. Ele não conseguia um bom
disparo. Não sem arriscar atingir Caren. O Whistler agarrou o cabelo de
Caren e fincou-lhe ferozmente as unhas na cara. Carter apontou a arma. O
Whistler virou-se. Uma fêmea. Pele branca esticada como gaze sobre o
crânio. Será que é? Ele hesitou. O Whistler esticou bem a boca, revelando
dentes amarelos afiados. A sorrir. Depois baixou a cabeça e arrancou um
pedaço do pescoço de Caren.
– Nããããão!
Alguma coisa atravessou o ar. O corpo do Whistler sacudiu para trás.
Outro «whoosh». O Whistler balançou e depois desabou sobre Caren. Carter
olhou para cima. Miles estava a alguns metros de distância, arma
tranquilizante na mão. Ele tinha voltado.
– Da próxima vez – disse ele a Carter –, não hesites.
Ele avançou e empurrou o Whistler de cima de Caren com o pé.
– Mas pelo menos agora temos algo para…
O Whistler levantou-se, dentes arreganhados e na direção de Miles,
agarrando a perna dele.
Carter ergueu a arma e deu-lhe dois tiros na cabeça. O Whistler caiu ao
chão e ficou imóvel.
Miles soltou a perna. Olhou para Carter e acenou com a cabeça.
– Melhor. – Depois dobrou-se e colocou Caren sobre o ombro com uma
facilidade surpreendente. – Vamos lá.
Eles caminharam meio aos tropeções, meio a correr pela floresta, Miles a
seguir as árvores marcadas, Carter constantemente verificando a retaguarda,
mesmo tendo a certeza de que não havia mais Whistlers a segui-los. Caren
estava meio inconsciente no ombro de Miles. O sangue do pescoço dela
tingiu a parte de trás do fato de neve azul dele.
Finalmente, saíram para a zona de montanha. Carter inclinou-se,
ofegante. Miles deitou Caren no chão. Mais sangue vermelho tingiu
imediatamente a neve por baixo dela. Miles agarrou o trenó e colocou Caren
sobre ele, prendendo o corpo dela com amarras.
– Miles – disse Carter, ofegante. – Ela foi mordida. Não viste?
– Sim. – Miles acenou com a cabeça, dando um nó apertado. – Eu vi.
Temos de a levar de volta antes que ela perca mais sangue.
– Ela está infetada.
Ele olhou para cima.
– Então, preferes que eu a deixe aqui para eles?
– Não. Eu…
– Levamo-la de volta – disse Miles firmemente. O seu olhar era glacial. –
Ela é tudo o que temos.

Carter e Miles arrastaram o trenó montanha acima. Com um corpo


amarrado, isto era um trabalho laborioso. Como é que eles alguma vez
pensaram que conseguiriam trazer dois?
Os pés deles escorregavam e escorregavam. O vento tentava o seu melhor
para os empurrar e fazer rolar de volta pela encosta. Caren gemia e chorava.
Ela estava a perder as forças, pensou Carter. Todos eles estavam. Talvez tenha
chegado a hora, pensou ele. Eles iam morrer aqui nesta merda de montanha
esquecida por Deus. Depois de tudo o que ele tinha feito para chegar aqui,
para conseguir, para sobreviver, ele ficaria perdido na neve e nos estômagos
dos animais selvagens.
E depois, mesmo sobre o topo de um grande monte de neve, Carter viu-a.
A silhueta escura do Retiro. Hoje não, pensou ele. Não neste maldito dia. Ele
enterrou as varas na neve. Ao seu lado, ele sentiu Miles a acelerar o ritmo.
Eles chegaram à vedação elétrica e abriram o portão partido, arrastando
Caren até à porta. Miles introduziu o código e a porta abriu-se. Eles
cambalearam com gratidão até ao corredor, no momento em que o elevador
chegou e Welland saiu.
Ele olhou para eles com horror.
– Merda, meu. Que diabo aconteceu?
– Uma armadilha – disse Miles. – Fomos emboscados.
– Foda-se. – Welland olhou para Caren. – Ela está morta? Porque acabei
de levar tudo para o incinerador e hoje não consigo carregar mais nenhum.
– Uau. A tua empatia não tem limites – disse Carter.
– Ela perdeu muito sangue – disse Miles. – Mas deve sobreviver. Temos
de tapar a ferida, dar-lhe antibióticos para evitar que a mordida infete…
– Espera! – Os olhos de Welland abriram-se. – Ela foi mordida? Por um
Whistler? Ela está infetada. – Ele recuou. – Não. Nem pensar. Não podes
trazê-la para cá.
– Temos de a levar para uma câmara de isolamento. – Miles deu um passo
em frente.
Welland sacou da arma de Miles. Ele apontou-a na direção deles, as mãos
a tremer.
– Leva-a lá para fora.
– A sério! – exclamou Carter.
– Welland – disse Miles num tom assustadoramente calmo –, a única
razão pela qual ainda estás vivo é para manter a energia ligada. Neste
momento, não tenho uma boa razão para não te matar.
– Pois. Bem, eu é que estou a apontar a arma.
– Ainda a tens bloqueada – disse Carter.
Welland olhou para baixo. Carter saltou para a frente e deu-lhe um murro
na cara. Welland cambaleou para trás. Carter deu-lhe uma joelhada na
virilha. Welland gemeu e contorceu-se, a arma a escorregar-lhe da mão.
Carter agarrou-a e encostou-a à cabeça de Welland. Ele desbloqueou-a.
– Não precisava de uma desculpa, mas é bom ter uma.
– Deixa-o – disse Miles, carregando Caren. – Não temos tempo. E ele
ainda é útil… por agora.
A vontade de puxar o gatilho era como uma comichão.
– Ouviste o que ele disse – choramingou Welland.
– Ouvi. – Carter bloqueou de novo a arma e levantou-se. – Ele disse… por
agora.

Colocaram Caren na Câmara de Isolamento 4. O pescoço dela foi ligado.


Deram-lhe antibióticos intravenosos e foi sedada. Tinha perdido sangue,
mas não o suficiente para a matar. Com os devidos cuidados, provavelmente
sobreviveria. Claro, provavelmente seria melhor estar morta.
Carter encostou-se ao vidro. A temperatura dela já estava a subir.
A infeção direta era rápida. Ocasionalmente, mesmo sedada, o corpo de
Caren tremia quando ela tossia. Nas vinte e quatro horas seguintes, a tosse e
a respiração piorariam. Depois viria a inflamação dos olhos, a febre, os
delírios, e se ela sobrevivesse…
Ele ouviu um barulho atrás dele. Miles entrou nas câmaras de isolamento,
trazendo mais curativos.
– Como está ela? – perguntou ele a Carter.
– Como achas que está?
– Acho que está viva… e nós tivemos sorte. O que aconteceu ali?
Carter mexeu-se desconfortavelmente.
– Não conseguiria disparar sem acertar na Caren.
– Não estou a falar disso. Refiro-me a passeares pelo acampamento
e acionares o alarme.
Na sua mente, Carter viu-o novamente. Aquele pedaço de metal. A escrita
desbotada: INVICTA.
– Não sei – disse ele calmamente. – Acho que me distraí.
Miles fez um ruído que demonstrava impaciência.
– E foi nisto que deu.
Carter sentiu a culpa a tomar conta do seu coração.
– Eu sei. Fiz merda.
Uma longa pausa.
– Não totalmente – disse Miles.
– Porque é que dizes isso?
– A nossa tarefa era trazer de volta novas reservas… – Miles voltou-se
para a câmara de isolamento. – Enquanto a Caren estiver viva, temos o que
precisamos.
Carter ficou a olhar para ele.
– Foi sempre esse o plano? Fazer com que um de nós se infetasse e trazer-
nos de volta?
– Não. – Miles sorriu friamente. – Esse era o Plano B.
– És mesmo um filho da puta.
– Tens uma sugestão melhor?
Carter olhou para trás, para Caren. Com C. Ele cerrou os punhos. Depois,
lentamente, abanou a cabeça.
Miles anuiu.
– Então, citando Oppenheimer, agora somos todos filhos da puta. – Ele
virou-se. – Vou verificar os anticorpos dela mais tarde. Com alguma sorte,
devo poder começar a extração dentro de quarenta e oito horas, como
combinado.
Hannah

– Baixa a arma, Daniel.


Ele olhou para a arma como se se tivesse esquecido de que ainda segurava
nela. Depois olhou para cima.
– Achas que vou matar-te?
– Eu não sei – disse Hannah. – Eu não sei nada sobre ti. Daniel é mesmo
o teu nome verdadeiro?
Ele suspirou e depois colocou a arma com cuidado no sofá.
– Feliz?
– Nem por isso. – Hannah olhou-o friamente. – Porque conduziste o
autocarro? O que aconteceu ao verdadeiro motorista? Em que raio estavas a
pensar?
Ele olhou para ela.
– Estava a pensar que não queria que a minha irmã e eu morrêssemos
porque não tínhamos um pai rico e poderoso que nos retirasse da
Academia.
– Isso não é justo.
– Não é? – Ele sorriu de forma irónica. – Podes queixar-te sobre o teu pai
cruel e insensível, mas ainda tens dinheiro, privilégios, a melhor educação. E
tu – ele virou-se para Cassie – podes brincar aos enjeitados, mas não sabes o
que é ser verdadeiramente marginalizado por seres pobre, usares roupa em
segunda mão e receberes refeições grátis.
– Sim, bem, se é esse o caso, Oliver Twist – respondeu Cassie –, como é
que foste parar à Academia?
– Porque a Peggy tinha inteligência, não tinha pais ricos – disse Daniel,
com voz severa. – Ela conseguiu uma bolsa de estudo. Era tão inteligente
quanto bonita. Era o seu passaporte para uma vida melhor.
– E tu? – perguntou Hannah.
– Não sou inteligente. Certamente não sou bonito. Candidatei-me a um
emprego, trabalhar nas cozinhas e ser um moço de recados. Lugares como a
Academia precisam sempre de pessoal. Provavelmente porque o salário é
uma merda e eles tratam as pessoas como lixo. Eles aceitaram-me, e isso
significava que eu podia cuidar da Peggy, como sempre fiz.
– Acho que não cuidaste o suficiente para a impedir de engravidar – disse
Cassie.
Hannah viu Daniel ficar tenso, os punhos dele cerrarem. Se Cassie fosse
um homem, ela não tinha dúvidas de que ele a teria posto inconsciente. E
raparigas como a Cassie faziam-se valer disso.
– Porque não te calas e o deixas falar? – disse ela a Cassie.
Cassie ergueu as mãos.
– Tudo bem. Quero dizer, isto da confissão é tudo muito bonito, mas
quem se importa mesmo? A única coisa importante é tentarmos mantermo-
nos vivos. – Ela começou a descer os degraus para a cave. – Vou dar uma
vista de olhos ao bunker do maluco da cabana.
Hannah voltou-se para Daniel.
– Quando é que descobriste que a Peggy estava grávida?
– Quando o surto na Academia começou. Ela estava preocupada com o
bebé. Ela não me disse antes porque eu teria tentado persuadi-la a livrar-se
dele. Depois, era tarde de mais. Ela já estava de oito meses. Escondeu-o bem.
– E o pai?
– Ela não me quis dizer… porque sabia que eu o mataria. Previsivelmente,
ele não se quis envolver. – Ele abanou a cabeça. – A Peggy tinha a vida toda
pela frente, podia ter feito o que quisesse. Mas… o que ela realmente queria
era ser mãe. – A voz dele ficou embargada. – Por isso prometi que me
certificaria de que ela e o bebé saíam em segurança.
– Vocês não estavam na lista de evacuação?
– Não. Era suposto o pessoal ficar. Só alguns puderam ser colocados na
lista, mesmo com o teste negativo. Era aleatório, foi o que disseram. Mas
todos nós reparámos que aqueles que estavam na lista eram os estudantes
que pagavam as propinas, aqueles com os pais mais influentes. Os estudantes
bolsistas e aqueles com menos dinheiro era suposto ficarem isolados no
local.
– Como a Peggy.
Ele acenou com a cabeça.
– Então tive de encontrar outra solução. O vírus estava a espalhar-se
rapidamente. Alguns estudantes estavam a adoecer depois de lhes ser
atribuído um lugar, mas eu tinha ouvido dizer que os seus nomes não eram
retirados da lista. Entrei na equipa de limpeza da enfermaria. Uns dias antes
da chegada dos últimos autocarros, trouxeram uma rapariga que deveria ter
sido evacuada, mas que tinha adoecido. Era a minha oportunidade. Roubei-
lhe a identificação. Entreguei-a à Peggy. Pensei que não iriam verificar a foto
muito de perto. Estava certo. Na manhã da evacuação, vi a Peggy subir a
bordo do autocarro. Tinha conseguido tirá-la de lá.
Hannah franziu o sobrolho.
– Então como é que acabaste ao volante?
– Os autocarros estavam prestes a sair quando vi o condutor do autocarro
a entrar nas casas de banho. – Uma pausa. – Pensei que não tinha nada a
perder. Segui-o, empurrei a cabeça dele contra um lavatório e pu-lo
inconsciente. Depois arrastei-o para dentro de um dos cubículos e tranquei
a porta. Peguei no boné dele, no casaco e nas chaves e saí. Enfiei o meu
cabelo no chapéu e mantive a cabeça baixa. O casaco era muito pequeno,
por isso levei-o na mão. Ninguém me questionou. Ninguém reparou em
mim. Olá, sou o novo motorista.
Os planos mais geniais do pai dela, pensou Hannah. Arruinados por um
condutor de autocarro com uma bexiga pequena.
– E qual era o teu plano quando chegasses ao Retiro? – perguntou ela. – O
que teria acontecido quando as pessoas percebessem que a Peggy não devia
lá estar?
– Já seria tarde de mais nessa altura. E eu podia tomar conta de mim.
– Mas, em vez disso, embateste com o autocarro.
Ele abanou a cabeça.
– A culpa não foi minha. A rota era difícil, sim. A tempestade era severa.
Mas eu estava a mantê-lo estável. Eu não arriscaria ninguém a bordo. Depois
cheguei a uma curva e, de repente, havia faróis a vir de frente, mesmo na
minha direção. Eu buzinei…
Vagamente, Hannah recordava-se de ouvir a buzina.
– … logo depois, estou a tentar desviar-me e o autocarro capotou. Fui
cuspido do banco e acho que devo ter perdido os sentidos por uns
momentos. Quando recuperei a consciência, o meu primeiro pensamento
foi para a Peggy. Procurei no autocarro e encontrei-a nas traseiras.
De imediato, vi que estava mal. Foi quando pedi ajuda… e tu vieste. – Ele
olhou para Hannah. – Tu só presumiste que eu era um estudante. E eu
percebi que seria mais fácil se todos pensassem o mesmo.
Hannah continuou a olhar para ele. Ele parecia estar a dizer a verdade.
Mas ela não tinha a certeza. E talvez Cassie estivesse certa. Isso ainda
interessaria a alguém?
– E é tudo o que tens para nos contar? – perguntou ela.
– Sim.
Mas não era. Havia algo mais, algo…
A cabeça de Cassie voltou a emergir do alçapão aberto.
– Pessoal, vocês têm mesmo de vir dar uma olhadela aqui abaixo.
Meg

– Já se foi? – Sarah olhou para ela. – Eu não entendo.


Meg andava para a frente e para trás na cabina.
– Ele mentiu. O filho da puta mentiu e foi à minha frente.
Sarah pestanejou.
– Mas isso não é corajoso da parte dele? Assim, não tens de arriscar a tua
vida.
Não, pensou Meg. Sarah não percebeu. Por causa da rapariga. A rapariga
com o cabelo escuro. Ela parou e remexeu no bolso dela. Retirou a fotografia
enrugada. Aquela que ela tinha encontrado em Paul.
Daniel e Peggy. Academia Invicta.
Meg observou a fotografia mais de perto. Desta vez focando-se no jovem.
Ela tentou adicionar anos, retirar alguns quilos, o cabelo comprido. Os olhos,
pensou ela. Os surpreendentes olhos azuis.
Era ele. Sean. Sean era Daniel. Daniel era Sean.
Paul tinha a fotografia dele. Então, ele devia saber quem Sean realmente
era. Ou pelo menos sabia que ele estaria neste teleférico. Ele estava à procura
dele. Mas porquê? Sean tinha dito que queria vingança pela morte de
alguém que ele amava. Uma rapariga. Era ela? Era por isso que ele estava
aqui? Estaria no Retiro a pessoa que ele acreditava ser a responsável?
«Quando eu os encontrar, vou fazê-los pagar.»
Se Sean tivesse percebido que Paul estava à sua procura, esse seria um
bom motivo para homicídio. Matar Paul e deixar Karl arcar com as culpas.
Mas e Max? Teria Max visto alguma coisa ou seria apenas um problema –
um peso morto?
Sean não tinha ido em seu lugar por se importar que ela arriscasse a vida.
Ele tinha-o feito porque tinha uma missão. Vingança.
E um homem que conseguia matar, mentir e enganar para atingir o seu
objetivo… seria o tipo de homem que enviaria ajuda?
Sarah ainda estava a olhar para ela.
– O que foi? O que se passa?
– Tenho de detê-lo – disse Meg.
– Do que estás a falar? Se o Sean conseguiu atravessar, só temos de
esperar que ele envie ajuda. Vai ficar tudo bem.
Meg abanou a cabeça.
– Não estás a perceber.
Ela podia ver a esperança nos olhos de Sarah. A esperança e o desespero.
Ela estava agarrada a esse frágil fio e Meg estava prestes a cortá-lo.
– Acho que o Sean não vai enviar ajuda.
– O quê? Porquê?
– Ele matou o Paul.
– O Paul. Quem é o Paul?
– O segurança. Paul era o seu verdadeiro nome e era polícia.
– Como… como é que sabes isso?
– Eu conhecia-o. Reconheci-o.
– E não nos disseste?
– Não tinha a certeza se era relevante.
Sarah olhava para ela de forma desconfiada.
– E pensaste que podíamos suspeitar de ti?
Meg suspirou.
– Ouve. Acho que o Paul estava aqui por causa do Sean. Encontrei esta
fotografia no bolso dele.
Ela tirou a fotografia. Sarah hesitou, depois pegou nela. Ela franziu
o sobrolho.
– Quem são estas pessoas?
Meg apontou para a rapariga.
– Viste a tatuagem no peito do Sean?
– Mais ou menos.
– É esta rapariga.
– Não podes ter a certeza.
– Olha para o jovem da fotografia, Sarah. Olha bem. Não te parece
familiar?
Sarah olhou fixamente para a fotografia. Depois abanou a cabeça e
devolveu-a.
– Pode ser qualquer um.
– É ele – disse Meg. – Tu sabes que é.
– Não.
Meg resistiu ao impulso de abanar os ombros da outra mulher.
– Sarah, o Sean é um assassino. Ele não vai enviar-nos ajuda. Porque o
faria?
– Ele não pode simplesmente deixar-nos aqui. Quero dizer, alguém iria
descobrir.
Mas será que o fariam? Meg olhou de volta através do vidro. Qual era a
vantagem para Sean em enviar ajuda, em aumentar as hipóteses de ser
descoberto? Porque não simplesmente fugir? Salvar a sua própria pele?
Meg sentiu a frustração crescer. Ela queria bater ou pontapear alguma
coisa. Mas provavelmente não se podia dar ao luxo de desperdiçar energia
agora.
E então ela percebeu outra coisa. Deu uma palmadinha nos seus bolsos.
Vazios.
Sean tinha levado a arma.
Ela tomou uma decisão.
– Vou atrás dele.
Carter

Miles fez o jantar. Carter não tinha vontade de comer. Welland


murmurou algo sobre «alergias». Mas Miles insistiu. E, neste momento,
Carter não achava boa ideia contrariar Miles, em nenhum contexto.
Miles movia-se pela cozinha, colocando a massa na água e fazendo um
molho a partir de uma lata de tomate. Felizmente, a placa funcionava a gás.
Não havia energia na sala, por isso acenderam velas. Carter sentou-se em
frente a Welland na ilha da cozinha. Eles olharam um para o outro através
da extensão de granito polido. Como se estivessem na porra do pior jantar
do mundo.
– Espero que todos gostem de esparguete à bolonhesa – disse Miles. –
Lamento só ter picadinho de soja.
– Ótimo – disse Carter.
– A soja faz-me gases – murmurou Welland, e estendeu a mão para
alcançar a sua Coca-Cola. Ainda não tomara banho desde que fizera
o «exercício» do dia e Carter reparou na sujidade debaixo das unhas. Lutou
contra um espasmo de repulsa e bebeu um pouco de cerveja.
– Conseguiste resolver tudo hoje? – perguntou Miles a Welland
despreocupadamente, como se estivesse a perguntar sobre uma questão de
decoração de luzes em vez da incineração dos corpos dos amigos. E também
como se há menos de duas horas não tivessem tido armas apontadas à
cabeça uns dos outros.
– Sim – murmurou Welland. – Está tudo despachado. Mas aquela carga
toda vai afetar o incinerador.
– Estou ciente disso – respondeu Miles, colocando massa fumegante em
tigelas. – E é por isso que é ainda mais vital recuperarmos o gerador da
estação do teleférico amanhã.
– Amanhã? – perguntou Carter.
– Não podemos adiar.
– Mas e… – Ele hesitou antes de pronunciar o nome dela. – E a Caren?
Miles trouxe as tigelas e colocou-as na bancada. O cheiro era intenso. O
estômago de Carter revirou-se.
– Parmesão? – Miles tinha na mão um pacote.
– Não, obrigado – disse Carter, bebendo mais cerveja.
Welland ergueu um garfo fumegante repleto de comida e enfiou-o na
boca sem esperar por mais ninguém.
Miles trouxe o seu próprio prato, sentou-se e ergueu o seu copo de vinho.
– Aos sobreviventes.
Carter hesitou, depois ergueu a sua cerveja. Welland engoliu
ruidosamente e ergueu sem convicção a sua lata de Coca-Cola.
Miles olhava atentamente para eles. À luz cintilante da vela, Carter
pensou em Hannibal Lecter. Ele podia muito facilmente imaginar Miles a
passear casualmente em torno da ilha, a levantar o topo das suas cabeças e a
retirar com uma colher pedaços dos seus cérebros. Para degustar com um
bom chianti.
E depois isso fê-lo pensar em Nate. Carter mal tinha pensado nele desde
que tinha morrido. Que raio de amigo. Na realidade, a sobrevivência não
dava direito ao luto. A vida não tinha perdido completamente o seu valor.
Mas era certamente mais barata do que tinha sido outrora.
Miles pousou o seu copo.
– Então, logística. A nossa tarefa de arranjar novas reservas não correu
exatamente como planeado. No entanto, pelo menos temos um Plano B.
– Podemos ao menos chamá-la pelo nome? – disse Carter, trespassando
um pedaço de massa com o garfo. – Caren.
– Claro. Se a Caren recuperar…
– Ninguém recupera, pá – disse Welland. – Ou morres ou és um Whistler.
– Ou uma reserva – Carter não conseguiu impedir-se de dizer
amargamente.
Miles deixou cair o garfo com um ruído.
– E algum de vocês tem algum problema com isso?
Sim, pensou Carter, mas que escolha tinham eles?
– Será que faz alguma diferença?
Welland abanou a cabeça.
– Melhor ela do que nós, meu.
– Exatamente – disse Miles. – E se não tivermos reservas regulares
suficientes para o Quinn, estamos todos mortos.
Algo ocorreu a Carter.
– Achas mesmo que vais ter plasma viável dentro de quarenta e oito
horas? Normalmente, isso leva três ou quatro dias.
– Estou ciente disso. Se assim for, posso empatar o Quinn. Mas, mais uma
vez, é por isso que é importante que a nossa energia esteja totalmente
reparada e os nossos sistemas de segurança estejam a funcionar
eficientemente.
Carter olhou para ele.
– Então, nós ainda temos de caminhar até à estação do teleférico?
– Nós, não.
O estômago de Carter embrulhou-se. Ele abanou a cabeça.
– Não.
– Preciso de ficar aqui para vigiar a Caren – disse Miles firmemente. – O
Welland precisa de controlar a energia.
– E também por causa da minha asma… – começou Welland a dizer.
– Puta que pariu a tua asma – respondeu Carter agressivamente.
Welland parecia magoado.
– Ei. Tenho um problema de saúde.
– Tu não tens asma. Eu sei que aquelas bombas que tu ocasionalmente te
dás ao trabalho de passear só estão cheias de ar.
Welland abriu-lhe os olhos.
– Ai sim, bem, e tu? Nem sequer devias estar aqui. Quero dizer, o Miles
encontra-te na montanha, meio congelado, a cara desfeita. De onde raio
vieste? Dizes que não te lembras, mas aposto que Carter nem sequer é a
merda do teu nome verdadeiro.
– Basta! – Miles bateu com a mão na mesa. Os talheres saltaram. Tal
como Carter e Welland.
– Não podemos continuar a lutar entre nós desta maneira. – Miles olhou-
os com frieza. – Se queremos viver, precisamos de trabalhar juntos.
Entendido?
Ambos murmuraram respostas afirmativas como crianças repreendidas.
– Carter – continuou Miles. – Estou a contar contigo. És o único que é
capaz de recuperar aquele gerador. Eu não te pediria para o fazeres se assim
não fosse.
Tretas, pensou Carter. Miles pedia-lhes para fazerem o que fosse
necessário. E normalmente nem sequer pedia. No entanto, Miles também
era o único que entendia porque Carter preferia arrancar os seus próprios
olhos com uma colher do que voltar para a estação do teleférico.
Ele suspirou.
– Sim, eu sei.
Welland enfiou um último pedaço de comida na boca e empurrou
a cadeira para trás.
– Estou estafado, meu. Vou dormir. Amanhã é um grande dia.
Sim, para estares de cu alapado sem fazer nada, pensou Carter, mas
conseguiu impedir-se de dizer. Ele olhou para a sua própria comida,
praticamente intacta. Ele tinha ainda menos apetite agora. Welland
levantou-se, e Dexter, que tinha permanecido enrolado na sua «cadeira de
cão», saltou e pôs-se de pé, abanando a cauda.
– Devia deixá-lo ir à rua – disse Carter, feliz pela distração.
– Como quiseres – disse Miles, a beber calmamente o seu vinho.
Carter pegou em Dexter e desceu as escadas. Ele retraiu-se.
– Meu, cheiras mesmo mal, Dex. Precisas de um banho. – Dexter respirou
alegremente para a cara dele. Carter sentiu náuseas e segurou-o à distância,
colocando-o no chão assim que chegaram ao corredor. – Tens andado a
comer merda de lobo outra vez?
Dexter ladrou feliz e correu para a porta. Carter agarrou num casaco
grosso e em botas espessas e calçou-as. Muitas vezes ele levava Dexter para
um último passeio pelo Retiro, à noite. Eles não iam muito longe. Carter
estava ciente de que Dexter poderia fazer parte da próxima grande
evacuação de um lobo se não tivesse cuidado. Mas o passeio noturno dava-
lhe uma estranha sensação de normalidade.
Quando ele e a irmã eram crianças, os seus avós tinham tido um cão. Um
rafeiro, ou «Heinz 57», como o seu avô costumava dizer. O nome dele era
Bruno. Era velho, um pouco surdo e propenso a dar os peidos mais
excruciantes. Mas Carter adorava aquele rafeiro estúpido. Adorava a sua
inquestionável devoção, otimismo e lealdade. Carter tinha sido um miúdo
esquisito e com excesso de peso. Não tão diferente de Welland – e, se Carter
fosse brutalmente honesto, poderia ser por isso que o detestava tanto. Bruno
não o julgava, não se importava. Nem com a acne de Carter, a enorme
barriga ou o cabelo frisado. Foi o mesmo sentimento de aceitação que ele
teve com Dexter. O animal nunca recuaria horrorizado perante o rosto
mutilado de Carter ou veria a escuridão no seu coração desfeito. Nada na
vida era tão simples ou puro como o amor de um cão. Carter adivinhou que
era por isso que aturava que ele farejasse as suas virilhas e o mau hálito.
Ele empurrou a porta e Dexter saiu para a neve cheia de pegadas.
Os flocos a flutuar tinham diminuído e o vento tinha perdido alguma
intensidade. Amanhã, a tempestade já deveria ter abrandado. Carter tirou a
sua lanterna do bolso e foi atrás de Dexter.
Como Quinn tinha explodido o sistema elétrico da vedação, a iluminação
de segurança estava desligada e a propriedade às escuras. O terreno abrangia
uma área bastante grande. Cerca de quatro mil metros quadrados. No verão,
quando o Sol ia alto no céu e a neve tinha quase derretido, os sete
costumavam ficar por aqui às vezes. Miles preparava o churrasco e servia
Pimm’s enquanto Caren apanhava banhos de sol, Julia e Nate jogavam ao
disco e Welland se queixava do calor. Oh, e Jackson, bem, ele costumava
estar algures.
Não podia durar muito. Obviamente. Não há bem que sempre dure. Mas
sabia bem fingir que as coisas eram normais, só por algumas horas.
Carter seguiu Dexter pelas traseiras do Retiro. Logo após a vedação, ele
conseguia ver o bosque. Algures no interior estava o incinerador. Havia um
segundo portão nas traseiras que permitia a passagem. Carter não sabia
porque é que o incinerador não tinha sido construído dentro do terreno.
Talvez tenha sido um acrescento posterior à construção do Retiro. Talvez
por ofender a sensibilidade das pessoas terem o cheiro dos corpos a serem
queimados tão perto. Os humanos não gostavam que lhes lembrassem da
morte, mesmo convivendo de perto com ela todos os dias da sua vida.
A cremação era essencial. Seis vias de contágio. Enterrem os corpos dos
infetados e correm o risco de os cadáveres serem desenterrados por
predadores, como lobos ou coiotes, ou mesmo ursos. Alguns nativos das
aldeias remotas ainda caçavam e comiam a carne desses animais. Embora o
contágio por ingestão fosse mais raro, isso acontecia. O vírus era inteligente.
Sangue, fluidos corporais, ar. Encontrava constantemente novas formas de se
propagar. O verdadeiro Elon Musk da infeção.
Algures mais à frente, Carter podia ouvir Dexter a raspar e a farejar.
Provavelmente, a escavar algo desagradável. Carter bateu os pés e acenou
com a lanterna. Ele não conseguia ver o pequeno cão. O seu pelo branco e
castanho sujo tendia a misturar-se com a neve.
A lanterna iluminou a vedação e as árvores mais além. A única coisa
visível: o telhado do incinerador. Anya, Nate, Julia, pensou ele. Todos
queimados lá dentro. Carne, pele, osso e do que mais sejamos feitos. Tudo
desapareceu. Tudo pó, agora.
E aqui estava ele, entregue a Welland e a Miles. Um pobre cabrão e um
sociopata. Carter perguntou-se novamente se um deles teria esfaqueado
Julia. Miles seria suficientemente capaz, mas Miles não fazia nada sem ter
uma boa razão. E Carter não conseguia pensar numa boa razão para ele
matar Julia. Além disso, se Miles tinha dito a verdade, ele tinha ficado
trancado numa câmara de isolamento enquanto Julia estava a ser
esfaqueada. Restava Welland. Ou Caren, admitiu Carter. Caren não estava
em condições de confessar. E Welland? Ele tinha a certeza de que Welland
mataria para salvar a própria pele, desde que não lhe exigisse muito esforço
ou interferisse com a hora das refeições.
Mas isso ainda trazia Carter de volta à questão do porquê. Porque é que
alguém quereria matar Julia? E porque estaria ele tão preocupado com isso?
Matar não era algo novo para ele. Ele próprio tinha tirado vidas. Por boas e
más razões. Mas havia sempre uma razão. Matar por desporto – isso
incomodava-o.
Não era a única coisa. Mesmo com Caren, a fonte de plasma deles tinha
diminuído. De três para dois, e a Reserva 03 não duraria muito mais. Só
haveria o suficiente para eles os três e para Quinn. Qualquer plasma que
desaparecesse seria óbvio. Miles ficaria atento. O que significava que Carter
já não conseguiria escapar ileso com o envio dos seus embrulhos. Na
verdade, ele nem sabia se os pacotes que enviou estavam a ser recebidos. Ou
usados. Mas era tudo o que ele podia fazer.
Uma súbita explosão de latidos fê-lo saltar e quase deixar cair a lanterna.
Dexter apareceu do nada, terra e agulhas de pinheiro presas ao pelo, e
passou disparado por Carter na esquina do Retiro. Mas que raio?
Carter suspirou e correu atrás dele, o peito contraído pelo esforço, os pés
a escorregar sobre a neve lisa. Ele apontou a sua lanterna na direção do
latido enfurecido. Dexter percorria a vedação de um lado para o outro, pelos
eriçados, os pequenos e afiados dentes arreganhados.
Além da vedação, a alguns metros de distância, havia Whistlers. Merda.
Eram talvez uma dúzia. Vestidos com um sortido de roupas roubadas e
peles de animais. Os capuzes tapavam-lhes a cabeça. Só um borrão branco
do seu rosto era visível. Eles traziam lanças afiadas e bestas. Eles não se
moviam, mas Carter conseguia ouvir o som da respiração deles enquanto
estavam de pé, a olhar para o Retiro. Como um vento distante assobiando
em redor dos beirais.
Carter sentiu os pelos do seu próprio pescoço a eriçarem-se. Que merda
estavam eles aqui a fazer? Os Whistlers nunca tinham chegado tão perto do
Retiro. E nunca tantos. No início, houve um ou outro solitário que se tinha
aproximado, talvez à procura de comida ou de abrigo. A vedação elétrica
depressa os tinha ensinado a manterem-se bem longe.
Agora, a vedação não estava a funcionar e o portão estava aberto.
No entanto, o grupo mantinha a sua distância. Talvez soubessem que a sua
mera presença aqui já era uma ameaça. Talvez isto fosse a vingança por
terem invadido o território deles hoje. Um aviso.
Isto era preocupante por duas razões. Primeira: significava que os
Whistlers eram mais organizados e inteligentes do que Carter e os outros
tinham imaginado. Segunda: significava que eles estavam chateados.
Uma das figuras deu um passo à frente. Era mais alto do que alguns dos
outros. Uma barba saía do capuz esfarrapado. Carter instintivamente pegou
na sua arma. Em simultâneo, três Whistlers atrás da figura mais alta
ergueram as bestas. Ponto assente. Carter afastou a mão da arma.
Os Whistlers mantiveram as bestas apontadas.
A primeira figura tinha algo na mão. Dexter ganiu e escondeu-se atrás das
pernas de Carter. A figura deu mais um passo na direção do portão. Merda.
Mais uns passos e ela podia simplesmente entrar. Carter tinha uma arma,
mas os Whistlers eram superiores em número e ferocidade.
A figura parou. A centímetros do portão. Carter susteve a respiração.
Conseguia sentir os olhos do Whistler sobre ele. Depois o Whistler deixou
cair na neve o que tinha na mão e recuou. Os Whistlers armados baixaram
as suas bestas e, todos juntos, viraram-se e voltaram a descer a encosta
nevada da montanha.
Carter soltou um suspiro de alívio. Quando ele estava certo de que
os Whistlers não iriam voltar, foi até ao portão aberto, estendeu a mão
e pegou no que o líder tinha deixado.
Ele franziu o sobrolho. Um maço de correias de identificação de plástico.
Estavam sujas e rachadas, mas obviamente tinham pertencido ao pessoal do
Retiro. Antigos membros do pessoal. Enfermeiros, pessoal de limpeza,
médicos. Todos mortos agora. Cinzas e pó.
Mas porque é que os Whistlers as tinham? As correias deviam ter sido
incineradas com os corpos dos infetados. E porque é que os Whistlers as
trouxeram para aqui? Carter foi vendo uma a uma, caras e nomes que não
lhe eram familiares. E então ele fez uma pausa…
Um rosto que ele conhecia. Demasiado bem. Mas um nome
desconhecido.
Carter olhou para a correia por um momento, sentindo um frio nos seus
ossos, e depois enfiou-a no bolso.
As coisas estavam a começar a fazer sentido.
Ele sabia que um deles estava a mentir.
Agora, ele sabia porquê.
Hannah

Ela seguiu Cassie pelos degraus que rangiam, Daniel atrás dela.
A cave era longa e estreita. No fundo, Hannah podia ver um saco-cama,
uma lanterna de campismo e lixo variado. De ambos os lados, as prateleiras
improvisadas continham pilhas de comida enlatada, água engarrafada, velas
e remédios. Um pequeno arsenal de armas amontoava-se no pouco espaço
das paredes.
À sua direita estava pendurada uma fila de facas de caça com aspeto
perigoso e duas bestas. À sua esquerda, um porta-armas segurava três
espingardas longas, uma semiautomática e uma pistola. As caixas de
munições estavam empilhadas por baixo.
– Vês o que eu quero dizer? – Cassie sorriu. – O avô Joe teria estado nas
suas sete quintas aqui em baixo.
– Quem é o avô Joe? – perguntou Daniel.
– Não queiras saber – disse Hannah.
Ela olhou em volta. Ponto positivo, podiam armazenar comida e água.
Ponto negativo, ainda havia algo que a perturbava na confissão de Daniel.
Ele tinha admitido que colocara ilegalmente a irmã a bordo e se fizera passar
pelo motorista. E é tudo o que tens para nos contar? Não, pensou ela. Havia
algo mais.
– Bem, por mais agradável que isto seja – disse Daniel sarcasticamente –,
tenho de voltar e ver como está a Eva.
Ele voltou a subir os degraus, que rangiam face ao seu peso.
– Estava a pensar que nos podíamos esconder aqui – disse Cassie. –
Teríamos comida, armas. Ninguém nos encontraria.
Hannah abanou a cabeça.
– Se nós encontrámos este bunker, o meu pai também o encontra.
Devíamos pegar no que precisamos e partir assim que amanheça.
Cassie cerrou o maxilar.
– Acho que estás errada.
– Não estou.
Cassie parecia que estava prestes a discutir, mas depois anuiu e voltou-se
para as armas.
– Muito bem. Se tu o dizes. – Ela pegou numa caçadeira e analisou-a.
– Devias ter cuidado com isso – disse Hannah.
– Oh, o avô Joe ensinou-me tudo sobre armas e facas.
Facas, pensou Hannah. Era isso.
A ferida no pescoço de Ben. Não pode ter sido feita com um pedaço de
vidro, mas sim com uma lâmina fina. Uma faca.
Como a faca que ainda estava cravada no pescoço do Whistler.
A faca que Daniel lhe tinha dado.
– Volto num minuto – disse ela a Cassie, e subiu as escadas.
Daniel estava ajoelhado junto à lareira. Tinha feito um berço improvisado
a partir de uma das gavetas da cómoda e colocado Eva dentro dele. Ele
tentava acalmar a bebé enquanto a aconchegava nos seus cobertores.
Hannah observou-o, depois disse sem rodeios:
– Porque mataste o Ben?
– O quê? – Daniel girou sobre os calcanhares, a olhar para ela. – O Ben
matou-se.
– Não. – Hannah abanou a cabeça. – A ferida no pescoço dele não pode
ter sido feita por um pedaço de vidro. E tu eras o único que tinha uma faca.
Ela viu a expressão dele desvanecer.
– A faca não é minha – disse ele.
– Então de onde é que veio?
– Eu encontrei-a. Quando abri a porta da casa de banho e vi o Ben, a faca
estava no chão. Apanhei-a, limpei-a e guardei-a. Não sei porquê. Acho que
pensei que podia precisar dela.
Hannah estudou-o, à procura da mentira.
– Porque é que devo acreditar em ti? Já mentiste sobre quem eras e o que
estavas a fazer no autocarro.
Daniel suspirou.
– Fi-lo pela Peggy.
– Trabalhaste na cozinha, manuseavas facas.
– Não. Lavava panelas, principalmente. Não sabia cortar uma peça de
carne. Certamente não seria capaz de cortar a garganta a outra pessoa.
Mas havia aqui alguém que seria, pensou Hannah.
«Eu conseguia partir o pescoço de uma galinha ou cortar a garganta de uma
cabra para que sangrasse depressa.»
– Cassie – murmurou ela.
– Chamaste?
Hannah virou-se. Cassie estava no topo dos degraus da cave, a
semiautomática nas mãos.
Hannah tentou manter a sua voz despreocupada:
– Vejo que escolheste uma arma diferente.
– Sim. Pensei que esta seria mais útil.
Hannah anuiu.
– Talvez precisemos de nos defender.
– Boa tentativa. – Cassie sorriu. – Eu ouvi-te a falar.
– Eu estava…
– … prestes a acusar-me de matar o Ben?
– Não.
– Vá. Pergunta-me.
Hannah engoliu em seco.
– Eu não acho…
– Pergunta-me.
Os olhos delas encontraram-se.
– Mataste o Ben? – perguntou Hannah.
– OK, apanhaste-me.
– Porquê?
O sorriso desvaneceu-se.
– Porque ele era um problema para nós e ia morrer de qualquer maneira.
Eu apenas o ajudei.
– A sério?
Cassie suspirou.
– Olha, levantei-me para ir à casa de banho. O Ben já estava desmaiado lá
dentro. Tinha tentado cortar os pulsos com um vidro partido, fez uma
trapalhada do caralho. Então eu terminei o trabalho.
– Com uma faca que trouxeste ilegalmente para bordo?
– Um presente de aniversário do avô Joe… Fiquei bastante chateada
quando percebi que a tinha perdido.
– E agora? – perguntou Hannah. – Também estás a planear «ajudar-nos»?
– Não precisas – disse Daniel rapidamente. – Eu percebo. Eu entendo
porque é que ajudaste o Ben a morrer. Foi provavelmente a coisa certa
a fazer. Não precisamos de nos chatear por causa disto, certo?
Cassie abanou a cabeça.
– Desculpa, pá. Errado. Portanto, isto é o que eu acho. O Departamento
está à procura de quatro sobreviventes, certo? E com o maluco desta cabana
há quatro. Então, se eles vos encontrarem a todos, mortos, numa cabana
queimada, trabalho feito. Enquanto eu fujo e ninguém vai à minha procura.
– Ela encolheu os ombros. – Eu tenho de te matar. É apenas sobrevivência.
– Cassie – disse Hannah calmamente. – Por favor, não faças isto. Tu não
és assim.
Os olhos de Cassie semicerraram.
– Não fazes ideia de quem eu sou. Outra coisa que o meu avô me ensinou.
Ou és boa pessoa ou és um sobrevivente. E o cemitério está cheio de pessoas
insubstituíveis.
Ela apontou a arma a Hannah. A bebé chorou. Por uma fração de
segundo, os olhos de Cassie viraram-se naquela direção. Hannah aproveitou
a oportunidade. Correu para a cozinha, atirando-se pela porta e aterrando
com força sobre as mãos e os joelhos. Atrás dela, as tábuas do chão foram
alvo de tiros. Ela ouviu Cassie praguejar.
– Foda-se!
– Para, Cassie. Por favor!
A voz de Daniel. Hannah olhou para trás. Ele levantou-se, segurando o
berço improvisado à sua frente. Cassie olhou para ele, apontando a arma.
– Espera – disse Daniel, soando desesperado e assustado. – Mata-me se
quiseres. Mata a Hannah. Não quero saber. Mas poupa a bebé. Por favor.
Leva-a contigo.
Cassie abanou a cabeça.
– Desculpa, mas essa coisa é apenas um peso morto.
– Nesse caso – Daniel atirou-lhe a gaveta –, apanha.
Cassie disparou. A madeira explodiu no ar. Hannah gritou antes de
perceber que a gaveta estava vazia. Enquanto Cassie falava, Daniel deve ter
retirado Eva com cuidado e deitado atrás do sofá.
Naquele momento, ele lançou-se para a frente e agarrou na arma que
tinha deixado pousada na almofada. Cassie voltou a apontar, mas Daniel
disparou primeiro. As balas atingiram Cassie no estômago. Ela balançou e
cambaleou para trás. Daniel disparou outra vez. Cassie foi contra a parede
do barracão e gradualmente deixou-se cair até ao chão, a arma escorregando
da mão dela, os olhos muito abertos e surpreendidos.
Hannah levantou-se e saiu da cozinha. As pernas dela estavam a tremer.
Daniel estava sobre o corpo de Cassie. Hannah podia ver que ela estava a
esvair-se em sangue, mas ainda respirava, com dificuldade. Daniel ficou a
olhar para ela.
– O meu avô também me ensinou a disparar. E sabes o que mais me
ensinou? Se o cemitério está cheio de pessoas insubstituíveis… o inferno
está cheio de cabras de merda como tu.
E depois ergueu a arma e baleou o rosto de Cassie.
Meg

Meg viu as emoções tomarem conta do rosto de Sarah. Medo, desespero,


negação.
– Vem comigo – disse Meg. – Nós conseguimos as duas fazer isto.
Sarah abanou a cabeça.
– Não. Não posso. Não vou conseguir. Vou cair antes de chegar a meio do
caminho.
– Não é assim tão longe.
Sarah abanou a cabeça com mais força.
– Eu nem conseguia agarrar-me às barras do recreio quando era criança.
– Ela pestanejou, tentando reprimir as lágrimas, a voz embargada. – Vou
cair e vou morrer.
– Se ficares aqui, vais morrer, Sarah. Não vem ninguém ajudar-nos.
Sarah agarrou a cruz.
– Bem, essa é a vontade de Deus.
– Não. – Meg olhou para ela com raiva. – É tua.
– Não consigo – repetiu Sarah. – Por favor. Respeita a minha escolha. –
Ela olhou através do vidro. – Vai tu. Se conseguires, tenta arranjar ajuda.
– Não posso simplesmente deixar-te aqui.
– Podes sim.
Elas olharam uma para a outra.
– Eu tenho de fazer isto – disse Meg.
Sarah anuiu.
– Eu sei.
– Não posso simplesmente esperar aqui e morrer.
– E eu não me posso matar lá fora.
Merda. Meg susteve a respiração. E depois, estranhamente, inclinou-se
para a frente e abraçou-a.
Depois de um momento, Sarah retribuiu o abraço.
– Desculpa.
– Desculpa também.
Elas libertaram-se do abraço e Meg olhou para o alçapão.
– OK.
Ela subiu para o banco. Isto é uma loucura, pensou ela. Estava a sofrer de
privação de alimentos e de desidratação e aqui estava ela, prestes a tentar
atravessar mais de duzentos metros ao longo de um cabo de aço suspenso a
trezentos metros do chão com temperaturas abaixo de zero. Totalmente
louca. E uma pequena parte dela respondeu: Sim, claro que sim.
Ela aproximou-se do alçapão e empurrou-o com as pontas dos dedos.
Agora, não estava carregado de neve, conseguiu abri-lo facilmente.
Imediatamente, Meg sentiu uma rajada de ar gelado, e alguns flocos de neve
leves entraram na cabina. Ela tremeu. As pernas fraquejaram. Mas ela tinha
de fazer isto. Ela não podia confiar em Sean. Ele era um assassino,
provavelmente até de mais duas pessoas. Ele tinha deixado outro homem
morrer. Como podiam contar com um homem assim para as salvar? Como
sempre nesta vida, se queríamos ser salvos, tínhamos de o fazer nós mesmo.
– Sarah – disse ela, olhando para trás. – Vou precisar que me dês um
impulso para passar o alçapão.
– Está bem.
Sarah agarrou as nádegas dela e empurrou. Meg tentou segurar-se
ao tejadilho, mas escorregou para trás.
– Vou ter de subir para os teus ombros – disse ela.
– Tudo bem.
Sarah agachou-se. Meg subiu. Sarah tentou endireitar-se e fraquejou. Ela
estava certa, pensou Meg. Ela não era forte. Era magra e frágil, e a fome só
estava a piorar a sua condição. Mas depois ela ouviu um grunhido. Com um
óbvio esforço, Sarah agarrou num corrimão e deu impulso suficiente para
que Meg pudesse erguer a metade superior do corpo até ao tejadilho. Meg
foi serpenteando no metal escorregadio como uma foca e conseguiu passar
as pernas logo a seguir.
Ficou deitada, sobre o teleférico, a respirar ofegantemente. O pior da
tempestade podia ter passado, mas lá em cima o vento ainda se fazia sentir
furiosamente em torno dela, tentando arrancá-la do seu poiso. Se Meg se
mexesse, parecia que uma rajada repentina poderia arrancá-la do tejadilho e
atirá-la indolentemente para a morte. Se ela quisesse chegar ao cabo de
apoio, teria de ficar de pé. Para conseguir subir o braço de metal que prendia
o teleférico ao cabo e depois atravessar.
Sean tinha razão. Loucura. Uma missão suicida.
Ele teria conseguido? Ou estaria deitado morto e congelado na neve
abaixo delas?
Meg tinha de acreditar que ele o tinha feito.
Porque se aquele sacana o conseguia fazer, ela também conseguia.
– Estás bem? – ouviu-se a voz de Sarah pelo alçapão aberto.
Não. Tenho medo, pensou Meg. E ela não o esperava. Pensava que a morte
seria bem-vinda. Mas isto não dizia só respeito a ela agora. A sobrevivência
de outra pessoa dependia dela. Alguém de que ela nem gostava, mas era
uma pessoa, com uma vida, que queria vivê-la por um pouco mais de
tempo. Raios.
– Estou bem. Vou fechar o alçapão.
– Tens a certeza?
– Tenho.
Meg afastou-se um pouco. Os seus pés estavam perto da borda do
tejadilho. Ela esticou um braço e agarrou a porta do alçapão.
– Boa sorte – gritou Sarah. – Vai com Deus.
Meg fechou o alçapão com um distinto bum. O teleférico balançou. Meg
agarrou-se ao tejadilho, o estômago revirado e a cabeça a girar. Vertigens.
Ela precisava de se agarrar, tanto literalmente como metaforicamente.
Respirar fundo. Calma. Concentração. Um passo de cada vez.
Ela ergueu a cabeça, semicerrando os olhos contra o vento. OK.
O teleférico estava preso ao cabo acima por um braço de metal grosso, mais
alto do que ela. Havia uma escada ao longo da lateral, presumivelmente para
técnicos e equipas de resgate (ah!). Meg teria de rastejar até ela. Depois,
elevar-se até à escada e subir até ao topo para alcançar o cabo. A partir daí,
precisaria de balançar as pernas para cima até se pendurar no cabo e depois
atravessá-lo até à estação. A subida foi insignificante nesta fase. Mais à frente
a inclinação seria demasiado acentuada.
Ela era capaz, disse Meg a si própria. Ela tinha de ser capaz.
Começou a serpentear de barriga para baixo no tejadilho do teleférico.
Alcançou o braço de metal e agarrou o primeiro degrau da escada.
Ajoelhou-se. As tonturas voltaram a ameaçar e ela fechou os olhos e contou
até cinco. Então tremeu e colocou o pé no primeiro degrau. O vento
fustigou-a. Ela agarrou-se com mais força. Não olhes para baixo. Finge que
isto é um exercício de treino. Recruta da polícia. O trilho de obstáculos. A
escalada horizontal de corda. Tu és melhor nisto do que os gajos. Tu consegues.
Já conseguiste antes.
Meg subiu para o segundo degrau. O terceiro. A respiração dela estava
acelerada, o coração a mil. Ela sentiu fraqueza nas pernas. Em parte, fome.
Em parte, medo. Ela lembrou-se de correr uma maratona. A mesma
sensação. Não era físico. Era mental. Ela cerrou os dentes e escalou os três
últimos degraus. Estava agora no topo da escada, o tejadilho do teleférico
abaixo dela, o grosso cabo de aço à sua direita.
O vento voltou a fustigá-la e o teleférico rangeu. Meg conhecia a sensação.
O frio já estava a afetar-lhe os membros. Ela não podia ficar aqui. Precisava
de se mexer e continuar a andar. Ela olhou para baixo. E sentiu-se a
balançar. Sob ela, apenas branco e, mal visível, as pontas dos pinheiros.
Parecia impossivelmente alto. Estou no topo do mundo, mãe.
Meg alcançou o cabo. Era grosso. As mãos dela, envoltas pelas luvas, mal
o contornavam. Isso tornaria ainda mais perigoso o percurso. Sem as luvas,
as mãos dela ficariam dormentes de frio em segundos. Ela precisava de se
agarrar com firmeza e de levantar as pernas.
Mas não o conseguia fazer. O corpo dela estava congelado. Ela tinha
bloqueado. E a cada segundo que passava era menos provável que ela fosse
capaz de o fazer. O frio estava a corroer-lhe os ossos. O tempo estava a
consumir a sua determinação.
Mexe-te, raios te partam. Mexe-te.
Mas os seus pés permaneciam firmemente assentes no degrau da escada.
O teleférico balançou novamente. Meg podia sentir os dedos a ficarem
dormentes. Tinha de se mexer antes de ficar demasiado gelada para se
aguentar.
Pensa. Pensa em algo para quebrar o bloqueio.
– Tu consegues, mamã.
Ela olhou para baixo. Lily. A sua filha estava ao fundo da escada, a olhar
para cima. Os flocos de neve tinham assentado nos seus cabelos
encaracolados. Ela usava o seu lindo vestido amarelo de verão. Claro que
usava. Como a expressão daquele velho filme da Disney. O frio não a
incomodava. Porque haveria de incomodar? Ela estava morta.
– Lily?
– Tu consegues, mamã. É mesmo como as barras do parque.
A sua menina sorriu-lhe. Um fantasma. Uma aparição. Um sintoma da
sua mente deteriorada. Falta de comida. Hipotermia, talvez. Meg fungou,
reprimindo as lágrimas.
– Estou com medo.
– Eu sei, mamã. Mas está tudo bem.
– Nunca pensei que tivesse medo de morrer.
– Não é medo de morrer. É medo de falhar.
Porque se atrevia Meg a ter medo da morte, quando a sua filha a aceitou
tão corajosamente?
– Eu quero estar contigo, querida.
– Eu sei, mamã. Mas ainda não.
– Lily?
Mas ela tinha desaparecido. Um fantasma de vento e neve. Meg fungou
novamente. Ela olhou para a frente, para a estação do teleférico.
Tu consegues.
Ela cerrou os dentes, agarrou o cabo e tentou passar a perna sobre ele. O
pé dela escorregou. Merda. Meg esforçou-se e conseguiu voltar a pô-lo na
escada. Foda-se. Precisava de mais balanço. Ela colocou as mãos mais à
frente no cabo, encostou os pés ao sólido braço mecânico e desta vez
conseguiu passar uma bota por cima do cabo. Depois a outra. Ela estava lá.
Pendurada, a tentar salvar a vida. Embora não necessariamente a sua.
Agora, a parte mais complicada. Precisava de se mexer. Meg deslizou as
mãos ao longo do cabo, desejando ter mais sensibilidade através das luvas,
esperando que não começassem a escorregar. Ela movimentou também os
pés. O vento sacudiu-a como se a quisesse arrancar dali. Os tendões dos
braços já lhe doíam. Precisava de se mexer mais depressa. O balanço ajudá-
la-ia a resistir ao vento. Assim que lhe tomasse o ritmo, poderia continuar a
oscilar o resto do caminho. Oscilar, pensou Meg um pouco histérica. Oscila,
cabra, oscila.
Ela voltou a mexer as mãos, as pernas também. E outra vez. Um pouco
mais rápido. O teleférico já não estava por baixo dela. Abaixo, nada além de
ar e neve, neve que pode parecer uma mancha macia e fofa, mas que seria
tão dura quanto cimento se ela caísse desta altura. Uma aterragem
semelhante à de uma pedra.
Não penses nisso, disse Meg para si mesma. Concentra-te apenas na tarefa
que tens em mãos. Encontra um ritmo. Quando se apanha o ritmo, torna-se
mais fácil. Qual era a canção que te disseram para cantar quando fazias
respiração boca a boca? Stayin’ Alive. Isso. Ah, ah, ah, ah. Mexe-te a esse
ritmo.
Meg ia avançando. Ah, ah, ah, ah. Doíam-lhe os braços, mas ela também
não podia pensar nisso. Canta para mim, Barry. Canta, querido.
Deve estar a meio caminho. Ela virou o pescoço. Mas, quando o fez, um
pé escorregou. O coração de Meg disparou. A adrenalina tomou conta do
seu corpo. Seguiu-se o outro pé. Um grito soltou-se e ficou sufocado na sua
garganta. A dor atingiu-lhe as omoplatas. Ela agarrou-se. Só. Mas agora
estava pendurada, a balançar, o vento a embalá-la. Ela precisava de voltar a
levantar os pés. Mas os seus braços doíam-lhe muito. Ela não tinha a certeza
se tinha forças para o fazer.
Tu consegues, mamã. É mesmo como as barras do parque.
Ela balançou. Não suficientemente longe. Foda-se. O vento sacudiu-a.
Mas estava a embater por trás. Ela podia aproveitá-lo. E só tinha mais uma
oportunidade antes de os seus braços desistirem. Meg balançou com mais
força, elevando as suas pernas. Sim. Enganchou um calcanhar. Depois o
outro. Ela estava de volta.
Mas as suas reservas energéticas eram inferiores a zero. Ela precisava de se
mexer. Continuar a mover-se. Continuar a viver. Continuar a mover-se.
Continuar a viver. Os músculos dos braços de Meg gritavam de agonia. Ela
queria chorar, mas não tinha energia para isso. Como seria muito mais fácil
largar-se agora. Cair. Para se juntar a Lily.
Não. Ela não cederia. Ela não era uma desistente. E depois havia Sean.
Diabos a levem se o ia deixar escapar.
Continua. O vento parecia estar a diminuir. As nuvens brancas acima dela
deram lugar a uma sombra cinzenta. Estruturas elétricas. Um telhado de
metal cinzento. A estação. Meg estava sob a cobertura do telhado da
plataforma. Ela ia ser capaz. Ela ia conseguir.
Ela girou o pescoço. Agora, conseguia ver outro problema. À sua frente
estava o mecanismo que se prendia ao teleférico e o direcionava para a
estação para o desembarque. Meg não conseguiria passar por aquilo, por
isso precisava de se soltar e cair mesmo antes de o alcançar. Mas isso iria
deixá-la mesmo na borda da plataforma. Se falhasse, cairia na montanha
nevada lá em baixo. Uma grande queda. Ela poderia não morrer, mas
provavelmente poderia fraturar um membro ou dois, o que a deixaria inútil
para qualquer um, para qualquer coisa.
A cabeça dela tocou em metal. Uma roda grande onde o cabo se enrolava.
Certo. Ela precisava de deixar cair os pés, depois direcionar-se de forma a
estar de frente para a estação e depois balançar-se para tentar pousar na
plataforma.
Meg agarrou bem o cabo – um, dois, três – e soltou os tornozelos. Ela
gemeu. A dor disparou sobre as omoplatas. Os braços estavam agora a
suportar todo o seu peso novamente. Os músculos de Meg protestaram,
furiosos. Ela só precisava de se agarrar um pouco mais. Ela conseguiu
segurar-se da melhor forma para poder ver a borda da plataforma. Neste
momento, estava pendurada a alguns centímetros de distância. Se ela se
largasse simplesmente, iria falhar.
Ela precisava de ganhar algum impulso. E depois saltar. Foda-se. Meg
contraiu os músculos abdominais e começou a balançar as pernas. Para trás
e para a frente, para trás e para a frente. Continuar a viver, porra. Para a
frente e para trás. Só mais uma vez e deve conseguir propulsão suficiente
para se soltar e saltar. É agora ou nunca, Barry.
Com todo o seu esforço, Meg atirou-se para diante, apontando os pés para
a frente, e – siiiim – alcançou a plataforma, mesmo na borda. Ela derrapou,
o tornozelo esquerdo torceu-se desajeitadamente e caiu, aterrando de cara
no cimento. Mas estava no chão. Ela tinha conseguido. Terra firme.
Por um momento, ficou ali deitada, ofegante, pensando se deveria beijar o
chão. Em vez disso, rolou, a olhar para o teto. Um teto. Não o céu. O corpo
de Meg começou a tremer. E então ela começou a rir, arrepios de frio e
exaustão tornando-se arrepios de delírio. Ela permaneceu deitada, a tremer
e a rir, até ambos começarem a desvanecer. Louca. Impossível. A merda de
uma missão suicida. Mas ela tinha conseguido.
E agora?
Meg sentou-se e olhou à sua volta.
O terminal da estação era uma área grande e semicircular. A parte
superior era o gigantesco mecanismo com rodas que transportava o
teleférico para o terminal. Meg já conseguia ver que o cabo de transporte se
tinha partido, os fios de aço grossos expostos e desfiados. Os enormes
motores que alimentavam o sistema estavam localizados na estação de terra.
Meg supunha que, se o mecanismo de transporte estivesse preso ou tivesse
parado de alguma forma na parte superior, a tensão resultante dos motores
na parte inferior poderia ter originado a rutura do cabo. Mas teria sido um
acidente, ou sabotagem?
Meg não conseguia ver uma sala de comando aqui em cima, mas poderia
estar atrás da área de desembarque de passageiros. Ela também não
conseguia ouvir nada, apercebeu-se. Nenhum barulho de máquinas a
funcionar. Nenhuma voz. E a estação parecia escura, apesar da luz do dia
que entrava. Não havia luzes.
Meg não esperava um comité de boas-vindas. Mas era mais do que isso. O
vazio parecia sinistro. Não era natural. Ela levantou-se. As pernas tinham a
consistência de gelatina. Ela ficou de pé por um momento, deixando a
vertigem desvanecer. O tornozelo também estava dorido. Obviamente tinha-
o torcido quando aterrou. Pelo lado positivo, a dor significava que ela estava
viva. Por enquanto.
Ela andou devagar, com cuidado para não colocar muito peso sobre o
tornozelo dorido. As solas de borracha das suas botas chiaram sobre o chão
de cimento. Diante dela, uma placa anunciava Café e Miradouro com uma
seta que apontava para a esquerda. Abaixo, outra placa anunciava Casa de
Banho, com uma seta que apontava para a direita.
Ridiculamente, ao mesmo tempo, a barriga de Meg roncou e a bexiga
contraiu-se. A ideia de se aliviar numa sanita verdadeira ao invés de numa
bota de esqui era de repente muito apelativa. E se o café tivesse comida lá
dentro? Mas, claro, não era por isso que ela estava ali. Ela estava ali para
tentar arranjar ajuda. Mas que mal haveria se fosse à casa de banho e depois
verificasse se havia comida ou água? A comida e a hidratação eram
essenciais, afinal. Assim como o papel higiénico.
Meg atravessou o terminal e seguiu na direção das casas de banho.
O corredor estava escuro. O som das suas botas parecia mais alto; a sensação
de vazio era ainda mais forte. Ela chegou às instalações. Os sinais estavam
desgastados, mas ela conseguia distinguir o F de Feminino. Empurrou a
porta e entrou. Havia uma fila de lavatórios num dos lados da divisão. Três
cubículos no outro. Nunca há casas de banho de mulheres suficientes, pensou
ela. Os lavatórios estavam manchados e rachados. As torneiras pareciam
enferrujadas. Ela virou-se para os cubículos. Todas as portas estavam
fechadas.
Meg levantou uma bota e pontapeou a primeira. Cedeu com um rangido,
revelando uma sanita suja com um rolo de papel higiénico seco no seu
interior. Ela foi até à segunda e empurrou-a com a bota. Outra sanita suja.
Claramente, a limpeza não fora ali a prioridade máxima. Restava a terceira
porta. Como a Caracóis Dourados dos sanitários, pensou Meg.
Ela levantou a bota e empurrou-a. A porta ficou presa em algo no interior.
Ela empurrou novamente. A porta cedeu, abrindo-se… e um corpo caiu.
– Foda-se! – Meg deu um salto para trás.
O corpo era feminino, vestido com um fato de neve verde do
Departamento. Cabelo loiro, cheio de sangue seco. A mulher tinha sido
baleada na cabeça. À queima-roupa. Havia uma grande cratera vermelha na
testa e não sobrava muito da parte de trás do crânio. Apenas uma confusão
de cartilagem, osso e sangue.
Cristo. Meg virou-se para um lavatório e arfou. Ela já tinha visto pior. Mas
isso não adiantava de nada. O estômago dela revirou-se, embora não
houvesse nada além de bílis. Picou-lhe a garganta e o nariz. Ela esperou,
respirando fundo pela boca, e depois cuspiu várias vezes, antes de abrir a
torneira enferrujada. Um fio de água gotejou. Meg colocou um pouco na
boca. Sabia mal, mas tudo bem.
Ela voltou-se para trás e ajoelhou-se ao lado do corpo. Só uma bala na
cabeça. Executada. Meg conseguia decifrar nos olhos dela. Recriar a cena. A
mulher a fugir do atirador (ou atiradora) e a trancar-se dentro do cubículo,
com medo, esperando não ser encontrada. Depois, a porta abria-se e…
bang.
Sean poderia ter feito isto? Meg examinou a mulher mais de perto. Os
membros estavam rígidos, mas não imóveis. O rigor mortis estava a passar.
Além disso, as mãos e a parte de trás do pescoço tinham manchas vermelhas
onde ela tinha sido atirada contra a sanita. Livor mortis. A mulher estava
morta há cerca de quarenta e oito horas. Claro que as temperaturas frias
abrandariam a decomposição, por isso podia ser mais longa, mas não mais
célere. Isso excluía Sean, e posicionava a hora da morte perto do momento
em que o teleférico tinha parado. O desconforto tomou conta de Meg. Algo
estava errado. Muito errado.
Ela saiu da casa de banho e voltou a coxear pelo corredor em direção ao
café. E então ela parou. À direita de Meg havia outro corredor mais curto.
Ela deve ter passado a correr por ele antes. Conseguia ver mais duas portas.
Um sinal na primeira dizia Apenas Pessoal Autorizado, Entrada Restrita. A
sala de comando. Tinha de ser. Meg debateu-se consigo mesma e depois
caminhou em direção a ela. Ao aproximar-se, viu que a fechadura tinha sido
arrombada. Empurrou a porta e ela abriu-se.
Dois corpos ainda estavam sentados nos seus assentos na mesa
de controlo. Não que houvesse muito para controlar, ao que parece.
O pequeno espaço tinha sido destruído. Cabos arrancados, fios soltos.
Monitores de computador partidos. E os operadores rapidamente mortos
com uma bala nas costas quando o assassino entrou na sala. Como o corpo
na casa de banho, estes tipos já estavam mortos há uns dias.
Meg franziu o sobrolho, tentando elaborar uma cronologia. A tripulação
da estação devia estar viva para autorizar a subida do teleférico. Mas a dada
altura, depois de o teleférico sair da estação, algo tinha acontecido aqui em
cima. Os operadores tinham sido atacados e o teleférico sabotado, os
ocupantes abandonados à sua sorte para morrerem. Mas a paragem tinha
sido apenas temporária. Talvez um dos operadores tivesse sobrevivido o
tempo suficiente para tentar pôr o teleférico novamente em andamento, para
os salvar. Infelizmente, foi aí que o cabo de transporte se partiu. Uma sorte
para o sabotador.
Mas porquê parar o teleférico?
A resposta óbvia era impedir que aqueles que estavam no interior
chegassem ao Retiro. Mas talvez tenha sido mais do que isso. Se o teleférico
foi sabotado em andamento, já não haveria outro caminho viável para
alcançar as montanhas. Talvez a intenção tivesse sido impedir que qualquer
pessoa chegasse ao Retiro.
E quem quer que fosse o responsável pela sabotagem, se o Departamento
suspeitasse que algo tinha acontecido no Retiro – um surto ou um ataque –,
eles iriam encerrá-lo. Cortar o abastecimento. Ninguém entra ou sai. O
grupo no teleférico era irrelevante. E era por isso que tinham sido
escolhidos. Quem iria arriscar vidas e recursos para salvar um grupo de
cobaias?
Fazia sentido. Mas ainda deixava perguntas sem resposta. O que tinha
acontecido exatamente? Porquê matar todas as pessoas aqui dentro? Mas
talvez não fosse o momento para formular hipóteses. Uma coisa era certa.
Quem quer que tivesse feito isto, era perigoso e estava armado. Para além
disso, Sean ainda podia estar aqui. Também perigoso, também armado.
Meg direcionou a sua atenção dos corpos para a secretária onde estavam
sentados. Havia gavetas por baixo. Ela abriu a primeira. Dentro, canetas,
post-its, clipes e uma caixa de plástico que continha uma sanduíche meio
comida. O estômago dela roncou. Abriu a tampa e deu umas dentadas. O
queijo estava seco, o pão rijo, mas tinha um sabor delicioso. Meg enfiou o
resto na boca, engoliu-o e tentou a segunda gaveta. Trancada. Ela franziu o
sobrolho. Pela sua experiência, as gavetas trancadas normalmente
continham uma de quatro coisas: pornografia, papéis confidenciais,
dinheiro… ou armas.
Ela curvou-se ao lado de um dos corpos e apalpou a roupa. Sentiu algo
num bolso lateral. Como a sua luva era volumosa, então retirou-a e enfiou a
mão lá dentro. O corpo parecia estranhamente frio e rígido, mesmo através
do material grosso. Depois os dedos de Meg fecharam-se à volta de algo
volumoso e metálico. Um porta-chaves.
Ela tirou-o. Havia cinco chaves de vários tamanhos no aro de metal.
Quatro estavam etiquetadas: Gerador, Controlo, Manutenção, Neve 1.
A chave final não estava etiquetada e era muito mais pequena. Parecia ter o
tamanho certo para uma gaveta. Meg enfiou-a na fechadura. Estava com
sorte. A chave girou suavemente e a gaveta deslizou. Ela tinha razão. No
interior havia uma pequena arma. Meg tirou-a e verificou o carregador.
Totalmente carregado. Talvez os operadores não servissem só para manter o
teleférico a funcionar.
Ela enfiou a arma no bolso do seu fato de neve. Depois saiu da divisão e
voltou a andar ao longo do corredor. À sua frente, Meg conseguia ver portas
duplas. Café e Miradouro. Não eram usados pelo público em geral há muito
tempo. Os turistas não vinham até aqui para desfrutar dos chalés de luxo e
das encostas brancas há mais de uma década. Lugares como este tinham
sido os primeiros a deixar de funcionar. E depois o Departamento tinha-lhe
atribuído uma outra função.
Mas as necessidades do Departamento eram práticas. A tinta das paredes
estava descascada, o chão de cimento tinha buracos, havia um cheiro fétido
no ar. Este lugar estava devoluto. Mas estaria completamente vazio?
Apesar das temperaturas negativas, Meg estava a suar dentro do seu fato
de neve. Ela puxou da sua arma e tentou espreitar através do vidro acima das
portas duplas, mas estava muito sujo. Ela podia apenas ver algumas mesas e
cadeiras empilhadas ao acaso.
De arma ainda apontada, empurrou uma das portas e entrou.
Uma janela do chão ao teto ocupava a parede oposta da sala semicircular.
Sobressaía da encosta da montanha, provavelmente para simular a sensação
de que se estava a flutuar nas nuvens, o mundo todo à nossa frente. Uma
vista celestial. Só que o mundo se tinha transformado num inferno. E a
última coisa que Meg precisava de ver era mais céu.
Mas a vista não era o que lhe chamara a atenção.
Havia uma figura solitária sentada numa cadeira de frente para a janela,
com os pés em cima de uma mesa, a beber uma cerveja.
Meg coxeou lentamente. Quando ela se aproximou, ele levantou a garrafa
de cerveja em saudação.
– Ainda bem que vieste.
– Não o perderia por nada deste mundo.
Sean virou-se.
– Estou a falar a sério. Estou feliz por não teres morrido.
– Quem me dera poder dizer o mesmo.
– Desagradável.
– Pois, bem, eu tendo a ser desagradável com mentirosos e assassinos.
Meg meteu a mão no bolso e colocou a fotografia amarrotada sobre a
mesa.
– Eu sei quem tu és, Daniel.
Ele pegou na fotografia e olhou para ela por um momento.
– Quem é ela? – perguntou Meg. – A tua namorada?
Sean abanou a cabeça.
– A minha irmã. O nome dela era Peggy. – Ele pousou a fotografia. – Tirei
esta foto quando chegámos à Academia. Há dez anos. Toda a nossa vida pela
frente. – Um risinho amargo. – Parece que não correu lá muito bem.
– Porque mataste o polícia?
– Queres a confissão toda?
– Quero uma boa razão para não te fazer voar pela janela.
Sean pegou na cerveja e bebeu um longo gole.
– Eu disse-te. Fiz uma promessa. Encontrar o homem que causou a morte
da Peggy e matá-lo… – Ele parou, olhou para a cerveja e fez uma careta. –
Meu, o fim do mundo está próximo e tudo o que eles têm em armazém é
Estrella quente. – Ele virou-se. – Queres uma?
Antes que Meg pudesse reagir, ele rodou e atirou a garrafa na direção
dela.
Ela baixou-se enquanto a garrafa passava por cima do seu ombro. O vidro
estilhaçou-se no chão. Meg endireitou-se, tentando voltar a apontar a arma,
mas foi muito lenta. A arma de Sean já estava na mão dele.
Ele desbloqueou a patilha de segurança.
– E lamento imenso, Meg… mas não posso deixar que me detenhas.
Carter

Pela fresca, ele já estava pronto. Fato e botas de neve, máscara, óculos de
proteção, bússola, uma mochila cheia de ferramentas e um trenó que ele
teria que arrastar até à estação do teleférico para levar o gerador de volta
para baixo. Oh, e uma arma totalmente carregada. Só para o caso de…
– Sabes o que tens de fazer? – perguntou Miles.
Carter acenou com a cabeça. Eles já tinham revisto o plano várias vezes.
– Desligar o gerador. Não danificar nada. Verificar se há botijas de gás.
Além disso, deve haver outra bateria de reserva. Se parecer boa, trazê-la
também.
– Certo. – Miles olhou para Welland. – Certo?
Welland resmungou e acenou com a cabeça.
– Parece-me bem.
Carter olhou-o com frieza.
– Uau. Podes repetir-me aquele conselho técnico? Foi um pouco
detalhado de mais na primeira vez. Afinal, tu é que és o perito.
– Ei, eu não estava encarregado da estação do teleférico. – Welland olhou
de volta para ele. – É tudo muito simples. – Ele esfregou a barriga. – Tenho
de ir. Preciso mesmo de ir cagar.
Ele virou-se e foi andando. Carter soltou um longo suspiro.
– Um dia, terei uma boa justificação para o matar.
– Mas hoje não – disse Miles de forma enérgica. – Ainda precisamos dele.
– Ainda precisamos? A sério?
Miles olhou-o com curiosidade.
– Está tudo bem?
Carter olhou para ele. Não. Mas podia esperar, pensou ele.
– Ótimo. Espetacular.
– Carter, eu sei que não queres fazer isto. E eu sei porquê…
– Já disse, está tudo bem. E provavelmente está na hora, não está?
De confrontar aqueles demónios. Pôr os fantasmas a andar. Essas tretas
todas.
– Sim. – Miles acenou com a cabeça. – São mesmo tretas. – Ele olhou
para Carter com um olhar gelado. – Lembra-te só, se me desiludires, os
demónios serão a menor das tuas preocupações.
Hannah

Eles agacharam-se junto ao fogo incandescente. Tiraram o que


precisavam do bunker e depois empurraram os cadáveres pelas escadas
abaixo e fecharam o alçapão. Longe da vista, longe do coração. Perto deles,
Eva adormeceu, envolta em roupas de pessoas mortas. Isto é quem somos
agora, pensava Hannah.
– Achas que nos safamos? – perguntou Daniel.
Ela tossiu e cobriu a boca.
– Tu, talvez. Eu não.
– Estás infetada?
– Sim.
– Então provavelmente eu também estou.
– Talvez não. Chegaste até aqui sem quaisquer sinais de infeção. Algumas
pessoas são menos suscetíveis, dependendo da estirpe do vírus. – Ela olhou
de relance para Eva. – E os bebés são muito menos suscetíveis de apanhar a
doença.
– Eu não quero saber de mim – disse Daniel. – Só quero levar a Eva para
um lugar seguro. Não consegui salvar a Peggy. Tenho de salvar a Eva.
Ele moveu-se e colocou a mão no bolso. Retirou um pedaço de papel,
uma fotografia. Hannah olhou para ela: uma foto de Daniel e da sua irmã,
quando ela estava viva e bonita, não esfaqueada como um pedaço de carne.
Hannah engoliu em seco.
– Tirei-a quando chegámos à Academia – disse Daniel. – Parecia um
novo começo. Toda a nossa vida pela frente. Agora, a Eva é tudo o que me
resta. Tenho de fazer com que isso signifique alguma coisa.
Ele olhou fixamente para a fotografia. A luz do fogo iluminou metade do
seu rosto em tons de laranja. As sombras desenhavam manchas negras do
outro lado.
Hannah tomou uma decisão.
– Assim que amanhecer, devias continuar… sem mim.
Ele olhou para ela de lado.
– Estás a dizer que só me vais atrasar?
Ela conseguiu esboçar um sorriso ténue.
– Algo do género.
– Tens a certeza?
Não, pensou ela. Ela queria viver. Mas não havia curas milagrosas para
este vírus. Eles talvez fossem capazes de prolongar a sua vida. Mas que tipo
de vida seria essa? Ela não queria tornar-se um deles. Um Whistler.
Ela acenou com a cabeça.
– Sim. Tenho a certeza.
O fogo crepitou.
– Não estás zangada com ele? – perguntou Daniel.
– Quem?
– O teu pai. Se ele te amasse, podia ter-te salvado.
– A ciência é que salva as pessoas. Não o amor. É o que ele dizia sempre.
– Isso não é uma resposta.
– Eu sei – disse ela. – Suponho que é apenas o que espero dele.
Costumava ter raiva dele, mas depois percebi que era um desperdício de
energia. Isso não o afetava. As emoções não se lhe pegam, é como se ele
fosse uma frigideira antiaderente. Não dá para se odiar alguém que não se
importa.
– Ele parece uma bela peça.
– E é. Mas também é genial no que faz. Se alguém vai vencer este vírus,
será ele.
– A que custo?
Hannah sorriu tristemente.
– Custe o que custar.
– E as pessoas menos importantes não interessam.
– Não para ele.
Ele olhou para ela.
– Não leves a mal, Hannah, mas se eu alguma vez conhecer o teu pai, vou
matá-lo.
– Não levo nada a mal.
Ambos se viraram para o fogo. As chamas estavam a desvanecer-se.
Nenhum deles tinha energia para o atiçar.
– Quanto tempo faltará até ser dia? – perguntou Daniel.
– Não sei. – Hannah olhou para as janelas. Ainda estava escuro, mas já se
conseguia distinguir o contorno das árvores. A madrugada estava a instalar-
se lentamente. Hannah percebeu que ainda tinha o relógio de Lucas. Ela
retirou-o do seu bolso.
Os ponteiros marcavam três minutos depois das oito. Não pode estar
certo. Deve ter parado. E ainda assim Hannah tinha visto Lucas a olhar para
ele na floresta. Ela franziu o sobrolho.
Die Zeit. A hora.
Estaria Lucas a tentar dizer-lhe alguma coisa? Ela tinha pensado que ele
só queria dizer que estava na hora de ele morrer, mas e se houvesse outra
razão para ele querer que Hannah ficasse com o relógio? Ela examinou-o. O
mostrador era grosso. Demasiado grosso? Ela percorreu a borda com os
dedos e encontrou uma saliência. Ela pressionou-a. O mostrador abriu-se,
revelando um pequeno compartimento. No interior, um dispositivo preto
mais pequeno, com uma luz vermelha intermitente.
– O que é isso? – perguntou Daniel.
O coração de Hannah afundou-se em desânimo. Merda.
– Acho que é um localizador – disse ela, em choque.
Foi por isso que o Departamento os encontrara. Tinha sido Lucas, o
tempo todo. Talvez, enquanto a tempestade estava mais agreste, eles não
conseguissem detetar a transmissão, mas, quando ela se dissipou, nem
precisaram de procurar. Apenas seguiram o sinal.
– O Lucas estava a trabalhar para eles? – perguntou Daniel.
– Sim. Ele disse a verdade ao atirador.
– Então isso significa que o Departamento sabe onde estamos.
E se eles podiam detetar o sinal, pensou Hannah, não precisavam de
esperar até ser dia para procurar os sobreviventes. Na verdade, não seria
melhor emboscá-los na calada da noite ou nas primeiras horas da manhã?
Ela levantou-se e foi rapidamente até à janela, os seus olhos a examinar o
crepúsculo lá fora. Parecia tudo tranquilo, mas silhuetas mais escuras
estavam a mover-se no meio das árvores? Hannah semicerrou os olhos,
encostada à estrutura apodrecida da janela…
Uma explosão de luz branca e brilhante cegou-a e fê-la recuar. O zumbido
do equipamento elétrico fez estremecer a cabana. Um a um, holofotes
acenderam-se na borda da clareira, banhando-os de luz, transformando a
noite em dia. Entre os focos ofuscantes, Hannah podia apenas distinguir
homens com fatos de proteção, de armas na mão.
A bebé começou a chorar. Hannah virou-se. Daniel olhou para ela com os
olhos bem abertos.
– Eles encontraram-nos.
– HANNAH!
A voz ecoou de um megafone.
Hannah voltou-se para a janela. Uma figura saiu do atordoamento das
luzes e caminhou até ao centro da clareira. Equipada com um fato de neve
verde e uma viseira no rosto. Mas, ainda assim, imediatamente reconhecível.
Professor Grant. O pai dela. Ele levantou o megafone até à boca:
– Hannah. Eu sei que estás aí dentro. Creio que são pelo menos quatro, e
um ou mais podem estar infetados. É de vital importância que nos deixem
ajudar-vos.
Daniel foi ter com ela, segurando a arma.
– O que é que fazemos?
– Não podemos lutar – disse Hannah, a mente a lutar para conseguir
vencer o nevoeiro do vírus. – Eles são mais. Um tiroteio só vai colocar Eva
em perigo.
– Então desistimos?
– Não.
Teve uma ideia.
– O explosivo que o Lucas encontrou no atirador. Preciso que o vás
buscar. Ainda está no bolso dele.
Daniel acenou com a cabeça.
– Está bem.
Ele caminhou até ao alçapão, abriu-o e rastejou pelas escadas abaixo.
Hannah olhou pela janela. Havia pelo menos meia dúzia de agentes do
Departamento lá fora. Eles devem ter conduzido até onde puderam e depois
caminharam pela floresta.
– Pai? – chamou ela.
– Sim?
– Diga aos seus amigos para baixarem as armas.
– Hannah. Um dos teus amigos matou um agente do Departamento.
Neste momento, és cúmplice de homicídio.
– E o seu plano de embater com o autocarro e matar-nos a todos?
O Departamento aprovou? A Academia sabe disso?
– Hannah, estás confusa. O nosso único objetivo é levar-vos a todos para
um lugar seguro.
Daniel emergiu pelo alçapão, segurando cuidadosamente o pequeno
dispositivo cinzento.
– E agora? – perguntou ele.
Hannah pegou no dispositivo.
– Vou lá fora falar com ele.
A expressão de Daniel desanimou.
– Estás maluca? Ele vai matar-te.
Ela acenou com a cabeça.
– Talvez. Mas ele vai deixar-me falar primeiro.
– Porquê?
– Uma coisa que eu sei sobre o meu pai é que ele acredita que é um
homem de honra.
Daniel resmungou.
Os olhos de Hannah encontraram os dele.
– Não posso prometer que consigo salvar-te, mas vou salvar a Eva. Ele
não vai matar uma bebé.
– Tens a certeza?
Não a cem por cento, pensou ela. Mas era tudo o que ela tinha.
– A certeza possível.
Daniel olhou para Eva, que ainda estava a chorar. Ele caminhou
e agachou-se, tentando acalmá-la. Depois de um momento, disse:
– Acho que isso vai ter de chegar.
Hannah gritou através da janela.
– Estou a sair. Estou a segurar um dispositivo explosivo, aquele que o
vosso agente tentou usar para rebentar com o autocarro. Se dispararem, eu
aciono-o. Acredito que provavelmente atingirá todos os que estão nas
redondezas.
Ela viu a cara do pai vacilar.
– Hannah, isso não é necessário.
– Sim, é.
Ela empurrou a porta, piscando os olhos à vista da luz, tremendo de frio.
A cabeça andou à roda. Apesar das temperaturas geladas, conseguia sentir a
mão a ficar húmida em torno do aparelho.
Lentamente, desceu as escadas, agarrando-se ao frágil corrimão com a
mão livre. Só mais um pouco, disse ela para si mesma. Só mais um
bocadinho. Ela caminhou em direção ao pai, segurando o aparelho ao alto.
Ao aproximar-se, ela tossiu.
O pai colocou o megafone no chão e observou-a, com as mãos nos bolsos.
– Não estás bem – comentou ele.
– Não. Estou infetada.
Ele acenou com a cabeça.
– Pousa o explosivo, Hannah. Deixa-me ajudar-te. Posso levar-te a ti e aos
teus amigos para um centro de tratamento. Temos muitos novos
medicamentos experimentais.
– Para podermos ser os teus ratos de laboratório? – disse ela. – Não me
parece.
– Hannah, tu sabes qual é a alternativa.
Ela olhou para ele.
– Ouça-me, pai. Por uma vez, ouça-me apenas. Só resto eu e uma outra
pessoa… e uma bebé.
As sobrancelhas do seu pai ergueram-se.
– Uma bebé?
– Uma das alunas a bordo estava grávida. Ela deu à luz no autocarro antes
de morrer. O homem na cabana é irmão dela. Prometa-me uma coisa: salve
a bebé.
Ele suspirou.
– Muito bem.
– Prometa-me.
Ele olhou para ela com os seus frios olhos cinzentos. Uma característica
que eles partilhavam.
– A bebé não será magoada. Tens a minha palavra.
Hannah acenou com a cabeça. Era o melhor que ela podia fazer. Não valia
a pena pedir ao pai para salvar Daniel. Ele era dispensável, como ela. Ela
inclinou-se para a frente e colocou o dispositivo explosivo cuidadosamente
na neve. O pai dela pegou nele e enfiou-o no bolso.
Hannah tossiu de novo, a visão já turva.
O pai olhou para ela com tristeza. Depois estendeu um braço.
– Vem cá, Hannah. Ainda és minha filha.
Hannah hesitou e então percebeu, pela primeira vez, que queria ser
abraçada, uma vez na vida. Ela avançou e encostou-se ao pai. Ele envolveu-a
com os seus braços.
– Estou a morrer – sussurrou ela.
– Eu sei.
Lágrimas caíram-lhe dos olhos.
– Eu não quero morrer.
– Eu sei.
Ela sentiu algo a pressionar-lhe as costas. Olhou para cima.
– Pa…
Um estrondo abafado. Uma sensação de calor intenso num dos lados do
corpo. As pernas de Hannah cederam. Já não as conseguia sentir. Ela
escorregou do abraço do pai, caindo sobre a neve.
Ele olhou para ela, no chão, ainda segurando a pistola pequena.
– Mas todos nós temos de morrer um dia, Hannah.
Ela tentou responder, mas o sangue estava a bloquear-lhe a garganta.
Tudo o que ela podia fazer era ficar deitada, o seu corpo a latejar, a
respiração já fraca. À sua volta, botas pisaram a neve.
– O que fazemos com ela? – perguntou alguém.
A voz do pai:
– Queimem tudo. Não deixem nada a não ser ossos.
– E os outros?
– Levem-nos.
– Vivos?
– Sim. Prometi à minha filha… e ambos podem ser-nos úteis.
À distância, mais agitação. Tiros. Hannah conseguia distinguir choro e
gritos. A certa altura, achou ter ouvido a voz de Daniel:
– OK, eu vou. Só não magoem a bebé.
Uma figura agachou-se junto a ela. Algo molhado e cáustico salpicou
sobre o rosto e o corpo dela. Acelerador de combustão. Gradualmente, as
vozes e o barulho desvaneceram-se. Hannah estava sozinha. Incapaz de se
mover, olhou para o pequeno rasgo de céu, vendo-o a clarear. O início de
um novo dia. O seu último.
Ela já não sentia frio. Conseguia sentir o cheiro a queimado e ouvia o
crepitar das chamas à sua volta. Mas também não sentia o calor.
Estava confortavelmente dormente.
No entanto… havia ali algo.
Hannah podia sentir uma presença.
A morte, talvez, a pairar por perto.
Podes vir, pensou ela. Estou pronta.
Passos suaves na neve.
Uma sombra suspensa sobre ela.
E depois… um assobio.
Meg

Meg olhou para a arma.


– Eu não estou aqui para te impedir. Só quero pedir ajuda, pela Sarah.
– Não tenho a certeza se as nossas necessidades são compatíveis entre si.
– Mas podiam ser. Podíamos trabalhar juntos.
Lentamente, Meg virou a sua arma e segurou-a pelo cano. Nunca tirando
os olhos de Sean, esticou o braço, colocou a arma em cima da mesa
e recuou.
Ela esperou, com o coração acelerado. Sean fez sinal na direção da arma.
– Onde arranjaste isso?
– Era do tipo morto na sala de controlo.
– Que engenhosa.
Sean olhou para ela pelo que mais pareceu uma eternidade, depois clicou
na patilha de segurança e colocou a sua arma ao lado da dela. Ele levantou-
se.
– Preciso de outra cerveja.
Ele caminhou até à bancada. Meg olhou para as armas em cima da mesa e
perguntou-se se isto seria um teste. Ela conseguiria agarrar uma a tempo?
Teria Sean outra arma com ele? Ela queria mesmo matá-lo?
Sean abriu o frigorífico e olhou para trás.
– Queres uma?
– Para beber?
Ele sorriu, tirou duas garrafas, retirou as caricas na bancada e voltou. Ele
estendeu uma garrafa a Meg.
Ela aceitou e bebeu um gole. Estrella quente, rançosa. Mas, ainda assim,
deliciosa, neste momento.
– Então devo chamar-te Sean ou Daniel? – perguntou ela.
A expressão dele ensombrou-se.
– Daniel foi noutra vida. Correu muito sangue debaixo da ponte desde
então.
Meg olhou-o com mais empatia.
– O que aconteceu à tua irmã?
Sean voltou a sentar-se.
– Já ouviste falar da Academia Invicta?
Meg franziu o sobrolho. Mais uma vez, aquele sino distante a tocar.
– Uma escola exclusiva nas montanhas – continuou ele. – Há dez anos,
um autocarro com alunos da Academia teve um acidente numa tempestade
de neve. Morreram todos, incluindo a filha do professor Grant, o tipo
famoso dos vírus, chefe do Departamento.
Meg acenou com a cabeça.
– Sim. Já me lembro. Deu nas notícias. Só o motorista sobreviveu. Ele foi
preso.
Sean bebeu um gole da sua cerveja.
– Eu era o condutor.
Meg ficou a olhar para ele.
– Tu?
– Não era suposto ser. Tive de pôr o verdadeiro motorista inconsciente e
trancá-lo numa casa de banho.
– Porquê?
– Longa história. A versão resumida: levar-me a mim e à minha irmã para
um lugar seguro. Caso contrário, teríamos sido deixados para morrer com o
resto dos infetados.
Ela olhou para ele, confusa.
– Não entendo.
– Houve um surto na escola. Mas foi mantido em segredo. Os alunos
pagantes que testaram negativo foram evacuados. Eu estava a trabalhar nas
cozinhas. A minha irmã estava lá com uma bolsa de estudo. Os nossos
nomes não estavam na lista.
– Jesus. E a tua irmã morreu no acidente?
Ele abanou a cabeça.
– Cerca de meia dúzia de nós sobreviveu ao acidente, incluindo a minha
irmã, Peggy. Mas ela ficou gravemente ferida. E depois descobrimos que
alguns dos alunos a bordo estavam infetados.
– Como? Disseste que só aqueles com testes negativos foram evacuados.
Ele esboçou um sorriso sombrio.
– O dinheiro pode comprar muitas coisas, incluindo um bilhete para te
safares do confinamento. Os pais ricos pagaram para que deixassem sair
os seus filhos infetados. Ou, pelo menos, pensaram que tinham pago.
– Como assim?
– O Departamento fingiu que estava a evacuar os miúdos, para manter
felizes aqueles pais ricos e poderosos, mas nunca pretenderam que eles
chegassem ao Retiro. Eles engendraram o acidente.
– Mas a filha do Grant estava a bordo. Ele ia deixar a sua própria filha
morrer?
Sean anuiu.
– Todos são dispensáveis para ele. Mas Hannah, a filha dele, conseguiu
perceber. Ela tentou… – Ele hesitou. – Ela tentou salvar-nos. Salvar a Peggy.
– Mas não conseguiu?
Ele abanou a cabeça e depois disse suavemente:
– Mas ela salvou o bebé da Peggy.
Meg ficou a olhar para ele.
– A Peggy estava grávida?
Ele acenou com a cabeça.
– Uma menina.
– O que lhe aconteceu?
– Nós quase conseguimos. Eu, a Hannah, a bebé. Nós escapámos do
autocarro; estávamos a tentar chegar a um lugar seguro. Mas depois eles
encontraram-nos. – Meg viu a expressão dele a entristecer-se. – Grant e o
Departamento. Ele matou a Hannah e levou a bebé.
– Porque é que te deixaram viver?
– Eu era o bode expiatório. O impostor malvado que matou os alunos que
o Departamento estava a tentar salvar.
– Eles poderiam ter-te matado e ainda assim ter contado a mesma
história – disse Meg.
– Mas era muito melhor poder apresentar um cordeiro para o sacrifício
perante a imprensa. Para atribuir um rosto ao mal. Ouvi-lo dizer:
«Culpado.»
Meg olhou fixamente para Sean. Era por isso, pensou ela. Era por isso que
aquela fotografia lhe tinha ficado na cabeça. Por isso o jovem com excesso
de peso e a rapariga bonita lhe pareciam tão familiares. Meg deve tê-los visto
nos jornais, nos ecrãs de televisão. Há dez anos, mas o cérebro guarda tudo.
– Porque não disseste a verdade às pessoas? – perguntou ela.
Sean suspirou.
– Porque eu era culpado. E eles tinham a Eva. Eles prometeram-me que
cuidariam dela. Eles até me dariam notícias, a oportunidade de a ver
crescer… se eu me portasse bem. Eles cumpriram a sua parte do acordo –
ele bebeu mais cerveja – e eu ganhei tempo.
– Para quê?
– Vingança.
Ele disse-o como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
– Como planeavas vingar-te estando na prisão? – perguntou Meg.
Um sorriso irónico.
– As pessoas pensam que estás isolado de tudo quando estás lá dentro. Na
verdade, tens acesso a muitas coisas que os outros não têm. Os reclusos não
estão lá por serem inocentes. Eles sabem coisas. Muitos eram Rems. Obtive
deles muitas informações úteis ao longo dos anos. Descobri como entrar no
Retiro. – Uma pausa. – E descobri onde estava a Eva.
– Como?
– Há sempre alguém. Onde quer que estejas: pode ser um homem branco,
um homem negro; pode até ser uma mulher. O princípio é o mesmo. Há
sempre alguém que manda. Alguém que tem o poder. Só precisas de o
conhecer.
– E o que tiveste de fazer para «alguém» obter essa informação?
A expressão dele ensombrou-se.
– Não queiras saber.
– Talvez queira.
– A sério? Queres ouvir como eu chupei, fodi e esfaqueei até cair nas boas
graças dele?
Meg engoliu em seco.
– Sinto muito.
Sean bebeu mais cerveja.
– Não sintas. Fiz o que era necessário… Consegui o que precisava.
E depois consegui uma carta de saída da prisão ao ser escolhido para uma
experiência. E não para uma experiência qualquer. Tinha de ser esta. O
Retiro. Porque é lá que ele está. Grant. O professor.
– E o que acontece quando o tiveres matado?
– Então vou ao encontro da Eva. Ela tem agora dez anos. Ela devia saber a
história da mãe dela. Conhecer a sua família.
Meg terminou a sua cerveja. Ela não estava tão certa disso. Mas agora não
era o momento certo. Ela tinha outras perguntas.
– E o Paul? – perguntou ela. – Porque é que o mataste?
– Paul?
– O polícia no teleférico. Esse era o seu verdadeiro nome.
– Como é que sabes?
– Tive uma relação com ele.
Sean olhou para ela e depois desatou a rir.
– Porra. Parece que todos nós temos os nossos segredos. – Ele apontou a
cerveja para ela. – Lamento muito a tua perda.
– Não, não lamentas, e não foi uma perda. Eu não o via há cinco anos.
Mas ele não merecia morrer.
– Era ele ou eu.
– E o Karl?
– Eu não queria que aquilo acontecesse.
– Mas não te coibiste de incriminá-lo.
– Eu não… – Sean abanou a cabeça. – Não era suposto ter sido assim.
– E como era suposto ser?
Sean suspirou.
– Recebi uma dica de que ia haver um polícia a bordo, à minha procura.
De alguma forma, soube-se que eu ia atrás do professor.
– Como?
Um encolher de ombros.
– Não há honra entre ladrões, como se diz. Enquanto o tipo me fornecia
informações, também fornecia informações sobre mim a outra pessoa. Eu já
estava mais ou menos à espera.
Meg ficou a olhar para ele.
– Então trouxeste uma faca escondida para matar o Paul?
– Não. Eu já a tinha posto a bordo. Sabia que seríamos drogados antes de
sermos postos no teleférico. Despidos, retirados os pertences. Não sabia se
conseguiria arranjar uma arma depois de chegarmos ao Retiro. Por isso
arranjei um «simpático» funcionário do Departamento para esconder a faca
em troca de algumas drogas que eu tinha conseguido. Deitei a comida e a
bebida que me deram pela sanita abaixo e fingi que já não tinha mais
quando eles me vieram buscar. Quando entrámos no teleférico, analisei-vos
a todos. Soube logo quem era o polícia. A arma denunciou-o.
– O Paul trouxe a arma?
– Sim.
– Ele foi drogado?
Uma ligeira hesitação.
– Sim. Acho que ele queria alinhar, ou então não recebeu o aviso.
A garganta de Meg contraiu-se.
– Então apunhalaste-o enquanto ele estava inconsciente?
Sean lançou-lhe um olhar severo.
– Ele ter-me-ia matado se tivesse tido oportunidade.
– Mas não o fez, pois não? – Meg sentiu os nervos a tomarem conta da
sua voz, depois recompôs-se. – E depois escondeste a arma e colocaste lá a
faca?
– Tive de pensar rapidamente. Eu tinha uma faca ensanguentada da qual
me queria livrar e uma arma para esconder. A minha única opção era atirar
os dois para fora do teleférico. Mas depois ocorreu-me que a arma poderia
vir a ser útil, por isso tive uma ideia. Peguei na fita que tinha sido usada para
prender a faca debaixo do banco, abri o alçapão do tejadilho e coloquei lá a
arma, imaginando que poderia ir buscá-la mais tarde. Estava prestes a livrar-
me da faca quando houve o corte de energia e o teleférico parou. Fui atirado
de volta para o teleférico e o alçapão fechou-se. Foi aí que vocês começaram
a acordar. Tive de tomar uma decisão rápida, por isso enfiei a faca no bolso
da pessoa mais próxima, enrolei-me no banco e fingi estar inconsciente.
Meg absorveu a informação. Tudo fazia sentido agora, da mesma forma
que os planos de um louco faziam sentido. Ou talvez não louco. Apenas
aflito e obcecado.
– Tiveste sempre a chave do alçapão. Fingiste que estava trancado.
– Sim.
– E o Karl foi apenas um dano colateral. – Ela olhou-o com mais atenção.
– E o Max?
Ele baixou os olhos.
– Ele estava condenado, Meg.
– Então deste-lhe uma ajudinha.
– Ele era um problema.
Meg abanou a cabeça, um sabor amargo desagradável na boca.
– Tudo isto só para matar um homem.
Sean olhou para ela.
– Pensei que talvez compreendesses.
– Eu?
– Perdeste a tua filha. Se soubesses que uma pessoa tinha sido responsável
pela morte dela e tivesses a oportunidade de a matar, não o farias?
Meg abriu a boca para responder e percebeu que não conseguia, não
honestamente. Depois da morte de Lily, ela tinha visto uma das médicas que
tinha falhado com a sua filha. A entrar no carro dela, num estacionamento
de supermercado. Era tarde, o parque de estacionamento estava deserto.
Meg tinha começado a aproximar- se, com os punhos cerrados. Naquele
momento, ela queria ver o terror nos olhos daquela cabra. Queria dizer: Isto
é pela Lily, e esmagar-lhe a merda dos miolos.
Mas depois alguém a tinha chamado. Um agente que Meg conhecia, a
atravessar o parque de estacionamento com as suas compras. O momento
perdeu-se. A sanidade foi restaurada. Meg tinha-se afastado e entrado no
seu carro, elogiando-se pela sua contenção. Só que não tinha sido a sua
consciência que a tinha impedido, mas uma testemunha.
– Compreendo a necessidade de vingança – disse ela a Sean. – Mas isso
não me teria tirado a dor. A Lily continuaria morta.
– Não se trata de dor – disse ele. – Trata-se de justiça. Para Peggy, para
todos os que Grant matou.
– A qualquer preço?
– Há sempre um preço. Tal como há sempre alguém. Só tens de decidir se
estás disposta a pagar.
– Alguma vez ias enviar ajuda para nós?
Sean rolou os olhos.
– Qual ajuda? De onde? Olha à tua volta, Meg. Este lugar foi
completamente destruído. Tu viste os corpos.
Ela assentiu.
– No início pensei que os tivesses alvejado. Mas eles já estão mortos há
muito mais tempo.
– Acho que quem quer que tenha parado o teleférico deve tê-los matado.
– Achas que essa pessoa ainda está aqui?
Sean abanou a cabeça.
– Já dei uma vista de olhos. Este sítio está vazio. – Ele olhou-a mais
severamente. – Ninguém nos vem ajudar, Meg. Admite, alguém queria
impedir-nos de chegar aqui. Permanentemente.
Meg olhou através da enorme janela. O teleférico pendurado, do tamanho
de um brinquedo, à distância.
– A Sarah ainda está presa lá fora.
– A escolha é dela – disse Sean.
– Não posso abandoná-la – disse Meg, mais desesperadamente. – Se eu
conseguisse arranjar algum equipamento de escalada, talvez conseguisse
voltar através do cabo e fazê-la sair pelo alçapão.
– Parece muito trabalho para salvar uma mulher de quem nem sequer
gostas.
– Eu fá-lo-ia por ti. – Meg inclinou-se para ele. – Sean, por favor. Ajuda-
me só. Podes depois matar quem quiseres. Eu até dou uma mãozinha.
Deixa-me só tentar fazer a coisa certa.
Sean bebeu a sua cerveja.
– És uma pessoa melhor do que eu.
– Sou?
Ela viu a indecisão no rosto dele.
– Foda-se! – Desta vez ele atirou a garrafa de cerveja vazia contra a janela
panorâmica. Fez ricochete no vidro reforçado. Ele olhou para ela e suspirou.
– Bem, isto foi um desperdício.
Ele olhou de novo para Meg.
– Há uma moto de neve nas traseiras. Ia usá-la para chegar ao Retiro…
mas provavelmente cabemos os dois nela.
Meg sorriu.
– Obrigada.
Sean levantou-se e depois fez uma pausa.
– Pergunta-te só uma coisa, Meg. Quem estás tu a tentar salvar
exatamente?
Ela franziu o sobrolho.
– A Sarah.
Os olhos azuis dele foram ao encontro dos dela.
– Muito bem. Continua a enganar-te a ti própria.
Carter

Demorou três horas a escalar as montanhas até à estação do teleférico.


Não era assim tão longe, mas o caminho era íngreme e traiçoeiro.
Em tempos, as motos de neve tinham proporcionado um transporte rápido
e fácil. Mas há já muito tempo que tinham desaparecido.
Carter suou e ofegou enquanto arrastava o trenó pelas encostas das
montanhas, ocasionalmente tropeçando, muitas vezes a praguejar. A neve
tinha quase parado de cair, mas havia uma névoa húmida a pairar,
adensando-se em certos pontos, obscurecendo o caminho.
Fazer a viagem a pé era duro. As intermináveis cadeias de montanhas
brancas e idênticas tornavam fácil uma pessoa perder-se. Havia ravinas
repentinas e, em alguns pontos, as encostas das montanhas acabavam
diretamente em rocha.
A meio caminho, Carter fez uma pausa para recuperar o fôlego e aliviar a
dor nas suas pernas cansadas. O ar era mais rarefeito aqui em cima; ele
podia sentir o coração e os pulmões a terem de se esforçar mais para
levarem o oxigénio aos seus membros. O seu nariz e as membranas mucosas
expostas ardiam com o frio. Ele escondeu melhor o rosto no lenço e
retomou a caminhada. Finalmente, transpôs outro pequeno cume, e viu-o.
O topo cinzento circular da estação do teleférico.
Em tempos, o teleférico trazia da grande cidade os turistas dos hotéis e
das estações de comboio para as estâncias de esqui mais exclusivas no alto
das montanhas.
Essas estâncias estavam fechadas há mais de uma década. A cidade lá em
baixo tinha caído nas malhas do crime e estava abandonada. A maioria dos
edifícios estavam arruinados e inabitáveis. Mas tinha sido encontrado um
novo propósito para o teleférico: era a única forma segura de levar
voluntários para o Retiro.
Construída na encosta da montanha, a enorme parede de vidro curvo
oferecia vistas sobre a floresta e os vales mais além. O piso principal
continha um miradouro, um café e um cais. Abaixo dele, uma pequena casa
das máquinas abrigava o gerador. Carter tinha a certeza de que era lá que
encontraria as botijas de gás e também uma bateria de reserva.
Ele avançou, cambaleando e tropeçando pela encosta rochosa até
à entrada da estação. Na parte de trás, conseguia ver um barracão
de manutenção decrépito e o esqueleto queimado de uma velha moto de
neve. Carter engoliu em seco. Estava a suar dentro do seu fato de neve. Ele
não queria fazer isto. Mas tinha de ser. E não só porque Miles o mataria se
ele falhasse.
As portas automáticas para o átrio de entrada estavam encravadas e meio
abertas. Carter encostou o trenó à parede e espreitou lá para dentro. Estava
escuro. A neve tinha entrado, acumulando-se nos cantos e cobrindo o chão
de flocos escorregadios. Carter podia apenas ver uma pequena mesa de
bilhetes que já não era utilizada, uma fila de bancos de plástico presos ao
chão e, à sua frente, um corredor que penetrava no interior da estação.
Sentia-se no ar um cheiro húmido, a esgoto.
Enfrenta esses demónios. Todas essas merdas.
Sim, era mesmo uma merda.
Controlando a sua ansiedade, Carter entrou.
Meg

Sean ia à frente. Meg seguia-o. Ela tinha-o deixado recuperar a sua arma.
Ela manteve a dela na sua posse. Eles não sabiam ao certo se não haveria um
assassino escondido aqui fora. E ainda não confiavam completamente um
no outro. Quem estás tu a tentar salvar? Mas ele era tudo o que lhe restava.
Sean empurrou a porta de uma saída de emergência e eles voltaram para o
frio gelado. No interior não estava propriamente quente, mas Meg tinha-se
esquecido de como aquele vento era agreste lá em cima, na montanha.
Chicoteava-os, retirando-lhes o fôlego, arranhando e puxando os seus
corpos envoltos em roupas de neve como se estivesse a tentar derrubá-los da
face rochosa da montanha.
Meg deu por si a desejar ter botas de mergulhador, revestidas com
cimento, para a manter firmemente fixada ao chão. Ela curvou a cabeça,
mantendo-se perto de Sean, usando-o como um escudo humano ao
dobrarem a esquina.
Aqui, o vento diminuiu, a sua fúria foi abafada pela estrutura cinza do
edifício da estação. Meg levantou a cabeça e viu que Sean estava a dizer a
verdade sobre uma coisa. Havia uma moto de neve suja vermelha e azul,
com o número «1» estampado no motor, estacionada no exterior de um
pequeno edifício com um sinal que dizia Manutenção. Eles caminharam em
direção a ela.
– Tem gasolina – disse Sean.
– Como é que sabes?
– Verifiquei.
– Então porque é que ainda estás aqui?
– Descobre o problema.
E, de repente, Meg descobriu.
– Não há chave na ignição.
Ela olhou para o barracão de manutenção.
– Já procuraste lá dentro?
– Não. Pensei em ir beber uma cerveja e esperar que aparecesse uma
mulher e sugerisse algo óbvio.
– É o que os homens costumam fazer. – Meg sorriu docemente para ele. –
Mas não fazia mal procurar outra vez.
Ela empurrou a porta e entrou.
O barracão de manutenção era obviamente um armazém para muita
porcaria. Meg percebeu imediatamente o que tinha acontecido às motos de
neve 2 e 3. Tinham sido desmontadas, havia várias peças assentes numa
grande mesa de trabalho no centro do espaço, juntamente com uma série de
ferramentas. Alguém tinha tentado repará-las ou usar as peças para outra
coisa.
Meg olhou em volta. Havia fardas de manutenção e um par de casacos de
esqui sujos pendurados nas paredes, juntamente com mais ferramentas. Ela
apalpou os bolsos das roupas sujas. Vazios. À sua direita estavam dois
armários altos. Meg abriu o primeiro. Lá dentro, dois conjuntos de esquis e
bastões.
– Sabes esquiar? – perguntou ela a Sean.
– Não muito bem. E tu?
– Pessimamente, mas talvez consiga percorrer uma curta distância sem
cair.
– Desde que o teu destino seja a descer.
– Pois. É isso. – Ela voltou-se para os armários. Sean apoiou-se no outro
lado da mesa de trabalho.
– Não desistes, pois não? – disse ele.
– Pensei que sim. Mas estava errada.
Ela alcançou o segundo armário e abriu a porta.
– Antes que tenhas grandes esperanças – disse Sean. – Não está aí.
Meg ficou a olhar para o interior. Havia chaves penduradas em cavilhas
rotuladas: Gerador, Armazém, Neve 2, Neve 3. A cavilha final estava vazia:
Neve 1.
Meg ficou a olhar para ela, algo a martelar-lhe na cabeça. E depois
lembrou-se. Neve 1. O porta-chaves que estava no bolso dela. Claro.
– Eu tenho-a aqui – disse ela.
– O quê?
Ela remexeu no seu bolso cheia de entusiasmo.
– Tirei um porta-chaves do tipo morto na sala de controlo. Não sabia
o que era.
– Tens a chave da moto de neve?
– Sim!
Ela virou-se. O sorriso dela desvaneceu-se. Sean estava de pé, a arma dele
apontada ao peito dela.
– Eu sabia que valia a pena esperar por ti. – Ele fez sinal na direção da
arma que ela tinha na mão. – Pousa isso devagarinho na mesa.
Meg hesitou.
A expressão dele esmoreceu.
– Por favor.
Relutantemente, ela colocou a arma em cima da mesa.
Sean estendeu a mão.
– Agora, dá-me a chave.
– Nunca me ias deixar ir contigo, pois não? – disse Meg. – Foi só um
estratagema para me apanhar desprevenida.
– Basicamente.
– E agora vais matar-me.
– Não. Tu dás-me a chave. Eu amarro-te aqui dentro para poder fazer o
que preciso de fazer. Depois volto.
– Se não fores morto primeiro. – Meg olhou para ele em desespero. – O
professor pode já estar morto, Sean. Já pensaste nisso? Tudo isto pode ser
em vão.
Ele anuiu.
– Verdade. Mas eu fiz uma promessa à minha irmã e tenho de a cumprir.
Agora, dá-me a chave.
Ela tentou novamente.
– Não me amarres. Eu vou congelar aqui dentro. Não posso ir atrás de ti
se levares a moto de neve. Por favor…
Sean suspirou.
– Eu gostaria de concordar, mas tu própria admitiste, tu não desistes.
Acho que ainda tentarias impedir-me.
Meg olhou para ele, os olhos marejados de lágrimas.
– Sim. – Os ombros dela descaíram em sinal de derrota. – Podes crer.
Ela pontapeou a mesa de trabalho. Esta voltou-se e bateu em Sean,
desequilibrando-o. A arma dela voou da mesa e bateu no chão. Meg
agarrou-a e fugiu em direção à porta, saindo para o meio do ar gelado. Ela
olhou para a sua direita. A moto de neve. Ela correu para ela. Ouviu-se um
tiro atrás dela e algo lhe acertou no ombro, desequilibrando-a. Ela caiu no
chão, com o ombro a arder. Merda.
Sean apareceu à porta. Ignorando a dor no ombro, Meg rolou e disparou
uma bala. A madeira estilhaçou-se perto da cabeça dele.
– Foda-se! – Ele voltou para dentro.
Meg pôs-se de pé e tentou correr pela encosta, ainda que a cambalear, em
direção a um pequeno bosque de abetos. Ela agachou-se atrás de uma das
árvores e espreitou por detrás do tronco. Viu a porta do barracão a abrir-se,
Sean usando-a como escudo.
– Meg! – gritou ele. – Não sejas estúpida. Não devíamos estar a lutar um
contra o outro.
– Está bem! – gritou ela de volta. – Então deixa-me levar a moto de neve.
– Eu tenho uma ideia melhor. Deixa-me levá-la e talvez ambos possamos
sair vivos disto.
– Não pode ser.
– Porquê? Não podes salvar a Sarah, Meg. E, mesmo que pudesses, a tua
filha continua morta.
A raiva subiu-lhe à garganta.
– Vai-te foder. Achas que matar outro homem vai trazer a tua irmã de
volta?
– Não, acho que lhe vai trazer justiça. Ele tem de pagar.
– E se outras pessoas tentarem impedir-te? Vais matá-las também?
Quantos mais têm de morrer para que se possa fazer justiça?
Um longo silêncio. Meg agarrou a arma, os seus dedos dormentes de frio.
O ombro dela latejou, sangue a escorrer pelo seu fato de neve. Demasiado
sangue. Foda-se.
– Meg – disse Sean num tom mais suave. – Se tentares alcançar a moto de
neve, sabes que vou ter de te matar.
– Idem.
Ela ouviu-o a rir amargamente.
– Então, estamos num impasse.
– Acho que sim.
Uma longa pausa.
– O que vamos fazer em relação a isso?
Meg olhou para o barracão de manutenção e depois de novo para a moto
de neve. Apenas um deles iria sobreviver. Ou nenhum.
Ela tomou a sua decisão. Levantou-se, rodeou a árvore, apontou
e disparou. Duas vezes.
A segunda bala atingiu o seu alvo. O tanque de gasolina da moto de neve
rebentou numa explosão ensurdecedora de chamas alaranjadas e azuis. A
força e o calor, mesmo a esta distância, fizeram Meg recuar, protegendo o
seu rosto. Ela sentiu o seu cabelo encrespar. Cacos de metal derretido
feriram-lhe a pele. Depois, uma segunda explosão derrubou-a totalmente.
A gravidade arrebatou-a, empurrando-a pela encosta íngreme e nevada,
fazendo-a escorregar cada vez mais rápido em direção ao precipício da
montanha. Meg tentou virar-se e diminuir a velocidade, cravando os
calcanhares, tentando fincar-se na neve. Os pés escorregaram para fora do
precipício no momento em que as suas mãos conseguiram agarrar uma
pequena saliência da rocha.
Cristo. Ela ficou ali deitada por um momento, os pés pendurados no ar.
Depois, cautelosamente, rastejou, saindo do precipício. Ela olhou para trás.
Uma queda íngreme, e nada além de céu, o Sol escondendo-se lentamente
atrás das montanhas. O tejadilho do teleférico brilhava à distância.
Enquanto Meg observava, pensou ter visto uma mancha escura no interior.
Sarah?
Meg sentiu algo dentro de si a doer e a dissipar-se. Ela voltou-se para trás.
A sua arma estava meio enterrada na neve. Pegou nela e levantou-se. De
pernas trémulas, ficou de pé, lutando contra o vento, o ombro ainda a latejar,
a arma bem segura na sua mão. Pronta.
Sean aproximou-se através da névoa de calor reluzente da explosão. Ele
parecia diferente, rosto distorcido pela névoa, pele escurecida pelo fumo.
Cambaleou pela encosta e parou a uma curta distância, ofegante, a arma
junto ao corpo.
Ele olhou para ela com os olhos raiados de sangue.
– Porquê? Porque explodiste a nossa única hipótese de fuga?
– Alguém tinha de te impedir de fazeres mal a mais pessoas.
– Por que raio te preocupa isso?
– Porque… – Meg lutou para encontrar as palavras, forçando-as a sair
contra o vento e a dor. – Porque só nos resta a preocupação. Se pararmos de
nos preocupar, com a vida, com as outras pessoas, quem somos nós? Em que
é que nos tornámos?
Sean abanou a cabeça.
– Sempre soube que eras um dos bons da fita… e, sinceramente, isso é
uma grande chatice.
Eles olharam um para o outro. Um determinado a matar. O outro a
retribuir. Talvez fosse suposto acabar sempre desta forma. Com sangue e
balas.
– Sabes que vais sangrar até à morte se esse ombro não for tratado – disse
Sean.
Meg acenou com a cabeça.
– E tu estás fraco e exausto. Vais morrer de fome e de frio nesta montanha
antes de chegares sequer perto do Retiro.
– Parece que estamos então ambos fodidos.
– Parece que sim.
Os olhos dele encontraram os dela.
– Eu não te quero matar, Meg.
– Eu sei. – Ela levantou a sua arma. – Quem me dera poder dizer o
mesmo.
Sean disparou. Uma, duas, três vezes. Meg sentiu as balas perfurarem o
corpo, pequenas erupções de fogo. Ela sorriu. Os seus pés levantaram-se da
encosta da montanha e depois ela começou a cair. A cair e a cair.
Uma mão apanhou a sua.
Ela virou-se. Lily flutuava ao lado dela. Já não de vestido amarelo, mas
com um de flocos de neve brancos.
– Está tudo bem, mamã. Já te tenho.
Meg apertou a mão da filha.
– Eu sei, querida. E nunca mais te vou deixar outra vez.
Elas aproximaram-se uma da outra. O céu corria à volta delas. O mundo
passou a ser branco.
Meg enterrou a cara dela nos caracóis macios da filha.
– Lamento ter demorado tanto tempo – sussurrou ela. – Tive alguns
afazeres.
Carter

Ele andou ao longo do corredor, as suas botas a levantar poeira do chão


de cimento rachado e que já se desintegrava. Havia cheiro de esgoto a vir das
casas de banho. Ele susteve a respiração enquanto passava por elas.
À sua frente, na parede, uma placa desbotada e rachada dizia Café e
Miradouro, com uma seta apontando em frente. Um corredor mais curto
ramificava para a sua direita. Ele seguiu-o. Ao longo deste corredor, havia
mais duas portas. Uma placa na primeira dizia Apenas Pessoal Autorizado,
Entrada Restrita.
Carter hesitou. A sala de controlo. Ele empurrou a porta aberta.
A pequena sala tinha sido destruída. Cabos arrancados, fios soltos,
monitores de computador partidos. Os corpos ainda estavam sentados nos
seus assentos na mesa de controlo. Não que agora restasse muito deles. As
órbitas estavam vazias e as bocas estavam abertas. Havia fios de cabelos
agarrados a crânios amarelados e dedos esqueléticos a espreitar de macacões
verdes. Buracos irregulares no material indicavam como tinham morrido,
baleados duas vezes nas costas.
Miles era um executor brutal e eficiente.
Após o surto, ele tinha caminhado até à estação para evitar que mais
alguém chegasse ao Retiro. Os colaboradores não estavam ao corrente da
situação. Uma tempestade tinha interrompido as comunicações. Miles tinha
acabado com elas permanentemente. Depois sabotou o teleférico que já
estava a caminho, deixando todos os que lá estavam dentro entregues à sua
sorte para morrer.
Mas tinha voltado alguns dias depois… e salvado a vida de Carter.
Miles tinha-o encontrado, deitado de barriga para baixo na neve,
desmaiado de hipotermia e exaustão, quase morto. Por alguma razão, Miles
tinha-o arrastado de volta para o Retiro. Porquê? Carter nunca saberia.
Miles só disse: «Tinhas ar de sobrevivente. Os sobreviventes são úteis.»
Carter passou aquelas semanas a recuperar das queimaduras de gelo e da
hipotermia numa das câmaras de isolamento do Retiro. Miles tinha-lhe
salvado a vida, mas, mesmo com os seus conhecimentos médicos, havia
pouco que ele pudesse fazer pelo rosto de Carter.
Durante algum tempo, Carter tinha usado uma máscara cirúrgica para
cobrir grande parte da sua mutilação. Gradualmente, começou a retirá-la
com mais frequência. Os outros habitantes do Retiro começaram a deixar de
se chocar perante o seu rosto. E, eventualmente, ele também.
Carter lançou um último olhar à tripulação há muito morta e depois saiu
para o corredor. Virou e seguiu os sinais para o café e miradouro. No final
do corredor, empurrou as portas duplas para entrar.
A vista espetacular era menos evidente nos dias de hoje, com a parede de
vidro curvo revestida de camadas de fuligem. Garrafas rebentadas no
frigorífico desativado emanavam um cheiro a trigo velho. Carter passou
pelas mesas e cadeiras empilhadas, passando por cima de uma garrafa de
cerveja partida, e ficou de pé à frente da janela suja.
O teleférico ainda lá estava pendurado. Vermelho-sangue contra
a brancura do céu. Enferrujado, enfraquecido pelas tempestades… não mais
do que uma carcaça. Mas ainda ali, pendurado. Como ele. Um sobrevivente.
Atrás dele, uma bota esmagou o vidro.
Devagar, ele virou-se…
– De volta à cena do crime, Sean?
Carter

Ela era tal e qual como ele se lembrava: cabelo escuro emaranhado, rosto
ensanguentado, mas determinado. Havia mais sangue a manchar o seu fato
de neve azul. Em vários pontos havia buracos esfarrapados onde as suas
balas tinham penetrado o tecido.
– Eu realmente não te queria matar.
Meg encolheu os ombros.
– Se te serve de consolo, eras tu ou eu.
– Sim.
– E deveria ter sido eu, obviamente.
– Eras um dos bons da fita.
– Mas não uma sobrevivente.
– Tu querias impedir-me. Eu tinha de o encontrar.
– E encontraste. E agora?
– Vou matá-lo.
– E depois? Onde termina?
– Quando ele estiver morto.
Ela sorriu tristemente.
– Continua a enganar-te a ti próprio, Sean.
E depois ela desapareceu, dissolvendo-se em pó que assentou no chão.
Nada restava dela agora, exceto na sua mente, onde ela vivia com os outros:
Peggy, Hannah, Lucas, Anya – e mais. Havia sempre mais. Muito sangue
debaixo da ponte.
Depois da morte de Meg, ele tinha considerado, por um breve momento,
segui-la e cair pelo precipício. Mas o instinto de sobrevivência era
demasiado forte, a necessidade de terminar o que tinha começado
demasiado grande. Ele tinha chegado até aqui. Se o caminho para o inferno
está assente em boas intenções, é também uma rua de sentido único. Não
tem regresso.
Ele tinha voltado a subir a encosta da montanha e entrado no barracão de
manutenção. O frio já estava a penetrar no seu fato de neve. Ele sabia que
precisaria de camadas de roupa extra para ter alguma hipótese de sobreviver.
Agarrou num dos casacos de esqui sujos pendurados no gancho e vestiu-o.
Havia um nome cosido na lapela.
P. Carter.
A certa altura, depois do seu salvamento, Miles tinha perguntado o que
significava o «P».
Ele tinha sorrido.
– Não importa. A maioria das pessoas só me chama Carter.
Um novo nome, outra nova vida. Mas uma coisa não mudou. O seu
desejo de vingança.
Carter tinha sido paciente. A prisão tinha-lhe ensinado isso. Ele tinha
esperado, recuperado, readquirido as suas forças, aprendendo a viver com o
que restava do seu rosto. Tinha descoberto tudo o que podia sobre o Retiro,
tinha tentado tornar-se útil, para ganhar a confiança de Miles.
E tinha funcionado.
Eventualmente, Miles tinha-lhe contado a verdade sobre a Câmara de
Isolamento 13.
Para alguns significa azar. Mas para Carter era uma espécie de feliz
coincidência.
Porque Carter esperou treze anos para matar o homem preso lá dentro.
E agora estava quase na hora.
O DIABO JÁ FOI
UM ANJO OUTRORA
1

Já mal havia luz quando Carter chegou ao complexo do Retiro, arrastando


o gerador, a bateria e dois cilindros de gás no trenó.
Ele estava a suar dentro do fato de neve e sentia o peito apertado,
provavelmente devido ao esforço e à altitude. Estava a lutar para recuperar o
fôlego. As pernas tremeram enquanto ele cambaleava pelos últimos
oitocentos metros. Não ajudou que o vento voltasse mais uma vez, flocos de
neve rodopiando em torno do seu rosto. Uma nova tempestade estava para
chegar.
Quando Carter chegou ao portão, algo se partiu debaixo do pé dele. Ele
olhou para baixo. O velho sinal. Tinha saído do gancho e ficado meio
submerso na neve. Carter agachou-se e agarrou-o:

O RETIRO
Propriedade do DRIFT
(Departamento de Revista
em Infeção e Futura Transmissão)

Carter olhou para o sinal degradado. Depois puxou o braço para trás e
atirou-o para o mais longe que pôde. Porra, detestava a merda dos
acrónimos.
Ele aproximou-se da porta e inseriu o código. Não se abriu. Ele tentou
novamente. A porta continuava a não ceder. Ele arrancou as luvas com os
dentes e tocou no teclado mais uma vez, para o caso de alguma forma ter
inserido o código errado. A porta permaneceu trancada. Mas que merda é
esta? Carter olhou para o teclado, como se este estivesse a gozar
deliberadamente com ele. Um problema de energia outra vez? Mas isso
normalmente destrancava as fechaduras. A não ser que Welland tivesse
estragado alguma coisa, o que era uma grande possibilidade. Irritado, Carter
bateu furiosamente à porta com os punhos.
– Ei! Welland! Miles! O teclado está estragado. Podem deixar-me entrar?
Ele esperou. Nada. A porta era pesada. Talvez ambos estivessem na cave
ou noutra parte do Retiro. Carter praguejou e pontapeou a porta. Foda-se.
Ele deu um passo atrás e olhou em volta. Estava cansado e com fome.
Precisava de entrar. Mas o Retiro era totalmente fechado. Não havia maneira
de entrar ou sair.
Carter foi até à frente do edifício. Ele conseguia ver o azul cintilante da
piscina através da janela de vidro. Acima dele, a área do terraço e a enorme
janela de vidro redonda da sala de estar. Deu vários passos atrás e esticou o
pescoço. Ele não conseguia ver o interior da sala, mas… franziu o sobrolho.
Havia luzes acesas lá dentro? Sim. Definitivamente. O que devia significar
que a energia estava de volta ou que Welland tinha arranjado o gerador. De
qualquer forma, se a energia estava ligada, porque é que a porta da frente
não estava a abrir?
Carter voltou para trás e olhou para a porta. Na realidade, só havia mais
uma explicação. Alguém tinha mudado o código. Ele bateu na porta
novamente, por vários segundos, gritando e pontapeando, alto o suficiente
para «acordar os mortos», como o seu avô costumava dizer. Mesmo assim,
sem qualquer resposta.
– Que se lixe isto.
Ele recuou, sacou da arma e disparou para o teclado de segurança.
O plástico saltou; os fios elétricos rebentaram. Carter empurrou a porta.
Desta vez, abriu. Carter entrou no átrio, a arma ainda apontada. Vazio.
Silencioso. Empurrou a porta com o pé. Se tivesse cometido um erro, seria
um inferno aturar Miles por ter fodido a porta da frente, mas Carter não
achava que fosse. Algo aqui estava errado. Carter quase conseguia apalpar o
mau pressentimento no ar.
Ele arrancou os óculos e a máscara, retirou as botas e em silêncio despiu o
fato, largando-o no chão, mantendo sempre a sua arma firme numa mão. Ele
dirigiu-se cuidadosamente até às escadas em espiral e subiu-as, tentando não
respirar ruidosamente. Lá em cima olhou em volta, com a arma apontada
para a sua frente. O coração de Carter saltou-lhe para a boca. Foda-se.
Um corpo deitado, de barriga para baixo, no meio da sala de estar.
Volumoso, vestido com uma T-shirt muito manchada de sangue e calças de
ganga largas, um emaranhado de cabelo frisado espetado para cima, mais
sangue acumulado debaixo dele.
Welland.
Parecia que ele tinha sido baleado várias vezes. Carter tinha desejado
muitas vezes este momento, mas agora, olhando para o corpo de Welland,
não sentia nenhuma satisfação. Apenas piedade. E perplexidade. Só uma
pessoa podia ser responsável. Mas porquê?
Teria Miles descoberto que Welland tinha entrado nas câmaras? Matá-lo
por isso parecia um pouco extremo, mesmo para Miles. Talvez Welland
tivesse atacado Miles e este tivesse sido forçado a matá-lo em legítima
defesa. Mas, vendo bem, não se baleia alguém pelas costas quando é em
legítima defesa. E se Miles tivesse mesmo matado Welland, porquê deixá-lo
aqui deitado? Miles odiava desarrumação.
Carter franziu o sobrolho. Isto não estava certo. E deu pela falta de outra
coisa. Dexter. Onde estava o cão? Carter tinha um pressentimento muito,
muito mau sobre isto.
Ele virou-se e voltou a descer silenciosamente as escadas. Pensou verificar
a área da piscina, mas o seu instinto sabia onde iria encontrar Miles. Lá em
baixo, na cave.
Carter foi até ao elevador. Mas não carregou logo no botão. Tinha
dúvidas. Será que ele queria mesmo fazer isto? Talvez devesse sair daqui
enquanto podia. Mas para onde iria? Quinn dificilmente o iria ajudar a fugir
e Carter não queria correr riscos com os Whistlers e o que mais andasse por
aí a vaguear nos bosques.
Só havia um caminho a seguir.
E de certeza que não era para cima.
Carter chamou o elevador. As portas abriram-se de imediato. Ele entrou e
retirou o seu próprio passe do bolso escondido nas calças de ganga.
Pressionou-o contra o painel. O elevador deslizou suavemente para baixo. O
coração dele bateu. As portas abriram-se.
Com a arma apontada, Carter entrou no corredor frio, já familiar.
A iluminação estava de novo ligada. Brilhante, branca, estéril. Fê-lo sentir-se
desprotegido. Ele avançou cautelosamente, espreitando as divisões enquanto
passava. Vazia, vazia, vazia. Ao aproximar-se do fim do corredor, apercebeu-
se de um barulho. Um som estranho, um grunhido. Mesmo à distância, fazia
o seu estômago revirar-se. Carter dobrou a esquina e parou. A porta para as
câmaras de isolamento ainda estava aberta. O barulho vinha lá de dentro.
Carter segurou bem a arma, avançando devagar, com o coração a bater.
Alcançou a entrada. Daqui podia ver que as portas de todas as câmaras
estavam novamente abertas. Foda-se. Que diabo se passava com os
comandos do sistema? Foi por isso que Miles tinha matado Welland? Para
os dominar?
Ele entrou. O som gutural era mais alto. E familiar. Carter conseguiu ver
que a Câmara 3 estava vazia. Aproximou-se da Câmara 4 com um péssimo
pressentimento e olhou lá para dentro.
Caren estava deitada na cama, sedada, quase inconsciente. O seu macacão
tinha sido puxado até aos joelhos e o Reserva 03 estava deitado sobre ela, o
seu próprio macacão azul em redor dos tornozelos, as suas nádegas brancas
oscilando energicamente para cima e para baixo.
Carter não esperou, não pensou. Foi na direção dele, agarrou 03 pelo
cabelo oleoso e arrastou-o, atirando-o para o chão. 03 gritou de fúria,
impotente. Carter levantou a arma e baleou-o na zona genital. 03 uivou e
encolheu-se, agarrando-se à amálgama sangrenta entre as suas pernas.
– Ai é? Vê se gostas disto, seu sacana nojento! – Carter disparou outra vez
e rebentou com a rótula esquerda do 03, depois com a direita.
O Reserva 03 chorou e gritou. Havia sangue a jorrar dos seus joelhos
desfeitos, formando poças no chão. Ele ia sangrar até à morte em agonia.
Com alguma sorte.
Carter aproximou-se de Caren. Ele pegou num cobertor que estava aos
pés da cama e cobriu-lhe o corpo. Os olhos dela tremeluziram. A respiração
dela estava fraca. A pele dela já parecia pálida.
Carter acariciou-lhe o cabelo.
– Vai ficar tudo bem. Eu vou tratar disto.
Mas, se ele o fizesse, acabaria mesmo. Acabar-se-iam as reservas. Para
eles. Ou para Quinn.
Que se lixe.
Carter encostou o cano da arma suavemente à cabeça de Caren e puxou o
gatilho.
Depois, ele virou-se, deu um pontapé na virilha do 03 e saiu de novo para
o corredor.
Só restava uma câmara.

Carter nunca tinha entrado antes na Câmara de Isolamento 13. Era a


única porta que não era feita de vidro. Em vez disso, era lisa e branca,
perfeitamente enquadrada na parede. Se não soubesse que estava lá, nunca a
encontraria. Um teclado para o código de entrada estava igualmente bem
escondido. Assim como as outras câmaras, só Miles tinha o código, e ele
mudava-o regularmente.
O habitante da Câmara 13 não estava infetado nem era perigoso. Mas era
valioso. Um génio brilhante e impiedoso. Um homem que acreditava que
podia salvar o mundo e que aqueles que se atravessavam no seu caminho
eram danos colaterais. Como a sua própria filha. E a irmã de Carter. Um
homem tão odiado quanto venerado.
O professor Stephen Grant.
O mundo acreditava que ele estava morto.
Mas Carter sabia que não.
A porta da Câmara 13 estava aberta. Carter entrou. Havia uma grande
cama de casal. À sua direita, uma casa de banho pequena. À sua esquerda,
uma grande estante e uma pequena secretária, iluminada por um único
candeeiro. Havia uma figura sentada à secretária. Carter só conseguia ver
uma silhueta e uma cabeça careca, a brilhar na luz.
Ele levantou a arma, fazendo pontaria com as duas mãos.
– Dá meia-volta, Grant. Quero que vejas a pessoa que te vai matar.
Lentamente, a cadeira girou.
Carter olhou fixamente para o homem que lá estava sentado. Cabeça
rapada, vestido com um macacão azul limpo, apontando uma arma a Carter.
– Olá, meu. – Welland sorriu. – Surpresa.
2

Carter ficou de boca aberta.


– Tu não estás morto.
– Meu, tu és esperto.
– Mas… – O corpo. A roupa… – O cabelo.
Welland passou uma mão sobre o seu escalpe recém-rapado.
– Pois. Enganei-te, não foi? – Ele riu-se. – Meu, quem me dera ter visto a
tua cara quando encontraste o Miles.
– Aquele era… o Miles?
– Sim. Pus o meu cabelo na cabeça dele. Revesti-o com almofadas e vesti-
lhe as minhas roupas velhas.
– Por que raio farias isso?
Um encolher de ombros.
– Pensei que teria piada… uma espécie de presente de boas-vindas.
– Mas… mudaste o código da entrada para me impedires de entrar.
– Sim, mas imaginei que ainda conseguirias entrar de alguma forma. És
um persistente de merda. – Welland sorriu. – E eu gosto disso em ti, meu.
Eu gosto mesmo. Tu não desistes. Mesmo com essa cara horrenda, continuas
aqui, como um Freddy Krueger de quarta categoria.
Carter continuou de boca aberta, a mente a lutar para conseguir
acompanhar a história.
– Eu não entendo. Porque mataste o Miles?
– Porque não? Já tinha esperado tempo suficiente.
– Para quê?
Welland abanou a cabeça.
– Não percebes mesmo?
Carter precisava de recuperar algum terreno aqui.
– Percebo que sejas um mentiroso – disse ele. – Disseste a toda a gente
que trabalhavas na manutenção. Mas eras apenas um empregado de limpeza.
O seu sorriso desvaneceu-se.
– Como descobriste isso?
– Encontrei a tua identificação com o teu antigo nome, Barry Coombes.
Acho que deves ter tentado livrar-te dela em algum momento.
Welland acenou lentamente. Depois o seu sorriso abriu-se novamente.
– Sim. É uma história engraçada, meu. Eu consegui o trabalho aqui pouco
tempo antes do surto. Quando cheguei, o macacão de limpeza que me
arranjaram não me servia, por isso pedi um emprestado a um tipo da
manutenção: Welland. Era um tipo simpático, um Whistler cortou-lhe a
garganta. De qualquer forma, eles gostavam de nos definir por cores.
Cobaias de azul, enfermeiras de verde-claro, médicos de branco, pessoal de
limpeza de cinzento e manutenção de verde-escuro. Quando isto deu merda,
escondi-me na despensa. O Miles encontrou-me lá, apontou-me uma arma à
cabeça e perguntou-me se eu conseguia manter este lugar a funcionar. O que
é que eu ia dizer? Disse que sim, e aprendi depressa, porra.
– E a mudança de nome?
Um encolher de ombros.
– Eu sempre odiei o nome Barry.
Carter olhou para Welland. Tão simples quanto isso. Apenas o macacão
errado. Mas de facto, como ele próprio sabia, a maioria dos melhores planos
eram apenas mera sorte.
– Foi por isso que não conseguiste consertar a energia quando começou a
falhar – disse ele. – Não sabias o suficiente sobre os sistemas elétricos.
– Sabia algumas coisas. Quer dizer, enganei-vos por tempo suficiente.
E agora algo mais começou a fazer sentido. Julia.
– Foi por isso que mataste a Julia? Ela veio cá abaixo quando a energia
falhou? Ela descobriu?
– Sim. – Welland acenou com a cabeça. – Foi uma pena. Eu gostava da
Julia. Belas mamas.
Carter franziu o sobrolho.
– Mas não tinhas sangue na roupa?
– Macacão, meu. Tive sempre um na despensa para quando fosse
necessário. Vesti-o, deixei a Julia na piscina, limpei o chão e mudei de roupa.
Enfiei o macacão sujo atrás de umas merdas na despensa até poder deitá-lo
fora. Pensei que teria de tentar culpar um de vocês pela morte dela, mas
depois instalou-se o caos.
– E a faca?
– O Miles não me deixava ter uma arma. Achava que eu era demasiado
patético para ter uma. Por isso, guardei uma faca. – Ele olhou
sorrateiramente para Carter. – Meu, nem te consigo dizer quantas vezes
considerei apunhalar-vos a todos enquanto dormiam… mas o Miles tem um
sono muito leve. Não tinha a certeza se conseguiria acabar o trabalho sem
levar um tiro.
– E todos nós trancamos as nossas portas.
– É fofinho pensarem que isso vos mantinha seguros.
– O que queres dizer com isso?
– Posso ter sido apenas um tipo da limpeza, mas observei e aprendi. O
Dreyfuss, o chefe da manutenção, guardava um livro com todos os códigos
do sistema. Não era suposto, mas ele gostava de beber e tinha uma memória
de merda. Depois de ele morrer, eu roubei-o. Podia entrar nos vossos
quartos sempre que quisesse. – Welland piscou o olho. – E, acredita, foi o
que fiz.
Carter engoliu em seco.
– E foi assim que entraste nas câmaras de isolamento também.
Uma expressão de surpresa.
– Sabias disso?
– A Caren viu-te.
– Ah, a sorrateira Carenzinha com C. Não está tão poderosa agora.
– Ela está morta.
– Raios. Ela tinha um belo rabo.
Carter sentiu a sua repulsa aumentar.
– A tua empatia é louvável.
A expressão de Welland ensombrou-se.
– Ei, não te faças de santo comigo. Eu sei tudo sobre ti, Carter. Sei tudo
sobre todos vocês. Meu, vocês são tão burros. A guardar os pertences nos
«esconderijos secretos». Até o Miles. Sabias que o Miles matou mais de vinte
pacientes quando era médico? Guardava as suas próprias notícias de jornal.
Oh, e o teu bom amigo Nate gostava delas novas. Muito novas. Encontrei as
fotos. A Julia cortava-se. A Caren tomava laxantes. E sei que o Jackson
estava a planear que os seus amigos Rem viessem até cá para levar o
professor… – Welland acenou perante o olhar chocado de Carter. – Sim, eu
sei tudo sobre o professor. O grande génio que acabou de desaparecer,
presumivelmente morto. Mas nós sabemos onde ele foi parar, certo?
Ele estendeu bem os braços. Carter ficou a olhar para ele.
– Ei, não sejas tímido, meu – disse Welland. – Tu querias entrar na 13
tanto quanto eu. E as tuas razões são muito mais nobres, meu. A cena de
vingar a morte da tua irmã…
– Sabes sobre a Peggy?
– Eu disse-te. Eu observei e ouvi. Encontrei a tua foto, vi a tua tatuagem.
Além disso – Welland baixou a voz e sussurrou –, tu falavas durante o sono.
– Ele riu-se. – E, acredita em mim, esse motivo é válido. Quer dizer, parece
que mataste algumas pessoas pelo caminho, mas fizeste-o por amor. Se isto
fosse um filme, as pessoas iriam perdoar-te. Todos adoram um anti-herói,
embora normalmente ajude se se parecerem mais com o Brad Pitt e não
forem uma aberração como tu.
Outra risada selvagem. Carter percebeu que se tinha enganado em relação
a Welland. Ele sempre o achou um inútil e egoísta de merda. Agora, ele tinha
quase a certeza de que Welland era completamente louco.
– Então estamos ambos aqui atrás do professor – disse ele.
– Como eu te disse… surpresa.
– Então, onde está ele?
– A brincar às escondidas.
– A sério – disse Carter. – O que lhe fizeste?
– Nada. Essa é a piada. E nós somos os bobos da corte.
Carter tentou conter a sua raiva. Ele precisava de se manter calmo.
– De que diabo estás a falar?
Welland suspirou.
– Ele não está aqui. Nunca ninguém esteve aqui. Olha. – Ele pegou num
bloco de notas da secretária e soprou o pó. – Este sítio está vazio há anos,
porra.
Carter avançou e passou uma mão sobre a colcha. Nem um vinco. E cheia
de mais poeira fina. Abriu-se um buraco no seu estômago.
– Vazio. Todo este tempo?
– Sim. O Miles mentiu. E esta, hein?
Carter absorveu a informação.
– O Miles costumava vir cá abaixo, trazer comida e água.
– Acho que ele deitava tudo pela sanita abaixo.
As pernas de Carter fraquejaram.
– O Grant esteve aqui. No Retiro. Antes do surto. Eu sei disso.
Welland encolheu os ombros.
– Talvez tenha estado. Eu nunca o vi. Acho que ele está morto agora.
– Então porque é que o Miles continuou com a farsa? Porque é que nos
disse que o mantinha aqui prisioneiro?
– Porque lhe convinha – disse Welland, como se fosse óbvio. – Ele sabia
que o Prof. era a melhor moeda de troca. Muita gente lhe quer deitar a mão,
por muitas razões diferentes. Ele não queria que nenhum de nós arruinasse
o seu plano de recurso.
Fazia sentido. Conhecendo Miles.
– E o que querias tu do professor? – perguntou Carter a Welland.
– Ele era o meu bilhete para sair daqui, pá. Assim que encontrei o telefone
do Jackson e soube o que ele e os seus amigos Rem andavam a tramar, fui
falar com ele. Apanhei-o a voltar de uma corrida matinal. Disse ao Jackson
que sabia o que se estava a passar. Pensei que podíamos fazer um acordo,
ajudar-nos um ao outro.
– Mas o Jackson não foi nisso?
– Não. – Welland pareceu ofendido. – Ele atacou-me. Quer dizer, eu tinha
de me defender. Foi em autodefesa.
Alguma coisa começou a fazer sentido.
– Tu mataste o Jackson – disse Carter.
– Era ele ou eu, pá.
– Sim. Isso soa-me familiar.
– Arrastei o corpo dele para a floresta – continuou Welland. – Calculei
que os animais o apanhariam, ou os Whistlers.
– Ele não estava morto.
– Ele está vivo?
– Já não. Eu matei-o.
Welland riu-se.
– Vês, tu e eu, somos muito parecidos.
– Não somos nada parecidos – disse Carter, sentindo a mentira bloquear
na sua garganta.
E havia algo mais a perturbá-lo, mas ele não conseguia perceber o quê.
– Então, com o Jackson fora da jogada, decidiste ser tu a lidar com os
Rems?
– Sim. – Welland acenou com a cabeça. – Entregava o professor em troca
de uma passagem segura para fora daqui e uma boa maquia.
Então a última chamada no telemóvel de Jackson tinha sido feita por
Welland, depois de Jackson estar morto.
– Porquê deixar o telemóvel escondido no cano do chuveiro? – perguntou
Carter.
– Era o lugar mais seguro. Só eu sabia que estava lá… e se mais alguém o
encontrasse, o Jackson ficaria com as culpas.
O cabrãozinho pensou em tudo.
– E como planeavas chegar ao professor? – perguntou Carter.
Welland inclinou-se ligeiramente para a frente.
– Todos vocês pensaram que eu era muito estúpido por não conseguir
consertar os desfasamentos… mas eu não queria consertá-los. Achei que, se
os desfasamentos aumentassem, os fechos automáticos iriam abrir e eu
conseguiria entrar na 13. Sabes, a 13 era a única câmara para a qual eu não
tinha um código de entrada.
Carter pensou nisto.
– Mas não funcionava assim. Porque a 13 também é a única câmara que
não abre se a energia for abaixo. Tem uma bateria de reserva. O Miles
verificava-a todos os dias.
Welland abanou a sua cabeça careca.
– Tenho de te dizer que isso foi uma chatice. Felizmente, toda a merda
que aconteceu quando as reservas se soltaram resolveu muitos dos meus
problemas. A Caren ter-se infetado foi a cereja no topo do bolo. Eu sabia
que a tua ida à estação do teleférico era a oportunidade perfeita.
– Obrigavas o Miles a dar-te os códigos, matava-lo e entravas na 13.
– Pumba! Fixe, né?
– Só que não tens o teu prémio. – Carter sorriu. – E quando os Rems cá
chegarem não terás nada para lhes dar, o que, creio eu, não os vai deixar
assim muito felizes.
A expressão de Welland desvaneceu-se como a de uma criança birrenta.
– Que se foda o Miles. Eu devia ter percebido que ele me tinha dado o
código muito facilmente. Se ainda não tivesse matado aquele cabrão, ia
matá-lo agora. E desta vez seria muito lentamente.
A mente de Carter estava a mil. Ele odiava o Welland. Ele era um cabrão
psicopata. Mas, neste momento, parecia que eles tinham outros problemas.
– Quando é que os Rems cá chegam, Welland?
– Bem… a tempestade provavelmente atrasou-os um pouco…
– Welland?
– A qualquer momento.
– Merda. Precisamos de sair daqui.
As sobrancelhas de Welland ergueram-se.
– Precisamos?
– Eu sugiro – disse Carter firmemente – que por agora ponhamos
em segundo plano os nossos instintos homicidas um pelo outro e nos
concentremos em sair vivos disto.
Welland refletiu.
– Sim, talvez tenhas razão.
Olharam um para o outro e ambos baixaram as suas armas.
– OK – disse Carter. – A vedação elétrica está avariada.
– Mas o edifício está seguro.
– Nem por isso. Eu rebentei a fechadura da porta da frente.
– Foda-se, meu! Então, os Rems podem simplesmente entrar?
– A menos que os impeçamos.
– Podíamos simplesmente ficar aqui em baixo – sugeriu Welland. –
Estamos seguros aqui.
– Por quanto tempo? Quanto tempo levarão até conseguirem anular os
comandos do elevador?
Welland encolheu os ombros.
– Não sei. Eu era só o tipo da limpeza.
Carter respirou fundo.
– Vamos lá.
Welland ainda parecia receoso.
– Não tenho a certeza.
– Muito bem. Enquanto tu ficas aqui a bater uma, eu vou tentar salvar a
minha pele.
Ele dirigiu-se para a porta.
– Espera!
Ele virou-se. Welland olhou para a sua arma. Depois enfiou-a no bolso de
trás do macacão.
– Não acredito que matei todos menos tu.
3

Apressaram-se ambos pelo corredor, passando pelas câmaras de


isolamento, pelos laboratórios e escritórios, e entraram no elevador. Carter
pressionou o botão «para cima». Quando as portas se abriram no topo, os
dois sacaram das armas. E agora Carter conseguia ouvir alguma coisa.
Distante, mas a aproximar-se. Eles olharam um para o outro. Um
helicóptero.
– Acho que chegaram na hora exata – disse Welland.
– Merda. – Carter subiu as escadas até à sala, Welland a ofegar atrás dele.
A enorme janela panorâmica só deixava ver o céu cinzento e as montanhas
com neve. Mas o barulho era agora mais alto. Muito alto. Quase mesmo
sobre eles. Carter aproximou-se da janela, a observar. Ele ergueu os olhos.
A massa cinzenta do helicóptero surgiu em frente do vidro.
Por uma fração de segundo pairou ali, como um pássaro cinzento gigante.
O piloto levantou a mão.
– Olá – disse Welland. – Ele está a acenar. Talvez…
– Baixa-te! – gritou Carter.
Eles atiraram-se ao chão quando tiros foram disparados a partir do
helicóptero e a janela panorâmica explodiu para dentro, originando um
tsunami de vidro sobre eles.
– Cristo! – Carter protegeu a cabeça com as mãos, mas ainda sentia
o ferrão dos fragmentos afiados.
– Foda-se, foda-se, foda-se – lamentou Welland.
– Corre. Agora! – disse-lhe Carter.
Sem esperar para perceber se Welland tinha ouvido, Carter pôs-se de pé e
correu para as escadas. Ouviram-se mais tiros. Ele sentiu o cheiro de cordite
queimada e encolheu-se quando o vidro partido se esmagou debaixo dos
seus pés e lhe cortou as meias. Ao descer as escadas em passo acelerado,
quase escorregou no seu próprio sangue.
Welland ia correndo e tropeçando nas escadas atrás dele.
– Que diabo fazemos? – gritou ele quando chegaram ao corredor.
Carter virou-se. A cabeça careca de Welland estava pejada de pedaços de
vidro. Como um Fogo Maldito de quinta categoria.
– Vamos embora daqui, porra – disse Carter.
– Mas nós não vamos sobreviver lá fora.
– E aqui vamos morrer.
Carter pegou nas botas, colocando-as, cheio de dores, nos pés lacerados.
Ele pensou no helicóptero. O piloto vestido com um camuflado verde.
As armas. Ele engoliu em seco, uma perceção brutal a emergir à superfície.
– Eles não são Rems, Welland. – Ele agarrou no seu casaco almofadado.
Não havia tempo para vestir o fato de neve.
– O quê? – Welland parecia confuso e em pânico.
– O Jackson não era um Rem – disse Carter. – Ou, se era, foi enganado.
Aqueles cabrões são do Departamento.
– Do DRIFT?
– À primeira tentativa.
O que significa que eles não vieram aqui para negociar ou para regatear.
Eles vieram para vir buscar o professor e matar todos os outros. Carter tirou
um casaco da prateleira e atirou-o a Welland.
– Fica perto do edifício. Vamos pelas traseiras. Escondemo-nos na
floresta. Reza para que eles não nos encontrem.
Carter abriu a porta. Tarde de mais. O helicóptero tinha aterrado numa
área plana mesmo à saída da vedação elétrica. As pás abrandaram com um
guincho baixo. Três tipos de camuflado já tinham saído do helicóptero e
corriam em direção a eles. Todos eles tinham metralhadoras. Merda.
Carter olhou para a arma dele. Podia muito bem ser uma pistola de água.
Nunca conseguiriam dar a volta às traseiras do edifício sem serem
apanhados.
– Estamos mortos – murmurou Welland.
Por uma vez na vida, Carter não discordou.
Ele começou a levantar as mãos. E então ouviu outra coisa. O barulho dos
motores. Ele virou-se. Três motos de neve aceleravam pela encosta da
montanha. Jimmy Quinn e os seus filhos. Devem ter visto o helicóptero a
voar e perceberam que estavam prestes a perder a galinha dos ovos de ouro.
As motos de neve derraparam até ao helicóptero, cuspindo neve e fogo de
metralhadora. Dois dos tipos do Departamento cambalearam, o peito
repleto de vermelho, e caíram sobre a neve. O terceiro ripostou, atingindo
um dos filhos de Quinn, que caiu da moto de neve. A moto rodou em
círculos, sem condutor, derrubando-o enquanto ele tentava levantar-se.
Outra rajada de tiros manteve-o no chão de vez, encharcando a neve de
carmesim.
Carter e Welland agacharam-se ao lado da porta, não se atrevendo
a mexer enquanto as balas enchiam o ar. Mais homens armados saltaram do
helicóptero. Quinn uivou e bombardeou-os com tiros, atingindo um nas
costas. O filho número 2 saltou da sua moto de neve e rebentou a cabeça a
um segundo, gritando em triunfo. A sua vitória não durou muito. Uma
explosão de munições pesadas vinda do helicóptero fê-lo voar, as pernas a
tremer, e abriu-lhe o tronco como uma pinhata. As suas entranhas
derramaram-se numa mancha fumegante e ele caiu no chão.
Depois disto, o piloto obviamente já tinha visto o suficiente. As pás
rodopiaram. O helicóptero começou a subir. Quinn correu atrás dele, ainda
disparando loucamente, a arma a cuspir balas. Elas fizeram ricochete nas
pás. O zumbido abrandou. O helicóptero inclinou-se no ar, subindo e
baixando enquanto o piloto tentava desesperadamente manter o controlo.
Depois, com um ruído ensurdecedor, as pás abrandaram e pararam. O
helicóptero começou a rodar, cada vez mais rápido, antes de embater na
encosta da montanha e explodir em chamas.
Carter baixou a cabeça e ergueu um braço para proteger o rosto do calor
da explosão, ainda quente o suficiente para lhe deixar o cabelo crespo a
vários metros de distância. Após alguns segundos, quando ele achou que os
seus globos oculares já não iam derreter, baixou o braço e olhou para cima.
Só um homem ainda estava de pé. Fato de neve branco salpicado de
manchas vermelhas. Capuz de pelo sobre a cabeça. Óculos de neve laranja
como olhos de inseto gigantes. Jimmy Quinn.
Ele passeou pela carnificina, passando por cima dos corpos, metralhadora
apontada para o alto. As chamas e o fumo ascendiam no ar à sua volta.
– Merda – murmurou Carter, perguntando-se por que raio não tinham
fugido quando tiveram a oportunidade.
Quinn atravessou o portão e puxou o capuz para trás.
– Larguem as armas, rapazes.
Obedientemente, porque não tinham grande escolha, Carter e Welland
atiraram as suas armas para a neve.
Quinn acenou com a cabeça.
– Onde está o Miles?
– Ele está morto – choramingou Welland.
– Ainda bem. Poupa-me o trabalho de o matar.
– Senhor Quinn… – começou Carter a dizer.
– Cala-te, porra!
Carter fechou a boca com um estalido.
Quinn olhava-os com ar assustador.
– Nós tínhamos um acordo. Vocês davam-me o plasma. Eu deixava-vos
viver aqui em tranquilidade. Em paz.
– Eu sei…
– Isto parece-te pacífico, Carter?
Carter abanou a cabeça.
– Não…
– Vocês trouxeram o Departamento para cá. Para a merda da minha
porta. E agora os meus filhos estão mortos.
– Desculpa – implorou Carter desesperadamente. – Se nos deres outra
oportunidade…
– Queres outra oportunidade – Quinn levantou a sua arma –, reza pela
reencarnação.
O som de um tiro ecoou no ar. Sangue e cérebro explodiram do centro da
testa de Quinn. Os seus olhos arregalaram-se de surpresa e então caiu sobre
os joelhos e depois de cara na neve.
Uma figura enegrecida e queimada permanecia de pé atrás do corpo caído
de Quinn. O piloto do helicóptero. Ou o que restava dele. O fumo subia do
seu corpo chamuscado e da pele carbonizada. Mesmo a esta distância,
Carter podia sentir o cheiro enjoativo e doce da carne cozinhada.
– Jesus – gemeu Welland. – Parece a merda de um porco assado.
Enquanto eles observavam, o piloto levantou a arma e apontou-a à sua
própria cabeça. Puxou o gatilho. Um clique seco. Tentou novamente.
Os olhos dele encontraram os de Carter. Um olhar de súplica através da sua
cara derretida e sem características.
– Mata-o – disse Carter a Welland.
– O quê?
– Faz alguma coisa boa uma vez na tua vida. Mata-o.
Welland chegou-se à frente e pegou na arma. Apontou e disparou uma
vez. Atingiu o piloto no peito. Ele cambaleou, mas não caiu.
– Outra vez.
O segundo tiro derrubou o piloto. Ele contorceu-se e depois ficou imóvel.
Welland fungou.
– Isso foi brutal.
– Sim. – Carter acenou com a cabeça. – É uma maneira de o descrever.
Ele pegou na sua própria arma e enfiou-a no cinto. Eles olharam em
redor. Uma dúzia de corpos espalhados pela neve, tingindo-a de vermelho.
O cheiro a sangue, pólvora e metal quente entupiu as narinas de Carter.
Uma espessa mancha de fumo negro emanava do helicóptero destruído, e o
óleo do motor em chamas derretera a neve de metade da encosta da
montanha, devolvendo-lhe a cor verde. O ar tremeluzia com o calor. Depois
do zumbido das pás do helicóptero e do rugido dos tiros, o silêncio era
ensurdecedor.
– O que fazemos agora, meu? – perguntou Welland.
– OK. – Carter respirou fundo, a tentar pensar. – Primeiro, precisamos de
nos livrar destes corpos. Eles vão atrair predadores. O incinerador vai fazer
horas extra.
– Sim. – Welland coçou desajeitadamente a cabeça. – A propósito.
– A propósito de quê? – Carter passou-se.
– O incinerador não está a funcionar.
– O quê?
– É um monte de sucata. O Dreyfuss sempre o disse.
Carter tentou manter a sua voz firme.
– E quando é que deixou de funcionar?
Welland parecia pensativo.
– Bem, é mais como se nunca tivesse realmente começado… não está a
funcionar bem. Quero dizer, soltava um pouco de fumo, mas queimar
corpos, não.
– O quê? – A raiva bloqueou a garganta de Carter. – Então que diabo
fizeste com os corpos?
– Larguei-os. No bosque, nas traseiras do incinerador. Nenhum de vocês
lá ia, nem mesmo o Miles. Ele não gostava de sujar as mãos. Pensei que os
animais os comeriam ou acabariam por apodrecer, certo?
Por um momento, Carter perguntou-se se teria ouvido mal.
– Tens despejado corpos infetados na floresta desde a tomada de posse?
– Sim. Basicamente.
E isso explicava as correias de identificação. Os Whistlers devem tê-los
encontrado. Era isso que eles lhe estavam a tentar dizer? Que os corpos
estavam lá fora? Um risco para todos eles. Estariam eles a tentar… ajudá-
los?
– E as seis vias de infeção? – perguntou ele a Welland.
Welland rolou os olhos.
– Qual é a pior coisa que pode acontecer? Algum lobo ou urso come os
corpos e depois algum caçador mata-o e come a carne. Ele morre. Grande
coisa.
– Ou vende-a ao Quinn – disse Carter. – Nós compramos carne ao Quinn,
Welland.
Ele encolheu os ombros.
– Eu sei. É por isso que eu sou vegetariano, meu. – Ele fez uma careta. –
Embora a soja me faça mesmo gases.
Carter ficou a olhar para ele. Ele podia sentir a fúria a ferver lá dentro.
– O que foi? – perguntou Welland.
Carter abanou a cabeça.
– Acho que só me está a cair a ficha por sermos só nós os dois agora.
Presos aqui. Juntos. Pelo tempo que for.
– Sim.
Uma pausa. Olharam um para o outro e ambos pegaram nas suas armas
ao mesmo tempo.
Welland foi mais rápido. Ele apontou o cano à cara de Carter.
– Parece que este lugar não é suficientemente grande para nós os dois.
– Parece que não.
– Só quero que saibas, antes de te matar, que és feio como o caraças, meu.
– Obrigado.
Welland apertou o gatilho. Carter fechou os olhos.
Não aconteceu nada. Ele voltou a abri-los.
Welland premiu o gatilho uma e outra vez. Nada além de cliques vazios.
– Mas que…
Carter sorriu.
– Acho que deste pelo menos quatro tiros nas costas do Miles. Acabaste
de desperdiçar os dois últimos no tipo queimado.
O lábio de Welland abanava, a realidade a tomar conta dele.
– Não. Por favor. Não me mates, meu. Nós podemos trabalhar juntos. Eu
posso ser útil.
Carter refletiu.
– Suponho que sim. Mas a cena é esta – ele apontou a arma a Welland –,
eu odeio-te mesmo, porra.
Ele deu-lhe um tiro na cara. O cérebro de Welland saiu disparado da parte
de trás do seu crânio. Ele aterrou no chão com uma forte pancada.
Carter soltou um longo fôlego. Há três anos que queria fazer isto. Agora,
depois de tudo o que aconteceu, rodeado por todas aquelas mortes e
confusão… ainda se sentia muito bem.
Ele olhou para trás, para a carnificina. Que confusão do caralho. Sem o
incinerador, ele não conseguiria livrar-se de todos os corpos. E deixar
cadáveres por aí era apenas um convite aos problemas. Lobos, ursos,
Whistlers. Carter provavelmente podia montar o gerador sozinho,
restabelecer a energia, talvez até pôr a vedação elétrica a funcionar. Mas,
com a janela aberta, o Retiro estava vulnerável. Quanto tempo levaria até
chegarem mais helicópteros do Departamento ou mais camaradas de
Quinn?
Não. Ele não podia ficar aqui. Mas para onde poderia ir?
E depois lembrou-se. Para a estação do teleférico.
Tinha abrigo, instalações. Se ele levasse o gerador e a bateria de volta com
ele, teria energia. Carter poderia certamente acampar por lá por uns tempos.
Outra coisa lhe ocorreu. As motos de neve dos Quinns. Ele tinha transporte.
Isso tornaria muito mais fácil chegar lá. Talvez ele conseguisse ir ainda mais
longe. Carter tinha ouvido rumores de que havia algumas colónias remotas
que se tinham mantido livres da infeção. Era uma possibilidade. Havia
sempre possibilidades. Só era preciso procurá-las. A sorte e a crueldade
tinham-no levado tão longe. Talvez isso o pudesse levar ainda mais longe.
Talvez pudesse até voltar para Eva.
– Acho que foi bom enquanto durou, não foi? – Carter olhou para
Welland. – Mas novos começos e assim. Só eu, eu mesmo e eu novamente.
Ele riu-se. E depois ouviu um barulho. Um latido. Carter virou-se no
momento em que um monte de pelo castanho e branco saiu do Retiro.
– Dexter! – Carter sorriu. – Pensei que tinhas fugido. Tens estado
escondido lá dentro? Não te censuro. Vem cá.
O cachorrinho saltou para os seus braços, dando-lhe lambidelas molhadas
e fedorentas no rosto. Carter riu-se e fez uma careta ao mesmo tempo.
– Meu, o teu bafo não está a melhorar, mas, neste momento, és a melhor
coisa que já cheirei.
Dexter agitou a cauda furiosamente, o corpo a abanar-se de um lado para
o outro.
– Está bem, está bem. Acalma-te, amigo. – Carter colocou-o no chão. – Vá
lá. Vamos buscar as nossas coisas.
Dexter ganiu e trotou a uma curta distância, olhando para Carter com
expectativa. Carter ergueu as sobrancelhas.
– A sério? Precisas de ir dar um passeio agora mesmo?
Dexter correu em direção à vedação e voltou. Outro ganido.
Carter abanou a cabeça.
– Certo, tudo bem. Vamos dar um passeio.
Dexter ladrou e fugiu pela lateral do Retiro. Carter avançou cansado pela
neve, atrás dele. O ar ainda estava repleto do cheiro de munições, calor e
morte. E mesmo assim, acima, ele podia ver manchas de azul entre as
nuvens. O ar parecia um pouco mais quente. Até parecia que a neve podia
estar a amolecer debaixo das botas dele. Após a tempestade, o degelo, pensou.
Ele dobrou a esquina do edifício e procurou Dexter. Percebeu que não o
conseguia ver.
Ele gritou:
– Dexter?
Nada. Ele olhou para baixo. As pegadas das patas de Dexter iam até à
vedação, onde de repente paravam. Estranho. Carter agachou-se. Agora
mais perto, ele viu-o. Havia um buraco na vedação. Pequeno, mas grande o
suficiente para Dexter passar. Raios. Dexter tinha-se esgueirado lá para fora.
– Dexter? – Carter voltou a chamar, e ouviu um ladrar distante vindo da
zona das árvores. Ele revirou os olhos.
– Sim, eu vou ter contigo, certo?
Ele levantou-se, saiu pelo portão de trás e foi para o bosque. Parecia estar
mais escuro ali. Ele foi andando ao longo do caminho, respirando com
dificuldade. À medida que os troncos dos pinheiros davam lugar a uma
clareira, Carter conseguiu ver o sinistro retângulo cinzento do incinerador à
sua frente.
Nunca tinha estado tão próximo dele. Welland estava certo. Nenhum
deles alguma vez aqui veio. Porque viriam? Havia muito espaço dentro do
Retiro. Quem diabo quereria passear pelo lugar onde se queimavam os
corpos?
Só que Welland não tinha queimado os corpos.
Carter parou. Ele tinha um mau pressentimento. Ou talvez fosse só
porque ele podia cheirar algo mau. Doce e ligeiramente rançoso. Carne em
decomposição. Ele ouviu barulho e saltou. Um clarão de branco, e Dexter
saiu da vegetação rasteira.
Carter soltou um riso tremido, que se transformou em tosse.
Provavelmente a merda do pinheiro. A entrar-lhe na garganta.
– Assim é que é, Dexter – resmungou ele. – Faz-me ter a merda de um
ataque cardíaco.
Dexter ladrou e deixou cair algo no chão.
– O que tens aí, rapaz?
Carter deu um passo à frente. Dexter imediatamente arrebatou de novo a
sua excitante descoberta – provavelmente um pau ou um animal morto.
Carter franziu o sobrolho.
– Não, meu. Não vou atrás de ti por isso. Larga.
Dexter arreganhou os dentes.
– Ei – ordenou Carter com mais firmeza. – Larga. Já.
Dexter olhou-o com os olhos amuados e depois, com um resfolegar,
deixou cair o seu prémio.
Carter dobrou-se… e imediatamente recuou.
– Jeesus!
Uma mão humana. Sobretudo esqueleto, com alguns pedaços de carne e
músculos agarrados.
Antes de Carter conseguir apanhá-la, Dexter agarrou a mão e fugiu, de
volta pelo meio do mato. Raios. Carter seguiu-o, a esquivar-se por entre as
árvores, a passar por entre silvas e arbustos afiados e espinhosos. Estava a
suar dentro do casaco grosso e a lutar para recuperar o fôlego. Talvez
devesse ter ido mais ao ginásio, como a Caren com C. Devia ter feito muitas
coisas. Devia, podia. Não adianta merda nenhuma. Nunca ninguém te disse,
Carter? O diabo já foi um anjo outrora.
Ele passou através de um denso tufo de vegetação rasteira. O incinerador
estava à sua frente. Uma grande caixa de metal cinzento, com um tubo de
chaminé alto a sair do topo. Dexter passou pela lateral e desapareceu pelas
traseiras. Carter fez uma pausa e depois foi atrás dele, com relutância.
Atrás do incinerador, havia um buraco no chão. O cheiro a ranço era pior
aqui atrás. Muito, muito pior. Dexter olhou para Carter, ofegando
alegremente, e depois mergulhou no buraco.
Carter puxou o casaco por cima do nariz e da boca, com o estômago a
revirar-se. Com pernas pesadas, caminhou até à beira do buraco e espreitou.
Tinham sido colocados ramos sobre a cova rasa para tentar disfarçá-la.
Mas Carter ainda conseguia perceber a confusão de cadáveres em
decomposição. Alguns, como Nate e Julia, estavam quase reconhecíveis.
Outros nada mais eram do que esqueletos, ossos amarelados e crânios,
envoltos em farrapos desfiados.
Era aqui que Welland os tinha largado.
– Na floresta, atrás do incinerador.
Em que diabo estava ele a pensar? Seis malditas vias. Cristo, até Carter
sabia os riscos que os corpos infetados representavam, e Welland deve ter
largado aqui, o quê? Uma dúzia ou mais. Durante quanto tempo
permaneciam infecciosos? Quanto tempo poderia o vírus viver num poço
de peste como este?
Enquanto Carter olhava para os corpos, o braço de Julia mexeu. Carter
saltou para trás, a conter um grito. Dexter emergiu debaixo da axila dela,
arrastando um pé. Depois deitou-se e começou a roer alegremente os dedos
dos pés que apodreciam.
Carter estava enjoado.
– Cristo, Dexter. Não admira que o teu hálito cheire mal… – Ele
interrompeu a frase.
Apercebeu-se, como um golpe de um martelo.
Ele levou a mão à cara. Lembrou-se de todas as vezes em que a língua
áspera e malcheirosa de Dexter a tinha lambido toda, enchendo-a de saliva.
Ele olhou para trás, para o poço de corpos. Corpos infetados. Ele pensou
na sua tosse, na falta de ar, no suor.
– Foda-se.
As pernas de Carter cederam e ele sentou-se abruptamente no chão frio.
Depois de um momento, começou a rir. Ele riu até lhe doer o estômago e
mal conseguir respirar. Ele limpou a testa suada. Porra, estava quente. Ah.
Claro que estava. O que viria a seguir – delírios ou olhos raiados de sangue?
Ele olhou para Dexter, que estava a comer os fedorentos dedos dos pés.
– Tenho de te dizer, amigo: lambido até à morte por um rafeiro com um
fetiche por pés não era o que eu tinha em mente para o meu epitáfio.
Dexter olhou para cima, a língua cor-de-rosa de fora, e abanou a cauda.
– Tens razão – concordou Carter. – Podia ser muito pior.
Ele levantou-se.
– Vá lá, amigo. Vamos para casa.
Quatro dias depois

Carter parou à beira do precipício.


O vento soprava no topo da montanha. O suor revestia-lhe o corpo. A
tosse estava pior, era seca, persistente e rasgava-lhe as delicadas membranas
da garganta. A sua mente estava febril, como o seu corpo. Ocasionalmente,
ele sentia-se consumido pela raiva.
Esta manhã ele tinha baleado Dexter. Não podia deixá-lo sozinho.
Estava na hora.
Carter tinha considerado outras opções, mas parecia apropriado voltar
aqui. Pela última vez. Para se juntar aos outros.
Ele olhou para a carapaça enferrujada do teleférico. Ele pensou no
autocarro acidentado. As pessoas que tinham lutado para sobreviver. Agora,
todos estavam mortos.
Teria valido a pena?
Talvez. Talvez não. Podia-se indagar o mesmo da vida de qualquer um. O
que é que eu consegui? O que fiz eu neste pequeno espaço esculpido no
tempo? Será que deixei uma marca permanente, boa ou má? Ou será que
simplesmente deixei uma pegada na neve, rapidamente apagada pela
próxima tempestade?
Em última análise, só temos um dia após outro. Uns são bons, outros
maus. Há momentos de prazer inesperado e momentos de dor insuportável.
Para cada ação há um oposto. Para cada pedaço de boa sorte, um aleatório
pedaço de azar. Não há bela sem senão. O diabo já foi um anjo outrora.
Carter virou-se de costas para o precipício. Um grupo de figuras pairava a
uma curta distância. Fantasmas? Whistlers? Carter já não tinha a certeza. O
passado e o presente pareciam estar a fundir-se. Os vivos e os mortos
estavam a tornar-se um só. Peggy estava lá, e ele reconheceu outros. Meg,
Hannah, Lucas, Miles.
Uma figura alta num manto de peles de animais com capuz deu um passo
à frente. A mesma figura que tinha deixado cair as correias de identificação
perto da vedação do Retiro. Ele puxou o capuz para trás. Olhos raiados de
sangue, rosto fino e branco como um crânio. Mas Carter ainda o
reconheceu.
Grant. Ele estendeu uma garra esquelética. A atraí-lo como a Morte. Vem
connosco.
Carter sorriu. Então ele levantou a mão, levantou o dedo do meio… e
recuou.
Um momento antes de começar a cair, percebeu que a encosta da
montanha estava vazia.
O ar frio passou por ele. Memórias, rostos, vidas passadas. Parecia durar
uma eternidade e um milissegundo. O tempo tinha-se tornado irrelevante.
A gravidade tinha-se tornado irrelevante.
Quando Carter finalmente bateu no chão, não sentiu os ossos a partir ou
os órgãos a pulverizar. O cérebro dele já estava a desligar-se, apagando as
luzes.
Carter deixou o mundo dos vivos. Obrigado e adeus.
Ele estava deitado no manto branco, com as pernas e os braços abertos,
um anjo de neve perfeito. As suas retinas débeis olhavam fixamente para o
céu azul brilhante. A tempestade tinha passado.
Quando o primeiro corvo aterrou e enfiou o bico no seu olho, ele não
pestanejou.
Mais tarde, nessa mesma noite, viriam predadores maiores. Pela manhã,
nada mais restaria a não ser uma carcaça esfarrapada.
Uma semana depois, um caçador dispararia sobre um lobo. Um animal de
aspeto doente, mas a carne de lobo era tão boa como qualquer outra para
alimentar a sua família.
Pouco depois, o caçador ficaria doente e morreria. Depois, a família dele.
Depois, os amigos da família dele.
E os corvos viriam do céu.
A 5000 km de distância

– Então, sabes porque estás aqui?


Ela acenou com a cabeça.
– É aqui que mantêm os miúdos cujos pais estão mortos ou foram
enviados para as quintas.
– Nós não gostamos de lhes chamar isso.
Ela encolheu os ombros, com os dedos em torno do medalhão prateado à
volta do pescoço.
– Como queiram.
O homem olhou para ela, não amigavelmente.
– Mais especificamente, sabes porque estás aqui a falar comigo?
– Acho que se passava alguma coisa com os meus testes.
– De facto. – Ele olhou para um pequeno tablet na sua secretária. – Diz-
me outra vez, por quanto tempo cuidaste dos teus pais depois de ficarem
infetados?
– Uma semana ou assim.
– Não estás vacinada?
O rosto dela ficou tenso.
– Têm os meus detalhes. Sabem que os meus pais eram antivacinas.
Ele passou o dedo no ecrã.
– A tua resposta imunitária é extraordinária. – Ele olhou para ela. –
Gostaríamos de mantê-la aqui para fazer mais alguns testes.
– Querem que eu seja um rato de laboratório?
– Terias o teu próprio quarto, entretenimento, alimentação variada.
Privilégios não oferecidos a outros jovens aqui.
– Não me parece.
Um pequeno sorriso.
– Pareces achar que tens escolha.
– E tenho.
– A sério?
Ela segurou o medalhão. Os miúdos aqui eram autorizados a trazer um
item pessoal para dentro de casa.
– Isto era da minha mãe. Bem, ela era a minha mãe adotiva. É tudo o que
me resta dela.
– É bom que mantenhas uma foto…
– Não é uma fotografia. – Ela clicou no medalhão para o abrir e retirou
um pequeno frasco de líquido vermelho. – É o sangue dela. – A expressão
do homem empalideceu. – O sangue infetado.
Ela fez um gesto como se o tivesse atirado a ele.
Ele encolheu-se no seu lugar.
Ela riu-se.
– Está preocupado porque a vossa preciosa vacina pode não vos proteger?
A sua maçã de Adão tremeu nervosamente.
– Pousa isso.
– Não. Primeiro, tira a roupa e coloca-a cuidadosamente em cima da
mesa.
Ela acenou-lhe com o frasco outra vez. Ele começou a desabotoar
a camisa.
– O que tencionas fazer? – perguntou ele.
– Amarrar-te com o cinto, vestir esse lindo camuflado, levar as tuas
chaves do carro e o passe de segurança e sair daqui.
Um escárnio.
– Boa sorte com isso.
– Caramba, obrigada. Agora tira a roupa.

O segurança mal olhou para o carro enquanto ela passava os portões.


Sorte que o pai dela a tinha ensinado a conduzir na carrinha antiga dele.
Mas era pouco provável que a sorte dela durasse muito. A sorte nunca
durava. Em breve soariam alarmes. Haveria pessoas do Departamento à
procura dela.
Ela acelerou. Não teria muito tempo. Ela precisava de voltar à sua antiga
casa primeiro. O plasma e os medicamentos ainda estavam lá escondidos. A
mãe dela nunca explicara quem enviava os pacotes ou porque os guardava,
mas ela estava grata. Eles seriam úteis como moeda de troca.
O plano era abandonar o carro e levar a velha bicicleta de montanha do
pai. Assim, poderia andar fora da estrada. Ainda não tinha a certeza para
onde iria. Talvez acampasse na floresta ou encontrasse uma propriedade
abandonada para dormir. Ela conseguiria sobreviver. Ela sempre o fez.
Os pais dela nem sempre tinham sido gentis, mas tinham-na ensinado a
ser dura.
Ou talvez ela tenha herdado isso da mãe verdadeira.
Eva sorriu, olhos azuis a brilhar. Ela era uma sobrevivente.
Agradecimentos

Eu tive a ideia para Bem-Vindos ao Retiro no outono de 2019. Eu


apresentei-a à minha agente como «um thriller de terror pós-apocalíptico
passado em três momentos». Naquela época, ninguém tinha ouvido falar de
COVID, e a ideia de uma epidemia global ainda estava muito no reino da
fantasia.
Avançando até à primavera de 2021, quando eu realmente me sentei para
escrever Bem-Vindos ao Retiro, o mundo tinha mudado. Muitos aspetos da
minha ideia tinham-se tornado uma realidade aterradora, e perguntava-me
se alguém iria querer ler um livro sobre um vírus, por mais fictício e distante
que fosse.
Eu não teria censurado os meus editores se pensassem o mesmo.
É por isso que eu gostaria de agradecer à Penguin Michael Joseph,
à Ballantine, à minha maravilhosa agente, Maddy, e aos meus editores-
chefes, Max e Anne, pelo seu apoio inabalável a Bem-Vindos ao Retiro. Eles
poderiam ter tentado fazer com que eu mudasse de rumo ou esperasse, mas
não o fizeram, pelo que estou eternamente grata. Parabéns à Anne, cuja
reação inicial ao ler o primeiro rascunho foi: «Uau. Santo Deus!»
Foi quando eu soube que estava tudo bem.
No fim, descobri que precisava mesmo de escrever esta história. Deu-me a
oportunidade de me soltar criativamente de uma forma que nunca havia
feito antes, bem como de descarregar algumas coisas reprimidas. Há muita
coisa a acontecer no livro, mas no fundo é sobre a perda e como nos
agarramos à esperança e à humanidade perante eventos terríveis.
(Pronto, a parte séria já terminou.)
Agradeço, como sempre, ao meu eterno apoiante marido, suporte técnico
e primeiro leitor, Neil. Também à minha incrível filha, Betty, por ser feroz,
divertida e, acima de tudo, gentil. Não há outras duas pessoas com quem eu
preferisse ficar presa num teleférico.
Na prática, gostaria de agradecer a Claire Hall, da JG Coaches, em
Heathfield, por ter permitido que eu lá fosse e andasse a bisbilhotar os seus
veículos. Um agradecimento especial a Nathan Petty, que me fez uma visita
guiada pelos autocarros e discutiu comigo detalhadamente a viabilidade de
alguns aspetos do meu enredo. Alguns autores visitam locais exóticos para a
sua pesquisa. Eu visito as casas de banho dos autocarros.
Além disso, muito obrigada aos meus revisores e editor, que tiveram a
tarefa nada invejável de aperfeiçoar este livro, a detetar erros e incoerências.
Além disso, obrigada ao marketing, ao design e a todas as pessoas que
basicamente me deram bom aspeto!
A todos da Madeleine Milburn Agency… vocês são geniais. Obrigada,
Liane e Valentina, por negociarem todos os direitos para o estrangeiro e
organizarem viagens internacionais com as minhas editoras. Obrigada
também, Hannah, pelo teu trabalho fantástico no material para a TV.
Obrigada aos meus amigos autores pelas gargalhadas e por me ouvirem
desabafar. Toda a gente precisa de um lugar seguro onde possa dizer
parvoíces.
Mais uma vez, muito obrigada a vocês, queridos leitores, e desculpem ter
havido um intervalo tão longo entre os romances. Espero que tenha valido a
pena.
Nunca fui aquela pessoa que gosta de fazer a mesma coisa repetidamente.
Daí ter tido tantos trabalhos na minha vida. É o mesmo com a escrita. Este
livro não se compara aos romances anteriores, e o próximo também será
completamente diferente. Porque essa é a alegria de escrever. Pode levar-nos
a qualquer lado. Passado, presente, futuro. Podemos criar mundos inteiros
na nossa mente e brincar com eles. É um pouco como ser um deus, só que
com menos castigos e mais chá e bolachas.
E, por falar nisso, vou buscar uma chávena.
Isto foi espetacular. Vemo-nos em 2024.
Estou a pensar no Alasca…
Sobre a autora

C. J. Tudor é autora de A Sliver of Darkness, Raparigas em Chamas, Os


Outros, The Hiding Place e O Homem de Giz, que ganhou o Prémio
Internacional de Escritores de Thriller para Melhor Primeiro Romance e o
Prémio da Crítica Strand para Melhor Romance de Estreia. Ao longo dos
anos, tem trabalhado como copywriter, apresentadora de televisão, locutora
e passeadora de cães. Está maravilhada por poder agora escrever a tempo
inteiro e não sente assim tanta falta de perseguir cães molhados por campos
lamacentos. Vive em Inglaterra com o seu companheiro e a sua filha.

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Twitter: @cjtudor
Instagram: @cjtudorauthor
Planeta de Livros Portugal
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Reservados todos os direitos


de acordo com a legislação em vigor

© 2023, Betty & Betty Ltd


© 2022, Planeta de Livros Portugal

Título original: The Drift

Imagem da capa: © Yolande de Kort/Trevillion Images

Edição em epub: Novembro de 2023

Conversão para epub: Segundo Capítulo

ISBN: 978-989-777-813-1 (epub)

www.planetadelivros.pt
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