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O morto era o sargento Paul Parker e ela tinha trabalhado com ele no
Departamento de Homicídios. Mais tarde, ambos foram transferidos para o
Controlo de Infeções e Instabilidade Pública. Ou como todos no
departamento lhe chamavam: «Matar e Queimar.»
«Tens de te lembrar, Hill, eles não são como nós. Estamos a fazer-lhes um
favor.»
Um favor. Pois. Meg lembrava-se. Às vezes ela desejava poder queimar
essas memórias. Arrancá-las da cabeça como uma lobotomia. Esquecer
também pode ser um favor.
Claro que agora nada disso interessava porque o nome na correia enfiada
sob o fato de neve do homem dizia: Mark Wilson – Segurança.
– Quem é ele? – perguntou Sarah. – Ele está bem?
– O nome dele é Mark Wilson. – Meg repetiu a mentira. – E ele está
morto.
Sarah colocou a mão sobre a boca.
– Oh, meu Deus.
– Como? – perguntou Sean.
Boa pergunta. Ela tocou-lhe no pescoço. Não à procura de pulso. Meg
sabia quando um morto estava morto. Foi mais para ter uma ideia da
temperatura do corpo. Estava frio, mas não ainda gelado e ceroso. Ela
pegou-lhe no braço e levantou-o. Ainda solto e flexível. Então o rigor mortis
não se tinha instalado, o que significava que ele tinha morrido
recentemente, o mais provável nas últimas duas horas.
– Pode ser uma reação às drogas que nos foram dadas? – perguntou Max.
Foi uma boa sugestão. Sensata, até. Meg ajoelhou-se ao lado do corpo.
Agora é só um corpo. Nem Paul, nem Mark, nem o que quer que ele se
tivesse chamado. Ela examinou-lhe a cara, a boca. Uma boca que ela tinha
beijado. Por luxúria, solidão, conveniência, desespero. Nunca amor. Nem
mesmo no início. Há relações que começam com menos. Mas precisavam de
mais para se manter.
Agora, ela abriu-lhe os lábios e espreitou, procurando vestígios de vómito,
uma indicação de overdose. Não havia vómito, mas conseguia ver sangue em
redor dos dentes. Também conseguia cheirá-lo. Ela franziu o sobrolho.
Depois levou a mão ao fato de neve dele e abriu-lhe o fecho. Por baixo, ele
vestia uma camisola térmica branca. Ou o que costumava ser uma T-shirt
branca. Agora, a frente estava manchada de castanho.
– Grande merda! – exclamou Karl. – Isso é sangue?
– Sim.
Meg cerrou os dentes e puxou a T-shirt, sentindo uma leve repugnância
perante a rigidez do tecido empapado em sangue e a sensação de o separar
da carne. A ferida estava logo abaixo do osso do peito. Entre a segunda e a
terceira costelas. Um golpe no fígado dele, pensou ela. Preciso, fatal.
– Ele foi esfaqueado – disse ela sem rodeios, e voltou para o grupo.
Eles permaneceram ao redor dela, parecendo assustados e confusos. O
seu infortúnio, o balançar do teleférico encalhado, momentaneamente
esquecidos perante o morto. Meg perguntou-se se algum deles já teria visto
um cadáver de perto antes.
Mesmo com tudo o que tinha acontecido nos últimos dez anos, algumas
pessoas não tiveram contacto com o verdadeiro terror. Viram corpos na
televisão, é claro. Ou pelo menos viram o que a comunicação social queria
que eles vissem. Mas muitas áreas rurais tinham sido poupadas ao pior.
Assim como aqueles ricos o suficiente para viver dentro de um dos
condomínios privados que surgiram fora dos grandes aglomerados urbanos.
Se não vivessem nas cidades, poderiam nunca ter encarado de perto a
carnificina.
– Porque é que alguém faria isso? – perguntou Sarah, com uma voz
hesitante, agarrada ao crucifixo dela.
Meg encolheu os ombros. A quase histeria constante da mulher fê-la
querer ser implacável com ela.
– Quem sabe? Mas sabiam qual era o melhor sítio para o esfaquear
e tornar o ferimento fatal, a não ser que tenham tido sorte.
– Pareces saber muito sobre ferimentos de faca – disse Sean.
– Eu era polícia – admitiu ela.
– Eras? – indagou Karl.
– Sim.
Ela olhou para eles, desafiando-os a perguntar-lhe mais. Ninguém
perguntou. Todos tinham um passado, hoje em dia. E ninguém queria falar
dele.
– Consegues dizer há quanto tempo está morto? – perguntou Max. –
Presumo que ele deve ter sido esfaqueado antes de embarcarmos.
– E eles puseram aqui um cadáver? – disse Karl.
– Talvez ninguém se tenha apercebido – disse Sean. – Todos pensávamos
que ele estava a dormir, certo?
Meg olhou para trás para o corpo. Era possível que ninguém tivesse
reparado, mas parecia improvável. Talvez eles simplesmente não se
importassem.
– Possivelmente – disse ela. – Ele não está morto há muito tempo. Não
mais do que algumas horas, diria eu.
– Que outra explicação haverá? – perguntou Sarah.
– Um de nós apunhalou-o – disse Karl, olhando para Meg. – É isso que
estás a pensar, não é?
– Mas estávamos todos inconscientes – disse Sarah.
– Supostamente – disse Max.
Sarah levantou as mãos.
– Isto é ridículo. Ninguém o esfaqueou. Nenhum de nós sequer
o conhece.
Meg ficou em silêncio. Sarah cruzou os braços como se dissesse: «Faz
sentido, certo?»
Max coçou o queixo.
– Claro, a suposição de que ele foi morto antes do embarque não exclui a
possibilidade de um de nós ser o responsável.
Sarah ficou a olhar para ele.
– O quê?
– Ele quer dizer que – disse Sean –, só porque um de nós não o
apunhalou a bordo, isso não significa que não o matámos antes de
entrarmos.
– Oh, pelo amor de Deus!
Max olhou para Meg.
– Seja como for, de uma maneira ou de outra, vamos ficar presos aqui uns
com os outros durante algum tempo, por isso gostaria de ter a certeza de que
ninguém está na posse de uma arma.
– Todos nós tivemos os nossos pertences confiscados – disse Sean. – Quer
dizer… – Ele olhou para o seu fato de neve e para as botas. – Estas roupas
nem sequer são minhas.
Meg refletiu. Depois começou a abrir o fecho do fato de neve. Por baixo,
tinha vestida uma T-shirt térmica branca e calções. Tal como Paul. Não eram
dela. Ela tinha sido vestida de novo enquanto estava inconsciente. Tirou as
botas e despiu o fato de neve, tremendo imediatamente de frio.
– O que estás a fazer? – perguntou Sean.
– A provar que não tenho nada a esconder.
Ela atirou o fato a Sarah.
– Verifica os bolsos.
Sarah parecia estar prestes a discutir, mas não voltou a abrir a boca. Deu
palmadinhas no fato de neve.
– Nada.
– Ótimo.
Ela devolveu o fato a Meg, que o vestiu de bom grado.
– OK. Quem é o próximo? – perguntou Meg.
Max já estava a despir o seu fato. Seguiu-se Sean. Sarah revirou os olhos,
mas alcançou o seu fecho. Trocaram os fatos de neve, batendo nos bolsos e
sacudindo-os.
Karl foi o último. Olhou em volta como se alguém lhe pudesse conceder
uma suspensão de pena de última hora. Depois abanou a cabeça e alcançou
com relutância o seu fecho. Enquanto ele despia o seu fato de neve, Sarah
soltou um arquejo audível.
Os braços e as pernas de Karl estavam cobertos de feias tatuagens pretas.
Pela crueza da arte, Meg supunha que foram feitas na prisão: suásticas,
caveiras, o número 1 4 8 8, o círculo e o punho arianos, as palavras «Sangue
e Onra». Não havia um centímetro de pele imaculada abaixo do pescoço.
Todos eles sabiam o que aquelas tatuagens significavam. Símbolos de
supremacia branca cheios de ódio.
Karl olhou com ar desafiador para Meg, mas ela podia ver a vergonha nos
seus olhos. Sentiu os outros a observá-la. Claro que sim. Ela era uma mulher
negra. As tatuagens deviam chateá-la mais. Um fardo para ela, não para eles.
Ela sorriu para Karl.
– Sabes que escreveram mal «honra».
Ele curvou a cabeça.
– Sim, eu sei.
Ela anuiu.
– Dá-me o teu fato.
Karl despiu o fato e estendeu-lho. Meg pegou nele.
Alguma coisa bateu no chão do teleférico com um ruído.
Uma faca pequena, manchada de sangue.
Carter
No porão da bagagem.
Não era suposto deixares os corpos abandonados. Era uma das regras.
Havia risco, por menor que fosse, de uma infeção através da sexta via de
transmissão.
O vírus era sobretudo transmitido pelo ar. O problema era que existiam
muitas variantes. Sangue, fezes, fluidos corporais, pele, medula óssea. Todos
canais para a infeção. Até a carne cozinhada tinha vestígios da
particularmente desagradável variante Choler.
Carter olhou para o corpo de Jackson. Ele não tinha condições para
arrastar um Jackson vivo de volta para o Retiro e de certeza não iria arrastar
um morto. Não com a noite a cair mais rápido que as calças de um
adolescente num encontro com a namorada, e a neve a tornar-se mais
frequente a cada segundo. E não com o uivo do vento a disfarçar qualquer
outro som.
Claro, a tempestade ajudaria. Jackson ficaria enterrado em minutos.
Ninguém saberia e quando o corpo dele fosse encontrado – se fosse
encontrado – estaria tão decomposto que não haveria maneira de saber
como ele tinha morrido.
Carter ter-se-ia permitido um pequeno sorriso se o seu rosto já não se
encontrasse congelado num esgar ricto. Ele baixou a cabeça e começou a
subir a encosta.
O primeiro sinal de que algo não estava bem, ainda não era mau – isso
viria depois –, mas definitivamente algo não estava bem, foi quando Carter
finalmente chegou ao topo da pista de esqui. À sua frente, podia ver a
vedação de segurança elétrica que delimitava o Retiro. Lá fora, à sua direita,
abrigado entre os pinheiros, estava o incinerador. Camuflado do campo de
visão, por razões óbvias.
Mas foi o Retiro que chamou a sua atenção e fez com que o fôlego se
prendesse na sua garganta. A grande janela da sala estava escura. Carter
franziu o sobrolho. Ele podia ver outras luzes acesas, pontilhando ao redor
do edifício. Mas não havia luzes na sala principal.
Isso era estranho. A maioria das vezes, as luzes estavam sempre acesas. Ao
contrário da maioria das aglomerações urbanas, eles não precisavam de
racionar a energia. A eletricidade era fornecida por uma combinação de
duas enormes turbinas eólicas colocadas mais acima na montanha e painéis
solares. Uma bateria armazenava a energia e fornecia o Retiro a um ritmo
constante sempre que necessário.
Pelo menos, era suposto ser assim.
Nas últimas semanas, Welland tinha reparado num problema. A bateria
estava a perder energia. Isto significava que o fornecimento era
inconsistente, causando picos e cortes de energia. O gerador de reserva
podia compensar, mas eles só tinham uma quantidade limitada de
propano… além disso, havia aquele atraso entre o corte de energia e o
arranque do gerador.
Welland parecia não saber como resolver o problema. Geradores
e aquecimento não eram a especialidade de Miles. Era a ciência e a
medicina. Como Welland gostava de dizer: «Os médicos podem fazer
neurocirurgias, mas ainda precisam de alguém para manter as luzes acesas
enquanto o fazem.» Carter tinha de lhe dar razão.
Ele avançou lentamente em direção ao Retiro. Aquela extensão escura de
vidro deu-lhe um mau pressentimento. Felizmente, ao aproximar-se do
portão, ainda conseguia ouvir o zumbido baixo da vedação elétrica. Ele tirou
uma luva para inserir o seu código, colocando-a de novo apressadamente
enquanto os dedos formigavam com o frio. O portão abriu-se e ele
empurrou-o, arrastando as compras atrás de si. Os pelos na parte de trás do
pescoço dele arrepiaram-se, como sempre. Atravessar a fronteira, do perigo
à segurança. Baixar as defesas. Um último momento de vulnerabilidade
antes de o portão se fechar e ele estar seguro.
Claro, as vedações e o portão eram apenas uma ilusão. Na realidade,
Carter sabia que corria tanto perigo lá dentro como cá fora. Apenas os
inimigos eram diferentes. Enquanto ele fosse útil a Miles, estaria a salvo.
Mas Welland adoraria uma desculpa para o atirar para debaixo de um
autocarro (ou pela montanha mais próxima abaixo). O sentimento era
mútuo. Caren tolerava-o e, apesar de Carter gostar de Julia e considerar Nate
um amigo, o facto era que todos eles aqui eram sobreviventes.
E a sobrevivência era um negócio solitário.
Carter aproximou-se da porta da frente, inseriu um segundo código e
entrou, arrastando as compras para o enorme átrio da entrada. A porta
fechou-se com força atrás dele. Ele tirou as luvas e olhou à sua volta,
ouvindo.
Parecia tudo sossegado. Demasiado sossegado? O alarme não soava, o que
era bom, achava ele. Olhou para as escadas escuras em espiral que levavam à
sala principal. Se ninguém estivesse lá em cima, ele não esperaria ouvir
nenhum barulho. Mas, mesmo assim, aquele silêncio.
E Dexter?
Apesar de não ser o cão de guarda mais alerta do mundo – costumava
continuar a dormir mesmo com alarmes a tocar –, geralmente notava
a ausência de Carter e descia para cumprimentá-lo quando regressava.
Ao invés disso, silêncio.
Carter levou os mantimentos para o armazém, libertou o saco dos esquis
e empurrou-o para dentro. Arrumá-lo-ia mais tarde. Depois prendeu os
esquis na prateleira, tirou as luvas e as botas e despiu o fato de neve. Por
baixo, vestia uma camisola, calças de ganga e meias grossas. Conseguia
sentir o efeito do calor do piso aquecido a começar a chegar aos seus pés.
A porta para a piscina e spa estava à sua frente. À sua direita, o armazém e
a despensa, que continha as caixas de fusíveis e os controlos do sistema do
Retiro. Os elevadores e as escadas ficavam à sua esquerda. Carter caminhou
em direção a eles e depois parou. Ninguém ia estar numa sala às escuras. Ele
voltou para trás e caminhou até à porta para o spa e a piscina. Empurrou-a
para abrir. Era pesada e insonorizada, como todas as portas do Retiro.
Ele entrou nos balneários amplos. Bancos corridos de um lado e cacifos
do outro. No centro, havia uma pequena área de vestir com espelhos
e secadores de cabelo. À sua esquerda, uma porta de vidro fosco levava aos
chuveiros e sanitários. À sua direita, um pequeno corredor levava à piscina.
O balneário estava vazio. Carter sacou da arma e tentou verificar os
chuveiros e sanitários, empurrando as portas do cubículo uma a uma com o
pé. Ninguém, nem sequer um flutuador.
Ele voltou para os vestiários. Conseguia ouvir o som ténue da água
a remexer na piscina. Caminhou pelo curto corredor. No final, havia
pequenos jatos de água direcionados para uma base de duche. Carter
descalçou as meias e enfiou-as no bolso e depois atravessou em direção à
área da piscina.
O ar húmido colou-se à sua pele. O cheiro do cloro picou-lhe os olhos.
A iluminação aqui era fraca. Havia pequenos focos de luz dispostos em volta
nas paredes de pedra. Espreguiçadeiras nas laterais. No final, outra grande
janela reproduzia a vista da sala de estar no cimo das escadas. A piscina em
si tinha metade do comprimento olímpico, mas mais estreita. A iluminação
inferior da piscina dava-lhe uma bela tonalidade azul.
Havia um corpo no fundo.
Longos caracóis flutuavam como algas marinhas. À deriva numa nuvem
de vermelho.
– Foda-se.
Carter avançou, precisando de ter a certeza, mesmo que realmente só
pudesse ser uma pessoa. Não havia como confundir aquele cabelo.
Julia.
A Julia cool e hipster. Eles não eram próximos, mas ele gostava dela. Da
companhia dela. E agora ela estava morta.
Ele engoliu em seco, tentando manter a calma. Como? Porquê?
Foda-se. Precisava de encontrar Miles. Ele virou-se e voltou pelo
balneário, empurrando a porta para o corredor. A porta da despensa abriu-
se.
Carter rodou sobre si mesmo, arma levantada, dedos prontos no gatilho.
Welland saiu, abanando a cabeça ao som do que quer que estivesse a tocar
nos auscultadores de ouvido presos sobre as orelhas. Olhou para cima e viu
Carter.
– MERDA! – Os olhos dele arregalaram-se. – Por que caralho estás a
apontar-me uma arma?
– O que estavas a fazer ali dentro?
– A tentar resolver o problema da energia.
Carter olhou para ele. O cabelo atado num rabo de cavalo, manchas de
suor debaixo dos braços, a barriga apenas contida pelo tecido manchado.
Mas sem manchas de sangue.
Ele baixou a arma.
– Que raio se passa?
– Diz-me tu. A energia foi-se outra vez. Quando voltou, apenas metade
dos sistemas estavam a funcionar. O Miles mandou-me cá abaixo para ver se
eu conseguia arranjá-los.
E obviamente não conseguia.
– Há quanto tempo estás aí dentro?
– Há cerca de uma hora. Acho que as luzes do Sistema 1 podem ter
fundido, mas não sei onde raio param os fusíveis sobresselentes. Vou ter de
tentar reencaminhar parte da energia…
– A Julia está morta.
– O quê?
– A Julia está morta. Na piscina.
Welland continuava a olhar para ele, com a boca aberta como se alguém
lhe tivesse aberto a mandíbula.
– Eu não… A Julia?
Carter acenou com a cabeça.
– Afogada?
Carter pensou naquela nuvem de vermelho.
– Acho que não.
– Foda-se.
– Onde estavam todos quando vieste cá abaixo para verificar a energia?
– Ah… O Nate estava a fazer algo para comer. A Julia estava a ver
televisão. Não sei onde estavam a Caren ou o Jackson.
– O Jackson desapareceu.
– Desapareceu?
– Foi-se embora.
– Quando? Onde é que ele foi?
– Quem sabe? Provavelmente já é carne para lobos.
Welland piscou os olhos. Como se alguém o tivesse posto em modo de
poupança de energia.
– Onde está o Miles? – Carter perguntou com mais urgência. Agora não
era o momento para falar sobre Jackson. Pelo menos, ainda não.
– Ele foi até à cave para verificar se estava tudo seguro.
Carter sentiu a garganta dele a estreitar-se.
– De quanto tempo foi o atraso desta vez, Welland?
Welland piscou de novo os olhos. Depois o seu rosto foi invadido pelo
desânimo.
– Eu avisei. Eu avisei que estava a piorar, meu.
– Quanto tempo?
– Oito segundos.
Oito segundos e as fechaduras automáticas na cave eram abertas.
– Jesus Cristo. – Carter passou uma mão pelo cabelo. – E viste se o Miles
voltou da cave?
– Não, meu. Ele disse-me para vir logo cá abaixo para tentar resolver o
problema.
Oh, eles precisavam de resolver o problema. A questão era: qual era
mesmo a dimensão do problema?
– Precisamos de encontrar os outros – disse Carter.
Welland assentiu, lábio e queixo a tremer.
– Viste o Dexter?
Welland abanou a cabeça.
Carter olhou para ele.
– E tira a merda dos auscultadores.
Eles atravessaram o corredor. Welland dirigiu-se aos elevadores. Carter
agarrou-lhe o braço.
– Vamos pelas escadas.
– Porquê?
– Porque não queremos anunciar a nossa chegada.
Embora, pensou Carter quando começaram a subir as escadas em espiral,
com plano aberto, se alguém estivesse lá em cima, sem dúvida já os teria
ouvido por esta altura. Ele ficou a olhar para cima. A escuridão tomava conta
da área. Ele tirou a sua lanterna.
– Tens uma lanterna? – sussurrou ele por cima do ombro para Welland.
– Sim. – Ruído, um resmungo e um súbito feixe de luz ofuscante que
iluminou toda a escadaria.
– Por amor da santa – sussurrou Carter. – Mantém a luz baixa.
– Oh. Está bem.
A luz diminuiu. Carter suspirou. Mais valia terem ido até ao cimo e
disparado fogos de artifício.
Finalmente chegaram à sala. Lá fora, a tempestade rugia violentamente,
sendo audível mesmo através do vidro triplo. Enormes pedaços de neve
colavam-se ao vidro, quase apagando o mundo exterior, envolvendo-os num
túmulo branco.
O resto da sala estava estranhamente sossegado. Carter apontou a luz da
sua lanterna em volta.
– Meu, não gosto disto – murmurou Welland.
– A sério? – respondeu Carter. – Eu estou a divertir-me como o caraças.
A lanterna iluminava pequenos recantos da sala, agora pouco familiares
tomados pela escuridão. Mas Carter conseguiu perceber que a zona de estar
parecia ter sido desocupada à pressa. Havia canecas de café sobre a mesa,
meio cheias. Um cinzeiro continha um charro parcialmente fumado.
– Não está ninguém aqui – queixou-se Welland. – Podemos então…
Um gemido. À sua esquerda. Vindo da cozinha. Carter apontou a sua
lanterna. As bancadas estavam uma confusão. Comida espalhada, pedaços
de vegetais por todo o lado. O que, para ser justo, era normalmente como
Nate cozinhava.
Carter caminhou rapidamente, e Welland seguiu-o, ofegante e suado. À
medida que contornavam a grande ilha, Carter apontou a luz para baixo.
Nate estava deitado no chão, de lado, meio enrolado. A sua T-shirt branca
estava manchada de castanho com sangue.
Carter agachou-se.
– Nate?
Outro gemido, mas um olho abriu-se. Ainda bem, porra.
– Ei, meu. É o Carter.
– Cuh-ter? – Nate murmurou. Parecia que tinha perdido um dente.
– O que aconteceu?
Nate sentou-se com dificuldade, agonizando com dores. Havia mais
sangue no chão sob ele. Carter pôs um braço em volta dos ombros do seu
amigo.
– Welland – instruiu ele. – Arranja-lhe água.
Welland apressou-se até ao lava-loiça e remexeu desastradamente,
voltando com um copo de água, que derramou por todo o lado. Passou-o a
Carter, que o encostou aos lábios de Nate. Nate bebeu metade da água,
deixando a outra metade verter sobre a sua camisola. Carter retirou-lhe
gentilmente o copo.
– Consegues lembrar-te do que aconteceu? – perguntou ele.
Nate franziu o sobrolho.
– Eu estava a cozinhar… e…
– A energia foi-se – interrompeu Welland. – Foi quando o Miles me
mandou para a despensa para verificar o que se estava a passar.
– Obrigado, isso já percebi – disse Carter rispidamente. Concentrou a sua
atenção em Nate. – O que te aconteceu?
Nate pestanejou lentamente. Carter não gostou. Olhou de volta para a T-
shirt ensanguentada.
– Vou só levantar a tua T-shirt, está bem?
Nate continuava a olhar apaticamente para ele. Carter puxou o algodão
húmido para cima. O tronco de Nate parecia imaculado. Sem feridas
visíveis. Talvez o sangue fosse do dente desaparecido. Mas havia muito
sangue no chão.
– Eu estava a cozinhar… – disse Nate arrastadamente.
– E a Julia? – perguntou Carter.
– Julia… – Nate semicerrou os olhos, como se lhe doesse forçar as
palavras a sair.
Vá lá, meu, pensou Carter.
– Velas – disse Nate triunfantemente, como se tivesse acabado de
desvendar o significado do universo. – Ela foi… buscar velas.
Velas. Certo. Isso explica porque Julia teria descido as escadas, mas não
como tinha acabado morta na piscina.
– Viste-a? – perguntou Carter a Welland.
Welland abanou a cabeça.
– Não. Não me vais culpar por isto.
– Julia… – disse Nate de novo.
– A Julia está morta – disse Carter, não vendo sentido em eufemismos. –
Encontrei-a na piscina. Parece que foi esfaqueada.
Nate esfregou os olhos.
– Julia.
– Lamento. – Carter suspirou.
Ele sabia que Nate e Julia eram amigos. Talvez mais do que amigos de vez
em quando.
– Nate – disse ele. – Precisamos de encontrar quem fez isto. Viste quem te
atacou?
– Eu estava… – Nate fez uma pausa. Depois inclinou-se para a frente e
vomitou, café e bílis espalhados pelo chão.
Carter levantou-se de supetão, a esquivar-se ao jato.
– Porra, meu! – gritou Welland. – Que raio se passa com ele?
Nate ficou imóvel, meio curvado, a babar-se.
– Não sei. Talvez tenha um traumatismo – disse Carter, enquanto o cheiro
amargo a vómito lhe subia pelas narinas. – Temos de o levar para um sítio
seguro e depois descobrir o que raio se passa. – Ele curvou-se e ajudou Nate
a pôr-se de pé. – E precisávamos de alguma luz – disse ele a Welland.
– Eu estava a tentar, meu.
– Bem, esforça-te mais. Vamos levar o Nate lá para baixo. Leva-o para a
despensa. Tranquem-se lá dentro.
– O que é que vais fazer?
– Tentar encontrar o Miles.
– E a Caren?
– Ela sabe tomar conta de si.
– O Miles também.
– Sim, mas precisamos do Miles.
Carter colocou o braço de Nate por cima do ombro e cambalearam de
volta pelas escadas até à luz do corredor. Carter sentiu que respirava um
pouco mais facilmente. É incrível a segurança que a luz nos dá. Como se
ainda acreditássemos que pode transformar todos os monstros em pó.
Claro, agora que estavam de volta à luz, Carter podia ver Nate como deve
ser. Ele parecia mal. Mesmo muito mal. E isto vinha de um homem que não
era propriamente uma obra de arte em termos de aparência física. Aguenta-
te, pensou Carter. Não te quero perder, meu. Já perdi o suficiente.
– Estava só a cozinhar – disse Nate arrastadamente.
– Sim, tu disseste.
Os olhos de Nate estavam desfocados, e a bandana começava a preocupar
Carter. Talvez tivesse por baixo uma ferida grave na cabeça. Nate balançou.
Carter agarrou-o.
– Eu estava só a cozinhar.
– Porque é que ele continua a dizer isso? – lamuriou-se Welland.
Carter não sabia. Mas sabia que Nate estava a usar uma bandana cinzenta
esta manhã.
Esta era vermelho-escura.
– Nate, acho que devíamos ver a tua cabeça, está bem? – disse ele.
Nate olhou para ele, sem reação. Carter desamarrou a bandana e tirou-a
gentilmente.
O topo da cabeça de Nate escorregou e bateu no chão com um ruído
molhado.
– Jesus Cristo, porra! – Welland virou-se e contorceu-se com vómitos.
Carter olhou para o cérebro de Nate, pulsando suavemente. Cinzento e
enrugado como uma esponja encolhida. O topo tinha sido serrado,
juntamente com o crânio. Depois tinha sido de novo colocado no sítio e
tapado, como se fosse um zombie.
Quem diabo faria…
– Carter – disse Welland.
E foi aí que ele ouviu. Claro.
Assobiar.
Ambos se viraram lentamente.
Uma figura magra num macacão azul manchado de sangue estava de pé
atrás deles. A pele era pálida, quase translúcida. Lábios gretados sobre
dentes amarelos e os olhos carmesim-escuros. Numa mão, segurava um
cutelo, ainda repleto de sangue de Nate.
E aqui estava o «pequeno» problema.
Oito segundos e as fechaduras automáticas abriam-se.
E na cave não estavam só trancados os medicamentos.
O Whistler sibilou enquanto olhava para eles, olhos vermelhos a brilhar
de ódio.
O dedo de Carter estava a postos no gatilho. Mas ele não disparou. Não
por empatia ou simpatia. Mas porque não lhes era conveniente acabar com
ele.
– Não te quero matar.
O Whistler sorriu, mostrando gengivas pretas. Ele deu um passo em
frente.
– Não tem de ser assim – disse Carter.
O Whistler atacou. Carter apontou para a perna dele. Ouviu-se um
disparo. A cabeça do Whistler explodiu. Ele cambaleou alguns passos, o
cutelo ainda no ar. Um segundo disparo e sangue vermelho brilhante surgiu
no centro do seu macacão. O cutelo caiu com um som estridente e ele caiu
desamparado no chão. O assobio abrandou e eventualmente parou.
Carter virou-se. Caren surgia vindo das escadas, com a arma presa em
ambas as mãos, ainda apontada para o corpo no chão.
– Por que raio fizeste isso? – gritou Carter.
Ela baixou a arma e olhou para ele.
– Salvar-te a pele? Oh, não tens de quê.
– Sabes como é. Não há mortes a menos que seja absolutamente
necessário.
– Verdade. Salvar a tua vida não é absolutamente necessário. Mas eu tenho
de pensar na minha.
Caren desceu rapidamente pelas escadas e caminhou até ao corpo. Ela
empurrou-o com o pé.
– Reserva 01 – murmurou ela. – Eu devia ter adivinhado. – Ela virou as
costas. Os olhos dela pousaram sobre Nate. – Jesus.
Nate continuava a balançar, a babar-se. Ouviu-se o barulho de água a
correr. Uma grande mancha escura espalhou-se sobre as calças de Nate e
formou-se uma pequena poça no chão.
– Ele mijou-se todo! – gritou Welland.
– Onde raio está a cabeça dele? – perguntou Caren.
Nate olhou para eles com ar queixoso.
– Eu estava só a cozinhar.
Carter sentiu o seu coração a conformar-se.
– Eu sei que estavas, meu. Eu sei que estavas.
Ele ergueu a sua arma. Mas havia autopreservação suficiente no que
restava do cérebro de Nate para que os olhos dele se esbugalhassem. Ele
virou-se e entre tropeções correu para a porta da piscina. Carter disparou
um tiro, mas foi ao lado, atingindo a madeira enquanto Nate desaparecia.
– Merda – praguejou ele.
– Ótimo. Feriste a tua presa – murmurou Caren.
Ele olhou para ela.
– Ele não é a porra de uma presa. É meu amigo.
Eles correram atrás de Nate, pelos vestiários até à zona da piscina. Julia
ainda estava no fundo.
– Merda! – gritou Caren. – Há um corpo na água.
– Eu sei – disse Carter. – É a Julia.
Nate cambaleava em torno da piscina. Depois parou. Olhou para
a piscina.
– Julia.
Carter não sabia se a noção de profundidade de Nate tinha desaparecido
ou se simplesmente se tinha esquecido de que não conseguia andar sobre a
água, mas caminhou diretamente na direção da zona mais funda. Embateu
na água como uma rocha. O velho Nate sabia nadar como um campeão
olímpico. Mas esse seu lado tinha desaparecido. Veio à tona, com os olhos
bem abertos, a boca a pronunciar palavras que não conseguia encontrar,
chapinhando na água com as mãos como se estivesse a tentar agarrá-la para
se manter à tona.
– Eu estava só a cozinhar – balbuciou ele. – A cozinhar.
Carter baixou a arma. Nate afundou-se mais uma vez.
Caren abanou a cabeça.
– Está feito.
Meu, que cabra cruel.
Carter esperou. Desta vez, Nate não reapareceu. Algo comprimiu
brevemente o coração de Carter e depois, como Nate, desapareceu.
Ele virou-se para Caren.
– Precisamos de ir à cave e verificar as câmaras de isolamento.
– Tens a certeza de que é uma boa ideia?
– Não. – Ele fez uma pausa. – Mas precisamos de ver o que mais anda à
solta.
Hannah
Ela pressionou Enviar e viu a barra azul a progredir. Mais perto e mais
perto da conclusão. E então parou. Foda-se. Surgiu um ponto de exclamação
dentro de um círculo vermelho. Envio de mensagem falhado.
– Não seguiu – disse ela, entorpecida.
– Merda, meu. – Ben passou os dedos pelo seu cabelo, soltando-o do rabo
de cavalo. – Estamos feitos. – Ele tossiu outra vez e tremeu.
Hannah olhou para cima.
– Posso continuar a tentar, mas a bateria já está a meio. Talvez seja melhor
conservar a bateria e tentar novamente se conseguirmos mais rede?
Ela considerou o silêncio deles como consentimento.
– Está bem. – Lucas bateu palmas. – Plano B. Tentamos partir uma janela
para chegar ao porão da bagagem. LoS2. Vamos lá.
Foram até à parte dianteira do autocarro, uns com mais vontade do que
outros. Lucas e Josh iam à frente, Hannah seguia-os, depois Cassie. Ben
arrastou-se atrás deles, e Daniel na retaguarda, obviamente relutante em
deixar a irmã.
Hannah não podia deixar de pensar que esta era provavelmente uma
tarefa inglória. O vidro era reforçado, então precisavam de algo pesado para
ter uma hipótese de o partir. Muitos dos assentos do autocarro estavam
meio soltos do chão, mas não o suficiente para que pudessem ser
arrancados.
– Ei, aqui!
Josh e Lucas agacharam-se entre dois lugares do lado direito do autocarro:
o lado meio soterrado pela neve.
– Esta janela já está partida – disse Lucas enquanto Hannah e os outros se
juntavam a eles.
Hannah olhou para o vidro, estilhaçado num mosaico de cacos. Talvez
seja possível pontapear o vidro para fora. Mas ainda havia um problema.
– Está enterrado na neve – disse ela. – Como pensas sair?
Josh olhou em volta.
– Algum de vocês fez treino de sobrevivência?
Cassie ergueu uma sobrancelha.
– Demasiado ocupada a beber e a tomar drogas.
Josh ignorou-a.
– Uma das coisas que aprendemos foi como fazer um túnel de neve, para
nos abrigarmos em condições extremas. Se o autocarro estiver sobre um
grande amontoado de neve, poderá haver neve solta suficiente para escavar
um túnel.
Hannah refletiu.
– Mas a neve não estará demasiado compactada pelo peso do autocarro?
– Não necessariamente, e só há uma maneira de descobrir.
Lucas franziu o sobrolho.
– É uma ideia corajosa, meu amigo, mas primeiro temos de desimpedir
vidro suficiente para fazer um buraco grande e seguro o bastante para
rastejarmos. Depois há o risco de a neve desabar e enterrar-te.
– Vou correr esse risco – disse Josh. – Já fiz túneis de neve antes.
– É perigoso – disse Lucas, com tensão na voz. – Há apenas uma pequena
hipótese de sucesso.
– Mas uma pequena hipótese é melhor do que nenhuma hipótese – disse
Daniel. – Se conseguirmos encontrar aquela bomba, podemos sobreviver a
esta noite. Mas há outras coisas no porão da bagagem que podemos usar
para nos ajudarem a sobreviver até a ajuda chegar. Telemóveis, comida, mais
roupas. Tenho analgésicos na minha mala. Fortes. A Peggy precisa deles.
Ele estava certo. Não se tratava apenas de sobreviver a esta noite. Era
sobreviver no geral.
Eles entreolharam-se.
– Deixa-o ir – disse Cassie. – Quero dizer, ninguém tem ideias melhores,
pois não?
– Devíamos deixar o Josh decidir – disse Hannah.
Todos acenaram com a cabeça, embora Lucas ainda parecesse um pouco
relutante. Hannah ficou com a impressão de que ele estava confortável ao
comando e não gostava que a sua autoridade fosse questionada.
– Eu quero tentar – disse Josh com convicção.
– Muito bem. – Lucas suspirou. – Então nós vamos ajudar.
Josh acenou com a cabeça.
– Vamos precisar de luvas ou algo para proteger as mãos ao remover o
vidro… e para cavar.
– Encontramos algumas luvas nos outros alunos – disse Lucas. Ele virou-
se para Ben, que estava encostado a um banco.
– Ben – disse Lucas. – Podes ir buscar as luvas às roupas que conseguimos
juntar?
Ben devolveu-lhe um olhar um pouco atordoado.
– Luvas?
– Sim. É importante. Precisamos da tua ajuda.
– Certo. – Ben voltou lentamente à vida. – Está bem. Claro.
Ele tropeçou ao longo do autocarro, tossindo novamente. Hannah tentou
conter a sua preocupação. Ela voltou-se para Josh.
– Quanto tempo achas que vai demorar a fazer o túnel? – perguntou ela.
Josh pensou.
– Difícil de dizer. Depende realmente da consistência da neve e da
profundidade do monte. Uma hora. Talvez duas.
Hannah olhou de novo através das outras janelas. Ela podia apenas ver o
céu cinzento. Mas estava a escurecer.
– Provavelmente só nos resta uma hora e pouco de luz. – Ela tirou o
telemóvel do bolso dela. – Devias levar isto. Podes usá-lo como lanterna.
– Mas depois não tens como contactar ninguém para pedir ajuda.
– Se isto correr mal, estamos todos mortos de qualquer maneira –
relembrou-lhe Lucas.
– Isto vai ser-te mais útil. Assim que abrires a porta… – Ele calou-se
repentinamente. – Verdammt!
– O quê? – disse Josh.
– O porão da bagagem vai estar trancado.
– Merda – sussurrou Hannah. Porque é que ela não tinha pensado nisso
antes?
– O motorista devia ter uma chave – disse Cassie.
Hannah e Lucas olharam um para o outro.
– Hannah – disse Lucas firmemente –, porque não vês se consegues
encontrar as chaves do condutor?
Ela acenou com a cabeça.
– Está bem. – Começou a virar-se.
– Eu vou contigo – disse Cassie.
Hannah queria dizer que não. Mas isso iria parecer suspeito.
– Muito bem. – Ela forçou um grau de simpatia na sua voz.
– Muito bem. – Cassie esboçou um sorriso falso.
Passaram por cima dos assentos amolgados até à dianteira do autocarro.
Era provavelmente a imaginação de Hannah – não tinha passado tempo que
chegasse nem estava quente o suficiente para que a decomposição já tivesse
começado –, mas parecia que já havia um odor um pouco desagradável
vindo dos cadáveres. Ela viu Cassie a olhar para eles.
– Sinto muito se conhecias algum deles – disse ela.
– Não conhecia. Eu não tinha amigos na Academia.
– Oh. – Hannah ficou a olhar para ela.
Cassie olhou de volta.
– O quê? Pensavas que eu era a Miss Popular?
Hannah encolheu os ombros.
– Para mim não faz diferença.
Tinham chegado à cabina do motorista. O motorista que desapareceu,
pensou Hannah. Todos os outros provavelmente presumiram que ele estava
morto. Só ela e Lucas sabiam a verdade. Onde estava ele? Teria conseguido
escapar? A porta de saída só tinha encravado depois?
– Sabes… sais mesmo ao teu pai – disse Cassie.
Hannah virou-se bruscamente.
– Desculpa?
– Não mencionei? Tive aulas com o teu pai. Virologia. Às vezes também
ajudava no laboratório. Ele é um homem brilhante. Mas muito… qual é a
palavra? Clínico.
– É um cientista – disse Hannah firmemente.
– Suponho que deve ter sido difícil.
– Não sei a que te referes.
– Fiquei com a impressão… de que é difícil chegar aos calcanhares dele.
Acho que foi por isso que seguiste medicina geral e não investigação.
Hannah conteve a fúria crescente.
– Podes ter sido aluna do meu pai, mas isso não te dá nenhum
conhecimento sobre ele ou sobre mim.
Ela deslizou para o lugar do condutor, indicando que a conversa tinha
acabado. O casaco do motorista ainda estava pendurado nas costas. Cor
verde, o logótipo da escola. Tamanho S. Hannah tentou combater a raiva.
Não deixes que a emoção te domine. Não sejas como a tua mãe.
Ela olhou para o tabliê. O volante estava à distância de um braço. Ela mal
conseguia alcançar os pedais, e não era especialmente baixa. Algo chamava a
sua atenção.
– Há uma chave? – perguntou Cassie, interrompendo os seus
pensamentos.
Hannah espreitou por baixo do volante.
– É um botão de arranque.
Mas ainda era necessário uma chave estar por perto para que funcionasse.
Hannah pegou no casaco. Tamanho S. Aquela chamada de atenção de novo.
Ela enfiou as mãos nos bolsos. Algo volumoso tinha sido colocado num
deles: um boné de basebol com o logótipo da Academia. Franziu o sobrolho
e depois colocou a mão no outro bolso. Sim. Os seus dedos fecharam-se à
volta de um porta-chaves com uma chave menor acoplada. Ela retirou-a
triunfantemente.
Até Cassie esboçou um pequeno sorriso.
– Sabes – disse ela –, o motor foi provavelmente danificado no acidente.
Mas se a bateria não estiver muito danificada pode haver alguma energia
residual, para as luzes e talvez para aquecimento.
Quando não estava a afogar-se no seu próprio sarcasmo, Cassie conseguia
realmente ser útil, pensou Hannah. Ia escurecer em breve e ficar ainda mais
frio. Se conseguissem ter mais umas horas de luz e calor, isso ajudaria.
Ela pressionou a ignição. O motor fez um som crepitante e desligou-se
imediatamente, mas o tabliê e as luzes piscaram, e Hannah sentiu o leve
cheiro a queimado do aquecimento a entrar em ação. Provavelmente não ia
durar muito, mas era alguma coisa.
– Temos energia? – Uma voz gritou. Lucas.
– Sim! – Hannah gritou de volta. – E uma chave.
– Excelente.
Mas nenhum condutor, pensou ela, e de novo aquela estranheza a
incomodá-la. Casaco pequeno. Mas ela não conseguia alcançar os pedais do
chão e o volante estava longe, indicando que o motorista era alto, com
pernas e braços longos.
– O que foi? – perguntou Cassie.
– Lembras-te de como era o condutor?
Cassie coçou o rosto.
– Encorpado. Cabelo escuro. Chapéu. Só o vi de costas.
Hannah olhou para ela.
– Encorpado?
– Sim. Quero dizer, não prestei muita atenção, mas fiquei com essa
impressão. Porquê?
Hannah pensou na figura que tinha visto do lado de fora do autocarro, a
fumar. Pequeno, baixo, com o boné oficial da Academia. Provavelmente do
tamanho certo para o casaco sobre o assento.
– Este casaco é tamanho S – disse ela a Cassie. – Mas a posição do assento
indica um indivíduo muito maior.
– Então, talvez o casaco pertença a um motorista diferente?
Hannah olhou para ela. Claro que sim. Um motorista diferente.
– Não era o mesmo motorista – murmurou ela. – Alguém tomou o lugar
dele.
– E então? – disse Cassie. – Porque é que isso importa?
Hannah hesitou. Poderia confiar em Cassie?
– OK – disse ela. – Não podes contar a ninguém, mas o condutor
desapareceu.
– O quê?
– Ele não está entre os mortos.
Hannah observou Cassie a processar isto.
– Achas que ele saiu do autocarro de alguma forma? – perguntou ela.
– Sim. Mas a questão é como e porquê.
– Talvez fosse ele o cúmplice do bombista.
– Talvez.
– Não me pareces convencida.
– Não sei – admitiu Hannah. – Sinto que há algo mais.
Cassie parecia pensativa. Então olhou rapidamente em volta do autocarro,
para ter a certeza de que ninguém estava a ouvir, e baixou a voz:
– OK. Há uma coisa que preciso de te dizer. Há pouco disse-te que
trabalhava no laboratório do teu pai.
– Sim?
– Ajudei com alguns dos testes para a evacuação.
Hannah olhou para ela.
– E?
– Obviamente, os alunos com testes negativos deveriam ser evacuados
para o Retiro, para a quarentena. Qualquer pessoa com sintomas ou um
teste positivo deveria permanecer na Academia.
– Sim. É claro.
– Pois. Não foi isso que aconteceu.
– O quê?
– Eu sei que pelo menos dois alunos deste autocarro deram positivo.
Hannah olhou para ela.
– Tens a certeza? Talvez os tenhas confundido.
Cassie sorriu amargamente.
– Quando se é a rapariga impopular em que ninguém repara, damos por
nós a observar tudo. Eu sei exatamente quais foram os alunos cujo teste deu
positivo e dois deles embarcaram neste autocarro.
Hannah refletiu.
– Um deles era um miúdo magricela com cabelo frisado?
– Sim. O Jared. Como é que sabes?
– Quando eu estava a despir os mortos, achei que ele tinha sinais de
infeção.
– Mas não disseste nada.
– Nem tu.
– Touché.
A mente de Hannah entrou em polvorosa.
– Não faz sentido. O meu pai nunca deixaria estudantes infetados saírem
da Academia… – Ela vacilou.
O pai dela nunca deixaria estudantes infetados saírem da Academia. Mas
nem tudo era decisão dele. Havia governadores, investidores e estudantes
com pais ricos e poderosos.
Hannah tinha notado que a maioria dos que ficaram na Academia
pareciam ser funcionários e estudantes bolsistas. Ela tinha achado que era
coincidência. Mas e se não fosse? E se alguns dos alunos infetados tivessem
sido autorizados a sair para tranquilizar os pais? E se o pai dela tivesse
descoberto? Ela podia imaginar a reação dele. Nunca deixar o vírus alastrar.
Conter a infeção a todo o custo.
Mas será que ele chegaria mesmo ao ponto de engendrar um acidente de
autocarro e fazer com que parecesse um acidente? Será que ele deixaria a
própria filha morrer?
Sim, pensou ela. Deixaria. Encerramento.
Foi por isso que a saída de emergência fora danificada, que os martelos
tinham sido removidos.
– Acho que o motorista bateu com o autocarro de propósito – disse ela a
Cassie. – Nenhum de nós era suposto chegar ao Retiro.
– Estás a falar a sério?
Hannah acenou com a cabeça.
– Eu conheço o meu pai.
– Ele deixar-te-ia morrer?
– Sem perder um minuto de sono.
Cassie abanou a cabeça.
– Clínico, certo?
– Certo.
Ambas ficaram em silêncio enquanto processavam esta informação.
Hannah percebeu que havia outra pergunta que precisava de fazer.
– Disseste que sabias que dois dos alunos que embarcaram tinham testado
positivo. Um está morto. Quem é o outro?
Uma longa pausa. Depois Cassie disse:
– Tu.
2 Linha de Visão (LoS) é um tipo de propagação que pode transmitir e receber dados
apenas onde as estações de transmissão e receção estão à vista uma da outra, sem qualquer
tipo de obstáculo entre elas. (N. da T.)
Meg
– Tu mataste-o.
Sarah olhou para Meg com olhos selvagens.
– Eu estava a tentar salvá-lo.
– És uma mentirosa. Acabaste de assassinar um homem inocente.
– Pouco inocente.
Meg avançou, com os punhos cerrados. Sean agarrou-lhe o braço.
– Não. Já chega.
Ela soltou o braço da sua mão.
– Será? Antes só suspeitávamos que tínhamos um assassino a bordo.
Agora sabemos que temos um.
Max pôs um braço em volta de Sarah enquanto ela se acobardava.
– És louca – murmurou ela.
– Meg – disse Sean em voz baixa. – Estavas preparada para dar ao Karl o
benefício da dúvida. Não achas que a Sarah merece o mesmo?
– Eu vi-a a empurrá-lo. Nenhum de vocês viu?
– Não posso afirmar com toda a certeza – disse Max. – Aconteceu tudo
tão depressa.
Sean suspirou.
– Não sei. Pode ter sido apenas um acidente.
Meg abanou a cabeça.
– Muito bem. Acreditem no que quiserem. Eu sei o que vi.
Eles permaneceram de pé e olharam uns para os outros. Um impasse. O
alçapão tinha sido fechado. Ambos, Karl e Paul, eram agora cadáveres
congelados na neve. Só que Karl estava vivo quando caiu. Tinha sentido a
velocidade do ar gelado, o terror da queda, a noção de que a sua vida estava
prestes a acabar. Apenas segundos. Mas os segundos que antecedem a morte
podiam parecer uma eternidade. Ela sabia bem.
– Olha – disse Sean. – Não sei se isto faz alguma diferença, mas a história
do Karl, sobre ter estado preso…
– O que tem? – perguntou Max.
– Acho que estava a mentir.
– Eu disse-vos – fungou Sarah.
– Não estou a dizer que ele matou o tipo da segurança. Mas aquelas
tatuagens. Não te juntas a um gangue para proteção e fazes tatuagens como
aquelas se fores só um pobre diabo qualquer preso por fraude.
– O que queres dizer? – perguntou Max.
Meg sabia. Só não se queria comprometer com essa linha de pensamento.
– Estou a dizer – continuou Sean – que só um tipo de prisioneiro se junta
aos gangues para evitar ser morto.
– Criminosos sexuais – disse Meg com um suspiro.
Sean assentiu.
– Eu sabia – disse Sarah. – Estão a ver. Eu sabia que havia algo de errado
com ele.
– Claro que sabias – murmurou Meg.
– Parece que estás familiarizado com o sistema prisional – disse Max a
Sean.
Sean hesitou e depois disse:
– Estive preso durante quase dez anos.
Agora todos eles olharam fixamente para Sean.
– Porquê? – perguntou Max.
– Roubo.
– Dez anos parece um pouco duro – disse Meg.
– Roubei um veículo. Houve um acidente. Morreram pessoas. A culpa foi
minha. – Ele engoliu em seco, parecendo desconfortável.
– Eu também estive na prisão – disse Max.
– Pensava que eras advogado?
– E era. Aceitei algum dinheiro das pessoas erradas.
– Então – Sean olhou em volta para os outros –, algum de nós aqui
é voluntário ou somos todos recrutas?
– Eu voluntariei-me para o Retiro – disse Sarah. – Achei que era o meu
dever cristão.
Claro que pensaste, porra, pensou Meg.
– E o que diz a Bíblia sobre empurrar pessoas para a morte? – perguntou
ela docemente.
Sarah lançou-lhe um ar venenoso.
– E porque estás tu aqui?
Boa pergunta.
Era uma vez uma jovem mulher que teve uma filha que amava muito,
muito. Ela teria dado a vida por aquela menina. Mas não podia. A sua
menina tinha morrido e não havia nada que ela pudesse fazer. Não havia
maneira de curar a enorme ferida aberta no seu coração. Ela tinha tentado.
Álcool, drogas, sexo. Nada funcionou. A mulher tinha percebido que a vida
tinha perdido todo o sentido sem a sua filha. Restava apenas um caminho
interminável de dor. Cada dia era um novo despertar de mágoa. Rasgando a
ferida, que abria de novo e de novo. Ela estava muito fraca. Não conseguia
suportá-lo.
Ela decidiu que se juntaria à sua filha. Tentou enforcar-se, mas um amigo
encontrou-a. Ela não morreu. Mas acabou por ir parar a um hospital
psiquiátrico. Na vez seguinte, ela tentou comprimidos. Acabou por voltar
para o hospital. Tentou ingerir lixívia que uma empregada de limpeza tinha
deixado descuidadamente na casa de banho e, depois de lhe terem feito uma
lavagem ao estômago, colocaram-na numa camisa de forças e dentro de um
quarto almofadado. Durante os anos seguintes, ela passou mais tempo no
quarto almofadado do que fora. Atacava o pessoal do hospital porque eles a
mantinham afastada da sua filha. Porque não a deixavam simplesmente
morrer.
E depois foi-lhe dada uma oportunidade. Ela tinha sido deixada na área
de convívio, altamente medicada, juntamente com o resto dos residentes do
hospital, de boca aberta e olhos vidrados, quando chegaram os homens de
fato. Homens de cabelo grisalho com caras cansadas e sapatos muito usados.
Eles fizeram-lhe perguntas. Ela ignorou-as. Depois um deles mencionou
«as experiências». As experiências. Ela tinha ouvido falar delas. A maioria
das pessoas ouvira. Por portas e travessas. Em canais de comunicação
piratas. Pelos habituais teóricos da conspiração. Laboratórios secretos em
lugares remotos onde o Departamento fazia experiências em «voluntários»
vivos. Para tentar encontrar uma forma de vencer o vírus.
– Sabemos que teve uma filha que morreu – disse um dos homens de
cabelo grisalho. – Se nos ajudar, pode impedir que outras crianças morram.
– Talvez eu não queira – disse ela. – Talvez queira que as mães delas
sintam a dor que estou a sentir.
O homem de cabelo grisalho tinha abanado a cabeça e levantara-se,
retirando-se para outra mesa. O segundo homem de cabelo grisalho
permaneceu, olhando para ela com curiosidade.
– Acho que não está a falar a sério – disse ele.
– Não sabes de merda nenhuma.
– Eu sei que quer morrer. E eles não a vão deixar. – Ele endireitou os
papéis em cima da mesa à sua frente. – Acho que nos podíamos ajudar um
ao outro.
Ela olhou-o com desconfiança.
– Como?
– As experiências são de alto risco. A maioria dos voluntários não
sobrevive. – Ele encolheu os ombros. – Mas pelo menos as suas mortes têm
algum proveito. Pelo bem da humanidade, certo?
– Que se foda a humanidade.
– Como queira. – Ele começou a levantar-se.
– Espere! – Ela olhou para ele. O seu cérebro estava confuso e ela não
conseguia disfarçar o desespero na sua voz. Esforçou-se ao máximo para
formar as palavras: – A maioria não sobrevive?
Ele inclinou-se e piscou um olho.
– Ainda não vi nenhum. – Ele empurrou uma folha de papel sobre a mesa
na direção dela e ergueu uma caneta. Depois de um momento de hesitação,
ela pegou nela.
Ele sorriu.
– Assine aqui… e aqui.
Isto acontecera há mais de seis meses. Eles tinham feito com que Meg
deixasse as drogas. Curaram-na. Declararam-na uma candidata ideal.
E agora aqui estava ela, presa num teleférico avariado, sabe Deus onde, com
um possível assassino psicopata. Pelo bem da humanidade. Certo.
Ela olhou em volta para os olhos expectantes.
– Será que importa porque estamos aqui? Se não queremos ir para
a prisão, temos de acertar as nossas versões da história. Agora temos dois
corpos desaparecidos para explicar.
A rede da piscina não era suficientemente grande. Foi feita para pescar
óculos e outras merdas, não cadáveres.
O melhor que Carter conseguiu foi empurrar Julia e Nate ao longo
do fundo da piscina para a extremidade rasa. Foi um trabalho duro.
Os cadáveres pesavam sempre mais. E cadáveres com roupas encharcadas
pesavam mais ainda.
Carter já tinha despido a sua camisola e já estava coberto de suor no
momento em que tirou as calças e entrou na água para os arrastar para a
beira da piscina. Ele apoiou os corpos contra os degraus. Depois saiu e
puxou-os para a beira da piscina.
A pele deles estava branca – como a dos Whistlers – e enrugada.
Repugnou-o ao tocá-la. Quando é que aquilo teria acontecido?, perguntou-
se. Quando é que deixávamos de ser pessoas que os outros queriam tocar
e abraçar e nos tornávamos nestes invólucros nojentos? Ou talvez tivéssemos
sido sempre isso mesmo? Pedaços de carne que ganharam vida com um
toque da varinha do feiticeiro. Talvez a morte não nos tirasse nada. Talvez
apenas nos devolvesse ao nosso estado natural.
Ele olhou fixamente para eles. Algo mais não batia certo. Não apenas a
morte deles. Não só o facto de Nate não ter o topo da sua cabeça. Era Julia.
Carter agachou-se e levantou a T-shirt dela. A água tinha lavado o sangue
e ele conseguia distinguir três facadas separadas. Profundas. Denteadas.
Feitas com uma lâmina grande. Uma faca de pão ou de bife, era o seu
palpite.
Mas o 01 não tinha uma faca.
Carter supunha que a podia ter deixado cair algures. Podiam não a ter
visto. Mas não estava na piscina. Não estava em Julia.
Ele franziu o sobrolho, tentando imaginar a sequência dos
acontecimentos: 01 escapa dos laboratórios, sobe no elevador. Será que aí se
cruza com Julia, quando ela está a sair do armazém, antes de subir para a
sala? Se sim, como é que Julia foi parar à piscina e porque é que não havia
sangue no corredor? E se 01 matou Julia antes de matar Nate, onde arranjara
ele a faca?
Ou terá ido direto para a sala, atacado Nate, roubado uma faca e voltado
lá abaixo para esfaquear Julia? Não, pensou Carter. Não haveria tempo
suficiente. Julia só tinha saído para ir buscar velas. Teria voltado lá para cima
e descoberto o 01. Além disso, porquê roubar uma faca e esfaquear Julia se
já tinha o cutelo? Não fazia sentido.
A não ser que o 01 não tivesse matado Julia.
– Carter?
Ele sobressaltou-se e pôs-se de pé.
Miles estava à entrada da piscina. Olhou para os corpos.
– Está tudo bem?
– Para além do óbvio?
– Sim.
Carter hesitou. A faca. Julia. Depois abanou a cabeça.
– É uma treta. Toda esta merda. É uma merda total.
Miles anuiu.
– Mas sempre soubemos que poderia chegar a isto.
– Soubemos?
– É por isso que tínhamos um plano de contingência, para conseguir
reservas novas.
Carter encarou-o.
– Podes parar de lhes chamar isso?
– Como preferes que chame? Whistlers? Os infetados? Nada disso
importa. O que eles são. O que eles eram. Tudo o que importa é o que eles
podem fornecer. Nunca tiveste problemas com isso antes.
– Era diferente.
Miles esboçou um pequeno sorriso.
– Não. Não era. Moralmente, eticamente, era a mesma coisa. A única
diferença agora são os teus sentimentos pessoais.
Ele tinha razão.
– Eu vi-a – disse Carter. – Na floresta.
Miles abanou a cabeça.
– Não. Viste um fantasma… alguém ou alguma coisa que se parecia um
pouco com ela.
– E se estiveres errado? E se ela sobreviveu e anda por aí?
Miles mostrou impaciência.
– E se andar? Sabes no que ela se tornou. A tua preocupação é comovente,
mas não muda nada.
Carter olhou para ele, pensando – não pela primeira vez – se teria
coragem de matar Miles. De segurar a sua cabeça loira e presunçosa debaixo
de água enquanto ele se debatia e lutava até dar o último suspiro.
Carter não o fez. O homem tinha-lhe salvado a vida. Ele estava em dívida
para com ele. E, sem Miles, nenhum deles teria sobrevivido tanto tempo.
– Carter – disse Miles calmamente. – A Anya está morta.
Carter ficou a olhar para ele.
– Espero que sim – disse ele. – Espero bem que sim, porra.
Hannah
Sede. Frio. Fome. Todos poderiam matar. Neste momento, Meg sentiu que
eles estavam na expectativa para ver qual iria ganhar primeiro.
O frio podia ser vencido se continuassem a movimentar-se. Apesar de
fazer o carro balançar precariamente, andar para cima e para baixo pelo
menos gerava algum calor nos músculos. Enquanto isso, apesar da falta de
afeto uns pelos outros, eles amontoaram-se a um canto, compartilhando o
calor corporal.
Inquietantemente, à luz da manhã, Meg conseguiu ver que o gelo se tinha
formado nos cantos das paredes de vidro do teleférico. A temperatura no
interior descia continuamente. O teleférico não estava bem isolado. Não
precisava de estar. Só deveria funcionar em viagens curtas de quinze
minutos. Sem luz ou calor, ficaria ainda mais frio, especialmente se ficassem
presos aqui por mais uma noite.
A fome estava a provocar espasmos na barriga, mas eles podiam
sobreviver sem comida durante algum tempo. O corpo não precisava
fisicamente de comida tanto quanto a desejava mentalmente. Podia ser
doloroso, mas uma semana ou mais sem comida não os mataria.
Já a sede era outra coisa. As suas gargantas estavam secas e os lábios
tinham começado a rachar. Felizmente, o frio significava que eles não
estavam a perder muito suor, mas todos eles sentiam a boca áspera. Apesar
de, por outro lado, o facto de não poderem comer ou beber tivesse, pelo
menos temporariamente, resolvido a questão da higiene. Copo meio cheio.
– Vamos morrer aqui dentro – murmurou Sarah, enquanto andava para
trás e para a frente no teleférico, batendo as palmas das mãos. – É só uma
questão de tempo.
– Não devemos pensar assim – disse Sean.
– Ele está certo – disse Max. – Ainda pode vir ajuda.
– Depois deste tempo todo? Eles esqueceram-se de nós. Ou talvez não nos
queiram salvar. Talvez o plano sempre fosse deixar-nos morrer aqui dentro,
como cobaias numa bola de plástico.
– Hámsteres – disse Meg.
– O quê?
– Não se põe cobaias numa bola de plástico. São hámsteres.
– Ou gerbos – interveio Sean.
– O que interessa isso? – gritou Sarah. – Porcos-da-índia, hámsteres,
gerbos. Nós vamos morrer. – E depois desfez-se em lágrimas, sentou-se no
canto e começou a murmurar uma oração.
Meg não tinha vontade ou empatia para a consolar. Até Max parecia
incapaz de reunir a energia para ser cavalheiro. Mexeu-se ligeiramente no
seu lugar e encolheu-se. Ele não parecia estar bem, pensou Meg. O seu rosto
estava pálido e a respiração um pouco esforçada. O pulso partido estava
obviamente a causar-lhe dor, sem surpresa, e eles não tinham analgésicos.
Meg não tinha a certeza da idade de Max. Obviamente estava em boa
forma, mas devia ter cerca de sessenta e muitos anos, talvez mais. O choque
e a dor da sua lesão, aliados à falta de comida e de água e ao maldito frio,
devem estar a causar impacto. No entanto, estavam a ter impacto em todos
eles. Ela estava preocupada com a noite. A sonolência era um sintoma de
hipotermia. E se eles adormecessem e não acordassem? O teleférico voltou a
ranger. O vento tinha acalmado, o balanço tinha diminuído, mas todos os
movimentos ainda eram instáveis. Quantas horas mais, e se ninguém viesse
salvá-los?
Enquanto Sarah se sentava, Max levantou-se. Ou pelo menos tentou. Ele
cambaleou e caiu para trás. Sean foi ajudá-lo, mas Max abanou a cabeça.
– Eu estou bem – respondeu ele rispidamente, o orgulho a fazer-se sentir
no seu tom de voz.
Ele levantou-se novamente, apoiando-se no braço que não estava
magoado, e começou a andar com cuidado através do teleférico. Os seus
passos eram lentos e hesitantes. Meg apercebeu-se de que, a cada passo que
davam para se manterem quentes, também estavam a gastar energia que não
podiam desperdiçar.
A meio da cabina, na sua segunda volta, Max fez uma pausa repentina, as
pernas dele cederam e caiu no chão. Meg e Sean levantaram-se subitamente.
– Max, estás bem? – perguntou Meg, agachada ao lado dele.
– Sim. Só um pouco instável, só isso.
Mas ele não parecia estar bem. Parecia atordoado. Enquanto Meg e Sean o
erguiam, Meg notou que a pele dele estava húmida e quente. Algo estava
errado. Ela olhou para Sean e percebeu que ele estava a pensar o mesmo.
Merda.
– Vamos sentar-te – disse Sean. – E talvez devêssemos avaliar o teu braço.
Para termos a certeza de que não o magoaste quando caíste.
– Não, não, está tudo bem. Só me senti um pouco tonto.
Eles sentaram-no de novo no banco.
– Bem, o que esperavas? – murmurou Sarah. – Não temos nada para
comer. Não temos água. Estamos todos fracos. Provavelmente é estúpido até
andar de um lado para o outro.
– Obrigada pela visão construtiva – disse Meg.
– Acho que devíamos examinar o teu braço – disse Sean a Max outra vez.
– A sério, está tudo bem. Já vos disse…
– Max – disse Sean. – Não quero mesmo ter de te partir o outro braço,
por isso deixa-me ver, por favor.
O homem mais velho suspirou.
– OK.
Sean retirou-lhe o braço da ligadura e gentilmente desenrolou o curativo.
Meg ficou desolada. O pulso estava inchado, o que era de esperar, mas a pele
parecia sensível e tinha manchas vermelhas. Meg conseguia ver, só de olhar,
que deveria estar quente. Só foi preciso um pequeno corte na pele para que a
infeção se instalasse. Merda.
– Bom – disse Sean. – Isto não tem nada bom ar.
Max suspirou.
– Está infetado, não está?
Sean acenou com a cabeça.
– Eu acho que sim. Celulite?
Ele olhou para Meg e ela acenou com a cabeça. Merda a dobrar.
Max descansou a cabeça dele contra a parede de vidro.
– Sinto muito. Eu não queria ser um fardo ou uma responsabilidade.
– Não és – disse Meg com convicção. – Até agora, a celulite parece
limitada ao pulso. Não se espalhou e a pele não está rachada.
– Dói-me.
– Isso provavelmente é bom sinal.
– Bom? – gritou Sarah do canto. – O pobre homem provavelmente vai
perder o braço. – E então começou a chorar novamente.
Meg virou a cabeça na direção dela.
– Se não consegues dizer nada de bom, podes fazer o favor de calar
a boca, porra?
Sarah olhou para ela, depois agarrou-se à sua cruz.
– Não retribuas o mal com maldade ou o insulto com insulto. Pelo
contrário, retribui o mal com o bem, porque para isso foste chamado para
que herdasses uma bênção.
Meg revirou os olhos.
– Por amor da santa. – Ela virou-se de novo para Max. – Quando
chegarmos ao Retiro, tenho a certeza de que eles vão ter muitos antibióticos.
Ele ergueu uma sobrancelha.
– Se lá chegarmos.
– Como te sentes, no geral? – perguntou Sean, mudando deliberadamente
de assunto. – Lúcido? Algum tremor?
– Tenho alguns tremores – admitiu Max. – Mas não tenho a certeza se
isso se deve ao pulso ou ao frio e falta de alimento.
Ele tinha razão. Seria mais difícil combater a infeção se ele já estivesse
fraco. Sean tornou a ligar o pulso de Max. A mente de Meg começou a
trabalhar. Quanto à comida, não podiam fazer nada. Mas talvez
conseguissem obter alguma água. Água, água, por todo o lado e nem uma
gota para beber. Exceto no interior do teleférico, havia neve por todo o lado.
A cair do céu e a assentar no tejadilho. Já deve haver uma boa quantidade lá
em cima. Se ao menos conseguissem lá chegar, podiam bebê-la.
Meg olhou em volta da cabina. Paredes de vidro, bancos, chão de metal
com um alçapão. Ela franziu o sobrolho. O alçapão do chão serviria se
houvesse um guia experiente a bordo e equipamento para fazer rapel fora do
teleférico. Mas e se não houvesse? Ela tinha a certeza de que tinha visto
notícias em que as pessoas tinham de ser resgatadas de teleféricos por
helicópteros, o que certamente significaria…
Ela olhou fixamente para o teto. Claro que, no canto direito, havia o que
parecia ser mais um pequeno quadrado. Outro alçapão?
– Talvez tenha uma ideia – disse ela.
– Somos todos ouvidos – respondeu Sean.
– Se conseguíssemos chegar à neve no telhado, podíamos bebê-la.
– Boa ideia. Mas como é que chegamos à neve no telhado?
– Acho que há outro alçapão de saída no teto.
Todos eles olharam para cima.
– Claro que sim. Em caso de resgate por helicóptero – disse Sean.
Mentes brilhantes, pensou Meg. Ela aproximou-se e estendeu o braço. Só
conseguia tocar no alçapão com a ponta dos dedos, mas não conseguia
empurrá-lo.
– Deixa-me tentar – disse Sean.
Normalmente, Meg não daria lugar a um homem, mas Sean tinha a
vantagem da altura. Ele foi para o lado dela e estendeu o braço. Sentiu as
arestas do quadrado com os dedos. Depois empurrou com força. O
quadrado não se mexeu. Claro, era apenas uma possibilidade pensar que
o quadrado se abria. Talvez nem sequer levasse ao telhado. Poderia ser
apenas um acesso para o quadro elétrico.
– Pode ser o peso da neve a bloqueá-lo – disse Sean. – Ou talvez esteja
congelado, ou só se abra a partir de cima.
Meg ficou desanimada.
– Foda-se – amaldiçoou ela.
Sean analisou o alçapão.
– Vês aqui, isto é uma dobradiça, o que me faz pensar que de facto se abre.
– Está bem.
– Mas aqui… – Ele apontou para um pequeno orifício hexagonal do outro
lado.
– O que é isso?
– Acho que é uma tranca.
– Então é possível abrir pelo lado de dentro.
– Se pudéssemos empurrá-lo para cima e se tivéssemos a chave ou algum
outro tipo de ferramenta.
– Tipo uma faca?
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Foda-se – amaldiçoou ela novamente.
Atrás dela, conseguia ouvir Sarah a murmurar as suas malditas orações.
– Já agora, podes perguntar a Deus se ele nos pode deixar cair uma chave
de fendas? Dava-nos jeito alguma intervenção divina neste momento.
Foi rancoroso, Meg sabia. Sarah ignorou-a. Provavelmente foi melhor
assim.
– Talvez – disse Max –, a chave esteja algures na cabina, escondida para
que ninguém abra o alçapão por brincadeira.
– Não sei – disse Sean. – Não há muitos lugares para esconder alguma
coisa aqui.
– Mas vale a pena procurar – disse Meg.
E era mais útil do que rezar. Ela pôs-se de joelhos e começou a rastejar
pelo chão, procurando por baixo dos bancos. Era o único sítio onde ela
imaginaria que algo pudesse estar escondido. Sean hesitou e depois fez o
mesmo no outro lado do teleférico.
A cabina tinha obviamente sido exaustivamente limpa. Meg nem sequer
tinha encontrado um pedaço de pastilha elástica seca. Estava prestes a
desistir quando viu alguma coisa. Não era uma chave. Mas algo que se
destacava, apesar de tudo. No canto mais distante, debaixo de um dos
bancos, estava algo preto. Ela estendeu a mão para lhe tocar. Fita adesiva.
Um pedaço de fita preta para cabos elétricos, as bordas rasgadas, como se o
resto tivesse sido arrancado. Meg franziu o sobrolho. Talvez os encarregados
da limpeza não a tivessem visto. Ou talvez tivesse sido lá colocada
posteriormente. Ou usada para prender algo aqui debaixo?
– Meg!
Ela deu um pulo, batendo com a cabeça.
– Au. – Ela rastejou de debaixo do banco.
– Encontrei-a! – disse Sean.
– Conseguiste a chave?
– Sim.
Ela olhou para ele enquanto ele segurava uma pequena chave prateada,
como as que se usam para abrir um contador de gás.
– Estava aqui no chão debaixo do banco.
– Certo.
Meg não acreditava que lhe tinha escapado. Ela levantou-se e caminhou
até Sean. Ele levantou a mão e inseriu-a na fechadura. Ele rodou-a para um
lado e depois para o outro. Meg não tinha a certeza de como se trancava ou
destrancava. Sean empurrou o alçapão. Ouviu-se um som agudo e o alçapão
abriu-se, só um pouco.
Ele olhou para ela e sorriu.
– OK. Acho que estamos no bom caminho.
Meg juntou-se a ele, erguendo-se na ponta dos pés, empurrando o
alçapão o mais que podia. Ela sentiu-o levantar um pouco mais. Mas o gelo
e a neve – a preciosa neve, molhada e aguada – estavam a empurrá-lo para
baixo. Oh, que merda de ironia. Ela olhou para Sarah, que ainda estava
sentada, olhos no chão, com as mãos em jeito de oração.
– Achas que podias adiar a reunião com Deus e ajudar-nos aqui?
Sarah lançou-lhes um olhar sombrio, mas levantou-se e caminhou até
eles. Com três deles a empurrar, o alçapão cedeu mais um pouco. Meg
conseguia ver uns quatro ou cinco centímetros de branco e sentir o vento
gelado.
– Só mais um empurrão – disse Sean.
– Permitam-me.
Eles viraram-se. Max estava ao lado deles, com um ar trémulo, mas
resoluto. Ele ergueu o seu braço bom. Em conjunto, todos eles empurraram
o alçapão. Rangeu e depois cedeu, abrindo-se com um ruído surdo.
Imediatamente, uma pequena avalanche de neve caiu do tejadilho sobre
as suas cabeças e rostos. Estava gelada, como o duche de gelo mais frio. Mas
todos eles começaram a enfiá-la gananciosamente na boca.
– Virem uma das luvas do avesso e encham-na de neve para guardar e
beber – disse Meg. – Podem pôr essa mão no bolso ou na manga para a
manter quente.
Todos eles fizeram o que ela indicou, colocando a neve nas luvas viradas
do avesso. Meg lambeu a neve nas mãos e no rosto, saboreando a água
gelada, respirando o ar glacial do alçapão. E depois colocou a língua de fora.
Flocos de neve caíram sobre ela.
Uma súbita e vívida lembrança veio-lhe à memória. Lily, com cerca de
quatro anos, no seu jardim das traseiras, numa manhã de março. Estava um
frio fora de época e de repente começou a nevar. Meg tinha-a vestido com
roupas quentes, o seu casaco e gorro de lã da Porquinha Peppa, e Lily tinha
rodopiado em círculos, língua de fora, braços esticados, apanhando neve
com a língua.
Meg engoliu, reprimindo as lágrimas.
– Estás bem? – perguntou Sean.
– Tudo bem. – Ela acenou com a cabeça, virando costas.
Ela olhou em volta. Estavam todos de pé, lambendo a neve das luvas
como convidados na pior festa do mundo. Era meio ridículo e hilariante.
– O que foi? – perguntou Max.
– Olha só para nós – disse Meg.
Sean começou a rir, depois Max. Até Sarah esboçou um sorriso.
Provavelmente ainda iriam morrer, mas não agora. Neste momento, tinham
água e um pouco de esperança.
– Pronto – disse Sean. – Se toda a gente já tem neve, devíamos fechar este
alçapão antes que fique ainda mais frio aqui dentro.
Ele esticou-se para o agarrar, mas agora havia um problema. Com o
alçapão aberto para cima, ele não conseguia alcançá-lo.
– Bolas.
– Não chegas lá? – perguntou Max.
– Preciso de subir – disse Sean. Ele subiu até à borda do banco e esticou-
se o mais longe que podia.
– Já está – disse ele. E depois praguejou. – Merda. A neve… está a torná-
lo escorregadio. Não consigo agarrar.
Meg pousou a luva cheia de neve.
– Desce e deixa-me subir para os teus ombros. Talvez consiga esticar-me
mais.
– Não. Eu consigo… – O pé escorregou-lhe e ele caiu no chão. Todo o
teleférico balançou. Max sentou-se abruptamente. Meg e Sarah agarraram-se
aos corrimãos.
– Merda – praguejou Sean no chão.
– Estás bem? – perguntou Meg.
– Sim. – Ele levantou-se, fazendo uma careta enquanto se apoiava no
tornozelo esquerdo.
– Tens a certeza?
– Só o torci um pouco. Eu fico bem.
– Ainda me consegues levantar?
Ele acenou com a cabeça.
– Vamos a isso.
Ele dobrou-se. Meg subiu para o banco e depois para os ombros dele. Ele
agarrou as pernas dela e ergueu-a, impulsionando-a para cima pelo alçapão
aberto.
Ela ofegou. O vento raspou-lhe na cara como se fosse lixa. O ar gelado nos
seus pulmões parecia uma lixívia cáustica. Ela pestanejou, sacudindo o gelo
dos olhos. À sua frente, o longo cabo de apoio estendia-se até ao exterior
cinzento da estação do teleférico. Parecia maior visto aqui de cima. Raios,
pensou ela. Não era assim tão longe. Talvez duzentos e trinta metros. Mas
até podiam ser quatrocentos quilómetros.
Ela alcançou o alçapão. A mão dela bateu noutra coisa, meio enterrada na
neve. Ela franziu o sobrolho e afastou a neve. Tinham fixado um objeto ao
tejadilho do teleférico com fita preta. Ela olhou fixamente para ele.
– Meg? – gritou Sean de baixo. – Não quero ser indelicado, mas não estás
a ficar mais leve.
– Está bem. Espera.
Ela raspou a fita com as luvas, arrancando um canto e libertando o objeto.
– Pronto, já está. – Ela ouviu Sean gemer. – Lá vem a hérnia.
Ela enfiou-o no fato de neve e colocou ambas as mãos no alçapão.
Os dedos dela fecharam-se sobre ele. Ela ajustou a pega.
– Pronto. Podes baixar-me.
Sean agachou-se e ela puxou o alçapão. Fechou-o com um baque
metálico. Algo naquele ruído se assemelhava a um final sombrio. Como um
túmulo a ser selado.
De volta ao teleférico, Meg escorregou pelas costas de Sean, sentindo-se
ofegante e um pouco enjoada. O frio extremo e a altura tinham-lhe dado
uma vertigem momentânea. Ela inclinou-se para a frente, tentando respirar
e controlar as náuseas. A certa altura, endireitou-se.
– Tudo bem? – perguntou Sean.
Ela considerou. Devia dizer-lhes? Mas de que serviam mais segredos?
– Encontrei algo no tejadilho do teleférico – disse ela.
– Um paraquedas ou equipamento de rapel era pedir demasiado? –
questionou Sean.
Meg retirou o objeto que tinha colocado dentro do seu fato de neve.
– Oh, meu Deus. – Sarah benzeu-se imediatamente.
– Isso é…? – começou Max por dizer, depois calou-se.
Era perfeitamente óbvio o que era.
Uma arma.
Carter
Ele olhou para o rosto dela. O seu rosto perfeito e adorável. Nada como o
dele, mesmo antes do acidente.
Ela tinha conseguido mais do que a sua quota-parte dos bons genes. Mas
ele nunca se tinha importado. Tinha-a amado sem precedentes. De forma
protetora. Teria morrido por ela. Só que ainda aqui estava. Ainda vivo.
Enquanto ela…
– Carter?
Caren estava à porta. Carter mexeu-se rapidamente para guardar
a fotografia que normalmente guardava bem escondida. Mas era desajeitado,
e a foto caiu no chão, pousando perto dos pés de Caren.
Ela curvou-se e agarrou-a, olhando para a fotografia.
– Bonita. Namorada?
– Não. Irmã. – Ele estendeu a mão, lutando contra a vontade de a arrancar
das suas unhas perfeitamente arranjadas e pintadas.
Ela entregou a fotografia, com um ligeiro franzir do sobrolho.
– Pensei que não tinhas família.
– Não tenho. Ela está… morta.
– Oh. Sinto muito.
– Porquê? Tu não a mataste. – Ele enfiou a foto no bolso, com a intenção
de voltar a colocá-la no seu esconderijo mais tarde.
– Verdade. Mas ainda assim lamento que esteja morta. O que aconteceu?
Estava na ponta da sua língua responder-lhe que se metesse na sua vida.
Caren nunca antes tinha manifestado qualquer interesse na vida de Carter e
eles tinham conseguido passar três anos aqui sem partilhar nenhuma
confidência, então porquê começar agora?
Mas, é claro, ele sabia. Provavelmente todos eles iam morrer hoje. Isso
pode pesar na consciência. A proximidade da morte faz-nos falar de mais,
entre outras coisas.
Ele engoliu em seco.
– Tivemos um acidente… era suposto fugirmos para um lugar seguro. –
Ele fez uma pausa, e de repente conseguiu ver tudo de novo. O sangue, a
faca. Ele abstraiu-se. – Não resultou. Ela não se safou.
– Isso é duro.
Ele acenou com a cabeça.
– Foi há muito tempo. E tu?
– Eu o quê?
– Família?
– Eu tinha… tenho… um pai, irmão e sobrinha. Era suposto eles terem
ido para o Norte, para um lugar que o meu pai comprou há uns tempos. Um
lugar seguro. – Ela encolheu os ombros. – Não sei se lá chegaram.
– Porque é que não foste com eles?
– E perdia isto tudo?
Ele ergueu as mãos.
– Tens razão. Não tenho nada a ver com isso.
Ela suspirou.
– Muito bem. Eu tenho a doença de Huntington. Provavelmente só me
restam uns cinco a dez bons anos. Pensei que, se me voluntariasse para um
ensaio, pelo menos teria algum controlo sobre a minha morte.
– Que merda.
– Sim.
Carter abriu a boca para dizer outra coisa, depois percebeu que já não lhe
restavam mais clichés.
– Então – disse ele. – Querias alguma coisa?
Ela levantou uma sobrancelha.
– Uma queca antes de morrermos os dois?
Ele olhou para ela. Ela sorriu.
– Estou a brincar.
– Claro.
A expressão dela ensombrou-se.
– Não por causa da… – Ela fez um gesto vago na direção do rosto. –
Quero dizer, não somos propriamente amigos coloridos, ou amigos,
sequer…
– Eu sei. Eu percebi. Está tudo bem.
Carter pensava que já tinha ultrapassado o embaraço ou a amargura em
relação ao seu rosto, mas não, ainda podia doer, mesmo que Caren não
tivesse intenção.
Ela olhou para trás e depois entrou no quarto dele, empurrando a porta.
– OK. – Ela olhou para ele com firmeza. – É assim… Não confio em ti,
Carter.
Um bom começo. Ele esperava mesmo que esta conversa não acabasse
com ele a ter de matá-la.
– Espero que haja um «mas» – disse ele.
– Mas – continuou ela –, ainda confio menos no Miles e no Welland.
– Bem, temos algo em comum.
Um sorriso fugaz.
– Não tinhas muito a ver com o Jackson.
– Pensei que era mais o Jackson que não tinha muito a ver com ninguém.
– Eu costumava falar com ele às vezes.
– OK.
– O Jackson era antivacinas.
– O quê? Então que merda estava ele a fazer aqui?
– Como muitos de nós, acho que ele não teve escolha… – Ela olhou
atentamente para Carter porque ambos sabiam que a presença dele aqui se
devia a circunstâncias diferentes das dos outros.
– Pois.
– De qualquer forma, ele disse-me que não estava a tomar as suas doses.
Uma vez que todos eles sabiam manusear razoavelmente uma agulha,
Miles tinha deixado que eles próprios administrassem o plasma. Ele não
tinha razões para suspeitar que eles não iriam obedecer.
– Foda-se – disse Carter. – Sempre soubeste disto?
– Não. Isto foi mesmo antes de ele desaparecer.
– E sabias que ele ia fugir?
– Não. Mas tenho a sensação de que ele queria sair. Por que outra razão
ele confiaria em mim quando eu poderia ter ido diretamente falar com o
Miles?
– Porque não o fizeste?
– Não queria dar ao Jackson uma sentença de morte. – Ela hesitou, depois
disse: – Como à Anya.
Carter olhou para ela.
– Sabes da Anya?
– Eu não sei exatamente o que aconteceu. Tu sabes?
Anya. Loira, linda, zangada Anya. Apenas vinte e seis anos. Ela tinha
pertencido ao grupo original, mas não concordava em manter o pessoal
infetado como reservas. Ela tinha discutido constantemente com Miles
sobre isso. Disse-lhe que não era ético, que eles não eram melhores que o
professor. Numa noite ela tinha tentado libertar os Whistlers das câmaras.
Não tinha conseguido, mas tinha-se infetado a ela própria. Depois tinha
tentado fugir.
Anya estava morta agora. Provavelmente.
Carter ainda se lembrava do sangue dela espalhado na neve branca e pura,
brilhando à luz da pálida Lua. O peso da arma na sua mão. Miles a bater-lhe
no ombro: «Muito bem. Era necessário. Agora, leva-a para o incinerador.»
Carter tinha feito o que lhe mandaram. O que era necessário. Tal como
tinha feito o que lhe mandaram quando Miles o instruiu que matasse Anya.
Esse tinha sido o preço de ser salvo por Miles. Mas quando Carter voltara
para remover o corpo de Anya, com roupas protetoras e com o trenó, ela
tinha desaparecido. Havia um rasto de sangue na direção da floresta e
desaparecia. Miles ficou zangado, mas considerou mais perigoso tentar
encontrá-la. Agora, ninguém falava de Anya.
Carter abanou a cabeça.
– Não – disse ele. – Não faço ideia.
Caren acenou com a cabeça.
– Acho que o Jackson está morto de qualquer maneira, por isso não
importa. Mas a questão é que ele não tinha absolutamente razão nenhuma
para roubar plasma. Ele era contra a extração de plasma. As quintas. Tudo
isso.
Carter engoliu em seco.
– Às vezes as pessoas fazem coisas por outras razões. Talvez ele estivesse a
enviar tudo para outra pessoa?
– Talvez, mas não faz sentido. Além disso, havia alguém além de mim e
do Miles com acesso à cave.
Ele ficou tenso.
– Quem?
– O Welland.
– O Welland? Tens a certeza?
Ela acenou com a cabeça.
– Eu vi-o.
– Quando?
Parecia um pouco acanhada.
– Quando estava lá em baixo.
Cristo. Carter pensava que a cave era um forte, um que só ele tinha
invadido. Afinal tinha mais gente que o velho Piccadilly Circus.
– O que estavas a fazer lá em baixo? – perguntou ele.
– Só a verificar.
– O quê?
– Que o Miles está a ser honesto connosco.
Boa sorte com isso, pensou Carter.
– Seja como for – continuou Caren –, eu estava lá em baixo, no escritório,
e ouvi o elevador. Pensei que era o Miles e sabia que ele me mataria se me
encontrasse.
– Nem sequer metaforicamente.
– Então entrei em pânico e escondi-me debaixo da secretária. Ouvi passos
e alguém entrou, mas não foi o Miles. Foi o Welland.
– O que é que ele estava a fazer?
– Eu não sei. Só consegui ver a parte de baixo. Ele andou por lá, depois
voltou a sair. Arrastei-me por debaixo da secretária e espreitei pela porta.
Vi-o entrar nas câmaras de isolamento.
– O quê? Mas só o Miles tem o código para as câmaras de isolamento.
– Foi o que eu pensei. Mas o Welland sem dúvida que entrou.
– Poderia estar a fazer um favor ao Miles?
Um pequeno encolher de ombros.
– Eu não sei. Não fiquei à espera. Corri para o elevador e saí de lá.
Carter franziu o sobrolho. Poderia Miles ter confiado a Welland o seu
código e mandá-lo fazer um recado secreto? Não parecia provável.
Pessoalmente, ele não confiaria em Welland para lhe encher a merda da
banheira.
– Devemos contar ao Miles? – perguntou Caren.
Ele ponderou. Se Miles não sabia, então Welland estava em apuros. Algo
que não incomodava de todo Carter. Por outro lado, se Miles não queria que
eles soubessem, então eles estavam em grandes sarilhos. Menos vantajoso.
– Vamos guardar isto para nós por agora – disse ele. – Se… quando
voltarmos, podemos confrontar o Welland.
Ela acenou com a cabeça.
– De acordo.
Olharam um para o outro e ambos esboçaram um sorriso hirto. Parecia
estranho.
– Certo – disse Caren. – Vemo-nos lá em baixo.
– Sim.
Ela virou-se. Ele deu por si a dizer:
– Caren?
– Sim?
Ele engoliu em seco.
– Espero que a tua família esteja a salvo.
– Obrigada.
Ela abriu a porta e desapareceu no corredor.
Carter esperou um momento. Depois levantou-se e fechou a porta
novamente.
Mas que merda se passava aqui? Jackson ser antivacinas fazia sentido,
tendo em conta as mensagens no telemóvel dele. Porém, Welland ter acesso
às câmaras? Não. Isso era mau sinal. Carter não era tão ingénuo a ponto de
acreditar que ele e Miles eram amigos. Mas ele sabia que se Miles precisasse
de algo feito secretamente, então Carter seria o primeiro que ele abordaria.
Welland era apenas o lacaio que limpava o servicinho.
Então, o que andava Welland a tramar? Como é que ele conseguiu o passe
para a cave e o código para as câmaras? E que mais andaria aquele merdas a
esconder? Obviamente, todos aqui estavam a esconder alguma coisa. A
única diferença era o tamanho do segredo e a profundidade da mentira. Mas
Carter começava a suspeitar de que havia aqui uma mentira que ia muito
fundo. Até ao coração da existência deles no Retiro.
A questão era: o que é que isso significava para ele?
Carter esperou muito tempo para chegar até aqui, foi paciente. E agora,
ele sentia, estava a dar os seus últimos passos.
Ele retirou a foto de novo. Escrevinhado no verso numa letra desbotada,
quase ilegível, estavam dois nomes. Daniel e Peggy. Academia Invicta. Ele
não precisava da foto, pensou Carter. Ele carregava o rosto dela junto ao
coração. E, se algo lhe acontecesse, ele não podia deixá-la aqui para ser
encontrada. Não por Miles. Não por Quinn. Não por ninguém. Porque, se o
fizessem, isso poderia levá-los até ela. A pessoa para quem ele enviava os
embrulhos. A única ligação que lhe restava à sua irmã.
A filha dela. A sobrinha dele.
Carter tirou o isqueiro, aproximou-o do canto da foto e viu as chamas
comerem o papel macio e amassado.
A bela rapariga de cabelo castanho com um sorriso flamejante enrolou-se
e morreu novamente.
Carter deixou cair as lágrimas, extinguindo as chamas.
Hannah
Sarah insistiu em dizer uma oração. Meg preferia que ela não o fizesse,
mas enfim, isto não era para seu benefício. Talvez Max tivesse querido a
homenagem. Claro, o que o Max teria realmente querido era continuar vivo.
As orações não conseguiam resolver isso. As orações não conseguiam
resolver nada, pela experiência de Meg.
A morte era um horror, e tudo o que fazíamos – as cerimónias, os
discursos fúnebres, as flores – era apenas uma forma de tentarmos
convencer-nos do contrário. Não havia mortes pacíficas. Aqueles que estão
prestes a morrer normalmente urinavam-se ou evacuavam. Havia medo
naqueles momentos finais, em que a respiração começava a falhar e a
garganta se fechava.
Ninguém caminhava para a morte de livre vontade. Isso era mentira. Meg
tinha mentido à sua filha. Descansa, a mamã está ao teu lado. A mamã estará
sempre ao teu lado. Mas a mamã não estava ao lado dela. A mamã ainda
estava aqui. Uma traição que precisava de ser retificada.
Enquanto Sarah continuava os seus santos murmúrios, Meg e Sean
moveram Max até ao alçapão aberto. Sean tocou nos seus lábios e colocou os
dedos na testa de Max, um gesto de afeto e despedida. Meg perguntou-se o
que deveria fazer. Ela não acreditava em Deus, não tinha nada a que
recorrer.
– Lamento – sussurrou ela a Max, inclinando-se para repetir o gesto de
Sean.
Ela fez uma pausa. A presunção deles fora que a hipotermia e a infeção
tinham sido de mais para o corpo de Max. Mas agora Meg aproximara-se e
podia ver petéquias em torno dos olhos de Max. E algo seco no canto da
boca dele. Vómito?
– Ámen – concluiu Sarah, e benzeu-se.
Vasos sanguíneos estourados em torno dos olhos. Vómito. Esses eram
sinais de asfixia.
– Pronta? – perguntou Sean.
Meg olhou para ele. Ele estava a observá-la com atenção.
Teria a morte de Max sido mais antinatural do que eles supunham?
Alguém teria apressado a sua partida? Talvez um ato de misericórdia ou
talvez o vissem como um fardo.
– Meg? – Sean franziu o sobrolho. – Estás bem?
Boa pergunta. Nem por isso. Nada disto estava bem. Mesmo que alguém
tivesse matado Max, que diferença é que isso fazia? Ele provavelmente não
sobreviveria de qualquer maneira. Era provável que nenhum deles
sobrevivesse. Estavam todos a adiar o inevitável enquanto a Morte ia
mantendo os seus lugares reservados.
Meg desviou o olhar.
– Sim. Vamos a isto.
Eles pegaram no corpo de Max e atiraram-no pelo alçapão aberto. Ele
mergulhou através das nuvens cinzentas, encolhendo até ser um pequeno
ponto e depois desaparecer na escuridão. Três já foram, faltam três, ocorreu
a Meg.
– Que Deus cuide da sua alma – murmurou Sarah.
– E que o diabo nunca te apanhe de costas – acrescentou Meg.
Sarah olhou para ela. Meg encolheu os ombros.
– Algo que a minha mãe costumava dizer. Veio-me à ideia.
E agora Meg lembrara-se de outra coisa que a mãe dela costumava dizer:
«Tem cuidado em quem confias. O diabo já foi um anjo outrora.»
– Devíamos fechar o alçapão – disse Sean. – Antes que nos juntemos a ele.
Eles puxaram o alçapão e olharam uns para os outros. Tudo o que resta,
pensou Meg. O número de ocupantes diminuiu para metade em menos de
quarenta e oito horas. Quem seria o próximo se permanecessem aqui por
mais tempo? E o que os apanharia primeiro: o frio, a fome ou outra morte
«misericordiosa»?
– Não vamos aguentar mais vinte e quatro horas – disse Meg sem rodeios.
– Amanhã de manhã, vou tentar chegar à estação e pedir ajuda. De acordo?
Sarah acenou com a cabeça.
– Não vejo que tenhamos outra escolha.
Sean suspirou.
– Muito bem. Se é isso que queres.
– É – disse Meg.
Ele virou-se e foi até à outra extremidade do teleférico. Colocou as mãos
em concha em torno da cara e espreitou para fora do vidro. A neve estava a
derreter, a deslizar pelos vidros, oferecendo uma visão desfocada da estação
ao longe. Um semicírculo cinzento e de vidro a sobressair da montanha.
Como se alguém tivesse batido com uma nave espacial na rocha, pensou Meg.
Sean girou a cabeça para olhar para o cabo de suporte por cima deles.
Depois voltou-se para trás.
– Quase duzentos e trinta metros… não há muita inclinação neste ponto.
O vento pode ter amainado, mas lá fora ainda vai parecer que está a tentar
arrancar-te do cabo. – Ele ergueu as suas mãos enluvadas. – Estas luvas têm
aderência, mas não oferecem muita sensibilidade. Podes facilmente perder o
apoio sem te aperceberes. Além disso, se estiveres a segurar o cabo com
muita força, a tua circulação vai abrandar e diminuir a temperatura das tuas
mãos. Portanto, precisas de continuar a mover-te o mais rápido que puderes.
– Está bem. – Meg olhou fixamente para ele. – Pensaste bem nisto.
– Sim. – Ele olhou-a de cima a baixo. – Os teus braços vão perder a força
antes mesmo de estares a meio caminho. Física e mentalmente, vai ser uma
tortura.
– Uau. Obrigado pela conversa motivadora.
– Estou só a preparar-te. Tens de perceber como vai ser difícil. Precisas de
saber que podes não conseguir.
– Muito bem. Entendido.
Ele continuou a olhar para ela, como se quisesse dizer algo mais. Depois
abanou a cabeça.
– És teimosa como o caraças.
– E essa é uma das minhas qualidades.
Ele conseguiu esboçar um pequeno sorriso.
– Tens mesmo a certeza disto?
– Eu não tenho medo de morrer.
Os olhos azuis dele foram ao encontro dos dela.
– É isso que me assusta.
Eles adormeceram outra vez. Uma ligeira morte. Uma boa descrição.
Abençoado esquecimento. Sem pensar. Sem sentir. Sem dor. Tudo era nada.
Havia conforto no nada.
Mas não podia durar muito. Havia rostos a flutuar pela mente de Meg.
Lily, a mãe dela, Paul. E uma rapariga. Uma rapariga com cabelo comprido,
ondulado e escuro. A rapariga na tatuagem de Sean. Quem era ela? E como é
que Meg a conhecia? A rapariga estava a flutuar para longe. Meg tentou
mantê-la. Ela era importante. Meg tinha-a visto noutro lugar. Onde?
E depois lembrou-se.
A fotografia.
A que Meg tinha encontrado no bolso de Paul.
Daniel e Peggy. Academia Invicta.
Era a mesma rapariga.
E se era a mesma rapariga…
Os olhos de Meg abriram-se.
– Ele mentiu.
Ela sentou-se. A luz prateada iluminava o teleférico. Era de manhã cedo.
Sarah estava deitada ao lado dela. Meg olhou em volta. A perceção instalou-
se lentamente no seu âmago, como tentáculos venenosos.
Não. Não, não, não.
Ela pôs-se de pé. A sua respiração via-se no ar. Ela caminhou até à janela
e espreitou para fora. A névoa acariciava o vidro. O exterior cinzento da
estação mal era visível através da neblina.
Seria uma loucura tentar atravessar pelo cabo com este tempo.
O cabrão. O maluco, filho da puta.
– Meg?
Sarah estava sentada. Ela bocejou, espreguiçou-se e olhou em volta.
– Onde está o Sean? – perguntou ela.
Meg olhou fixamente para ela.
– Já se foi.
Carter
Ela seguiu Cassie pelos degraus que rangiam, Daniel atrás dela.
A cave era longa e estreita. No fundo, Hannah podia ver um saco-cama,
uma lanterna de campismo e lixo variado. De ambos os lados, as prateleiras
improvisadas continham pilhas de comida enlatada, água engarrafada, velas
e remédios. Um pequeno arsenal de armas amontoava-se no pouco espaço
das paredes.
À sua direita estava pendurada uma fila de facas de caça com aspeto
perigoso e duas bestas. À sua esquerda, um porta-armas segurava três
espingardas longas, uma semiautomática e uma pistola. As caixas de
munições estavam empilhadas por baixo.
– Vês o que eu quero dizer? – Cassie sorriu. – O avô Joe teria estado nas
suas sete quintas aqui em baixo.
– Quem é o avô Joe? – perguntou Daniel.
– Não queiras saber – disse Hannah.
Ela olhou em volta. Ponto positivo, podiam armazenar comida e água.
Ponto negativo, ainda havia algo que a perturbava na confissão de Daniel.
Ele tinha admitido que colocara ilegalmente a irmã a bordo e se fizera passar
pelo motorista. E é tudo o que tens para nos contar? Não, pensou ela. Havia
algo mais.
– Bem, por mais agradável que isto seja – disse Daniel sarcasticamente –,
tenho de voltar e ver como está a Eva.
Ele voltou a subir os degraus, que rangiam face ao seu peso.
– Estava a pensar que nos podíamos esconder aqui – disse Cassie. –
Teríamos comida, armas. Ninguém nos encontraria.
Hannah abanou a cabeça.
– Se nós encontrámos este bunker, o meu pai também o encontra.
Devíamos pegar no que precisamos e partir assim que amanheça.
Cassie cerrou o maxilar.
– Acho que estás errada.
– Não estou.
Cassie parecia que estava prestes a discutir, mas depois anuiu e voltou-se
para as armas.
– Muito bem. Se tu o dizes. – Ela pegou numa caçadeira e analisou-a.
– Devias ter cuidado com isso – disse Hannah.
– Oh, o avô Joe ensinou-me tudo sobre armas e facas.
Facas, pensou Hannah. Era isso.
A ferida no pescoço de Ben. Não pode ter sido feita com um pedaço de
vidro, mas sim com uma lâmina fina. Uma faca.
Como a faca que ainda estava cravada no pescoço do Whistler.
A faca que Daniel lhe tinha dado.
– Volto num minuto – disse ela a Cassie, e subiu as escadas.
Daniel estava ajoelhado junto à lareira. Tinha feito um berço improvisado
a partir de uma das gavetas da cómoda e colocado Eva dentro dele. Ele
tentava acalmar a bebé enquanto a aconchegava nos seus cobertores.
Hannah observou-o, depois disse sem rodeios:
– Porque mataste o Ben?
– O quê? – Daniel girou sobre os calcanhares, a olhar para ela. – O Ben
matou-se.
– Não. – Hannah abanou a cabeça. – A ferida no pescoço dele não pode
ter sido feita por um pedaço de vidro. E tu eras o único que tinha uma faca.
Ela viu a expressão dele desvanecer.
– A faca não é minha – disse ele.
– Então de onde é que veio?
– Eu encontrei-a. Quando abri a porta da casa de banho e vi o Ben, a faca
estava no chão. Apanhei-a, limpei-a e guardei-a. Não sei porquê. Acho que
pensei que podia precisar dela.
Hannah estudou-o, à procura da mentira.
– Porque é que devo acreditar em ti? Já mentiste sobre quem eras e o que
estavas a fazer no autocarro.
Daniel suspirou.
– Fi-lo pela Peggy.
– Trabalhaste na cozinha, manuseavas facas.
– Não. Lavava panelas, principalmente. Não sabia cortar uma peça de
carne. Certamente não seria capaz de cortar a garganta a outra pessoa.
Mas havia aqui alguém que seria, pensou Hannah.
«Eu conseguia partir o pescoço de uma galinha ou cortar a garganta de uma
cabra para que sangrasse depressa.»
– Cassie – murmurou ela.
– Chamaste?
Hannah virou-se. Cassie estava no topo dos degraus da cave, a
semiautomática nas mãos.
Hannah tentou manter a sua voz despreocupada:
– Vejo que escolheste uma arma diferente.
– Sim. Pensei que esta seria mais útil.
Hannah anuiu.
– Talvez precisemos de nos defender.
– Boa tentativa. – Cassie sorriu. – Eu ouvi-te a falar.
– Eu estava…
– … prestes a acusar-me de matar o Ben?
– Não.
– Vá. Pergunta-me.
Hannah engoliu em seco.
– Eu não acho…
– Pergunta-me.
Os olhos delas encontraram-se.
– Mataste o Ben? – perguntou Hannah.
– OK, apanhaste-me.
– Porquê?
O sorriso desvaneceu-se.
– Porque ele era um problema para nós e ia morrer de qualquer maneira.
Eu apenas o ajudei.
– A sério?
Cassie suspirou.
– Olha, levantei-me para ir à casa de banho. O Ben já estava desmaiado lá
dentro. Tinha tentado cortar os pulsos com um vidro partido, fez uma
trapalhada do caralho. Então eu terminei o trabalho.
– Com uma faca que trouxeste ilegalmente para bordo?
– Um presente de aniversário do avô Joe… Fiquei bastante chateada
quando percebi que a tinha perdido.
– E agora? – perguntou Hannah. – Também estás a planear «ajudar-nos»?
– Não precisas – disse Daniel rapidamente. – Eu percebo. Eu entendo
porque é que ajudaste o Ben a morrer. Foi provavelmente a coisa certa
a fazer. Não precisamos de nos chatear por causa disto, certo?
Cassie abanou a cabeça.
– Desculpa, pá. Errado. Portanto, isto é o que eu acho. O Departamento
está à procura de quatro sobreviventes, certo? E com o maluco desta cabana
há quatro. Então, se eles vos encontrarem a todos, mortos, numa cabana
queimada, trabalho feito. Enquanto eu fujo e ninguém vai à minha procura.
– Ela encolheu os ombros. – Eu tenho de te matar. É apenas sobrevivência.
– Cassie – disse Hannah calmamente. – Por favor, não faças isto. Tu não
és assim.
Os olhos de Cassie semicerraram.
– Não fazes ideia de quem eu sou. Outra coisa que o meu avô me ensinou.
Ou és boa pessoa ou és um sobrevivente. E o cemitério está cheio de pessoas
insubstituíveis.
Ela apontou a arma a Hannah. A bebé chorou. Por uma fração de
segundo, os olhos de Cassie viraram-se naquela direção. Hannah aproveitou
a oportunidade. Correu para a cozinha, atirando-se pela porta e aterrando
com força sobre as mãos e os joelhos. Atrás dela, as tábuas do chão foram
alvo de tiros. Ela ouviu Cassie praguejar.
– Foda-se!
– Para, Cassie. Por favor!
A voz de Daniel. Hannah olhou para trás. Ele levantou-se, segurando o
berço improvisado à sua frente. Cassie olhou para ele, apontando a arma.
– Espera – disse Daniel, soando desesperado e assustado. – Mata-me se
quiseres. Mata a Hannah. Não quero saber. Mas poupa a bebé. Por favor.
Leva-a contigo.
Cassie abanou a cabeça.
– Desculpa, mas essa coisa é apenas um peso morto.
– Nesse caso – Daniel atirou-lhe a gaveta –, apanha.
Cassie disparou. A madeira explodiu no ar. Hannah gritou antes de
perceber que a gaveta estava vazia. Enquanto Cassie falava, Daniel deve ter
retirado Eva com cuidado e deitado atrás do sofá.
Naquele momento, ele lançou-se para a frente e agarrou na arma que
tinha deixado pousada na almofada. Cassie voltou a apontar, mas Daniel
disparou primeiro. As balas atingiram Cassie no estômago. Ela balançou e
cambaleou para trás. Daniel disparou outra vez. Cassie foi contra a parede
do barracão e gradualmente deixou-se cair até ao chão, a arma escorregando
da mão dela, os olhos muito abertos e surpreendidos.
Hannah levantou-se e saiu da cozinha. As pernas dela estavam a tremer.
Daniel estava sobre o corpo de Cassie. Hannah podia ver que ela estava a
esvair-se em sangue, mas ainda respirava, com dificuldade. Daniel ficou a
olhar para ela.
– O meu avô também me ensinou a disparar. E sabes o que mais me
ensinou? Se o cemitério está cheio de pessoas insubstituíveis… o inferno
está cheio de cabras de merda como tu.
E depois ergueu a arma e baleou o rosto de Cassie.
Meg
Pela fresca, ele já estava pronto. Fato e botas de neve, máscara, óculos de
proteção, bússola, uma mochila cheia de ferramentas e um trenó que ele
teria que arrastar até à estação do teleférico para levar o gerador de volta
para baixo. Oh, e uma arma totalmente carregada. Só para o caso de…
– Sabes o que tens de fazer? – perguntou Miles.
Carter acenou com a cabeça. Eles já tinham revisto o plano várias vezes.
– Desligar o gerador. Não danificar nada. Verificar se há botijas de gás.
Além disso, deve haver outra bateria de reserva. Se parecer boa, trazê-la
também.
– Certo. – Miles olhou para Welland. – Certo?
Welland resmungou e acenou com a cabeça.
– Parece-me bem.
Carter olhou-o com frieza.
– Uau. Podes repetir-me aquele conselho técnico? Foi um pouco
detalhado de mais na primeira vez. Afinal, tu é que és o perito.
– Ei, eu não estava encarregado da estação do teleférico. – Welland olhou
de volta para ele. – É tudo muito simples. – Ele esfregou a barriga. – Tenho
de ir. Preciso mesmo de ir cagar.
Ele virou-se e foi andando. Carter soltou um longo suspiro.
– Um dia, terei uma boa justificação para o matar.
– Mas hoje não – disse Miles de forma enérgica. – Ainda precisamos dele.
– Ainda precisamos? A sério?
Miles olhou-o com curiosidade.
– Está tudo bem?
Carter olhou para ele. Não. Mas podia esperar, pensou ele.
– Ótimo. Espetacular.
– Carter, eu sei que não queres fazer isto. E eu sei porquê…
– Já disse, está tudo bem. E provavelmente está na hora, não está?
De confrontar aqueles demónios. Pôr os fantasmas a andar. Essas tretas
todas.
– Sim. – Miles acenou com a cabeça. – São mesmo tretas. – Ele olhou
para Carter com um olhar gelado. – Lembra-te só, se me desiludires, os
demónios serão a menor das tuas preocupações.
Hannah
Sean ia à frente. Meg seguia-o. Ela tinha-o deixado recuperar a sua arma.
Ela manteve a dela na sua posse. Eles não sabiam ao certo se não haveria um
assassino escondido aqui fora. E ainda não confiavam completamente um
no outro. Quem estás tu a tentar salvar? Mas ele era tudo o que lhe restava.
Sean empurrou a porta de uma saída de emergência e eles voltaram para o
frio gelado. No interior não estava propriamente quente, mas Meg tinha-se
esquecido de como aquele vento era agreste lá em cima, na montanha.
Chicoteava-os, retirando-lhes o fôlego, arranhando e puxando os seus
corpos envoltos em roupas de neve como se estivesse a tentar derrubá-los da
face rochosa da montanha.
Meg deu por si a desejar ter botas de mergulhador, revestidas com
cimento, para a manter firmemente fixada ao chão. Ela curvou a cabeça,
mantendo-se perto de Sean, usando-o como um escudo humano ao
dobrarem a esquina.
Aqui, o vento diminuiu, a sua fúria foi abafada pela estrutura cinza do
edifício da estação. Meg levantou a cabeça e viu que Sean estava a dizer a
verdade sobre uma coisa. Havia uma moto de neve suja vermelha e azul,
com o número «1» estampado no motor, estacionada no exterior de um
pequeno edifício com um sinal que dizia Manutenção. Eles caminharam em
direção a ela.
– Tem gasolina – disse Sean.
– Como é que sabes?
– Verifiquei.
– Então porque é que ainda estás aqui?
– Descobre o problema.
E, de repente, Meg descobriu.
– Não há chave na ignição.
Ela olhou para o barracão de manutenção.
– Já procuraste lá dentro?
– Não. Pensei em ir beber uma cerveja e esperar que aparecesse uma
mulher e sugerisse algo óbvio.
– É o que os homens costumam fazer. – Meg sorriu docemente para ele. –
Mas não fazia mal procurar outra vez.
Ela empurrou a porta e entrou.
O barracão de manutenção era obviamente um armazém para muita
porcaria. Meg percebeu imediatamente o que tinha acontecido às motos de
neve 2 e 3. Tinham sido desmontadas, havia várias peças assentes numa
grande mesa de trabalho no centro do espaço, juntamente com uma série de
ferramentas. Alguém tinha tentado repará-las ou usar as peças para outra
coisa.
Meg olhou em volta. Havia fardas de manutenção e um par de casacos de
esqui sujos pendurados nas paredes, juntamente com mais ferramentas. Ela
apalpou os bolsos das roupas sujas. Vazios. À sua direita estavam dois
armários altos. Meg abriu o primeiro. Lá dentro, dois conjuntos de esquis e
bastões.
– Sabes esquiar? – perguntou ela a Sean.
– Não muito bem. E tu?
– Pessimamente, mas talvez consiga percorrer uma curta distância sem
cair.
– Desde que o teu destino seja a descer.
– Pois. É isso. – Ela voltou-se para os armários. Sean apoiou-se no outro
lado da mesa de trabalho.
– Não desistes, pois não? – disse ele.
– Pensei que sim. Mas estava errada.
Ela alcançou o segundo armário e abriu a porta.
– Antes que tenhas grandes esperanças – disse Sean. – Não está aí.
Meg ficou a olhar para o interior. Havia chaves penduradas em cavilhas
rotuladas: Gerador, Armazém, Neve 2, Neve 3. A cavilha final estava vazia:
Neve 1.
Meg ficou a olhar para ela, algo a martelar-lhe na cabeça. E depois
lembrou-se. Neve 1. O porta-chaves que estava no bolso dela. Claro.
– Eu tenho-a aqui – disse ela.
– O quê?
Ela remexeu no seu bolso cheia de entusiasmo.
– Tirei um porta-chaves do tipo morto na sala de controlo. Não sabia
o que era.
– Tens a chave da moto de neve?
– Sim!
Ela virou-se. O sorriso dela desvaneceu-se. Sean estava de pé, a arma dele
apontada ao peito dela.
– Eu sabia que valia a pena esperar por ti. – Ele fez sinal na direção da
arma que ela tinha na mão. – Pousa isso devagarinho na mesa.
Meg hesitou.
A expressão dele esmoreceu.
– Por favor.
Relutantemente, ela colocou a arma em cima da mesa.
Sean estendeu a mão.
– Agora, dá-me a chave.
– Nunca me ias deixar ir contigo, pois não? – disse Meg. – Foi só um
estratagema para me apanhar desprevenida.
– Basicamente.
– E agora vais matar-me.
– Não. Tu dás-me a chave. Eu amarro-te aqui dentro para poder fazer o
que preciso de fazer. Depois volto.
– Se não fores morto primeiro. – Meg olhou para ele em desespero. – O
professor pode já estar morto, Sean. Já pensaste nisso? Tudo isto pode ser
em vão.
Ele anuiu.
– Verdade. Mas eu fiz uma promessa à minha irmã e tenho de a cumprir.
Agora, dá-me a chave.
Ela tentou novamente.
– Não me amarres. Eu vou congelar aqui dentro. Não posso ir atrás de ti
se levares a moto de neve. Por favor…
Sean suspirou.
– Eu gostaria de concordar, mas tu própria admitiste, tu não desistes.
Acho que ainda tentarias impedir-me.
Meg olhou para ele, os olhos marejados de lágrimas.
– Sim. – Os ombros dela descaíram em sinal de derrota. – Podes crer.
Ela pontapeou a mesa de trabalho. Esta voltou-se e bateu em Sean,
desequilibrando-o. A arma dela voou da mesa e bateu no chão. Meg
agarrou-a e fugiu em direção à porta, saindo para o meio do ar gelado. Ela
olhou para a sua direita. A moto de neve. Ela correu para ela. Ouviu-se um
tiro atrás dela e algo lhe acertou no ombro, desequilibrando-a. Ela caiu no
chão, com o ombro a arder. Merda.
Sean apareceu à porta. Ignorando a dor no ombro, Meg rolou e disparou
uma bala. A madeira estilhaçou-se perto da cabeça dele.
– Foda-se! – Ele voltou para dentro.
Meg pôs-se de pé e tentou correr pela encosta, ainda que a cambalear, em
direção a um pequeno bosque de abetos. Ela agachou-se atrás de uma das
árvores e espreitou por detrás do tronco. Viu a porta do barracão a abrir-se,
Sean usando-a como escudo.
– Meg! – gritou ele. – Não sejas estúpida. Não devíamos estar a lutar um
contra o outro.
– Está bem! – gritou ela de volta. – Então deixa-me levar a moto de neve.
– Eu tenho uma ideia melhor. Deixa-me levá-la e talvez ambos possamos
sair vivos disto.
– Não pode ser.
– Porquê? Não podes salvar a Sarah, Meg. E, mesmo que pudesses, a tua
filha continua morta.
A raiva subiu-lhe à garganta.
– Vai-te foder. Achas que matar outro homem vai trazer a tua irmã de
volta?
– Não, acho que lhe vai trazer justiça. Ele tem de pagar.
– E se outras pessoas tentarem impedir-te? Vais matá-las também?
Quantos mais têm de morrer para que se possa fazer justiça?
Um longo silêncio. Meg agarrou a arma, os seus dedos dormentes de frio.
O ombro dela latejou, sangue a escorrer pelo seu fato de neve. Demasiado
sangue. Foda-se.
– Meg – disse Sean num tom mais suave. – Se tentares alcançar a moto de
neve, sabes que vou ter de te matar.
– Idem.
Ela ouviu-o a rir amargamente.
– Então, estamos num impasse.
– Acho que sim.
Uma longa pausa.
– O que vamos fazer em relação a isso?
Meg olhou para o barracão de manutenção e depois de novo para a moto
de neve. Apenas um deles iria sobreviver. Ou nenhum.
Ela tomou a sua decisão. Levantou-se, rodeou a árvore, apontou
e disparou. Duas vezes.
A segunda bala atingiu o seu alvo. O tanque de gasolina da moto de neve
rebentou numa explosão ensurdecedora de chamas alaranjadas e azuis. A
força e o calor, mesmo a esta distância, fizeram Meg recuar, protegendo o
seu rosto. Ela sentiu o seu cabelo encrespar. Cacos de metal derretido
feriram-lhe a pele. Depois, uma segunda explosão derrubou-a totalmente.
A gravidade arrebatou-a, empurrando-a pela encosta íngreme e nevada,
fazendo-a escorregar cada vez mais rápido em direção ao precipício da
montanha. Meg tentou virar-se e diminuir a velocidade, cravando os
calcanhares, tentando fincar-se na neve. Os pés escorregaram para fora do
precipício no momento em que as suas mãos conseguiram agarrar uma
pequena saliência da rocha.
Cristo. Ela ficou ali deitada por um momento, os pés pendurados no ar.
Depois, cautelosamente, rastejou, saindo do precipício. Ela olhou para trás.
Uma queda íngreme, e nada além de céu, o Sol escondendo-se lentamente
atrás das montanhas. O tejadilho do teleférico brilhava à distância.
Enquanto Meg observava, pensou ter visto uma mancha escura no interior.
Sarah?
Meg sentiu algo dentro de si a doer e a dissipar-se. Ela voltou-se para trás.
A sua arma estava meio enterrada na neve. Pegou nela e levantou-se. De
pernas trémulas, ficou de pé, lutando contra o vento, o ombro ainda a latejar,
a arma bem segura na sua mão. Pronta.
Sean aproximou-se através da névoa de calor reluzente da explosão. Ele
parecia diferente, rosto distorcido pela névoa, pele escurecida pelo fumo.
Cambaleou pela encosta e parou a uma curta distância, ofegante, a arma
junto ao corpo.
Ele olhou para ela com os olhos raiados de sangue.
– Porquê? Porque explodiste a nossa única hipótese de fuga?
– Alguém tinha de te impedir de fazeres mal a mais pessoas.
– Por que raio te preocupa isso?
– Porque… – Meg lutou para encontrar as palavras, forçando-as a sair
contra o vento e a dor. – Porque só nos resta a preocupação. Se pararmos de
nos preocupar, com a vida, com as outras pessoas, quem somos nós? Em que
é que nos tornámos?
Sean abanou a cabeça.
– Sempre soube que eras um dos bons da fita… e, sinceramente, isso é
uma grande chatice.
Eles olharam um para o outro. Um determinado a matar. O outro a
retribuir. Talvez fosse suposto acabar sempre desta forma. Com sangue e
balas.
– Sabes que vais sangrar até à morte se esse ombro não for tratado – disse
Sean.
Meg acenou com a cabeça.
– E tu estás fraco e exausto. Vais morrer de fome e de frio nesta montanha
antes de chegares sequer perto do Retiro.
– Parece que estamos então ambos fodidos.
– Parece que sim.
Os olhos dele encontraram os dela.
– Eu não te quero matar, Meg.
– Eu sei. – Ela levantou a sua arma. – Quem me dera poder dizer o
mesmo.
Sean disparou. Uma, duas, três vezes. Meg sentiu as balas perfurarem o
corpo, pequenas erupções de fogo. Ela sorriu. Os seus pés levantaram-se da
encosta da montanha e depois ela começou a cair. A cair e a cair.
Uma mão apanhou a sua.
Ela virou-se. Lily flutuava ao lado dela. Já não de vestido amarelo, mas
com um de flocos de neve brancos.
– Está tudo bem, mamã. Já te tenho.
Meg apertou a mão da filha.
– Eu sei, querida. E nunca mais te vou deixar outra vez.
Elas aproximaram-se uma da outra. O céu corria à volta delas. O mundo
passou a ser branco.
Meg enterrou a cara dela nos caracóis macios da filha.
– Lamento ter demorado tanto tempo – sussurrou ela. – Tive alguns
afazeres.
Carter
Ela era tal e qual como ele se lembrava: cabelo escuro emaranhado, rosto
ensanguentado, mas determinado. Havia mais sangue a manchar o seu fato
de neve azul. Em vários pontos havia buracos esfarrapados onde as suas
balas tinham penetrado o tecido.
– Eu realmente não te queria matar.
Meg encolheu os ombros.
– Se te serve de consolo, eras tu ou eu.
– Sim.
– E deveria ter sido eu, obviamente.
– Eras um dos bons da fita.
– Mas não uma sobrevivente.
– Tu querias impedir-me. Eu tinha de o encontrar.
– E encontraste. E agora?
– Vou matá-lo.
– E depois? Onde termina?
– Quando ele estiver morto.
Ela sorriu tristemente.
– Continua a enganar-te a ti próprio, Sean.
E depois ela desapareceu, dissolvendo-se em pó que assentou no chão.
Nada restava dela agora, exceto na sua mente, onde ela vivia com os outros:
Peggy, Hannah, Lucas, Anya – e mais. Havia sempre mais. Muito sangue
debaixo da ponte.
Depois da morte de Meg, ele tinha considerado, por um breve momento,
segui-la e cair pelo precipício. Mas o instinto de sobrevivência era
demasiado forte, a necessidade de terminar o que tinha começado
demasiado grande. Ele tinha chegado até aqui. Se o caminho para o inferno
está assente em boas intenções, é também uma rua de sentido único. Não
tem regresso.
Ele tinha voltado a subir a encosta da montanha e entrado no barracão de
manutenção. O frio já estava a penetrar no seu fato de neve. Ele sabia que
precisaria de camadas de roupa extra para ter alguma hipótese de sobreviver.
Agarrou num dos casacos de esqui sujos pendurados no gancho e vestiu-o.
Havia um nome cosido na lapela.
P. Carter.
A certa altura, depois do seu salvamento, Miles tinha perguntado o que
significava o «P».
Ele tinha sorrido.
– Não importa. A maioria das pessoas só me chama Carter.
Um novo nome, outra nova vida. Mas uma coisa não mudou. O seu
desejo de vingança.
Carter tinha sido paciente. A prisão tinha-lhe ensinado isso. Ele tinha
esperado, recuperado, readquirido as suas forças, aprendendo a viver com o
que restava do seu rosto. Tinha descoberto tudo o que podia sobre o Retiro,
tinha tentado tornar-se útil, para ganhar a confiança de Miles.
E tinha funcionado.
Eventualmente, Miles tinha-lhe contado a verdade sobre a Câmara de
Isolamento 13.
Para alguns significa azar. Mas para Carter era uma espécie de feliz
coincidência.
Porque Carter esperou treze anos para matar o homem preso lá dentro.
E agora estava quase na hora.
O DIABO JÁ FOI
UM ANJO OUTRORA
1
O RETIRO
Propriedade do DRIFT
(Departamento de Revista
em Infeção e Futura Transmissão)
Carter olhou para o sinal degradado. Depois puxou o braço para trás e
atirou-o para o mais longe que pôde. Porra, detestava a merda dos
acrónimos.
Ele aproximou-se da porta e inseriu o código. Não se abriu. Ele tentou
novamente. A porta continuava a não ceder. Ele arrancou as luvas com os
dentes e tocou no teclado mais uma vez, para o caso de alguma forma ter
inserido o código errado. A porta permaneceu trancada. Mas que merda é
esta? Carter olhou para o teclado, como se este estivesse a gozar
deliberadamente com ele. Um problema de energia outra vez? Mas isso
normalmente destrancava as fechaduras. A não ser que Welland tivesse
estragado alguma coisa, o que era uma grande possibilidade. Irritado, Carter
bateu furiosamente à porta com os punhos.
– Ei! Welland! Miles! O teclado está estragado. Podem deixar-me entrar?
Ele esperou. Nada. A porta era pesada. Talvez ambos estivessem na cave
ou noutra parte do Retiro. Carter praguejou e pontapeou a porta. Foda-se.
Ele deu um passo atrás e olhou em volta. Estava cansado e com fome.
Precisava de entrar. Mas o Retiro era totalmente fechado. Não havia maneira
de entrar ou sair.
Carter foi até à frente do edifício. Ele conseguia ver o azul cintilante da
piscina através da janela de vidro. Acima dele, a área do terraço e a enorme
janela de vidro redonda da sala de estar. Deu vários passos atrás e esticou o
pescoço. Ele não conseguia ver o interior da sala, mas… franziu o sobrolho.
Havia luzes acesas lá dentro? Sim. Definitivamente. O que devia significar
que a energia estava de volta ou que Welland tinha arranjado o gerador. De
qualquer forma, se a energia estava ligada, porque é que a porta da frente
não estava a abrir?
Carter voltou para trás e olhou para a porta. Na realidade, só havia mais
uma explicação. Alguém tinha mudado o código. Ele bateu na porta
novamente, por vários segundos, gritando e pontapeando, alto o suficiente
para «acordar os mortos», como o seu avô costumava dizer. Mesmo assim,
sem qualquer resposta.
– Que se lixe isto.
Ele recuou, sacou da arma e disparou para o teclado de segurança.
O plástico saltou; os fios elétricos rebentaram. Carter empurrou a porta.
Desta vez, abriu. Carter entrou no átrio, a arma ainda apontada. Vazio.
Silencioso. Empurrou a porta com o pé. Se tivesse cometido um erro, seria
um inferno aturar Miles por ter fodido a porta da frente, mas Carter não
achava que fosse. Algo aqui estava errado. Carter quase conseguia apalpar o
mau pressentimento no ar.
Ele arrancou os óculos e a máscara, retirou as botas e em silêncio despiu o
fato, largando-o no chão, mantendo sempre a sua arma firme numa mão. Ele
dirigiu-se cuidadosamente até às escadas em espiral e subiu-as, tentando não
respirar ruidosamente. Lá em cima olhou em volta, com a arma apontada
para a sua frente. O coração de Carter saltou-lhe para a boca. Foda-se.
Um corpo deitado, de barriga para baixo, no meio da sala de estar.
Volumoso, vestido com uma T-shirt muito manchada de sangue e calças de
ganga largas, um emaranhado de cabelo frisado espetado para cima, mais
sangue acumulado debaixo dele.
Welland.
Parecia que ele tinha sido baleado várias vezes. Carter tinha desejado
muitas vezes este momento, mas agora, olhando para o corpo de Welland,
não sentia nenhuma satisfação. Apenas piedade. E perplexidade. Só uma
pessoa podia ser responsável. Mas porquê?
Teria Miles descoberto que Welland tinha entrado nas câmaras? Matá-lo
por isso parecia um pouco extremo, mesmo para Miles. Talvez Welland
tivesse atacado Miles e este tivesse sido forçado a matá-lo em legítima
defesa. Mas, vendo bem, não se baleia alguém pelas costas quando é em
legítima defesa. E se Miles tivesse mesmo matado Welland, porquê deixá-lo
aqui deitado? Miles odiava desarrumação.
Carter franziu o sobrolho. Isto não estava certo. E deu pela falta de outra
coisa. Dexter. Onde estava o cão? Carter tinha um pressentimento muito,
muito mau sobre isto.
Ele virou-se e voltou a descer silenciosamente as escadas. Pensou verificar
a área da piscina, mas o seu instinto sabia onde iria encontrar Miles. Lá em
baixo, na cave.
Carter foi até ao elevador. Mas não carregou logo no botão. Tinha
dúvidas. Será que ele queria mesmo fazer isto? Talvez devesse sair daqui
enquanto podia. Mas para onde iria? Quinn dificilmente o iria ajudar a fugir
e Carter não queria correr riscos com os Whistlers e o que mais andasse por
aí a vaguear nos bosques.
Só havia um caminho a seguir.
E de certeza que não era para cima.
Carter chamou o elevador. As portas abriram-se de imediato. Ele entrou e
retirou o seu próprio passe do bolso escondido nas calças de ganga.
Pressionou-o contra o painel. O elevador deslizou suavemente para baixo. O
coração dele bateu. As portas abriram-se.
Com a arma apontada, Carter entrou no corredor frio, já familiar.
A iluminação estava de novo ligada. Brilhante, branca, estéril. Fê-lo sentir-se
desprotegido. Ele avançou cautelosamente, espreitando as divisões enquanto
passava. Vazia, vazia, vazia. Ao aproximar-se do fim do corredor, apercebeu-
se de um barulho. Um som estranho, um grunhido. Mesmo à distância, fazia
o seu estômago revirar-se. Carter dobrou a esquina e parou. A porta para as
câmaras de isolamento ainda estava aberta. O barulho vinha lá de dentro.
Carter segurou bem a arma, avançando devagar, com o coração a bater.
Alcançou a entrada. Daqui podia ver que as portas de todas as câmaras
estavam novamente abertas. Foda-se. Que diabo se passava com os
comandos do sistema? Foi por isso que Miles tinha matado Welland? Para
os dominar?
Ele entrou. O som gutural era mais alto. E familiar. Carter conseguiu ver
que a Câmara 3 estava vazia. Aproximou-se da Câmara 4 com um péssimo
pressentimento e olhou lá para dentro.
Caren estava deitada na cama, sedada, quase inconsciente. O seu macacão
tinha sido puxado até aos joelhos e o Reserva 03 estava deitado sobre ela, o
seu próprio macacão azul em redor dos tornozelos, as suas nádegas brancas
oscilando energicamente para cima e para baixo.
Carter não esperou, não pensou. Foi na direção dele, agarrou 03 pelo
cabelo oleoso e arrastou-o, atirando-o para o chão. 03 gritou de fúria,
impotente. Carter levantou a arma e baleou-o na zona genital. 03 uivou e
encolheu-se, agarrando-se à amálgama sangrenta entre as suas pernas.
– Ai é? Vê se gostas disto, seu sacana nojento! – Carter disparou outra vez
e rebentou com a rótula esquerda do 03, depois com a direita.
O Reserva 03 chorou e gritou. Havia sangue a jorrar dos seus joelhos
desfeitos, formando poças no chão. Ele ia sangrar até à morte em agonia.
Com alguma sorte.
Carter aproximou-se de Caren. Ele pegou num cobertor que estava aos
pés da cama e cobriu-lhe o corpo. Os olhos dela tremeluziram. A respiração
dela estava fraca. A pele dela já parecia pálida.
Carter acariciou-lhe o cabelo.
– Vai ficar tudo bem. Eu vou tratar disto.
Mas, se ele o fizesse, acabaria mesmo. Acabar-se-iam as reservas. Para
eles. Ou para Quinn.
Que se lixe.
Carter encostou o cano da arma suavemente à cabeça de Caren e puxou o
gatilho.
Depois, ele virou-se, deu um pontapé na virilha do 03 e saiu de novo para
o corredor.
Só restava uma câmara.
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