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COPA JUNGLE
Romance
HEITOR HERCULANO DIAS
2017

Proibido divulgar ou reproduzir esta obra, total


ou parcialmente, sem expressa permissão do
autor.
@ Heitor Herculano Dias
2017
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Neste livro, como nos demais que


ousei escrever, trago muitas coisas
de mim como se fossem pedras em
que tropecei ou flores que recolhi.
HHD
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COPA JUNGLE
Heitor Herculano Dias
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1
― Bom-dia, Doutor! — Bom-dia —
Cardoso devolve a mecânica saudação a dona
Dulce, a secretária, sem esquecer, como faz
todas as manhãs ao chegar no escritório de
Pimenta & Cardoso de Albuquerque
Advogados, do seu ligeiro toque com a ponta
dos dedos médio e indicador na pequena
imagem de Nossa Senhora da Aparecida
afixada num pedestal de madeira, logo à
esquerda de quem ingressa em sua sala
privativa.

Deixando a porta entreaberta, fala alto


enquanto dependura o paletó no cabideiro ao
lado da longa e imponente estante lotada de
códigos e encadernações diversas, enfeitada
com meia dúzia de molduras em aço escovado
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e madeira envernizada, de tamanhos variados,


todas elas com instantâneos fotográficos em
preto e branco. Completam o conjunto duas
flâmulas com inscrições latinas e as armas do
Vaticano.
— O Gouveia ligou?
— Ligou não senhor — a resposta de
dona Dulce vem junta ao tilintar de xícaras e
colheres desde a pequena copa.
“Mal sinal, mal sinal!”, ele resmunga, liga
o computador sobre a ampla mesa de trabalho e
tosse alto repetidamente. Enquanto retira os
pesados óculos para clareá-los, assalta-lhe o
pensamento aquela cara larga e sorridente da
moça da ótica. “Até que bem simpática pra
falar a verdade, mas querendo porque querendo
me vender umas armações que devem valer os
olhos da cara porque seriam italianas! Tudo
agora, pra ter seu charmezinho, tem que ser
italiano!”
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Duas ligeiras batidas com nós de dedo


anunciam-lhe a entrada da secretária com
cafezinho, água gelada e adoçante.
— Muito obrigado — agradece e adita
antes que dona Dulce alcance a porta:
— Tente mais uma vez, por favor,
encontrar o doutor Gouveia, e me veja as
cópias daquele arquivo da Companhia Alterosa.
— Pois não, Doutor — a secretária dá
meia volta e o olha por cima dos óculos de
leitura seguros por uma correntezinha dourada
que lhe desce por sobre o avantajado busto até
se prender a um broche dourado em forma de
alfinete.
“Temos que fisgar esse malandro do
Gouveia o mais tardar antes de virar o mês,
ainda mais se a cervejaria roer a corda, como
desconfio que vá roer”, Cardoso se põe a
meditar enquanto mexe com vagar o café.
Soa o interfone,
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— Doutor Cardoso, sua esposa na dois —


avisa dona Dulce.
— Obrigado, pode passar.
— Sim, meu bem — atende ao chamado e
se aconchega ao alto e macio encosto da
cadeira de trabalho forrado em napa verde
musgo.
— Alô, meu bem, sabe o que é? — vem a
voz pausada e solene de dona Maria Eduarda
ao telefone.
— A Beth acabou de me telefonar e disse
que vai precisar de um favor enorme da gente,
aliás, mais de você mesmo.
— Diz.
— Benzinho, é que a Belinha tem uma
festinha de aniversário de uma coleguinha dela
lá na Ilha do Governador, sábado agora.
— Na Ilha do Governador? E ... e você
conhece a menina, a família dela? — Cardoso
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solta as palavras de um jeito de quem


reconhece estar repetindo uma fórmula bastante
conhecida, não apenas pela esposa como
também pela filha Beth.
— Sim, sim, sei quem são. Os padrinhos
dela fizeram cursilho comigo no tempo do
padre Lima, lembra deles não?
— Isso já tem algum tempo, amor! —
com delicadeza na voz, busca sinalizar para a
esposa a necessidade de ir-se diretamente ao
favor em questão, enquanto em sua sua mente
já deslizam lembranças dos mais variados
pleitos anteriormente feitos pela filha.
— Pode deixar que eu boto a mão no fogo
pela família da Mônica, amor. Quanto a isso...
— O que tem essa festinha com o que a
Beth quer da gente? — Cardoso fala e coça o
topo da cabeça,onde escassos cabelos brancos
e revoltos não logram ocultar de todo a lustrosa
calva queimada de sol.
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— É que, bom..., se você não tiver nada


assim de urgente pra fazer no sábado, sabe? O
carro dela tem que voltar pra revisão, e ela quer
saber se podia usar o seu pra levar a Belinha na
festa.
— Sábado agora?
— É, benzinho, ela diz que é.
Ele faz uma pausa para bebericar o café.
— E a que horas a Beth quer o carro, ela
disse?
— Falou que podia ser lá pelo meio-dia
mais ou menos.
— E volta a que horas, você sabe? —
indaga antes de mais outra dose do cafezinho,
cujo gosto começa de repente a lhe desagradar.
“Essa dona Dulce me está querendo
economizar no pó, mas eu nunca falei pra que
ela me fizesse essa verdadeira água de batata.
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Tenho que me lembrar de dizer-lhe isso”,


raciocina com uma careta de repulsa.
— Parece que é um churrasco. Vai levar a
tarde inteira, mas a Beth garante que não volta
tarde da noite, não.
— Está bem, mas de qualquer maneira
pede a ela pra ligar pra mim, tem uns macetes
no alarme que preciso explicar pra ela, e o
limpador do para-brisa do lado esquerdo
emperra de vez em quando.
— Falo com ela, Luizinho, pode deixar
— Maria Eduarda adoça o agradecimento em
nome da filha empregando o tratamento
carinhoso que dá ao marido.
— Certo, amor, agora deixa eu trabalhar
— ele proclama o final da conversa.
— Beijinho, amor, te cuida. Fica com
Deus e Nossa Senhora, ouviu?
“Essa minha filha bem que merecia um
pouco de descanso, coitada. Tudo em cima
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dela, aquele conversa-fiada do Pedro Henrique


podia aparecer mais pros filhos. Está aí uma
hora em que não custava nada dar uma carona à
Belinha, ainda mais que ele está de carro zero
que eu sei”, Cardoso rumina queixas ao
descansar o telefone.
As meditações sobre assuntos familiares
são interrompidas pelo sinal de chamada do
telefone interno.
— Doutor Cardoso, o senhor Saldanha —
avisa a secretária.
— Muito bem, leve-o pra sala de reuniões
e sirva o cafezinho — dá as instruções antes de
se erguer, observando com ternura uma foto na
na estante onde Beth aparece sorrindo ao lado
dos filhos Eduardo e Maria Isabel.
“Família, o que é um ser humano, afinal
de contas, nesta vida, sem ela, a família? Deus
e família é tudo do que o homem carece nesta
curtíssima vida. Sem esses dois pilares, melhor
o sujeito meter a cara num buraco qualquer e
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deixar que os vermes o comam o mais


rapidamente possível”, e com estas deduções
reconfortando o pensamento o advogado Luis
Armando Cardoso de Albuquerque se
encaminha para a sala de reuniões.

2.
— Cumé que é, mermão? Demorô! —
Pestinha Um saúda Pestinha Dois, recém chega
do ao pequeno cômodo desprovido de janelas
com laje de concreto e tijolos nus. Utilizado em
outros tempos como garagem, o cubículo vive
hoje abandonado, dividindo parede de um lado
com os destroços daquilo que outrora foi um
estabelecimento comercial, ora identificado
unicamente pelo que resta de um cartaz de
calçada bastante incinerado mostrando partes
de nomes do que seriam sanduíche encimados
pelo logotipo Seven Up em verde e branco. O
restante da finada tendinha é composto por
quatro pilares e restos de esquadrias e portas
enegrecidas com sinais de pintura na cor azul,
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além de alguns monturos de tijolos queimados


e matérias não identificáveis distribuídos por
um piso nodoso onde o capim prolifera.
— Que qui tá rolando no pedaço? — quer
saber Pestinha Dois.
— Tudo cabuloso! E você, liberado geral
ou pinote? — Pestinha Um pergunta a coçar a
genitália por sobre a larga bermuda amarela.
— Pinote, semana passada, vazamos eu e
mais uns cinco.
— Sinistro, cara! Fazendo o quê aqui?—
Pestinha Um sorri um sorriso de criança velha.
— Ah... Pestinha Três ficou de pintar, tá
cuma kombosa massa. .Anda numas parada
sinistra pela Brasil, tá ligado?
— Ferro novo, fita forte, ou o quê?
— O que pintar, a mando do pessoal de
cima, mas tem vez que dá pra arrastar uma
mina até aqui pra rolar um sentimento.
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— Tô ligado, vi dizer que quando chove


tem pessoal que se dá bem na Brasil —
Pestinha Um dá uma cusparada encatarrada por
entre os dentes podres.
— Pô! Que isso, mané? Precisa chover,
não! Maluco taca prego em pneu, faz que bate
um lero com o otário do volante e passa o rodo
geral no que tiver na caranga! Neguinho dando
sorte pega bagulho e ainda come uns anel!
— Tô a fim dum bec, tem um aí? —
Pestinha Dois fala e se espreguiça sob o céu
azul.

3.
Na praça José de Alencar é que o tráfego
pára de vez mesmo, sem que o estardalhaço das
buzinas e a aceleração exagerada dos ônibus
possa contribuir para algum veículo avançar
um metro que seja. Dentro do táxi Emílio não
tem mais posição em que variar no banco
traseiro, porque, por mais que estique ou cruze
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as pernas e tente relaxar a coluna vertebral, não


se livra do arrependimento em ter aceitado
dormir com Nely. Onde já se viu um casal
separado já lá se vão mais de cinco anos, de
repente resolver emendar uns chopinhos com
uma noite na cama?
“Na verdade ela continua com tudo no
lugar, os peitinhos ainda miúdos que nem de
adolescente e a bundinha sem dar sinal de que
vai despencar, detalhes importantíssimos pra
pelo menos neutralizar aquele seu hálito meio
azedo, uma coisa de que a Nely sempre
padeceu, coitada.
“O diabo é que logo hoje eu não poderia
chegar muito tarde ao escritório porque o
Saldanha prometeu aparecer com todos os
livros a fim de pelo menos amainar as nossas
preocupações. Uma coisa bem chata, essa. Não
devia ter aceitado dormir com a Nely. Aquele
seu apartamentozinho, além de quente, fica
contramão pra cachorro”, Emilio põe-se a
remoer seus lamentos dentro do abafado táxi.
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— Parece que é protesto dos professores


— diz o motorista olhando-o pelo retrovisor.
Ele finge não ter ouvido o comentário,
cada vez mais preocupado com o grande atraso,
agora certo, porque afinal de contas, além de o
Cardoso ser um amigão, mas não meramente
um sócio de escritório, a verdade é que os dois
deixaram a coisa correr frouxa por muito tempo
se esquecendo que a contabilidade da banca é
matéria de primeiríssima importância.
Adianta nada faturar altos honorários de
uma clientela fixa mas esquecer do aluguel do
conjunto, leis trabalhistas, que por sinal lhes
estão sugando os olhos da cara, e isso com
apenas um empregado, a dona Dulce, além
daquele condomínio que está muito mais pra
qualquer um desses moderníssimos prédios de
luxo da praia de Botafogo, por exemplo, do que
para o edifício jurássico da Álvaro Alvim.
“Não posso me esquecer de falar isso com
o Cardoso. Nosso condomínio está muito caro”
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— O quê mesmo, Doutor? — o taxista se volta


no banco para encará-lo.
— Nada, não. Falando comigo mesmo.
Essa bagunça aí está é me deixando doido.
Olha, faz o seguinte: vê aí quanto devo, melhor
saltar e andar até o Metrô.
— Metrô, Doutor? Tão de greve, sabia
não? — alega o motorista.
— Hoje não é o meu dia mesmo! Em
greve, o Metrô? — geme mais do que fala e se
remexe no banco para sacar a carteira do bolso
traseiro das calças.
“Só tem um jeito: eu pular fora aqui
mesmo e tentar outro na Praia”
— Pega aqui, precisa troco, não.
Surpreso com a gentileza nada usual o
taxista procura se mostrar preocupado com a
sorte deste passageiro.
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— Mas vai fazer como, Doutor, pra


chegar até o Passeio?
— Ah, dou um jeito, quem sabe pela
Praia está melhor, ou até mesmo indo pro
Aterro.
— Aterro? Lá não para táxi, meu amigo!
— Eu me viro, se não for atropelado
chego lá — fala alto e arrisca uma gargalhada
que lhe falha por uma questão de absoluta falta
de incentivo, mesmo porque sairia num som
pífio e inaudível em meio às estrondosas
buzinas e roncos dos enfezados motores de
ônibus.
Em passos rápidos e andando num
ziguezague entre traseiras e dianteiras de veícu
los, ele atinge a larga calçada de pedras
portuguesas e entra pela rua Marquês de
Tamandaré. Caminha bem apressado, mas logo
estanca o passo para sacar o celular do bolso
interno do paletó.
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“Deixa ver como andam as coisas no


escritório. Só pelo jeito do meu bom bode
velho atender, dá pra saber se a maré está
tranquila ou se ocorre algum incêndio por lá”
Digita o número do “bom bode velho”,
como carinhosamente algumas vezes se refere
ao sócio Cardoso, mas obtém como resposta o
sinal de número fora do ar ou desligado.
Tenta em seguida o telefone fixo do
escritório.
— Pimenta e Cardoso de Albuquerque —
a voz da secretária lhe parece diferente neste
atendimento padrão. Dona Dulce diz as
palavras numa rapidez nada comum.
— Bom-dia, dona Dulce! Doutor Emílio.
O Doutor Cardoso por favor?
Bastante conhecedor do modo de dona
Dulce trabalhar, estranha a longa pausa que se
segue,
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— Alô, dona Dulce, a senhora está me


ouvindo? — eleva a voz, o celular pressionado
contra a orelha direita.
— Estou sim, perfeitamente, Doutor
Emilio — a voz da secretária traz grande
hesitação e nervosismo.
— Pois preciso falar com o Doutor
Cardoso, por favor!
— Si-sim, sim, um momentinho, Doutor
Emilio, o Doutor. Cardoso já ...
A voz trêmula da secretária é substituída
pelas palavras claras mas não descansadas
como de hábito costuma se manifestar
Cardoso.
— Olá, Emilio, muito bom-dia, bom-dia,
desculpe-me — a voz de Cardoso vem aos
solavancos. Ele apostaria que o sócio arrancou
o telefone das mãos da secretária sem atentar
para certas normas e etiquetas profissionais,
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que por sinal o “bom bode velho” se esmera


sempre em cumprir.
— Bom-dia, Cardoso, bom-dia. Olhe,
amigo, estou praticamente ilhado aqui no
Flamengo. Vou agora tentar na praia. Tive que
dispensar um táxi na praça José de Alencar
porque está tudo entupido por lá. Me perdoe
por este atraso.
— Emilio meu caro, deixa eu ligar pra
você daqui a uns cinco, dez minutinhos o mais
tardar— Cardoso mantém um tom esbaforido
enquanto ele percebe vozes nervosas ao fundo,
uma delas a de dona Dulce.
— Mas, Cardoso, me escute, o que está ...
— a pergunta intencionada fica pela metade,
decepada pelo inesperado desligamento da
ligação.
Alcançada a praia do Flamengo, Emilio
se decepciona vendo a pista rumo Passeio-
Centro coalhada de automóveis e ônibus num
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quadro nada diferente daquele que há instantes


deixou na praça José de Alencar, tudo em um
tumulto só. Acima do intermitente som de
centenas de buzinas e descargas exageradas de
ônibus, irrompe o gemido estridente e
inconfundível de sereias de dois caminhões de
transporte da Polícia Militar, lotados de
policiais, tentando progredir por entre a grande
massa de veículos estagnados.
“Então a coisa está feia mesmo em tudo
que é lugar, pelo visto”, Emilio coça a cabeça,
desnorteado.
“Só me resta uma coisa a fazer: atravessar
no meio desses carros todos, pegar a passarela
mais próxima e fazer parar um táxi em plena
pista do Aterro numa verdadeira operação
kamikaze”. Admira-se de ainda poder temperar
de humor sua situação no momento.
“No mínimo algum gaiato que me vir
acenando aqui pros táxis vai me chamar de
louco varrido ou coisa pior. Mas quem sabe se
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eu caminhar até o posto de gasolina mais


próximo tenho a sorte de encontrar algum táxi
vazio reabastecendo?”, lhe brilha na ideia tal
opção quando ouve o celular. Mas não é
Cardoso e sim a vozinha tímida e toda mimosa
de Nely.
— Emilio, liguei pro escritório e a
secretária falou que você não tinha chegado.
Está tudo bem com você?
Afasta por segundos o aparelho do ouvido
e engole em seco antes de responder.
— Está tudo bem, Nely.
— Não. Sabe o que é? A Graça ligou pra
mim não tem nem quinze minutos. Disse que
está uma confusão danada na Cinelândia,
Passeio Público, tudo por ali, que a polícia está
jogando gás e já houve até tiros ..., diz que tem
quebra-quebra com protesto dos professores, o
pessoal do Metrô ...
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— Sei de tudo isso, Nely. Ainda estou


aqui no Flamengo tentando pegar um tàxi à
unha, não posso conversar muito porque o
Cardoso está pra me ligar!
— Como o seu escritório é bem ali, na
Álvaro Alvim, … eu... — Nely fala de um jeito
de quem sabe já estar sendo dispensada de
manifestações de cuidados pela segurança do
ex-marido.
Emilio sente-se desgovernado, perdido
em seus confusos pensamentos e indecisas
vontades como um retardado mental, olhando
de um lado para outro o tráfego veloz das pistas
do Aterro.
— Nely, eu estou bem. Depois a gente se
fala — diz sem sequer notar o ruído de linha
disponível, porque do outro lado já não há mais
ninguém falando.
“Bom, mas o importante agora é eu não
perder a cabeça, tocar pra adiante”, conclui
quando recoloca o celular no bolso interno do
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paletó e alça a cabeça para aquilatar a extensão


do longo gramado que tem diante de si até o
posto de gasolina mais próximo.
Consulta o relógio. São dez e quarenta e
oito. A estas horas, seguindo sua rotina de
trabalho, já estaria no escritório há um tempão,
mas hoje tudo lhe parece estar fora dos lugares,
não apenas por este inferno em que virou o
trânsito por causa dos protestos, passeatas e
anunciados quebra-quebras, porém mais ainda
pelo que de anormal supõe estar acontecendo lá
com o Cardoso no escritório.
Caminhar sobre a tenra grama do Aterro
torna-se uma tarefa cansativa por conta das
irregularidades do terreno, que apesar de bem
tratado se apresenta pleno de aclives e declives
que não se coadunam com seus sapatos
tradicionais de sola de couro.
Justamente quando está se aproximando
da área pavimentada do primeiro posto de
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abastecimento, Emílio é alcançado por uma


nova chamada do celular
— Alô, Emilio, onde você está? — desta
vez o timbre da voz de Cardoso lhe parece
sinalizar que a calma voltou a reinar no
escritório e no espírito do veterano advogado.
— Acredite, meu amigo, mas ainda estou
aqui no Aterro catando um táxi — diz ele
buscando polvilhar com um pouco de sarcasmo
a informação, mas sem dar ao sócio tempo de
qualquer comentário, prossegue — Mas me
diga, Cardodo, o que afinal estava acontecendo
por aí? A dona Dulce me pareceu a ponto de
um ataque de histeria, e você não me disse
coisa com coisa. Eu fiquei preocupado mesmo
neste inferno de trânsito.
Vem-lhe um limpar de garganta do outro
lado da linha antes da voz de Cardoso fazer-se
ouvir com mais clareza.
— Emilio, naquela hora em que você
ligou estava acontecendo um negócio muito
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chato aqui. Você conhece um rapazinho que


atende pelo nome de Silvinho? É um que
trabalha na firma de limpeza e conservação
daqui do prédio.
— Quem? Silvinho?
— Isso! Um jovem assim cheio de
trejeitos, um mulatinho efeminado, cabelos
compridos e alisados.
“Afinal aonde quer o Cardoso chegar com
isso? O que tem esse sujeitinho, Silvinho, de
quem ele fala, com todo aquele mal-estar
esquisito que percebi anteriormente, tanto na
voz dele quanto na de dona Dulce?”, Emilio se
interroga mas de olhos fixos num posto de
gasolina agora a menos de duzentos metros
dele.
— Cardoso, eu acho que já o vi algumas
vezes no corredor e na recepção, sim, uma vez
com a dona Dulce dando instruções a ele, coisa
assim. Mas o que aconteceu afinal? Ele teve
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alguma coisa a ver com o mal-estar, me


desculpe, que senti por aí?
Há uma pausa até que Cardoso volta a
falar.
— Teve sim, mas me diga, você acha que
tem mesmo condições de vir ao escritório ainda
hoje?
Sua resposta não é dada de imediato
porque neste exato instante dois veículos
convergem com as setas a indicar que pararão
na área de atendimento do posto de gasolina, o
primeiro deles um táxi, o de trás um BMW
cinza, particular.
— Um instantinho, Cardoso, aguenta aí
um minutinho, desliga não! Acho que chegou a
salvação da lavoura — Emilio fala e sai a
largos passos ao encontro do táxi, antes mesmo
do veículo estacionar em frente a uma das
bombas de abastecimento.
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— Emilio, Emilio, o que está havendo aí?


— a voz de Cardoso sai alta e nervosa.
— Estou aqui num posto de gasolina e
pensei que dava pra pegar um táxi que vinha
chegando, mas..., si-sim, pode falar, Cardoso
— ele gira em torno de si mesmo,
decepcionado, ombros encolhidos e afastando-
se do táxi, cujo motorista lhe lança um olhar
interrogativo e zangado ao sair do veículo para
reabastecê-lo.
“Hum, aposto que ficou com medo de eu
me chocar contra o carro dele!”, Emilio
devolve o olhar ao taxista com o desprezo
necessário que esconda sua frustração.
É quando escuta seu nome gritado.
— Doutor Emilio de Assis Pimenta!
A voz, num timbre retumbante, alcança-o
no momento em que, meio desarvorado,
concentra-se atento ao celular, esperançoso de
que Cardoso não haja desligado aborrecido.
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A princípio não identifica aquele homem


de complexão robusta, camisa rosa e gravata
vinho, rosto rubicundo onde um negríssimo
bigode lhe escorre cantos da boca abaixo, olhos
ocultos por largos e modernos óculos de sol.
De pé, pelo lado interno da porta recém aberta
daquele automóvel que adentrou a área do
posto de abastecimento em seguida ao táxi, está
o Antônio, seu ex-colega de faculdade.
Confuso, Emilio hesita entre desde já se
encaminhar ao encontro dele, que de forma tão
amistosa e surpreendente clamou por seu nome,
ou continuar insistindo na continuidade do
contato telefônico com Cardoso.
— Alô! Cardoso! Alô!
Resignado guarda o celular e se dirige a
passos largos na direção de Antônio, ocultando
para si uma alegria que é dupla, muito mais
pela agora bastante provável carona do que por
um reencontro casual de ex-colegas de turma
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cujas vidas há muito deixaram de ter algo em


comum.
— Não acredito, cara! Você se lembrando
até mesmo do meu nome inteiro! — aproxima-
se com a mão estendida..
— Você se esqueceu de que depois da
faculdade ainda cursamos aquele preparatório
pra concursos, meu caro Doutor?
— Antônio retira os óculos escuros e se
afasta do carro para corresponder ao aperto de
mão e aditar à saudação um vigoroso abraço.
Emilio lamenta essas lembranças, sabe
que aquela época marcou profundamente sua
vida pela ocorrência de dois fracassos não
totalmente esquecidos. Afinal de contas, por
mais que tentasse menosprezar as provas e o
próprio cargo buscado no concurso, até hoje é
esporadicamente assaltado pelas mágoas em
não ter conseguido ingressar na magistratura.
Como se as sucessivas reprovações não
bastassem, a derrocada do casamento com Nely
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e o tenebroso episódio da serra de Teresópolis


tingem com as cores da tristeza a menção de
Antônio aos concursos para juiz de direito.
— Claro que me lembro! Claro! — ele
faz o máximo para corresponder à demonstrada
alegria de Antônio por este reencontro casual.
— Mas me admira é você se lembrar de
meu nome inteiro, Antônio. Palavra. Confesso
que do seu sei apenas o primeiro e nada mais!
— Sempre tive a facilidade de gravar
nomes e fisionomias. Tem gente que guarda
números de telefone, nomes de ruas, datas de
aniversário. Eu não, Emílio, meu negócio é
nome e tipo físico — Antônio gargalha ao
fecho da explicação, ainda mantendo parte do
abraço.
— Mas entra aí e me espera um segundo
pra eu completar o tanque — diz comboiando
Emilio rumo à vistosa BMW.
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Ele se acomoda no banco do carona para,


de imediato, todo o seu corpo se regozijar com
a deliciosa sensação de um absoluto bem-estar
proporcionada pela suave temperatura interna,
um discreto aroma de eucalipto e a maciez do
assento de alto espaldar.
“Hmm! Haja luxo! Mas preciso tentar
falar com o Cardoso. Isso está parecendo até
provocação ou pouco caso de minha parte, com
tantas interrupções”, acode-lhe a suspeita de
que alguma coisa de extraordinária sucedeu no
escritório sem que o sócio pudesse explicá-la.
Liga para o celular do sócio e amigo.
— Alô, Cardoso, nem sei mais o que lhe
dizer, mas garanto a você que agora estou
mesmo a caminho daí. Acabo de pegar a carona
de um amigo. Quando chegar conversamos,
okay?
As palavras são metralhadas através do
celular mal a voz de Cardoso é ouvida.
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— Tem problema, não, Emilio, aguardo


você — a resposta vem embrulhada num
discreto riso condescendente antes da ligação
ser concluída.
Observando através do para-brisa o perfil
de Antônio ocupado com o reabastecimento do
carro não pode afastar da memória as tristes
cenas antecedentes da tragédia. Toca com a
ponta dos dedos a macia capa envolvente do
volante, menor um pouco do que o do Fiat. A
mão esquerda de Lucimar chegou por um
tempo a segurar o volante, tentando arrebatá-lo
das suas agitadas e trementes mãos de bêbado.
"— Para! Para o carro que eu quero
descer, pelo amor de Deus, Emílio!" — na
escuridão interior do veículo os gritos dela
abafavam o som das pancadas com que a chuva
forte varria o para-brisa e os vidros laterais do
automóvel.
Num dia desses, lá naquele inferninho da
francesa, certo jeito de andar e algo nas feições
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de uma das strippers que ele acabou levando


para um motel lembraram-no muito Lucimar.
“Depois daquela desgraça na minha vida,
mesmo que eu tente me acostumar a andar
apenas de táxi e excepcionalmente pegando
carona, tem horas, quando me sento num
conforto como o deste carro, que fica difícil pra
cacete aguentar”, com estas considerações
ocupando seu pensamento reconhece com
amargor que a inveja deste ex-colega de
faculdade está lhe envenenando a alma neste
instante.
— Pronto — Antônio está de volta ao
carro — Me dá licença um instantinho, Emilio
— diz ao esticar o braço direito para abrir o
porta-luvas.
— Não posso esquecer de guardar esses
recibos todos.
Aberta a portinhola bem diante dos seus
joelhos, Emilio se surpreende com a visão da
coronha negra e robusta do que provavelmente
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seja uma pistola automática acondicionada num


coldre de couro marrom, meio encoberto por
algumas folhas de papel dobradas e uns poucos
punhados de estopa suja dispersos.
— Mas, homem, depois de tanto tempo.
O quê que você fazia aqui neste posto, perdidão
que nem louco? Vi quando correu pra cima
daquele táxi que quase o atropela! — Antônio
comenta ao bater a porta do automóvel.
— Acredita você que abandonei um táxi
na praça José de Alencar porque nada andava
por lá. Pensei que na praia a coisa estivesse
tranquila, mas nem carro da polícia passava. Aí
me deu a doideira de vir aqui pro Aterro ...
Antônio fixa sua atenção no espelho
retrovisor externo dando partida ao carro, mas
sem descuidar do que lhe narra Emilio.
— Ficou doido? Pegar táxi aqui no
Aterro? Está sem carro?
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— Pois é isso, mas...você está indo pra


onde, Antônio? — faz que não ouviu a
pergunta sobre carro.
— Eu é que pergunto. Está indo pro
centro? Te levo, sem problemas.
— Pro escritório, na Cinelândia, mas pra
mim qualquer ponto perto em que você puder
me deixar está bom.
— Está com escritório seu mesmo?
— Somos dois, eu e o Cardoso. Vou
deixar um cartão com você. Qualquer hora,
quando você puder, a gente marca um almoço,
um chopinho, quem sabe?— saca o cartão de
visitas e o passa para Antônio, que sem o olhar
coloca-o sobre o espaçoso painel à sua frente.
— Posso prometer nada por enquanto,
amigo. Este mês a coisa está braba com colegas
envolvidos numas armações super cabeludas.
Uma coisa pra lá de chata, acredite — Antonio
vai falando atento ao tráfego.
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— Mas você está onde? Conseguiu virar


juiz, promotor, o quê? — Emilio busca dar um
tom de quem fala pedindo perdão por qualquer
inconveniência.
— Nada disso. Justiça qual nada. Estou
lotado num grupo de combate ao crime
organizado, saí da décima-segunda tem uns
dois meses atrás. Mais trabalho, mas em
compensação dá para aparecer mais, se entrosar
melhor no esquema do Secretário, sabe?
“Então a arma no coldre...”, Emilio
deduz.
— Crime organizado? Ah, você então
entrou pra polícia? Quer dizer que este meu ex-
colega de faculdade virou um tira? Verdade? —
ele ri alto mas se arrepende quando nota o
sisudo perfil de Antonio.
— Desculpe a brincadeira. Legal, legal
mesmo. Não sabia, mas também, há tanto
tempo. Está como, quer dizer, de cargo? —
tenta dosar a conversa com humor.
ã43

— Sou delegado de polícia. Sério que não


sabia? — Antônio fala virando o rosto em sua
direção por segundos, com seu pujante bigode
mexicano desta vez arqueando as pontas para
exibir um ligeiro sorriso.
Emilio quase se engasga com a saliva,
surpreso com a notícia
— Uau!!! Palavra que não, mas também a
gente nunca mais se viu depois daqueles
concursos doidos.
— Tem razão. Mas estou te achando mais
magro, Emílio, abatido … — Antonio volta a
olhá-lo apenas por um segundo
Ele se cala e faz que observa a paisagem
do Aterro.
— Mas você sabe, depois daquele último
concurso que fizemos juntos, lembra? Vi que o
meu negócio tinha nada a ver com isso de ser
chamado de excelência, meritíssimo, aquela
pompa toda, lidar com escreventes, oficiais de
ã44

justiça, isto sem contar com a obrigação de


começar numa comarca lá em Deus me livre!
Ha! Ha! Minha justiça, meu bom amigo, tem
mais a ver com Taxi Driver, com o Charles
Bronson...
Emilio ri, confuso.
— Taxi Driver? Motorista de táxi? Me
explica isso.
— É, a tradução é esta, claro. É um filme.
Viu não? Já antigo hoje. Amo esse filme, com o
Robert de Niro ainda novinho, tenho o DVD lá
em casa, curto de montão. Do Charles Bronson,
tenho a coleção toda, acho. Bons também uns
dois daquele Clint … Clint …
— Clint Eastwood? — Emílio o ajuda na
memória e não pode impedir uma gargalhada.
— Isso! Gosto desse cara também! —
Antônio gargalha em retribuição e lhe aplica
um vigoroso tapa no joelho.
— Humm!!! Quer dizer que estou falando
ã45

com um verdadeiro cinemaníaco!


— Adoro mesmo, Emílio, adoro cinema,
principalmente o americano desse estilo. Filme
nacional, nem de graça. Lá em casa tem um
puto dum telão, uma maravilha, comprei agora.
Tem vezes que eu e a Neusa preferimos ficar
em casa, fim de semana, pra curtir um bom
filme, do que sair pra jantar, fazer visita, sabe?
— Antônio se mostra bem descontraído,
íntimo, o que agrada a Emilio.
— Você casou, então?
— Casei, sosseguei meu facho, amigo.
Tenho lá um molequinho, o meu Igor, que vai
fazer três anos agora em maio, e vem aí uma
gatinha até o fim do ano, te digo. Qualquer dia
a gente marca pra você pegar um rango com a
patroa e assistir a um dos filmes de minha
coleção.
— Beleza — Emilio comenta com
admiração.
ã46

— E você?
— Casei, mas o meu casamento já era há
muito tempo.
— Verdade? Que pena. Mas família,
amigo, te digo, é essencial.
“Outro Doutor Cardoso!”, Emílio se
remói por dentro e de repente se sente um peixe
fora d'água neste mundo de que fazem parte o
correto e fiel amigo Cardoso, com a carolice
dele e respectiva família, além deste Antônio
que acaba de reencontrar e muitos outros
homens que ignoram o que é ter que dividir
suas horas vagas entre sonos mal dormidos e
lembranças como aquele baque estrepitoso
numa pedra, a mais de três metros abaixo do
acostamento de uma rodovia sinuosa e molhada
de chuva, dentro de um automóvel e
acompanhado de alguém que emite seu último
soluço em vida.
Por isso ele se alegra quando nota estarem
alcançando o trevo do final do Aterro, sinal de
ã47

que precisará descer num ponto o mais


próximo da Cinelândia que não atrapalhe o
itinerário, onde ficar melhor pra você, eu pulo
fora, não quero atrapalhar.
Antônio ri.
— Emilio, meu velho, não é porque eu
sou da polícia que você precisa querer sair logo
voando do meu carro. Já basta a sua loucura em
querer pegar táxi na raça em pista de alta
velocidade.
— Nada disso, cara, foi ótimo a gente
trocar umas ideias, mas com essa confusão aí
pelo Centro melhor eu me virar descendo em
qualquer parte do Castelo, se der pra você.
— Vamos ver, vamos ver. Não tem
problema — Antônio responde com toda
atenção no caminho e diminuindo a marcha.
— De qualquer jeito, quebrou um galhão,
não sei como te agradecer. Mas antes de eu
saltar me passa pelo menos um telefone seu. A
ã48

gente precisa voltar a se encontrar para botar o


papo em dia.
— Claro, claro. Deixa ver assim que der
pra eu parar e você descer com segurança, te
passo o meu mobile e o cartão lá do gabinete.
Quando desembarca, seus pulmões são
agredidos por um intenso cheiro de gás
lacrimogêneo, e em seus ouvidos ressoam,
vindos ele ainda ignora de onde, gritos em
algazarra, palavras repetidas por alto-falantes,
apitos soprados com estridência e outros sinais
de clamores ressoantes por entre as ruas do
Castelo..
“Essa confusão, que parece ainda estar
longe de terminar, com a polícia nas ruas
certamente a distribuir porrada a torto e a
direito, me lembra que preciso perguntar a
alguém o que esse filme Taxi Driver tem a ver
com polícia, violência e coisas assim, se bem
que o Antônio chegou a me dar uma vaga ideia
da filosofia a esse respeito quando reuniu numa
ã49

panela só machões como Charles Bronson e


Clint Eastwood.

4.
— Pegou sua senha, Linda? — Heloisa
indaga.
— Peguei, meu número é o cento e
quarenta e sete. Tem quatro ainda na minha
frente.
Perto passa um homem barrigudo, um
palito enganchado entre os dentes, que examina
Lindanalva dos pés à cabeça no exato instante
em que Heloisa se afasta, os dois quase se
chocando.
— Olha, faz o seguinte, Linda, assim que
você deixar o guichê me procura lá daquele
lado onde estão os dois orelhões. Está vendo?
— Lindanalva sequer olha para Heloisa, toda a
sua atenção matreira concentrada no elegante
perfil do jovem com pinta de atleta que conduz
de um jeito carinhoso uma senhora idosa,
ã50

segurando-a pelo cotovelo e se curvando para


falar-lhe ao ouvido.
“Taí! Um filezão assim é que não me
aparece lá no Les Enfants”, Lindanalva sente
vontade de agarrar Heloisa pelo braço e repetir-
lhe o pensamento, mas Heloisa já se afastou.
Afinal de contas, pondera, não há tanta
intimidade assim entre as duas. Melhor
dizendo, nenhuma intimidade mesmo.
Heloisa e o amigo dela, ou sócio, amante,
sabe lá o quê, aquele cara de turco dos olhos
de cobra venenosa, estão somente a fim de
acertar com ela o negócio das passagens e da
papelada pra viagem, ganharem a grana deles e
mais nada. Mas pelo menos se Heloísa parasse
e ouvisse o comentário dela sobre aquele cara
pintoso para aplacar seu estresse com essa
espera interminável, até que não seria mau.
O amplo saguão da Polícia Federal torna-
se abafado, sufocante mesmo para as mais de
trezentas pessoas distribuídas entre os poucos
ã51

assentos disponíveis, a maioria aglomerada


junto às paredes e os curtos balcões de acrílico
destinados ao preenchimento de formulários.
“Ufa! Cento e quarenta e cinco! Tem só
um na minha frente agora”, Lindanalva se
regozija com a visão do número em algarismos
verdes sinalizada pelo ligeiro ruído eletrônico.
Abre a bolsa a tiracolo, retira com cuidado o
grande envelope de papel pardo onde colocou
os documentos que a Heloisa lhe disse serem
necessários e se afasta para um canto do
saguão, trombando contra um ventilador de pé.
— Merda! — desabafa e recompõe os
cabelos antes de abrir o envelope para checar
tudo direitinho, carteira de identidade, CPF,
recibo da taxa que Heloisa pagou por ela,
parecendo-lhe não faltar nada. Junto com o
envelope, saem-lhe da bolsa e caem ao chão,
dobradas ao meio, aquelas duas folhas que já
leu e releu em casa e que Heloísa disse ser um
contrato dificílimo de se conseguir hoje em dia.
ã52

Lindanalva se abaixa e recolhe os papéis


para metê-los às pressas de volta na bolsa, pois
Heloisa lhe falou que não seria bom que outras
pessoas vissem aquilo. Quando ela perguntou a
razão disso a resposta que lhe veio de uma
careta de quem faz muito mistério foi que
alguma concorrente daquela casa de shows na
Espanha poderia querer copiar os termos do
contrato, estragando assim a exclusividade
conseguida pelo amigo de Heloísa para a
contratação no Brasil de outras dançarinas. Ela
não entendeu nada da história e resolveu deixar
pra lá, mas estranhou quando Heloisa lhe
recomendou, por mais de uma vez, que ela não
andasse com o tal contrato especialmente
quando viesse à Polícia Federal para requerer o
seu passaporte.
“Falando do diabo e olha ele lá”, seu
pensamento dardeja contra o perfil do cara de
turco lá perto dos telefones públicos.
ã53

Mas quem está com ele não é Heloisa e


sim outra mulher, nota Lindanalva.
Junto ao casal está um idoso gordo de
cara avermelhada, óculos escuros, que passa
seguidamente um lenço na cabeça e em volta
do grosso pescoço, demonstrando não estar
nada à vontade com a temperatura do saguão.
Ouve-se o dlim-dom eletrônico e as luzes
do painel mudam para cento e quarenta e seis.
Lindanalva sente que a fome lhe comprime o
estômago e começa a ter sede também.
Gostaria de haver ficado na cama até mais
tarde nesta manhã, coisa impossível porque não
daria para faltar ao agendamento feito por
Heloisa. Logo hoje, quando a noite na Les
Enfants foi por demais estafante mas bem
decepcionante ao mesmo tempo. Lembra-se
daquela cara toda emburrada da Madame
tratando todas as dançarinas com palavras
secas à meia voz e ainda por cima naquele seu
ã54

português afrancesado que nem sempre dá para


entender tudo direitinho.
Mas que culpa teve ela ou qualquer uma
das meninas presentes ontem, se de repente
numa noite só três dançarinas não apareceram?
No fundo até que a Madame tinha lá sua
pontinha de razão, já que a Gabi do hotel
Meridien tinha encaminhado uns americanos,
gente de trato e dólares, e além disso também
estouraram pela casa uns jogadores de futebol
italianos. Nem deu meia-noite e a casa já estava
às moscas, com ela e mais duas novatas se
esforçando em manter os gringos firmes no
consumo da bebida e ainda com a esperança de
um amorzinho lá pro final da madrugada, nesta
hipótese evidentemente com uns bons dólares
largados de lembrança, claro.
Sair dali agora para aplacar a fome e a
sede, isso nem pensar. Digamos que chamem o
cento e quarenta e sete, e ela não esteja
presente, mas sim atracada com uma pizza pra
ã55

lá de murcha e fedorenta, considerando o que


deu pra ver das cercanias do posto em matéria
de opção para um lanche pelo menos decente.
Perderia certamente o dia e ainda por cima teria
que aturar um enxame de broncas da Heloísa, e
com certeza piores ainda do cara de turco.
Cansada de ficar de pé, encosta-se em
uma grossa pilastra e recurva um pouco a perna
esquerda, com apoio do salto alto da sandália
sobre a superfície porosa e plena de marcas de
anteriores solas e saltos. Procura o maço de
cigarros, irrita-se temendo não encontrá-lo no
fundo da larga bolsa, tem vontade de perguntar
à mulher loura e espevitada que passa por ela e
a olha de um jeito assim meio depreciativo se é
proibido piranha tirar passaporte.
Mas se acalma assim que encontra os
cigarros. O pequeno isqueiro vem logo em
seguida com a lembrança do doador, Egídio ou
coisa assim. Qual foi mesmo o nome que ele
lhe disse? Mas já se foram umas quatro
ã56

madrugadas depois que aquele cara a convidou


para sair a fim de ver o mar já terminando o
movimento na Les Enfants, quando sentou-se
com ela na areia e, um pouco bêbado, pôs-se a
lhe dizer umas poesias lindas, mas de um jeito
como algumas palavras lhe foram ditas que
chegou a assustá-la. O que mais a encucou,
contudo, foi ele a achar parecidíssima com uma
jovem que conheceu mas que lhe teria deixado
enorme sofrimento na alma.
Lindanalva teve a impressão de que ele
estava a ponto de chorar e naquela hora ela
quase se levantou da areia para ir embora,
imaginando que daquele jeito, bêbado e chorão,
não ia dar no couro mesmo, quando ela estava
a fim de fazer amor com ele de verdade. "Foi
mesmo Egídio o nome que ele me falou?".
Sorri por instantes enquanto liberta a fumaça da
primeira tragada.
“Não sei dizer direito, mas ele me marcou
de alguma forma, e tenho certeza que eu lhe fiz
ã57

um enorme bem naquela noite, não assim pelo


gozo que fez ele gritar forte lá no motel,
parecendo até que tudo ali ia explodir com o
urro que saiu da garganta dele, mas muito mais
pela luz que vi no fundo dos seus olhinhos”
O cigarro já está quase na metade e as
divagações de Lindanalva vão tomando o rumo
do escaninho do esquecimento, pelo menos o
provisório, quando lhe aparece o tão aguardado
cento e quarenta e sete no painel.
Ela se apressa, mas diminui as largas
passadas para se certificar do guichê exato.
Está lá, cento e quarenta e sete, guichê seis.
Toma assento diante do mulato forte de cara
bexiguenta a examiná-la por trás do vidro com
olhos de malícia.
— Está tudo aqui, meu senhor — esboça
um sorriso amarelo e enfia os documentos pela
abertura na base do guichê.
— Antes de tudo, me diz, cadê o
protocolo? — o homem põe sua manopla onde
ã58

se destaca um anel dourado largo, de fantasia,


no dedo mínimo, sobre os papéis e a carteira de
identidade, pondo-os de lado sem sequer olhá-
los.
— Pro-protocolo? — Lindanalva gagueja,
nervosa.
— É, o protocolo de agendamento, minha
filha! — diz ele pausadamente e de um jeito em
que se mesclam prepotência e enfado.
Lindanalva o olha com firmeza, engole
em seco e identifica no tratamento, para ela
debochado e nada atencioso, a alma policial
com que está habituada a lidar desde quando
suas atividades profissionais a encerraram no
ambiente sufocante e malévolo das noites
cariocas, com mais intensidade no mundinho
noturno de Copacabana.
— O papel marcando pra vir hoje? Está
aí, deve ter ficado preso com um clipes na
carteira — ela procura explicar, e para melhor
situar a colocação do protocolo requisitado
ã59

tenta introduzir a mão através do pequeno


espaço aberto na base do painel envidraçado,
ato que é de pronto sustado pelo gesto seco da
manopla amarronzada.
— Filha, do lado de cá deste vidro quem
mexe nos documentos sou eu só. Deixa que eu
vejo — fala o homem, que para melhor ilustrar
sua admoestação faz com que a ponta de seus
dedos indicador e médio repousem com leveza,
mas firmes, sobre o dorso da mão dela.
“Que sujeitinho mais do asqueroso!”,
Lindanalva o classifica ao recolher a mão com
um estremecimento mas sem deixar de olhá-lo
com resoluta firmeza.
— Isto aqui não precisa — o homem
empurra atabalhoadamente duas contas de luz.
Em silêncio ela as recolhe.
— Quero que você bote os dedos aqui —
ele aponta para uma pequena caixa metálica
numa das extremidades do balcão.
ã60

Lindanalva o olha desorientada, sem


poder conter sua expressão de dúvida, atitude
de que ele se aproveita para mais uma tirada,
entre sarcástica e depreciativa.
— Aqui, olhe! Bote seus dedos nessa
abertura, mas de leve.
— Isso. Agora olhe pra este ponto aqui,
oh, e não se mexa, nem pisque, nem sorria.
Lindanalva obedece, contrariada.
“Minha mãe santíssima, dai-me forças pra
eu não mandar esse infeliz endemoniado aí pra
puta que o pariu”, tem que se esforçar em
manter-se exteriormente calma, sem piscar nem
sorrir, mas imaginando que seria tão bom que
na fotografia este mulato nojento lesse o quanto
ela o está odiando.
Em seguida ele se levanta e desaparece
por detrás de uma parede divisória alva, de
fórmica, oportunidade que Lindalva aproveita
para se inclinar de encontro ao baixo encosto
ã61

da cadeira a fim de relaxar um pouco as costas


e a um só tempo olhar, por mera curiosidade, o
perfil das pessoas em atendimento nos guichês
mais próximos.
“Será que todo esse pessoal deu de cara
com um apostemado como este? Cruzes!”,
descarrega na ideia quando observa o homem
regressando com um pedaço de papel.
— Pronto. Daqui a cinco dias úteis você
pode vir pegar.
Ela chega a abrir a boca na intenção de
perguntar se é para pegar o passaporte já
prontinho, mas desiste e se levanta tomando do
recibo passado pela abertura no vidro, ocasião
em que chegam-lhe aos ouvidos as palavras
murmuradas pelo desagradável sujeitinho.
— Olhe, tenha uma ótima viagem e ...
boas bacalhoadas!
Ainda se volta na direção dele enquanto
abre a bolsa para guardar o papel recebido.
ã62

Tem vontade de se reaproximar do vidro e


perguntar ao atrevido o que foi mesmo que ele
falou, mas desiste. Só pensa agora em comer
qualquer coisa e tomar um refrigerante bem
geladinho, depois que se encontrar com Heloisa
lá naquele lado do saguão conforme ficou
combinado.
— Ufa, menina, que bosta de atendente
peguei! — vai falando mal se aproxima de
Heloisa, que sorrindo caminha em sua direção
acompanhada a uns dois passos pelo homem a
quem Lindanalva só se refere em pensamento
como o cara de turco e o tal sujeito gordo e
suarento sempre enxugando a brilhante calva,
com um rosto avermelhado que nem pimentão.
— O que foi, Linda?
— Um veado que me atendeu, Heloisa,
mulato muito do grosso e debochado como só a
vagabunda da mãe dele — fala voltando o rosto
na direção dos guichês.
ã63

Heloisa lhe põe a mão no ombro e diz


baixinho:
— Esquenta, não, filha, isso tudo aí é
federal mas tão ordinários como qualquer PM
de bosta — e logo em seguida, pegando-a pelo
pulso direito a conduz para junto do homem
gordo e calorento — Olha, este aqui é o Senhor
Barrientos — colocando Lindanalva a uns dois
palmos da enorme barriga do apresentado. Ela
fica parada sem saber o que dizer e muito
menos o que tem ele a ver com o que estão
tratando aqui.
— Mucho gusto — murmura Barrientos
de um modo em que lhe dá a impressão de
estar se sufocando. Ao lado dele o cara de
turco apenas a observa com olhos ofídicos,
ambas as mãos enfiadas nos bolsos de um
vistoso blusão de couro marrom.
— Linda, vamos tomar um cafezinho,
temos que combinar mais umas coisinhas. Pode
ser? — Heloisa passa o braço por suas costas
ã64

para conduzi-la rumo à porta giratória com os


dois homens as acompanhando em silêncio.
— Heloisa, uma estou com uma fome do
cão, sabia? Estou mais a fim é duns
salgadinhos com Coca geladíssima. Pode ser?
— Tem problema, não, amor, mas não
nesses pés sujos daqui. Vamos atravessar no
sinal ali adiante. Tem uma pizzaria logo
virando a esquina — Heloisa diz e estanca o
passo para não se distanciarem de seus dois
acompanhantes.
A pizzaria tem entrada numa porta de vai-
e-vem numa fachada protegida por grades em
treliça envernizada que alcançam não mais que
a altura de um homem. Os quatro tomam lugar
na mesa de canto posta junto a um largo vaso
de plantas ornamentais.
— Está quente mesmo hoje — Heloisa
vai falando mal se apossa de uma cadeira.
ã65

— Quente pra burro, mas só em sair do


posto e ficar livre daquele panaca que me
atendeu já foi um baita prêmio, pode crer —
Lindanalva fala e ajeita a revolta cabeleira
negra com ambas as mãos, não lhe escapando o
olhar atento de Barrientos para suas axilas
expostas pela blusa decotada e sem mangas.
— Mas sabe o que ele falou quando eu
estava saindo? — dirige-se mais a Heloisa,
apesar de ciente de estar sendo observada pelos
dois homens. Heloisa simplesmente a olha com
um meio sorriso interrogativo.
— O infeliz disse para eu ter uma boa
viagem e aproveitar as bacalhoadas! Imaginem
só! — gesticula, tentando sublinhar o que foi
dito como sendo um palpite do tal agente e, ao
mesmo tempo, um abuso da parte dele.
Heloisa apenas a observa sem comentar,
frustrando suas expectativas por umas boas
gargalhadas na mesa.
ã66

— Bom, Lindanalva, o Georges vai daqui


direto pra agência de viagens, e o mais certo é
você viajar em menos de um mês — diz
Heloisa de maneira enfática e surpreendente
com a clara intenção captada por Lindanalva de
friamente expulsar desde já da mesa quaisquer
esperanças de um papo descontraído.
— Certo, Georges? — Heloisa fala rápido
para não ser interrompida pelo garçom que se
aproxima.
Lindanalva olha para o cara de turco de
soslaio ao ouvir o nome dele pela primeira vez.
Georges saca um maço de cigarros do
casaco de couro e faz um gesto para o garçom.
— Amigo, tem fogo aí?
O rapazinho com cara de nordestino põe
sobre o ombro o guardanapo que trazia no
antebraço, para caçar seu isqueiro no bolsinho
lateral do colete negro.
ã67

Aceso seu cigarro pelo prestimoso


serviçal, Georges, rosto levantado para o alto,
puxa a primeira tragada com avidez, torce em
seguida o pescoço a fim de lançar a fumaça
para longe da mesa e, ato contínuo, encarando
Heloisa e Barrientos, fala:
— Mas qual o dia mesmo que a mocinha
pega o passaporte, hein?
A expressão que Lindanalva vê no rosto
de Heloisa é de constrangimento aliado a um
pedido de desculpas. Dentro de si sente o
embate entre a resposta abortada, com as
palavras que adoraria jogar na cara de Georges
por causa daquele “mocinha”, e tudo aquilo
que lhe corrói a alma a cada domingo em que
regressa de Petrópolis quando visita a filha
Agitam-se em sua mente todas aquelas
imagens e palavras carinhosas de Lucinha,
ainda que eventualmente constrangida pelos
olhares oblíquos e atitudes vigilantes de Irmã
Paulina.
ã68

— Mãe, escuta, não vai me esquecer


daqueles chocolatinhos, tá?
— Pode deixar, filha, domingo que vem
trago sem falta.
— Lucinha, minha querida, agora sua
mamãezinha tem que ir. Está na hora, não é
verdade, dona Lindanalva?! — Irmã Paulina
junto ao grosso portão de ferro, a mão direita
alvíssima e coberta por salientes veias azuladas
a repousar nos ombros da filha. No olhar da
freira um percurso a um só tempo crítico e
esquadrinhador sobre toda sua pessoa, dos pés
à cabeça.
— Mãe, mãe, olha...olha... — a voz aflita
de Lucinha se agitando, com uma folha de
caderno escolar um tanto amassada na mão
direita — Mãezinha, ia esquecendo, toma, leva,
fiz esses desenhos pra você, mãe! Eu ti amo!
— Está bom, Lucinha, mas sua mamãe
tem que ir! Não é verdade, dona Lindanalva?
— Irmã Paulina já empurra o portão de grossas
ã69

barras pintadas de verde, algumas um tanto


enferrujadas, os olhos grandes de Lucinha
ficando lá por detrás enquadrados pelos vãos
do portão, agora batido com força para
aguilhoar mais o coração de Lindanalva.
Georges, Irmã Paulina e quem mais afinal
tirou seus dias de prepotência para espezinhá-
la? É o que agora se pergunta quando engole
em seco o olhar e o jeito de tratá-la desse
narigudo barbudo, um homem que não serve
nem pra lavar as calcinhas da Heloisa, seja ele
amante, marido ou namorado desta mulher
loura e simpática de quem Lindanalva não tem
queixa alguma por enquanto.
— Linda, deixa eu ver o papel que eles
deram pra você — Heloisa estica o braço por
cima da mesa com os largos e verdes olhos
marinhos a lhe sorrir de um jeito em que
Lindanalva lê alguma coisa de doce, um
caramelo para se sobrepor ao sal amargo do
comportamento de Georges.
ã70

— Olha, foi isto aqui — entrega o


protocolo a Heloisa ao mesmo tempo em que
remete um olhar de desafio a Georges.
— Hmm, sexta-feira da outra semana.
Está bom assim, não é, Georges? — Heloisa
fala sem tirar os olhos do protocolo.
— Contando de hoje vinte dias, está bem
pra você? — George responde à pergunta com
outra pergunta, mas voltado para Barrientos.
— Gente, ainda não pedimos nada, a
nossa Linda aqui está desmaiando de fome, por
favor! — diz Heloisa com um encerramento
modulado a riso.
— Ah, acredite, Heloísa, de fome e de
sede — Lindanalva se anima com a aparente
solidariedade.
— Oh...oh, moço, por favor! — Heloisa
procura ser ouvida pelo garçom que serve
bebidas a uma mesa próxima.
ã71

— Amigo, duas pizzas, mas daquelas


grandes, tamanho família, bem tostadinhas —
Georges se antecipa a Heloisa, que, gesto de
ordem estagnado no ar, tem um jeito pensativo.
— Duas tamanho família, senhor? —
atende o garçom — preparando-se para anotar
os pedidos. — Cobertura? Mossarela com...?
— Meio a meio! Meio a meio, metade só
queijo, a outra metade com linguicinha?.
Isso!!!— Heloisa quase grita, mãos agitadas em
alegria, neste instante parecendo a Lindanalva
uma criança levada, não tanto como a sua
Lucinha sendo Heloisa uma mulher adulta e
com toda a certeza sabendo misturar estes
trejeitos infantis com artimanhas duras e quem
sabe cruéis, como devem ser as pessoas que
andam com Georges, assim medita Lindanalva.
— O que vão beber? — o garçom faz a
trivial pergunta.
— Três chopinhos e mais... — ordena
Georges enquanto lança sua última baforada
ã72

antes de amassar o resto do cigarro no pequeno


cinzeiro de vidro.
— Você bebe o quê, Linda?— interfere
Heloísa.
— Pra mim uma Coca geladinha.
— Me traz três chopinhos e uma Coca —
Georges complementa a ordem e arrasta a
cadeira para mais junto da mesa, onde finca os
dois cotovelos, olhos fixos nos de Heloisa.
— Hoje são treze, se o passaporte da
moça fica pronto em sete dias corridos, dia
vinte, Barrientos, vamos então agendar tudo
pro mais tardar dez do mês que vem. Está certo
assim? Dá pra gente fazer assim? — fala
Georges num tom bem mais baixo daquele que
até agora vinha empregando, dirigindo seu
olhar alternadamente para Barrientos e Heloisa.
— Si, si, como no? Pero fíjate que
Medeiros todavia no hay llegado de San Pablo
— Barrientos se pronuncia dobrando e
ã73

redobrando o lenço, que logo volta a passar em


volta da papada do pescoço junto às orelhas e
finalmente por toda a calva.
— Mas eu acho que, já que o Senhor
Barrientos conhece a Linda, o melhor é que ele
vá com ela mais a outra menina, e o português
que leve as outras três — Heloisa fala com dois
dedos alcançando a beira da manga do blusão
de couro de Georges num sinal de quem requer
toda a atenção.
— Por mi... — Barrientos encolhe os
ombros.
— Pois é, meu amor — Heloisa recua o
torso e se volta mais para o lado de Lindanalva.
— O senhor Barrientos aqui vai viajar com
você até a Espanha, Madri.
Lindanalva olha para Barrientos e depois
para Heloisa, confusa.
— Ele viaja no mesmo avião, mas não
precisa nem sentar do lado de você, entende?
ã74

Só que quando você descer lá, tem que ficar


junto com ele. Isso é importantíssimo, está
entendendo, Linda? Tem é que colar nele,
entrar na fila pra apresentar os passaportes com
ele, percebeu? — Heloisa se inclina para olhar
bem nos olhos de Lindanalva.
— Mais ou menos.
— Não tem mistério, amor. É que o
pessoal do aeroporto de Madri é meio chatinho,
implicam com brasileiras que chegam lá sem
conhecer ninguém, e o jeito deles falarem,
minha filha, não é assim molinho de entender
igual ao do nosso amigo aqui — Heloisa fala
com o pescoço a girar da esquerda para a
direita e vice-versa, buscando a atenção a um
só tempo de Barrientos e Lindanalva.
O gordo suarento faz menção de dizer
alguma coisa mas se retrai diante da chegada
do garçom com as bebidas.
Lindanalva se apossa de seu copo. A
visão do líquido borbulhante entre os pequenos
ã75

cubos de gelo no fino copo embaçado lembra-


lhe que hoje à noite o trabalho a espera lá na
Les Enfants, com a música de estourar os
ouvidos e dezenas de copos indo para lá e para
cá até pousarem nas mesas daqueles
entorpecidos clientes de olhos opacos com seus
dedos muitas das vezes por demais ousados.
Juntamente com estas lembranças, mas
bem a propósito, vem-lhe à mente a promessa
feita a si mesma de fazer uma revisão geral nas
suas tirinhas fio dental e nos dois cache-sexe,
como madame Caterine chama os tapa-xerecas,
seu singelo uniforme de trabalho.
Estas suas atuais meditações de ordem
profissional são inesperadamente interrompidas
pela voz baixa mas clara e cortante de
Georges, que olhando-a por cima do copo de
chope levado à boca por entre os espessos fios
negros de uma barba e um vasto bigode lhe
cita:
ã76

— Dona Lindalva, uma coisa deve ficar


bem clara para que amanhã a senhora não
venha reclamar nada, nem de mim, nem de
dona Heloísa ou o Senhor Barrientos. Esse
dinheiro que estamos empregando pra senhora
viajar e trabalhar na Europa não permite que
haja desistência de maneira nenhuma.
Desistindo, tem que devolvê-lo a mim até o
último centavo. Entendeu?
Lindanalva apenas balança a cabeça, pois
sua boca neste momento lhe parece seca,
apesar do primeiro gole de Coca-Cola recém
tomado, e por mais uns segundos os olhos frios
de Georges permanecem fixados nela antes dos
braços do garçom servindo a pizza obstruir seu
campo de visão. Mas agora pouco lhe importa a
apetitosa massa porque seu estômago só possui
espaço para a grossa saliva que lhe desce
garganta abaixo temperada a tristeza com
pitadas de arrependimento.
ã77

5.
A secretária o encara assustada e o
observa qual uma coruja vigilante antes de lhe
responder a saudação.
— Ah...bom-dia, Doutor.
— O Doutor Cardoso está sozinho? —
Emilio diz, mão na maçaneta da porta de sua
sala e rosto voltado para a entrada do gabinete
do sócio.
— Está sim senhor, Doutor.
Ele se recompõe fazendo o braço
esquerdo retomar a manga do paletó que já
principiara despir, antes da pergunta a dona
Dulce, e vai ao encontro de Cardoso batendo de
leve na porta com o nó dos dedos. A forte
amizade que os une e a união de seus esforços
profissionais em torno da manutenção e do
progresso desta banca advocatícia, reconhece
Emilio, nunca foram o suficiente para quebrar
ã78

nele um certo quê de respeito reverencial a


Cardoso.
— Entra, Emilio, pode entrar — responde
Cardoso quando ele entreabre a porta.
— Como é? Salve, salve! Conseguiu
chegar afinal! — Cardoso o saúda com humor.
— Milagre dos milagres, naquela hora em
que tentava falar com você, lá num posto de
gasolina do Aterro, me aparece um ex-colega
de faculdade que eu não via há quase um
século! — fala enquanto arrasta uma das
cadeiras dispostas em frente à mesa do sócio.
— Esse meu colega me deixou na Nilo
Peçanha e vim caminhando, mas você nem
pode imaginar o clima que está aí fora. Só vejo
isso na televisão, essas arruaças na Europa, mas
aqui... — ele se mostra agitado, inseguro, pois
gostaria que Cardoso entrasse logo no assunto a
respeito do que teria ocorrido pela manhã. Seu
atraso em chegar ao escritório lhe parece acusá-
lo de culpa por um fato que ainda desconhece.
ã79

— Cheguei aqui hoje bem cedinho,


Emilio, quando a coisa ainda não havia
começado, mas dona Dulce, que só chegou uns
quinze ou vinte minutos depois, veio me dizer
que alguma coisa diferente estava pra
acontecer, que viu muita polícia e uns
grupinhos de jovens bastante nervosos, uns até
com máscaras.
— Passei perto de um caminhão de
reportagem da Globo e vi uma moça muito
agitada, parece que era repórter, discutindo
com uns caras e mandando todos pra puta que
os pariu. Entendi nada, confesso. Alguém falou
pra ela que tinham que filmar era a polícia
dando tiros.
— Só bala de borracha. Tem gente que
exagera — afirma Cardoso com um gesto de
mão de quem afugenta temores.
— Muito gás lacrimogêneo também,
vitrinas quebradas, com uma garotada
fantasiada, mascarada, tacando pedras, o diabo.
ã80

— Tem coisa graúda por trás disso,


Emilio, pode crer. Só um protesto dos
professores não ia dar nisso tudo, mesmo com
o Metrô parando.
— Está tudo fechado, quebraram até uns
painéis do Museu de Belas Artes.
— Dona Dulce me disse que teve gente se
refugiando aqui na portaria do prédio. E olha
que a coitada tinha descido já apavorada com a
cena do tal rapazinho aqui no escritório.
Imagine você — Cardoso fala, levanta-se em
seguida e vai até a porta, que abre para falar
alto. — Dona Dulce, não me passe ninguém
por enquanto. Estou em reunião com o Doutor
Emilio.
“Hmm...agora que vem a coisa, conheço
esse Cardoso como a palma de minha mão, mas
o pior é que nem posso imaginar como esse tal
Silvinho me conhece”, Emilio se apruma em
seu assento, cruza as pernas e aguarda, olhos
postos no amigo.
ã81

— Pois é, meu caro Doutor Emilio, a


coisa esteve feia aqui na recepção de manhã.
Enquanto o Doutor ficava perdido no trânsito,
seu amigo aqui e a coitada da dona Dulce
aturavam um escandaloso rapazinho bastante
efeminado que se fechou no banheiro e cortou,
ou melhor, fingiu que cortou um dos pulsos,
graças a Deus sem gravidade — diz Cardoso
em caricatura de tom solene mas sem evitar um
repuxo de riso num dos cantos da boca.
“Esse Cardoso é mesmo um 'senhor
formalidade'. Nunca diz veado, tem que ser
efeminado, invertido sexual, nomes assim”,
Emilio o observa, expectante.
— Você nem pode imaginar o quadro,
com o rapaz sentado no chão do banheiro,
apoiado no vaso e chorando que nem bezerro
desmamado a comprimir o pulso esquerdo com
sangue pingando.
— Mas que merda, Cardoso! O Saldanha
já tinha chegado?
ã82

— Graças a Deus havia saído uns dez


minutos antes. Ainda bem! Dona Dulce,
coitada, tremia e gaguejava. Confesso que tive
que ser até um pouco grosso com ela para que
pegasse logo umas toalhas de rosto limpas e
ajudasse o rapaz.
— No final, um cortezinho de nada? —
Emilio fala com rapidez, ansioso para que
Cardoso explique como o veado falou que o
conhecia.
— Sem profundidade, muito mais na mão
do que no pulso mesmo. Eu tinha que tirar
aquele rapazinho daqui, imagina se aparecesse
alguém, um cliente...
Emilio apenas o observa. Sabe que
Cardoso entrará no assunto de seu nome no
momento exato.
— Tentei me comunicar com a portaria
pra que o Evaristo me ajudasse a tirá-lo daqui,
mas ninguém atendia lá em baixo, o diabo...
ã83

— Nessas alturas o pau devia estar


comendo em volta, pelo que vi antes de chegar
— opina Emilio.
— Resultado, depois que enrolamos umas
duas toalhas em volta do braço dele, tive que
obrigar dona Dulce a descer e pedir ajuda a
alguém pra levar o rapazinho numa crise de
histeria..
— E daí? — Emilio fala enquanto cruza e
descruza as pernas.
— Aí, meu amigo, que enquanto a dona
Dulce saia, tremendo que nem vara verde, o tal
Silvinho, com a cara toda melecada de lágrima
misturada com catarro, os cabelos longos e
esticados caindo pela cara, me disse o nome
dele e que queria falar com você.
— Comigo? ― Emílio se apruma
assustado na cadeira e com o indicador voltado
para o peito.
ã84

― Isso mesmo! Com o Doutor Emílio


Pimenta, porque você conheceria uma tal de
Madame Caterine, e que ela poderia interceder
por ele, umas coisas assim.
— Mas ele falou como? Que eu poderia
falar com essa madame? Pra quê, Cardoso?
— Olha, meu amigo, pelo jeito dele
acho que a coisa tenha muito a ver com
assunto de ligação homossexual.
— Mas e eu com isso? E por que essa de
vir bancar a mulher desesperada que corta os
pulsos por um amor não correspondido logo
aqui no escritório? — Emilio deixa
transparecer impaciência.
— Ele falou que o amor dele trabalha pra
essa tal Madame Caterine, e que você poderia
pedir a ela que convencesse o degenerado a
aceitá-lo como namorado!
“Diabo! Caterine de Villegrois! Aquela
cafetina da Les Enfants! Não tenho mais nada a
ã85

ver com ela. Tem mais de uns três anos que


deixamos de dormir juntos”, este nome tem o
poder de tornar Emílio ao mesmo tempo
envergonhado e irritado. A lembrança da
francesa, uma expert no lenocínio, como ele
sempre a qualificou, traz-lhe desagradáveis
lembranças associadas com ao fim de seu
casamento com Nely.
O mergulho do carro naquele precipício
de Teresópolis, com a consequente morte da
jovem Lucimar, mescla-se aos momentos em
que sua existência esteve por um fio para
enveredar pelo alcoolismo e a caça frenética do
amor comprado nos rendez vous indicados por
Caterine.
- — Dona Dulce conseguiu trazer um
paraíba que estava substituindo o Evaristo e os
dois desceram com o desesperado, que saiu
soluçando que nem uma dessas mocinhas de
subúrbio quando levam o fora do namorado.
ã86

Coisa deprimente mesmo, rapaz. Nunca vi


igual.
“To be or not to be, ora, o Cardoso me
conhece muito bem e sabe que eu sou chegado
às noites, às putinhas, mas essa de uma
bichinha vir atrás de mim para eu servir quase
como um cupido é que está mau, muito mau.
Melhor, pelo menos por enquanto, ficar na
moita e negar tudo”, Emilio evita olhar dentro
dos olhos de Cardoso.
“Melhor dourar a pílula da mentira”
Decide-se Emílio.
— Cardoso, há mais de dez anos que você
me conhece, pô, sabe muito bem que gosto de
tomar meus uisquinhos e, vez por outra, trocar
o óleo com uma dama da noite, mas... — ele
busca um gesto teatral para ilustrar seu mea
culpa improvisado, porém o que mais consegue
é ficar por segundos com os antebraços no ar,
palma das mãos para cima.
ã87

— Não precisa me dizer nada, Emilio, a


vida é sua! — Cardoso sorri e dá um giro de
corpo com as mãos nos bolsos.
— Não, Cardoso, não é isso. Há uma
grande distância entre eu gostar de comer umas
vagabundas, sendo eu um homem livre, e por
outro lado dar meu endereço de trabalho para
um veado sem-vergonha, ainda por cima pro
puto arrumar um escândalo desses aqui!
— É, eu sei disso, amigo velho, mas tudo
foi contornado. — Cardoso fala apertando os
olhos e virando a cabeça de lado.
— A Caterine que eu conheço, aliás
conheci, era uma senhora belga, professora da
Aliança Francesa e vizinha minha e da Nely —
Emílio diz abismado. No íntimo, a mentira o
envergonha.
— Está tudo bem, o pior já passou —
Cardoso retorna ao seu lugar e de passagem
dá duas palmadas ligeiras no ombro de Emílio,
ã88

acrescentando — E por falar na Nely, como vai


ela?
— Nely? Se eu te disser uma coisa você é
capaz de cair pra trás, Cardoso — ele esboça
um sorriso maroto de felicidade pelo desvio
abrupto do assunto.
— Dormi lá esta noite.
— Não! Mentira! — a palavra sai
exageradamente alongada da boca de Cardoso.
— Sério.
— Depois de tanto tempo, Emilio? O que
houve ? Bom, quero...quero dizer... — Cardoso
se confunde, arrependido da pergunta.
— Houve é que a Nely faz parte da
comissão fiscal do condomínio onde ela mora.
Eles estão com um problema, um condômino
entrou com uma ação de prestação de contas.
Segundo ela, o síndico não está muito satisfeito
com o advogado da administradora.
ã89

— E ela, querendo ajudar o síndico,


chamou você?
— Isso! Me telefonou se eu podia dar um
pulinho até lá pra ver umas cópias dos autos,
essa coisa de pegar carona de graça com outro
advogado pra sacanear aquele que foi
contratado. Papo vai, papo vem e descemos
para relaxar e tomar uns chopinhos logo bem
em frente ao prédio. Acabei aceitando a
cantada dela para subir de novo, coisa e tal...
— Okay, Emilio, entendo, é bom isso,
mas, você me permita, não há chance de ...?
— O quê? Voltarmos, Cardoso? — as
palavras de Emilio escorregam entre dentes que
se mostram num sorriso descrente.
— Sim, claro! Por que não, rapaz? Vocês
dois, pelo que percebo, você me perdoe,
Emilio, ainda são grandes amigos, o que já é
uma grande coisa.
ã90

— Olha bem, Cardoso, te digo, se pelo


menos tivéssemos um filho, eu, sei lá, poderia
até considerar essa hipótese.
— Que filho, que nada. Eu e a Maria
Eduarda temos a Beth, claro, que nos deu dois
netos que são tudo para nós, mas você pensa
que se Deus não houvesse nos brindado com
uma filha, já não digo aqui os netos porque só
tem netos quem tem filho, eu e a Maria
Eduarda nos separaríamos?
Emilio permanece quieto. Sabe o que
virá em seguida.
— Saiba. Diz a Bíblia que aqueles a quem
Deus une, Emilio meu amigo, ninguém separa,
até porque a Maria Eduarda e eu nos damos
muito bem, graças a Nosso Senhor Jesus
Cristo.
“Esse Cardoso às vezes fala mais como
um desses pastores dos crentes do que como
um católico, porque mesmo os carolas não
ã91

falam assim”, Emilio não pode deixar de lado a


comparação.
— Mas digo a você uma coisa, ainda
sobre o tal veadinho que armou escândalo aqui
no escritório — Emilio calcula ser mais seguro
ter a plena certeza de como ficou a cabeça de
Cardoso com o caso.
— Esquece isso, Emilio, e vamos logo
trabalhar porque tenho que terminar umas
razões pro Conselho de Contribuintes pela
Krause, e prazo vai até amanhã — Cardoso fala
e estica um braço para recolher um grosso
volume imprensado entre as cabeças de gesso
de Aristóteles e Sêneca.
— Não, não, Cardoso, eu tenho que
desvendar essa história que esse filho da puta...
— Emilio se interrompe ... — Desculpe-me,
digo que esse ... esse homossexual aprontou
aqui. Afinal de contas...
— Emilio, preste atenção. O Jorge Luis
Borges, que eu considero um gênio da
ã92

sabedoria humana, disse uma coisa


importantíssima a respeito de vingança, a Lei
de Talião e o lema do olho por olho dente por
dente.
Mas ele já se levantou e encara Cardoso
com curiosidade.
— Sabe o que foi que ele disse? Se todos
nós adotássemos a desforra do olho por olho,
no mundo só haveria cegos.
Emílio encolhe os ombros e toma o
caminho de saída, mas ao abrir a porta se volta
com uma expressão divertida na face.
— Está bem, mas e o dente por dente?
Cardoso lhe retribui o ar de alegria.
— O dente por dente? Bom, disso a idade
se encarrega. O dente funciona como a moeda
de câmbio da sabedoria, sejamos ou não
vingativos, meu bom amigo.
ã93

A ele agrada a risada de Cardoso quando


fecha a porta da sala do sócio, mas sente dentro
de si as lavas em ebulição da necessidade
premente de pôr toda a história desse veadinho
e Caterine em pratos limpos.
6.
São quatro as dançarinas e quatro os
delgados tubos metálicos a subir do piso do
palco até o teto como mastros das bandeiras
eróticas que elas estão encarregadas de
desfraldar. Todas as strippers estão nuas, salvo
pela fina tira de pano multicolorida que lhes
envolve os quadris, viaja entre as protuberantes
nádegas e lhes mantém colado ao púbis o
triângulo feito em ofuscantes lantejoulas.
A música, como em todas as noites por
anos e anos de existência da Les Enfant, uma
cascata trovejante e ininterrupta de antigos e
novos sucessos do repertórios pop internacional
polvilhado por sucessos caribenhos com
destaque para os versos murmurados por
veludosas e insinuantes vozes femininas a
ã94

repisar termos adequados aos ouvidos e mentes


dos frequentadores da casa como love, muy
sabroso, kiss me, ou os apelos arrebatados de
venga-venga! come- come, baby, come!
Esta noite, contrariamente ao que sempre
faz, Emilio tomou uma das mesas mais
afastadas do palco, quase colada ao bar, canto
onde alguns estrangeiros aboletam seus
traseiros sobre os altos tamboretes encapados
de um macio veludo rubro a bebericar seus
daiquiris, vodcas e duplos puro-com-gelo, ou a
fazer biquinho nos canudos sugadores dos mais
diversos e coloridos líquidos dispostos em
longos e enfeitados copos. Procurou manter-se
longe daqueles corpos femininos jovens e
sedutores que se enroscam em volta dos
tubinhos brilhantes ao som da estridente
música, a arrebitar com sabida insinuação
bundas e seios, movimentos que são alternados
com a elevação lenta e calculada de pernas bem
torneadas e expressões faciais em que olhos e
ã95

bocas se esforçam na promessa de gozos


inesquecíveis.
Hoje ele veio até à Les Enfants a fim de
ter uma conversa com a proprietária deste
inferninho, sua já bem conhecida Caterine de
Villegrois, ou Madame Caterine para os
empregados e frequentadores, e quando
escolheu sua mesa e encomendou uma bebida,
a última coisa talvez que lhe passeasse pelo
pensamento seria dar asas a projetos
libidinosos diante deste feérico espetáculo de
luz e incentivos às mais arrebatadoras posses
sexuais.
Nem mesmo sequer aquele corpo
moreno-cobre ligeiramente menor que os das
outras companheiras de dança no momento, de
ombros talvez para os mais exigentes em
questões estéticas femininas largos demais,
mas bem compensados pelas salientes ancas e
nádegas, que semanas atrás veio a se deitar
ã96

com ele ao final da madrugada, merece agora


os seus sentidos.
O nome dela, dito a ele num sotaque de
origem bem longe de lembrar falares mineiros,
paulistas, gaúchos ou nordestinos, eclipsou-se
em sua lembrança, ao contrário daquele seu
jeitinho de manobrar com destreza e graça uns
quadris adestrados num vai-e-vem majestoso
rumo a um dos melhores orgasmos que ele
sentiu desde que trocou o rotineiro
acasalamento com Nely pelas noturnas
variações e variedades comercializadas.
— Carlinhos, me quebra um galho.
Pergunte à Madame se ela poderia dar um
pulinho na minha mesa. Pode ser? Fala que é o
Doutor Emilio.
O garçom faz que sim com a cabeça,
recolhe um copo vazio da mesa ao lado e
desaparece pelos redutos penumbrosos que
margeiam o palco.
ã97

Emilio relaxa na cadeira e sorve mais um


gole de gin tônica. “Nada de ressaca pela
manhã com tanta coisa a fazer no escritório,
portanto vamos ficando mesmo nessa aguinha
com limão pingada de gim”
Mal tira os olhos da caminhada do
prestimoso garçom, num repente desfila a
pouco mais de metro e meio à sua frente aquele
nariz feminino que só poderia ser o da Nely.
“Mas a Nely nunca pisaria neste puteiro
aqui, eu a conheço muito bem”, espanta-se com
a semelhança da mulher que de um jeito alegre
pega pelo braço um sujeito enorme com cara de
gringo e, na ponta dos pés, estica-se para
segredar-lhe coisas ao ouvido.
“Não, claro que não é ela. Será que já
estou de porre? Muito menos agora poderia ser
a Nely, quando aquele outro cara veio e passou-
lhe a mão na bunda. A Nely tem uma porrada
de defeitos, mas mesmo separada não iria virar
dama da noite de um dia para o outro. Mas que
ã98

é o mesmo narizinho arrebitado, com aquele


queixo meio avançado que nem proa de
cargueiro, lá isso é”
A memória da cara do Cardoso com
aquele ar de sumo pontífice a insinuar quanto à
possibilidade de ele e Nely voltarem às boas,
“porque o que Deus une ninguém separa”,
deixa-o constrangido quando se depara com
uma desconhecida que de algum modo o faz
recordar sua ex-mulher.
"— Você pretende envelhecer assim,
sozinho e sem ninguém, vivendo somente para
o escritório e dando seu dinheiro suado a essas
mulheres da noite, Emílio?"
Vêm-lhe as palavras ouvidas de Nely no
recente descanso do pós-amor.
"— Quem são seus amigos, afinal,
Emilio? O Cardoso, claro, um amigão mesmo,
além do Gustavo e da Rita, fora aquele seu
primo que aparece de vez em quando. Parece
que ele se chama Rogério, não é? Mais
ã99

ninguém" — Nely usava repetir isso por


diversas vezes durante os primeiros meses de
separação, mas agora, pelo jeito, parece-lhe,
reprisará a mesma cantilena sempre que houver
oportunidades.
“Ela tem sua parcela de razão, vai chegar
um tempo em que me cansarei dessa vida de
noitadas a correr atrás dessas piranhas, que na
hora da cama, de olho no pagamento, só faltam
dizer que morrerão pela gente.
“Mas, diabo, será que aqueles dois, o
carola do Cardoso e a sonsa da Nely, vão ficar
assim na minha cabeça, nessa encheção de saco
até mesmo quando eu estou nos meus puteiros
tomando as minha biritas?
“Não acredito!”, fica por momentos a
remoer tais ideias. Para afastá-las entorta o
pescoço do jeito suficiente que lhe permita
vislumbrar todas as dançarinas, amaldiçoando
duplamente a aparente sósia da ex-mulher, não
apenas porque o fez lembrar-se de Nely num
ã100

lugar tão inadequado, mas também por lhe


ofuscar a visão daquela morena baixinha que
certa noite o fez relinchar de gozo.
Mas esta noite a conversa que Emilio
pretende ter com Caterine de Villegrois supera
tudo, até mesmo prolongar insone a madrugada
à espera de novamente abordar aquela deliciosa
stripper para outra saída fulgurante. Ansioso,
passa os dedos por entre os cabelos, afrouxa
ainda mais o laço da gravata e se remexe um
pouco na cadeira a fim de neutralizar o
incômodo de uma bexiga que começa a dar
sinais de cheia. Sair daqui agora para uma ida
ao mictório, ainda que rápida, representaria o
risco de Caterine aparecer e imaginar que ele já
se foi. Melhor por isso aguentar um pouco
mais.

7.
A rua é transversal à avenida Paris,
Bonsucesso. Vinte e uma horas e trinta e cinco
minutos. A velha kombi acaba de estacionar em
ã101

frente a uma banca de jornais, fechada a estas


horas. Desembarcam do veículo Pestinha Um e
Pestinha Dois, enquanto Pestinha Três prefere
ficar ao volante queimando pedra. A cinco
metros adiante Shung-Su e sua mulher Mi-Su
se preparam para encerrar o movimento do dia
da Pastelaria Oriente. Ele, de tamancos,
camiseta e calças arregaçadas até a metade das
canelas esfrega o piso de ladrilhos cinza e
negro com um pano úmido preso ao rodo. Ela,
por trás do balcão de alumínio, arruma em duas
caixas de plástico os instrumentos de corte e
amassamento da massa de pastéis.
— Três pastel de queijo e três caldo,
mano — mais ordena do que pede Pestinha
Dois, que entra meio curvado sob a porta
metálica do estabelecimento comercial
semiaberta.
Shung-Su olha para ele, descansa a palma
das mãos na ponta do cabo do rodo e fala.
— Za feçado.
ã102

Mi-Su para de mexer com os talheres de


fazer pastel e olha alternadamente para
Pestinha Dois e Shung-Su. Pestinha Um acaba
de entrar.
— Que qui foi? — é ele quem logo quer
saber.
— Pastel e caldo, amizade! Vô pagá,
porra! — Pestinha Dois fala alto.
— Feçado. Pastelalia feçado za — diz
em voz sumida Shung-Su, com sua redonda
face oriental transtornada diante do que
imagina ser agora inevitável.
Mi-Su é o medo recortado contra um
fundo azul e amarelo de azulejos brilhantes.
— Fechado o caralho, chinês filho-da-
puta! — a agressão verbal é concomitante à
agressão física feita pelo disparo da arma de
Pestinha Um. Mi-Su não grita, não move um
músculo, um nervo sequer. Colada na fria
parede tem medo até de chorar.
ã103

Shung-Su caiu com a leveza de um


mandarim de subúrbio, o cabo do rodo cruzado
sobre o peito como um cetro vagabundo.
8.
Em frente ao espelho, Maria Eduarda
escova com vagar e despreocupação seus
cabelos grisalhos, feitos mais prateados pela
lâmpada posta a um canto da espaçosa
penteadeira. Lá adiante, refletido no mesmo
espelho, ela observa o calmo e metódico Luis
Armando, seu marido desde os tempos de uma
longínqua mocidade, aquele mesmo homem
sempre admirado como portador de um caráter
retilíneo, livre de máculas nas esferas social,
familiar e profissional.
O senhor advogado Luis Armando
Cardoso de Albuquerque, confortavelmente
recostado na alta e acolchoada cabeceira do
leito de casal, enverga um pijama azul claro
com o monograma LA bordado no pequeno
bolso do peito, mantendo neste instante um
ã104

pequeno laptop amparado sobre as pernas


esticadas.
— Sabe de uma coisa? Tem vezes em que
sinto saudades dos nossos antigos álbuns de
fotografia, Eduarda — diz Cardoso, olhos
concentrados através de faiscantes lentes na
telinha que mancha de reflexos coloridos e
oscilantes partes do pijama.
Maria Eduarda deixa por segundos a mão
direita com a escova de cabelos solta no ar para
olhar o marido na imagem do espelho, com
uma expressão divertida e condescendente.
— Mas você está com um álbum aí, meu
doce amor!
— Falo de fotografias de papel! Meu
bem, você sabe como sou com fotografia. Se eu
pudesse... — Cardoso franze a testa ao se
perder entre o que queria explicar e a imediata
necessidade de apertar teclas do minúsculo
computador.
ã105

— Já estamos no século vinte-e-um, meu


caro doutor — exclama Maria Eduarda voltada
na banqueta da penteadeira para melhor olhar
Cardoso.
— A Beth deixou isso comigo pra vermos
uns vídeos que a própria Belinha gravou na
escola com as coleguinhas dela. Estão uma
gracinha, Luizinho, veja aí — complementa
Maria Eduarda antes de retomar sua posição
em frente à espaçosa penteadeira e se
concentrar na escovação da compacta cabeleira
grisalha.
— Humm..., ela falou se vai precisar
mesmo do carro amanhã? — Cardoso fala
baixo, atento aos comandos do aparelhinho.
— Falou nada não, mas acho que vai sim.
Melhor telefonar para ela. Do leito vem uma
prolongada gargalhada de Cardoso.
— Encontrou aí? Está uma coisa linda
mesmo, benzinho, não? — diz Maria Eduarda
entre dois vigorosos puxões com a escova.
ã106

Cardoso nada responde, apenas seu rosto diz da


felicidade com a visão das imagens móveis da
neta, sendo em seguida o quarto inundado por
sons de vozes infantis alternadas em diálogos e
provocações pueris.
— Viu só a beleza que virou sua neta? —
Maria Eduarda fala com evidente orgulho.
Cardoso permanece de olhos colados à telinha,
lábios entreabertos num sorriso de plena
felicidade sob o bem aparado bigode grisalho.
— Estou vendo, bem. Estou vendo — fala
com ligeiros movimentos afirmativos de
cabeça, o rosto inteiramente tomado de enlevo,
admiração e orgulho diante das sucessivas
imagens e palavras gravadas pela neta.
— E o Eduardinho, melhorou do
resfriado? — Cardoso faz um ligeiro corte em
suas mau reprimidas demonstrações de
alegria.
— Ah, a Beth andou dando uns xaropes
pra ele e me disse que o pior mesmo já passou
ã107

— Maria Eduardo fala com sua atenção


concentrada no ato de abrir um pequeno pote
de creme amaciante para a pele.
— Olha só! Olha só, Eduarda! —
Cardoso volta a se concentrar na filmagem.
— É isso que o bom Deus nos reservou,
meu amor, graças a ele e à virgem mãe
santíssima, veja você! — Maria Eduarda
proclama em entusiasmo sua mais profunda fé
aliada ao orgulho de avó.
— Tem um outro aqui, parece — diz ele.
— Tem sim, mais uns dois, benzinho. Um
na cachoeira e outro num jogo de vôlei, mas o
melhor pra mim é esse aí dessa bagunça
geral.
— Ah..., tesouro do vovô! — Cardoso
fala e puxa com ambas as mãos o laptop para
mais junto dos olhos, entusiasmado.
ã108

— Muito cuidado com a baba, vovô


coruja! — provoca Maria Eduarda deixando
escapar uma risada divertida.
— E não é pra ser, não é pra ser mesmo?
— Cuidado que às vezes o Eduardinho
mostra uns ciúmes, sabia, amor? — ela se
exprime fazendo uma careta na face coberta
por um cosmético cor de abacate.
Cardoso nada fala de imediato,
permanece quase imóvel com o pequeno
computador alçado ao nível dos olhos e uma
expressão extasiada.
— Hã..., pensa que eu já não notei? — diz
afinal sublinhando as palavras com um ligeiro
balanço de cabeça.
— A Beth me disse que ele está doidinho
para entrar numa academia de judô, diz que
tem três amiguinhos da escola que fazem o
esporte e ele quer lutar também ― Maria
Eduarda agora retira o excesso do creme
ã109

parecido com abacate de sobre o rosto,


mantendo as pálpebras cerradas.
— Ah, é? E onde é isso?
— Parece que é perto do Jóquei, mas a
Beth está achando muito caro além da falta de
tempo pra levar ele.
— Ela disse quanto custa? — fala
Cardoso ao se remexer na cama para mudar de
posição, quando repõe de novo sobre os joelhos
o laptop.
— Não é nada barato, no primeiro mês,
com a inscrição e o uniforme, passa de
novecentos reais.
— Está brincando! — Cardoso dá um
risinho depreciativo.
— Sério, amor, mas se dependesse de
mim, o Eduardinho faria era natação — Maria
Eduarda agora se ergue da banqueta da
penteadeira, ajeita melhor o cinto do roupão e
se encaminha sem pressa para o leito.
ã110

— Agora, meu Doutor Luis Armando, se


o senhor me permite, ou melhor, concede-me
vênia, sua esposinha aqui queria saber como
está sua cabecinha, digamos, em termos
turísticos europeus, melhor ainda de Vaticano,
já que estamos falando do vil metal.
Cardoso afasta o pequeno computador de
sobre o corpo e cruza as pernas, ainda
esticadas.
— Ah,... acho que o vil metal vai dar sim.
Já andei até cutucando, dando umas
espiadinhas nuns planos de financiamento com
cartão de crédito, mesmo levando em conta ...
— fala com vagar, mas logo se interrompe e
retira os óculos.
— Mesmo... o quê, Luizinho?
— Quer dizer, Eduarda, o escritório tem
vivido no vermelho por esses últimos três,
quatro meses, dois clientes de partido nos
devem uma fortuna. Imagina! — Cardoso se
ã111

exprime sem olhá-la, com os olhos baixos,


distraidamente limpando os óculos na aba do
paletó do pijama.
Maria Eduarda, lânguida, deixa-se cair
sentada junto aos pés do marido.
— Oh, meu Luizinho, chego a sonhar
com a Praça de São Pedro, benzinho. Já vejo a
gente, eu, você, a Beth e as crianças, todos nós
lá no meio daquelas pessoas, aos milhares e de
todas as partes do mundo, aquele revoar de
pombos, lindo, com o Santo Padre a nos
abençoar...oh, minha mãe imaculada!
Cardoso afasta as costas da cabeceira do
leito e alonga o braço direito para se apossar
das mãos da esposa com doçura.
— Mas vai dar tudo certo, você vai ver,
meu docinho de coco com bastante cravo e
canela. Tenha fé em Deus.
— Promessa? — ela faz uma careta de
criança chantagista.
ã112

Cardoso puxa-lhe da mão para depositar


um beijo galante sobre a epiderme cheirando a
creme hidratante.
— Oh, que maravilha! Já pensou, amor?!
Mas ..., Luizinho, mudando de assunto, filho.
Estou para te perguntar isso há tempos.
Ele apenas a observa sem nada dizer.
— E o Emilio, como vai?
O marido dá de ombros.
— Ah,... vai bem, ele, por quê?
— Digo, na mesma ... vidinha?
Cardoso procura divisar-lhe os olhos. —
Naquele jeitão dele, meio nihilista, com os
palavrões dele pra lá e pra cá, mas sempre
advogando com firmeza. Posso saber a razão
da pergunta?
— Nada de importante. Mas e aquele
negócio do tal rapazinho, o... o homossexual
que foi lá no escritório de vocês armar
ã113

escândalo? Ele afinal apurou alguma coisa,


Luizinho?
— Sei, não, bem. Deixei pra lá, preferi
não ficar esmiuçando a coisa. Gosto muito
dele, um amigão, sócio exemplar, você sabe.
Achei que não valia a pena querer me
aprofundar demais.
— Seria uma graça divina se ele
reconstituísse a família, voltasse para a esposa,
não acha, amorzinho? Isso de se misturar com
essa gente da noite nunca deu boa coisa pra
ninguém! — Maria Eduarda livra uma das
mãos para afagar os escassos cabelos de
Cardoso.
— É, eu também acho, mas isso é coisa
dele, Eduarda, não posso me meter.
— Pois a Nely sempre me pareceu
uma
Mulher sensível, educada, pena que os dois
não tenham tido filhos.
ã114

— Mas, acho eu, meu bem, que nem


mesmo um filho seguraria o Emilio — Cardoso
diz ao torcer o corpo para o lado interno da
cama a fim de fechar o laptop.
— Você acha? Por quê?
— Palpite, nada mais. Emilio tem um
lado que muitas vezes me assusta, preocupa-
me. Você sabe que ele está sem carro há muitos
anos, não sabe? Pois é, mas o que ele ganha
daria para ter um. Várias vezes tentei, com
jeitinho, saber o porquê de ele só andar de táxi,
mas ele desconversou, veio com a coisa de um
acontecimento na vida dele de muitos anos, que
não queria nunca mais pegar num volante e
coisa e tal, que eu preferi não perguntar, não
me aprofundar muito.
— Coisas do passado que impediriam ele
de dirigir automóveis, é? Cassaram a carteira
dele ou coisa assim?
— Humm ..., não deu para saber direito e
preferi nada mais perguntar, amor, pois afinal
ã115

somos grandes amigos não é de hoje, e amigos


de verdade devem respeitar os limites de cada
um.
— Bom, deixa eu guardar isto que a Beth
vem pegar amanhã quando trouxer as crianças.
— Ela apanha o laptop de sobre a cama
— Vamos então dormir porque já é tarde. Mas,
… onde... onde deixei mesmo o meu livro de
rezas. Você viu?
— O da capa de madrepérola? Não é
aquele ali no canto da penteadeira, minha doce
e amada dona Maria Eduarda? — Cardoso fala
com um bocejo desenhado em lábios de gracejo
e carinho.

9.
Afinal, ei-la que surge desde o trono,
regozija-se Emilio quando vê Caterine de
Villegrois, a dona da boate Les Enfants,
caminhar na direção de sua mesa com um
jeito adocicado que não despreza, contudo,
ã116

aquele ar de quem se impõe como a autoridade


máxima no local.
— Pardon, mon cher, pardon — ela se
curva diante da mesa dele e o saúda com uma
beijoca estalada na face.
— Caterine, boa-noite. Não vou tomar
muito do seu tempo, sei como este negócio
aqui dá trabalho — Emilio se dirige a ela com
um olhar de avaliação externa. Não pode com
absoluta certeza aquilatar em que faixa etária se
encontra esta mulher magra com uma pele
alvíssima contrastante com o azul turquesa de
seu elegante traje composto de pantalonas
larguíssimas com cintura alta e uma blusa sem
mangas, rendada e ousadamente decotada a
exibir o topo de dois seios miúdos polvilhados
de sardas.
— Oh, mon amour, que cara essa! —
Caterine diz ao puxar a cadeira.
Emilio sorve o restante do drinque.
ã117

— Caterine, me diga uma coisa pra gente


não perder muito tempo. O nome Silvinho lhe
faz lembrar alguém?
— Comme? Silvinhô?
Respondendo à pergunta com outra
pergunta afrancesando o nome que lhe foi
perguntado, Caterine faz com que seus longos
dedos de unhas manicuradas a esmalte azul
marinho alcancem com estudada leveza
algumas ondas de seu cabelo dourado e
curto.
Este gesto traz a Emilio, num relance,
memórias de tempos em que entre eles dois
pairaram muito mais diálogos de amor e paixão
do que palavras impositivas e respostas
evasivas, quando ele a comparava com Marlene
Dietrich por sua testa ampla e os pequenos
olhos azuis afundados em sombras. E mistério.
Olhando-a esta noite e assim de perto, ele
parabeniza mentalmente a grande estrela
germânica por jamais ter permitido aos seus
ã118

milhões de admiradores a visão em cena destas


flácidas abas pendentes desde os bíceps
erguidos, como lhe exibe agora a francesa à sua
frente.
— Sim, isso mesmo. Conhece alguém
com esse nome? — insiste na pergunta e se
recosta no encosto aveludado da cadeira.
Caterine franze a testa, deixa os miúdos
olhos viajarem ao redor, para afinal balançar a
cabeça negativamente.
— Non, non, mon cher.
— Um cara bem jovem ainda, mulatinho
e veado. Nunca viu um com esse nome? —
Emilio toma de uma das mãos de Caterine
entre as suas como se quisesse com isto lhe
avivar a memória.
Por um momento nenhum dos dois fala
nada, com apenas a estridente música do palco
entremeada pelos abafados ecos de algumas
frases e diálogos alegres transitando entre os
ã119

ouvidos de Caterine e Emilio, até que afinal ela


liberta a mão dos punhos dele para fazer o
indicador friccionar o polegar no costumeiro
estalido da lembrança afinal aflorada.
— Oh, mon Dieu, mon Dieu, cher Emilio!
Eu … pensava que você falava de algum
cliente daqui da boate, querido! Pardon,
pardon! — Caterine abana a cabeça para
ambos os lados num jeito de divertimento e
autocensura.
— Não, nada disso. Falo de uma bicha
filha da puta que foi fazer ceninha de
desesperado lá no meu escritório numa frescura
de chorinho de mulher abandonada, cortando
os pulsos! — Emilio eleva a voz com
irritação..
— Oh, oh... — Caterine arregala os olhos,
tenta dizer alguma coisa mas o máximo que
logra é manter os lábios semiabertos num
desenho arredondado de lástima e decepção.
— Sei agora quem é, oui, oui, esse moço!
ã120

Ele trabalhou aqui na boate, Emilio querido,


mas por poucos meses, fazendo limpeza,
comprando coisinhas que as meninas pediam,
mas tive que mandar ele embora. Apaixonou-se
por Apollinaire e não deixava o coitado
trabalhar. Uma vez peguei ele abrindo as calças
do Apollinaire, um depravado, ele — Caterine
procura melhor se explicar, falando
pausadamente, seu português pleno de rr
engolindo o final de certas palavras.
— Apollinaire? Quem é esse sujeito? —
Emilio olha para os lados temeroso que a
conversa se perca em detalhes supérfluos ou
que atraia a atenção de outros frequentadores.
— Mon se-segu-segurança. Você sempre
vê ele lá fora quando chega aqui, non?
Sim, claro, como ele deixaria de notar
aquele negão dimensionado como um armário,
seu corpanzil parecendo querer arrebentar as
mangas do paletó curto, todas as noites junto à
porta giratória envidraçada da Les Enfants, de
ã121

pé ou parcialmente acomodado num alto banco


de madeira, saudando-o numa voz rouquenha
com um “Boa-noite, Doutor”
“ Mas o que tem ele a ver com a ida
daquela bichinha ao escritório?”, indaga-se
Emilio intrigado, sem contudo desejar
interromper o que Caterine dá mostras de
querer de pronto esclarecer.
— Mon cher, esse tal Silvinhô, você
imagina, caiu de amores pelo Apollinaire, mas
un amour es-can-da-loso!
— Hã! Mas como você pode ter um gay
como segurança, Caterine?
— Gay? Mon Apollinaire?
— Ué! Sei lá. Você não acabou de dizer
que o Silvinho gamou por ele? — Emílio tem
um sorriso de xeque-mate.
— Non, non, mon Apollinaire nunca foi
disso, posso te garantir — Caterine fala pondo
ã122

nas feições uns trejeitos infantis como quem


acaba de ouvir algo impróprio para a ocasião.
— O teu Apollinaire, votre Apollinaire,
eh?! Começo a perceber. Mas o que quero
saber é como ele foi parar no meu trabalho
com ameaças de suicídio, procurando por mim
para que eu falasse com você não sei o quê,
coisas de amores ameaçados, frescuras assim,
com certeza tendo a ver com o negão dele.
— Ele pediu isso? — Caterine volta a ar-
regalar os olhos e leva a mão esquerda ao peito.
— Não falou para mim. Eu nem tinha
chegado ao escritório ainda, mas falou pro meu
sócio. Citou meu nome completo, queria que eu
conversasse com você para intermediar o
restabelecimento de uma certa paixão dele —
Emilio faz pontificar cada palavra com
golpes secos do indicador sobre a mesa,
exaltado neste instante.
— Oh, mon Dieu ...
ã123

— Isso mesmo, pro Doutor Cardoso, um


senhor de respeito, advogado conceituado,
chefe de família que de repente vê uma
bichona histérica me achando com cara de
Cupido de putos, fazendo cenas de cortar os
pulsos, sujando todo o banheiro do escritório,
apavorando nossa secretária dona Dulce, uma
senhora de idade também!
— Emilio, deixa eu te dizer uma coisa,
amour. Esse moço, quando ainda trabalhava
aqui, me disse que uns tios dele estavam com
problemas na justiça, coisas de expulsão de
terra, e que eles precisavam falar com um
bom advogado. Na época a gente, tu et moi,
estava se dando muito bem, lembra? Você a
me deixar muito feliz com seus carinhos e sua
atenção. Você não pode ter se esquecido
daqueles tempos, pode?
— Mas, c'est la vie, mon amour, c'est la
vie! Allons, Emilio, mon Emilio.
ã124

— Sei, Caterine, não esqueci de tudo,


não, a vida continuou, você conseguiu montar
sua própria casa, que pelo jeito não lhe traz
prejuízo, enquanto eu do meu lado fui tocando
minha vidinha e trabalhando feito um mouro
para pagar o financiamento de um apartamento
sala e dois quartos.
— Oh, amour … — Caterine faz menção
de pegar-lhe a mão, que Emílio retira com um
gesto seco — Tem noites que te vejo aqui com
uma carinha assim de tão sofrido, tristonho,
que …
— Sim, mas e daí? O veadinho falou pra
você que precisava de um advogado pro tio
dele. Onde entra meu nome nisso? Será que
você … mandou que ele me procurasse? Foi
isso, Caterine? — ele avança o tronco por
sobre a mesinha e procura ver o rosto dela bem
mais de perto com a intenção de não ocultar-
lhe seu ar de espanto, incredulidade e
desagrado.
ã125

— Porra, Caterine, eu e meu sócio


trabalhamos somente para firmas, boas
empresas que nos pagam bem! Não temos o
hábito de pegar causas de pés-de- chinelo,
Caterine, me entenda por favor, ainda mais de
bichinhas histéricas sem um pingo de
compostura e com certeza sem um puto dum
centavo para nos pagar. Por que esse … esse
seu protegido não foi com o tio dele pra justiça
gratuita? — ele abaixa a cabeça e a enfia entre
a palma das mãos fazendo-a oscilar levemente,
olhos fixos nos miúdos quadriláteros azul e
branco da toalha da mesa.
Quando se apruma é para empurrar a
cadeira para trás com as mãos pressionadas
sobre a quina da mesa, quase arrastando tudo,
copo, cinzeiro, mini abajur e toalha até ao chão.
Caterine o olha assustada e procura se
afastar da mesa antes mesmo que ele se ponha
de pé. Emílio evita lhe vislumbrar as feições.
Em algumas mesas ao redor ressoam
ã126

frases de estupefação, pragas e até abafadas


risadas. No palco temporariamente liberado
pelas bailarinas nuas para um merecido
descanso, um casal fantasiado de tiroleses
provoca algumas gargalhadas que
involuntariamente suplantam as demonstrações
de estranheza e mofa pelo ataque de violência
praticado por Emílio.
Caroline, erguida e de mãos à cintura, tem
uma atitude de censora decepcionada ao fazer
seu olhar circular em volta e se esforçar para
transmitir aos frequentadores da Les Enfants
seus apelos de perdão.
— Que vergonha, mon amour! Você não
passa de um covarde, um fracassado!
Sem esperar resposta ou revide, ela se
afasta em largas passadas equilibradas nos
altíssimos saltos de uns sapatos de verniz
negro, maldizendo a hora em que veio
conversar com um homem que poderia ser
ã127

alguém na vida se ele abandonasse seu claro


gosto por dançarinas vagabundas.
Com gestos apressados e nervosos Emilio
saca a carteira e retira o suficiente para uma
gorjeta generosa aos garçons do local, aos
quais não cabe a mínima parcela de culpa pelo
fato da patroa deles ter mandado aquele
veadinho ao seu escritório sem avisá-lo e muito
menos por seu sangue ter lhe subido à cabeça
por causa de um cartão de visitas entregue à
pessoa errada. À saída, furibundo, sequer olha
para o vulto semioculto nas sombras da
madrugada.
— Boa-noite, Doutor! — a saudação o
alcança pelas costas, mas Emilio prefere não
retribuí-la.
Seu objetivo mais premente é aliviar a
bexiga, o que logo consegue ocultando-se à
sombra de uma árvore não muito distante da
entrada da Les Enfants. Imagina que a estas
horas apareçam mais táxis livres trafegando
ã128

pela Avenida Copacabana. Para tanto percorre


o caminho de volta na direção da boate, de
onde avista sair um trio masculino envolto em
gestos espalhafatosos e a proferir gritos e
palavras para ele ininteligíveis, um cenário das
madrugadas boêmias de Copacabana mas do
qual sua experiência sempre o aconselhou
manter considerável distância.
Atravessa a calçada e olha pelo outro lado
da rua aquele letreiro luminoso em azul e
vermelho que parcialmente ilumina um pouco
da calçada e muito menos o vulto em atitude
discreta a menos de um metro do portal
dourado da boate de Caterine de Villegrois.
“Quer saber quando boto meus pés
novamente nesse puteiro vagabundo daquela
francesa filha da puta? Nunca!, morde-se por
dentro com estas pragas, mas o que o machuca
mais nesta hora são as feições serenas e
determinadas de Nely, que como um cântico
ã129

belo de tranquila sereia o surpreendem para


povoar os seus sonhos inquietos.
10.
— A Mônica tava falando, mãe, que ela
vai pra Disney nestas férias, sabia?
— É? Que legal, filha! — Beth,
concentrada na direção do carro, diz sem virar
o rosto para a filha ao seu lado. Começa a
escurecer e sabe ser necessária toda a atenção
em dirigindo por estes caminhos da Ilha do
Governador por onde pouco andou até hoje,
mesmo assim sem estar dirigindo e apenas para
ir umas duas vezes ao aeroporto internacional
se despedir de amigas.
— Ela ganhou um iPad do tio dela, uma
coisa de louco, mãe!
— Diferente do seu?
— Hã! Bota diferença nisso! Tem
telefone também, sabe, mãe? Acho que o certo
é dizer iPhone, sei bem, não — Belinha fala e
ã130

dobra as pernas colocando os pés descalços na


beirada do assento.
— Sei, não, mas acho que estou sentindo
um cheirinho de chulé por aqui — Beth fala
mansamente, pescoço esticado, olhos fixos na
placa verde com letras brancas avistada ao
longe e recortada contra um céu em que as
últimas tintas rubras do crepúsculo vão
cedendo lugar ao breu noturno.
Uma gargalhada cristalina de Belinha
preenche todo o automóvel sucedida por um
leve tapa no ombro da mãe.
— Chuuulé??? Você 'tá é delirando, mãe!
Botei essas meias hoje quando saí de casa!
— Me engana que eu gosto, menininha!
Essas meias, eu vi, estavam penduradas lá no
cabideiro do banheiro. Pensa que nasci ontem?
Eu ia botar pra lavar! — Beth envolve sua fala
com humor e condescendência para com uma
filha que, afinal de contas, no frigir dos ovos,
não lhe dá motivos de maiores queixas.
ã131

— Mostrou os vídeos pra vovó?


— Levei o laptop pra ela ver tudo hoje
quando pegamos o carro, lembra? Mas fiquei
foi vidrada naquele iPad, ou iPhone, sei lá,
da Mônica, coisa muito massa mesmo!
— Hã, foi mesmo? Muito massa, é?
Deixa só seu avô ouvir essas gírias, menina!
— Mãe, será que o pai podia me dar um
iPad daqueles? — diz Belinha tirando os pés
do banco para logo alçá-los novamente e
envolver os joelhos com ambas as mãos, sem
demonstrar ter ouvido a crítica materna.
— Belinha, seu pai tem lá os problemas
dele, outra família. Fica tudo muito
complicado. Vamos... — Beth interrompe sua
fala com um sopro seguido de um "nããoo"
decepcionado.
— O que foi, mãe?
Beth repentinamente é toda nervosismo.
ã132

— Essa não! Errei o caminho, entrei pela


Cidade Universitária! Só me faltava essa! —
exclama num lamento batendo com a palma da
mão direita no volante por duas vezes, irritada.
— Ma-mas não dá pra pegar a Avenida
Brasil também por aqui, mãe?
Segue-se uma freada brusca.
— Que foi isso, mãe? Quase que eu bato
com a testa no vidro! Fica calma, mãe! —
Belinha reclama alto olhando para o perfil
retesado de Beth. O que ela não viu foi o
grande galho de árvore atravessado sobre o
asfalto, somente revelado pelos faróis a pouco
mais de cinco metros da dianteira do carro.
Mas no entanto Beth percebeu alguma coisa
mais além daquele simples obstáculo.
O que ela vê agora a faz contrair-se no
banco e apertar com firmeza o volante na
esperança de que possa ainda manobrar o carro
para fugir do que lhe parece agora inevitável.
ã133

Eles são em número de quatro num grupo


cujo vulto maior, de um adulto, bem que
poderia ser, em outro cenário, considerado
como o de um pai a passeio com seus três
filhos adolescentes, mas quando a mão direita
desse homem rompe com um pedaço de ferro o
vidro da janela ao lado de Beth, escoam-se
todas as possibilidades da primeira hipótese.
— Sai! Sai do carro, piranha vagabunda!
— berra Pestinha Um colado ombro a ombro
com o adulto, ambos debruçados sobre o vão
da porta ao lado de Beth, agora já escancarada
com presteza e violência.
Pestinha Dois e Pestinha Três contornam
o veículo pela frente, ávidos como dois cães
famintos ao vislumbrar a presa fácil encolhida
no assento do carona e desprotegida, sem. a
mãe, que jogada ao acostamento lança pontapés
a esmo e vai sucumbindo aos socos e torções
de braço empregados pelo adulto e Pestinha
Um.
ã134

— Mãe! Mãe...
— Belinha..., minha filha! Beliiinhaaa...
Os gritos de mãe e filha se espalham pela
noite através os arbustos e árvores marginais da
estrada. São gritos de repúdio e intenso
desespero a proclamar o ingresso de ambas
numa trilha infernal de conclusão imprecisa e
jamais imaginada.

11.
O edifício catorze do Largo dos Leões,
bairro de Botafogo, apresenta-se neste início de
noite de sábado em nada distinto do que
cotidianamente tem sido. Iluminado desde a
calçada construída em pedras portuguesas por
um delgado poste de lâmpadas frias, mostra
elegante e bem desenhada portaria incrustada
num altíssimo pé direito entre paredes e
pilastras de concreto nu, parcialmente
recobertas de esparramadas e muito bem
cuidadas heras.
ã135

O espaçoso saguão da portaria está


deserto, salvo pela presença do porteiro sentado
por trás da pequena mesa onde se situa a
central telefônica de comunicação interna do
condomínio, posta a poucos passos dos dois
elevadores. Ao seu lado esquerdo ele tem um
pequeno televisor em preto e branco que lhe
ocupa toda a atenção com as notícias do Jornal
Nacional.
Caso algum visitante perguntasse neste
instante a este embevecido empregado diante
da televisão se o Edifício Biarritz encontra-se
em paz, o porteiro diria que sim alegando
absoluta certeza, uma resposta que não
representaria plena verdade, ao menos em
questões de paz de espírito e absoluta
tranquilidade considerando o que ora sucede
no apartamento 501, do Doutor Cardoso e
dona Maria Eduarda.
— Voltou a ligar pro Pedro Henrique? —
Maria Eduarda está voltando da copa onde foi
ã136

pegar um copo com água para o marido, pois


Cardoso tem que tomar logo o remédio
contra a pressão alta.
Ele a encontra no meio do corredor e vem
com o paletó do pijama desabotoado, na mão
esquerda o frasco do medicamento, a direita
erguida a massagear de leve o largo tórax onde
algumas gotículas de suor começam a brilhar
por entre a espessa camada de fios brancos do
adiposo peito.
— Tentei, tentei por umas três vezes, mas
só dá sinal de fora do ar ou desligado — fala
com desânimo e recolhe entre dedos nervosos o
copo das mãos de Maria Eduarda.
— Não fique assim, Luizinho, não houve
nada com elas pelo nome santo de Nosso
Senhor Jesus Cristo!
— Mas faltam menos de cinco para as
dez, Eduarda! A Beth avisaria de qualquer
coisa — Cardoso tem uma expressão de
desamparo quando devolve o copo.
ã137

— Vem, amor, vem sentar um pouquinho.


— Maria Eduarda procura comboiá-lo
rumo à ampla sala de estar totalmente
iluminada nesta noite, como quase todas as
peças do apartamento.
— A que horas foi que a mãe da amiga da
Belinha disse que elas sairam de lá, Eduarda?
Cardoso mostra-se a cada minuto mais
nervoso, alternativamente coçando o topo da
cabeça, o peito e os flancos do rosto abaixo das
orelhas sem desfazer uma careta com os cantos
da boca repuxados e o cenho franzido.
— Foi o pai da menina quem atendeu.
Disse que a Beth se despediu deles não eram
sete horas ainda, amor.
— Oh, oh Deus meu, dai-nos uma
resposta do que aconteceu! Da Ilha até aqui não
levam mais que uns cinquenta minutos, isso
vindo a oitenta ou setenta pela Avenida Brasil,
eu tenho certeza, mesmo pegando
ã138

engarrafamento no Rebouças — Cardoso fala


antes de se jogar desajeitadamente no sofá com
os braços abertos em cruz e a cabeça pendida
para trás, instante em que soa a campainha do
telefone.
— Oh, graças! — brada ele se erguendo
de um pulo.
Maria Eduarda, que se mantivera de pé, é
quem primeiro alcança o aparelho, extensão
em modelo antigo posta sobre o comprido
aparador.
— Alô! Pois não.
Cardoso se mantém de pé, olhar pregado
nos gestos dela, mas em menos de dois
segundos lê a decepção nos olhos amortecidos
da esposa.
— Boa-noite, Pedro Henrique. Sim,
ligamos pra você, sim — Maria Eduarda se
volta para ficar bem de frente para o marido
enquanto fala ao telefone com o ex-genro —
ã139

Eu e o Luizinho estamos bastante preocupados


porque a Beth levou a Belinha pra uma festinha
lá na Ilha do Governador e não voltou até
agora.
— Festinha? Coisa do trabalho da Beth?
— soa aos ouvidos de Maria Eduarda a voz de
estranheza de Pedro Henrique ao telefone.
— Hein? Festinha de quem? Não, não, de
uma colega de escola da Belinha!
— O que é que esse imbecil está
falando, Eduarda? Diz pra mim! — Cardoso
exclama, irado, estendendo a mão direita e se
aproximando para pegar o aparelho das mãos
de Maria Eduarda.
Ela afasta o fone da boca e faz uma
expressão de reprimenda ao marido com os
lábios desenhando o seu nome, para em
seguida prosseguir no diálogo com o ex-
genro.
ã140

— Lá da residência da menina disseram


que a Beth saiu antes das sete. Já estamos
entrando em desespero, Pedro Henrique. O
Luizinho está que nem se aguenta mais,
tenho medo da pressão dele. Eu, por mim,
estou procurando ser forte, mas estamos com
os nervos à flor da pele. A Beth levou o
celular dela, mas nada de notícias até
agora.
Enquanto fala, Maria Eduarda toma o
aparelho nos braços e procura esticar ao
máximo o fio a fim de se aproximar de
Cardoso para acariciar seu flácido bíceps.
— Entendo, dona Maria Eduarda, mas e
se falarem com a polícia? — vem-lhe o
argumento de Pedro Henrique.
— Polícia? Como assim? — Ela dá
mostras de sentir-se desnorteada como se
flutuando em pleno ar, com uma terrível
suspeita de que alguma desgraça aconteceu
com Beth e Belinha.
ã141

— Eu... eu não sei, afinal de contas... —


Maria Eduarda sente a voz e as pernas lhe
faltarem. Devagar vai sentando no sofá bem
perto de Cardoso, com um olhar de descrença
total. — Mas... mas nós só ligamos pra você
porque, afinal de contas Maria Isabel é sua
filha, Pedro Henrique, não foi para lhe pedir
nada, compreenda ...
O telefone lhe cai das mãos. Ao invés de
recuperá-lo, Maria Eduarda lança-se aos
braços do marido em desespero.
— O que foi que ele disse? — Cardoso se
expressa com grande dificuldade, pois sente o
peito comprimido por um gigantesco torno que
lhe espreme toda a caixa torácica, parecendo-
lhe pôr a coluna vertebral e as clavículas
absolutamente coladas.
Sentados no sofá mas voltados um para o
outro, nesta hora ambos se entregam à dor da
incerteza envenenada com o temor de um
grande mal, quando então se abraçam ao som
ã142

de balbucios e soluços que lhes fazem tremer


os corpos. Assim permanecem, aconchegados
em sua dor, Luiz Armando e Maria Eduarda.
É ela quem desfaz com delicadeza este
amplexo dolorido para enxugar suas lágrimas
com o auxílio da manga do vestido caseiro.
Por seu turno, Cardoso busca manter ainda
vivo o pouco do orgulho machista a que se
pode dar ao luxo nestas circunstâncias e vira o
rosto para ocultar suas, ainda que miúdas mas
nem por isso menos sinceras, lágrimas de
temor pela sorte de Beth e Belinha.
Sentindo-se parcialmente recomposto,
busca olhar Maria Eduarda nos olhos alçando
com doçura o trêmulo queixo da esposa.
— O que foi afinal que o Pedro Henrique
falou de polícia mesmo?
Maria Eduarda volta a fazer uso da manga
do vestido como lenço antes de responder.
ã143

— Que a gente deveria ligar pra delegacia


e pro pronto-socorro pra perguntar se houve
algum acidente com elas. Perguntou se elas
foram a alguma festa de amigas da Beth. Vê se
pode, Luizinho, uma coisa dessas!
Cardoso dá uma vigorosa palmada no
joelho e fala com acentuada irritação..
— Essa é mesmo muito boa! Telefonar
para qual delegacia, pra qual hospital, se da
Ilha até aqui em Botafogo têm não sei
quantas delegacias e mais de uns três prontos
socorros. Além disso ele não tem o direito
de controlar a vida da Beth e está se
lixando pra filha dele.
— Oh, meu Deus, minha filha, minha
netinha... oh, não, não... — Maria Eduarda se
entrega a um choro convulsivo, desesperada e
afundando o rosto no sofá.
— Dos nossos amigos, amor, não me vem
o nome de nenhum que possa me dar uma pista
de como se agir nessas situações. Em meus
ã144

vinte e tantos anos de advocacia, se pisei numa


delegacia policial mais de duas vezes foi muito,
mas só se ... — Cardoso põe-se a ponderar
enquanto com a mão esquerda acaricia as
costas da combalida esposa.
— Já sei, benzinho, não se desespere. Vou
ver se localizo o Gouveia. Ele, além de velho
cliente do escritório, é um rábula com muita
penetração nessas coisas de delegacias Posso
também falar com o Emilio, quem sabe. Vou
fazer um chazinho pra você, minha Eduardinha
querida, e no final tudo vai dar certo, tenhamos
fé em Deus acima de tudo.
Dito isto Cardoso, em passos lentos, toma
o rumo da copa-cozinha onde liga a chaleira
elétrica e procura pelo chá.
“Nunca estive num carro com a Beth
dirigindo, pelo menos não estou lembrado
disso, mas pelo tempo que ela tem de carteira
acredito que não seja de cometer barbeiragens
por aí, ainda mais com a filha ao lado. Mas o
ã145

que me dá um friozinho na espinha é aquele


tráfego de ônibus e caminhões pela Avenida
Brasil, ainda mais à noite”, Cardoso não pode
fugir a certos pensamentos ilustrados por
imagens de Belinha e Beth dentro do carro
espremidas por um possante caminhão, ou
mesmo abalroadas por uma daquelas muitas
vans endoidecidas. Em volta vê viaturas da
Polícia Rodoviária e sente o som aterrador
de sereias das ambulâncias.
Esfrega os olhos com o nó dos dedos para
lançar fora da imaginação essas tristes cenas,
que regressam redobradas em detalhes de
horror com as luzes dos carros da polícia
refletidas sobre o negro asfalto em alguns
pontos riscado por filetes de sangue.
“Não, não e não. Mil vezes não, Deus
meu, nada disso aconteceu com elas! Afinal de
contas não estão atrasadas demais. A pobre da
Beth deve ter tido um pneu furado ou um
defeito mecânico qualquer. Meu carro nunca
ã146

me deu problemas, jamais nos deixou na


estrada, mas tem sempre a primeira vez.
Preciso ter forças pra impedir que a minha
Eduarda se afunde no desespero. Eu sou quem
está perdendo o controle muito cedo, e ela,
coitadinha, me amparando. Não é humano
nem justo que eu caia no desespero, logo
eu, o homem da casa.
“Deus Nosso Senhor Jesus Cristo está no
comando. Quando menos a gente esperar a
Beth e a Belinha estarão chegando aqui com a
cara mais lavada do mundo e ainda por cima
fazendo pouco caso de nossas preocupações.
Conheço minha filha”
Fervida a água, ele prepara o chá com
sabor camomila, adiciona-lhe duas gotas de
adoçante e retorna para o living, no caminho se
lembrando que é preciso manter o neto
Eduardinho, que dorme lá na cama do casal,
alheio ao que se passa.
ã147

— Tome seu chazinho de camomila,


Eduarda. Está mais calma? Tudo vai dar certo,
pode crer. Vou apanhar minha agenda e
telefonar pro Gouveia. Volto já — .Cardoso diz
passando a pequena bandeja prateada com a
xícara e o frasco de adoçante, que Maria
Eduarda recebe com os olhos marejados de
dor e admiração.
Após entreabrir com cuidado a porta do
quarto do casal e verificar que o neto dorme
em calma, com seu rostinho parcialmente
iluminado pela discreta luz de uma das
mesinhas de cabeceira do largo leito, Cardoso
fecha em silêncio a porta e se dirige à sala-
escritório do apartamento.
“Espero que a estas horas, numa noite de
sábado, o velhaco do Gouveia ainda esteja
sóbrio pra me ouvir”, analisa enquanto disca
um número de celular sem demora respondido.
— Fale.
ã148

— Gouveia, boa-noite, desculpe se estou


incomodando. Sou eu, o Cardoso.
Do outro lado não vem resposta imediata,
e pela mente de Cardoso atravessam cifras e
faturas que provavelmente estariam neste exato
momento ligadas à sua chamada telefônica na
interpretação imediata de Gouveia. Por isso
logo se adianta a fim de afastar da imaginação
daquele melífluo e escorregadio misto de
chicanista e homem de mil e um negócios
escusos a ideia de alguma cobrança de
honorários.
— Meu caro Gouveia, espero não estar
atrapalhando em nada, mas lhe digo logo que
não estou telefonando pra falar de negócios.
Vem o som de uma ligeira tosse do outro
lado da linha.
—Escute, estou lhe telefonando pra ver se
você conhece gente de delegacias lá pelos lados
da Ilha do Governador, Bonsucesso e toda
ã149

aquela área suburbana atravessada pela


Avenida Brasil e a Linha Vermelha.
— Mas me diga qual delegacia policial
você quer, Cardoso, e para quê, se posso saber.
— É que a Beth, minha filha, saiu de uma
festinha de crianças lá na Ilha do Governador,
com minha neta, antes das sete, e até agora,
mais de dez da noite, não voltou nem deu sinal
nenhum — Cardoso explica com a calma
bastante, tendo em sua mente o gênio de
Gouveia, conhecido por avesso a certas regras
usuais de cortesia e paciência para ouvir em
certas horas.
— E em que é que posso ajudar você? Dá
para me explicar?
Cardoso não se dá por abalado com o tom
da pergunta. Fosse outra a situação, pensa,
Gouveia teria o troco na hora, mas ele e a
esposa estão às margens do desespero total e
por isso há que ceder quando necessário,
engolir sapos.
ã150

— Na verdade, caro Gouveia, sei que


entre a Ilha do Governador e Botafogo existem
muitas delegacias policiais. Ignoro o número e
os endereços delas porque, você sabe, não
lidamos com processos criminais, nem eu nem
o Emilio. Imaginei que talvez um ou dois
amigos seus, de algumas dessas delegacias pelo
menos situadas em torno do percurso que eu
espero ter sido feito pela Beth, pudesse dizer
com certeza qual a maneira, digamos assim, de
eu saber se minha filha se envolveu ou não em
algum acidente.
— Sei, sei...
Cardoso aspira fundo e aguarda.
— Olha, Cardoso, o problema é que
muitas vezes acontecem certos acidentes nas
estradas que as delegacias não ficam sabendo,
pelo menos assim de início, porque a PM e o
batalhão de trânsito chegam primeiro ao local,
dependendo muito de cada caso.
ã151

—Mas, me diga, quando há... — Cardoso


sente um estremecimento em todo o corpo
apenas com a ideia que é logo antecipada por
Gouveia.
— Morte?
Ele deixa que seu silêncio diga tudo.
— Nesse caso, Cardoso, é claro que tem a
perícia e a remoção de corpos. Aí sim a polícia
civil tem que entrar logo no circuito, com
boletim de ocorrência, às vezes inquéritos e
outras formalidades. Percebe?
Cardoso sente um forte calafrio pelas
juntas com a imaginação desses fatos
envolvendo a família.
— Sei, mas com a graça de Deus e Nossa
Senhora da Aparecida nada disso aconteceu
com minha filha nem com minha netinha,
Gouveia. O que eu quero é saber como achá-las
nessa distância toda entre a Ilha do Governador
e minha casa.
ã152

— Cardoso, faz o seguinte: me diz os


nomes delas por inteiro, com idades inclusive,
que vou ver o que posso averiguar, mas não
prometo nada, até porque se você tem tanta fé
no seu Deus elas nada sofreram. Não acha?
Ele chega a afastar o auscultador do
ouvido e levar o indicador ao gancho do
aparelho para cortar a ligação mas se contém.
“O meu Deus, o meu Deus! Mas que
sujeitinho ordinário. Ateu ainda por cima!”
― Olha, minha filha se chama Elizabeth
Maria Costa de Albuquerque e tem vinte e nove
anos. Minha neta se chama Maria Isabel
Albuquerque Ribeiro e está com onze anos. Se
você precisar também do endereço ...
— Não, não, isto basta por enquanto.
Deixa eu anotar aqui, um instantinho só —
Gouveia o interrompe —. Ligo no caso de
saber alguma coisa.
ã153

Cardoso permanece ainda por instantes


com o antebraço direito suspenso no ar,
telefone na mão e o cotovelo amparado na
quina da mesa de seu pequeno escritório
doméstico. Súbito, invadem a pequena peça,
vindos através o corredor e desde a distante
sala de estar palavras de lamentos e queixumes
dolorosos de Maria Eduarda, dirigidas Cardoso
não sabe a quem.
Com o coração a bater aceleradamente,
abandona o assento, deixa cair o celular sobre a
mesa e arremete em passos desiguais com uma
ideia apenas na cabeça, certo de que alguma
notícia nada agradável acaba de chegar aos
ouvidos da esposa.
Maria Eduarda se encontra encolhida no
longo e confortável sofá de napa castanho
claro, com seu celular imprensado por ambas
as mãos contra a orelha esquerda e chora
copiosamente embolando frases e soluços
como uma criança. Estacando a dois passos
ã154

diante dela, Cardoso compreende que Maria


Eduarda está falando de todo o seu desespero à
irmã mais velha, Carlota, tratada
carinhosamente por todos da família como
Carlotinha.
Emocionado e tomado de imensa ternura,
aproxima-se pelas costas do sofá e, com
suavidade, lhe agasalha a cabeça entre as mãos
para lhe afagar os bem tratados cabelos
cinza-prata, tomado de profunda ternura por
esta mulher a quem ele jamais gostaria de
ver sofrer.
— Não sei mais nada, minha irmã, eu
confesso que não sei. Luizinho está procurando
um jeito de saber como se faz numa hora destas
— ela vai soltando sua tristeza por entre
grossas lágrimas.
Temendo que Maria Eduarda esteja
sofrendo uma síncope quando ela cai de lado
no sofá, Cardoso toma-lhe o celular das mãos
e busca assumir o diálogo, agitado.
ã155

— Boa-noite, Carlota, boa-noite. Olha,


depois a gente se fala, parece que a Maria
Eduarda desmaiou!
Mal ele contorna o sofá para ajoelhar-se
diante dela, soa o telefone do apartamento..
Cardoso quase se arrasta no macio
tapete tentando pegar o aparelho e a um só
tempo olhar por Maria Eduarda.
— Sim, pois não — atende afobado.
É Pedro Henrique quem se identifica na
outra extremidade da linha.
—Ah, sim. Desculpe eu demorar a
atender. A Maria Eduarda está aqui como que
desmaiada, que nem morta, Pedro Henrique.
Tenho que reanimá-la. Ligo pra você num
instante.
— Chamo o senhor daqui a uns. cinco,
dez minutos, então.
ã156

Ele nem sequer espera o sinal de


finalização da chamada para correr à copa
em busca do que possa reanimar Maria
Eduarda, mas o máximo em que consegue
pensar é num copo com água.
“Não posso tremer, não devo fraquejar.
Maria precisa de mim e eu tenho que me
manter calmo”, é o que domina seus
pensamentos neste em que retorna à sala.
— Tome, benzinho, acalme-se — passa-
lhe com suavidade o copo, mais tranquilo
porque ela se aprumou no sofá e o encara
com um olhar pleno de ternura.
— Era o Pedro Henrique. Pedi que
ligasse daqui a pouco.
— Oh, Luizinho, por que Deus está
fazendo isso conosco? Por quê? — Maria
Eduarda diz e procura se aconchegar ao
peito do marido qual criança assustada.
ã157

Ele lhe sorri condescendente e lhe beija


os cabelos.
— O que é isso, minha dona
Eduardinha do meu coração! Deus não está
fazendo nada de mau com a gente! Daqui a
pouco, você vai ver, nossas duas amadas
estarão entrando por aquela porta. Já vejo a
Beth com aquele jeitão dela largando as chaves
do carro por aí e correndo pro quarto pra
beijar o Eduardinho. A Belinha, que nem um
papagaio, a contar as novidades da festa ...
Mas por dentro de si Cardoso reconhece
haver bem poucas oportunidades de essas
ideias fantasiosas se concretizarem. Olha para
um lado e para outro em sua imaginação, na
esperança do surgimento de um resquício de
esperança, um fiapo de fé num caso fortuito
qualquer que tenha obrigado Beth a se atrasar
e mudar o itinerário sem danos a ela e a
Belinha.
ã158

“A estas horas é claro que não dá mais


pra ligar novamente lá pra casa da menina
da festa pra perguntar se a Beth, quem sabe,
levou alguém de carona. Seria um tiquinho
mínimo de esperança se essa pessoa morasse
longe. Mas, ainda assim, a Beth telefonaria!”
Por mais de uns dois ou três minutos o casal
permanece abraçado e silente, seus olhos
colados no infinito, até que o telefone vem
movimentá-los com sua campainha aguda.
É Cardoso quem atende.
— Sim, Pedro Henrique. Você me
desculpe, naquela hora a Maria Eduarda tinha
justamente acabado de desabar aqui no sofá.
Fiquei sem saber o que fazer, se falava com
você ou a acudia. Ela já sofreu muito com
quedas de pressão, você talvez se lembre.
— E agora, ela está melhor?
— Estamos que nem dois bêbados, dois
paus ocos e podres, um se amparando no
outro pra não despencar de vez — ele se
ã159

espanta de ter conseguido emitir um ligeiro


sopro pelo canto da boca na fraca imitação
de um risinho chocho.
— Bom, vou então ser breve. Consegui o
telefone central do serviço de atendimento
médico, o SAMU. Disseram não constar até
agora, em todo o grande Rio, atendimento de
urgência com os nomes delas, nem em vias
públicas nem em residências.
— Nada então por esse lado? — a voz de
Cardoso é menos uma pergunta do que um
sofrido lamento.
— Nada, Doutor Cardoso.
“Será que ele vai ficar só nisso? Deus,
é a filha dele também, uma criança ainda, que
está em jogo!”, estranha o jeito um tanto
seco de Pedro Henrique, parecendo-lhe o
modo de alguém que acabou de cumprir uma
tarefa rotineira qualquer.
ã160

— Está bem, então. Se eu precisar de


você amanhã, porque daqui a pouco é meia-
noite e você precisa dormir, eu volto a ligar.
Boa-noite, e muito obrigado!
Cardoso não distingue o que é dito do
do outro lado da linha antes de desligar.
— O que foi que aconteceu, Luizinho? —
Maria Eduarda o olha assustada.
— Numa hora em que estamos nós
dois aqui com os nervos em cacos, o Pedro
Henrique vem falar de um jeito muito
burocrático, dizendo as coisas assim como se
fosse preto ou branco, sem ao menos um
palpite, um oferecimento que seja pra tentar
outros caminhos. Meu bem, será que ele não
vê? A filha dele está … está não se sabe onde
a estas horas da noite, uma menina de onze
anos, e ele ...
— Não fique assim, amor. Vai piorar
tudo. Você sabe que ele nunca se conformou
ã161

em se separar da Beth — Maria Eduarda busca


alcançar a mão de Cardoso.
— Mas ele falou foi com o SAMU,
Luizinho?
“Essa informação do Pedro Henrique
é, desgraçadamente, uma faca de dois
gumes. Se por um lado elas não precisaram
do atendimento de ambulâncias é porque não
aconteceu acidente com elas”, Cardoso vai
desfiando suas deduções.
“Isso quer dizer que temos que pensar
em outras coisas que não batida de carro,
muito menos atropelamento porque na certa
elas estacionaram em frente à casa ou
perto, sem necessidade de atravessar ruas”
— Amor, deixa eu falar com o Emílio,
talvez ele tenha alguma ideia, sei lá. Temos que
tentar de tudo — Cardoso diz perguntando-se
onde deixou seu celular.
12.
ã162

— Alô! Alô! Antônio? Aqui é o Emilio,


… o Emilio Pimenta! Você me deu carona lá
num posto do Aterro dia desses, lembra?
A resposta não tarda mais que dois
segundos.
— Oi, Emilio! Claro que estou
lembrando! O que...
— Antônio, mil perdões por te chamar
numa hora dessas. Você está em casa?
— Estou em casa. Pode falar. O que
houve?
— Sei que é chato isso. Afinal de contas a
gente voltou a se ver depois de não sei quantos
anos, você me deu carona, e agora, assim de
repente, telefono pra você quase entrando na
madrugada pra te pedir um favor.
— Tem problema, não, Emilio. Se eu
puder te ajudar... — o tom de voz de Antônio é
de calma, o que o incentiva a prosseguir.
ã163

— Antônio, antes de tudo te digo que


procuro você porque o caso parece ser grave,
envolvendo algum crime, okay? A filha e a neta
do meu sócio de escritório, o Cardoso, foram a
um aniversário de criança na Ilha do
Governador, saíram de lá antes das sete e até
agora não regressaram. Ele mora em Botafogo,
no Largo dos Leões. O genro dele, pai da
menina, disse pro Cardoso que teve informação
de que não constam atendimentos a pessoas
com os nomes delas em todo o Grande Rio. O
Cardoso, coitado, e a esposa dele estão
desesperados, lógico, não são mais crianças,
podem ter um troço de uma hora pra outra. Já
que você é policial, um delegado...
— Sei, sei, Emilio. Entendi tudo.
Realmente, demorar cinco horas pra vir da Ilha
do Governador até Botafogo, nem que elas
viessem a pé!
Emilio aguarda.
ã164

— Escuta, eu não sei quem é o titular da


trinta-e-sete. Você está onde? — Antônio dá
realce à pergunta dele.
— Eu, em casa, mas, Antônio, se você
precisar que eu me encontre com você..., o
Cardoso não digo, não sei a essas alturas como
ele e a mulher estão lá, sozinhos com essa
ansiedade toda — ele revê por instantes o
quadro geral traçado por Cardoso a respeito dos
contatos e apelos anteriormente feitos.
— Deixa eu raciocinar, Emilio. Você sabe
o endereço de onde a filha do Doutor Cardoso
saiu, ou pelo menos o bairro? Porque a Ilha é
enorme e se divide em bairros, Freguesia,
Ribeira, Bancários, Galeão e não sei mais o quê
e eu precisaria ainda do número, modelo, cor e
outros detalhes do carro dele.
A sensação de Emilio é como se uma
pedra de gelo estivesse sendo-lhe enfiada
entranhas a baixo. Justamente quando ele se
depara com alguém que se mostra, de forma
ã165

objetiva, disposto a ajudar Cardoso, aparece


este detalhe da localização da casa de onde
Beth partiu. Talvez nem mesmo o próprio
Cardoso possa esclarecer, apavora-se Emilio
com a ideia.
“E agora? Fazer o quê? Acho eu que o
Cardoso não sabe dizer onde foi a festinha da
amiga da neta e, mesmo que a filha dele o
tenha informado, no estado em que ele e a dona
Maria Eduarda estão é bem provável que
nenhum dos dois se lembre de nada mesmo”,
estas suposições terríveis o mantêm paralisado.
— O problema é este, Emilio. Eu posso
até fazer uma varredura por lá, como se diz,
talvez até contar com a boa vontade de alguma
ronda da PM, mas precisamos de maiores
detalhes, ao menos da rua de onde a filha do
doutor Cardoso partiu, mesmo sem sabermos o
número da casa ou do edifício — Antônio
mantém-se polido e cooperativo.
ã166

— Antônio, então vamos fazer o seguinte,


mas não quero te prender mais. Telefono agora
mesmo pro Cardoso e peço a ele o endereço lá
da Ilha e também tudo do carro dele.
— Hmm..., okay. Dá pra você então me
dizer isso o mais rápido possível?
— Se eu não ligar em cinco minutos,
Antônio, será porque não consegui.
— Feito, Emilio. Fico então aguardando.
— Certo, Antônio. Mais uma vez, me
desculpe por esta aporrinhação toda e assim tão
tarde da noite. Peça desculpas por mim à sua
esposa também, mas faço isso pra ajudar um
amigo que é como um pai pra mim. Espero que
você compreenda perfeitamente.
13.
— Você está acordada, Janete? — as
palavras ditas num sussurro por Lindanalva
coincidem com o barulho da porta do
apartamento sendo fechada, sem aquele
ã167

estardalhaço que ela sempre evitou fazer e que


também não gostaria de ouvir todas as vezes
em que Janete regressasse do trabalho depois
dela.
O ar abafado do quitinete é um
aglomerado de cheiros diversos e distintos,
para o qual contribuem cinzeiros entupidos de
guimbas, fantasmas de velhas frituras e
fragrâncias amesquinhadas pela companhia de
perfumes ordinários. A única janela deste
reduzido apartamento, tipo guilhotina,
parcialmente aberta, dá asas aos ruídos
ocasionais dos poucos veículos que a estas
horas da madrugada trafegam pela Barata
Ribeiro seis andares abaixo.
Lindanalva acabou de se livrar das
volumosas e altíssimas sandálias de salto de
cortiça que, em aproveitando estar Janete
desperta, foram lançadas sem outras
preocupações para baixo do beliche com algum
estrondo.
ã168

— Chegou há muito tempo? — pergunta


com a voz abafada pela blusa despida pela
cabeça.
— Faz meia hora, por aí, acho — Janete
fala e se remexe lá em cima no segundo andar
do beliche, cuja armação emite discreto
reclamo coadjuvado pelo rápido esvoaçar de
um lençol. De pé e agora apenas de calcinhas,
Lindanalva remexe em sua bolsa.
— Oh, não, minha mãe, será que os meus
cigarros acabaram?
— Tem o meu aí em cima da pia —
informa a voz desde o alto do beliche.
— Ah, precisa, não — Lindanalva se livra
da bolsa e cruza a extensão da peça rumo à
janela, maço de cigarros e isqueiro à mão.
Umbigo encostado no parapeito, acende
um cigarro e olha as reduzidas faixas de um
céu estrelado espremidas pelas silhuetas
escurecidas e em alguns pontos salpicadas
ã169

pelas luzes das janelas ainda acesas dos altos e


feios prédios em frente. Parece-lhe estar
avistando, acima daqueles monstrengos de
concreto, um painel enorme com o rosto
brilhante e alegre de sua Lucinha, como se a
filha houvesse neste instante se libertado da
vigilância severa de Irmä Paulina, descido a
serra de Petrópolis e resolvido fazer-lhe uma
surpresa bem neste final de madrugada de um
jeito alegórico. Lucinha, a pobrezinha a quem
Lindanalva tão poucos instantes de carinho
admite ter até hoje concedido, quando recorda
a última vez em que trouxe a filha até
Copacabana para ver o mar e brincar na areia.
Coincidindo com o abrandamento das
imagens dos falares e jeitos ingênuos da filha,
robustece-se repentinamente na retina de
Lindanalva o sorriso sedutor de Heloisa e
aqueles seus olhos de água límpida de
cachoeira duma cor que somente uma vez
Lindanalva avistou lá pelas barrancas do
Araguaia, mas isto quando ainda menina e
ã170

sequer sabia existirem as noites de Copacabana


com tantas fantasias e maldições.
“Eu sempre gostei foi de homens machos
prum amorzinho gostoso, mas essa Heloísa me
fez vir uns arrepios mais dos estranhos quando
veio me falar desse negócio de eu ir ganhar
uma grana boa na Europa. O tal de Georges, o
cara de turco, me assusta por demais, mas a
Heloísa me fisgou com aqueles olhos verdes e
seu sorriso mais branco do que o melhor leite, e
agora fico nesta enrascada do diabo a pensar
por quanto tempo vou ficar sem poder ver a
minha Lucinha”, Lindanalva forma seus
pensamentos em soprando a primeira baforada
dentro do vácuo negro além da janela para de
imediato acompanhar desde aqui do sétimo
andar a luzinha vermelha de um veloz
automóvel solitariamente a desaparecer pelas
bandas da Toneleros.
ã171

“Procure não comentar este assunto com


ninguém, Linda”, Heloísa não se cansa de
repetir isso.
“Muito menos mostrar o contrato
assinado com a casa de shows de Madri”. Até
mesmo o cara de turco fez questão de lembrar-
lhe, mesmo ela não olhando muito pra cara
dele.
“Mas por que tanto segredo, Heloísa?",
ousou uma vez perguntar depois de ter ouvido
aquelas recomendações tão repetidamente, mas
o máximo que obteve foram palavras assim de
um jeito de quem fala abóbora para não dizer
abacaxi numa enrolação que a fez afinal
desistir de perguntar. Afinal, ganhar em dólares
o triplo do que Madame Caterine lhe paga bem
que compensaria ficar um ou dois meses sem
ver a filha. Mas esta última desvantagem vem
aos poucos se agigantando em sua cabeça como
uma simples brisa que dá sinais de se
transformar num vendaval.
ã172

Conhecer Janete, Lindanalva conhece


desde que se encontraram naquela boate do
Posto Seis, que então estava promovendo testes
para recepcionistas, mas considerá-la como
uma amiga com quem possa repartir segredos
como este da ida para a Europa, somente
porque ambas dividem o aluguel deste
quitinete há pouco mais de seis meses, é a
dúvida que neste momento lhe assalta o
pensamento, quando a figura de Heloísa lhe
lembra o peso todo de seu afastamento da filha.
Ela puxa uma forte tragada do cigarro e o
arremessa com um piparote pelo vazio noturno.
“Meu Deus, mas de repente caiu a ficha
de que preciso me abrir com alguém, todas as
vezes em que vou a Petrópolis peço a Deus que
seja pela última vez, que eu possa pegar minha
filha pelo braço e dizer para aquelas freiras que
Lucinha agora vai morar comigo e que elas
nunca mais verão a cor do meu dinheiro, esse
dinheiro que elas fingem não saber de onde
vem e que não podem rejeitar'”, Lindanalva se
ã173

abate diante desta insegurança, mas o


compassado roncar de Janete lá no alto do
beliche a faz reconhecer que está só,
absolutamente solitária e nua.
“Uma dançarina e puta como eu não
encontra amigos, encontra compradores”, com
este julgamento Lindanalva senta na beirada da
cama, o andar mais baixo do beliche, bem rente
ao chão, afunda a cabeça por entre a concha
das mãos e se rende ao pranto.
Num piscar de olhos, porém, o rostinho
ingênuo e ansioso de Lucinha é eclipsado por
uma outra imagem, que com aqueles seus olhos
imensos como as lagunas lá do Brasil Central
parece examiná-la de alto a baixo e repetindo,
como sempre fazia Lucimar, aquelas palavras
da Bíblia que diziam que pobre do homem que
acredita no homem. Mas a irmã, com todo o
seu apego a igrejas, orações e conselhos de
pastores viu-se enredada, a coitadinha, da noite
para o dia em uma cruel cilada, provocada
ã174

Lindanalva ainda não sabe exatamente por


qual homem lá na estrada de Teresópolis.
Esta madrugada, enquanto Janete ressona
lá no leito superior do beliche, Lindanalva
pressente que apreciará os primeiros raios de
sol se refletindo na vidraça da única janela
deste apartamento quitinete abafado, sem que
tenha merecido a graça de meia hora de sono
que seja, sofrimento alargado por estes sinais
que o seu coração começa a lhe enviar com
uma constância exasperante, cruel, de que
alguma coisa carece ser feita para que seu
sofrimento de mãe distante da filha criança por
menos de cento e cinquenta quilômetros,
atualmente, não se alastre de forma tal e de
incerto futuro como esse trabalho longe de sua
terra e de Lucinha.
14.
Silvinho bem que achou estranho quando
Katia Joplin chegou em casa ao raiar do dia
trazendo, assim um tanto disfarçada, aquela
ã175

bolsa que ele sabe ser feita de couro finíssimo,


um material que não tem nada a ver com
aquelas imitações furrecas que ela, suas três
irmãs e a turminha frequentadora dos bailes
funk do clube Wonders Social andam a exibir
pela comunidade como “de marca”. Ele havia
se deitado logo depois da meia-noite, bastante
chateado porque de nada valeram suas
insistentes tentativas para atrair a atenção do
garboso Paulo, que recentemente recebeu
aquele lindo emblema metálico das duas
asinhas que os paraquedistas exibem no peito.
Por várias vezes, ele tem certeza,
vislumbrou direitinho nos lindos olhos do
sensual soldado aquelas fagulhas traidoras dos
machos que, mesmo contando lorotas pras
popozudas e menininhas de que o caso deles é
mulher, não renegam “aventuras diferentes,
desde que feitas discretamente, longe da
família e dos amigos”
ã176

Esta noite, tendo avistado Paulinho na


pista de danças com suas calças jeans que dão
a impressão de costuradas em cima daquelas
torneadas coxas de malhador e peladeiro em
requebros colados à bunda de uma crioula
super da oferecida, ele chegou a sentir-se mal
do coração, suando frio, garganta seca e o sexo
a emitir insistentes apelos de imediata
satisfação.
Seu azar foi que o Josimar mais o
Neguinho da Vinte-e-Oito passaram bem
colados a ele e sacaram sua afobação num
relance. Em poucos minutos, voltaram com o
Dico Perereca, um dos seguranças da Wonders,
e de propósito o Josimar lhe deu um vigoroso
empurrão com a clara finalidade de entornar
seu copo de cerveja.
— Vai vazando, mané, que aqui não tem
área pra esquentar rosca, não! — foi o próprio
Dico Perereca quem falou. Logo este, o
segundo homem de poder na boca do Zé
ã177

Vinagre, um cara topador de parada com os


vermes e que sempre anuncia estar se cagando
até pro Bope..
Mas fazer o quê? Ele voltou pro barraco,
foi na geladeira da mãe, filou uns grudes já dos
bem azedos e pulou no colchonete, esta noite
os cocôs de galinha que polvilham de pintinhas
brancas o pontiagudo e cimentado piso deste
quartinho que Silvinho divide com suas três
manas dando-lhe a sensação de feder muito
mais.Amaldiçoou Dico, Neguinho da Vinte-e-
Oito, Josimar e aquela macaca de shortinho
branco que esfregava o cu nas coisas que ele
tanto ambiciona, e xingou muito mais gente
ainda, principalmente todas aquelas menininhas
que ao final do baile iam na certa ficar com
alguns daqueles machos da comunidade.
Mas também, pra dizer a verdade e
pensando bem, homem mesmo pra ele não tem
como o Apolinário lá de Copacabana. Se houve
dinheiro de que Silvinho nunca sentiu falta foi
ã178

aquele que deu ao vigoroso negão em troca de


algumas cheiradinhas e lambidas naquela
mandioca que — Valha-me Deus! — deve
com certeza botar a do Paulinho no chinelo, ele
aposta. Pena a Madame lá da boate haver pego
os dois no flagra, mas foi bom enquanto durou.
Madame Caterine até que é uma gringa
bem legal, sempre pagou direitinho pelos
servicinhos de limpeza que ele fazia na boate
dela e até mesmo teve a boa vontade de
arranjar o cartão com o endereço daquele
advogado, o tal Doutor Emilio Pimenta, que
pelo jeito como ela encheu a bola do homem
devia mesmo ser um freguês de cama e mesa
dela.
Aquele problema que o governo estadual
estava criando com seu tio, graças ao bom
Deus foi resolvido. Mas bem que o Doutor
Pimenta podia levar um papo com a Madame
pra ela esquecer o que houve com o Apolinário,
não podia? Azar dele, Silvinho reconhece, foi
ã179

ter tomado naquela manhã em que foi trabalhar


na firma de limpeza, uma das pastilhas que viu
a mana Katia Joplin tomando mais de uma vez,
achada por ele numa mochila da mãe, uma
coisa que até hoje ele não sabe explicar o que
era e como aconteceu.
Vieram-lhe então logo aqueles tremores
misturados com tesão e um sentimento de
abandono total, mais um desejo imenso de ter o
Apolinário todinho, uma coisa de doido que
acabou naquela merda de cortar o pulso
dentro do escritório do homem a quem ele foi
pedir o favor de levar um lero com aquela
madame, patroa do Apolinário.
Por sinal, cacete, aquele advogado nem
estava lá, mas o outro, um senhor super gente
fina, advogado também e que a secretária
tratava pelo nome de Doutor Cardoso, foi
maravilhoso mesmo e em nenhum instante deu
esporro nele por causa da sangueira besta que
aprontou no banheiro. Ainda bem que quando
ã180

saiu de lá daquele prédio, um pouco


cambaleante no meio daquela confusão toda
em que a cidade tinha virado e se arriscando a
ser confundido e preso pelos PMs que estavam
sentando porrada com vontade a três por dois,
sua cabeça já estava clareando, embora os
cortes no pulso e a vergonha o enchessem de
remorso.
Chato foi, além de tudo aquilo, perder um
dia de trabalho, porque ele não tinha a cabeça
fria pra caminhar até o escritório da limpadora
na Treze de Maio, pegar crachá, uniforme e
toda aquela tralha de limpeza pra sair fazendo
faxina pelo dia inteiro.
“Um dia, se Deus quiser, ainda encontro
aquele senhor, o Doutor Cardoso, pra agradecer
a atenção com que ele e a secretária dele me
trataram. O outro, o Doutor Emilio, pode até
ser legal também, mas não deu pra eu ver ele, o
que mais me interessava quando me deu na
telha de ir lá, porque eu tinha fé em Deus e
ã181

meus orixás que ele podia falar com a patroa do


meu adorado Apolinário”
Enquanto divaga nestes pensamentos,
felicita-se por ter conseguido amainar em seu
corpo as até pouco tempo vigorosas ânsias de
ter na cama, ainda que sendo neste miserável
colchonete, um homem que o domine e penetre
de um modo como em seus sonhos vê o
gigantesco Apolinário fazer.
Mas Silvinho sabe que, pelo menos neste
triste restinho de madrugada nada semelhante
acontecerá além da rotineira chegada de suas
irmãs vindas do baile funk e talvez até, uma ou
outra delas, de uma passagem ligeirinha por um
daqueles motéis baratos da Avenida Brasil,
cujos sonolentos porteiros noturnos cerram
suas cansadas pálpebras diante da proibição à
entrada de menores. Elas virão alegres por
bebedeira e outros incentivos ao corpo e à
mente e tirarão em algazarra de vozes babadas
suas roupas junto a ele.
ã182

Sem dúvida a Marineide se estirará no


colchonete bem ao seu lado, os pés dela quase
atingindo seu rosto, sem se importar, a menina
sonolenta, que a tíbia claridade penetrante no
abafado cômodo através da janela basculante
revele ao irmão o perfil e a cor de suas
pequenas nádegas de adolescente mal cobertas
pela suja calcinha manchada de muitos usos.
Ele vai sentindo o sono se aproximar e
lamenta bastante não estar esta noite com a
mínima paciência para enrolar seus longos e
bem tratados cabelos.
“Vou amanhecer horrível, meu Deus!”
Despindo-se e permanecendo apenas com
uma das calcinhas que fez questão de trocar
com Katylene, barganhando a entrega de um
CD recebido de um amiguinho, Silvinho volta
neste instante a pensar naquela larga bolsa de
couro vermelho brilhante com aplicações
metálicas em dourado trazida pela Katia Joplin
ã183

quando voltou de carona com o namorado na


noite de ontem.
Bem que ao ver a irmã regressando com
aquele negócio pendurado no braço esquerdo
ele arriscou um comentário pela aparente
novidade.
"— Poderosa! Abalou geral, querida!" —
tendo porém em troca não mais que um "—
Não fode! Fica na tua, seu cuzão"
Mas bem que agora, em se lembrando que
além da truculenta resposta alguma coisa de
diferente lhe transpareceu no comportamento
da Katia Joplin de um modo tal que ele negaria
como maior causa a simples queima de alguns
sacolés, Silvinho agora sente-se tocado pela
curiosidade em ver de perto e bem melhor
aquela “bolsa de madame”.
Verificou que Katia Joplin a largou de
qualquer jeito lá na cozinha, imprensada entre
o botijão de gás, duas vassouras e uma caixa de
latas de cerveja vazias, importando-se na
ã184

ocasião mais em se atirar na cama do que exibir


melhor a bolsa e muito menos comentar a
respeito.
O domingo transcorreu sem que qualquer
uma das outras irmãs mostrasse pelo menos ter
avistado aquele artigo estranho para o cenário e
os costumes do barraco, e nem mesmo dona
Iracema, a mãe de todos eles, vindo muito
rapidamente em casa, quando aproveitando um
intervalo em sua apertada jornada de trabalho
como enroladora e empacotadora da cocaína
comercializada pelo maioral da boca local, deu
mostras de ter visto a novidade.
Silvinho se dirige ao canto do barraco
utilizado como cozinha, onde se situam um
velho fogão a gás de duas bocas com o seu
correspondente botijão e um tanque de cimento
escurecido, empregado tanto para lavagem de
roupas como das poucas e quase nunca usadas
panelas e pratos de latão.
ã185

Senta-se no frio e húmido concreto e abre


a bolsa com a boca para baixo. De dentro
escorrem a princípio um telefone celular, um
pequeno frasco de desodorante, um chaveiro
com três chaves reunidas e um batom. Curioso
ao notar que a bolsa denota possuir ainda mais
algumas coisas em seu interior, ele procura
abri-la melhor e logra retirar lá do fundo um
porta notas vazio, um boné de pano com a
propaganda de um banco comercial, bem
amassado, e finalmente um porta-documentos
com capa plástica azul marinho, algumas
moedas de centavos e um estojo circular de
maquiagem com espelhinho.
Silvinho distribui entre as pernas abertas
tudo que saiu da bolsa, mas sua primeira
atitude, num exame mais detalhado, é
esquadrinhar o interior do porta-notas, mesmo
sabendo não haver aqui uma única cédula ao
menos, onde encontra dois cartões de crédito,
uma carteira de identidade e alguns cartões de
visita.
ã186

Satisfeita então sua primeira curiosidade,


Silvinho se interessa em conhecer quem perdeu
tudo isto. O cartão de identidade fornecido pela
Secretaria de Segurança Pública do Estado do
Rio de Janeiro foi expedido a Elizabeth Maria
Costa de Albuquerque, uma pessoa de rosto
comum, nem feia nem bonita pelo julgamento
dele, ostentando um cabelinho curto, com uns
olhos arredondados e boca pequena.
“Quem será essa tal Elizabeth Maria?”,
ele se pergunta. Conclui ser pessoa totalmente
desconhecida, tanto dele como de qualquer das
suas irmãs, pois nunca qualquer uma delas
pronunciou este nome, nem muito menos
aquelas viciadas têm gabarito pra ser amigas de
uma mulher que compra bolsas igual a esta e
que tem cartões de crédito.
“Elizabeth Maria Costa de Albuquerque”,
ele volta a admirar aquele nome. No campo de
filiação, ele lê que ela é filha de Luis Armando
Cardoso de Albuquerque e Maria Eduarda de
ã187

Albuquerque e nasceu em quinze de novembro


de mil novecentos e oitenta e quatro no Estado
do Rio de Janeiro.
A escalada no seu exame dos documentos
prossegue com ele abrindo e examinando em
detalhes o conteúdo do álbum de capa azul
marinho, dali extraindo com extrema avidez
outros cartões de identificação, sendo dois do
Departamento Nacional de Trânsito, um deles
da mesma Elizabeth e o outro pertencente a um
homem chamado Luis Armando Cardoso de
Albuquerque.
“Acho que ela estava dirigindo o carro do
pai dela, porque, porra, esta carteira de
habilitação diz o mesmo nome que vem na
identidade dela como sendo de seu pai”,
Silvinho se admira e dá a si mesmo um palpite:
“A dona aqui pegou a caranga do velho,
mas como foi perder todos os documentos só a
queridinha da minha irmãzinha pode me dizer,
ã188

desde que aceite numa boa eu ter mexido


nestes bagulhos”
“Opa! Mas espera aí!”, Silvinho teme ter
um ataque de histeria, mas uma histeria alegre,
sair gritando e dando vivas e mais vivas ele
ainda não sabe a quem. Sim, porque justamente
por entre os documentos plastificados acaba de
cair um cartão de visitas exatamente igual
àquele mesmo cartão que Madame Caterine
deu pra ele uma vez, um cartão em bom papel
de linho com as letras e os números desenhados
em alto relevo onde saltam aos seus olhos
agora excessivamente brilhantes o nome
Pimenta Cardoso Advogados e abaixo, em
tamanho menor, Luis Armando Cardoso de
Albuquerque e Emilio de Assis Pimenta, tudo
exatinho, até mesmo o endereço aonde ele foi.
No modesto e sujo barraco, o perfil
magrelo e seminu de um jovem em requebros,
de braços estirados para o alto e quadris e
murchas nádegas oscilando numa dança
ã189

bizarra, forma uma imagem pretensamente


escudada na fé religiosa com os altos brados de
Silvinho.
— Aleluia! Aleluia, bom Deus! Puta que
pariu que vou aparecer naquele escritório com
tudo em cima, por cima da carne seca! Caralho!
Uaauuuu!!!

15.
— Doutor Emilio!
Sonolento, ele se contorce no leito antes
de esticar o braço para apanhar o telefone na
mesinha de cabeceira e responde, preguiçoso.
— Si-sim?
— Doutor Emilio, aqui quem fala é o
Jorge, sobrinho da dona Maria Eduarda, a
esposa do doutor Cardoso.
— Ah, sim, …
ã190

Sentado na beirada da cama, mas com o


tronco ereto, suspeita ter percebido sons
identificáveis como soluços do outro lado da
linha misturados a gritos de desespero.
— Doutor Emilio, perdão porque está
difícil falar... mas...
— Fale, Jorge. O que foi? —. Seus dedos
se enroscam por entre o fio do telefone e seus
olhos se arregalam perdidos além das paredes
do quarto.
— É que, não sei se o senhor sabe, a
Sônia, minha esposa, tinha pedido a uma amiga
dela, casada com um comandante da Polícia
Militar, pra ele ver se ajudava a gente.
— Acho que o Cardoso falou comigo
qualquer coisa, sim, mas o que aconteceu?
Notícias ruins? — Emilio fala apressado,
ansioso ao sentir que estas dispensáveis
preliminares de apenas como uma simples
cortina que logo se abrirá para desnudar a
inevitável tragédia.
ã191

— Doutor Emilio, o Coronel disse que


encontraram os corpos de uma mulher ainda
jovem e de uma menina perto de uma favela de
Bonsucesso.
“Pronto. Esta etapa está vencida. Não
podia dar coisa diferente. Os pobres do
Cardoso e dona Maria Eduarda já estavam com
esse resultado armazenado lá bem dentro deles,
guardado naquele compartimento escuro criado
ou por Deus ou pelo homem”, Emilio afasta
com vagar o fone do ouvido e respira fundo
tomado pela desconfiança de que doravante sua
vida ingressará por caminhos jamais por ele
supostos.
“Depois do acidente com a coitada da
Lucimar, somente este tremendo golpe na
família do meu amigo Cardoso para arrebentar
de vez minha cabeça”, Emílio lança as pernas
pra fora do leito tomado por um misto de
inutilidade e revolta consigo mesmo por, lá no
fundo de sua consciência reconhecer o brilho
ã192

do egoísmo frente ao perigo do encerramento


do escritório de advocacia, se acaso o bom
Cardoso não tiver condições psicológicas para
prosseguir trabalhando após essa desgraça.

16.
Lindanalva resolveu, de uma hora para
outra, tirar de vez sua filha do internato de
Petrópolis e trazê-la para morar consigo, mas
agora ela raciocina como resolver este
problema, porque não dá para deixar sua
querida Lucinha sozinha, trancada num
quitinete imundo em Copacabana, enquanto ela
e Janete saem à noite para trabalhar na boate.
“Mesmo que a Janete não trabalhasse à
noite, ela não é uma pessoa em quem confio
pra cuidar de minha filha, dando comida pra
ela, banho, e ainda por cima correr atrás de
escola no Rio”, Lindanalva põe- se a pensar
nestas coisas temerosa de que talvez tenha se
precipitado em trazer Lucinha para viver com
ela.
ã193

Além de tudo não lhe sai da cabeça a


ideia de que é preciso dar um jeito de roer a
corda com o tal cara de turco e Heloísa, mas de
um jeito total que eles não possam encontrá-la
em lugar nenhum. O tal Georges, ela sempre
sentiu isso, tem um olhar de quem mata
cantando.
“Melhor lugar para eu me esconder não
tem como minha terra, lá nas grimpas do meu
Mato Grosso! Caracas! E esta semana o meu
passaporte fica pronto"
Lindanalva sorri e beija Lucinha nos
olhos, com sua cabeça a divagar perdidamente
em imagens de entardeceres e pés descalços no
lodo da beira do rio, o zum-zum intermitente de
mosquitos, o som abafado de óleo quente de
cozinha a borbulhar numa frigideira
enegrecida, onde uma boa posta de peixe mil
vezes rolada na farinha de mandioca vai se
doirando.
ã194

“Quer saber de uma coisa? Já hoje não


dou as caras lá na boate, converso com a Janete
e digo que a Lucinha só dorme lá no
apartamento esta noite e que amanhã mesmo
viajo de volta pro Mato Grosso. O passaporte?
Quero que a Heloisa e aquele Georges se
lixem”, Lindanalva é assaltada pela ideia.
17.
Georges acabou de repor o telefone no
gancho e tem aquela cara de poucos amigos,
com a qual ela já está acostuma da mas que
nem por isso a deixa tranquila, ainda mais
quando a razão das contrariedades
manifestadas por ele tem a ver com dinheiro,
no caso presente mais do que dois mil e
quinhentos dólares.
— Calma, Georges, vamos achar uma
solução para isso, ela não pode ter se
evaporado assim da noite pro dia — Heloisa se
encontra sentada num pufe forrado em imitação
de pele de onça bem condizente com as
ã195

estreitas e longas listas negras e amarelas das


suas justas calças de veludo grená regiamente
desprovida de mangas e farta no decote. Em
frente a ela uma baixa e oval mesinha
decorativa encontra-se repleta de passaportes
dignos de sua presente atenção.
Trajando larga bermuda esverdeada,
sandálias de dedos e torso nu, Georges não
esconde a irritação que o domina e o obriga a
caminhar por entre sofás e poltronas da ampla
sala entupida pelo gosto kitsch nos mais
diversos objetos e utilidades. Sua agenda de
mesa com capa em imitação crocodilo e o
telefone celular imprensados entre os dedos da
mão direita o acompanham. Neste seu trajeto
descompassado alguns dos falsos tapetes persas
e afegãos sofrem ocasionais e pequenas
ondulações sob um pisar nervoso.
— O Barrientos não quer perder a reserva
porque vai aproveitar pra ir à Catalunha
resolver uns assuntos pendentes de um
ã196

sobrinho dele de São Paulo, mas vem essa


Lindanalva querendo roer a corda assim em
cima da hora!
— Mas não se precipite em fazer asneiras
por causa do gordo, Georges. Ele está levando
o dele na moleza e a gente é que se mortifica
assim, às vezes a troco de nada — Heloisa
afirma com vagar e sem olhá-lo, fazendo-se de
distraída no manuseio de um dos passaportes.
Ele se detém junto a uma poltrona e se
deixa cair sentado de qualquer maneira,
abruptamente, de um proceder tal que faz seus
dois medalhões e o crucifixo que traz
pendurados ao pescoço por uma robusta
corrente de ouro tilintarem em surdina contra
um cabeludo e possante tórax.
— Não é nada disso, Heloísa. Não tiro da
cabeça que aquela pau-de-arara está fugindo da
gente, desistiu da viagem depois da grana toda
que empatamos em nome dela.
ã197

Georges fala soprando em ira e lança a


agenda e o celular em cima do sofá mais
próximo. Heloísa ergue os olhos em sua
direção, afasta devagar a mecha de cabelos que
lhe caiu sobre o olho esquerdo e ri em
provocação.
— Pau-de-arara, não, meu querido! Ela é
do Mato Grosso e tem nada a ver com o
nordeste.
— Seja ela que diabo for, mas tinha que
nos procurar pra tirar a vacina. Nem mesmo
telefonou pra nos dar uma desculpa. Vai ver
que nem foi apanhar o passaporte pronto.
Heloísa se ergue e caminha para um
aparador pleno de pequenos bonecos de argila,
porcelanas, pratinhos de cobre de Cuzco e
variedades da espécie, para pegar seu maço de
cigarros.
— E se a gente embarcar as outras quatro
agora e mandar a Linda depois? O português já
está no Rio, e assim o Barrientos não ia ficar
ã198

prejudicado. O que acha? — ela fala e lança


fumos azulados ao teto sem olhar para
Georges. Como se uma gigantesca mola o
impulsionasse, ele dá um salto da poltrona com
os braços agitados em cruz.
— Muito bonito mesmo, hein! Caiu de
amores pela... mato-grossense.
Heloísa solta uma estrondosa gargalhada
com os olhos perdidos em qualquer ponto do
teto e sem se voltar para Georges.
— Não seja tão mesquinho, meu amor.
— Vou dar mais um dia pra ela aparecer,
vinte-e-quatro horas, entendeu? Se ela não
procurar a gente, vasculho tudo que é boate,
bar, cabaré e puteiro por aí. Acabo encontrando
a desavergonhada, aquela caloteira filha da
puta. Ela vai ter que me devolver tudo que
empatei em dólares em nome dela. Se não for
assim, ligo de imediato pro Danoninho. Você
bem sabe que faço isso mesmo. Piranha
nenhuma me fode assim, sem ter uma volta.
ã199

Heloísa lhe dirige os esmeraldinos olhos


numa resposta sem palavras mas de um modo
bastante claro para que Georges entenda sua
plena compreensão calcada no reconhecimento
de sua absoluta impotência diante deste homem
cuja potencialidade para o mal somente
encontra paralelo na do próprio diabo. Ela
retorna em seguida à tarefa interrompida do
exame dos passaportes, com o pensamento
calcado na verdade de sua crença em Deus e na
absoluta inutilidade de querer negar os
demônios que assolam sua vil existência.
18.
Estas últimas vinte e quatro horas têm
sido para Emilio um verdadeiro pandemônio
com o trabalho duplicado no escritório, uma
audiência no Tribunal de Alçada, redação de
petições para que a bastante assoberbada dona
Dulce digitasse e visitas rápidas a Cardoso,
hospitalizado por causa de um princípio de
enfarte do miocárdio desde as primeiras horas
ã200

de domingo, quando todas as circunstâncias


envolvendo a falta de notícias de sua filha Beth
e da neta Maria Isabel apontavam para a quase
certeza de algum acontecimento trágico e
funesto.
Sentado diante do prato com salada e
sanduíche acompanhado de suco de acerola
nesta pequena e bastante aconchegante
lanchonete da Cinelândia, a dois passos
praticamente do escritório, ele suga com
lerdeza e desânimo o suco com a impressão de
estar aqui mesmo, observando-o por entre as
mesinhas com tampo de vidro e cadeiras de
vime com bem desenhadas armações laqueadas
a verde musgo, sua sempre exageradamente
solícita e pretensa condutora e psicóloga Nely.
Emílio deposita seu copo à mesa para
olhar em volta, mas tudo o que consegue
discernir afora a presença de uma clientela
diversificada em seus aspectos exteriores e fast
food preferidos é a imagem emaciada e
ã201

desolada de seu rosto refletido em um painel


espelhado situado ao lado esquerdo da caixa
registradora.
“Desde aquela noite em que dei uma de
doido lá na boate da Caterine, por pouco não
emborcando a mesa por cima dela por causa da
história do veadinho, quase não passo uma hora
que seja sem pensar na Nely e suas palavrinhas
de sossega leão, naquele jeitinho típico de todo
psicólogo que está te enrabando mas dizendo
que não é nada disso e que você tem é mesmo
um sentimento de culpa da infância, que você
próprio precisa enfrentar se abrindo, botando as
suas bestas feras pra fora, aquela conversa
emoldurada em consultórios pasteurizados com
imagens de ikebana e pintores expressionistas,
sempre envolvidas por aquela musiquinha de
elevador na quase penumbrosa sala de espera.
“Parece-me que minha vida virou de
cabeça para baixo de uma semana pra cá desde
quando dormi lá com aquela sonsinha da Nely,
ã202

também piorada em grande parte a situação


quando peguei carona com o Antônio, esse
Doutor Antônio que da noite para o dia me
aparece como um respeitável e com toda
certeza temido delegado de polícia, um tira por
sinal que deve ter lá seu prestígio porque
trabalha para a Delegacia de Repressão e
Combate ao Crime Organizado daqui do
Estado.
“Afinal de contas um cara a quem eu não
via há uns quatro ou cinco anos e que, apesar
da minha primeira impressão me dar assim uma
pinta de um sujeito de nariz empinado, pelo
menos quando o procurei para orientação pra
este caso da filha do Cardoso, foi até bem
solícito.
“Mas que meu encontro com ele me
deixou assim de um jeito de quem está na zona
da mendicância profissional, lá isso me deixou
sim.
ã203

“Afinal de contas minha sociedade com o


bom e fiel Cardoso prosperou e nos deu uma
banca de certo prestígio entre algumas
empresas, mas por outro lado quem botou a
estrutura, enfileirou os tijolos, pôs o cimento e
a cobertura foi o Cardoso mesmo, eu entrei
com quase nada, e se por azar meu ele deixar
de trabalhar por causa desse fortíssimo abalo de
agora, reconheço que não vou ter como me
virar lá sozinho com a grande maioria de
nossos clientes de partido confiando muito
mais no trabalho dele do que no meu,
principalmente quando a coisa engrossa do
lado fiscal e societário onde o largo tempo de
praia dele nos conselhos fiscais e aduaneiros,
câmaras cíveis e mesmo Brasília me fazem
parecer um mero estagiário algumas vezes.
“Agora vêm uns caras saindo eu não sei
bem ainda de qual esgoto desta sociedade
arruinada que temos aqui e assassinam a filha e
a netinha dele.
ã204

“Estou ficando encucado com a Nely a


toda hora, também, desconfio que é porque a
própria dona Dulce, com uma cara chorosa que
nem sei o quê, com medo de perder seu
emprego ou solidariedade com o patrão maior,
olhou pra mim com aqueles olhos meio de
catarata e falou:
"— Doutor Emilio, eu sou católica
romana devota de Nossa Senhora dos Milagres,
mas na minha opinião, abaixo de Deus e todos
os santos acho que o Doutor Cardoso e a
esposa dele vão precisar muito de psiquiatras
agora "
“Sei que a nossa corujona secretária
estava querendo dizer psicólogos, claro, mas de
qualquer jeito dona Dulce pôs mais lenha nesta
fogueira que começa a se reaquecer como um
incêndio mal debelado, ameaçando-me invadir
a área onde o renascimento de um desejo forte
pela Nely vem associado a este maldito
complexo de Édipo, como Nely me diria por
ã205

trás de um sorriso triunfante, toda nua e me


amesquinhando e me sugando pra dentro dela
mesma, tal qual uma flor carnívora bem
comportada e versada em Freud, Lacan e gente
assim.
“No fundo, estarei eu usando essa opinião
da dona Dulce pra justificar uma necessidade
minha, que recuso aceitar, de me entregar de
mala e cuia nas mãos da Nely, uma psicóloga
afinal?
“Mas falando em mulher, e se não estou
precisando de óculos, ou muito me engano ou
aquela morena baixinha ali espiando os
anúncios da casa é a minha inesquecível
dançarina da Les Enfants!”
Em um segundo, toda a atenção de Emilio
sofre um corte como se fosse produzido por
bisturi elétrico, para lançá-lo com todos os
neurônios, cismas e ansiedades inteiramente
em torno da mulher jovem trajando uma calça
comprida justíssima da cor vinho, blusa do tipo
ã206

que o povo por tempos apelidou de “tomara


que caia” exibidora de ombros amorenados e
não mais que meio palmo de uma pele de
aparência deveras apetecível pela maciez
prometida. Aquele corpo se equilibra sobre
uma alta sandália de cortiça que deixa à luz do
sol uns dedos facilmente confundíveis com dez
cerejas maduras, todas envoltas numa calda de
açúcar queimado em razão da esmerada pintura
das miúdas unhas.
Desde aquela noite em que ele saiu irado
da Les Enfants por causa daquelas liberdades
de Caterine com o seu endereço comercial,
Emilio não mais pôs os olhos nessa morena a
quem a francesa atribuiu o nome de guerra de
Judy. Foi esse nome mesmo? Ele não tem lá
agora muita certeza, mas de qualquer forma sua
aparição nestes instantes em que sua mente se
vê bombardeada e jogada de um canto para
outro o agrada imensamente.
ã207

Dois brilhantes e marotos olhinhos o


enquadram desde lá do fundo da lanchonete
quando a moreninha Judy, acabando de efetuar
o pagamento do que escolheu para lanchar,
volta-se ainda com o troco e o recibo nas mãos
e lhe sorri com inegável felicidade.
— Ol! Você por aqui? Está sumido, hein!
Ela já se encontra diante de sua mesa, ventre
encostado na cadeira vazia e mãos ocupadas
com um pires de plástico portando salgadinhos
e uma lata de refrigerante com canudinho.
Emílio engole em seco, agrada-lhe o
modo descontraído com que este saboroso
misto de dançarina e prostituta acaba de se
dirigir a ele, mas em sua mente vibra o aviso do
pouco tempo disponível para engolir seu
sanduíche e logo voltar de carreira pro
escritório.
― Tem lugar aqui para mim? Lindanalva
pergunta e deposita seu lanche na mesa sem
ã208

tirar de Emílio seus grandes e provocadores


olhos de dama da noite.
― Claro, senta aí. Você quase não me
pega. Vim traçar um mata-fome, mas tenho
logo que voltar batido pro escritório. ― Ele
antecipa sua estratégia para a retirada mas
lutando para não ceder à forte tentação de ao
menos roubar alguns minutos de seu precioso
tempo de trabalho, tendo em suas mãos as dela
e sentir um pouco do seu hálito fresco
derramado por entre aquela irreprimível
carreira de alvíssimos dentes.
― Você é advogado, não? ― Lindanalva
pergunta antes de aplicar sua primeira mordida
numa coxinha de galinha à milanesa.
― Sou, sim
Ela mastiga e o examina de um jeito
divertido.
―Tem cara disso mesmo, só não guardei
foi o seu nome.
ã209

― Hmm ,,, não sei se lhe disse, nem me


lembro se naquela noite eu estava interessado
em nomes ― Emílio fala com a dose de
malícia com que toda puta espera, em seu
modo de pensar, ver temperados seus diálogos
do dia-a-dia.
― Você é a Judy, ou July, uma coisa
assim, pelo que me disse sua patroa. Não?
― Ha! Ha! Ex-patroa pra te dizer a
verdade. Me chamo mesmo é Lindanalva ―
ela o olha de um modo enviesado, estudando-o
enquanto leva o canudinho do refrigerante aos
lábios.
― Lin-da-nal-va! Nome melodioso, tem
algo a ver com linda e alvorada. Gostei. Mas ...
você disse que aquela francesa não é mais sua
patroa?
― Emílio estica o braço direito para
envolver os dedos dela que se enroscam em
torno da lata de refrigerante, momento em que
ã210

pressente pulsarem em suas entranhas e virilhas


todos os apelos sanguíneos da atração carnal.
― Estou fora daquilo! Viajo depois de
amanhã, se Deus quiser, pra minha terra com a
minha filhinha. Estou de saco cheio desse
mundinho de putaria, bêbados, falsidades,
dureza com grana curta, que é Copacabana!
― Lindanalva alteia seu tom de sua voz, mas
imediatamente busca examinar ao redor se foi
ouvida nas outras mesas.

― E você é de onde, oh Lindanalva? Ele


aumenta a pressão sobre a mão dela num
impulso de tê-la ainda mais perto, ainda que
separados pela mesinha circular.
― Nasci num brejinho lá nas margens do
rio Araguaia, pelo que minha mãe me falou,
mas cresci no Mato Grosso e tenho parentes no
Tocantins, aqueles matagais por lá, sabe? ―
Lindanalva explica e emenda com a mordida na
segunda coxinha de galinha.

"Epa! Ela é da mesma terra da Lucimar e


ã211

tem quase a mesma cara, o tamanho, a cor da


pele...", esta constatação provoca em Emílio
um frio na espinha.
― Hmm... entendo. Bem que achei que
você tem um jeito de falar diferente. Não fala
como carioca, mineira, nordestina, gaúcha,
nada disso ― Emílio une a mão esquerda ao
aconchego que busca proporcionar àqueles
dedinhos morenos e de unhas bem tratadas, ao
mesmo tempo e de relance olhando para seu
relógio de pulso.

“Tem muita coisa me esperando lá no


escritório. Dona Dulce deve estar atolada de
recados e outras tarefas que encomendei a ela
ontem. Não dá para ficar nessa masturbação
mental aqui, não. É uma pena. Fossem outras
as circunstâncias, eu daqui mesmo saía com
essa tentação pro primeiro hotel decente que
encontrasse por perto e mandava o trabalho da
tarde pro inferno. Mas por honra acima de
tudo do bom e fiel amigo Cardoso, ainda mais
nesta fase terrível, melhor arquivar certos
apelos carnais
É com esta decisão tomada que ele,
soltando a mão de Lindanalva, saca a carteira e
ã212

dela extrai, às pressas, um de seus cartões de


visita.

― Você viaja depois de amanhã, não é


isso mesmo? Pois fique com meus telefones de
casa e do escritório. Ligue pra minha casa
ainda hoje à noite, mas melhor depois das nove
porque estou atolado de serviço até a raiz dos
cabelos.

— Obrigado. Cartãozinho bonito, hein!


Aliás tenho um probleminha que quem sabe
você pode me ajudar. Tive até que deixar minha
filhinha na casa de uma amiga. Pego ela
cedinho antes da viagem e me mando daqui, se
Deus quiser.

— Está fugindo de alguém?

Emílio diz em tom de blague vendo-a


repentinamente se levantando e tomando o
rumo da saída sem olhar para trás, deixando
aos olhos dele a imagem de uma ave preciosa e
assustada.

"Se ela fosse irmã gêmea da pobre


ã213

Lindanalva as duas não se pareceriam tanto.


Preciso esclarecer esse ponto que está me
botando uns grilos na cabeça", Emílio, de pé,
procura distinguir em vão através das paredes
de vidro da lanchonete a figura mignon de
Lindanalva por entre os transeuntes.

19.

— O que foi, dona Dulce? Mas o que


foique aconteceu?
Mal Emilio acaba de cerrar às suas costas
a grossa porta de vidro de acesso à antessala do
escritório, surpreendem-no as feições chorosas
e expectantes de dona Dulce, que trêmula e de
pé por trás de sua mesa de trabalho o encara
como se dele esperasse a salvação de alguma
catástrofe iminente.
Ele se aproxima e, de um modo gentil e
assaz bastante diverso do usualmente adotado
para com a idosa secretária, lhe põe em gesto
suave a mão direita sobre um ombro e a encara
bem nos olhos à espera de alguma explicação.
ã214

— Perdão, Doutor Emilio, mas eu estava


rezando para que o senhor voltasse logo do
almoço...
Ela se interrompe e, com gestos um tanto
desastrados de suas mãos trêmulas, muda
sucessivamente de lugar, junto ao computador,
alguns papéis, sem se fixar atentamente em
nenhum deles, numa atitude para se controlar
um pouco mais diante de Emilio.
— Sim, mas já voltei e estou aqui. O que
aconteceu para a senhora ficar desse jeito? Por
que não me chamou no celular?
Emilio contorna a longa mesa de
recepção para ficar de pé ao lado de dona
Dulce e novamente fazer-lhe pressão no ombro
no intuito de convidá-la a sentar-se.
— Já tomou um pouco d'água, ou quem
sabe a senhora tem algum calmantezinho?
— Graças a Deus eu não me separo de
meu remédio pra pressão, Doutor Emilio, mas é
ã215

que hoje ... — dona Dulce acomoda-se em


movimentos lassos na confortável cadeira
giratória observada por Emilio, que começa a
se impacientar diante da demora na revelação
do que de tão grave sucedeu durante sua saída
para o almoço.
Por isso procura manter-se calado, de pé,
mãos na cintura, paletó desabotoado, olhos na
linha divisória irregular traçada no topo da
cabeça de dona Dulce em meio a uma mescla
de fios brancos e castanhos.
— Doutor Emílio, eu trabalho aqui há
muito tempo e não tenho receio de dizer que
gosto muito, muito mesmo deste escritório, do
senhor, do Doutor Cardoso... — ela faz uma
pausa para levar um lencinho de cambraia ao
canto dos olhos sem perceber o sinal de
aceleração no grau de impaciência de Emilio
externado por um contínuo tremor na perna
direita, compassado pelo batimento suave da
ponta do sapato sobre o acarpetado piso.
ã216

“Depois daqueles minutinhos de tesão lá


na lanchonete saboreando a gostosa visão e
proximidade da Lindanalva, me vem dona
Dulce com o prenúncio do que não posso
imaginar mais o que seja”, ele se remói em sua
expectativa.
— Essa desgraça que está acontecendo
com a família do Doutor Cardoso, logo ele, um
homem tão bom, me faz sofrer muito, Doutor
Emilio, acredite. Por isso que...
Emílio permanece na mesma posição,
trocando apenas a perna de apoio.
— Por isso que fiquei super nervosa,
porque sabia que o senhor, como amigo dele,
vai ficar aborrecido, chateado, e com razão —
desta vez, dona Dulce se apruma e dá um
ligeiro impulso na cadeira móvel o bastante
para que possa melhor olhar o rosto do patrão.
— Dona Dulce, por favor, eu vou ficar
mais aborrecido ainda se a senhora não
desembuchar logo de uma vez o que aconteceu
ã217

e deixou a senhora nesse estado de nervosismo!


— ele agora substitui o tremor de uma perna
pelo balanço de ambas, bem separadas, com as
mãos enterradas nos bolsos das calças.
— Doutor Emilio, sabe aquele rapaz que
esteve aqui no escritório? O que fez que queria
se suicidar no banheiro?
“O Silvinho da Caterine? O maldito
voltou aqui?”, Emilio sente como uma batida
fria na mente, teme por instantes se
desequilibrar e cair por cima de dona Dulce.
— O que a senhora está me dizendo, dona
Dulce? Será que eu ouvi direito, hein? Aquele
veado escroto teve a coragem de voltar aqui?
Fazer o quê, o filho da puta? — Emilio se
expressa aos gritos e dá um giro de corpo com
o punho direito golpeando a parede a poucos
centímetros da moldura metálica de uma
gravura decorativa, sem perceber sequer como
dona Dulce, neste instante, se encolhe em sua
poltrona giratória, assustada mas convencida de
ã218

que seus temores e choro tinham toda razão de


ser.
A secretária toma fôlego e, com a ponta
dos dedos indicador e médio da mão direita um
pouco adentrando o debrum de arremate da
blusa de mangas longas e peitilho rendado,
ergue bem a face e vai soltando as até aqui
reprimidas e temidas novidades com seu relato
avançando a passos trôpegos.
— Ele chegou aqui, Doutor Emilio, com
um jeito assim de mais educado, diferente
daquela vez, sem nervosismo. Disse que queria
falar com o Doutor Luiz Armando Cardoso de
Albuquerque, assim mesmo, dizendo o nome
inteiro do Doutor Cardoso.
— Falou assim mesmo, é? E daí? —
Emilio faz a pergunta e se afasta alguns passos
para tomar de uma cadeira com assento de
palhinha trazendo-a para bem junto da mesa de
dona Dulce.
ã219

— Assim mesmo. Eu ainda perguntei se


era com o Doutor Cardoso que ele queria
falar ,porque aqui todo mundo conhece ele
assim, não é?
Emilio ergue a palma da mão direita.
— Espere, espere um instantinho, dona
Dulce. Faz o seguinte: se o telefone tocar
agora, não atenda. Deixe na secretária — ele dá
a ordem e se coloca com as costelas apoiadas
na beirada da mesa de recepção e as pernas
cruzadas, mas de rosto virado e expressão séria
fixada nos olhos e nos movimentos labiais da
veterana secretária da banca.
— Ele ainda perguntou se o Doutor
Cardoso era um senhor de meia idade, assim,
assim, dizendo mesmo como é o Doutor
Cardoso. Para mim ele estava era se fazendo de
sonso pensando que eu não me lembrava mais
dele. Naquele dia do escândalo, ele foi atendido
por mim e pelo Doutor Cardoso, e é claro,
ã220

Doutor Emilio, que ele gravou bem como é o


outro advogado daqui, fora o senhor.
— Hum, hum...
— Foi então, doutor, que tudo aqui dentro
de mim gelou, meus braços começaram como
se fossem dar pulos de susto quando ele me
falou que queria entregar nas mãos do Doutor
Cardoso, falou assim mesmo, “nas mãos do
Doutor Luiz Armando Cardoso de
Albuquerque”, os documentos do carro dele e
mais a identidade, cartões de banco, celular e
outras coisas da filha do Doutor Cardoso. Falou
até o nome inteiro da coitada da dona Beth,
Elizabeth Maria!
— Mas..., mas o que é que um bostinha
daquele veado quer com as coisas da filha do
Cardoso e até do automóvel dele, dona Dulce?
— Emilio exclama em tom desesperado,
pondo-se imediatamente de pé e metendo os
dedos entre os cabelos, além de respirar com
exagerada força, uma atitude que obriga a
ã221

secretária a dele se afastar mais, dando com as


costas um vigoroso impulso na poltrona de
rodinhas.
— Foi..., foi isso que pensei também,
Doutor Emilio — dona Dulce consegue
balbuciar presa da emoção que a afeta pela
tragédia que atingiu a família de um de seus
chefes, justamente aquele mais cordial,
compreensivo e fino de maneiras, e ao mesmo
tempo pedindo ora a Deus que olhe por este
outro chefe aqui presente, para que o faça
praguejar menos e evitar os palavrões, mesmo
nas horas mais difíceis.
Emilio começa a andar a esmo, cobrindo
quase toda a área da recepção do escritório em
passos pesados ao tempo em que resmunga
palavras ininteligíveis mescladas a maldições e
palavrões, que a constrangida secretária finge
não ouvir.
ã222

— Mas e daí, dona Dulce? O que foi que


a senhora falou pra ele? Ele insistiu que só
queria falar com o Cardoso? Foi isso, hein?
— Bom, Doutor, eu dei uma desculpa que
o Doutor Cardoso não tem passado bem e por
isso não tem vindo ao escritório. Não falei de
enfarte porque o senhor me proibiu de falar
disso, nem do que aconteceu com a filha e a
netinha dele — a secretária demonstra se sentir
mais à vontade, controlada.
— Isso, isso mesmo. Mas..., ele não deu a
perceber que poderia falar com outra pessoa,
com outro advogado do escritório, não?—
Emilio faz a pergunta debruçado para a frente e
com os pulsos fincados na margem da mesa de
dona Dulce sem tirar os olhos dos olhos dela.
— Eu perguntei se servia outra pessoa,
mas não falei no nome do senhor, mas ele disse
que preferia era mesmo entregar as coisas que
trouxe nas mãos do Doutor Cardoso, e
ã223

perguntou até se eu tinha o número da


residência dele.
—.Hã..., mas a senhora viu se ele estava
mesmo com os tais documentos e outros
pertences da filha do Cardoso? — Emilio
permanece de pé, tronco jogado para adiante e
braços eretos sustentados pelos pulsos firmados
sobre a mesa da secretária.
— Ah, Doutor Emilio, isso eu não vi, não.
Só sei que ele estava com uma mochila
pequena nas costas, amarela e preta.
Emilio volta a passear pela antessala,
parando algumas vezes para encarar dona
Dulce ou olhar desconfiado para a porta de
vidro, como se temesse que alguém fosse a
qualquer momento por ela entrar e surpreendê-
lo neste estado de nervos.
“Quem diria, hein? Esse filho da puta,
está na cara, tem tudo a ver com a morte das
duas, mas não dá pra entender por que ele veio
ã224

assim, de graça, dando essa bandeira de


oferecer ao Cardoso os pertences da Beth, que
com toda a certeza foram tomados da coitada
mesma.
“Pela lógica o veadinho não iria aparecer
assim de cara lavada sabendo que poderia ser
grampeado no ato. Isso pesa a favor dele
quanto à sua inocência no caso, mas não sou
criminalista e, de outro lado, a bronca que
guardei desse sujeitinho, da qual a cafetina da
Caterine merece levar pelo menos a metade,
me diz que é preciso alguém botar as mãos
nesse veado o mais cedo possível, e nisso, o
que eu puder fazer em nome do Cardoso eu
farei de qualquer jeito!”
Emílio estaca sua caminhada
desorientada e se põe a olhar para a bastante
assustada dona Dulce, mas com seu
pensamento longe dela e de tudo em volta, com
a mão direita a esfregar o queixo e os cantos da
ã225

boca freneticamente. Então, de súbito, gira nos


calcanhares e pergunta:
— Dona Dulce, como é que ele é? Eu
desconfio que muito antes de ele vir dar aquele
show aqui, eu o tinha visto pelos corredores
deste edifício, fazendo a limpeza. Mas não
tenho certeza se era ele mesmo.
Ela faz um trejeito com ligeiro
estremecimento de ombros, nos lábios murchos
e ressecados há um esgar de nojo e desprezo.
— Ah, Doutor Emilio, não gosto nem de
me lembrar. Tenho horror a gente assim. Ele é
um rapazote magro, quase esquelético, altura
mais ou menos igual à do senhor, um mulato
claro, cabelos compridos e bem pretinhos
tratados com hena, com as sobrancelhas
depiladas igual de mulher. Não deve ter mais
que vinte anos, eu calculo.
— Sei, sei. Como ele estava vestido?
ã226

— Um horror de depravado, Doutor! Ele


estava com uma dessas calças de jogging, sabe,
largas, cinzas, bem sujinhas, e uma camisetinha
sem mangas e curtíssima, rosa, com umbigo de
fora. Uma lástima, pelo amor de Deus!
— Mas não falou se ia voltar, falou? —
Emilio pergunta e abandona sua posição diante
da mesa de dona Dulce, mas sem deixar de
olhá-la, quando acrescenta antes de abrir a
porta de sua sala.
— Bom, a senhora, por favor, me veja os
recados e as duas petições da Krause, me traz
também as publicações e o custo daquela
revista que o Doutor Cardoso assina. Mas não
me passe, por favor, enquanto eu não avisar,
nenhuma ligação! Preciso ligar no meu celular
com urgência.
Emilio ingressa em sua sala de trabalho,
tira o paletó e o lança de qualquer maneira por
sobre uma cadeira posta em frente à comprida
ã227

mesa, mas antes de sentar retorna à porta, que


deixou aberta, e fala alto para a secretária.
— Hã, dona Dulce...
Ela se volta interrompendo a separação de
alguns papeluchos amarelos de recados e outras
folhas diversas.
— Sim, Doutor?
— A senhora me desculpe por meus
desabafos … rudes, mas essa situação põe
qualquer um fora do sério.
Ato contínuo, fecha a porta sem observar
a expressão fisionômica típica da mulher idosa
que aconchega aquela dose de compreensão, às
vezes imperativa, diante certas rebeldias e
malcriações dos mais jovens quando de algum
modo estimados ou mesmo dignos de algum
temor reverencial.
Fechado em sua i ia sala de trabalho,
Emilio é refém de uma só ideia, que é assimilar
de sangue frio essa novidade do
ã228

reaparecimento de Silvinho no escritório, mas


bem diferente da vez anterior, porque o ainda
desconhecido por ele fisicamente se apresentou
como um ofertante de documentos e objetos
pessoais justamente de Beth, a filha de seu
grande amigo e sócio, sabidamente assassinada
em companhia da idolatrada netinha de
Cardoso.
“Por quais motivos esse tal sujeitinho
desclassificado, um travesti asqueroso que
ataca seguranças de boates de Copacabana, ele
mesmo, na descrição de dona Dulce e
anteriormente do próprio Cardoso, um magrelo
incapaz de submeter fisicamente e sozinho uma
mulher jovem como era Beth, viria oferecer de
mão beijada seus pertences ao próprio pai dela,
com toda certeza o veado ciente do crime?
“Mesmo que houvesse acontecido um
sequestro e as duas coitadas ainda estivessem
presumivelmente vivas, um sequestrador não
ã229

sairia das sombras para vir devolver coisas


pessoais de uma das vítimas.
“O que está me quebrando a cabeça
é tentar adivinhar o porquê de ele ter vindo
aqui e até mesmo pretendido telefonar para a
residência dos pais e avós das vítimas”
Assoberbado com tantas conjecturas,
Emilio pega seu celular decidido a dar o passo
que lhe parece mais apropriado no momento.
Antônio atende de imediato.
— Alô, Antônio. Emilio Pimenta. Está
muito ocupado? — fala rápido, intencionado a
ser objetivo, quando desta vez não pretende
unicamente um favor pessoal, mas sim buscar
mover algum parafuso ou qualquer mola que
faça avançar a máquina policial rumo ao
esclarecimento do que ocorreu de fato com a
filha e a neta de Cardoso, sentindo neste justo
instante seu sangue envenenado por escuros e
ilimitados anseios de vingança pessoal.
ã230

— Oi, Emilio, como vai essa força? — a


cordialidade do outro lhe agrada e o anima a ir
adiante.
— Meu caro, eu estou bem, trabalhando o
triplo por causa da ameaça de enfarte do
Cardoso, mas tenho novidades que requerem
uma ação policial imediata. Por isso estou
ligando pra você me dirigindo muito mais a um
delegado de polícia, Antônio, do que a um
amigo.
Há uma pausa de alguns segundos,
quando de longe soam vozes em diálogos
entrecortados do outro lado da linha, antes que
Antônio se faça ouvir novamente.
— Você fala do caso da filha e da neta do
seu sócio, não? Como é que ficou o negócio
depois daquela noite que você ligou pra mim?
— Peço que me perdoe, Antônio. Eu
devia ter dado um retorno a você de qualquer
forma, mesmo sem ter conseguido obter
aqueles detalhes que me pediu
ã231

Emílio faz uma pausa na expectativa de


alguma reprimenda, ainda que amistosa, mas o
silêncio na outra extremidade da linha o
convence da necessidade de ir logo adiante.
― Antônio, já foram confirmadas as
mortes da filha e da neta do Cardoso. O caso
está com a delegacia de Bonsucesso. O ex-
marido da Beth, pai da menina, foi quem fez os
reconhecimentos, e os corpos ainda estão no
IML
— Cacete, Emilio! Que porrada, imagino,
pro seu sócio e a esposa dele. Que idade tinha a
menina?
— Onze, Antônio, onze aninhos. Me dói
o coração somente em pensar como é que
existem filhos da puta espalhados por aí pra
fazer um negócio desse.
Antônio deixa escapar sons como de uma
risadinha debochada, mas Emílio de imediato
percebe o intento de tal manifestação diante da
fala do amigo delegado.
ã232

— Essas coisas praqueles lados, meu


caro, quase sempre tem dimenor na jogada!
Está aí, Emílio, esse estatuto da criança e do
adolescente pra garantir essa escória que ...
― Terrível, meu caro, terrível. Mas agora
vem a parte que me obriga a falar com você.
― Preste atenção, por favor — Emílio
interrompe a Antônio em sua ansiedade para
lhe expor o que afinal pretende.
— Vamos lá então. Sou todo ouvidos,
meu Doutor.
― Les Enfants? Acho que sei onde é ―
Antônio comenta. — Antônio, eu costumo
tomar meus uisquezinhos de vez em quando,
sempre num inferninho do Posto Dois, a Les
Enfants. A dona da casa é uma cafetina
francesa que andei comendo por algum tempo e
que agora me vende suas doses paraguaias
umas duas ou três vezes por semana. Me
acostumei com aquela casa porque tem umas
menininhas strippers de primeira.
ã233

― Bem, quando eu dormia com ela, dava


pra ela saber, assim digamos, quase tudo de
minha pessoa, inclusive endereço e telefone.
Tem uma bichinha nova que trabalhou para ela
por um tempo a quem a puta da cafetina deu
um cartão de visitas dos meus, quando o cara
se queixou de que estava precisando de um
advogado para rum tio dele, coisa de terras. O
sujeitinho ficou com meu cartão, mas nunca me
procurou. Desculpe se estou parecendo um
tanto prolixo, mas preciso que você perceba
toda a situação pra ver se pode me dar uma
dica, ajudar de alguma forma como policial.
Okay?
— Está tudo bem. Estou encarando aqui
um sanduíche integral com suco de laranja,
meu almoço de hoje. Se eu por acaso demorar a
responder é só porque estou mastigando. Mas
fique à vontade e vá falando os detalhes que
achar mais importantes.
ã234

Agradecido pela deferência de Antônio,


Emilio se sente tranquilo para prosseguir.
— Bem, por coincidência, naquela manhã
em que você me pescou lá naquele posto do
Aterro, a tal bichinha tinha aparecido no
escritório dando uma de diva desesperada e
querendo falar comigo, imagine você, pra que
eu intercedesse junto à dona da boate a fim de
que ela convencesse o segurança da casa a
aceitá-lo como namorado. Pode um absurdo
desses?
― Mentiiraaa! ― Antônio exclama de
um modo entre divertido e assustado.
―E tem mais, o maldito se fechou no
banheiro e deu uma de querer cortar os pulsos.
— Desculpe interromper, Emílio, mas
quando você chegou ele ainda estava lá? —
Antônio fala devagar.
— Não, não.
― A barra, então, sobrou pro teu sócio?
ã235

― Claro1Pra ele e a secretária. Você não


o conhece, mas é um sujeito fino, calmo, carola
até debaixo d'água. Podia ser um diplomata.
Dona Dulce, nossa secretária, já é uma senhora,
coitada, mas foram os dois que deram jeito de
acalmar a bichona louca, cuidar de parar o
sangue e ainda por cima despachar o sem-
vergonha pra portaria do edifício, isso tudo
com aquela confusão toda de correrias, gás
lacrimogêneo e corre-corre na área.
Ele escolhe mentalmente as palavras que
dirá em seguida, com as quais pretende traçar
todo o quadro da situação criada com a nova
visita de Silvinho. Para tanto gira a poltrona de
trabalho para outro lado e a afasta mais ainda
da mesa a fim de se permitir um maior
relaxamento.
— Antônio, como diz o outro, agora vem
o resumo da ópera. Acredite que o puto do
veadinho voltou hoje ao escritório, quando
desci pra almoçar, perguntando pelo Cardoso
ã236

com a desculpa de que, acredite você, meu


amigo, precisava devolver pessoalmente todos
os documentos da Beth. Citou até mesmo o
nome inteiro do meu sócio e da filha dele pra
confirmar que os pertences da Beth e até do
carro do Cardoso estão com ele.
Emilio se deixa afundar na confortável
poltrona de trabalho com as costas bem
escoradas no alto espaldar, troca o celular para
a orelha direita, expectante agora pelas
próximas palavras de Antônio, que não se
fazem por esperar.
— Essa coisa está esquisita mesmo, mas,
puta que pariu …, quem é que pode identificar
esse sujeito, sem que seja o doutor Cardoso e a
secretária, já que você está nessa história que
nem Pilatos no Credo? ― diz Antônio.
― Antônio, os únicos mesmo seriam o
Cardoso e dona Dulce, a secretária. Tem um
sujeito que ajudou dona Dulce a tirar o veado
do escritório, mas nem ela nem o Cardoso,
ã237

acho eu, sabem direito o nome do cara nem


onde ele mora, e muito menos quando ele
aparece por aqui. Pode ser até que ele nem seja
empregado do edifício. O Cardoso se referiu a
ele como “o paraibinha”, e nada mais.
— Então, pelo que vejo, estando o seu
sócio de cama e bastante abalado, sobraria o
reconhecimento pra secretária, não?
“Ou então Caterine e o segurança da casa,
Apollinaire”, Emilio sente bater-lhe esta idéia
como um caldo quente temperado pelo espírito
vingativo.
“Se aquela cafetina não tivesse abusado
de minha confiança e ousado mandar à minha
procura um depravado como esse, a quem
ainda não vi mas a quem não posso atribuir
valor moral algum, talvez eu encarasse a vinda
dele de outra forma”, ele analisa na busca de
desculpas para seu profundo estado de
beligerância e ódio vingativo contra o falado
Silvinho.
ã238

— Antônio, eu acho que a pessoa melhor


qualificada, tanto para identificar a cara do
veado como também dar uma dica de onde ele
mora é a própria dona da boate, ou então o
Apollinaire — ele lança suas cartas na mesa.
— Apolinér? Quem é essa pessoêa? —
Antônio pergunta reproduzindo a pronúncia do
nome ouvido.
— É assim que a Caterine o chama. Um
negão com seus dois metros por uns sessenta
de ombro a ombro, segurança da boate. É assim
que ela o chama, nome de poeta francês, a-p-o-
l-l-i-n-a-i-r-e.
— Que chique, né? Aguenta aí um
instantinho só que vou fazer minhas anotações
— a voz de Antônio enfraquece ao final da
frase, mas em menos de dois segundos ele volta
a se pronunciar, desta vez num tom categórico
e bastante decisivo que muito agrada a Emilio.
— Vamos lá. O inquérito, você disse, está
na vigésima-primeira, Bonsucesso, e as vítimas
ã239

já foram identificadas no IM, certo? Marcaram


o sepultamento?
— Acho que ainda não, e nisso é que está
o outro lado triste da história. O Cardoso e a
dona Maria Eduarda estão na casa de uma irmã
dela, ele ainda se recuperando de um princípio
de enfarte, ela vivendo sedada praticamente
vinte e quatro horas ao dia. Mas com isso
ninguém teve ainda a coragem de chegar pra
eles e dizer: “A Beth e a Belinha foram
assassinadas, estão no IML e precisamos fazer
o enterro”, entende?
― Muito bem, meu caro Emílio. Estamos
conversados por enquanto. Se achar que
preciso ouvir a secretária, eu farei isso de
qualquer jeito, mesmo que ela se suje nas
calcinhas e tenha um piripaque por causa da
idade. Entendido? Vou conversar com a minha
turma logo depois da reunião que tenho com o
Secretário, e acho mais provável que a gente
comece a esfriar o mingau pelas beiradas,
ã240

como dizia o Brizola, levando um papo com o


segurança em primeiro lugar pra depois
ouvirmos dona Caterine cantar La Vie en Rose.
Outra coisa, meu trabalho não tem nada a ver
com o pessoal da delegacia de Bonsucesso,
nem da Ilha ou de qualquer outra regional. Não
misturemos as coisas. Agora desligo, meu caro
Emilio. Um abraço. O trabalho me espera.
Emílio desliga o celular, respira fundo e
aciona o telefone interno.
— Dona Dulce, agora pode me trazer os
recados e o que tiver de mais urgente pra hoje.
Por favor, meu cafezinho também. Outra coisa,
veja se temos em nossa farmácia sal de frutas,
Alka-Seltzer ou coisa assim. Obrigado.
Dito isto ele afrouxa o laço da gravata, de
repente sentindo-se envolvido por uma enorme
onda de calor, sensação que o faz erguer-se às
pressas para verificar o aparelho de ar
condicionado e girar o botão no sentido de uma
temperatura mais fria.
ã241

Logo retorna ao assento lembrando-se do


que Antonio lhe disse, quando se
reencontraram no dia da carona, a respeito de
cinema, do ator Charles Bronson e do nome de
um filme, dito no original em inglês, Taxi
Driver. Foram a Rita e o Gustavo, por
coincidência quando eles três estavam jogando
conversa fora e falando de tudo e de todos em
volta de umas biritas, inclusive de cinema,
antes dele receber o telefonema do Cardoso se
queixando do excessivo atraso da filha, que lhe
esclareceram ser Taxi Driver o nome de um
filme antigo, início de carreira de Robert De
Niro.
Ele lhes confessou sua curiosidade pelo
nome do filme ter sido citado com evidente
admiração por um ex-colega de faculdade,
agora delegado de polícia, que em conversa
ligeira se disse admirador dos personagens
vividos pelo ator Charles Bronson e do Taxi
Driver em particular. Emilio gravou bem a
piscadela discreta que a Rita endereçou ao
ã242

Gustavo após os dois, como em parceria,


narrarem para ele a sinopse da tal película.
Contaram-lhe tratar-se da história de um
motorista de táxi apaixonado por uma jovem
prostituta de rua. Vendo-a ser maltratada pelo
cafetão, o taxi driver começa a se preparar
fisicamente e com um verdadeiro arsenal de
armas de fogo para enfrentar o explorador da
jovem, acabando por matá-lo.
Após isso, ele muda seu modo simples de
viver a fim de eliminar das ruas da cidade tudo
que é ladrão, proxeneta, viciado e vagabundo.
Mas o Gustavo, a certa altura, ponderou que o
problema desses justiceiros como o Taxi Driver
é que além da imoralidade e ilegalidade de
fazerem crer a uma parcela da sociedade que a
estão protegendo, eles próprios seriam também
infratores da lei quando, as mais das vezes,
cometem sua justiça em prol de interesses seus
ou de interessados na eliminação daqueles que
são justiçados por eles.
ã243

Agora, após haver praticamente, como


reconhece, dado de bandeja a Antônio o destino
de Silvinho, ele se põe a filosofar com o olhar
circulante pelas paredes, estantes e decoração
de sua sala de trabalho.
“Pensando bem, nunca fui o que se
poderia chamar de amigo íntimo do Antônio.
Reencontrei-o agora, e mesmo assim não houve
oportunidade pra nos sentarmos e termos um
papo mais descontraído, informal. de cabeça
fria. Fiquei com a impressão de que ele vai
tentar descobrir quem assassinou a filha e a
netinha d do Cardoso muito menos pra prender
os culpados do que para dar vazão a seus
instintos orgulhosos de matador.
“Mas agora, mal ou bem, dei o passo
inicial, pois alguma coisa tem que ser feita pra
desagravar o grande mal que caiu sobre esse
casal de idosos, o Cardoso e dona Maria
Eduarda, meus amigos”
ã244

É pensando em todas estas coisas que


Emilio permanece quieto, olhando absorto para
as paredes até dona Dulce aparecer com a
bandeja de café, água gelada e o vidrinho de sal
de frutas.
— Aqui está, Doutor. Vou pegar os seus
recados e o que mais o senhor pediu!
— Obrigado. Agora, na parte da tarde,
por favor a senhora me faça a checagem das
contas a saldar pra esta semana ainda. Qualquer
dúvida fale com o Saldanha.
Mal a secretária se retira, Emilio toma de
novo do celular e disca um número.
— Alô ― atende de imediato a calma voz
feminina.
— Nely? Sou eu.
ã245

20.
Quem primeiro viu Pestinha Três sair em
desabalada corrida de dentro da kombi foi o
cabo Meneses.
— Epa! Pára aí! Tem coisa errada ali!
Saltam os três antes que a Patamo
estacione, armas na mão, o soldado Diogo, o
sargento Montealegre e Meneses a cercar de
imediato o veículo estacionado com as quatro
rodas sobre a calçada bem rente ao velho
muro.
O adulto, vestindo bermudas feitas de
calças jeans cortadas à altura dos joelhos,
camiseta vermelha desbotada e sem mangas,
descalço, obedece prontamente à ordem
policial saindo pela porta do motorista a exibir
uma cara amarelada e assustada, onde escassos
tufos de barba negra se misturam a uma
epiderme marcada por antiga varíola.
ã246

— Sai todo mundo de mãos pro alto!


Vambora! — berra irado o sargento, de pernas
bem separadas e pistola empunhada com as
duas mãos, braços retesados na posição de
combate.
Pelo outro lado descem Pestinha Um e
Pestinha Dois.
— Tem mais um aí dentro, Sargento —
previne o soldado Diogo por trás da kombi e
também em atitude de combate.
— Encosta todo mundo aqui, mãos sobre
o carro e pernas bem abertas. Depressa! — o
sargento ordena cutucando a costela de
Pestinha Um, o mais próximo dele.
— Tem ainda uma menina aí dentro,
Sargento.
Sai logo daí, oh garota! — quem avisa
aos gritos é o soldado Da Silva, motorista da
Patamo e o último a descer.
ã247

— A gente é dimenor, tava fazendo nada,


não! — a alegação embrulhada em estudado
choro é de Pestinha Dois enfileirado ao lado do
adulto.
— Hã! Dimenor, é? E esse marmanjo
aqui? Aposto que nem fez a primeira comunhão
ainda! — o sargento faz o comentário mas de
olho na adolescente que vem saindo devagar da
kombi, cabeça baixa, cabelos pintados num
vermelho vivo, camiseta regata com inscrições
confusas, de variadas cores e tons, de shortinho
branco por onde desce um par de pernas
magrelas e manchadas. Sai com um pé
descalço e outro apressadamente enfiado em
uma sandália de tiras de couro cru.
O sargento abre mais uma das portas da
kombi e se inclina para examinar o interior do
veículo.
— Chiii!!! Não estou dizendo?! Vocês
estavam numa festinha do arromba aqui, hein!
Tem mais guimba de maconha que nem sei o
ã248

quê! — fala, retira a cabeça do espaço da porta


e se volta para o cabo.— Dá uma olhada,
Meneses, e pega lá os saquinhos. Recolhe tudo
que é cigarrinho e vê se não tem cachimbinho
por debaixo dos bancos também!
Enquanto o cabo se afasta em direção à
Patamo, o sargento se aproxima do adulto.
— Os documentos desta fubica estão com
quem? Com o senhor?
— Tá com a gente, não — Pestinha Dois
interfere em pretensão de se mostrar zangado.
A bofetada com as costas da mão direita
do soldado Diogo o faz rodopiar e perder o
equilíbrio.
— O Sargento não lhe perguntou nada,
seu titiquinha! — vocifera o autor da bofetada.
— Então? Tem ou não tem os
documentos da kombi? — o sargento fala com
o rosto quase colado à orelha esquerda do
homem.
ã249

— Tenho não senhor.


— E os seus documentos, tem?— o
sargento faz a pergunta e a um só tempo
observa o cabo Meneses, que retorna da viatura
policial munido dos pequenos sacos plásticos.
O adulto hesita antes de abaixar o braço
direito rumo ao bolso traseiro da bermuda.
— Carteira de trabalho? Isso não é
documento de identidade. Passa ela pra cá! —
o sargento Montealegre estica o braço com uma
careta de má vontade.
— Diogo, faz o seguinte: passa um rádio
da chapa da kombi pra ver se consta algo —
dada a ordem, ele observa algumas folhas da
carteira de trabalho sem muito interesse.
— Hmm..., essa foto aqui não tem nada a
ver com a tua cara — o sargento resmunga
como se estivesse falando mais para si mesmo,
guardando logo o documento em um dos largos
bolsos das calças.
ã250

— E você, menina? Que idade você tem e


o que estava fazendo com esses pilantras aí
dentro? — vira-se ele em seguida para a
adolescente.
— Quinze anos, sim senhor — ela abaixa
os braços com vagar antes de dar as costas ao
veículo e ficar de frente para o sargento, de
pescoço encolhido como ave atormentada em
temporal, com os olhos baixos.
— Quinze anos? O que estava fazendo,
fumando, dando pra esses caras, ou o quê?
Ela nada responde.
— Sargento, se não tiver nada camuflado,
encontrei um amarradinho de papelotes, dois
saquinhos da erva e uma meia-dúzia de
cigarros já bastante chupados e babados — a
informação vem do cabo Meneses saindo da
kombi com as sacolinhas de plástico na mão
esquerda portando o material recolhido.
ã251

— Mais nada? — indaga o sargento de


olho nas mãos do cabo.
— No porta-luvas tem duas folhas
amassadas de uma revista de sacanagem e
mais um maço vazio de Marlboro, dois band-
aids, um canivete pequeno e um isqueiro.
— Certo. Recolhe tudo e vá ver se o
Diogo já conseguiu alguma coisa no rádio.
Por minutos nenhum fato digno de
modificar o posicionamento dos detidos nem
tampouco dos homens fardados de azul que os
cercam nesta rua esburacada do bairro de
Bonsucesso ocorre, salvo o vagaroso gestual de
dois dos militares necessário ao deleite de um
cigarro.
Ao ver que o soldado Diogo retorna da
Patamo portando uma prancheta, o sargento
afasta-se do grupo e vai ao encontro dele.
ã252

— Roubada em Mesquita há três meses,


placa e cor conferem, Sargento — é a imediata
informação do soldado.
— Okay. Vamos pra vinte-e-um checar a
identidade desse cara e dos menores. Vem com
a gente, Diogo, o Da Silva leva a viatura —
dada a ordem, o sargento retorna em passadas
ligeiras para junto de seus colegas de farda e do
grupo dos desconfiados e escorregadios
menores reunidos ao homem de cara amarelada
e estragada por anos de vícios e ilicitudes que a
polícia e o acaso poderão tornar revelados.

21.
Nely acaba de chegar. Vem reservada em
maneiras, chaves do carro pendentes dos dedos
da mão direita a examinar os quadros nas
paredes, a pequena estante em armação de
tubos de aço escovado, a luminária de vidro
esverdeado ao centro da sala, o jogo de
poltronas de couro marrom e o grande aparelho
de televisão a um canto.
ã253

― Nada mudou, como você está vendo


— diz Emilio sentado, enviesado sobre o braço
de uma das poltronas, trajando uma camisa
polo branca, calças de moletom azul claro e
mocassins sem meias.
Ela escolhe como assento a ponta do sofá,
onde se acomoda para cruzar, comportada e
atenciosa aos olhos dele, as pernas claras
parcialmente exibidas por uma saia rodada
negra.
— Estou vendo. Sem novidades no front
— Nely comenta de um jeito picante.
Ele encolhe os ombros e busca
melhorar sua posição na poltrona para sentar-se
com mais conforto, sem tirar os olhos de Nely
e apreciá-la de alto a baixo.
— Aí é que você se engana. A frente de
batalha nunca esteve tão braba como a destes
últimos dias — Emilio parece a ela pouco à
vontade em seu gesto de fantasiar desenhos
sobre a perna com a ponta das unhas, de olhos
ã254

baixos e lábios lutando para mostrar um débil


sorriso.
— Estou achando você abatido.
Ele se mantém quase estático, com a unha
do dedo mínimo da mão direita projetando
traçados irregulares sobre o ossudo joelho.
— Trabalhando como um condenado —
há uma pausa antes que ele a olhe nos olhos
para perguntar — E o tal processo do
condomínio, como ficou?
— Ah, nosso síndico deu umas
imprensadas na administradora e andou até
insinuando que ia arranjar outra. Agora, parece,
o problema está sendo resolvido, mas me conta
— ela avança o busto e os ombros com apoio
dos cotovelos sobre os joelhos enquanto em
seus grandes e profundos olhos escuros Emilio
pressente o bote característico do primeiro
ataque dos psicólogos, analistas e gente do
gênero.
ã255

— Nely, tenho umas coisas brabas pra


dizer a você, mas antes quero que você me
prometa que vai me ouvir como..., como...
— Como amiga?
“Melhor assim, como amiga, pois pelo
menos inimigos nós não nos tornamos,
considerando não ser nada comum e mesmo
aceitável entre um casal de homo sapiens
fornicar em gritos, ais e sussurros por umas
boas horas, não fossem eles pelo menos
amigos, ademais lhes favorecendo o detalhe de
em outras eras terem vivido acasalados e a
navegar na desgastante rotina de um casamento
que naufragou em total silêncio sem deixar
sequer náufragos à deriva”
Emilio analisa, sentindo-se feliz por
causa destas ideias cínicas que, acredita, o
auxiliarão enquanto perdurar um diálogo com
esta sua ex-esposa que aqui está, plenamente
segura como um potente encouraçado
desafiador de todos os mares.
ã256

— Nely, se estivéssemos, nós dois aqui,


num filmezinho americano, eu perguntaria o
que você prefere beber, mas prefiro hoje te
perguntar se quer um cafezinho solúvel ou um
chá, inglês, camomila, menta... — Emilio tem
os olhos incandescentes em satisfação quando
se convence de que poderá abrir a porteira de
seus medos e receios sem o perigo de Nely o
abater como a um verme.
— Não se incomode com isso, pelo
menos por enquanto, Emilio. Mais tarde poderá
ser um chazinho preto com um pouquinho de
leite, se você tiver.
Com este “mais tarde”, entende Emílio
que ela veio visitá-lo atendendo ao pedido seu
certamente sabedora de que esta noite ela
assistirá, pela primeira vez, ao estrondo de uma
ampla catarse neste homem com quem foi
casada e do qual jamais mereceu ouvir a menor
confissão, por mais espúria que fosse.
ã257

— Nely, hoje fiz uma coisa da qual,


acredito, poderei me arrepender pelo resto da
minha vida — ele descruza as pernas e busca
aprumar a coluna sobre as costas da poltrona,
pondo ambos os braços relaxados ao lado das
pernas agora esticadas.
— Pela maneira como você me falou ao
telefone deduzi que se trata de coisa que o está
incomodando muito, e quando entrei aqui tive
essa confirmação, Emilio. Se eu puder ser útil a
você...
— Deixa só eu coordenar as ideias pra
você não pensar que estou é jogando conversa
fora — ele fala e respira fundo, com seu olhar
por segundos perdido em algum ponto do teto.
— Como quiser. Sem querer me divertir
com o que esteja sucedendo com você, Emilio,
te digo que só pelo fato de você não estar
soltando seus palavrões a torto e a direito dá
pra ver que o assunto está mexendo muito com
ã258

você — Nely conclui suas palavras com um


arremedo de sorriso condescendente.
Emilio remexe nos cabelos e leva os
dedos até a nuca.
— De uma certa maneira, pior que aquilo
de Teresópolis — ele examina a ponta dos pés
transmitindo a Nely a impressão de um homem
muito cansado.
— Teresópolis, Teresópolis, Emilio? Nós
dois já pagamos o preço daquilo com o
fracasso de nosso casamento, lembre-se disso
— Nely dá um tom de reprimenda ao que diz.
— A nossa separação foi talvez o
pagamento do principal, como se diz em
finanças, Nely, mas eu sigo pagando os juros,
incapaz de pegar num volante, vivendo pra
sustentar motoristas de táxi, pedindo carona de
amigos... — ele fala alto e faz menção de se
erguer, suas mãos pressionando os braços da
poltrona.
ã259

— Emilio, meu querido, não faça isso,


por favor. Não vim aqui pra falarmos do seu
passado, nem do nosso passado — Nely
estende os braços abertos como se fosse
ampará-lo antes de uma queda.
Mas ele acaba se levantando para passar
junto a ela e se dirigir à sacada, quando seus
olhos batem contra os edifícios lá do outro lado
da rua a estrangular algumas estrelas plantadas
no escuro céu.
Logo embaixo, na rua deserta, a capota
vermelha do modesto automóvel de Nely surge
iluminada pela lâmpada de um poste próximo.
Mais alguns metros à direita um motoqueiro se
prepara para dar partida à sua máquina,
assistido de perto por uma jovem de cabelos
amarelados e esvoaçantes que aparenta lhe
dizer palavras jocosas e descartáveis como
somente os namorados ousam dizer, até que a
explosão do motor acionado as congele de vez.
ã260

— Você já se acostumou a viver no


primeiro andar, assim de cara pra rua? — Nely
faz a pergunta lá detrás, na sala, sem se voltar
no sofá.
— Tem suas vantagens. Quando meus
inimigos vierem me caçar não vão precisar
pedir licença ao porteiro nem pegar elevador,
nada disso. Basta me chamarem da calçada
para que eu, de braços abertos que nem Cristo
lhes diga que estou aqui nesta sacada. Tem
dias, Nely, te digo, em que imagino a irmã
daquela pobre moça vindo me pegar. Eu sei que
ela tinha uma irmã que veio pro Rio antes dela.
— Emilio gira a cabeça para melhor ser
ouvido.
Quando retorna a passos lentos para a
sala, Nely está de pé e o encara atentamente
bem debaixo da colorida luminária.
— Hã! E quem virá caçar você, Emílio?
A Lucimar? Parece que esse era o nome dela.
Não me lembro mais. Você varreu pra baixo do
ã261

tapete essa história que acabou com o nosso


casamento. Não me fale mais nisso, eu te
imploro, Emílio! Ainda está muito novo para
entrar nessa de delírio de perseguição. Se você
me der licença, pego um copo d`água na
cozinha e vou embora, Emilio. Pare com isso,
não posso ajudar você nesse seu jeito de
melodramático, numa imitação barata de
novela mexicana.
Emilio nada diz, olha-a como se visse
Nely pela primeira vez.
"Vontade de dizer a ela que a Lucimar
ressuscitou na figura de uma stripper, mas isso
só iria complicar mais as coisas", ele raciocina.
— Sim, porque se é pra você ficar nessa
de masoquismo, de virem caçar você, tenho
mais o que fazer em casa ainda esta noite —
ela ajeita a blusa e alisa as pregas da saia.
— Está bem. Desculpe. Tenho um pouco
de Fanta. Ou você prefere água mesmo?
ã262

— Água mesmo — Nely permanece na


mesma posição, sem mover um músculo da
face sequer, enquanto ele se dirige à cozinha
sem pressa, perscrutado por um par de olhos
desafiadores mas com uma boa parcela de
piedade
Quando ele volta à sala com o copo
seguro entre a ponta dos dedos, Nely acaba de
reassumir sua posição no mesmo canto do sofá.
— Obrigada. Vamos conversar? — ela
estende o braço direito com mais atenção nos
olhos dele de que no copo.
— Olha, quando lembrei o caso de
Teresópolis, não quis de modo nenhum ficar
aqui, diante de você, dando uma de masoquista,
mas é que desta vez, desconfio, encomendei a
morte de uma pessoa que nem mesmo conheço,
Nely. O caso da estrada foi um acidente, uma
precipitação minha, mas agora se trata de coisa
bem diferente — ele larga as palavras numa
rapidez que anuncia a Nely o desarrolhar da
ã263

garrafa de onde, como ela espera, serão


vertidas as tantas palavras que torturam este
homem a quem ela ainda dedica muito amor.
Sorvendo a água gelada com vagar, Nely
acompanha por sobre a borda do copo os
movimentos desajeitados de Emilio em busca
de uma posição mais favorável na poltrona, um
jeito que lhe possibilite dar continuidade ao
esvaziamento da garrafa de medos recém
aberta.
Experiente, ela nada fala, apenas o
observa enquanto leva o copo à boca mais uma
vez.
— Nely, vou procurar ser objetivo com
você — Emilio, dando mostra de que achou a
melhor posição na poltrona, reforça-a puxando
uma pequena almofada para colocá-la por
sobre o ventre e aí descansar as mãos com os
dedos entrecruzados.
ã264

— Fale o que quiser, Emilio, sem pressa


— Nely afirma e deposita o copo vazio sobre o
tapete, junto aos seus pés.
— O Cardoso teve a filha e a neta mortas,
assassinadas durante um assalto!
— O que, Emilio? O que você está me
dizendo? Quando foi isso? Meu Deus! — a
reação de Nely é enrijecer-se em seu assento,
arregalar os olhos e tapar a boca aberta com
ambas as mãos.
— Coitado do Doutor Cardoso, Emilio!
Não dá nem pra acreditar. Mataram a filha dele,
a Beth, e a menina também? Quando foi isso?
Como?
Ele se retrai, olha a mulher que diante
dele, bem neste exato instante, despiu a capa
profissional da psicóloga presumidamente fria
e acima das humanas fraquezas momentâneas
de terceiros, para ser aquela Nely a quem muito
amou e jamais deixou de admirar, ainda que
ã265

intimamente sempre se negando a reconhecer o


fato.
Por isso aguarda alguns segundos antes
de entrar na narrativa dos fatos que afinal
resultaram em seu presente estado de incerteza
e temor.
— Desgraçadamente aconteceu. Foi no
sábado passado. As duas tinham ido a um
aniversário de uma amiguinha da menina na
Ilha do Governador. Sairam de lá ao anoitecer e
não voltaram. Dias depois foi que os corpos
foram encontrados perto de uma favela em
Bonsucesso. O Cardoso chegou a sofrer um
princípio de infarte, e a dona Maria Eduarda,
não sei como, tem sobrevivido sedada esse
tempo todo, você imagina.
— Nossa mãe! Acharam elas... dentro do
carro, foi?
— Não. Jogadas que nem lixo. O carro é
o do Cardoso, que ele emprestou porque o da
filha ia pra revisão, mas parece que ainda não
ã266

foi achado, o que é o de menos comparando


com a tragédia.
— Claro, claro! — Nely fala baixo e se
curva com os cotovelos sobre as coxas, para em
seguida erguer os olhos em direção a Emilio,
cenho franzido.
— Por que você não me avisou? A Maria
Eduarda sempre me tratou muito bem, coitada.
Eu teria ido ao velório, claro.
— Ainda não aconteceu o enterro. Pelo
que sei o casal permanece na ignorância das
mortes e os corpos continuam no IML. Quem
fez a identificação foi o pai da menina. O
Cardoso e dona Maria Eduarda estão sendo
cuidados na casa de uma irmã dela. O Jorge,
um sobrinho, é quem mantém contato comigo,
um cara por sinal que me parece muito
humano, prestativo.
— Coisa horrível, ainda mais na idade
deles, Emilio.
ã267

— Tenho andado com os nervos à flor da


pele, trabalhando como um cão para não deixar
a peteca cair lá no escritório. Ainda bem que
dona Dulce, secretária antiga, está por dentro
de todos os macetes administrativos e entende-
se bem com o escritório que faz nossa
contabilidade, mas mesmo assim... — Emilio
se interrompe sem dirigir os olhos para Nely,
sabedor que o caminho traçado por ele a fim de
se encontrar a si mesmo com o auxílio dela está
prestes a ser percorrido.
— Mas..., mesmo assim, você tem mais
alguma coisa a me dizer, não é? — habilmente
ela joga a isca.
― Emilio brinca com a pequena
almofada sobre o púbis passando-a de mão a
mão, com suas pálpebras caídas.
— Nely, tenho pensado que o pobre do
Cardoso vai precisar de um bom apoio
terapêutico de gente da sua especialidade
profissional, para se recuperar e continuar
ã268

trabalhando normalmente, aliás, ele e a dona


Maria Eduarda, é claro.
― É bem provável que sim, Emilio, é
bastante provável, mas seja o mais sincero
possível comigo, pelo menos hoje e agora. Não
foi apenas para me contar essa tragédia que a
família do seu sócio e grande amigo está
sofrendo que você me chamou até aqui, foi?
Você bem que poderia me falar disso tudo ao
telefone — Nely dá uma abrupta cruzada de
pernas que em segundos lhe desnuda duas
coxas claras para além de uns bem torneados
joelhos, logo imprensados entre a palma das
mãos.
— Se o Doutor Cardoso e a Maria
Eduarda precisarem mesmo de tratamento
psicológico, você pode contar comigo para
encaminhar os dois a um experimentado
psicanalista, amigo meu, por sinal com a idade
em torno do casal, o que em parte os deixaria
mais à vontade.
ã269

Ele a olha e deixa cair ao chão a almofada


com que se distraía.
— Mas vamos ao que interessa a você —
Nely busca dar grande ênfase à última palavra
dita.
Antes de falar Emilio deixa o olhar
passear num vagar ao léu através da sala,
parando ocasionalmente em uma e outra das
sete xilogravuras com que decorou o ambiente,
uma coleção intercalada por cópias de obras
renascentistas emolduradas em madeira pintada
a ouro velho.
— O caso é que pela grande amizade que
tenho pelo Cardoso, a quem vejo como um pai,
Nely, acabei de praticamente endossar a
eliminação dos assassinos da Beth e da Maria
Isabel. Entendeu? Eu, este advogado cheio de
palavrões que você conhece, frequentador de
puteiros de Copacabana mas a quem o ato de
fazer justiça pelas próprias mãos sempre
repugnou, pedi a alguém que mate os culpados
ã270

pela dor da família do meu amigo! Isso é o que


está engasgado aqui dentro! — Emílio golpeia
o centro do peito com pontadas do indicador
direito.
— Você já sabe quem são os assassinos e
ao mesmo tempo se dá com esses tais de
justiceiros, matadores de aluguel, aos quais
encomendou a morte dos sujeitos que causaram
esse sofrimento todo à Maria Eduarda e ao seu
grande amigo. É isso?
— Nunca tratei com ninguém dessa
espécie, Nely, pelo menos que eu soubesse —
ele se levanta, dá alguns passos vagarosos pela
sala, mas logo volta a sentar-se, desta vez no
sofá ao lado dela.
Nely retorce o tronco para melhor ver-lhe
as feições e reações.
— E agora, conhece alguém assim? E
mais, Emílio, tem pelo menos a certeza de
quem matou as duas coitadas?
ã271

— Naquela manhã, quando você


telefonou pra mim, depois que saí do seu
apartamento, o dia das badernas na cidade,
você deve estar lembrada que eu estava perdido
na Praia do Flamengo, doido pra chegar à
Cinelândia, mas tão doido mesmo que fui pro
Aterro tentar pegar um táxi. Imagine, fazer táxi
parar naquelas pistas de alta velocidade.
—Hã! Só mesmo na sua cabeça, Emilio,
podia brotar uma ideia dessa, e me lembro que
você ainda me jogou umas pedradas pelo
telefone quando minha intenção era apenas
saber se estava tudo bem com você. Afinal de
contas, tínhamos passado...
Ele dá um forte tapa no assento do sofá
quase atingindo as pernas dela.
— Nely, Nely, por favor...
— Desculpe-me. Não é hora pra isso. Vai
em frente — Nely se permite um rápido toque
de ponta de dedos sobre as costas da mão dele.
ã272

— Por coincidência, num daqueles postos


de reabastecimento do Aterro encontrei, ou
melhor, fui reconhecido por um ex-colega de
faculdade que estudou comigo para uns
concursos de juiz, o Antônio. Nem me
lembrava mais dele, e foi ele quem saiu do
carro gritando meu nome por inteiro, imagina.
Me deu carona até o Castelo e me contou que
agora é delegado e que faz parte de um grupo
aí de combate ao crime organizado.
— Sei, e ele tem alguma coisa a ver com
a história?
— Ele me passou uma boa impressão.
Casado, com um filhinho pequeno, carrão
estourando de novo, pelo jeito um cara de
prestígio dentro da polícia. Só que...
— Só que???
— Senti ele mais para o lado de encher
bandidos de chumbo e largar numa vala
qualquer, sem perder tempo com processo,
juízes, advogados, como essa turma alega.
ã273

— E você apontou alguém para esse tal


delegado ir atrás, assim como quem diz a
cachorro brabo, “pega”! Foi isso, não, Emilio?
Nely ouve atenta e sem interromper toda
a narração que lhe faz Emilio, algumas vezes
através de palavras que lhe saem abafadas, ora
prejudicadas por um certo pudor, outras vezes
aceleradas por uma imensa ira. Pela primeira
vez, desde que se separaram, ela tem a
oportunidade de ver-se introduzida nos
meandros exalantes a álcool, drogas, nicotina e
suores femininos franqueados por Emilio no
decorrer de suas descrições das noites que tem
vivido dentro do universo noturno de
Copacabana.
Custou a ele sobremaneira detalhar os
fatos concernentes à primeira visita de Silvinho
ao escritório, menos pela menção ao seu antigo
relacionamento amoroso com Caterine de
Villegrois do que pelo fundado receio de Nely
ver na visita do homossexual indícios de um
ã274

lado da vida íntima do ex-marido jamais


imaginado por ela.
Foi para Emílio um grande alívio quando
alguma coisa brilhou lá nas profundezas dos
negros olhos de Nely garantidora de que ela
por inteira acreditou em todas as palavras dele.
— E se você, Emilio, conseguisse um
jeito de se encontrar com esse Silvinho antes
do delegado Antônio achá-lo? — Nely faz a
pergunta com o indicador direito em riste.
Emilio aperta os lábios e abana a cabeça
com ceticismo. — Eu achar esse veadinho para
entregá-lo à polícia na forma legal, pra ser
processado, julgado e condenado? — Emilio
volta ambas as mãos com os dedos recurvados
a tocar o peito.
— Mas é claro! O que incomoda a você é
se sentir como um indutor implícito, vamos
falar assim, da morte desse rapaz nas mãos da
turma de justiceiros de seu amigo delegado
ã275

Antônio. Não é isso mesmo? E quem diz a


você que ele tem culpa nas mortes?
Emilio não responde, mantém-se de olhos
pregados em Nely, cada vez mais inteirado das
teias macias e sedosas que vão lhe envolvendo
os membros frágeis e a mente oscilante.
— Pois para mim, Emilio, ele está é
completamente inocente na morte das duas
pobrezinhas. Se pegou os documentos e outros
valores da Beth deve ter sido assim coisa de
alguém do relacionamento dele perder uma
bolsa onde estavam todas aquelas coisas, na
fuga, no esquecimento até mesmo na própria
casa dele.
— Sei, não...
— Uma coisa é absolutamente certa,
Emilio. Esses homossexuais, ainda mais os de
origem e meio humildes, raramente vivem no
que nossa classe média bem alimentada e bem
situada geograficamente nesta cidade chama de
um lar constituído. Não é raridade viverem
ã276

debaixo do mesmo teto como familia um pai


alcoólico, uma mãe prostituta e filhos menores
trabalhando para o tráfico como “aviões”,
“fogueteiros” e coisas assim — Nely
argumenta e se recosta com firmeza no sofá,
feliz pela manutenção das rédeas em suas
experimentadas mãos.
— Mas, Nely, e se eu me vejo cara a cara
com esse veadinho e leio nos olhos dele, ou ele
mesmo me confessa que matou as duas, ou pelo
menos foi participante das mortes? Como é que
eu fico? Não vou ter sangue de barata pra dizer
pra ele: “então se apresente à polícia, meu
filho”. Claro que não! Com o que eu tiver perto
de mim, racho-lhe a cabeça, mato-o com as
minhas mãos...
— Emilio, eu não estou aqui como
profissional e sim como amiga. Mesmo assim,
apesar do respeito e da amizade que tenho por
você, me permita rir, gargalhar mesmo diante
do que você acaba de dizer.
ã277

Fiel ao prometido, Nely, em triunfo, —


escancara sua boca de dentes leitosos e
salivados para permitir uma gargalhada bem
modulada em graça e sabor de vitória.
— Você está agindo muito mais por nojo,
preconceito, racismo contra esse Silvinho,
principalmente pelo que ele aprontou no
escritório, e isso não é vingar o mal que
fizeram à família do Doutor Cardoso.
Ele respira fundo, constrangido. Soa neste
instante o zumbido de seu celular deixado no
quarto. Sobressaltado, pensa logo na moreninha
Lindanalva.
“Diacho! Mas não pode ser ela porque lhe
forneci o número do escritório e o daqui de
casa, mas não o do celular. Ainda bem! Seria
uma hora imprópria para conversarmos,
estando aqui a Nely. Mas então quem será?
Quase nove”,
— Alô! Pronto! — atende ele meio
desequilibrado rente à cama.
ã278

―Boa noite! Sou eu, o Doutor Gouveia.


Ele procura sentar-se ereto na beirada do
leito sem responder de imediato.
“O que será que o pedante e caloteiro
deseja de mim a estas horas? Difícil de engolir
esse seu “Doutor” antes do nome, Sempre tive
bronca desses bacharéis que fazem questão
disso, a maioria a ostentar brutos anéis de rubi
e mal sabendo rascunhar uma simples petição.
Não vejo o dia em que eu e o Cardoso o
riscarmos da lista de nossos clientes, mas por
enquanto não podemos nos dar a esses luxos
de esnobar clientes de partido, não.”
— Ah, sim, em que posso servi-lo? —
propositalmente, a manifestação inicial de
Emilio intenta deixar claro ao interlocutor a
inexistência de prazer ou boa vontade em ouvi-
lo ao telefone a estas horas da noite.
— Bem, na verdade, em se tratando de
um assunto estritamente pessoal do interesse do
seu sócio, o Doutor Cardoso, preferiria falar
ã279

com ele diretamente, mas me parece que não há


ninguém na residência dele, sequer uma
empregada para anotar recado, e a secretária do
escritório disse que ele não tem vindo trabalhar.
— Verdade, o Cardoso não tem ido ao
escritório e se encontra hospedado com a
esposa em casa de uma irmã dela.
― Mas, Doutor Emílio, o que eu
pretendia informar diretamente ao Doutor
Cardoso, mas o faço através de sua pessoa, é
que já existem suspeitos da prática dos crimes
detidos, sendo um adulto e dois menores.
A reação de Emilio é representada
externamente por um salto do colchão como
impelido por fortes molas, seguido de rodopios
no quarto, enquanto seu coração se faz acelerar
como há tempos ele não o sentia. Titubeante
como um bêbado ganha o corredor de volta à
sala, e de seus lábios ressequidos como um
deserto sem futuro brota alto o chamado:
— N-Nely!!! Nely, escuta só!
ã280

— Como, Doutor? O que o senhor falou?


— apesar de momentaneamente ter o celular
afastado do rosto, Emílio distingue as palavras
vindas do assustado Doutor Gouveia.
Voltando à sala, ele se defronta com os
olhos inquisidores de Nely.
— O que foi, Emilio? Onde é o incêndio?
— Prenderam os assassinos! Pegaram os
matadores, Nely!
— Prenderam mesmo? Quem foi que
disse?
Ele nada responde, mantém o olhar
focado bem além dela, na faixa de um céu
estrelado mostrada por entre dois prédios altos
através da sacada, até reunir o fôlego e o ânimo
necessários para retomar o diálogo com o agora
com certeza agastado Doutor Gouveia.
— Alô! Alô, Doutor Gouveia? O senhor
ainda está aí?
ã281

O outro demora a se fazer ouvir até que


uma tosse abafada denuncia sua presença.
— O que houve aí, Doutor Emilio?
Ele procura os olhos de Nely antes de
responder.
— Perdão, eu lhe peço. É... é que eu
estava justamente discutindo esse caso do
Cardoso com... com uma pessoa amiga que por
sinal gosta muito dele e de toda a família,
lamentando o fato, e de repente o senhor...
― Pô! Pensei que o senhor estivesse
tendo, sei lá, uma síncope, um enfarte..., só
faltava essa. Já basta o Cardoso!
Este comentário desagrada a Emilio, que
lê nas entrelinhas uma forte dose de desprezo
pela dor alheia.
— Mas o senhor pode continuar, então.
Volto a lhe pedir desculpas pela interrupção...
esquisita de minha parte.
ã282

— Bom, Doutor Emilio, o principal eu já


falei pro senhor. O que sei mais é que foi tudo
mais uma questão de sorte da polícia, coisa que
não acontece sempre — o Doutor Gouveia
agora se exprime com maior velocidade,
parecendo a Emílio querer recuperar o tempo
perdido com a interrupção.
— Questão de sorte, foi?
— É. Uma ronda da PM flagrou, lá pelos
lados de mesmo local mais ou menos onde se
deram as mortes, três menores e um adulto
fumando maconha numa kombi roubada
poucos meses atrás. A placa tinha sido anotada
por testemunhas que viram dois menores
parecidos com esses que estão presos saindo
correndo de uma pastelaria depois de balearem
o dono, um chinês que acabou morrendo. O
pessoal da Vinte-e-Um trabalhou rápido e
encontrou a chinesa, viúva do comerciante.
Trouxeram a mulher até a delegacia e ela
identificou o menor que deu o tiro.
ã283

— E o adulto? — Emilio ousa perguntar


em voz pausada.
— Não. Nessa da pastelaria o adulto está
limpo, pelo menos até agora, mas preste
atenção, Doutor Emilio, para o que eu chamo
de sorte.
Emilio se mantém calado e com um
ligeiro toque de ponta de dedos sugere que
Nely se aproxime mais dele.
— Pois é. Dos três menores pegos pela
Patamo, tem uma menina. A garota, segundo o
comissário que lavrou tudo, estava bastante
chumbada e lá pelas tantas abriu o bico e
denunciou o adulto falando até de uma bolsa da
filha do Doutor Cardoso, que um dos menores,
namorado dela, lhe deu de presente!
― Caraaalho! É a bolsa do Silvinho! ―
Emílio não se contém e esquece mesmo a
aversão de Nely a palavrões.
ã284

― Silvinho? Que Silvinho é esse? — o


Doutor Gouveia grita sua estranheza.
— Nada, Doutor Gouveia. Não … não dá
para explicar agora, mas por favor continue.
― Bom, Doutor Emílio, o que eu tinha
para dizer já lhe está dito. Eram estas as
informações que eu pretendia transmitir ao
Doutor Cardoso. O senhor, por favor,
transmita-as a ele quando julgar oportuno.
Tenha uma boa noite.
A ligação é abruptamente encerrada,
deixando Emílio estagnado ao centro da sala, o
olhar perdido, com o celular pendente da mão
direita enquanto Nely o observa intrigada.
— O que aconteceu, Emílio, pra você de
repente ficar desse jeito? Mudou de água pra
vinho num segundo!
Ele sacode ligeiramente a cabeça ao
modo de quem estivesse despertando de um
súbito transe.
ã285

— Acho que fiz besteira falando do


negócio da bolsa do Silvinho.
— Por quê? Mas não prenderam os
assassinos?! Você vibrou quando recebeu a
notícia, veio pulando lá do quarto que nem
cabrito, alegre, e de repente fica com essa cara
de não sei o quê! Não estou te entendendo,
Emílio — Nely fala e lhe alcança a mão
esquerda em tentativa de um pouco de
apaziguamento com ternura.
Ele nada diz e apenas busca um assento.
— Ou será que bateu em você a neura do
arrependimento? — Nely se engrandece em
provocação, procura mostrar a Emílio que o
que ele tem que reconhecer agora é que se
precipitou em encomendar a morte de Silvinho
ao delegado matador.
Nely se afasta e volta a sentar-se no sofá,
antes fazendo o gesto de encolher os ombros.
ã286

— Bom, mas … tome seu chá antes que


esfrie. Acabo enlouquecendo com tudo isso, e o
escritório está atolado de processos pra eu
resolver — Emílio diz e ajeita a roupa, passa os
dedos entre os cabelos e busca armar um
sorriso para Nely.
— Pode deixar, mas …, nove e dez já?
Um pouco tarde pra gente continuar tentando
caçar as feras que escapuliram da jaula, não?
— Nely fala ao consultar seu reloginho de
pulso, mas emenda o ato lançando de soslaio
uma olhada entre desafiadora e zombeteira para
o ainda confuso Emílio.
— Como você quiser. Tenho agora que
ligar lá para a casa da dona Carlota, a cunhada
do Cardoso, e tentar falar com o Jorge ou a
mulher dele pra dar essa notícia do Gouveia.
Nely o olha divertida e por segundos seus
lábios se descolam para exibir o brilho de uns
dentes perfeitos envolvidos na saliva de um
nascente desejo pelo homem que tem diante de
ã287

si, cujos corpo e carinhos febris por muitas e


muitas vezes fizeram-na sentir-se a mulher
mais feliz do mundo.
Mas de um relance seus olhos colhem
detalhes nos olhos dele de um certo modo
ainda não garantidores de um pleno domínio de
Emilio sobre a pura razão do amor que
afastasse, pelo menos durante alguns
momentos de enlevo entre os dois, essas feras
negras que rondam a alma deste homem
amado.
— É. Faz isso, sim. Aposto que você vai
dormir esta noite pensando menos no que
aquele seu amigo delegado justiceiro possa
estar aprontando.
— Não vai ser nada fácil para aquele
rapaz, o sobrinho de dona Maria Eduarda, dar a
notícia. É nisto que estou pensando agora —
ele diz enquanto passa ao lado dela e se dirige à
porta.
ã288

— Vai sair tudo bem, Emílio. O pior já


aconteceu, que foram as mortes delas duas —
Nely dá uns tapinhas na saia rodada para ajeitá-
la e fica olhando Emílio abrir a porta.
— Desço com você.
Quando Nely passa à sua frente deixa-lhe
um bem difuso perfume de sabonete, que a ele,
embora sem saber explicar o porquê, lembra
banhos de criança recém nascida, imaginações
que Emilio estranha incorporar a outros
pensamentos, estes absolutamente carnais e
brotados de sua admiração pelo sincopado
balanço da farfalhante saia rodada caminhante
a um passo adiante dele. Descem em silêncio
os negros degraus em mármore de uma escada
em forma de caracol, com seus passos
iluminados por lâmpadas protegidas atrás de
vidros leitosos aparafusados a uns suportes
dourados prendidos às paredes também
marmóreas, estas de um matiz achocolatado
raiado em filamentos negros. Nely segue dois
ã289

degraus à frente dele, com ocasionais apoios de


mão no cilíndrico corrimão dourado. Emilio se
distrai, ou finge se distrair com o balanço do
chaveiro que traz pendente da mão esquerda.
Após abrir a alta e pesada porta de ferro
escuro em filigranas e vidro, Emílio arrisca
repetir aquele gesto fidalgo ensaiado lá em
cima, desta vez para conceder plena passagem
a Nely através da porta já escancarada, porém
complica-se e termina com seu antebraço
esquerdo atravessado por sobre os ombros de
Nely. Dá-se neste preciso momento que ela não
age no sentido de desfazer o inesperado ensaio
de um abraço fortuito, mas se ajeita de um
modo tal que permita ao confuso Emilio trazer
em socorro dele o outro braço para mais
facilmente unir os dois corpos.
Dá-se aquele amplexo temido que amputa
em dois polos seus corpos, onde o vigor da
solidez do desejo masculino se vê habilmente
contido a considerável distanciamento graças a
ã290

rijos e sábios movimentos de pulso de Nely, o


que não impede que dois rostos incandescentes
se colem e bocas murmurem palavras roucas e
pegajosas.
— Não vá, Nely, fique hoje —
choraminga ele mais do que fala.
— Não, Emilio..., não pode ser assim.
Ou-outro dia, quem sabe?
Ela se desvencilha dos braços que
tentaram acorrentá-la, busca a profundeza
daqueles olhos derrotados e acelera o passo
atravessando a calçada e a rua sem quase ruído
algum, rumo ao automóvel solitário iluminado
por uma triste lâmpada de luz amarelada.
Emilio espera até que o ronco do motor e
os faróis anunciem que Nely está partindo, esta
noite muito mais vencedora do que derrotada,
ao passo que a ele resta agora subir as escadas
e lançar-se de volta ao seu poço de medo,
revolta e solidão.
ã291

Ao alcançar a metade dos degraus que


distam até o corredor, chega-lhe aos ouvidos o
som de uma campainha telefônica.
“Lindanalva! Só pode ser ela”, é o seu
desejo insuflado pelo que de frustração em sua
carne lhe deixou aquele abraço veloz em Nely,
algoz de tantas incertezas suas. Mal o ruído da
fechadura sendo aberta se extingue, o que ele
ouve é apenas o silêncio interior em todo o
apartamento.

22.
Cardoso e dona Maria Eduarda mais se
parecem com dois bonecos sem vida, magros,
abatidos, os olhos sem brilho afundados em
olheiras que são verdadeiros buracos cavados
em suas faces maceradas. A manhã está
nublada e corre uma leve brisa que espalha por
todas as salas destinadas aos velórios no
cemitério São João Batista os cheiros
diversificados de flores acumuladas nas
profusões de coroas, o fumo das velas no
ã292

interior das capelas e os resquícios de lavanda


embolada com amônia, nicotina e suores
diversificados.
Uma velha senhora vestida de preto,
robusta, cabelos alvos manchados de amarelo
recolhidos num coque ao topo da cabeça tem
seus pesados braços enlaçados em volta do
magro corpo de sua irmã, a trêmula, cabisbaixa
e soluçante Maria Eduarda. Bem junto à
condoída dona Maria Carlota, a Carlotinha, seu
filho Jorge e a mulher, Sônia, permanecem
estáticos, ele apoiando levemente a mão direita
nos ombros da companheira, ambos de olhos
vendados por amplos óculos de sol.
Emílio, com vagar e paciência, consegue
se aproximar de Cardoso, que o avistando vem
ao seu encontro para receber seu abraço,
ocasião em que as lágrimas dos dois grandes
amigos se mesclam refletidas na humildade das
duas faces contorcida e ásperas
ã293

Emilio bem que gostaria de dizer muitas


coisas a Cardoso nesta hora, a mais importante
que pensasse em dona Maria Eduarda e no neto
Eduardo, mas nenhum som sequer lhe aflora da
garganta, toda a sua consternação vertida
apenas pelos olhos de onde algumas lágrimas
libertas de possíveis e esperadas barreiras
machistas surgem para banhar de leve as
laterais do nariz.
— Força, amigo. Força! — é o que seus
lábios permitem passar através deles, trêmulos,
contorcidos.
Maria Eduarda recebe seu abraço com
uma expressão pia, beijando-o na testa mas
incapaz de palavras, cedendo em seguida a vez
à irmã Carlotinha e ao casal Jorge e Sônia para
os extensivos pêsames como integrantes da
família.
— Muito obrigado, Doutor. Obrigado
mesmo pelo apoio aos meus tios — Jorge
segreda-lhe ao ouvido quando abraçado, com o
ã294

aditamento de algumas leves palmadas nas


costas.
— Sou eu quem devo lhe agradecer por
ter tido a coragem que me faltou para dar a
notícia a eles dois.
“Nestas horas conhecemos os corajosos e
os covardes. Não posso de modo algum me
incluir na primeira categoria”, Emílio sente
vontade de sair apregoando estes julgamentos
em plena câmara mortuária quando a ideia da
morte lhe traz à mente o rosto bonachão de
Antônio e a figura simplesmente imaginada de
Silvinho.
Quando percebe, quem acaba de se
colocar silenciosamente ao seu lado é Nely, que
lhe sorri de um jeito de quem lhe pede perdão
por invadir, neste instante, seu profundo e
escuro porão de mágoas e dores.
— Oi — é o que Emilio logra falar com a
garganta obstruída Ela, de sandálias baixas,
ã295

como é seu hábito, ergue-se na ponta dos pés


para soprar-lhe ao ouvido:
— Vou só falar com eles e saio logo, mas
quero te fazer um convite. Me espere fora da
capela.
Ele apenas a olha, curioso, admirando-se
de que há tempos não via na expressão facial
da ex-mulher um sorriso tão doce e ao mesmo
tempo limpo de olhares ardilosos peculiares à
profissão de Nely. Consulta as horas, três e
vinte, um dia praticamente perdido, mas se
interroga agora se deverá ou não aguardar o
sepultamento. Afinal de contas, como amigão e
sócio de escritório o Cardoso bem que merece
a minha presença junto a ele e dona Maria
Eduarda, quano chegar a hora dolorosa dos
caixões descerem pra cova.
Emílio abandona a capela e consulta seu
relógio de pulso. Mais de três horas, um dia
praticamente perdido em matéria de trabalho.
ã296

“Nely me disse que quer me fazer um


convite. Estava com um arzinho assim tão
moleque que já posso adivinhar o que é. Dou
minha mão ao fogo se ela não está armando
uma desculpa pra gente repetir aquela farrinha
de cama gostosa da noite do exame das contas
do condomínio”
Assim pensando, ele é repentinamente
surpreendido por uma ereção tamanha que o
obriga a livrar-se com a máxima rapidez do
paletó, a fim de com ele pendurado nos braços,
embora de um modo desajeitado, camuflar sua
atual situação. Vê-se sacudido por imagens
eróticas que mesclam o corpo alvo e veludoso
de Nely com a morenice e a habilidade em
fazer amor de tudo quanto é jeito e maneira de
Lindanalva, que agora lhe aparece para fazer
frente aos apelos de Nely por ele percebidos
naquele olhar de minutos atrás.
ã297

— Vem cá, meu querido Doutor Emilio,


você tem algum compromisso pra esta noite...,
algum programinha copacabanense?
Nely o surpreende, vindo não sabe ele de
onde, para espetá-lo bem ao meio da espinha
com a ponta afiada do indicador direito.
Ele se volta e encolhe os ombros, sério,
sem contudo conseguir desfazer em Nely um
jeito dela, atual, de total despojamento e
imensa felicidade que o espantam.
— Ainda não sei. Por quê?
— Meu velho “caranguejinho” está num
estacionamento da Real Grandeza. Vem
comigo que te dou uma carona e a gente
conversa. Quero que você venha jantar comigo
hoje. Mereço essa honra?
Emilio emite um meio sorriso, surpreso,
mas dentro dele se agigantando a certeza de sua
derrota próxima diante das bem traçadas teias
amorosas desta mulher que ele talvez nunca
ã298

tenha conhecido, que neste preciso momento


lhe infunde um gigantesco desejo de posse
sexual quase que imediata.
— O trabalho do escritório já ficou
reduzido hoje por causa do enterro. Não devo
sair antes das oito, oito e meia por aí... ―
Emílio busca se apegar a umas razões
escapatórias que ele de antemão reconhece
como irrelevantes para derrotar o que nele
pulsa.
— Tem problema, não. Te espero. Vou
fazer um peixinho que você vai amar!
23.
Com a carona inesperada de Nely, ele
acaba chegando ao escritório antes de dona
Dulce, que naturalmente teve que pegar um
ônibus para vir do São João Batista até a
Cinelândia. Emilio aciona todos os disjuntores,
lança sobre a larga mesa da secretária a
correspondência recolhida com o porteiro e dá
uma olhada no número de recados gravados.
ã299

Dezessete, diz a maquininha. Acionado o


botão do play, as inúmeras e diversificadas
vozes invadem o silencioso escritório aos
ouvidos de Emilio, que parado diante do
pequeno aparelho despe o paletó e afrouxa o
laço da gravata.
Entre tantos dizeres, repetições de
números a chamar, ditos em sua maioria pelas
inconfundíveis e quase idênticas vozes de
secretárias, intercaladas poucas vezes por
chamadas feitas por homens, de repente chama
sua atenção uma voz de sotaque tão peculiar,
pertencente àquela dançarina da Les Enfants, a
Lindanalva.
— Alô, por favor, é o escritório do Doutor
Emilio Pimenta? Por favor, é urgente, Emilio.
Ligue pro meu celular 0497307922.
“Ué! Ela não me falou que ia viajar, sair
do Rio?”
Confuso, não vê outra saída que não
acionar a maquininha para repetir todos os
ã300

recados, pois o número do celular precisa ser


anotado direitinho, sob pena de ligar pra quem
não tem nada a ver com a história.
Sentando-se Emilio saca seu celular do
bolso interno do paletó e digita os algarismos
anotados.
— Alô! — dá para ele logo identificar a
voz de Lindanalva.
— Sou eu, o Emilio advogado. Você
deixou um recado no meu escritório.
— Oh Emilio, oh Emilio! Preciso te ver
com urgência, amor. Por favor... — o tom de
voz dela beira ao choro.
— Espere aí, Lindanalva, vamos com
calma. O que está acontecendo?
— Tenho procurado falar com você,
mas... — Lindanalva demonstra dificuldade em
se expressar com calma.
ã301

— Pois é. Eu dei a você meu cartão, até


com o número de casa, mas você não ligou.
Você sabia que eu queria sair com você
novamente, não sabia?
— Eu telefonei duas vezes, de noite, mas
ninguém atendeu. Não liguei pra aí porque
você me disse que era melhor telefonar pra sua
casa, mas agora, agora... — a voz de
Lindanalva vai decrescendo nas últimas
palavras até dar a entender a Emilio que ela foi
amordaçada por um temor cuja origem ele
desconhece .
— Você me disse, Lindanalva, que iria
voltar pra Mato Grosso dois dias depois de a
gente se encontrar naquela lanchonete, não foi
isso? Vamos deixar as coisas claras, por favor.
— Emílio teme se exasperar, pois no fundo
ainda não descartou a ideia de voltar a possuir
essa maravilhosa morena. Recorda, agora
constrangido, o tesão que o assaltou hoje à
tarde em pleno cemitério e que chegou a
ã302

envolvê-lo em fantasias pornográficas nas


quais Nely e Lindanalva lhe disputavam o
máximo de seu vigor físico e atenção.
— Emilio, meu querido, deixa eu te falar,
mas agora é outra coisa. Tive que adiar a
viagem. O homem lá na rodoviária foi legal e
me devolveu o dinheiro das passagens, mas
tenho outras marcadas pra hoje às onze e
quarenta e cinco. Não dá pra trocar novamente.
― Mas me explica por que me procurar
no escritório assim de um jeito de desesperada.
Posso saber?
Preocupa-o que dona Dulce chegue ao
escritório e ele se encontre neste diálogo que
não progride, sem oportunidade de meter mãos
à obra num trabalho que lhe parece a cada dia
mais volumoso e cansativo com a ausência de
Cardoso.
— Minha filha pode ficar sem mãe, ou eu
ficar aleijada, Emilio. Estou aqui trancada num
quitinete e deixei minha Lucinha com uma
ã303

colega lá da boate, mas a dona Caterine não


pode nem saber que eu dei as caras por lá. Tem
gente que quer me bater ou me matar mesmo!
Emilio muda de posição, intrigado com a
notícia.
— Espere aí, Lindanalva! Me explica isso
melhor!
— Já veio gente aqui me ameaçar. Por
isso tirei minha filhinha daqui. Mas preciso sair
pra pegar a Lucinha e ir pra Novo Rio, Emilio!
— Mas por que querem matar você? Me
explique de uma vez, Lindanalva!
Ela começa a chorar, ao início um choro
tímido, contido, mas aos poucos num pranto
que vai se soltando e se alargando a ponto de
restarem a Emilio poucas oportunidades para
entendimento do que Lindanalva realmente
deseja lhe transmitir.
— Emilio, Emilio — Lindanalva afinal
consegue, aparentemente, controlar-se um
ã304

pouco, pelo menos para se expressar ao


telefone.
— Eu divido o apartamento com a Janete,
uma colega, mas ela teve que passar uns dias
em Nova Iguaçu cuidando da avó que está
muito doente. Depois que veio um cara me
ameaçar aqui eu só saí pra entregar a Lucinha
à Valderez, pra ela tomar conta da minha filha
até a gente viajar. Comprei uns bagulhos no
supermercado e estou vivendo a sanduíche,
com medo de botar os pés na rua outra vez. Só
abro a porta se a Janete voltar antes de eu
viajar. Preciso de ajuda!
— Lindanalva, por favor me diga o
motivo de alguém estar querendo matar você e
o que eu posso fazer para te ajudar — Emílio
agora já fala com os ouvidos atentos também a
quaisquer ruídos na sala de recepção que lhe
denunciem a volta de dona Dulce, o ingresso de
estranhos, ou mesmo clientes inesperados.
ã305

― Emílio, você é um homem muito bom


e confio em você, mesmo que a gente só ficou
junto, transou só aquela noite. Você foi tão
gentil comigo, a gente sentou na areia da praia
antes de ir pro motel e você me falou umas
coisas tão lindas. Nenhum homem me tratou
assim em todos esses anos que vivo na noite,
sabia?
“Que diabo, Nely ficou de nos preparar
um jantar pra hoje e lhe prometi não faltar. O
mais prático seria eu sair daqui do escritório e
ir direto para o apartamento dela.
Lindanalva não responde de imediato,
mas Emilio percebe os sons característicos de
choro contido e nariz sendo assoado, detalhes
que de repente não lhe agradam considerando
que tais ruídos, quando claramente audíveis ao
telefone, podem caracterizar uma espécie de
encenação de condições que na verdade não
seriam assim tão dramáticas quanto as
descritas, mormente se levada em conta a
ã306

habilidade que têm criaturas do habitat de


Lindanalva em produzi-las.
— Emílio, pelo amor de Deus, venha até
aqui porque se eles me virem acompanhada por
um homem, desistem de chegar perto. Por
favor!— ela fala com sinais de engasgamento
pelo choro.
— Lindanalva, eu cheguei agora e estou
sozinho aqui. A secretária foi a um enterro e
ainda não veio, e por isso a recepção está sem
ninguém, e eu tenho muita coisa para ver. Diga
pelo menos a razão de você estar assim tão
apavorada, pra eu ver um jeito de te ajudar.
— Pelo que estou vendo, você precisa de
um guarda-costas e me escolheu pra isso, não é
verdade?
— Não, Emílio, por tudo que é mais
sagrado pra você. Estou devendo dinheiro,
muito dinheiro que não posso pagar, prum cara
muito perigoso, mas falo tudo pra você
pessoalmente porque a história é longa, sabe?
ã307

— Já vi esse filme antes, Lindanalva,


você pegou droga e estão atrás de você para
receber. Por favor, não me meta nisso, não,
Lindanalva.
— Não, não, não, Emílio, nunca cheguei
perto de cocaína, maconha, nada disso!
Acredite em mim pelo amor de Deus! O
Georges mandou me avisar que vai acabar
comigo! Preciso de sua ajuda. Você me leva
pro Catete pra pegar a minha filha, e depois a
gente vai pra rodoviária. Só isso, amor. Você
não tem mulher em casa pra eu te causar
problemas, Emílio! Me socorra pelo amor de
Deus Nosso Senhor, eu …
Do outro lado da linha chega aos ouvidos
dele um pranto sacudido em soluços, no
momento exato em que na recepção
movimentos de passos anunciam a chegada de
alguém. Antes de falar, ele protege o bocal
com a concha da mão, ergue-se e caminha até a
porta.
ã308

— Dona Dulce? — ele grita junto ao


portal.
— Pois não, Doutor Emílio.
— Estou numa ligação urgente e já falo
com a senhora ― sua fala é prontamente
seguida pelo bater da porta, sem oportunidade
para qualquer eventual pronunciamento da
secretária
— Lindanalva! Alô! ― Emílio tem
pressa. De repente percebe que alguma coisa
está acontecendo com ele e da qual não tem
condições de se livrar neste momento.
— Estou ouvindo você, Emílio — a
informação de Lindanalva soa sublinhada pelo
intenso fungado de nariz.
— Olha, a secretária acaba de chegar. Faz
o seguinte: me diz a que horas você viaja.
— O ônibus sai às vinte-e-três e quarenta
e cinco.
ã309

— Okay, diz devagar o seu endereço. Vou


procurar estar aí antes das dez, mas não posso
ir logo agora porque tenho muito o que fazer
aqui — Emílio informa enquanto retoma
assento e busca papel para anotar.
— Vou ficar aqui trancada, te esperando,
meu querido. Estou na Barata Ribeiro duzentos
e oito. O apartamento é no sexto andar,
seiscentos e dezessete. Só abro pra ti, Emilio,
ou pra Janete se ela ainda voltar hoje, ouviu?
― Me espere aí então — ele resmunga
com celular imprensado entre o queixo e o
ombro, escrevendo o endereço.
Protestos de “Oh! Graças a … “ ainda se
fazem ouvir antes de Emílio pressionar a tecla
para encerrar a ligação.
“Esta é muito boa, doutor Emílio! Muito
boa! Só eu mesmo! Contando ninguém
acredita. Segurança de bailarina e prostituta!
Estou caindo cada vez mais ...”, ele se põe a
tamborilar com a ponta da caneta sobre o papel
ã310

onde escreveu o endereço, cabeça abaixada e


testa amparada pela palma da mão esquerda por
alguns segundos até se lembrar de que dona
Dulce já retornou ao escritório e naturalmente
espera por suas ordens.
— Dona Dulce, já terminei a ligação.
—A senhora pode vir até aqui com o que
preciso assinar, por favor? ― Emílio transmite
a ordem pelo interfone mas com o pensamento
no que acabou de fazer, sem deixar de imaginar
os doces e convidativos olhos daquela às vezes
misteriosa Nely.
A secretária não se faz por esperar e
ingressa um tanto atrapalhada na sala para abrir
a porta, ostentando imprensado sobre o
volumoso busto um enorme pacote em papel
pardo sobre o qual procura equilibrar alguns
papéis e recortes do Diário da Justiça.
— Que negócio é esse aí, dona Dulce? ―
Emílio estranha.
ã311

— Ah, o porteiro me entregou agora


quando eu ia subindo, Doutor Emílio — dona
Dulce a faz repousar o pacote num espaço vago
na mesa do chefe e passa-lhe às mãos o restante
do material.
Emílio toma do embrulho e o examina de
cenho intrigado.
— Hmm ,,, tem certeza de que é pra
mim? Não tem meu nome escrito, remetente
nem nada …
— O porteiro, Seu Evaristo, disse que foi
um senhor quem trouxe, que mandou entregar
ao Doutor Emílio Pimenta — a secretária
focaliza seus olhos gigantescamente ampliados
pelas lentes sobre as feições intrigadas de
Emílio sem ocultar sua curiosidade em
participar de talvez algum segredo embutido na
vida deste advogado de vida tão diversa do
inegável exemplar chefe de família que é o
Doutor Luis Armando Cardoso de
Albuquerque.
ã312

― Está bem. Terminou as contra razões


da cervejaria? Por favor, a senhora repasse os
recados da secretária eletrônica e anote o que
for mais urgente. Apertei a tecla assim que
cheguei aqui mas não deu pra anotar direito.
Tem um recado da senhora Lindanalva, mas
este eu já resolvi.
— Sim senhor, Doutor Emílio.
Já com a mão na maçaneta, dona Dulce se
volta para dizer:
— Ah, o porteiro avisou que amanhã vai
faltar água entre as dez e o meio-dia por causa
de um concerto na rede.
Emílio resmunga qualquer coisa como
sinal de compreensão, consulta o relógio e
estica os braços para pegar o pacote recebido.
Lança mão de uma tesoura média posta entre
vários lápis e canetas esferográficas arrumados
num copo de couro sobre a mesa. Rompidas as
fitas colantes e esgarçado o embrulho, seus
olhos se deparam com uma bolsa de uso
ã313

feminino de cor vermelho-escuro protegida por


cantoneiras e detalhes decorativos feitos em
metal dourado, um achado que desde logo se
identifica como artigo luxuoso.
Livrando-a por inteira do grosso papel,
Emílio sente pelos dedos a existência de
materiais de volumes e formatos variados
dentro dela. O que primeiramente ele recolhe é
um pequeno álbum de capa mole dividido em
folhas duplas e plastificadas contendo cada
uma dela, em separado, alguns cartões e
papeluchos logo à primeira vista reconhecidos
como pertencentes ao registro e seguro de um
veículo automotor.
Suas mãos começam a tremer e ele tem
que se apoiar com os antebraços nas laterais da
poltrona enquanto procura manter a bolsa
repousada sobre as pernas. Emoção, medo e
repulsa se mesclam em Emílio quando, imune a
quaisquer dúvidas quanto à propriedade da
bolsa de griffe, seus dedos bastante oscilantes
ã314

iniciam uma pescaria pelo interior do acessório


feminino, trazendo um aparelho celular, dois
chaveiros e mais documentos plastificados
onde se alternam os nomes por inteiro de
Cardoso e da filha Beth.
“Eis aqui a tal bolsa que aquele Silvinho
procurou devolver, mas que agora veio trazida
por alguém ligado ao Antônio!”
Esta é a dedução do surpreso e assustado
Emílio, que necessita de muito esforço e
paciência para que as batidas de seu coração
voltem à normalidade. Torcendo para que
nestes instantes a secretária não o consulte nem
telefonemas o surpreendam, volta a manusear,
agora com mais atenção, todos os pertences
retirados da bolsa de courvin da pobre Beth,
Lá no fundo foi posto cuidadosamente
dobrado em quatro um recorte de folha de
jornal que Emílio recolhe e desdobra, pleno de
curiosidade e ao mesmo tempo de ojeriza pelo
que já se revela com a entrega de todo o
ã315

material que Beth portava quando saiu de casa


com a filha.
Observa tratar-se de uma coluna de fatos
policiais onde, circundada em tinta vermelha,
aparece a notícia que Emílio lê, impactado.
“CHACINA EM MANGUINHOS
Rio - Três menores e dois adultos foram
encontrados mortos com sinais de tortura,
estrangulamento e ferimentos de arma de fogo
à margem de um canal de águas servidas
próximo à favela Faixa de Gaza no subúrbio
de Manguinhos. Junto aos corpos foram
recolhidas pela perícia vinte e duas cápsulas
deflagradas, de diversos calibres. Além de
vários ferimentos por arma de fogo, todas as
vítimas apresentavam sinais de tortura. Um
dos adultos, identificado como Aristides Bispo
dos Santos, 34 anos, solteiro, conhecido como
Tio, encontrava-se detido na 21a.DP até a data
de anteontem para averiguações sobre as
noticiadas mortes de Elizabeth Maria Costa de
ã316

Albuquerque e sua filha menor, MIAR cujos


cadáveres foram encontrados na semana
passada em Bonsucesso apresentando marcas
de sevícia, estrangulamento e violência sexual.
O outro adulto foi identificado como Sílvio
Rogério de Oliveira, 22 anos, solteiro. Os
menores são todos do sexo masculino e haviam
sido detidos e postos em custódia da 21a, DP
antes de transferidos para uma instituição
para abrigo de menores infratores cujo nome
está sendo mantido em segredo de justiça por
motivo da singularidade da ocorrência. Os
menores foram identificados como sendo JMS,
PCBS e HLO, todos com passagem na polícia,
evadidos de instituições de abrigo a menores
infratores, tendo respectivamente as alcunhas
de Pestinha Um, Pestinha Dois e Pestinha
Três”
24.
A viagem no metrô entre a estações
Cinelândia e Siqueira Campos parece durar
ã317

mais que o tempo normal para Emilio, de pé,


equilibrado entre duas mulatinhas falastronas e
um senhor gordo fedendo a velho. No bolso
lateral do paletó traz o recorte de jornal
dobrado cuidadosamente, uma simples folha de
papel barato que lhe dá a cruel sensação de um
peso em toneladas de culpas. Sim, ele leu e
releu o relato curto, na usual linguagem do
jornalismo policial, não lhe restando agora
duvidar de que somente uma pessoa poderia ter
agido assim, mesmo sem jamais ter conhecido
Cardoso.
Só faltou a assinatura do ex-colega de
faculdade e atual delegado de polícia, aquele
mesmo bem humorado Antônio da carona e dos
atendimentos gentis e prestativos aos seus
urgentes apelos a favor de algum socorro para a
situação dramática que estava vivendo a
família Cardoso de Albuquerque. Lá ficaram
hoje, guardados com cuidado num armário de
sua sala de trabalho, trancados e livres de
alguma eventual curiosidade da secretária, os
ã318

pertences de Beth, aqueles mesmos que


certamente o infeliz veadinho se propusera a
devolver às mãos do próprio Cardoso, tarefa da
qual está definitivamente impossibilitado de
fazer.
Aquele Silvio Rogério de Oliveira, com
vinte-e-dois anos de idade, outra pessoa não
poderia ser se não o mesmo Silvinho
encaminhado por Caterine de Villegrois e
tantas vezes amaldiçoado por Emilio em razão
da ridícula cena de ameaça de suicídio dentro
do escritório. Morto em circunstâncias terríveis
pela gente do delegado admirador de Charles
Bronson.
Seria aquele infeliz desmunhecado um
dos matadores da filha e da neta do Cardoso?
Difícil crer diante de sua visita espontânea ao
escritório com a bolsa que pertenceu a uma das
vítimas, dúvida que chegou a ameaçar Emilio
de um acesso de vômito ainda no escritório tão
logo leu aquela notícia, mas um vômito não por
ã319

mero asco, repulsa ou qualquer indisposição


gástrica, mas uma explosão de ódio mesclada a
um arrependimento profundo por algum dia
haver falado com Antônio a respeito do sumiço
de Beth e a menina.
“Mil vezes amaldiçoado seja esse
sanguinário delegado Antônio! Matou um
inocente, disso eu tenho certeza!”, foi o
julgamento que de pronto assolou sua mente e
do qual, agora ainda que afastado daquela bolsa
e dos materiais nela contidos, não consegue se
libertar. “Madalena arrependida, eu, por ter
xingado e mesmo odiado aquele veado pelo
escândalo aprontado lá no escritório, quando
agora sei ter sido trucidado por justiceiros que
de uma certa forma agiram depois de uma
insinuação minha!”, Emilio se acusa, confuso,
envergonhado, com a clara impressão de que
todos os passageiros neste vagão do metrô o
olham de dedo em riste.
ã320

Afinal com um vigoroso sopro de alívio


desembarca na estação Cardeal Arcoverde.
Sob um céu estrelado olha para o relógio.
“Nove e quarenta e cinco, tempo de sobra
pra subir ao apartamento 617 do duzentos e
oito, logo aqui mesmo. Prédio manjadíssimo,
dizem que tem quase trinta apartamentos por
andar, endereço mais do que procurado por
esse pessoal da noite e gente integrante dessa
“etnia” que, conforme dizia o compositor Billy
Blanco, “quero ser pobre sem deixar
Copacabana”. Mas essa minha inesperada
moleza em abrir mão do jantarzinho da Nely
vai ter que me ser muito bem explicada pela
Lindanalva, que com toda a sua tentação
morena talvez tenha que aturar muita explosão
minha, caso todo aquele choro e medo de ser
assassinada não seja apenas um papo pra me
arrastar pra cama e faturar alguma coisa.
A sereia e as luzes de um carro dos
bombeiros desviam por instantes seu
ã321

raciocínio, que de imediato se transfere para a


atenção e o cuidado necessários com a súbita
aparição de dois andrajosos meninos de rua
caminhando bem junto a si.
Teriam sido os menores mortos em
companhia do tal de Tio e Silvinho assim como
estes dois garotos magrelos de ombros envoltos
em ensebados cobertores? Ele se vê tomado
pela idéia, de um certo modo sentindo-se
diminuído e ansiando voltar a ouvir as palavras
às vezes cínicas mas ponderadas de Nely
acerca do universo da exclusão social no país.
Olho por olho, dente por dente? Foi o
próprio amigo Cardoso quem criticou esse
posicionamento vingativo frente a reveses da
vida impulsionados pelo gênero humano. Mas e
agora, depois de tudo o que aconteceu, ainda
assim pensaria o calmo e bom católico pai da
Beth e avô da Belinha?
Emílio apressa o passo para deixar atrás a
potencialmente perigosa dupla infantil e de
ã322

repente percebe que tem muita gente andando a


passos mais rápidos do que os seus, a maioria
correndo, todos em direção ao ponto agora não
muito distante dele onde o carro dos bombeiros
acabou de estacionar em fila dupla.
Encostadas à vitrina iluminada de uma
loja fechadas, duas jovens adolescentes têm as
mãos na cabeça e expressões de estupor.
— Valha-me Deus! — uma delas geme e
ameaça chorar, tremendo.
― Eu é que não tenho coragem de espiar!
Minha Nossa Senhora! Tadinha!
Tais exclamações de assombro e piedade
o fazem diminuir os passos com a ideia de que
dificilmente o sucedido deixe de ter ligação
com sua vinda a Copacabana esta noite. . Um
homem negro de bermudas e camiseta vem
caminhando em sentido contrário ao seu.
— Diz que caiu indagorinha mesmo —
fala com os braços abertos se dirigindo a um
ã323

casal parado na calçada a dois passos à frente


de Emilio.
— Virgem Santíssima! Pulou ou jogaram
ela? — pergunta a mulher com sotaque
nordestino.
Emilio agora está ao lado do casal e do
homem de bermudas, os três olhando
abismados na direção da aglomeração,
enquanto em volta deles, como as águas de um
rio a ladear pequeno obstáculo, a corrente de
curiosos prossegue voraz.
Ensaia mais um passo, mas uma
frouxidão covarde retém seus pés ao tempo em
que uma senhora magrela e descabelada
comenta em voz de cacarejo.
— Isso acontece todo dia agora!
Mas perguntar o quê? Saber para quê?
Quando tudo basta para convencê-lo de que
esta tarde, ao telefone, não lhe chegaram
choros e apelos por socorro falseados, mas
ã324

muito mais puras palavras de despedida.


Apesar disso se locomove, suas pernas relutam
em obedecê-lo neste instante de embate entre
sentimentos tão antagônicos, ao passo em que
uma pergunta insiste em lhe martelar o cérebro.
“Mas como? Mas como, se Lindanalva
me garantiu que só abriria a porta para mim?
Um mistério que ainda que explicado não
poderá trazê-la de volta, essa moreninha a
quem possuí como um louco e a quem eu
gostaria de pedir perdão pelo mal que fiz a
Lucimar, para mim inegavelmente sua irmã"
Em penoso ziguezague por entre falares
e ditos, espantos e até mesmo risos, suores e
hálitos flutuantes com os odores de dísel,
fumaça e borracha quente, ele atinge um
ansiado mas temido espaço por onde pode
divisar o corpo de uma mulher jovem vestida
com bermudas brancas e sutiã vermelho
estirado no asfalto, de bruços, o braço esquerdo
dobrado sobre o meio-fio, uma das pernas
ã325

estirada e a outra meio encolhida, de pés


descalços.
Mesmo um tanto afastado, reconhece que
o que ali repousa no asfalto são o sorriso
límpido, o jeito brejeiro e ao mesmo tempo
sagaz e perturbador, as coxas bem torneadas
que se exibiam em floreios profissionais
pretensamente sedutores e convidativos
naquele estreito palco da Les Enfants , a poucos
metros daqui.
— Pra mim ela foi é jogada, cara! —
passam dois surfistas portando suas pranchas e
largando no ar o comentário exatamente no
momento em que Emilio sente o celular pulsar
no bolso interno do paletó.
— Alô! Emilio?
Força passagem na diagonal por entre o
fluxo de curiosos quase inquebrantável para
poder atender ao telefone, pondo-se quase de
cara colada a uma parede repleta de velhos
cartazes promocionais e fedendo a urina.
ã326

— Hã? — apenas balbucia.


— Emilio, muito boa noite, amigo. Vou
falar rapidamente porque estou saindo numa
diligência.
— Antônio, penso que acabo de entrar no
inferno esta noite. Estou aqui na Barata Ribeiro
quase em frente ao corpo de uma mulher que
despencou do apartamento, uma jovem que me
esperava, a coitada!
— Ah, isso acontece todos os dias nessa
merda de bairro, Emilio — Antônio lhe parece
por demais cínico.
— Mas me diga uma coisa — prossegue
o delegado num jeito apressado. — Você
recebeu a encomenda?
Emilio se cala ao receber um encontrão
que quase lhe joga o celular ao chão.
— En-encomenda? A bolsa com as coisas
da filha do Cardoso..., você quer dizer, não?
ã327

— Isso! Claro, amigo!


— Recebi sim, Antônio, só que... — e
desliga o telefone.
Mais uma vez, desejando ser a última,
olha em direção ao ponto onde vários rostos se
voltam para o asfalto. Lentamente vai se
afastando em sentido contrário à aglomeração,
com os olhos quase vendados por lágrimas de
repulsa e remorso absolutos. Atravessando a
rua, entra pela rua Duvivier mas imediatamente
retrocede e decide buscar qualquer outra que o
conduza à praia, onde pretende sentar na areia e
meditar na segunda queda que o fere na vida,
temendo que, após a de Teresópolis e esta de
hoje, outras e mais outras quedas comecem a
lhe puxar para o fundo de um abismo do qual
talvez nem mesmo a paciente Nely poderá
retirá-lo.
FIM

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