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Antologia 2022/23
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Diário Poético
Antologia 2022/23
Ricardo Ramalho
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Autor: Ricardo Ramalho
Design da capa: Ricardo Ramalho
ISBN: 2022
© Ricardo Ramalho
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Lembranças esquecidas
Olho lembranças
que não são minhas, mas são como fossem,
e por elas suspiro em antecipações nostálgicas,
alheias, é certo, mas não menos sentidas.
Oiço gritos
de crianças velhas, de jovens defuntos,
de almas penadas
e grito calado
as alegrias vividas, os desgostos escondidos,
no pudor da vida
vivida, gasta, sofrida.
5
Bebo calado o frescor da lembrança,
da redescoberta,
da espuma do mar
que salta nas ondas da memória batida,
nas rochas escondida, nas areias oculta,
nas brisas soprada.
Bênção
6
da imbecilidade alheia.
Férias
7
A licença o seu termo.
Uma pausa a continuação.
O feriado a utilidade do consequente dia.
8
Serei então, mas contrariado.
9
nos triviais ruídos,
sem tempo para envelhecer,
apenas para morrer,
dia após dia.
Grandezas
O luto
O luto é a luta
contra a memória,
sabendo de antemão
a derrota certa.
Sem peleja
a presença dura,
a rotina persiste,
o diálogo ressuscita,
surdo, mas contumaz.
É o cansaço da derrota,
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a fadiga do silêncio,
a lassidão da ausência,
que nos conforma
inconformados.
Que nos acomoda
incomodados.
Que nos afaz enfim
desfeitos,
da falta irreparável,
do apartamento perpétuo,
do distanciamento eterno.
Resta a lembrança,
essa vitalícia,
que floresce na distância,
adoçando as amarguras,
suavizando os espinhos,
aos poucos revivendo
no carinho trivial,
da ferida amadurecida
o doce memorial.
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Liberdades
O silêncio
é a derradeira expressão da liberdade.
A noite
Boa ou má conselheira,
depende de opiniões,
a minha é que não foste feita
para similares pretensões.
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as liras dos trovadores.
Passados
O passado só é deprimente
para quem não é deprimido.
Da humana divindade
Se Deus é criador,
todo poderoso,
do homem e universo,
deus é o homem
que se cria
e multiplica,
molda e educa.
Se criar humanidade
é divina condição
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então deuses são os homens
e mais ainda as mulheres,
por o mundo agraciar,
com o milagre da vida,
com a graça do amor,
com a dádiva do nutrir,
do educar, do civilizar.
Se ao sétimo dia
Ele descansou
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e deu a obra por terminada,
o homem infatigável,
até agora não parou,
nem prescinde de renovar,
de enriquecer, de melhorar,
os universos que cria
como o que a divindade criou.
Se Deus é divino
porque criou o homem,
mais divinal será o homem
por criar o próprio Deus!
Evidência
Prantos
Há quem diga
que só a morte alheia, nunca a própria,
merece o choro dos homens.
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Se assim fosse porque se lamentariam,
os poetas, os filósofos, os devotos,
os infelizes, os caridosos, os saudosos,
os hipocondríacos e os medrosos.
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Seres
Saber amar
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Eu queria saber amar
mas sou um apaixonado.
Sou de paixões atreito,
de obsessões afeito,
de solidões adicto.
Se amor me dão
fico sem jeito, incomodado,
apanhado em desacerto,
pois de apreço sou inapto,
de carinho inabilitado.
Incoerência
Acordar
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entre pregas de lençóis rasgado,
por ruínas de sonhos roubado,
ao estertor do ser
espertado.
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Para perversa satisfação
deste senhor inclemente,
concedeu a graça
da paz fugaz do sono
entre o martírio da vida.
Déspota impiedoso
aqui fica o meu desdém.
acordo contrariado
na certeza porém,
logo que liberado
dos tumultos do acordar,
que não deixarei de voltar.
tão cedo quanto puder
ao aconchego do repouso
no terno abraço do leito,
altar supremo do sossego.
Valores
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Vitalidade
A ligeireza vital
varia com a existência.
Ao furor inicial
sucede o calor da infância.
À ânsia da puberdade
advém a juvenil urgência.
A azáfama da maturidade
precede o tempo do ser
em que é agilidade bastante
depois da jornada cessante
voltar a ver o dia nascer.
Mediocridades
É preciso génio
para vislumbrar a mediocridade própria.
Já a alheia qualquer idiota deteta.
Corpo perfeito
Contemplo a perfeição
do corpo humano esculpido,
por artes de um artesão
de divina chama embutido.
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Mas pasmo ante a evidência,
a certeza, a convicção,
que para alcançar a excelência
só lhe falta a imperfeição.
Reincidências
As cores do luto
De início a negação,
de amarelo pintada,
depois, a sangue regada,
a rubra raiva e indignação.
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a alma pinta, em notação
do desgosto inevitável.
Suspeição
Desconfio do poder,
seja ele qual for.
Exemplos
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Por vezes sou aprazível,
outras bem aziago
e não me ocorre possível
ser confundível com mago,
nem tampouco suscetível
ser tomado por orago.
rio-me do presumido,
que por ardis de artifício
os outros tem pervertido,
em seu próprio benefício.
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que falsidades postulam.
Opiniões
Artes ocultas
em poéticas prosas,
ou em branco vercejar,
que em odes airosas
de rima a metro regular.
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Não duvido que aos mestres
a bela musa conceda
meios e sábios saberes
(que pelos deuses segreda),
ou a verdade esconder
entre métricas forçadas
e rimas de transcender,
para compreensões aguçadas.
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Mas a novidade, afinal,
que me gabo com sentir,
é de modo original
tentar com arte emitir,
sentires e pensares
em verso e em rima,
que mesmo não sendo ímpares,
são de elevada estima,
Palavras ocas
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ilações desnecessárias.
Só frivolidades expressam.
Dúvida existêncial
Será a ordem
o caos ainda por cumprir?
Palavras escritas
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Mais do que libertar confissões,
mais do que perdoar delitos,
mais do que redimir omissões,
a escrita despe sentidos ocultos,
de quem quer dominar depressões
por via de literários indultos.
Amadurecer
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A vida entretanto
No esgar de dor
de rosa espinhosa a florir,
o nascimento.
No sorriso lacrimoso
do querer e descobrir,
a infância.
Na fugaz ansiedade
de tudo amar e sentir,
a adolescência.
No confiante sonhar
do futuro construir,
a juventude.
No olhar cansado
das ilusões perdidas,
a maturidade.
Na ansiedade e saudade
por entre os netos escondidas,
a velhice.
Na doce esperança da fé
ou na paz imemorial do nada,
a morte.
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No entretanto, vazante,
por entre dores e amores,
a vida.
Autoritarismo
As pessoas autoritárias
têm inveja da liberdade dos outros,
porque são incapazes de usufruir da sua.
Paz antecipada
Ansiedades consertadas,
em quietação satisfeitas,
venham tempestades feitas,
para serem enfrentadas!
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Coragem
E se o universo for
E se o universo for
aquilo que nós quisermos,
tudo o que fizermos
e mais pudermos fazer, por prazer.
Seremos deuses?
Ou apenas humanos.
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Políticas
Vejo
Génios
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Resignação
Penumbro.
Na paz da obscuridade
do conforto do leito,
No desejo do olhar,
oculto.
Desperto?
Espero.
Na resignação da certeza,
na ansiedade do retorno,
do renascer da pujança,
perdida.
Extinta?
Sonho.
Com a lassidão do porvir,
na mansidão ansiada
da trégua da vetustez,
pacificado.
Morto?
Dramas
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Loucuras
Sem eles
não haveria arte,
não existiria paixão,
entrega incondicional.
A vida seria insuportável.
Oprimidos
Quando?
Poderá a felicidade
apertar-se num comprimido?
Mágico?
Poderá a vida
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consumir-se embalada?
Em quantas caixas?
Poderá a solidão
mitigar o desespero?
Por quanto tempo?
Poderá a misantropia
remir a vida?
A que custo?
Poderá a morte
serenar enfim a alma?
Quando?
Happy end
A felicidade escondida
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Há quem a encontre no fundo de um copo,
Temporária, mas eficaz enquanto dura.
Alguém a viu?
E soube como agarrá-la?
Maturidade
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Desejos
In vino aequalitas
Alma perdida
Entro tímido,
entre aromas e cores
de abrir apetites.
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Subo acanhado,
entre tules, rendas e cetins
de macular os cândidos.
Monto bisonho,
à descoberta de tecnologias
de antecipados futuros.
Ascendo embaraçado
ao Olimpo gourmet
dos lambazes privilegiados.
Só enfim me apercebo,
após tão terminal ascensão,
que perdi a alma pelo caminho!
Vetus
Vestígios de humanidade
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despidos de presunções assumidas,
destituídos da arrogância, do pedantismo,
Comcletamente nus e ensopados,
admirando nos outros, o espelho
das nossas próprias misérias,
Sucesso
Limpeza Fugaz
Um jato purificador,
símbolo do fim da semana,
do fim de semana iniciado.
Da trégua ansiada,
de amores adiados.
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Filas de carros sujos
aguardam vez abençoada,
nesta manhã de sábado,
amanhecer de esperanças.
Alívios
Felicidade a prestações
Embaixadores de esperança
aguardam na esquina,
vendendo Deus e Cristo
em suaves prestações semanais.
41
Gente feliz sem alma,
agita os braços em simulado festejo:
vendemos felicidade e alegria
em suaves prestações semanais!
Tempo
O turista utópico
Faço fila,
tiro o cinto e o telemóvel,
encho a caixa.
Apito, não apito,
sigo em frente
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em vaga esperança.
Faço tempo,
vigio as horas,
os atrasos,
as portas que tardam em abrir.
Meço malas,
pago extras,
mostro códigos.
Embarco enfim
por entre filas de bagagem
acompanhadas de gente.
Corro ao táxi,
espero e pago,
tiro fotos,
faço mais filas,
faço figas,
para entrar.
Como e bebo
como posso.
Pago e vivo,
como não posso.
Oiço e falo línguas
que desconheço;
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sem gozar.
Até o tempo esgotar
e o retorno repetir
os dramas, no regressar.
Sou turista,
sou tendente,
sou cultivado,
sou explorado,
sou triturado
pelo consumismo
desenfreado,
das massas do meu tempo.
E sonho perdido
nos fantasmas da velhice,
com a paz inculta
dum monte perdido no tempo,
por entre o sol escaldante,
os pássaros que voam
e um livro por companhia.
Utopias?
Colecionadores
Há quem colecione
homens e mulheres,
como se fossem troféus,
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de caça ou de pesca.
Há quem colecione
carros e jóias e roupas,
como se fossem cromos,
de uma nóvel caderneta.
Há quem colecione
amizades e compadrios,
como se fossem medalhas,
decorando peitos inchados.
Há quem colecione
viagens e excursões,
como se fossem desculpas
para origens modestas.
Há quem colecione
empregos e posições,
como se fossem bálsamos
para complexos reprimidos.
Há quem colecione
vidas e experiências alheias,
como se fossem lenitivos,
para a própria banalidade.
45
da sua angústia existencial.
Fatalidades
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e suportar a ominoso destino,
o qual nada nem ninguém opera.
Somos reféns da sinistra química!
Esperanças
Esperança vã ou fatal?
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Dívidas
Talhadas na infância?
Incutidas pela sociedade?
Produto da minha lavra?
Condicionantes deste percurso,
independentemente da origem.
Auto diagnóstico
Estou em crise,
supostamente a meio
da minha provecta idade.
Dizem os entendidos
que dá sensação de incumprimento,
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de culpas e remorsos;
vontade de recomeços,
de prazeres não experimentados;
Depressão e ansiedade
são companheiras antigas,
controladas (às vezes)
por artes de encartado alquimista.
49
Se de médico e de louco
todos temos um pouco,
diga o leitor o seu diagnóstico,
enquanto versejo os sintomas.
Olhares vazios
50
nos olhos de quem já viveu
e tem a morte por diante.
Arrogante a juventude,
que pensa que a adrenalina
e o sexo desenfreado
enchem a vida de ser.
51
Não se olvidem os jovens,
na sua ânsia do viver,
de encher também olhares
de doces recordações do ser,
Banalidades
Riram,
tiraram fotos
e nem redescobriram
as ilhas do Atlântico,
nem o mundo acabou.
52
Singular ritual
De repente a embarcação
fica de peixes rodeada,
em súbita turbação
de água movimentada.
Saltam desenfreados,
os peixes aos montões,
pulam desconcertados,
em singulares aflições.
53
do singular vagueado
dum rio que quer ser mar.
Poema jurídico
Faço trovas
em articulado.
Postulo versos,
concluo rimas,
em versado arrazoado.
Especifico quadras,
impugno cantigas,
exceciono sonetos,
contesto lirismos
e apelo às metáforas.
Agravo as alegorias,
reviso as hipérboles,
executo eufemismos,
embargo parábolas
e arquivo analogias,
Por inutilidade
superveniente
da lide.
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Reflexos
55
o pouco que de mim resta,
antes que desapareça,
definitivamente.
A Lista
Tinha um amigo
que escreveu numa lista
o nome das centenas de mortos
que passaram pela sua vida.
Batalhas Perdidas
À satisfação produtiva
sucede o desgaste interior,
da mente turvada,
pelas angústias alheias,
piores que as próprias;
pelos resultados impossíveis
que se não podem deixar
de tentar alcançar;
pelos problemas adiados
que se não podem esquecer,
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antes que seja tarde.
Tarde demais.
Queria
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por entre brumas etéreas,
rumo ao azul do mar.
Descobertas
Há um amarelo manso
que dá cor à solidão
tépida, dos meses de Verão.
Há um abraço profundo
que dá sentido à vida,
entre passados ocultos.
Há um amor materno
que acolhe a dor dos outros,
mais fundo ainda que a própria.
58
Há um olhar propício
que olha de frente o futuro
enquanto vê o passado.
Audácias
Uivo à lua,
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Enquanto mochos famintos
me arranham as costas.
Crescem-me chifres de cervo
e vejo serpentes e dragões,
que me assolam na noite.
Crio raízes
por entre as árvores do pomar
e com audácia,
como elas frutifico.
Sinto a pele tatuada
a vermelho sangue,
com monstros sinuando
a floral epiderme.
Renascer
A noite zodiacal
entranha-me a alma cansada,
num azul denso e profundo.
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Poisam-me negros corvos nas mãos
em comunhão de sentires
de lunares criaturas aladas.
No verde da natureza
brilham ocres de esperança,
de pássaros esvoaçantes,
e o meu sentir viceja,
como a lua, como as árvores,
na certeza do renascer
em cada dia fugaz.
Mater mundi
61
Mulher motor da humanidade,
fonte primordial do poder da vida.
O segredo
Os olhos cerram
o que o pensamento solta.
As mãos agarram a ouvinte
para que a sofreguidão sacie,
no estertor da curiosidade satisfeita.
A concupiscência do mundo
não tem medida ou remate,
corre nas veias pulsantes
da humana condição.
Sem ela o mundo não gira,
o sol não nasce, nem põe.
62
Ninguém suporta o tédio
de uma vida de virtudes,
sem a inveja aguçada
pelos pecados alheios.
Trégua
Prostrados, indolentes,
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exsudamos transtornos
acumulados num ano inteiro
e depois das peles torradas,
renovadas ao braseiro do sol,
prontos ou não retomamos
o nefando bulício banal.
e um cão estouvado,
olhando em frente ansioso,
enquanto o príncipe acanhado,
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ficava atrás, receoso.
Um feiticeiro velava
uma belíssima fada
que segurava a vela, alva,
pelo vento enfunada.
Há mesmo um clandestino
que trepa por um vão,
juntando assim o destino
à egrégia tripulação.
Há laranjeiras carregadas,
flores e plantas a granel,
bandeiras esvoaçadas
anunciando o tropel.
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a nau não sai do lugar.
É uma nave de loucos,
uma metáfora vulgar
à humana condição.
Raízes
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embrenhadas na terra
ao longo da minha vida,
que mesmo depois da morte,
deixam marcas e presença,
As mãos femininas
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velam as mãos, colo e peito,
mas exibem formas generosas
que sabem exaltar desejo.
Já as mãos entrelaçadas
pose a três quartos, braço apoiado,
revelam a serena confiança
de quem se sabe bela e amada.
Musa ancestral
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pele nívea, expressão triste.
É um rosto parado no tempo,
um retrato íntimo, da história privada.
Rainha pelágica
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ondulantes, coloridas,
arco-íris axadrezado.
A criatura acaricia, com paixão,
este estranho animal
que rejubila prazeroso.
70
que a rodeiam devotos.
Harmonia vital
71
Sou terra, sou ar, sou água,
sou fogo que teima em arder
enquanto a vida durar.
Devoção matinal
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o milagre supremo da vida.
Quadro primordial
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sustentáculo da vida.
Evoca a essência
desta vivência febril:
há que ganhar o sustento,
em harmonia de seres,
para gozar a beleza
que a vida tem a oferecer.
74
Eretos em pose eterna,
são uma família de múmias,
Em mortalhas coloridas.
Símbolos
Um emaranhado de fios
entranha-se na minha pele
como tatuagens gravadas.
Pinturas de guerra à banalidade,
grafittis emancipados.
A fera
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No cabelo radioso, imenso,
armava-se um jardim inteiro,
de rosas de alabastro, como ela,
e de plumas brancas,
pontuado por notas rubras
que lhe acentuavam a graça.
Sobressaiam os lábios,
vermelhos, sanguíneos,
numa boca desenhada a lápis,
para aguçar o desejo.
Deusa do arvoredo
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envolvem a tua floral beleza,
na Primavera da vida.
És deusa do arvoredo,
senhora primaz da floresta,
rainha da selva oculta,
deidade da natureza virgem,
de inocência intocada.
Oxalá eu me perdesse
nesse matagal sagrado
que a tua perfeita divindade
defende, em inviolável mistério.
Dúvida infernal
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de sangue e seiva e de fumo.
Experiência psicadélica
ou profecia apocalíptica?
O advento
A benção
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paredes sumptuosas, a lioz revestidas.
Três troncos
79
Dos ramos extraíndo a própria vida.
Beleza e juventude
Beleza e juventude
são duas coisas diversas,
que juntas se podem encontrar,
como separadas também.
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que o tempo consegue curar.
A espera
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Desencontros amorosos
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O pôr-do-sol
Eu sorri em silêncio,
pois conhecendo-te há tantos anos,
não tinha dúvidas a esse respeito.
Tradições
83
com as múltiplas cores e formas.
Brincando aprendia memórias
naqueles símbolos transcritas.
A chuva
84
e os seus cabelos escorriam.
Pingavam como se fossem nuvens.
A esplanada
85
tão alegres e plenas de vida.
86
de vida suspensa,
em dias tristes de chuva.
Nostalgia
O passado embala,
87
entorpece, enebria
em sombras difusas que aconchegam,
que elevam aos céus da fantasia
uma realidade sem centelha,
sem vida, sem interesses.
Em oníricas fantasias,
quando o espírito assim o quer,
ainda consigo visitar
a minha ilha dos amores pretéritos.
Por vezes até
ancorado num rochedo
à beira da maresia
da meninice, sonho acordado
ternos tormentos de efebo.
Mas a nostalgia
é dos vivos um privilégio.
Os finados descansam
na paz do esquecimento,
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livres do tormento
mas também da doçura da memória.
Se a confiança no presente
e no futuro falharem,
podemos seguros
contar com o passado,
última e derradeira redenção.
Mesmo que de mera ilusão
em nostalgia esculpida,
não passe.
89
Girassóis
Não há girassóis
como os girassóis de Van Gogh.
Mas há quem os continue a pintar.
Casas vazias
90
de recordações enterradas.
Liberdades
91
se torna sinónimo de solidão.
Tristeza
Na lixeira da memória
Na lixeira da memória
há lembranças
que não se podem reciclar.
Há palavras por dizer
e outras por retirar.
Há abraços nunca dados
de oportunidades perdidas.
Há obras começadas
que nunca serão concluídas.
Na lixeira da memória
92
há esperas em vão
por quem já não vai regressar.
Há projectos que aguardam
iniciativas perdidas.
Há lágrimas vertidas
pelo que não tem solução.
Há regressos inconsequentes,
por demasiado tardios.
Na lixeira da memória
nada mais há a fazer.
Menina
93
do rosto de manequim, composto
por artes secretas de feiticeira,
das garras felinas e coloridas
que brotam de mãos e pés delicados,
do corpo desenhado a rigor
entre ginásios e clínicas de estética
e exposto a preceito, em noites
de luminosas paragens
e de abandonos frenéticos
Pinturas de chuva
94
que expõe no chão molhado
da rua banal, por todos cruzada,
pessoas e carros perdidos
no caminho vulgar do quotidiano.
Poema cubista
95
Quadro de tristeza
Amante completa
96
Navegante solitário
Obra preceituada
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pintada na vida, como nas artes,
e dando origem a preceito clássico.
Amor desperdiçado
Desamor desperdiçado
98
Às mulheres, fere o amor
desperdiçado num lençol.
Olhando os homens na rua
ela enche o ego sozinha.
Olhar distante
Aquarela mediterrânica
Esboçados os ausentes
em componentes luminosos,
que os integram às janelas,
99
aguardando a hora do estio.
Ilha perdida
Símbolo da segurança
mas também perigo fatal,
para quem dele
se aproximar demasiado.
Prisioneiros da solidão
sacrificam-se à ferocidade
desta deusa natural atroz,
onde o normal não existe
e tudo transcende a humanidade.
100
onde reinam os elementos
e os humanos são reduzidos
à sua vil condição natural.
Amor perverso
Pura ilusão.
Alguns até serão capazes
de controlar os seus amores,
mas só porque não amam
o suficiente.
101
do livre arbítrio,
deixando-o indefeso
nas garras do seu amor.
Águas turvas
Sombras de outono
Chovem nuvens
pelos telhados tradicionais.
Um padrão vermelho
102
de folhas secas, da aldeia,
dá forma às sombras,
carregadas de Outono,
das casas recortadas
no tapete dos céus.
Um homem simples,
de pele amarela,
de cabelos pretos
e olhar carinhoso,
faz parelha,
de olhos fechados,
com um gato mortiço
de manchas cinza
e pêlo branco eriçado.
No alto da torre
no seu brilho ocre
de janelas despidas
ao céu amarelo,
ramos duplos de árvores
belas e nuas,
devolvem as sombras
aos telhados azuis.
A cidade nua
103
A cidade alvadia flutua
assente em cascatas de luz,
sobre navios despidos
que trepam o mar prateado.
Sonho profundo
Um homem tombou
descalçando o corpo cansado
numa velha cama sombria.
Adormecido sonhava.
E no seu sonho, uma menina,
de lábios sanguíneos e carnudos,
brincava num campo de girassóis,
na frescura da juventude.
104
Usava uma boina vermelha
sobre os cabelos castanhos,
que escorriam pelos ombros
enquanto corria sozinha,
no mar de amarelo floral.
Estradas
105
Percurso igual,
Estradas diferentes.
Miragem
Cúpulas escuras,
De impressão pintadas,
Por ilusões embaciadas
A luminoso registo.
Ela Pairava
106
e os cabelos loiros cruzados;
Desfile abstracto
107
desenhados a negro com traços de cor.
Odisseia contemporânea
108
Perdido na floresta
Um homem sombra,
vazio, monocromático,
sozinho e terroso
no poente indefeso
do meio da tarde.
Os troncos iguais,
de cor pastel,
numa luz perdida
em busca da floresta,
sob o céu quente
do nada.
Baloiço no cais
Um pneu soturno
pendurado no tempo,
um baloiço perene.
Moldura improvisada
para um lago parado
e uma árvore solitária.
109
O sobreiro
Um sobreiro pujante
num campo ominoso
mas coberto de vida.
Um céu de frutos
ramifica orgulhoso,
soberbo mas sozinho.
O bibliotecário
Na liberdade da biblioteca
que à esperança tanto custou,
lá se encontra em pensamento
uma civilização a alcançar.
110
Meia-idade
Elevam-se os incumpridos
em contagens decrescentes,
assentes nas suas lembranças.
Circe
Musa encantada
de peitos coloridos,
aquarela morena
de lábios firmes
e beleza sedosa.
És deusa fumegante
com cabelos de névoa.
111
Circe de negro ébano
com pele enfeitiçada
e alma despudorada e nua.
O Farol
Regresso a casa
112
trago o futuro comigo.
Estrada de sombras
É um percurso fugaz
povoado por árvores vãs,
sonhadas em cada sombra
das bermas que não possui.
Calafrio outonal
sinto o encantamento
do frio na espinha,
apesar de onírico.
O ambiente sinistro
que penetra os ossos,
num calafrio outonal.
113
Autocarro noturno
Num autocarro só
um homem de turno
passa, aos solavancos.
Um velho espantado
com tamanho alvoroço
mete conversa, de ar triste.
114
No chão, olhando uma revista,
repousa um saco de garrafas,
fardado, recheado de compras.
Portal de mistérios
115
de segredos insólitos,
que paixões esconde?
É um portal incoerente
à decrepitude desconhecida,
pelo uso desgastado
de materiais corrompidos.
À espera de descoberta.
Árvore outonal
116
Telhados
Do horizonte de telhas
estende-se, por janelas,
um emaranhado urbano,
ao céu de luzes privadas.
É um presépio fulvo,
pontuado de arvoredo
e com o mar por fundo.
Paisagem campestre
Um comboio de pomares,
vestido de campos,
dormia com as searas,
numa colina aos quadrados.
As hortas, em cascata,
de sedes descomunais
e roupagem pedregosa,
confundiam, adormecidos,
um casal de gigantes,
117
que fazia as vezes de horizonte,
carregado, ao longe, de fruta
e mais parecendo ciclopes.
Sombras na praia
Sombras molhadas
andando na tarde,
de senso na areia,
sumidas na praia.
Cúmplices finais,
de intimidade perdida,
dos reflexos da hora
nas luzes da água.
Ao fim de um livro
ausente na mão,
sonhando acordado
118
o dia que finda.
À espera do sol
Sentado,
na frente da casa
vermelha, pequena
casa de bonecas.
Telhados inclinados,
à espera da neve
que cai abundante.
À espera do sol.
119
Reflexos perfeitos
Sentado, sozinho
num lago translúcido,
de fundo branco,
que emerge da neve.
Em reflexos perfeitos,
da montanha
que cai por detrás.
Em frente de um banco,
da outra margem,
onde se vêem
as florestas outonais.
Medo
120
Mas não podia entregar-se.
Só podia proteger-se
do seu temível destino.
Pausa
O avental vestido
mostrava o futuro,
de azáfama expectante,
despida de sonhos.
O lazer fugaz
do café diário,
de olhar esquecido
no eterno trabalho.
Choque de titãs
Garras de água
rasgam a rocha
da costa sangrenta.
Falésias negras
121
escorrem espuma
pelos fios do mar.
Choque titânico
que dura há milénios,
entre rivais elementos.
Longe do paraíso
Cidade de sol
Areal parado,
espalhado pelo mar,
122
de navios estendidos
gaivotas adentro.
Arvoredo rubro,
paredes vespertinas,
telhados pujantes
da paz conquistada.
Chão de chamas
Ramos ardentes
ante a força do frio,
que queima impotente.
Brasas escaldantes
de quem as viu,
123
de alma perdida.
O rei caranguejo
Confiança
124
do confiante porvir.
Dia de mercado
No mercado quotidiano,
sob toldos universais,
há gente colorida
que passa e que compra,
que fica e que vende,
na azáfama local.
Mudam as cenas,
repetem-se personagens.
Gente de aspecto pitoresco
num mercado de encontro,
do matizado humano
com o alimento tradicional.
Sentado no paredão
125
Sobejam alguns resistentes
buscando a praia só para si:
crianças de pés molhados
que me perturbam a leitura;
e claro, os pescadores,
que jamais abdicam,
seja Verão ou Inverno,
da sua missão sagrada.
Eu sento-me descansado
e leio no paredão.
Feiticeira
126
e pássaros azuis, entre as mãos.
Acordei na aldeia.
Da janela entreaberta
vejo a rua a nascer.
As mulheres de negro
que passam,
rumo à igreja,
trocando conversas,
partilhando destinos
127
em diálogos banais.
Lentamente
a aldeia vai-se enchendo,
de vida e de palavras.
Solitária ladeira
Solitária ladeira,
de pedras escuras
e centenárias.
Subindo o mal
com um candeeiro,
por única companhia.
Iluminando a noite
de trevas seguras,
na aldeia materna.
Domínio do sol,
até à chegada ansiosa
à casa do porto.
Genialidades
Genial é a ímpar
capacidade de comunicar,
ultrapassando barreiras,
128
apelando a valores comuns,
tocar a simples humanidade
e ser compreendido e admirado
por multidões.
Ribeira
Janelas regulares,
paus de fósforo gigantes
num jogo de criança.
Varandas instáveis,
insólitas e minúsculas
desencorajam curiosos.
Disposição inesperada,
mais para a vista
do que para os olhos.
Rectângulos coloridos
desenhados a esquadro
129
e debruçados sobre o rio,
Descobrir
As pedras milenares
apontavam aos céus,
como catedrais rupestres.
As nuvens corriam,
espraiadas nas alturas,
como raios de luz.
Miséria abençoada
Um acordeão de luto
toca uma mulher de preto,
caiada na pedra.
130
Nas paredes brancas
salta música aberta
para as janelas fechadas.
Sentada ao pé,
de ar triste e solitário,
uma criança prostrada.
Ao longe, na igreja,
uma cruz monumental
abençoa os miseráveis.
Triste domínio
Cai de dentro
dos vasos da casa,
no vidro abundante.
131
Só
Só
de vestido branco.
Numa sala
velha e escura.
De pé,
estática,
descalça,
no chão de madeira.
Olhando
para fora,
em janela aberta
para o mundo.
A luz libertadora
que entra,
penetra o corpo
e liberta a alma.
Equilibrista
Uma menina
brinca, instável,
de pé equilibrada
num barril de lata,
rolando no chão.
132
Duas crianças,
mais pequenas,
jogam distraídas
no passeio,
sem prestarem,
ao feito desusado,
qualquer atenção.
A rua deserta
mostra outros detritos
e prédios ausentes,
por entre ruínas
que permanecem de pé.
Um frágil equilíbrio
entre a infância
e a destruição.
Insólito
Um casal molhado
atravessa um estendal,
por debaixo da ponte.
133
no percurso, de duas vidas
expostas na água caída.
Só nós, encharcados
pelas roupas da chuva,
contemplamos o insólito.
Abrigo
No escuro interior
observo a luz do dia,
penetrando as vidraças
num filme de vidas.
134
Escadaria
Há um barco ancorado,
flutuando no leito frio,
que aguarda quem queira
agarrá-lo, como a um sonho.
Há um arco de pedra
a meio caminho,
pintado de branco,
que acolhe o passante.
Um percurso triunfal,
por entre vasos de flores,
até ao espólio invejado
dos reinos marinhos.
Regresso
135
de pedra fria e nua,
que o Inverno do tempo
despiu de branco.
E pintou os ramos,
lavou o dia imaculado
e entristeceu os passos,
que escondem corpos
em vestes grossas,
e encurtam o gelo
do regresso a casa.
Tempos sombrios
De pedras rudes
nas calçadas toscas
e de gente pobre
bebendo um copo
em cadeiras de verga.
As árvores, porém,
cresciam saudáveis
e o mar brilhava
ao sol quente de Verão.
136
por isso se adivinhavam
pensamentos ocultos,
por entre as trevas
do tempo sombrio.
Viela escura
A silhueta disforme
acompanha uma nesga de sol,
que penetra a viela escura.
Lobo do mar
Um operário do casco,
de vara entre os dentes,
137
pinta as redes imensas,
por entre a enorme solidão
de um estaleiro naval.
De tronco nu no trabalho,
ignorando o cachimbo,
parece uma sombra
dum marinheiro de boina,
de caricatura na cabeça.
Grande estação
De encontro às sombras
de passageiros espantados,
por janelas fantásticas
de sóbrios reflexos vitrais.
138
O fumo denso escorre
por torrentes de luz,
enchendo os espíritos
de lúcido encantamento.
Mãos
Mãos de um homem,
sobrepostas na pele
à própria vida.
Mãos de trabalho,
labirinto de fios,
de poros e cortes.
Mãos sofridas,
escamadas e calejadas
na luta do tempo.
Mãos quebradas
pela sobrevivência
de um corpo.
Mãos de morte,
suspensa pelo uso,
à espera da vida.
139
Deserto urbano
Paro em semáforo
de paredes velhas
e janelas escuras
de prédios em néon.
As tabuletas negras
dos bares de tijolo
anunciam trocas
de desejos despidos.
Na rua
Era um tempo,
em que as crianças pulavam,
aos magotes, na rua.
Viviam em grupos,
de casa em casa
e de jogo em jogo.
As janelas estavam
sempre abertas,
140
tal como as portas
daquela cidade.
As compras diárias,
ridículas, faziam-se
nas lojas de bairro,
Beleza de outono
É um caminho refém
da natureza branca,
141
onde árvores amarelas
oferecem passagem
a quem nele descansa.
Um banco admirável,
no caminho cinza,
descansa indiferente
na arte passante
de um dia de Outono.
E mesmo o interesse,
soez e apático,
de quem passe trivial,
fica rendido, devoto
à beleza que invade.
Cidade vermelha
142
protege-me na avenida de luz.
Ilha branca de paz, sentada
à mesa da cidade ardente.
Janela de pescadores
Olhares desconfiados
saem de parede caiada
onde há polvos a secar ao sol.
Há gaiolas penduradas,
tapetes cantantes
e pássaros no estendal.
Esperança perdida
143
espera na noite
espectros que vagueiam
em busca de paz.
As paredes sujas
de velhos descansos,
repousam no tempo
das buscas cansadas.
Um véu branco
na cadeira despida
alimenta a memória
da esperança perdida.
144
Quando passavam
e olhavam o velho
seguindo caminho,
E quando vendia
algum livro velho,
o velho reviçava,
do orgulho de velho
que quer partilhar
os seus velhos livros.
145
Noite assombrosa
há ramos sombreados
em paredes obscuras
e muros assombrados.
Silhuetas à sombra,
por detrás de edifícios
de má sombra aparente,
Absolvição
Na sua simplicidade,
contemplou pinturas
da artes angelicais,
de inocente elegância.
146
Ignorante do passado,
admirou a nobreza
de reis caducos
e de imperadores defuntos.
E devorou a pureza
de estátuas pretéritas,
de crianças aladas
guardadas por virgens mães.
Velhos fados
Em casa de velhos,
um singular casal
olha cansado.
Oficina de pobres,
com fumo que paira
sobre toalhas estendidas.
147
que mesmo silentes
tocam os fados
dos velhos cansados.
E assim fadados,
abençoado o destino
dos velhos presentes.
Tempos de pedra
De mulheres na rua,
sentadas às portas,
esperando fedelhos
rodeadas de fome,
Infâncias passadas
Infâncias perdidas
nas cidades desertas,
148
por ruas sujas,
perseguem a medo
as névoas passadas,
passando por túneis
e sombrios percursos.
Crianças sozinhas
vagueiam sem destino
por negros caminhos.
Derivam à solta,
entre paredes de pedra,
sem porto ou abrigo
por onde atracar.
Desejo cubista
Em quadrados,
as pernas garridas
em longas meias,
a saia cruzada,
de cor curta,
e pés descalços.
O tronco velado,
de braços às cores
e de rosto nu.
Cabelos longos,
149
vermelhos e negros.
Um desejo cubista.
Ponte suspensa
Canal de espelhos,
de vista dobrada
em vertical simetria.
De ponte suspensa
na vida que passa
por cima das águas.
Caminha segura
olhando no leito
o céu que flutua,
Revelação
Um descanso despido
de olhar sensual
e colo desperto,
em sedas cerrado.
Anseios despojados
150
sobre umbigos alheios,
num confortável desejo
de se expor ao olhar.
Tranquilidade nua
em beleza perfeita,
de intimidades segura
e de maravilhas tranquila.
É desnudar escondido
Em serena revelação.
Policial perfeito
151
Mas, de costas, descobre-se
o alter ego do indiscreto fotógrafo:
outro homem sinistro,
de fato e chapéu film noir,
esconde intenções misteriosas.
Três personagens,
dois chapéus,
um só rosto
e uma sombra.
Um policial perfeito.
Sonhos milenaristas
Há na natureza humana
uma tendência irresistível
para projetar os sonhos.
Aspirações coletivas
a um futuro idílico,
um milénio espiritual,
um quinto império,
sociedades utópicas,
paraísos terrenos
místicos ou laicos.
152
há pacientes, entregues
a superiores desígnios,
e celerados, que não hesitam
em realizar pela força,
o que os céus e a terra
lhes negam ou adiam.
O mesmo de sempre.
Ser humano é seguir sonhando,
aspirando ao impossível.
Centelha vital
153
O terreno é totalmente plano
e as linhas seguem
paralelas até ao infinito.
Divino cenário
154
Riscado e tufado
de nuvens brancas,
pintadas na mestria
de um perfeito artista.
Infância marcada
Um plástico fino
a improvisar proteção,
da intempérie da chuva.
Um olhar triste,
suplicante e profundo,
para quem o surpreende
naquele périplo incómodo.
155
Uma infância marcada,
que vai buscar redenção
no resto da vida.
Rumo ao desconhecido
Parte matinal,
insegura entre a névoa.
Ofuscando o comboio,
chegam fortes, o fumo e a luz,
escasseando a visibilidade.
Chapéu Vermelho
Negro.
Escuridão absoluta.
Afasto-me lentamente
156
e vislumbro traços,
sombras, riscos.
Uma silhueta disforme
que lembra borrões de tinta
sobre um fundo azul noturno.
Continuo a afastar-me
e o contorno revela uma árvore.
Primeiro uma copa,
depois ramos despidos
e finalmente um tronco fino,
que se une com outro e mais outro,
até perfazerem um tronco normal.
157
Por debaixo outro vulto,
outro chapéu vermelho,
outro tronco ramificando,
outra copa sombria,
outro negrume.
São águas tranquilas,
imagem noturna de sombras
que se erguem, acima delas.
E no topo de todas,
que é também o fundo das águas,
coroando a margem,
agora elevada a península,
nuvens de prata,
iluminando os céus
pelo brilho, que se adivinha
de uma lua ausente.
Santo Campo
158
pelos ares rústicos de uma quinta,
sobre um velho casal de camponeses.
159
Lanternas no rio
Medusa redimida
160
exibe cores festivas,
que os cabelos desmentem.
Torre de babel
Na moderna mitologia
todos gritam necessidades,
em torres de Babel partilhadas
feitas de línguas diversas.
161
vive-se na rua.
Há sempre gente sentada
a vender qualquer coisa.
Há roupas estendidas
que atravessam as ruas,
refrescando os transeuntes.
Há regateio de preços
de tudo o que se vende
naquela urbe agitada.
162
na cidade dos pobres.
A dança
Agarro-te firme,
sinto o calor do teu corpo
e a pele sedosa
das tuas mãos de criança.
Junto-me à leveza
da tua roupa ligeira
e entrego-me à música.
Caminho solitário
entre a vida e o abismo,
como uma árvore
solitária, debruçada
sobre a névoa
de uma ravina desconhecida.
Há um estreito caminho
163
entre a vida e a morte,
entre o tudo e o nada,
entre a terra segura e o precipício.
Temos pernas para andar
e temos olhos para ver.
Teremos cabeça para pensar?
164
Vês o meu coração?
O espelho da vida
reflete imagens
construídas a medos,
ansiedades e frustrações.
Na beleza copiada,
de capa de revista,
no estilo irreverente
da reverência aos outros,
enconde-se a realidade.
Destroços da noite
Os destroços da noite
dão à costa
em frente ao espelho,
165
na manhã seguinte.
Os anos regressam
e pesam insuportáveis.
Os medos impõem-se,
apoiados na ressaca.
A poesia do movimento
166
Como ela, as suas roupas
esvoaçam, leves e soltas,
acentuando o encanto
numa insinuante sensualidade.
Eva renascida
167
O seu corpo felino,
alongado e despido,
equilibra-se numa perna
assente atrás das costas,
que lhe expõe, infantil,
um pequeno pé sensual.
Sozinho
Sozinho,
na estrada de pedra,
caminho sem tempo
de aldeia perdida.
Sozinho,
na sombra infindável,
do sol poente
de um dia de Verão.
Sozinho,
na infância vazia,
168
de pobreza repleta
no abandono do campo.
Sozinho,
caminha em frente,
confiante no futuro
de quem nada tem a perder.
Voyeurismo
Na selva urbana
os cartazes brotam das paredes
por geração espontânea.
Vigiam atentos
os citadinos que passam
sem sequer os verem.
Há olhos escondidos
entre a publicidade
que se atropela nas paredes.
O conforto do anonimato
nas cidades grandes
acabou em definitivo.
169
Esta é a era do voyeurismo.
Torres fumegantes
As casas pintam-se
da cor do fumo,
por dentro e por fora,
tal como as pessoas
que passam soturnas,
entre baforadas negras
que lhes sugam a vida
a troco de um magro
e miserável sustento.
170
Cidade e habitantes
sucumbem, soterrados
entre os gases regurgitados
das torres fumegantes,
até ao último estertor.
Um balão
A magia de um balão
é um mistério da humanidade.
Aquela intumescência leve,
que flutua no ar,
é um encantamento
que ultrapassa o tempo,
percorre gerações
e revive eternamente
na imaginação infantil.
É o apelo da simplicidade,
o domínio do imprevisto,
a elegância do movimento,
mas também seguramente
o equilíbrio frágil
entre o tudo e o nada,
entre o poder do encanto
171
e a eminente destruição
numa assustadora explosão.
O rebentamento da bolha
é a certeza incontornável
que sempre desilude,
que sempre surpreende,
por mais que a experiência
nos ensine a sua inevitabilidade.
Por isso as crianças choram
quando rebenta um balão.
Por isso os adultos choram
quando uma vida acaba.
É o fim da ilusão
que nos comanda a vida.
Morrer de tédio
Sentados no cais,
dois jovens rapazes
contemplam os navios,
no trânsito do porto
de uma grande cidade.
O apelo do desconhecido
enche-lhes os sonhos.
A certeza das dificuldades
esvazia-lhes a alma.
172
Também eles, um dia,
gostariam de partir.
Para um qualquer lugar
onde as almas estão cheias
e os sonhos cumpridos.
No despender da vida
todos correm, em busca
do seu pedaço de paraíso.
Partir é nascer outra vez.
Ficar é morrer de tédio.
O salto
No ímpeto de juventude
uma fúria de vida,
uma ânsia de experiência,
173
uma certeza de futuro
próprios da mocidade.
É um arremesso temerário
ao mundo por descobrir,
na firmeza de quem
se arroga um direito inato
à felicidade de cada momento.
Zelo
A dúvida é pertinente
mas o cuidado ineficaz.
O mundo é pleno de surpresas
174
e a vida permanente inquietação.
Desvelo
Perdida em pensamentos,
planeia em segredo
as incertezas que vêm.
A casualidade da expressão,
de ligeira contemplação,
de cabelo apanhado,
de queixo apoiado na mão,
revela uma intimidade
que desarma o olhar.
Os pés descalços,
os ombros despidos
e as pernas cruzadas
elevam o íntimo ao sensual.
E a juventude da musa
completa a harmonia,
175
desvelando a paixão
num espectar deslumbrado.
Dualidades
sucede o lunar,
noturnal, sombrio,
da pele outonal
e a boca apagada,
de olhares dolentes.
176
A sereia e os tucanos
Na orla do mar,
junto às rochas batidas,
encontrou dois tucanos
e encantou-se com eles.
Então a sereia
177
estendeu os braços
e as mãos finas e delicadas,
aos pássaros encantados.
E ambos a elevaram
aos céus dos seus sonhos,
finalmente cumpridos
na sua plena existência.
Reencontro
Vislumbro a serenidade
de um olhar entre as sombras.
Olhos claros e profundos
num rosto perfeito de mulher.
As sobrancelhas arqueiam,
como se interrogassem o meu olhar.
As longas pestanas convidam
a perder-me naquele ser.
178
é reencontrar a felicidade
todos os dias.
A sombra
Contornos perfeitos
num muro em ruínas.
Lembranças dispersas
nos escombros da memória.
179
Olhares diferentes
Triste amor
180
para deleite dos pais.
Momento de glória
de parentes e educadores,
exaltação pedagógica
para memória futura.
Triste o amor
que se expressa
em lágrimas inocentes.
Triste a pedagogia
que ensina a submissão
e a coerciva obediência.
A casa da trepadeira
181
Fora construída outrora
para gente humilde,
na estatura e condição.
Se a casa envelhecia
a trepadeira revigorava,
indiferente ao tempo.
As pessoas passaram
e a trepadeira ficou,
decorando a fachada.
Conversa catadora
A interação social,
nas comunidades de símios,
182
passa pela indispensável
actividade do catamento.
Névoas passadas
Caminhava sozinha,
em frágil equilíbrio
sobre a terra alagada,
com um intenso nevoeiro
183
a esconder-lhe o destino.
Protegida do frio,
por grossas roupas de lã,
e da lama, por botas
de invernal resistência,
alcançou um árvore solitária,
enorme e de perfil sinistro.
Avançou então,
receosa mas decidida,
com as botas enlameadas,
por entre as brumas
das névoas impenetráveis,
para nunca mais voltar.
184
O milagre
Um escadote
no meio de um campo.
Duas crianças que brincam.
Casa vazia
185
Uma casa é gente,
refeições e conversas,
anseios e desgostos.
O mundo ao avesso
186
Um cartaz revolucionário
que lembra, a quem passa,
as injustiças do mundo
e a transitoriedade da vida.
O carrocel
187
e o mar ficava invisível aos olhos,
restavam as ondas a relembrá-lo.
O deserto vermelho
188
Chegou então o tempo das decisões,
a resolução do tudo ou nada pendente:
Seguir e enfrentar as tormentas
ou regressar ao conforto do deserto?
Marcas
Um rapaz observa,
pela janela de casa,
a menina passando
189
e comendo doces.
O seu olhar expressa
um desejo ardente.
Sonho
À beira da estrada,
uma placa pequena
indica o caminho
para uma aldeia perdida,
de nome insólito, Sonho.
As flores silvestres,
fulgurantes na berma,
envolvem a placa,
impedindo, sem esforço,
a leitura a quem passa.
Fiquei na dúvida:
será o sonho tão perfeito
que queiram manter
os outros à distância?
Ou terá caducado,
virado talvez pesadelo
190
e entregue ao abandono?
Poesia
Alguém escreveu
que a poesia salvará o mundo.
Eu preferiria escrever
que salvará a humanidade.
Caminhos inóspitos
191
com o mar ali tão perto,
construindo rochas escuras
entre espumas brancas,
no batente das névoas soturnas.
Nuvens de arroz
A mulher de barro
caminha em carreiros,
de sachola no arrozal.
192
ela percorre as nuvens
em busca de sustento.
Um templo solitário
no meio da existência,
refletido nas águas,
abençoa os caprichos,
de idade provecta,
da natureza hostil.
Permanece firme
na elegante dignidade
da beleza intemporal.
Um marco de pedra
na idade do tempo,
no meio do lago.
Ameaça
Um jogo de sombras
num túnel escuro
da uma velha cidade.
Um transeunte incauto
encara inseguro
uma ameaça que paira.
193
Abrupta e assustadora
ela revela-se atroz.
Mas não é mais
que uma sombra,
uma ilusão terrível
de fértil imaginação.
Ao sol de outono
Deitado na relva
contemplo o céu brilhante
de uma tarde de Outono.
As árvores vermelhas
que vejo ao longe, no jardim,
estão nuas ao sol de Outubro.
194
confundem-se, em pinceladas
de um quadro de Van Gogh.
Eu fecho os olhos,
respiro fundo
e dissolvo-me na paisagem.
O quarto aberto
A cidade quadrada
aparece rubra, nas torres,
com raios de luz brilhante
intercalando os prédios.
As janelas indistintas
são semi-povoadas
por vultos azulados,
olhando ecrãs de televisão.
195
Consciências sangrentas
Um touro morto
tombado no chão
de uma rua de aldeia.
A violência brutal
como um acto banal
que percorre gerações.
O velho leitor
Um velho lê o jornal
sentado nas pedras,
amontoadas num estaleiro
de construção urbana.
196
Por detrás de si a cidade
eleva-se em andaimes,
em tijolos amontoados,
em paredes por rebocar.
No entretanto, sentado,
o velho lê como habitual,
aguardando serenamente
o progresso por publicar.
O gato voador
Suspenso no céu,
sobre ruas vazias
e entre muros de pedra,
um gato eleva nos ares
o seu destino felino,
rasgando névoas matinais.
197
na memória gravada.
Rainha do mar
Deitada na orla
da areia do mar,
sente o corpo
molhado das ondas.
A espuma marinha
enfeita-lhe a figura,
coroando-a rainha
de oceanos fecundos.
Mãos efémeras
desenham sonhos
sobre a água.
Formas dançantes
em ondas de paixão,
anéis de vida.
198
Construções fugazes
em toque singular,
espelho de sentimentos.
Bailado de dígitos
que emana em círculos
de sensorial beleza.
Realidade imaginada
de sentidos despertos
na ponta dos dedos.
Caminho deserto
Caminho deserto
sobre as águas
de cor flavescente.
À luz crepuscular,
de candeeiros acesos
por entre as sombras.
Fiada de casas
de formas perfeitas
e cores alternadas.
Silêncio de morte
em teatro de vida,
suspenso no tempo.
199
Calçadas antigas
Calçadas antigas,
de pedra polida,
onde se cruzam
velhos sem tempo.
De negro vestidos
entre casas brancas,
caiadas ao sol
das ruas vazias.
Igrejas arcaicas
em rampas remotas,
galinhas à solta
por escadarias íngremes.
Jardim de luz
200
e há quem apenas passe,
por entre os gélidos
ares, velados de branco.
e as árvores despidas
agasalham os espíritos
dos solitários passantes.
Chegada ao paraíso
201
Cenário de beleza sublime
que anunciava ao viajante
a chegada ao paraíso.
Eterna saudade
Perdidas no tempo
das mortes passadas
erguiam-se cruzes,
escuras e pesarosas,
por entre o mato
do abandono dos vivos.
202
A noiva
203
Alheia a tudo o que se passava
atrás do seu dia de casamento,
a menina sorria ao fotógrafo
hierática nas vestes angelicais,
de campesina em dia de enlace,
com o coração pleno de esperança.
Na aurora do amor
No calor velado
da intimidade da dança,
do desejo fugaz,
do abraço terno,
Outros, envergonhados,
beijam-se e tocam-se,
amam-se fingidos,
na descoberta da paixão.
Na aurora da entrega,
de sentidos dispersos,
há que refinar a escolha
para a parceria perfeita.
204
Destino fatal
Sozinha no quarto
da sua infância,
ainda mal acabada,
ela lê atenta uma carta.
Na pose madura,
nas roupas elegantes,
no cabelo apanhado,
ela é uma mulher
de ar casadoiro.
No rosto infantil
de sonhos incumpridos,
nos medos ocultos,
ela é uma menina
que quer ser amada.
No contraste do ser
que ainda o não é,
a leitura de uma carta
anuncia o destino fatal.
Os Despojos da feira
Os despojos da feira
são um parque infantil,
aberto à imaginação
205
das crianças de sempre.
Ao levantar do cerco,
ao acertar das contas,
ficam os restos da festa
espalhados por entre as ruas.
Roupas Estendidas
Há roupas estendidas
à porta dos citadinos,
que exibem misérias
sem pudor ou desonra.
Em terras de canícula
o sol está para a roupa
como a chuva se ancontra
para os maus humores.
206
Pelo que mais vale
expor vergonhas à janela
que mostrar a sujidade
à vista da vizinhança.
A Alcova Sombria
207
a servir-lhe de topo e tampa,
sabe-se lá a guardar o quê?
Lágrimas escritas
Passam soldados,
passageiros tardios,
compradores de jornais,
olhares estranhos e penosos.
208
Ela esconde o rosto sofrido
onde escorrem lágrimas
que ninguém quer secar,
que antes preferiam não ver.
Na praia deserta
Na praia deserta
num Outono chuvoso,
ela passeia sozinha,
de sombrinha na mão,
por entre gaivotas
que voam em círculo.
209
Desce a rampa vazia
do salva vidas ausente,
rumo às aves marinhas
que, em bando desordenado,
se apropriaram da praia,
Descalça os sapatos
e enterra os pés na areia,
húmida da maré e da chuva.
Lentamente caminha
em direção à beira do mar.
Ao sabor da corrente
210
seguir simplesmente a corrente.
Felicidade instintiva
Portadas de madeira
de tábuas grosseiras,
cruzadas, rústicas,
de veios salientes
e amplas rachaduras.
211
mãos de crianças
de infâncias ausentes.
Um olho espreita
entre as mãos superiores.
Um pequeno rosto
vislumbra, numa racha
inferior das madeiras.
Há um esgar divertido,
de bochecha saliente,
nos rostos infantis.
Aspirações
212
A menina, pensativa,
olha sem rumo
esperando o futuro.
O cão olha só para ela
e entrega-lhe uma pata,
que ela segura agradecida.
Se a atenção humana
se dispersa em ideais,
remotos e fugidios,
já a do cães se concentra
em quem lhes dá
o conforto do sustento
e a presença duradoura.
Vapores da noite
213
de altos cabelos afro
e longos dedos finos
de modelo de revista.
Névoas envolvem-lhe
os lábios quentes de paixão
e os olhos semicerrados,
do desejo expresso
de quem quer provocar
desejos ocultos.
É um fantasma esculpido
nos vapores de uma noite
húmida de inverno,
Nem só de pão
No seu ar miserável
andrajoso e triste,
na sua solidão latente,
214
nas ruas de vida ausente,
Felicidade escondida
215
as bochechas juvenis,
um pesaroso olhar de tristeza.
Olhares despidos
216
aquecendo o frio da ausência
no calor das possibilidades,
mesmo que incumpridas.
Jovem cigana
Jovem cigana
de pele trigueira,
de tranças negras,
de longas saias
e blusa decotada,
que um xaile mal cobre.
Quantos caminhantes
levarão consigo anseios
217
da tua graciosa juventude?
Caminho ascendente
Subo, infindável,
uma longa escada,
carreiro ascendente
coberto de neve.
Catedral esculpida
por ramos cabelos,
negros de inverno,
de frio e de paz.
Caminho solitário,
a gelo aquecido,
por sombras diurnas
de eterna beleza.
Viagens felizes
Viagens afortunadas
de quem tem na rua
a sua morada.
218
Percursos audazes
de quem sobrevive
à singularidade do dia.
Caminhos pacíficos
de quem encontrou
as ruas vazias.
Paragens sadias
de quem se alimenta
da vida dos outros.
Chegadas felizes
de quem se contenta
com uma nova jornada.
Dádivas luminosas
Indiferentes, os transeuntes
percorrem os passos perdidos
das passagens banais,
das conversas frívolas,
das urgências fúteis,
219
alheios à benção luminosa
que jorra incessante dos céus
e que enche de vitalidade
o milagre de cada dia.
A cortina e a mesa
É um véu diáfano
que estende a luz
da janela às trevas
do quarto deserto.
220
A cortina esvoaça
sobre a mesa arredia
e limpa-lhe o pó
da solitude perene.
A cidade invisível
Horizonte nublado,
fumado, aerófano,
onde se distinguem
silhuetas sombrias
de igrejas e catedrais.
Torres e zimbórios,
cúpulas e coruchéus,
erguidos aos céus,
proeminentes, altivos,
distantes da terra.
Em tons de sépia,
de passado remoto,
se evocam memórias,
221
vislumbres de morte,
abandonados ao tempo.
Caminho de paz
O silêncio impera
nos ermos caminhos,
de branco pintados,
num convite à fé.
A paz do percurso
esconde-se na entrega
às névoas silentes
que conduzem as almas.
222
Floresta hibernal
Laboratórios de gente
223
e crianças, que pulam em magote.
Não faltam também os sorrisos
entre os que nada mais têm a oferecer.
Sombras banais
Ondas cruzadas
de linhas espessas
e de sombras finas.
Labirinto de formas.
De curvas e retas,
claras e escuras,
por pedras antigas
224
e lajes recentes.
Pedestres ausentes,
presentes olhares,
no mundo assimétrico
das voltas trocadas.
Passagem fugaz
de passos sem rumo.
Imagem irrisória
oferecida às musas
225
Nas pedras polidas
dos passos perdidos,
nas casas fechadas
das gentes ausentes,
ansiando destinos,
aspirações frustradas,
negados na vida finda
e cumpridos nas sombras.
O mártir da ponte
226
que se opunham ao império.
Só um sacrifício humano
apaziguaria as águas fluviais
e permitiria a conclusão
daquela obra estratégica.
Invejas
Em cada percurso
público pela cidade
vejo cenários montados,
nas esquinas pedantes
das vaidades que passam.
227
um pacote completo.
O cenário exclusivista,
o guarda-roupa, os adereços,
as companhias perfeitas
e a imprensa cor de rosa caseira
a que se chamou redes sociais.
A recriação do mundo
228
de um mundo que renasce,
em cada dia e maré.
Na luminosidade misteriosa,
que só o sol de Inverno tem,
numa praia deserta de gente.
229
Mortes
Na fila do trânsito
Olhares vazios
da espera prevista,
vidas paradas
na fila do trânsito.
230
Expostas em vitrine
a quem, como elas,
encalhou no percurso.
Faces de desespero
e rostos alegres;
fumos tabágicos
e vapores animalescos;
patrícios silentes
e vociferantes plebeus.
Passam desastres,
banais e distintos,
entre a chuva que cai
e a lama que espirra.
Há belas adormecidas
e lobos famintos,
gente que se diverte
e pobres desgraçados;
rumo à banalidade
de mais um dia frustrado.
231
Húmus
Os veios e cortes
que estalam a crosta,
rachada e gretada
de musgos e nós;
As texturas agrestes
de árido orgânico,
queimadas do frio
e mirradas do sol;
As peles murchas
curtidas, pintadas,
232
os brancos cabelos
quebrados, caídos;
Os humores gastos
esvaídos, esgotados,
as forças despedaçadas,
batidas, exaustas.
Labirintos
As vielas e escadas
que sobem e descem,
caminhos antigos,
são labirintos cruzados,
vezes sem conta,
por quem busca a saída
das terras remotas;
233
guardando passados
das terras vazias).
Viajante ancorado
Da janela do quarto
vejo as embarcações,
ancoradas no lodo
da maré vazante.
Também eu me sinto
encalhado em terra,
esperando ciclos
de águas renovadas.
234
mas em cada regresso
ao cais de partida,
acabo na praia
atolado na areia.
Perdido na multidão
Perdido na multidão
intemporal da cidade,
em ruas cheias de gente
mas vazias de almas.
Contemplo a azáfama
de um mundo que corre,
em busca de alguma coisa
que permita vencer a morte.
Entrego-me à corrente
235
incessante desta vida,
mas sem outras aspirações
que a descoberta da viagem.
Rapazes
Mudam as roupas,
mudam os brinquedos,
mudam os ambientes,
mas não muda a natureza,
permanece a essência
da infância e da juventude.
A sede da descoberta,
a vontade de sobressair,
de liderar nos jogos,
de vencer tudo e todos.
A exibição gratuita,
quantas vezes cruel,
na construção do ego,
sempre deficitário.
A ânsia da competição,
que comanda este mundo,
perpetua a infância
236
dos rapazes,
ao longo da vida.
Cativeiro
237
Glacial inferno de bréu,
cárcere de guardas colossais,
desmesurados guardiães,
do meu infeliz cativeiro.
Deus omnisciente
Admiro as vicissitudes,
as sobrevivências
às realidades.
Amo as contrariedades
dos sonhos que fogem,
no quotidiano.
Regresso sereno
aos céus etéreos,
da eternidade.
Deus omnisciente,
238
que tudo conhece
mas nada faz.
Passados
Encontros e desencontros
sucedem-se na vida,
enchem os momentos
de paixões e desgostos,
mas todos terminam
no velho baú das memórias.
A banalidade da vida
239
como meio de enganar a morte,
é a filosofia de alguns.
240
eu prefiro buscar a paz na vida
sentado na minha poltrona,
vivendo a prazerosa banalidade.
no convívio amigável
com a certeza da morte,
na banalidade da vida.
A vida descontrolada
A vida escreve-se
por linhas enviesadas
de uma obra inédita.
241
A vida é assim, descontrolada.
Danação
242
chafurdam no lodaçal.
Virtudes e limitações
Em vez de reconhecer
as qualidades intrínsecas,
lamentamos a ausência
das características alheias.
243
A constatação é afinal simples:
que os atributos e os defeitos dos outros
são sempre, inevitavelmente,
muito mais valorizados que os próprios.
Sobreviventes
Guardaram rebanhos
em casas desertas
e extensos silvados,
dormindo sobre palhas
cobertas por sarapilheiras.
244
abençoados pelo cura.
Ilhas periféricas
em ilhas de pobres
rodeadas de ruas
com fachadas de ricos,
amontoados em bairros
de crime e de fome,
esperando, ansiosos, a fuga,
245
aguardam impacientes,
trabalhos inexistentes
e subsídios ausentes,
Enterram-se vivos
em complexos de morte.
Vive-se em negação
aspirando à imortalidade.
Vivemos de costas
voltadas à morte,
como se esta não fosse
246
parte essencial da vida.
Na esperança pueril
que um dia bendito
vivamos eternamente,
numa nuvem eletrônica.
Sabe-se lá
a fazer o quê?
Bandeira enrolada
aguardando a chamada,
que sempre acontece,
breves minutos antes
da passagem do trem.
Resposta pronta,
procedimentos regulares,
247
olhares cautelosos
e bandeira levantada.
Sacrifício supremo
de quem quer ser gente
e trocar a sachola pesada
pela bandeira enrolada.
Homenagem sentida
Debaixo da chuva
que cai copiosa,
um mar de sombrinhas,
negras como o dia,
sobem a ladeira,
soturnamente vestida,
rumando ao local
da derradeira morada.
É um mar de sombras
que se move, hesitante,
entre paredes de pedra
e sobre a calçada gasta.
248
Uma última homenagem
a quem já partiu distante,
em sincero sacrifício
aos que ainda por cá ficaram.
Europa
Há orgulhos engolidos
e revoltas dissimuladas
que aguardam a ocasião
para expressarem despeitos.
249
do brilho de vencedor,
respeitando o inimigo
que não se deixa humilhar.
É no respeito mútuo
e na igual condição
se pode construir a paz,
depois da destruição.
Sombras e nevoeiro
No desconcerto da vida
há cintilações escondidas
250
que anunciam novas rotas
ocultas na escuridão
das noites negras e frias,
entre sombras e nevoeiro.
Arte derradeira
As marcas traumáticas
do corte abrupto e de través
estão patentes nas texturas,
nas deformidades secas
de que resta da planta,
altiva e orgulhosa,
no seu centenário porte.
Na cumplicidade forçada
da decadente corrupção,
o cepo suporta as folhas
e estas relembram a copa,
adiando a dupla morte,
251
seguramente inevitável,
por mais algum tempo.
Autêntica escultura
erigida pelos elementos,
é capaz de envergonhar
o mais genial artista,
manifestamente incapaz
de copiar a natureza,
na singeleza bela da morte.
252
prometido paraíso da cana doce.
253
com que aqueciam horizontes.
254
Se o primeiro é castigado
pelo insucesso sofrido,
o segundo é eliminado
pelas ambições que alimenta.
À costa
É terra de pescadores
da antiga arte xávega,
255
que arrastam para a praia
o que o mar tem a oferecer.
Elas contemplam
de ar atento e solene,
no seu olhar saliente,
o fotógrafo imprevisto.
256
Os grossos casacos,
da mais pura lã original,
completam com dignidade
o ar distinto e hierático.
é o peremptório oposto
da proverbial ligeireza ovina,
que assim se desmente
em evidência exibida.
Mimi
Se na arte de viver
se abdica do espírito
para salvar o corpo,
na abundância da riqueza,
no viver do artista
257
é o corpo sacrificado
à integridade da alma,
que aspira à posteridade.
e a sombra de morte
que dá expressão final,
e significado essencial,
à própria vida dos homens.
Avieiros
258
para viver, trabalhar e dormir.
Chamavam-lhes os ciganos,
gente nómada fluvial,
que de verão pescava no mar
259
e de inverno rumava ao rio.
260
Lembram fantasmas
que, de dia, amedrontam
assombrados transeuntes,
afugentando-lhes os sonos.
Botes suplicantes
261
como pequenas naves celestes
que pairam em céus marinhos.
Cadeira vazia
262
Num mundo de solitários,
de leituras individuais,
as mesas e cadeiras vazias
não impressionam ninguém.
Viagem a Marte
263
Gentes pacatas
264
O paraíso da noite
Brincadeiras banais
265
Cresceram no meio da violência
quotidiana, nas ruas cheias
de tiros, mortes e vinganças
e polícias que chegam tarde.
A dança da vida
dançam, antropomórficas,
ramificações de luto vestidas,
em orgíaco e final ritual.
266
Este bailado infernal da vida
intensifica-se, na descoberta
de outros personagens dançantes,
Fatalismo
267
Não me contento com placebos,
por isso abraço a tragédia da vida,
em toda a sua extensão,
para com ela viver concertado
na negra paz serena dos fatalistas.
Valentia
268
Antes morrer de valentia
que à míngua da segureza!
Ocaso invernal
269
depois os brancos, até finalizarem
em azuis, ainda assim claros,
antes de escureceram ao poente,
270
Entre elas um edifício insólito,
uma pirâmide irregular invertida,
ligava os dois arruamentos
com um ar negro e sinistro.
A ponte
No percurso ribeirinho,
da cidade cinzenta,
há uma ponte de ferro
refletida nas águas
calmas do rio corrente,
que abraça a urbe,
aqueles que passam,
271
as torrentes fluídas
e as névoas envolventes.
Na solidão matinal
do percurso cénico
encontramos, hipnótica,
a presença monumental
daquele gigante metálico,
que tanto orgulha o indígena
quanto intimida o forasteiro,
preso da sua imponência
na insignificância que sente.
A paz adiada
272
Quando um grupo de soldados
festeja a paz conquistada,
alegra-se com o fim da guerra,
mas pela força das armas.
Sou poeta
273
por impulso irresistível,
por necessidade imperiosa
de exorcizar depressões,
então sou poeta.
Se o poeta é aquele
que foge da fria realidade,
da banalidade insuportável
da frivolidade dos outros,
então sou poeta.
Sonhos incumpridos
Vejo-te só e altiva
à porta de uma casa velha,
de paredes brancas, caiadas,
de sorriso forçado, de ocasião.
274
Onde estarás tu,
que num velho vestido coçado
e de sandálias sujas e gastas
te mostravas tão soberba?
Vejo-te só e altiva,
a preto e branco desbotado,
e penso nos tempos passados
e nos sonhos, sempre incumpridos.
Mar de chapéus
275
vi um mar de chapéus
em constante movimento.
que se intercalavam,
sem se tocarem, quase por magia,
tão improvável era a visão.
276
Horizonte insaciável
De pés mergulhados
na água salgada da praia,
três mulheres olham o mar,
Nunca a simplicidade
foi tão bela ou eloquente
como neste retrato vivo,
o medo e a saudade
que o amor alimenta
e o horizonte não sacia.
A raiva
A raiva é um sentimento
que corre silencioso
nas veias dos homens.
277
reprimido em desabafos,
em ironias mais ou menos veladas,
278
Destinos fatais
O simplismo da explicação
é sem dúvida atraente,
até pela irresponsabilidade que implica.
279
mas também uma maldição.
Será censurável o que mais não faz
que pôr fim a um longo sofrimento?
Símbolos nacionais
De quinas, castelos,
cruzes e esferas armilares
se faz a simbologia nacional,
280
e até que ponto são unificadores,
ou meramente circunstânciais
dos muitos valores e revoluções
perdidos no devir dos séculos?
e justificadas posteriormente,
por acesos e bem intencionados patriotas,
como alusivos à conquista do Algarve.
281
militares e religiosas da reconquista,
confundir os símbolos nacionais.
282
impondo estandarte verde e vermelho,
as cores do partido e da revolução,
mesmo contra ilustres vontades republicanas.
E se o branco e o azul
são as cores da fundação nacional,
porquê a manutenção teimosa
283
talvez para legitimar herança da I República?
Sobre os estendais
Há algo de poético
nos estendais de roupa.
Parece obsessão,
mas a verdade
é que me fascina o despudor
com que se exibem roupas lavadas
por esses estendais afora.
284
pela distinção do guarda roupa
e pela inveja das marcas.
É a tragicomédia humana
exposta numa simples linha,
com roupas lavadas a pingar
em cima das invejas alheias,
da vizinhança e transeuntes.
Quem sabe se à espera
de alguma iniciativa furtiva,
de índole revolucionária
ou meramente capitalista.
Umbiguismo
285
que, em repentes, podemos enganar
com iniciativas alimentadas a entusiasmo.
Mas a sua quebra gera ansiedade.
A verdade
A verdade é incómoda,
por isso ninguém a quer.
É um privilégio de egoístas.
286
Se a exibo, outros a cobrem.
Se a grito, todos se ofendem.
E se há algo imperdoável
para um ser humano perfeito
é que lhe exponham a verdade,
287
Antes viver na mentira,
no seu direito inalienável
ao pudor e à hipocrisia,
A verdade é o privilégio
dos loucos e dos poetas,
na verdade, os mesmos.
Abraço invernal
288
É no inverno que a árvore exulta
na beleza infinda dos seus ramos.
É nessa imensidão tentacular
que nos cobre, indefesos e assustados,
Espera desesperada
289
de rotineira desesperança.
Caminhos herméticos
290
Percorro encantado esta catedral viva,
em respeitoso e numinoso percurso,
admirando a natureza e o sublime
na paz suprema da sobriedade.
291
Face e verso,
Alegria e tristeza,
Não ser.
Eis a perfeição
Da universal unicidade.
O limbo e a paz
292
Às vezes parece
que o que movimenta a vida
é o lamento presente
e o anseio futuro,
seja ele bom ou mau.
Um dia gostaria
de ser capaz de gozar
simplesmente o momento,
sem lamentos, nem anseios.
Apenas entregue
a uma paz perene.
Mas olho à minha volta
e não a encontro em ninguém.
Chego a duvidar que exista.
293
Paz ou guerra
Se a insatisfação
é a natural condição humana
a ela se deve o progresso,
a ciência, a tecnologia.
Se, ao invés de insatisfeito,
o homem fosse pacífico,
contente no seu canto
com a dádiva da providência,
nunca ambicionaria mais
além da frugal subsistência.
294
Olhando o vazio
A solidão e a neblina
preenchem o tempo e o espaço
sob a árvore negra e frondosa
da vida que segue, infinda,
mesmo sem nada de novo,
ausente de acrescentos vitais.
Fios de vida
295
Dois mastros eretos
que se repetem infindos,
até à eternidade,
na vasta planície.
Olho em frente
e não vejo o final.
Sigo porém os fios
ignorando o destino.
Caminho eterno
de fios de vida,
que pairam no ar
sobre a terra dura.
Algo de novo
Virou a esquina
na manhã gelada
daquele dia, perdida
na memória indistinta,
296
e respirou fundo.
O bafo esfumou-se.
No ar triste matinal,
uma velha de negro
passou esvoaçante
e uma velha bicicleta
passou negra, a voar,
por ela, parada.
Parecia esperar
que a vida acordasse,
que o ar aquecesse,
que a cidade lhe desse,
ao virar da esquina,
Algo de novo.
Jogos de palavras
Faço poemas
mas não sou poeta.
Às vezes
297
o resultado é bonito
e exulto
com orgulho inocente.
Outras não
e arranco
e recomeço
até surgir algo
do caos criativo,
até que a ordem
e a beleza brotem.
Eu nada crio,
apenas decifro
conteúdos ocultos e dispersos,
mistérios por revelar.
Os poetas
são arquitectos das palavras,
constroem monumentos
prenhes de significados
com arte e com estilo.
Eu brinco inocentemente
com a minha solidão.
298
Poeira universal
Passam faetontes
como nos romances do Eça,
quem sabe se escondendo
contemporâneos amores proibidos
de Carlos da Maia e Marias Eduardas,
de Vitores da Ega e Genovevas.
Mesmo falando línguas estrangeiras,
pois os amores tão pouco respeitam
as fronteiras quanto a consanguinidade,
na obra queirosiana.
299
apenas paz e inspiração
num solitário fim de tarde.
Espanto-me que,
por entre tantos turistas,
penando na Pena,
mourejando nos Mouros,
regalados na Regaleira,
persista este cantinho
meio velado da Vigia,
onde em réstia sobrevive
a velha Sintra de avoengos.
300
limito-me a intuir,
com risco de elevado grau,
uns carvalhos e mansos pinheiros
por entre outras espécies incógnitas,
exóticas e coloridas,
aguardando redescoberta:
arbustos, flores, trepadeiras, cactos, heras,
sei lá quantas botânicas
divisões, classes, ordens, famílias, géneros e espécies.
Um jardim de positivo romantismo,
à contemporânea curiosidade preservado
ou à simples e inspiradora contemplação,
como é o meu caso.
Será vaidade,
no meio de tanta diversidade
e sob séculos de esplendor,
meditar na própria unicidade?
301
Seria imodesto pensamento
se escondesse
exaltação de particulares virtudes
ante a beleza que me rodeia.
Acredite,
não me tenho em tamanha estima.
302
um universo inteiro por descobrir.
Fantasmas
303
nas rugas que sulcam
os rostos dos velhos,
nas roupas que cheiram a mofo
e se acumulam
nos cantos escondidos da casa,
nas garrafas guardadas
para ocasiões especiais,
nas toalhas de linho
das noites de consoada,
há almas suspensas
que me penam.
304
Caminhar é preciso
305
da solidão,
a fluência
da mente que se perde,
que me perde, solitária,
no quotidiano estranho
e imprevisível.
Gosto do desconhecido,
da escuridão dos sentidos,
da volúpia da frivolidade.
Gosto do labirinto
do caminho disperso,
desatento,
errante
de surpresa em expectativa.
306
refletido nas águas,
cada sombra
que acinzenta a paisagem,
tornando-a mais bela
e misteriosa.
E depois lança-os
em catadupa
na minha vivência febril
e descoordenada.
Será um sonho?
307
Será mais feliz o que vive
do que o que sonha?
Será o pesadelo
uma forma menor
de sofrimento?
Caminho apenas.
Real ou sonhado
só existe um caminho.
Caminhar é preciso,
viver não é preciso.
Passados
Podemos reprimi-lo,
colocá-lo numa gaveta
obstinadamente fechada,
que é preciso arrombar
com a ajuda do psicólogo
ou do padre.
308
Podemos usá-lo
à flor da pele
e transbordar de emoções
de cada vez que algo
perdido no tempo
nos vem à memória:
um momento feliz,
uma foto de alguém,
um local marcante
de tempos pretéritos.
Podemos guardá-lo
para momentos especiais,
aniversários,
casamentos
e funerais.
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e assustador de nostalgia,
que será tanto mais forte
quanto mais reprimido estiver.
É uma certeza
tão aterradora
quanto a de ser confrontado
com a sua própria mortalidade.
O Moinho Vermelho
Vislumbro, sombrio,
por entre as névoas invernais
e o gelo acumulado,
nos parabrisas provectos
de velhas máquinas,
de séculos findos,
as pás de um antigo moinho.
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a quimera do sucesso
e do estrelato terrestre.
Sozinho e escondido,
entre a neve e veículos tristes,
mais parece um vagabundo,
perdido na impiedosa urbe,
do que um anjo caído
de beatificas altitudes,
para o infernal quotidiano.
Um simples olhar
Um simples olhar,
algures entre a tristeza
e o medo,
tocou-me na alma,
ou no que por ela
se fizer passar.
Um rosto pretérito,
de chapéu emplumado,
olhos claros como água
e lábios vermelho triste.
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ou de um beijo, se eu ousasse.
É um momento perdido
nos desencontros passados,
reencontrado enfim,
após décadas de abandono,
por alguém que o vislumbra,
e de piedade dele se enamora.
Reinos nebulosos
Penumbra monocromática
de um tempo e ar viciados,
da fumaça das caldeiras,
das beatas fumegantes,
dos bafos débeis, que passam.
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E por estranho que pareça,
revivo esse inferno poluto
com uma doce nostalgia.
Sobrava, em calor humano,
a vitalidade ameaçada.
Movimento estacionário
De tempo suspenso,
na luz difusa do palco,
contemplo encantado,
surpreso e confuso,
as estações, inertes,
da beleza em movimento.
A genialidade do olhar
disputa a sublime graça
do fluxo carnal, do gesto,
da lasciva sedução
de um corpo feminil,
num menear envolvente.
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A dança (2)
Um ritmo alucinante
apodera-se, inclemente,
do corpo e dos sentidos,
num movimento perpétuo
de frenética energia,
Insuperável e contagiante.
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