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Diário Poético

Antologia 2022/23

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Diário Poético
Antologia 2022/23

Ricardo Ramalho

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Autor: Ricardo Ramalho
Design da capa: Ricardo Ramalho
ISBN: 2022
© Ricardo Ramalho

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Lembranças esquecidas

Por caminhos dobrados,


trilhados, rasgados,
desço descalço os degraus da memória,
rumo ao passado, enterrado, sobrado
mas nunca esquecido.

Revejo odores, cheiro sonoridades,


renovadas frescuras, na memória escondidas,
que à flor da pele
renascem, brotam, estalam
como se nunca tivessem partido,
como se aí estivessem gravadas,
se a alma em pele se tornasse
e esta, em retorno, a invadisse.

Olho lembranças
que não são minhas, mas são como fossem,
e por elas suspiro em antecipações nostálgicas,
alheias, é certo, mas não menos sentidas.

Oiço gritos
de crianças velhas, de jovens defuntos,
de almas penadas
e grito calado
as alegrias vividas, os desgostos escondidos,
no pudor da vida
vivida, gasta, sofrida.

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Bebo calado o frescor da lembrança,
da redescoberta,
da espuma do mar
que salta nas ondas da memória batida,
nas rochas escondida, nas areias oculta,
nas brisas soprada.

Choro, em segredo, os amores perdidos,


os desejos escondidos, os abraços esquecidos,
no calor da refrega da infância distante,
na distância atroz da indiferença madura,
no olvido implacável dos velhos sem tempo.

Parto cansado, esgotado,


da memória exaurido,
da lembrança esquecido,
de volta ao presente
de triste memória.

Bênção

A maior benção é nascer idiota.

Este não só não tem consciência


da estupidez do que diz e faz

como se delicia com a novidade


do inesgotável fluxo,

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da imbecilidade alheia.

Férias

Penumbro o estio das férias adiadas


no repouso de um parque suburbano,
entre negócios rabiscados,
versejos debitados,
solos de piano improvisados
e prosas expectantes.

O silêncio sacrificado à lira


propicia o repouso
de um espírito alheado do mundo
e entregue às doçuras da solidão.

Entre árvores provectas


e escuros torrões de solo
esqueço o domingo que esgota
e o temível interregno que avizinha.

Se uns anseiam por tréguas


eu temo-as mais que a guerra.
Porque trégua não é a paz,
antes a batalha adiada.
O recesso não termina a lição,
apenas a suspende
por tempo determinado.
A folga pressupõe regresso.

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A licença o seu termo.
Uma pausa a continuação.
O feriado a utilidade do consequente dia.

Que repouso é este


que só avoluma a ansiedade do descansado?
Que férias tem
quem sabe que o bulício aguarda
e acumula antecipando o regresso?

Ser ou fazer, eis o dilema.

Quem faz tem um privilégio:


não fazer durante um interregno,
sabendo que há quem por ele faça
e mesmo que não houvesse
mais não faria,
pois quem faz o que pode
a mais não é obrigado.

Quem é não pode deixar de ser.


Será sempre
por mais feriados que invente,
por mais recessos que crie,
porque disso depende a sua existência.

Não posso deixar de ser,


esperar que alguém por mim seja
durante algum tempo.

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Serei então, mas contrariado.

Razão porque férias


me atingem na essência.
Gostaria de deixar de ser,
mesmo que temporariamente,
mas não posso.
Apenas me logro iludir
e sofrer as consequências.

As férias empurram-me em frente,


para a estrada imaginária e sem fim
de quem não é mais o que é
mas outra coisa qualquer,
um mero caminhante em busca de destino,
cercando um novo ser
porque o que tem está gasto, está velho,
já deu o que tinha a dar.

Férias dão-me consciência


que sou o que não me apetece ser,
que estou onde não me apetece estar,
que vou onde não queria ir,
que gasto a vida num marasmo
que me não dá prazer,
que me não desafia.
Que não me interessa sequer.

É pois preferível não descansar,


viver iludido, distraído, alheado,

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nos triviais ruídos,
sem tempo para envelhecer,
apenas para morrer,
dia após dia.

Grandezas

Mesmo os grandes gestos


exprimem sentimentos mesquinhos.

O luto

O luto é a luta
contra a memória,
sabendo de antemão
a derrota certa.

Mas sem combate


a amizade insiste,
a saudade aperta,
a dor resiste.

Sem peleja
a presença dura,
a rotina persiste,
o diálogo ressuscita,
surdo, mas contumaz.

É o cansaço da derrota,

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a fadiga do silêncio,
a lassidão da ausência,
que nos conforma
inconformados.
Que nos acomoda
incomodados.
Que nos afaz enfim
desfeitos,
da falta irreparável,
do apartamento perpétuo,
do distanciamento eterno.

Resta a lembrança,
essa vitalícia,
que floresce na distância,
adoçando as amarguras,
suavizando os espinhos,
aos poucos revivendo
no carinho trivial,
da ferida amadurecida
o doce memorial.

O luto é a memória vencida,


depois da ferida fechada
e da afeição renascida
das cinzas da própria morte.

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Liberdades

O silêncio
é a derradeira expressão da liberdade.

A noite

Noite dos sonhos sonhados


e dos sonhos vividos,
és fiel companheira
do solitário como do jovial.

A paz da noite consola


a guerra de sentidos despertos,
da mesma forma que embala
a insónia dos aflitos.

Boa ou má conselheira,
depende de opiniões,
a minha é que não foste feita
para similares pretensões.

De dia se batem conceitos,


ideias e opiniões,
de noite se buscam consolos,
amorosos e paixões,
a paz do sono dos justos,
a vigília dos lutadores,
as musas dos poetas,

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as liras dos trovadores.

De noite voam as bruxas,


os anjos descem à terra,
não para dar conselhos,
mas antes tréguas à guerra,
do banal e do brutal
que o dia enche inteiro,
a quem nele sobrevive,
enquanto aguarda, letal,
da noite o sono final.

Passados

O passado só é deprimente
para quem não é deprimido.

Da humana divindade

Se Deus é criador,
todo poderoso,
do homem e universo,
deus é o homem
que se cria
e multiplica,
molda e educa.

Se criar humanidade
é divina condição

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então deuses são os homens
e mais ainda as mulheres,
por o mundo agraciar,
com o milagre da vida,
com a graça do amor,
com a dádiva do nutrir,
do educar, do civilizar.

Mas se Deus antes for


o universal criador
não é premissa que afete
a humana divindade.
Pois não cria o homem
universos sem fim,
não os escreve, não os lê,
não os pinta, não os canta?

É tal a ânsia criadora


que supera o próprio Deus,
na vastidão da sua obra.

Se Ele criou um universo,


o homem cria milhões,
todos os dias mundos novos,
novos seres universais,
nóveis, remodelados,
renascidos, recuperados.

Se ao sétimo dia
Ele descansou

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e deu a obra por terminada,
o homem infatigável,
até agora não parou,
nem prescinde de renovar,
de enriquecer, de melhorar,
os universos que cria
como o que a divindade criou.

É tamanho ardor criativo


que o homem até criou
a eterna divindade,
para consolo da sua
mortal condição.

Se Deus é divino
porque criou o homem,
mais divinal será o homem
por criar o próprio Deus!

Evidência

Não é fácil ser.

Prantos

Há quem diga
que só a morte alheia, nunca a própria,
merece o choro dos homens.

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Se assim fosse porque se lamentariam,
os poetas, os filósofos, os devotos,
os infelizes, os caridosos, os saudosos,
os hipocondríacos e os medrosos.

É por inconformado obituário


que o homem chora o medo,
a dor, o sofrimento, a desventura,
o desamor, a solidão, o abandono.
Tais prantos são
da morte própria o velório.

E quantos dos defuntos choros


não serão de mágoas suas?
De arrependimentos tardios,
de contrições atrasadas,
ou impiedosa concessão
à friez da aparência,
à escusa de obrigação?

As lágrimas humanas escondem


mais desgostos particulares
que infortúnios alheios.

O homem chora na morte do outro


a sua própria adiada,
que apesar de inconformado,
sabe certa e indisputada.

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Seres

Eu sou como sou.


Não como gostaria de ser
e menos ainda como os outros gostariam que fosse.

Saber amar

Eu queria saber amar,


uma árvore, o mar, o sol.
Amar serenamente
como quem ama a vida,
vivida tranquilamente.

Eu queria saber amar


as conversas banais,
de fim de tarde,
de noite adentro,
como quem ama os demais,
pela íntima presença.

Eu queria saber amar


as bagatelas do dia,
os disparates da noite,
as gargalhadas amigas.
Amar como quem preza
o simples afeto ofertado,
desinteressado, convicto.

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Eu queria saber amar
mas sou um apaixonado.
Sou de paixões atreito,
de obsessões afeito,
de solidões adicto.

Se amor me dão
fico sem jeito, incomodado,
apanhado em desacerto,
pois de apreço sou inapto,
de carinho inabilitado.

Desta condição sou refém,


não por escolha, por defeito,
pois se o amor perdura
pela vida e além morte,
a paixão cedo se esgota
e consome em desalento.

Incoerência

Um fatalista condenar um acto humano


ou é blasfémia ou contradição.

Acordar

Do leito uterino sou


diariamente expelido,
parido.

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entre pregas de lençóis rasgado,
por ruínas de sonhos roubado,
ao estertor do ser
espertado.

Levo forte palmada no rabo


e berro contrariado,
escorraçado,
a sorte madrasta
do diário avivar,
a agonia agreste
do doce sonhar,
o fatal destino
de ao colectivo berreiro
ser lançado,
à multidão de chorões
que buscam mama
que os nutra e sustente
a vida inteira.

Estranha condição esta


ora do torpor refém
ora do bulir cativo.

Não há como escapar


à dual condição,
como se um deus bipolar
impusesse a provação
a impotentes títeres
à tortura condenados.

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Para perversa satisfação
deste senhor inclemente,
concedeu a graça
da paz fugaz do sono
entre o martírio da vida.

Lavro aqui o meu protesto


contra o nume abusivo
que do sono viola a paz
todo o dia, tanto faz,
mais que lute, mais que grite,
menos que diga, que evite.

Déspota impiedoso
aqui fica o meu desdém.
acordo contrariado
na certeza porém,
logo que liberado
dos tumultos do acordar,
que não deixarei de voltar.
tão cedo quanto puder
ao aconchego do repouso
no terno abraço do leito,
altar supremo do sossego.

Valores

Há que valorizar o caráter acima da inteligência.


É muito mais raro.

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Vitalidade

A ligeireza vital
varia com a existência.

Ao furor inicial
sucede o calor da infância.
À ânsia da puberdade
advém a juvenil urgência.

A azáfama da maturidade
precede o tempo do ser
em que é agilidade bastante
depois da jornada cessante
voltar a ver o dia nascer.

Mediocridades

É preciso génio
para vislumbrar a mediocridade própria.
Já a alheia qualquer idiota deteta.

Corpo perfeito

Contemplo a perfeição
do corpo humano esculpido,
por artes de um artesão
de divina chama embutido.

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Mas pasmo ante a evidência,
a certeza, a convicção,
que para alcançar a excelência
só lhe falta a imperfeição.

Reincidências

Não há vacina para a estupidez,


por isso ninguém está livre de contrair a doença.
Felizmente há tratamento,
mas a reincidência é frequente.

As cores do luto

Como um espectro de luz


o luto pinta o sentido
de mutante colorido
que o tempo reconduz.

De início a negação,
de amarelo pintada,
depois, a sangue regada,
a rubra raiva e indignação.

Seguem-se verdes prados


de imaginária esperança,
com frágil perseverança
que contraria os sentidos,

cuja perda inexorável,


da negra depressão

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a alma pinta, em notação
do desgosto inevitável.

Finalmente a azul tingida


chega ansiada a aceitação,
de quem quer salvar a razão
da enorme perda sofrida.

E nesse doce torpor,


da terna recordação,
se encontra a salvação
da dor iludir, com o amor.

Suspeição

Desconfio do poder,
seja ele qual for.

Exemplos

Não sou carne, nem sou peixe,


nem bom nem mau, afinal;
não me considero um tipo fixe,
nem exemplo especial.

Careço de superior virtude,


sem ser indigno tarado,
em nada sou autoridade,
tampouco imbecil declarado.

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Por vezes sou aprazível,
outras bem aziago
e não me ocorre possível
ser confundível com mago,
nem tampouco suscetível
ser tomado por orago.

Sou banal, sou humano,


tenho fome, tenho frio,
tenho sede, tenho sono,
nem notório, nem simplório.

Mas outros acham perfeito


que passe por imortal,
alguém deste mesmo barro feito,
colocado em pedestal.

Em deuses não acredito,


nem na terra, nem no ar,
e se alguém, como eu prosaico,
quiser por caudilho passar,

rio-me do presumido,
que por ardis de artifício
os outros tem pervertido,
em seu próprio benefício.

Cuidai das falsas divindades


que por por aí andam, pululam,
pois só simulam verdades

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que falsidades postulam.

E se alguns loquazes bradam,


urram, berram em escarcéu,
como o sábio povo, digam:
vozes de burro não chegam ao céu.

Opiniões

Não dou importância às opiniões.


Nem sequer à minha, quanto mais às dos outros.

Artes ocultas

Por artes ignoradas


dei comigo a rimar,
em poesias cantadas
depois de muito prosar.

Nunca liguei às rimas,


talvez por acreditar
que as mágoas minhas
melhor teriam lugar

em poéticas prosas,
ou em branco vercejar,
que em odes airosas
de rima a metro regular.

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Não duvido que aos mestres
a bela musa conceda
meios e sábios saberes
(que pelos deuses segreda),

que lhes permitem versar,


com engenho e elegância,
ricos conteúdos, a rimar,
de suprema importância.

Mas não sendo eu eleito


entre os doutos trovadores,
estarei sujeito ao defeito
dos fracos versejadores,

ser obrigado a escolher


entre o conteúdo e a forma,
entre a alma estender
em verso branco e sem norma,

ou a verdade esconder
entre métricas forçadas
e rimas de transcender,
para compreensões aguçadas.

Não me gabo de alcançar


o mérito do saber,
com artes de singular,
forma e conteúdo reter.

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Mas a novidade, afinal,
que me gabo com sentir,
é de modo original
tentar com arte emitir,

sentires e pensares
em verso e em rima,
que mesmo não sendo ímpares,
são de elevada estima,

para quem como eu julguei


de tais artes ser incapaz.
Quem sabe se me apeguei
a esta arte compaz,

para com maior mérito


e num futuro distante,
de valor deixar escrito
um poema relevante.

Palavras ocas

Sou poupado nas palavras.


por isso escrevo-as.
Afligem-me as palavras soltas.
pela rua desgarradas.

São palavras ocas, vazias,


que pouco dizem ou interessam,

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ilações desnecessárias.
Só frivolidades expressam.

A palavra escrita perdura,


penetra na alma, voluntária,
lê-se de inspiração madura
e em leitura solitária.

Já dizia o sábio Zenão


que se duas orelhas temos,
alguma será a razão
para com uma só boca nascermos,

Dúvida existêncial

Será a ordem
o caos ainda por cumprir?

Palavras escritas

Dom têm as palavras escritas


de mais fundo na alma buscar
o que não se diz, nem quer partilhar,
entre amigos, nas banais conversas.

Nas palavras escritas há magia


que solta o receio e o pudor
e liberta a alma, qual confessor,
das trevas, da reprimida memória.

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Mais do que libertar confissões,
mais do que perdoar delitos,
mais do que redimir omissões,
a escrita despe sentidos ocultos,
de quem quer dominar depressões
por via de literários indultos.

O tempo não apaga o passado,


antes acumula em sedimento,
por a escrita removido
pouco a pouco, o detrito,
num escavar incessante,
que busca a nudez primordial,
que será a derradeira afinal,
no nosso culminar pungente.

As palavras escritas libertam


os solitários da neurastenia,
pois mitigam, aliviam e atenuam,
uma crescente e letal misantropia.

Amadurecer

Amadurecer é ter cada vez


menos certezas na vida.

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A vida entretanto

No esgar de dor
de rosa espinhosa a florir,
o nascimento.

No sorriso lacrimoso
do querer e descobrir,
a infância.

Na fugaz ansiedade
de tudo amar e sentir,
a adolescência.

No confiante sonhar
do futuro construir,
a juventude.

No olhar cansado
das ilusões perdidas,
a maturidade.

Na ansiedade e saudade
por entre os netos escondidas,
a velhice.

Na doce esperança da fé
ou na paz imemorial do nada,
a morte.

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No entretanto, vazante,
por entre dores e amores,
a vida.

Autoritarismo

As pessoas autoritárias
têm inveja da liberdade dos outros,
porque são incapazes de usufruir da sua.

Paz antecipada

Em paz aguardo a tormenta.


não a temo nem a quero,
simplesmente a espero,
enquanto não se apresenta.

Ansiedades consertadas,
em quietação satisfeitas,
venham tempestades feitas,
para serem enfrentadas!

De paz e luta se preenche a vida,


ambas certeza incontornável.
Aguente-se pois o inevitável,
antecipando a placidez resolvida.

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Coragem

Não há acto mais corajoso


que viver sem fé.

E se o universo for

E se o universo for eu,


neste corpo encerrado,
em pensamentos perdido,
à morte destinado, obstinado.

E se o universo fores tu,


de cabelos ao vento,
de sorriso nos lábios,
de corpo dengoso, apetitoso.

E se o universo formos nós,


de corpos colados,
de vidas vividas,
de filhos criados, amados.

E se o universo for
aquilo que nós quisermos,
tudo o que fizermos
e mais pudermos fazer, por prazer.

Seremos deuses?
Ou apenas humanos.

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Políticas

A maioria das pessoas não têm interesse na política.


A sua única política é o interesse.

Vejo

Por entre nuvens de fumo,


sombras noturnas,
nebulosos fantasmas pastel,
vejo,

encobertos por transparências,


corpos descobertos,
velados pela eterna pureza feminina,
abertos à sensualidade
do desejo infinito dos homens.

O tempo não existe


na arte e no amor,
no desejo e na candura.

No fascínio e nos sentidos


não se envelhece,
somos adolescentes eternos.

Génios

A genialidade é a capacidade de sermos únicos,


nalgum momento da vida.

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Resignação

Penumbro.
Na paz da obscuridade
do conforto do leito,
No desejo do olhar,
oculto.
Desperto?

Espero.
Na resignação da certeza,
na ansiedade do retorno,
do renascer da pujança,
perdida.
Extinta?

Sonho.
Com a lassidão do porvir,
na mansidão ansiada
da trégua da vetustez,
pacificado.
Morto?

Dramas

O grande drama da vida


é que ninguém está tão mal que não possa estar pior
nem tão bem que não possa melhorar.

Isto condena o indivíduo a um paradoxo:


viver feliz na desgraça ou infeliz na abundância.

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Loucuras

O que seria da humanidade


sem os deprimidos,
os esquizofrénicos,
os obsessivos,
os lunáticos
e demais inadaptados em geral?
Um tédio absoluto.

Sem eles
não haveria arte,
não existiria paixão,
entrega incondicional.
A vida seria insuportável.

É a loucura que nos empurra para a vida.


Sem ela, não vale a pena viver.

Oprimidos

Qualquer sociedade representa inevitavelmente


o triunfo da opressão sobre a individualidade humana.

Quando?

Poderá a felicidade
apertar-se num comprimido?
Mágico?

Poderá a vida

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consumir-se embalada?
Em quantas caixas?

Poderá a solidão
mitigar o desespero?
Por quanto tempo?

Poderá a misantropia
remir a vida?
A que custo?

Poderá a morte
serenar enfim a alma?
Quando?

Happy end

Os finais felizes são um produto da ficção.


Na realidade nunca uma vida teve um final feliz.

A felicidade escondida

Há quem compre felicidade no shopping,


em doses proporcionais à carteira.

Há quem a encontre numa bola,


por entre gritos da multidão.

Há quem a busque no dinheiro e no poder,


no pôr e dispôr dos outros.

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Há quem a encontre no fundo de um copo,
Temporária, mas eficaz enquanto dura.

Há quem a viva no próximo,


no serviço e na entrega,
porque carentes não faltam,
mitigando o abandono de uns
no amparo de outros.

Há quem a busque na solidão,


na misantropia, na reclusão,
na obra de Deus ou do diabo.

Há quem a pinte e cante e escreva,


sem por isso a encontrar.

Há quem, cansado de tanto buscar,


se entregue, em desespero, à morte fatal.

Onde se esconde afinal


a tão almejada felicidade?

Alguém a viu?
E soube como agarrá-la?

Maturidade

Maturidade é descobrir que os seres humanos


são todos completamente loucos.

Cada um no seu género, é certo,


mas todos irremediavelmente dementes.

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Desejos

Eu queria guardar em mim


um pedaço da inocência,
da pureza, da curiosidade
da infância;

Uma fatia do amor


que dei e recebi,
ao longo da minha existência;

um naco das paixões,


dos desejos que experimentei
e partilhei, na minha vivência.

Só eles me podem cingir à vida.


Sem eles nada mais resta,
só o vazio, a eterna vagância.

In vino aequalitas

A bebedeira deve ser


a mais antiga e popular forma de democratismo
e o bêbado, o mais sincero democrata.

Alma perdida

Entro tímido,
entre aromas e cores
de abrir apetites.

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Subo acanhado,
entre tules, rendas e cetins
de macular os cândidos.

Monto bisonho,
à descoberta de tecnologias
de antecipados futuros.

Ascendo embaraçado
ao Olimpo gourmet
dos lambazes privilegiados.

Só enfim me apercebo,
após tão terminal ascensão,
que perdi a alma pelo caminho!

Vetus

A grande vantagem de envelhecer


é que não há praticamente nada
que não se possa justificar com a idade.

Vestígios de humanidade

Queria que chovesse tanto, tanto,


que lavasse a poeira dos olhares,
que escorresse a soberba das almas,
que limpasse a futilidade dos seres,
que encharcasse o corpo, até aos ossos.

Desprovidos de vaidades profanas,

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despidos de presunções assumidas,
destituídos da arrogância, do pedantismo,
Comcletamente nus e ensopados,
admirando nos outros, o espelho
das nossas próprias misérias,

talvez conseguíssemos, por fim, descobrir,


por debaixo das muitas demãos de tinta
com que pintamos as nossas frustrações,
vestígios de humanidade esquecida.

Sucesso

O caminho para o sucesso é feito


de sangue, suor e lágrimas.
Sobretudo dos outros.

Limpeza Fugaz

Um jato de água morna


lava a poeira semanal,
dos carros batidos
nas filas diárias da metrópole.

Um jato purificador,
símbolo do fim da semana,
do fim de semana iniciado.
Da trégua ansiada,
de amores adiados.

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Filas de carros sujos
aguardam vez abençoada,
nesta manhã de sábado,
amanhecer de esperanças.

O ritual sucede ininterrupto,


carro após carro, jato após jato,
caras diferentes, vidas diversas,
sonhos iguais, mágoas partilhadas.

Poeiras limpas, jantes polidas,


bancos aspirados, tapetes sacudidos,
sábado bendito, estás pronto a gozar!
Gozo fugaz, até na segunda-feira
o despertador voltar a tocar.

Alívios

Escrevo poemas medíocres


para aliviar a mediocridade
que a vida acumula em mim.

Felicidade a prestações

Embaixadores de esperança
aguardam na esquina,
vendendo Deus e Cristo
em suaves prestações semanais.

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Gente feliz sem alma,
agita os braços em simulado festejo:
vendemos felicidade e alegria
em suaves prestações semanais!

Sorrisos e braços abertos,


convidam ao amor e ao convívio.
Vendemos companhia e amparo,
em suaves prestações semanais.

Porquê ficar em casa, sozinho,


entregue às mágoas e à neurastenia,
se o amor e a felicidade
estão à venda na esquina,
em suaves prestações semanais?

Tempo

Quanto tempo vale o teu dinheiro?


Muito pouco ou nada?

O turista utópico

Faço fila,
tiro o cinto e o telemóvel,
encho a caixa.
Apito, não apito,
sigo em frente

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em vaga esperança.
Faço tempo,
vigio as horas,
os atrasos,
as portas que tardam em abrir.
Meço malas,
pago extras,
mostro códigos.
Embarco enfim
por entre filas de bagagem
acompanhadas de gente.

Corro ao táxi,
espero e pago,
tiro fotos,
faço mais filas,
faço figas,
para entrar.
Como e bebo
como posso.
Pago e vivo,
como não posso.
Oiço e falo línguas
que desconheço;

Ando e ando e ando,


sem parar.
Olho e olho e olho,
sem ver.
Pago e pago e pago,

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sem gozar.
Até o tempo esgotar
e o retorno repetir
os dramas, no regressar.

Sou turista,
sou tendente,
sou cultivado,
sou explorado,
sou triturado
pelo consumismo
desenfreado,
das massas do meu tempo.

E sonho perdido
nos fantasmas da velhice,
com a paz inculta
dum monte perdido no tempo,
por entre o sol escaldante,
os pássaros que voam
e um livro por companhia.

Utopias?

Colecionadores

Há quem colecione
homens e mulheres,
como se fossem troféus,

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de caça ou de pesca.

Há quem colecione
carros e jóias e roupas,
como se fossem cromos,
de uma nóvel caderneta.

Há quem colecione
amizades e compadrios,
como se fossem medalhas,
decorando peitos inchados.

Há quem colecione
viagens e excursões,
como se fossem desculpas
para origens modestas.

Há quem colecione
empregos e posições,
como se fossem bálsamos
para complexos reprimidos.

Há quem colecione
vidas e experiências alheias,
como se fossem lenitivos,
para a própria banalidade.

Há quem permute o viver


pela ânsia de colecionar,
como se fosse um placebo

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da sua angústia existencial.

Fatalidades

Estou só e só quero estar,


não por opção, mas por vocação.
A solidão embala a tristeza
e a melancolia é contagiosa,
Não há como evitar a contaminação.

Quem convive com soturno


cedo ou tarde foge,
sob pena de contrair
a infeliz condição.

O neurastênico que busca ajuda


desconhece a sua triste condição.
A distração ajuda, distrai a melancolia,
mas o amor e a amizade ressentem-se,
ficam contaminados e morrem.

O lastimoso tem que amar um descontente,


só assim se suportam mutuamente.
O abismo invoca o abismo
e nenhuma sede de viver sacia
a angústia do desditoso.

Há pois que viver na solidão,


usufruir dos raros momentos de comunhão

46
e suportar a ominoso destino,
o qual nada nem ninguém opera.
Somos reféns da sinistra química!

Quem sonhou com a liberdade humana?


Não foi um taciturno com certeza,
esse teria plena consciência da sua prisão,
da fatalidade do seu destino.

Esperanças

Se nos dias de pujança


a diferença só ajuda:
se um avança outro recua
e no meio se encontra a virtude,

o que fazer no declínio,


quando as forças se esgotam
e nem se avança nem recua,
só se puxa em vão,
com o afastamento inevitável?

Segue cada um o seu caminho


na esperança fugaz que,
nalgum ponto do percurso,
nos voltaremos a encontrar.

Esperança vã ou fatal?

47
Dívidas

Por vezes penso


que nunca me aceitei como sou,
que sempre me achei incapaz
de cumprir padrões e expectativas
assumidas como próprias,
mas de origem obscura.

Talhadas na infância?
Incutidas pela sociedade?
Produto da minha lavra?
Condicionantes deste percurso,
independentemente da origem.

Serei alguma vez capaz


de me libertar de expectativas
e viver simplesmente,
como quem nada deve a ninguém,
nem sequer a si próprio?

Auto diagnóstico

Estou em crise,
supostamente a meio
da minha provecta idade.

Dizem os entendidos
que dá sensação de incumprimento,

48
de culpas e remorsos;
vontade de recomeços,
de prazeres não experimentados;

solidão e muito álcool,


despesismo incontrolado;
depressão e ansiedade,
mudança radical de vida;
simulacros de rejuvenescimento
e busca de relações passageiras.

Incumprido sempre fui,


mas de culpas não me lembro.
Recomeços são utopias,
que jamais deixei de sonhar.
Os prazeres são-me fugazes
e nunca de outro modo os senti.

A solidão é minha companheira


desde o dia em que nasci,
já o álcool é nóvel amizade
que controlo a desprazer.
Despesismo não me apraz,
nem pinto cabelos brancos
ou busco relacionamentos;

Depressão e ansiedade
são companheiras antigas,
controladas (às vezes)
por artes de encartado alquimista.

49
Se de médico e de louco
todos temos um pouco,
diga o leitor o seu diagnóstico,
enquanto versejo os sintomas.

Este é um poema auto-analitico


de quem mantém a esperança
que o não careçam de usar
para um efetivo diagnóstico.

Olhares vazios

O ritmo da nossa época


ajustou-se às auto-estradas,
aos aviões a jato, aos combóios-bala.

Há uma ânsia de viver,


própria das ilusões de juventude,
que culmina com frequência
em imaturidade tardia.

Outras gerações se bastaram


com um jardim a florir,
com os filhos a crescer,
simples marcas do viver.

Hoje olha-se a velhice


vislumbrando vazios

50
nos olhos de quem já viveu
e tem a morte por diante.

Arrogante a juventude,
que pensa que a adrenalina
e o sexo desenfreado
enchem a vida de ser.

Somos o que somos,


muito mais do que fazemos
e do que deixamos por fazer.

Somos carne e osso e sangue e vísceras,


somos gente que ouve e fala e pensa
e escreve e lê e pinta e canta,

cresce e brinca e faz amigos,


apaixona-se, ama e cuida,
sente e vive as emoções,

que se encontram num olhar,


num dia de sol ou de chuva,
na noite escura ou nas sombras,
no presente e no passado.

Os velhos têm os olhares cheios


de vidas vividas e sonhadas,
sofridas, amadas e gozadas,
de paixões e dores relembradas.

51
Não se olvidem os jovens,
na sua ânsia do viver,
de encher também olhares
de doces recordações do ser,

Senão, da adrenalina vertida,


sobram-lhes, no fim da vida,
as mazelas de recordação
e pouco mais.

Banalidades

Ela olhou temerosa


a distância no horizonte
daquele rio, que parece um mar,
e achou que as águas turvas
tinham a cor do fim do mundo.

Ele riu, mas contrapôs


que no seu olhar penetrante,
por sobre as águas trigueiras,
ela, em pose de monumental infanta,
anunciava a descoberta dos Açores.

Riram,
tiraram fotos
e nem redescobriram
as ilhas do Atlântico,
nem o mundo acabou.

52
Singular ritual

Por sobre águas baças


de um mar fluviano,
um varino sulca as ondas
a toda a força de pano.

De repente a embarcação
fica de peixes rodeada,
em súbita turbação
de água movimentada.

Saltam desenfreados,
os peixes aos montões,
pulam desconcertados,
em singulares aflições.

Pincham, caem e dançam,


em frenesim infernal.
Galgam, saltitam e pulam,
num convulso ritual.

Neste inesperado aparato,


passageiros encantados,
pasmados do desacato,
questionam-se espantados!

Mas o mistério é velado


e escondido no navegar,

53
do singular vagueado
dum rio que quer ser mar.

Poema jurídico

Sou poeta e advogado.


Advogado poético
e de poetas advogado.
Advogado com poesia,
em poemas advogado.

Faço trovas
em articulado.
Postulo versos,
concluo rimas,
em versado arrazoado.

Especifico quadras,
impugno cantigas,
exceciono sonetos,
contesto lirismos
e apelo às metáforas.

Agravo as alegorias,
reviso as hipérboles,
executo eufemismos,
embargo parábolas
e arquivo analogias,

Por inutilidade
superveniente
da lide.

54
Reflexos

Olho-me ao espelho e não me reconheço.


Quem sou eu?
Quem é esta figura singular
na minha frente,
que me faz lembrar alguém,
perdido no tempo e na memória,
mas cuja essência me escapa.

Quantas pessoas já fui


ao longo da minha existência?
Qual delas o verdadeiro eu?
Todas, nenhuma?
A inicial, a derradeira?

O espelho tem o dom perverso


de nos apresentar
diariamente a um desconhecido.
Alguém inspirado em nós,
que retém vagos traços e jeitos,
mas que é no essencial um estranho,
de quem nada conhecemos,
totalmente imprevisível nos actos.

Lembro-me de quem fui e já não sou,


surpreendendo-me desinteressado
pelo que sou e sobretudo temendo
desprezar o que inevitavelmente serei.

Melhor será acabar com os espelhos


e agarrar com força

55
o pouco que de mim resta,
antes que desapareça,
definitivamente.

A Lista

Tinha um amigo
que escreveu numa lista
o nome das centenas de mortos
que passaram pela sua vida.

Agora que o meu amigo morreu


guardo dele a lembrança,
mas não posso deixar de pensar
que se perdeu irremediavelmente essa lista,
por mais escrita que estivesse.

Batalhas Perdidas

Encosto o corpo cansado


após um dia de trabalho.

À satisfação produtiva
sucede o desgaste interior,
da mente turvada,
pelas angústias alheias,
piores que as próprias;
pelos resultados impossíveis
que se não podem deixar
de tentar alcançar;
pelos problemas adiados
que se não podem esquecer,

56
antes que seja tarde.
Tarde demais.

Se um raio de sol espreita


por entre nuvens tenebrosas,
logo uma tempestade rebenta,
noutro canto do horizonte.

Sou o vencedor vencido


das batalhas perdidas.
Apago fogos eternos,
chamuscado a alma,
com os ardores alheios.
Alento as esperanças
a quem já as perdeu.

Mas vão-me faltando forças


para alimentar as minhas.

Queria

Queria pintar palavras


como quem colhe flores
num prado.

Queria banhar sentidos


como quem mergulha
nas límpidas águas
de uma baía deserta.

Queria sonhar pinturas


de escadarias de pedra,

57
por entre brumas etéreas,
rumo ao azul do mar.

Queria olhar esperançoso


os dias vindouros,
qual infante sonhador
à janela do futuro ignoto.

Queria percorrer as sombras


da imaginada placidez
de uma tarde de verão escaldante,
entre paredes caiadas e flores garridas.

Queria abrir a porta do ser


nestas linhas escancarada.
Sei que não o consigo,
mas pelo menos tento.

Descobertas

Há um amarelo manso
que dá cor à solidão
tépida, dos meses de Verão.

Há um abraço profundo
que dá sentido à vida,
entre passados ocultos.

Há um amor materno
que acolhe a dor dos outros,
mais fundo ainda que a própria.

58
Há um olhar propício
que olha de frente o futuro
enquanto vê o passado.

Há uma terna comunhão,


do viver e do sentir fraternos,
que aquece a alma dos solitários.

Há uma doce melodia


que conforta a solidão,
na melancólica vivência.

Há um sono e um sonho plácidos


que retemperam as forças,
do cansaço quotidiano.

Há uma paixão quente


que espreita entre os momentos
de fria banalidade.

Há que saber procurar


para poder enfim
descobrir.

Audácias

A rapina das aves


ronda-me a pele e o ser.
Crescem-me asas de águia e voo,
entre borboletas esvoaçantes.

Uivo à lua,

59
Enquanto mochos famintos
me arranham as costas.
Crescem-me chifres de cervo
e vejo serpentes e dragões,
que me assolam na noite.

Crio raízes
por entre as árvores do pomar
e com audácia,
como elas frutifico.
Sinto a pele tatuada
a vermelho sangue,
com monstros sinuando
a floral epiderme.

E neste sonhar ousado


agarro o mundo inteiro entre as mãos
e faço-o meu para sempre.

Renascer

A mansidão dos lobos


tranquiliza-me a noite,
na frieza da neve que cai.

O bater de asas fugazes


desvela-me o olhar pesado,
entre verdes plantas e plumas.

A noite zodiacal
entranha-me a alma cansada,
num azul denso e profundo.

60
Poisam-me negros corvos nas mãos
em comunhão de sentires
de lunares criaturas aladas.

No verde da natureza
brilham ocres de esperança,
de pássaros esvoaçantes,
e o meu sentir viceja,
como a lua, como as árvores,
na certeza do renascer
em cada dia fugaz.

Mater mundi

Olhos negros, em desafio,


lábios grossos e cabelo apanhado.
Presença marcante a vermelho fogo,
temperada por labaredas de amarelo
vivaz, no colo e nos cabelos.

A pele clara do rosto transparece


emoldurada, a vermelho infernal,
como um espectro perdido
em dramática aparição.

É força feminil que se impõe


a sangue e fogo forjada.
Mulher mãe, mulher macho,
que castra o desejo dos homens
e constrói futuros garridos,
contra as adversidades do mundo.

61
Mulher motor da humanidade,
fonte primordial do poder da vida.

O segredo

Boca entreaberta, velada,


encostada ao ouvido
desperto, em avidez profana.

Os olhos cerram
o que o pensamento solta.
As mãos agarram a ouvinte
para que a sofreguidão sacie,
no estertor da curiosidade satisfeita.

Um dueto perfeito de corpos


unidos pela indiscrição.
As palavras beijam o desvelo
alheio, pelos segredos expostos.
O ouvido estende-se à indiscreta
doçura, da intimidade despida.

A concupiscência do mundo
não tem medida ou remate,
corre nas veias pulsantes
da humana condição.
Sem ela o mundo não gira,
o sol não nasce, nem põe.

Sem o rumor e o boato


a vida perde viço e apelo.

62
Ninguém suporta o tédio
de uma vida de virtudes,
sem a inveja aguçada
pelos pecados alheios.

Trégua

Por entre escadarias de pedra


emolduradas de branco
por paredes caiadas, que brilham
ao sol escaldante de Verão,
gozo uma sombra roubada
à inclemência do estio.

Olho contemplativo o mar azul


e a praia, banhada pelas ondas,
onde chapéus de sol improvisam
proteção, da voracidade estival,
que queima a pele e acende os sonhos
no esplendor do luminoso areal.

A vida vaga suspensa,


pelo interregno balnear,
como uma trégua que brota
espontaneamente do tempo.

O mundo para de girar,


os transtornos são embargados
enquanto a fleuma durar.

Prostrados, indolentes,

63
exsudamos transtornos
acumulados num ano inteiro
e depois das peles torradas,
renovadas ao braseiro do sol,
prontos ou não retomamos
o nefando bulício banal.

A nave dos loucos

Era uma nau invulgar


que navegava prados e fragas,
levando em seu velejar,
castelos, princesas e fadas.

Numa varanda briosa


estava a infanta mais bela,
com uma gata curiosa
a admirá-la à janela.

Mais acima a rainha


vigiava os jovens infantes,
enquanto o rei se entretinha
perscrutando os horizontes.

Outros animais havia


na nau atabalhoada,
de rostro, uma cotovia
atrás do rei pespegada,

e um cão estouvado,
olhando em frente ansioso,
enquanto o príncipe acanhado,

64
ficava atrás, receoso.

Um feiticeiro velava
uma belíssima fada
que segurava a vela, alva,
pelo vento enfunada.

Três donzelas admiradas,


de sua cor, cada qual,
sondavam destemidas
o percurso pontual.

Uma cabeça de mostrengo


enorme, à proa emergia,
para assustar inimigo
que surgisse em travessia.

O almirante, no seu lugar,


dá ares de preocupação.
Talvez pela ausência do mar,
ou pela singular formação.

Há mesmo um clandestino
que trepa por um vão,
juntando assim o destino
à egrégia tripulação.

Há laranjeiras carregadas,
flores e plantas a granel,
bandeiras esvoaçadas
anunciando o tropel.

Mas, mesmo aos solavancos,

65
a nau não sai do lugar.
É uma nave de loucos,
uma metáfora vulgar
à humana condição.

Em pintura de enorme distinção.

Raízes

Sou árvore que frutifica à superfície,


de raízes ocultas nas profundezas,
tão densas e desmedidas
que se me arrancassem os frutos,
a copa, os ramos, o tronco,
se me puxassem os fios
que me unem ao âmago da terra,
ressurgiriam raízes,
lenta mas firmemente,
e de novo brotaria,
tronco e ramos e copa
e frutos e tudo.
Porventura mais fortes
e mais doces que nunca.

A vida são torrões de terra


que se acumulam em camadas,
onde enraízam experiências,
passados nunca esquecidos.

Sou uma velha árvore


com viço e fruto sofrido,
mas sou um mar de raízes,

66
embrenhadas na terra
ao longo da minha vida,
que mesmo depois da morte,
deixam marcas e presença,

Enquanto houver quem as lembre.


Enquanto houver quem as leia.
Enquanto houver quem as sinta.

As mãos femininas

Uma mão delicada e fina


segura o recato ao peito
num xaile que escorrega
dos ombros desvelados.

As mãos cruzadas ao colo,


braços esticados, rígidos,
postura assaz protetora
de uma virginal feminez.

Braços longos e compridos


emoldurando o corpo.
as mãos apoiando as ancas
num descanso sedutor.

Uma mão acaricia a outra,


num delicado enlace,
pose discreta e distinta
de quem se quer desejada.

Costas voltadas ao olhar

67
velam as mãos, colo e peito,
mas exibem formas generosas
que sabem exaltar desejo.

As mãos cruzadas nos joelhos


invocam conforto e lazer,
disposição fraterna, jovial,
de prazeroso convívio.

Uma mão no colo outra no peito


é um sinal de pudor,
de quem se sente observada,
mas não desdenha o olhar.

Uma mão apoiando a cabeça,


braço de cotovelo assente,
outra repousando, tombada ao colo,
traduzem inegável cansaço.

Já as mãos entrelaçadas
pose a três quartos, braço apoiado,
revelam a serena confiança
de quem se sabe bela e amada.

Eis como a postura das mãos


revela humores feminis
para quem quiser observar
além da sedutora beleza.

Musa ancestral

Cabelos de fogo, olhos de água,

68
pele nívea, expressão triste.
É um rosto parado no tempo,
um retrato íntimo, da história privada.

Pudera eu ser transportado


até aqueles olhos azuis.
Pudera eu ser envolvido
naquela cabeleira rubra.

Talvez o olhar penetrante,


límpido, em sereno anil,
me saciasse a sede crescente
de tão provectos encantos.

Talvez o rubor das madeixas,


que tão fundo me tocou,
se transmitisse ao rosto ebúrneo
em belo e doce pudor reprimido.

Centenária musa do artista


em ti o tempo parou.
És beleza deslumbrante
eternizada rainha.

Rainha pelágica

Peixes policromos navegam


circundando real criatura.
O maior deles entrega-se
ao aconchego dos seus braços.
Cabeça vermelha, olhos esbugalhados,
corpo de linhas cruzadas,

69
ondulantes, coloridas,
arco-íris axadrezado.
A criatura acaricia, com paixão,
este estranho animal
que rejubila prazeroso.

Cabelos de nuvens densas


povoam estes céus marinhos,
algodão doce multicolor,
que alimenta e exulta os peixes.
Os contornos desta peruca
contorcem-se como fumaça
que paira nas escuras águas
deste ufano mar profundo.

Da magnífica criatura régia,


rainha dos mares pintados,
pendem longas tranças violáceas
de uma tiara dourada,
que lhe prende a nimbosa cabeleira.
Olhos rasgados, pisciformes,
rosto alvo como a espuma do mar.

Veste mantilha exuberante


de líder de reinos pelágicos.
Cobre-a um exótico vestido ocre
com cornucópias gravadas,
desenhadas a cavalos marinhos
e frondosos dragões do mar.

As suas mãos delicadas


de longos dedos de algas
acariciam os peixes tingidos

70
que a rodeiam devotos.

Onde os seus dígitos tocam


multiplicam-se as cores,
em parada carnavalesca
que ilumina as profundezas,
afastando as trevas do mar.

Harmonia vital

Percorro o areal deserto


de gente, mas não de vida.
O vento traz gritos alados
que me penetram o espírito.
O mar traz mergulhos ritmados
que me salpicam a alma.

Sinto-me um deus encantado


que toca uma flauta mágica.
O som etéreo que emite
enche a praia de música.

Gaivotas redondam-me o ser


cantando as notas sonantes.
Peixes mergulham-me o corpo
ao ritmo pulsante do coração.

O sol embala a canção


que os pássaros cantam
e os peixes vibram
na harmónica brisa do mar.

71
Sou terra, sou ar, sou água,
sou fogo que teima em arder
enquanto a vida durar.

Devoção matinal

Olho-te e não te vejo,


sinto-te no meu ser.

Sentada na cama do tempo


iluminada por raios
do sol matinal.
cabelo apanhado a fogo,
preso na sedução;
pele brilhante, à luz
da solar exposição.

Um leve rubor na face


de quem se sabe admirada,
e do desejo refém
em anseios de paixão.

Teu vestido cor de neve


tomba sensual dos ombros
deixando adivinhar os seios
que espreitam pelo decote.

Os teus femininos membros


enchem o quarto de encanto
e eu, de ti devoto,
mergulho na tua essência
e encantado te entrego

72
o milagre supremo da vida.

Quadro primordial

Numa ponte pedonal


sobre um rio calmo e doce,
por entre brumas eternas,
vultos refletem nas águas.

São quatro as figuras


que prendem a atenção
pela diversidade que exibem,
na calmaria das águas.

À frente, abrindo caminhos,


um homem encapotado,
de chapéu na cabeça
e sachola pejada às costas.

Traz pela corda um boi,


figura desmesurada e mansa,
de essencial utilidade
para o trabalho do campo.

Atrás dele segue um cão,


companhia imprescindível,
acompanhando a trupe
na sua missão de guarda.

Finalmente vem a mulher,


camponesa curvada,
carregada de hortaliças,

73
sustentáculo da vida.

Este quadro primordial


de campestre condição,
tem o trabalho por tema
em fundo deslumbramento.

Evoca a essência
desta vivência febril:
há que ganhar o sustento,
em harmonia de seres,
para gozar a beleza
que a vida tem a oferecer.

Uma família de múmias

Nos seus adornos vistosos,


Nos cuidadosos aprumos,
Nos seus sorrisos forçados,
Nas existências secas,
Nos seus arrumos perfeitos,
Nas vaidades inúteis,
Nos seus ares pretensiosos,
Nas figuras atrozes,
Nos seus hábitos eternos,
Nas opiniões caladas,
Nas suas posições firmes,
Nas ligações rígidas,
Nas suas vivências ausentes,
Nos olhares velados,
Nos seus corpos franzinos,
Nos rostos bem afilados,

74
Eretos em pose eterna,
são uma família de múmias,
Em mortalhas coloridas.

Símbolos

Um emaranhado de fios
entranha-se na minha pele
como tatuagens gravadas.
Pinturas de guerra à banalidade,
grafittis emancipados.

Uma crista de negros cabelos


emproa-se na minha cabeça,
como estandarte erguido ao vento.
Monumento à individualidade,
orgulho de ser diferente.

Os meus lábios engrossam,


o meu nariz arredonda e alastra
e ganho ares de cafuzo.
Lábaro da miscigenação,
símbolo da igual humanidade.

A fera

Tinha elegância felina,


como um leopardo albino,
tatuada com manchas alvas
que pareciam flores,
gravadas na pele pálida.

75
No cabelo radioso, imenso,
armava-se um jardim inteiro,
de rosas de alabastro, como ela,
e de plumas brancas,
pontuado por notas rubras
que lhe acentuavam a graça.

Sobressaiam os lábios,
vermelhos, sanguíneos,
numa boca desenhada a lápis,
para aguçar o desejo.

Os olhos cerúleos fitavam


de frente, a presa indefesa,
em tudo submetida
àquela beleza feroz.

Não sei se à espera de um beijo


se de uma mordida fatal.

Deusa do arvoredo

Os teus cabelos escorrem


como lianas na floresta.
Os teus lábios grossos de fêmea
engrossam o meu desejo viril.
Os teus olhos negros espreitam
em sensual indiferença.

Estás enfeitada como um jardim,


onde belas flores coloridas

76
envolvem a tua floral beleza,
na Primavera da vida.

És deusa do arvoredo,
senhora primaz da floresta,
rainha da selva oculta,
deidade da natureza virgem,
de inocência intocada.

Oxalá eu me perdesse
nesse matagal sagrado
que a tua perfeita divindade
defende, em inviolável mistério.

Dúvida infernal

Corri ribeiras de fogo,


saltei rios de prata,
nadei em mares turbulentos,
vivi em oceanos de gente.

Deslumbrei-me com selvas


de betão e ferro forjadas.
Ergui catedrais de vidro,
aos deuses cotados em bolsa.

Olhei os céus carregados


e entre laivos, de azul tingidos,
vi dragões verdes voando,
vertendo lágrimas de chuva.

Visão infernal do mundo,

77
de sangue e seiva e de fumo.

Experiência psicadélica
ou profecia apocalíptica?

O advento

Céus turbulentos e baços,


serpenteados de escuras nuvens,
enfeitados por auroras boreais,
reflexos onde gravitam planetas.

Rios ziguezagueando os solos,


de verde e amarelo pintados,
confluentes em círculo infernal
de onde brota uma ilha em flamas.

Florestas de equatorial densidade


com fogos que emergem pujantes,
por entre árvores longas, elevadas aos céus,
suplicantes da chuva que devaste as chamas.

Os astros conjuram nos céus


o fim do paraíso terrestre,
os elementos convocam na terra,
o advento do humano inferno.

A benção

À esquerda, uma torre de betão


erguia-se imponente até ao céu.
Janelas ornadas a mármores finos,

78
paredes sumptuosas, a lioz revestidas.

À direita uma torre de tijolos,


paredes de cor garrida e rubicunda,
sem luxos, mas de graciosa compleição,
de amplas vidraças, elevadas às alturas.

No meio, numa singela varanda,


de vestido verde, olhava a rua,
uma menina de longos cabelos loiros
e chapéu de palha na cabeça.

Entre as sombras desenhadas dos edifícios,


vislumbrava-se um estreito halo de luz,
onde o sol e o azul do céu penetravam,
iluminando a criança abençoada.

Três troncos

Três troncos, três vidas, três lutas,


três destinos incertos e fugazes;
Três cores, três portes, três luzes,
três sentires diversos e paralelos.

De exuberante grossura o primeiro


pintado a cores purpúreas e rubras,
de braços abertos, ao futuro entregue,
viçoso e pujante no ser e porvir.

Mais fino e singelo o segundo,


elegante, de flavescente tingido,
ramificando incessante, copioso.

79
Dos ramos extraíndo a própria vida.

O terceiro esmorecido e prostrado,


esconde-se no azul sombrio,
por detrás dos viços alheios,
sobrevive furtivo, apagado e fosco.

Todos três enchem o tempo,


cada qual em sua hora.
Todos três compõem a floresta
na sua indispensável diversidade.

Beleza e juventude

A terna juventude e a delicada beleza


confundem-se na imaginação dos velhos,
como se uma, sem a outra não existisse,
como se fossem condição recíproca.

Sentiam-se os velhos belos,


quando os anos lhes não pesavam?
Eram eles incapazes de encontrar beleza
nos que os precederam no tempo?

Beleza e juventude
são duas coisas diversas,
que juntas se podem encontrar,
como separadas também.

Há belezas que nascem conosco


e outras que se aprendem na vida.
Há defeitos que ferem os jovens

80
que o tempo consegue curar.

A beleza da juventude é afinal,


do passado, a nostalgia fatal,
que aos velhos oprime, desde sempre,
e cega para as belezas presentes.

A espera

Ela olha esperançosa o horizonte


buscando sorrisos, abraços perdidos,
mas ele não vem.

Ela conversa, passando tempo,


louvando as virtudes do amor que tarda,
mas ele não vem.

Ela olha o céu em devoção, rezando,


pedindo a Deus o regresso de quem lhe falta,
mas ele não vem.

Ela chora de saudade, imaginando desgraças,


supondo amores transviados no caminho,
mas ele não vem.

E quando ele finalmente chega,


frustrado dos insucessos da vida,
é para lhe dizer
que para sempre parte.

81
Desencontros amorosos

O amor no xadrez da vida


é um jogo de desencontros,
em que uns teimam em procurar
o que só os outros encontram.

A mulher ama um homem maduro


pela sua estabilidade e constância,
pelo conforto que dá na vida,
pelas paixões desgastadas.

Mas ele, em crise de meia idade,


enamora- se de jovem ninfa,
pela sua frescura e jovial inocência,
pela nostalgia dos anos passados.

A jovem, por inexperiência,


tem sonhos apaixonados
e troca o conforto pela entrega
enamorada a um artista.

Este, no seu ego desmedido,


aprecia o amor ofertado,
mas a paixão está condenada,
porque ele só ama a si próprio.

Feliz é pois o privilegiado


que vê o amor retribuído.
É sorte rara e imprevista,
contrária às probabilidades da vida.

82
O pôr-do-sol

No fim de tarde de verão


caminhámos pelo pontão,
atraídos pela luz mágica
do pôr-do-sol sobre o rio.

Disseste que sempre foi


a tua hora preferida do dia.

Eu sorri em silêncio,
pois conhecendo-te há tantos anos,
não tinha dúvidas a esse respeito.

Mas pensei que também eu


aprendi a amar o pôr do sol,
desde que o passei a admirar
ao teu lado.

Tradições

Perdida na tradição local


uma menina brincava com signos,
construídos pela memória
do seu povo, perdida no tempo.

Envergava vestido tradicional,


de corte perfeitamente traçado,
brilhando com marcas tribais,
e flutuando leve, com o vento.

Ela sorria e jogava, encantada

83
com as múltiplas cores e formas.
Brincando aprendia memórias
naqueles símbolos transcritas.

A menina agarrou cada ícone,


e construiu novos conjuntos e uniões.
Depois guardou-os no vestido,
e voltou para casa, feliz.

A tradição tem lugar importante


na vida e no futuro dos povos,
mas são precisos ajustes, integrá-la
na fantasia e viver dos mais jovens.

Sem crianças a construir com ela


valores ao seu tempo adequados,
não há tradição que resista
ao severo veredito do futuro.

A chuva

Era noite e chovia.


Sob fundo escuro, carregado,
reflexos de néon tingiam
a noite de cores cintilantes.
Reflexos na chuva.

Ela, solitária, de chapéu aberto,


azul elétrico como o vestido,
desafiava o tempo com a sua alegria.

A água caía em torrente dos céus

84
e os seus cabelos escorriam.
Pingavam como se fossem nuvens.

E o seu chapéu azul aberto vertia,


derramava a água tombada,
cascata de chuva
molhando a sua pele brilhante.

Parada, no meio da rua,


no meio da chuva,
ria à gargalhada.

Do prazer de estar viva,


De alma lavada,
com água a escorrer,
pelos cabelos e a pele.

A esplanada

Passo pelas cadeiras vazias,


e lembro as mesas cheias,
com gente à volta a falar,
a rir, a viver, há poucos dias atrás.

Agora, com a chuva,


a esplanada está ao abandono,
na tristeza dos dias soturnos,
na solidão das chuvas de outono.

Passo pelas mesas desertas,


e lembro-me das férias passadas,
tão cheias de gente e de sol,

85
tão alegres e plenas de vida.

Agora com as primeiras chuvas


do outono que está a chegar,
a esplanada está triste e vazia.
Vidas suspensas da chuva que cai.

Dias tristes de chuva

Só, na cidade branca,


dos fumos, das nuvens,
dos bafos, das vidas,
que sopram por entre
os carros e os prédios,
em dias tristes de chuva.

Só, na cidade branca,


dos ventos, das sirenes,
dos gritos, das águas,
que correm por entre
as gentes e os semáforos,
em dias tristes de chuva.

Só, na cidade branca,


dos autocarros e elétricos,
dos chapéus de chuva,
que voam por entre
as ruas e avenidas,
Em dias tristes de chuva.

Só, na cidade branca


à espera do sol,

86
de vida suspensa,
em dias tristes de chuva.

Nostalgia

À beira da falésia, sentado,


contemplando o mar
sempre agreste,
a desfazer-se, em branca espuma
contra as rochas, agraciado
por um inusitado sol estival,
não tão forte que me olvide
a fresca maresia destas costas,
mas ainda assim prazenteiro,
dou comigo enredado
nas malhas fugazes do tempo, perdido
entre um passado distante,
por isso atraentemente inocente,
um presente indolente,
desapaixonado, deprimido
e o futuro sempre ignoto,
salvo no inevitável decesso.

Frágil condição é a humana.


Suspirar pelo que fez,
lamentar o que lhe não acrescentou,
adiar o que ainda pode alcançar
para, finalmente,
ansiar temente
o que remédio não tem.

O passado embala,

87
entorpece, enebria
em sombras difusas que aconchegam,
que elevam aos céus da fantasia
uma realidade sem centelha,
sem vida, sem interesses.

O futuro espera, sorrateiro,


os erros e infortúnios do presente
para me conduzir,
provavelmente nostálgico,
ao sono eterno.

Se esse Morfeu perpétuo me garantisse


a saudosa doçura da memória
de bom grado me entregaria
nos seus bondosos braços.

Mas essa ilusão não possuo.

Em oníricas fantasias,
quando o espírito assim o quer,
ainda consigo visitar
a minha ilha dos amores pretéritos.
Por vezes até
ancorado num rochedo
à beira da maresia
da meninice, sonho acordado
ternos tormentos de efebo.

Mas a nostalgia
é dos vivos um privilégio.
Os finados descansam
na paz do esquecimento,

88
livres do tormento
mas também da doçura da memória.

Talvez esta fugaz capacidade,


transformar o banal em sublime
pelo simples decurso do tempo,
seja afinal o sal verdadeiro
da humanidade, a reserva
de ânimo que permite viver,
mesmo quando a alma perece
escorrida, esgotada, vivida.

Porventura se explicaria assim


a velhice ser uma infância segunda,
com a mente a esquecer
teimosamente o quotidiano
em detrimento de um passado
cada vez mais remoto,
que para sempre perdido
se cuidava.

Se a confiança no presente
e no futuro falharem,
podemos seguros
contar com o passado,
última e derradeira redenção.
Mesmo que de mera ilusão
em nostalgia esculpida,
não passe.

89
Girassóis

Não há girassóis
como os girassóis de Van Gogh.
Mas há quem os continue a pintar.

Quererão fazer melhor que o artista


que melhor pintou girassóis?
Quererão mostrar que há quem pinte
girassóis com outras cores e feitios?
Quererão homenagear o mestre
vendendo recordações dos seus girassóis?

Na minha modesta opinião


acho que é possível pintar girassóis
só porque se gosta de girassóis.

Casas vazias

Depois de infâncias partilhadas,


de brincadeiras esquecidas,
de ambições sonhadas,
de desejos reprimidos.

Depois de culpas formadas,


de vidas sempre adiadas,
de acusações repartidas,
de afastamentos desgostosos.

Depois de vidas esgotadas,


de despedidas saudosas,
de arrependimentos tardios,

90
de recordações enterradas.

Ficam casas vazias


de paredes manchadas,
aguardando vidas novas
que as voltem a encher de alegria.

Liberdades

Tempos houve em que a família


era o aconchego do indivíduo,
a mão que sempre acudia
nos momentos de aflição.

Depois veio um tempo ansiado


em que nos sentimos emancipados
e usámos a liberdade para tudo
experimentar e vivenciar.

A familia ficou esquecida


arrumada num canto escuro,
para quando as coisas correm mal
e as necessidades superam orgulhos.

Hoje a família está dispersa,


não há convívio, não há presença,
as rotinas não passam por casa
e quando passam, chegam pela internet.

Também eu ansiei pela liberdade


e prezo-a acima de tudo.
Mas há um tempo em que liberdade

91
se torna sinónimo de solidão.

Tristeza

Por entre os pingos de chuva


luzes, trevas, cores,
atravessam-me o espírito,
nestes dias sombrios.

Por entre os pingos de chuva,


reflexos de gente, de carros,
encandeiam-me os olhos,
nestes dias soturnos.

Por entre os pingos de chuva,


rios correm pelas ruas
inundando-me desprevenido,
da tristeza destes dias.

Na lixeira da memória

Na lixeira da memória
há lembranças
que não se podem reciclar.
Há palavras por dizer
e outras por retirar.
Há abraços nunca dados
de oportunidades perdidas.
Há obras começadas
que nunca serão concluídas.

Na lixeira da memória

92
há esperas em vão
por quem já não vai regressar.
Há projectos que aguardam
iniciativas perdidas.
Há lágrimas vertidas
pelo que não tem solução.
Há regressos inconsequentes,
por demasiado tardios.

Na lixeira da memória
nada mais há a fazer.

Resta arregaçar as mangas,


agarrar as malas
e começar tudo de novo.

Menina

Debaixo das múltiplas


camadas de tinta,
dos cabelos coloridos
que voam ao vento artificial,
dos brincos artísticos
que pendem de orelhas furadas,
das artes tatuadas na pele,
que expressam o que não se sabe expressar,
dos lábios grossos e vermelhos
que beijam desconhecidos, num olhar,
das pestanas negras, alongadas,
que arranham o corpo dos homens,
das roupas que provocam tendências
e desejos entre invejas veladas,

93
do rosto de manequim, composto
por artes secretas de feiticeira,
das garras felinas e coloridas
que brotam de mãos e pés delicados,
do corpo desenhado a rigor
entre ginásios e clínicas de estética
e exposto a preceito, em noites
de luminosas paragens
e de abandonos frenéticos

há uma menina insegura


que quer ser amada,
presa e incapaz de sair.

Pinturas de chuva

No chão baço de lajes graníticas,


entre reflexos, na chuva acumulada,
brotam texturas coloridas,
ignoradas, desapercebidas,
que enchem o tempo e o espaço
e brilham, na minha alma sedenta de arte.

Raspas de azul e carmim


que riscam agrestes a superfície,
brilhos de ouro e de prata
que exultam por entre as águas,
sulcos de negros cinzentos
que limitam os traços das lajes,

A chuva pinta, inspirada,


um quadro abstrato e belo,

94
que expõe no chão molhado
da rua banal, por todos cruzada,
pessoas e carros perdidos
no caminho vulgar do quotidiano.

Na falta de tela, de tinta e pincel,


e sobretudo de talento,
restam-me estas linhas singelas
para registar, para a posteridade,
os quadros que a chuva pintou
naquele chão, em noite intemperada.

Poema cubista

Em cima, de partes decompostas,


de uma guitarra partida,
vejo um quadro de verga amarela,
de fundo em cadeira vermelha,
entre inspiração cubista.

As cores quentes impregnam


o espírito perdido da musica.
O ouvinte que gira, ecoa flutuante,
perdido nas ondas de som.

Em versos partidos quisera eu compor,


em sentido refeito de arte abstracta,
quebrado, um poema cubista,
fraccionado e recolado depois.

95
Quadro de tristeza

Segue o caminho da noite,


a azul forte, sozinho,
rumo a um quadro de tristeza.

Um pôr do sol tingido,


preenche o ocaso
e completa o horizonte.

Um homem frio na estrada,


por entre nuvens de cor,
que penetram, a reflexos fundos,
no alcatrão escuro.

Amante completa

Um calor humano e o desejo


brotam da sua pele macia.
Uma mulher expõe, reservada,
os cabelos brancos, profundos,
à vergonha ardente do homem.

Esconde na intimidade de mãe,


a nudez da sua velhice.
Gerações e padrões de prazer,
na tristeza do pudor definidos.

Uma beleza fonte da vida,


ela é mulher que transcende,
ela é a amante completa.

96
Navegante solitário

Navego distante das brumas.


Ao fundo, picos inacessíveis
com ramos que me invadem,
sozinho, nas montanhas de neve.

Escarpas na margem escura


com névoas que cobrem a terra.

Tenho por vis companhias


águas geladas que crescem,
barco a remos, secos e nus,
de árvores caídos, de solidão e cansaço.

Tanto do mar navegado me vou alongando,


deixando entrever a separação fria.

Obra preceituada

Em escandalosa turba e destruição


se pintou uma estátua equestre,
nas artes dos regimes caídos
às mãos de nóvel rei absoluto.

Quiseram libertar a admiração


do velho simbolo, às artes dedicado,
em antigos ataques, vilmente vandalizado,
depois da queda do mundo do privilégio.

Ganhou sentido revolucionário


por isso, a obra nova aclamada,

97
pintada na vida, como nas artes,
e dando origem a preceito clássico.

Amor desperdiçado

Enrolada num lençol,


cobre púdica a nudez
sensual, da noite anterior,
esquecida em chávena de café.

Sozinha, em frente à janela,


olhando a manhã que nasce,
pensa no calor sentido,
na frieza do arrependimento.

Se os homens enchem o ego


com as noites de amor,
às mulheres fere o orgulho
tanto amor desperdiçado.

Desamor desperdiçado

Na frieza do orgulho sensual,


sozinha, em frente à janela,
cobre púdica o arrependimento,
na nudez da noite anterior.

Enrolada numa chávena de café


pensa na noite de amor,
esquecida do calor sentido
Com a manhã que nasce .

98
Às mulheres, fere o amor
desperdiçado num lençol.
Olhando os homens na rua
ela enche o ego sozinha.

Olhar distante

Os teus cabelos ao vento


enchem o céu de ternura,
mas esse olhar distante
fere-me o peito de mágoa.

Tens a tristeza gravada no olhar,


de quem busca e não encontra
na vida, uma paixão ardente
que lhe aqueça o olhar em retorno.

Pudera eu amar-te assim,


como esses cabelos que voam
e tu me olhasses de volta,
com a paixão a encher-te o olhar.

Aquarela mediterrânica

Paredes brancas e sombras,


mouraria de portadas fechadas,
a branco e preto, mais fresca.
Bicicleta encostada, banal.

Esboçados os ausentes
em componentes luminosos,
que os integram às janelas,

99
aguardando a hora do estio.

Na estreiteza que protege do calor


a memória, entre janelas fechadas,
uma rua mediterrânica aguada,
de roupa estendida à porta.

Ilha perdida

Numa ilha de pedra e vento


prisioneiro de tempestades,
rodeado pelo mar frio e escuro,
ergue-se, guardião dos mares,
um magnífico farol.

Símbolo da segurança
mas também perigo fatal,
para quem dele
se aproximar demasiado.

Em casas fechadas, ao fogo,


encontramos intimidades expostas,
mistérios, de todos perdidos.
descobertos por cada qual.

Prisioneiros da solidão
sacrificam-se à ferocidade
desta deusa natural atroz,
onde o normal não existe
e tudo transcende a humanidade.

Está é uma ilha perdida

100
onde reinam os elementos
e os humanos são reduzidos
à sua vil condição natural.

Amor perverso

Não há limites para o amor.

Pode pensar-se que sim,


que há limites para tudo,
que mesmo o amor
pode ser travado
por valores mais altos, mais fortes,
superiores, inatos.

Pura ilusão.
Alguns até serão capazes
de controlar os seus amores,
mas só porque não amam
o suficiente.

O amor impele a tudo,


ultrapassa barreiras intransponíveis,
relativiza todos os valores,
derruba qualquer outro sentimento.

O amor tudo conquista


mas também tudo pode destruir.

Na sua mais perversa expressão


é um sentimento atroz,
porque priva o indivíduo

101
do livre arbítrio,
deixando-o indefeso
nas garras do seu amor.

O amor é tanto razão de vida


como razão de morte,
simplesmente
porque não é razão.

Águas turvas

Numa baía amarela


em dia pálido,
nas águas turvas
onde velejam barcos,

uma foca, ao fundo,


contempla escura,
um sonolento jovem,
que descansa ao longe.

Na igreja, à beira mar,


entre o poente final,
artistas dourados
arrepiam caminho,
por mais um dia.

Sombras de outono

Chovem nuvens
pelos telhados tradicionais.
Um padrão vermelho

102
de folhas secas, da aldeia,
dá forma às sombras,
carregadas de Outono,
das casas recortadas
no tapete dos céus.

Um homem simples,
de pele amarela,
de cabelos pretos
e olhar carinhoso,
faz parelha,
de olhos fechados,
com um gato mortiço
de manchas cinza
e pêlo branco eriçado.

No alto da torre
no seu brilho ocre
de janelas despidas
ao céu amarelo,
ramos duplos de árvores
belas e nuas,
devolvem as sombras
aos telhados azuis.

A cidade nua

Por entre janelas de sombra


brilham pavilhões coloridos,
num espelho de água
que ilumina uma paleta de vida.

103
A cidade alvadia flutua
assente em cascatas de luz,
sobre navios despidos
que trepam o mar prateado.

Reflexos pardos embaciam


as sombras da torre altaneira,
que escorrega do céu nublado
para as ruas da cidade nua.

Sonho profundo

Um homem tombou
descalçando o corpo cansado
numa velha cama sombria.

As luzes, com ele deitadas,


velaram em cores angustiadas,
as mãos calejadas e os pés,
barrentos e sujos.

Ao seu lado, num vaso de loiça,


brilhavam folhas de amarelo vivaz,
perfeitamente recortadas,
em magníficos girassóis abertos.

Adormecido sonhava.
E no seu sonho, uma menina,
de lábios sanguíneos e carnudos,
brincava num campo de girassóis,
na frescura da juventude.

104
Usava uma boina vermelha
sobre os cabelos castanhos,
que escorriam pelos ombros
enquanto corria sozinha,
no mar de amarelo floral.

Com ela partilhou, no sonho,


um sorriso triste nos lábios
e um olhar profundo,
saudoso.

Estradas

Há uma estrada emoldurada


Por árvores que trepam,
Que riscam, em arco íris,
De troncos, altos e finos,
Os amplos céus coloridos,
Em linhas retas, construídas
Com pedras de granito
E pedaços de ramos negros,
Num celestial caleidoscópio.

Há também outra estrada


De bermas tristes caídas,
Cobertas de montes de neve,
que o frio gélido acumula,
acentuando o contraste
com a densa floresta
de pó e cinza queimados,
soltos das alturas escuras.

105
Percurso igual,
Estradas diferentes.

Miragem

Miragem impressa a anil


Em edifícios de cinza,
gravados em memória
Da névoa das linhas.

Brumas que escorrem


Por escadas gravadas
E varandas ocre,
desenhadas na ferrugem.

Cúpulas escuras,
De impressão pintadas,
Por ilusões embaciadas
A luminoso registo.

Ela Pairava

De olhos de opalas azuis,


rosto ebúrneo sensual,
lábios grossos e penetrantes;

nariz delicado, desenhado,


sobrancelhas lineares
e pestanas redondas e negras;

dedos finos escorridos,


pernas firmes expostas

106
e os cabelos loiros cruzados;

uma blusa de alças preta,


com ombros descobertos,
colo cheio, lácteo e nu;

pés descalços caídos,


com dedos pequenos,
de unhas impúdicas.

Por entre silhuetas de sabão


que pairavam espantadas
como bolhas no ar.

Desfile abstracto

Textura espessa a preto e castanho,


de neves profundas, com notas terrosas.

Por entre o nevão, em manchas pardas,


ramos secos com montanhas brancas.

A preto e branco de leves rubores,


paisagem invernal de caminhos húmidos.

Em troncos finos, escuros e nus,


braços de árvores em vales despidos.

Pássaros que cantam e espreitam


em divisórias de cores berrantes.

Tons quentes de neve e cinza

107
desenhados a negro com traços de cor.

Formas redondas de relevo alvacento,


a vermelho e laranja em montanhas geladas.

Tons frios em casca de ovo e tecido pastoso,


com breves pinceladas de contorno preto.

Emersão pungente, de azul e ocre,


que brota da tela em circunferências perfeitas.

Odisseia contemporânea

Através de mares gelados,


por cima das dificuldades,
saltou como um emigrante,
de um continente desesperado
ao encantamento de outro.

Sem ter barco para aterrar,


à força da juventude aliou
a impetuosidade dos sonhos,
na procura de um passaporte
para o amor de uma mulher.

Sem saber da internet


falou a língua global,
que conduziu o jovem louco,
ignorante ao destino,
de regresso à sua casa.

108
Perdido na floresta

Um homem sombra,
vazio, monocromático,
sozinho e terroso
no poente indefeso
do meio da tarde.

Os troncos iguais,
de cor pastel,
numa luz perdida
em busca da floresta,
sob o céu quente
do nada.

Baloiço no cais

Um pneu soturno
pendurado no tempo,
um baloiço perene.
Moldura improvisada
para um lago parado
e uma árvore solitária.

São reflexos, num quadro,


de uma vida tranquila,
de horizonte suspenso,
num cais promissor.
Com água efectiva
e pensamento no céu.

109
O sobreiro

Um sobreiro pujante
num campo ominoso
mas coberto de vida.

Um céu de frutos
ramifica orgulhoso,
soberbo mas sozinho.

Numa copa bicolor


porfiam, espalhados,
em castanho frondoso
e paisagem a verde.

O bibliotecário

No cimo de uma escada de outrora,


de cada vez que ele a sobe,
repousa o esquecimento
em prateleiras de pó acumulado.

Em décadas de sabedoria arrumada


o bibliotecário reacende a chama
com receio hesitante das dúvidas
do saber acumulado, tornadas certezas.

Na liberdade da biblioteca
que à esperança tanto custou,
lá se encontra em pensamento
uma civilização a alcançar.

110
Meia-idade

Na crise das suas conquistas


há pássaros, de meia idade,
que voam de pés no chão,
assentes em templos enormes.

Nos céus, povoados de sonhos,


há vida que escapa das mãos,
entre obras e pensamentos
que, há muito, cheiram a mofo.

Elevam-se os incumpridos
em contagens decrescentes,
assentes nas suas lembranças.

É preciso voar para o fim


antes que seja tarde.

Circe

Musa encantada
de peitos coloridos,
aquarela morena
de lábios firmes
e beleza sedosa.

És deusa fumegante
com cabelos de névoa.

111
Circe de negro ébano
com pele enfeitiçada
e alma despudorada e nua.

O Farol

Por entre seara de marinheiros


surgia distinto o farol fálico,
uma silhueta vermelha luzente
projetada em páramo exangue.

No céu flutuavam pinturas vitrais,


reflexos solares impressionistas.
Tinjiam a azul e branco nebular
os feixes vitrais da cúpula glandular.

Nas suas cores crepusculares,


diante das sombras marinhas,
a noite viajava intermitente
entre ejaculações luminosas.

Regresso a casa

No regresso doloroso a casa


reencontro o passado,
revivo medos antigos,
relembro sonhos perdidos.

Mas não volto sozinho,

112
trago o futuro comigo.

Estrada de sombras

Há uma estrada que esconde


uma passagem de sombras,
que promete espíritos
e ramificações ancestrais.

É um percurso fugaz
povoado por árvores vãs,
sonhadas em cada sombra
das bermas que não possui.

Calafrio outonal

Perdido nas brumas


da floresta impenetrável,
por entre troncos de nevoeiro,

sinto o encantamento
do frio na espinha,
apesar de onírico.

O ambiente sinistro
que penetra os ossos,
num calafrio outonal.

113
Autocarro noturno

Num autocarro só
um homem de turno
passa, aos solavancos.

Senta-se junto a um casal


que fala, em tom soturno,
descaradamente da vida.

A revisora aguarda um sinal,


de semblante cabisbaixo,
encostada ao varão.

Uma jovem disfarça o tédio


não conseguindo fumar,
apesar da proibição.

Com ela, um soldado,


evita fumar de pé,
ouvindo a vida também.

Uma jovem de chapéu


aguarda destino antiquado,
debaixo da conversa alheia.

Um velho espantado
com tamanho alvoroço
mete conversa, de ar triste.

114
No chão, olhando uma revista,
repousa um saco de garrafas,
fardado, recheado de compras.

Ao seu lado uma jovem senhora


folheia a meia-idade da mãe,
parecendo seguir o progresso.

Ao fundo, senta-se um cachimbo


com interesse na vizinhança,
com a boca ao seu lado, à esquerda.

Uma senhora banal remexe


num diálogo sozinha,
em mais uma noite ansiosa.

E uma menina olha interessada,


buscando dentro da mala
o conteúdo do autocarro noturno.

Portal de mistérios

Uma porta na indiferença


encerra quem passa na rua.
Mosaico de mistérios,
obra de arte perdida.

Por detrás do tempo,

115
de segredos insólitos,
que paixões esconde?

É um portal incoerente
à decrepitude desconhecida,
pelo uso desgastado
de materiais corrompidos.

À espera de descoberta.

Árvore outonal

Num fundo vivo pastel


de um Outono expectante
uma árvore encantada
brota pujante e sensível.

Sobejam, no calor terminal,


num singular colorido,
os tons quentes da natureza
numa copa frondosa invulgar.

São vermelhos e amarelos


a mudar verdes, em relevo,
que entram da estação fria
pela alma aberta do presente.

116
Telhados

Do horizonte de telhas
estende-se, por janelas,
um emaranhado urbano,
ao céu de luzes privadas.

Das coberturas coloridas,


as paredes parecem jorrar
um mistério ocre subtil,
por entre os limites da noite.

É um presépio fulvo,
pontuado de arvoredo
e com o mar por fundo.

Paisagem campestre

Um comboio de pomares,
vestido de campos,
dormia com as searas,
numa colina aos quadrados.

As hortas, em cascata,
de sedes descomunais
e roupagem pedregosa,
confundiam, adormecidos,

um casal de gigantes,

117
que fazia as vezes de horizonte,
carregado, ao longe, de fruta
e mais parecendo ciclopes.

Quintas brincavam na torrente,


para saciar os membros,
espreitando lagos e um trem,
que passava por entre as árvores.

Na fonte rica, de folhas verdes,


junto à perna da montanha,
a vida corria calma
como num mundo normal.

Sombras na praia

Sombras molhadas
andando na tarde,
de senso na areia,
sumidas na praia.

Cúmplices finais,
de intimidade perdida,
dos reflexos da hora
nas luzes da água.

Ao fim de um livro
ausente na mão,
sonhando acordado

118
o dia que finda.

À espera do sol

Sentado,
na frente da casa
vermelha, pequena
casa de bonecas.

Com duas janelas


gémeas, lado a lado,
como se fossem uma só.
Com seis vidros
exatamente iguais, cada uma,
e uma pequena janela no sótão.

Telhados inclinados,
à espera da neve
que cai abundante.

Um lago gelado em frente,


uma montanha nevada atrás,
com nuvens presas no topo,
como fumo gelado
que sai das chaminés.

À espera do sol.

119
Reflexos perfeitos

Sentado, sozinho
num lago translúcido,
de fundo branco,
que emerge da neve.

Em reflexos perfeitos,
da montanha
que cai por detrás.

Em frente de um banco,
da outra margem,
onde se vêem
as florestas outonais.

Medo

As lágrimas sobre o peito


molhavam a face de medo,
pintando-lhe o olhar de negro.

O cansaço corria no corpo,


agarrando a sua nudez
na força de dois braços.

Sentia a pele masculina


silenciando os gritos,
tapando-lhe o choro.

120
Mas não podia entregar-se.
Só podia proteger-se
do seu temível destino.

Pausa

Olhava uma pausa,


sentada na trégua
de um cigarro vazio,
fumado ao balcão.

O avental vestido
mostrava o futuro,
de azáfama expectante,
despida de sonhos.

O lazer fugaz
do café diário,
de olhar esquecido
no eterno trabalho.

Choque de titãs

Garras de água
rasgam a rocha
da costa sangrenta.

Falésias negras

121
escorrem espuma
pelos fios do mar.

Choque titânico
que dura há milénios,
entre rivais elementos.

Breve oferenda ao olhar


fugaz da humanidade.
Quem será Zeus e Cronos?

Longe do paraíso

Caminho breve e bucólico,


entre canteiros de terra,
rumo ao mar de lilases.

Pequeno areal preenchido


de novos e velhos horizontes,
deserto de embarcações.

Negras montanhas recordam


que não estamos na estrada,
longe do paraíso.

Cidade de sol

Areal parado,
espalhado pelo mar,

122
de navios estendidos
gaivotas adentro.

Pelas águas da praia


de vidro no centro,
com a cidade de sol
caiada nas sombras.

Arvoredo rubro,
paredes vespertinas,
telhados pujantes
da paz conquistada.

Chão de chamas

Uma sombra indefesa


das árvores de fogo,
fantasma da alma.

Labaredas que galgam


os tempos brancos,
em chão de chamas.

Ramos ardentes
ante a força do frio,
que queima impotente.

Brasas escaldantes
de quem as viu,

123
de alma perdida.

O rei caranguejo

O destino dos povos está escrito em tabernas,


nas palavras antigas cantadas de memória.
verdades encerradas em lendas ocultas,
de gentes de aldeia, maiores do que o tempo.

Barbudo arrogante e borracho pastor


foi príncipe e bastardo na revolta do tempo.
Nas chamas da revolução pagou caro preço,
ganhando o degredo nas cinzas do amor.

Renascido num trilho do fim do mundo,


em reino de caranguejos por terras e mares encantados.
Em viciosa batina encontrou tesouro lendário
e mais que príncipe, virou rei, nas lendas do povo pátrio.

Confiança

Ela transpira esbelta


no chão da cidade,
que atravessa confiante
de vestes conquistadoras.

E as torres altas de fundo


servem-lhe como um espelho.
Ela é a mulher futuro

124
do confiante porvir.

Dia de mercado

No mercado quotidiano,
sob toldos universais,
há gente colorida
que passa e que compra,
que fica e que vende,
na azáfama local.

Mudam as cenas,
repetem-se personagens.
Gente de aspecto pitoresco
num mercado de encontro,
do matizado humano
com o alimento tradicional.

Sentado no paredão

Percorro numa sombra


os metros expectantes,
que me separam
dos raios de sol.

Vejo a praia fugaz


e sinto-me premiado,
com o areal vazio
deste início de Outono.

125
Sobejam alguns resistentes
buscando a praia só para si:
crianças de pés molhados
que me perturbam a leitura;

senhoras que passeiam


os cães, no mar deserto,
que pulam pela trela
à minha volta, em biquíni;

casais que correm pela orla


e passeiam ao sol,
e não desistem nunca,
da sua eterna praia;

e claro, os pescadores,
que jamais abdicam,
seja Verão ou Inverno,
da sua missão sagrada.

Eu sento-me descansado
e leio no paredão.

Feiticeira

Feiticeira de melenas vermelhas


de olhos azuis e pele branca,
de flores lilases nas mechas

126
e pássaros azuis, entre as mãos.

Princesa ruiva de vasta cabeleira,


de faces rosadas e rosto infantil,
de longo vestido, de rosas folhado,
e pássaros entrançando os cabelos.

Sereia perdida de ocres madeixas,


trajada de mar e de conchas vestida,
pairando nas águas de reinos marinhos
com asas de anjo das profundezas.

És deusa dos vendavais,


rainha dos oceanos,
duquesa dos campos férteis,
divina senhora dos apaixonados.

Aldeia das palavras

Acordei na aldeia.
Da janela entreaberta
vejo a rua a nascer.

As mulheres de negro
que passam,
rumo à igreja,

trocando conversas,
partilhando destinos

127
em diálogos banais.

Lentamente
a aldeia vai-se enchendo,
de vida e de palavras.

Solitária ladeira

Solitária ladeira,
de pedras escuras
e centenárias.

Subindo o mal
com um candeeiro,
por única companhia.

Iluminando a noite
de trevas seguras,
na aldeia materna.

Domínio do sol,
até à chegada ansiosa
à casa do porto.

Genialidades

Genial é a ímpar
capacidade de comunicar,
ultrapassando barreiras,

128
apelando a valores comuns,
tocar a simples humanidade
e ser compreendido e admirado
por multidões.

Maior gênio é, porém,


o que consegue ser admirado
sem que ninguém o compreenda.

Ribeira

Prédios finos, lado a lado,


empilhados a contraste,
caixas de brincar perfeitas.

Janelas regulares,
paus de fósforo gigantes
num jogo de criança.

Varandas instáveis,
insólitas e minúsculas
desencorajam curiosos.

Disposição inesperada,
mais para a vista
do que para os olhos.

Rectângulos coloridos
desenhados a esquadro

129
e debruçados sobre o rio,

que corre entre dois montes


da velha urbe calaica
na ribeira medieval.

Descobrir

As pedras milenares
apontavam aos céus,
como catedrais rupestres.

As nuvens corriam,
espraiadas nas alturas,
como raios de luz.

Uma construção sublime,


desenho perfeito
unindo o céu e a terra.

O homem, perdido no meio,


elevou o olhar ao firmamento
com os pés assentes na rocha.

Miséria abençoada

Um acordeão de luto
toca uma mulher de preto,
caiada na pedra.

130
Nas paredes brancas
salta música aberta
para as janelas fechadas.

Sentada ao pé,
de ar triste e solitário,
uma criança prostrada.

Ao longe, na igreja,
uma cruz monumental
abençoa os miseráveis.

Triste domínio

Numa janela de plantas


escorre aconchegada
a antiga chuva.

Cai de dentro
dos vasos da casa,
no vidro abundante.

Um quadro com três maçãs


decora-lhe o parapeito,
num triste domínio verde.

131


de vestido branco.
Numa sala
velha e escura.
De pé,
estática,
descalça,
no chão de madeira.

Olhando
para fora,
em janela aberta
para o mundo.

A luz libertadora
que entra,
penetra o corpo
e liberta a alma.

Equilibrista

Uma menina
brinca, instável,
de pé equilibrada
num barril de lata,
rolando no chão.

132
Duas crianças,
mais pequenas,
jogam distraídas
no passeio,
sem prestarem,
ao feito desusado,
qualquer atenção.

A rua deserta
mostra outros detritos
e prédios ausentes,
por entre ruínas
que permanecem de pé.

Um frágil equilíbrio
entre a infância
e a destruição.

Insólito

Um casal molhado
atravessa um estendal,
por debaixo da ponte.

Um chapéu que cai


não os protege, da chuva
que tomba do céu.

Nem da intimidade aberta

133
no percurso, de duas vidas
expostas na água caída.

Mas não se vislumbra


vivalma na ponte.
Está deserta à vista.

Só nós, encharcados
pelas roupas da chuva,
contemplamos o insólito.

Abrigo

Quatro por três


são doze quadrados,
pintados de chuva
numa janela fechada.

No escuro interior
observo a luz do dia,
penetrando as vidraças
num filme de vidas.

Gente que sobe e desce


fugindo da chuva,
que busca em vão
aquilo que me abriga.

134
Escadaria

Há uma escada de pedra


que desce, através do quintal
e das paredes caiadas,
até às águas azuis do mar.

Há um barco ancorado,
flutuando no leito frio,
que aguarda quem queira
agarrá-lo, como a um sonho.

Há um arco de pedra
a meio caminho,
pintado de branco,
que acolhe o passante.

Um percurso triunfal,
por entre vasos de flores,
até ao espólio invejado
dos reinos marinhos.

Regresso

Por entre árvores


e destinos de névoa,
pelas alamedas alvas
da memória das ruas,
cruzam-se desconhecidos,

135
de pedra fria e nua,
que o Inverno do tempo
despiu de branco.

E pintou os ramos,
lavou o dia imaculado
e entristeceu os passos,
que escondem corpos
em vestes grossas,
e encurtam o gelo
do regresso a casa.

Tempos sombrios

Eram tempos de sombras.

De pedras rudes
nas calçadas toscas
e de gente pobre
bebendo um copo
em cadeiras de verga.

As árvores, porém,
cresciam saudáveis
e o mar brilhava
ao sol quente de Verão.

Mas as conversas calavam


o que se queria dizer,

136
por isso se adivinhavam
pensamentos ocultos,
por entre as trevas
do tempo sombrio.

Mesmo em dias de sol.

Viela escura

Do alto vejo uma sombra


que se prolonga na rua estreita,
já parcialmente obscura.

A silhueta disforme
acompanha uma nesga de sol,
que penetra a viela escura.

Nesse negro fantasma projetado


adivinho um homem carregado,
com um saco pesado às costas.

O seu destino é incerto


e o beco sombrio.
Tal como os meus pensamentos.

Lobo do mar

Um operário do casco,
de vara entre os dentes,

137
pinta as redes imensas,
por entre a enorme solidão
de um estaleiro naval.

De tronco nu no trabalho,
ignorando o cachimbo,
parece uma sombra
dum marinheiro de boina,
de caricatura na cabeça.

Mas ele manobra


orgulhoso, a colocação
de outras redes,
como se fosse cinema,
e prossegue na sua missão
de velho lobo do mar.

Grande estação

Desço uma catedral


pairando na luz,
pelas enormes cascatas
da grande estação.

De encontro às sombras
de passageiros espantados,
por janelas fantásticas
de sóbrios reflexos vitrais.

138
O fumo denso escorre
por torrentes de luz,
enchendo os espíritos
de lúcido encantamento.

Mãos

Mãos de um homem,
sobrepostas na pele
à própria vida.

Mãos de trabalho,
labirinto de fios,
de poros e cortes.

Mãos sofridas,
escamadas e calejadas
na luta do tempo.

Mãos quebradas
pela sobrevivência
de um corpo.

Mãos de morte,
suspensa pelo uso,
à espera da vida.

139
Deserto urbano

Paro em semáforo
de paredes velhas
e janelas escuras
de prédios em néon.

As tabuletas negras
dos bares de tijolo
anunciam trocas
de desejos despidos.

Uma paragem no caos


do deserto urbano,
de clubes vazios
de ferro e betão.

Na rua

Era um tempo,
em que as crianças pulavam,
aos magotes, na rua.

Viviam em grupos,
de casa em casa
e de jogo em jogo.

As janelas estavam
sempre abertas,

140
tal como as portas
daquela cidade.

Entrava e saía quem queria,


mas em casas desertas,
pois tudo acontecia na rua.

As compras diárias,
ridículas, faziam-se
nas lojas de bairro,

e eram meros pretextos


para sair à rua,
para longas conversas,

por entre as crianças


que brincavam, alegres,
aos montes pelas ruas.

À noite recolhiam-se enfim a casa


e as ruas ficavam desertas,
à espera de um novo dia.

Também ele passado na rua.

Beleza de outono

É um caminho refém
da natureza branca,

141
onde árvores amarelas
oferecem passagem
a quem nele descansa.

Um banco admirável,
no caminho cinza,
descansa indiferente
na arte passante
de um dia de Outono.

E mesmo o interesse,
soez e apático,
de quem passe trivial,
fica rendido, devoto
à beleza que invade.

Cidade vermelha

Sentado ao final do dia


na esplanada do café,
contemplo a cidade fulva
no vermelho que ilumina a rua.

Os candeeiros emanam chamas


de luz forte que pinta o céu.
Entre edifícios da cidade a fogo
morrem velhas árvores despidas.

Uma mulher solitária

142
protege-me na avenida de luz.
Ilha branca de paz, sentada
à mesa da cidade ardente.

Janela de pescadores

Janela para o passado


em casa de pescadores,
parada no tempo.

Olhares desconfiados
saem de parede caiada
onde há polvos a secar ao sol.

Há gaiolas penduradas,
tapetes cantantes
e pássaros no estendal.

Pelas paredes antigas


vejo fios emaranhados
que trepam como plantas.

São das luzes que chegam tarde


e de outras comodidades
que nunca chegam.

Esperança perdida

Uma cadeira vazia

143
espera na noite
espectros que vagueiam
em busca de paz.

Fantasmas das trevas


que buscam incessantes
a eterna redenção,
que a morte lhes nega.

As paredes sujas
de velhos descansos,
repousam no tempo
das buscas cansadas.

Um véu branco
na cadeira despida
alimenta a memória
da esperança perdida.

O velho dos livros

Numa velha barraca


um velho descalço
vendia velhos livros.

No seu olhar de velho


escondia a tristeza
de um velho leitor.

144
Quando passavam
e olhavam o velho
seguindo caminho,

o velho, mais triste,


mais velho ficava,
na sua tristeza.

Quando porém paravam


e liam os velhos livros,
o velho sorria.

E quando vendia
algum livro velho,
o velho reviçava,

do orgulho de velho
que quer partilhar
os seus velhos livros.

Um dia o velho não veio


e os livros velhos
ficaram fechados

e nesse dia ficou


o mundo mais velho,
sem o velho dos livros.

145
Noite assombrosa

Nas sombras opacas


das árvores que assombram
as ruas, em noite sombria,

há ramos sombreados
em paredes obscuras
e muros assombrados.

Silhuetas à sombra,
por detrás de edifícios
de má sombra aparente,

nem por sombras


calculam o semblante
sombrio da rua escura,

onde fileiras de árvores


dão sombra à calçada,
em noite assombrosa.

Absolvição

Na sua simplicidade,
contemplou pinturas
da artes angelicais,
de inocente elegância.

146
Ignorante do passado,
admirou a nobreza
de reis caducos
e de imperadores defuntos.

E devorou a pureza
de estátuas pretéritas,
de crianças aladas
guardadas por virgens mães.

Depois de tanto sofrer


numa longa vida iletrada,
aquela sublime beleza
absolveu-lhe toda a existência.

Velhos fados

Em casa de velhos,
um singular casal
olha cansado.

Oficina de pobres,
com fumo que paira
sobre toalhas estendidas.

Do tecto pendem, porém,


soberbas guitarras
de bela presença,

147
que mesmo silentes
tocam os fados
dos velhos cansados.

E assim fadados,
abençoado o destino
dos velhos presentes.

Tempos de pedra

Eram tempos de pedra.


De casas miseráveis
e peúgas em ruínas,
estendidas na sujidade.

De mulheres na rua,
sentadas às portas,
esperando fedelhos
rodeadas de fome,

buscando homens tristes


em ruas esfarrapadas,
no meio do pó, que passa
em velhas bicicletas.

Infâncias passadas

Infâncias perdidas
nas cidades desertas,

148
por ruas sujas,
perseguem a medo
as névoas passadas,
passando por túneis
e sombrios percursos.

Crianças sozinhas
vagueiam sem destino
por negros caminhos.
Derivam à solta,
entre paredes de pedra,
sem porto ou abrigo
por onde atracar.

Desejo cubista

Em quadrados,
as pernas garridas
em longas meias,

a saia cruzada,
de cor curta,
e pés descalços.

O tronco velado,
de braços às cores
e de rosto nu.

Cabelos longos,

149
vermelhos e negros.
Um desejo cubista.

Ponte suspensa

Canal de espelhos,
de vista dobrada
em vertical simetria.

De ponte suspensa
na vida que passa
por cima das águas.

Caminha segura
olhando no leito
o céu que flutua,

no meio das árvores


despidas pelo frio
da manhã invernal.

Revelação

Um descanso despido
de olhar sensual
e colo desperto,
em sedas cerrado.

Anseios despojados

150
sobre umbigos alheios,
num confortável desejo
de se expor ao olhar.

Tranquilidade nua
em beleza perfeita,
de intimidades segura
e de maravilhas tranquila.

É desnudar escondido
Em serena revelação.

Policial perfeito

Como num filme de espiões,


em estilo nouvelle vague,
ele fotografa discreto
uma janela insuspeita,
da composição que passa.

Mas há uma sombra fugaz,


com um chapéu masculino,
que se projeta no vidro,
expondo presença inquietante.

Lá dentro, uma jovem


tranquila, olha para baixo,
como quem lê um livro
ou simplesmente desvia o olhar.

151
Mas, de costas, descobre-se
o alter ego do indiscreto fotógrafo:
outro homem sinistro,
de fato e chapéu film noir,
esconde intenções misteriosas.

Três personagens,
dois chapéus,
um só rosto
e uma sombra.
Um policial perfeito.

Sonhos milenaristas

Há na natureza humana
uma tendência irresistível
para projetar os sonhos.

Aspirações coletivas
a um futuro idílico,
um milénio espiritual,
um quinto império,
sociedades utópicas,
paraísos terrenos
místicos ou laicos.

Entre os que anseiam


por empíreos futuros,

152
há pacientes, entregues
a superiores desígnios,
e celerados, que não hesitam
em realizar pela força,
o que os céus e a terra
lhes negam ou adiam.

Mas de tanto ansiar


com quimeras igualitárias,
transformadas em pesadelos
reais e imaginários;

de tanto sangue derramado


em nome de ilusões e mitos;
de tanta fé depositada
em Deus, na ciência, no progresso;
o que restou afinal
das aspirações humanas?

O mesmo de sempre.
Ser humano é seguir sonhando,
aspirando ao impossível.

Centelha vital

Duas linhas paralelas


sulcam a neve branca,
com uma árvore solitária
por única testemunha.

153
O terreno é totalmente plano
e as linhas seguem
paralelas até ao infinito.

O céu, absolutamente limpo,


como a neve por baixo dele,
gradua do azul frio ao suave laranja,
de fim de tarde invernal.

Numa paisagem tão vazia,


tão atrozmente despida,
a solidão daquela árvore nua
enche-se de simbolismo.

É o único sinal visível de vida.


A certeza da preciosidade,
da raridade, da imprescindibilidade
dessa frágil e fugaz centelha vital.

Divino cenário

Uma curva, suave e poeirenta,


na planície, a perder de vista,
por entre mato, que se estende
até ao horizonte longínquo.

Por cima o céu,


enorme, sumptuoso.

154
Riscado e tufado
de nuvens brancas,
pintadas na mestria
de um perfeito artista.

Entre a planura da terra,


e a grandeza dos céus,
opressivamente bela,
como poderia o homem,
na sua insignificância,
evitar o misticismo
e aspirar juntar-se
a tão divino cenário?

Infância marcada

Meia dúzia de limões


que lhe tombam
das mãos pequenas.

Um plástico fino
a improvisar proteção,
da intempérie da chuva.

Um olhar triste,
suplicante e profundo,
para quem o surpreende
naquele périplo incómodo.

155
Uma infância marcada,
que vai buscar redenção
no resto da vida.

Rumo ao desconhecido

Parte matinal,
insegura entre a névoa.
Ofuscando o comboio,
chegam fortes, o fumo e a luz,
escasseando a visibilidade.

O ruído inunda a estação


e ela sozinha,
cega, surda e muda,
entrega-se apática,
conformada ao destino.

No seu vestido decotado


e boina vermelha,
baixa-se, lentamente,
e agarra a mala pesada,
rumo ao desconhecido.

Chapéu Vermelho

Negro.
Escuridão absoluta.
Afasto-me lentamente

156
e vislumbro traços,
sombras, riscos.
Uma silhueta disforme
que lembra borrões de tinta
sobre um fundo azul noturno.

Continuo a afastar-me
e o contorno revela uma árvore.
Primeiro uma copa,
depois ramos despidos
e finalmente um tronco fino,
que se une com outro e mais outro,
até perfazerem um tronco normal.

Por baixo da árvore


um chapéu vermelho,
enorme, berrante,
um grito contra a árvore sombria.

Debaixo dele um pequeno vulto,


decapitado pelo chapéu.
Sombra humana parcelar,
indefinida, até no género.
Uma base para um largo chapéu
vermelho infernal.

Suportando o vulto, uma margem,


fina, prolongada, obscura,
revelada por um reflexo,
num espelho de águas calmas.

157
Por debaixo outro vulto,
outro chapéu vermelho,
outro tronco ramificando,
outra copa sombria,
outro negrume.
São águas tranquilas,
imagem noturna de sombras
que se erguem, acima delas.

E no topo de todas,
que é também o fundo das águas,
coroando a margem,
agora elevada a península,
nuvens de prata,
iluminando os céus
pelo brilho, que se adivinha
de uma lua ausente.

Nessa altura, fecho os olhos


e regresso à escuridão primordial.
Mas desta vez marcada,
indelével no pensamento,
por um chapéu vermelho,
da cor do inferno.

Santo Campo

Uma pena branca flutua

158
pelos ares rústicos de uma quinta,
sobre um velho casal de camponeses.

Ela usa um lenço vermelho na cabeça


e tem um cesto de ovos nas mãos.
Ele veste um pesado gorro de lã
e apoia a velhice num cajado,
que equilibra no apoio instável
das duas mãos rugosas e calejadas.

Em ambos a mesma expressão:


tristeza, cansaço, resignação.
Ao fundo uma serra coberta
de belas árvores outonais
e uma singela casa de campo,
rodeada de um muro de pedras.

Uma velha roda de madeira


encostada ao muro da casa,
espera, pacientemente,
a reparação que tarda.

Mas as profundas olheiras


dos velhos camponeses
dão-lhe a inevitável resposta:

Esgotado o tempo do ser


há que seguir a eterna viagem.
Assim que a leve pena da vida tombar
no chão pesado do santo campo.

159
Lanternas no rio

Miríade de luzes sobre as águas,


lanternas acesas na noite fluvial.
A sua luz faz renascer o dia
em múltiplos sóis de verga,
que flutuam no ar, suspensos,
alimentados pela magia do fogo
que no seu âmago cintila.

Uma velha ponte de madeira


atravessa o rio, ricamente iluminado.
Uma casa a seu lado, também de madeira,
assiste ao milagre inaudito
da multiplicação dos sóis.
Magia dos espíritos, evocada a preceito
para pasmo de forasteiros.

Medusa redimida

Escorrem ribeiros negros


dos cabelos serpenteados
de uma mulher.
Como sangria de luto,
que corre desenfreada,
rumo a um futuro marcado.

Os olhos estão baços


e o rosto pintado

160
exibe cores festivas,
que os cabelos desmentem.

Uma madeixa chegaria


para matar os amores
votados ao abandono.
Medusa decapitada
em busca de redenção.

Torre de babel

Na moderna mitologia
todos gritam necessidades,
em torres de Babel partilhadas
feitas de línguas diversas.

A torre do céu eterno


é feita de madeira e lata,
de povo migrante unido
na busca da eterna Babel.

Nesta moderna torre


a desunião é total
e por mais alto que subam
a torre só alcança o inferno.

Na cidade dos pobres

Na cidade dos pobres

161
vive-se na rua.
Há sempre gente sentada
a vender qualquer coisa.

Há crianças que correm,


meio vestidas ou por vestir,
de um lado para o outro.

Há gente que passa


e cumprimenta quem está,
deixando respeitos
pelos ausentes.

Há roupas estendidas
que atravessam as ruas,
refrescando os transeuntes.

Há oficinas que estendem,


pelo meio da via,
os trabalhos em curso,
as ferramentas pausadas
e os transportes pendentes.

Há regateio de preços
de tudo o que se vende
naquela urbe agitada.

Vida exaltante e exaltada,


num corropio constante
de quotidiana sobrevivência,

162
na cidade dos pobres.

A dança

Agarro-te firme,
sinto o calor do teu corpo
e a pele sedosa
das tuas mãos de criança.
Junto-me à leveza
da tua roupa ligeira
e entrego-me à música.

Enquanto durar a dança,


suspende-se o tempo,
fundem-se os seres,
esbatem-se as imagens
e somos um só corpo,
em movimento perpétuo.

Entre o Tudo e o Nada

Caminho solitário
entre a vida e o abismo,
como uma árvore
solitária, debruçada
sobre a névoa
de uma ravina desconhecida.

Há um estreito caminho

163
entre a vida e a morte,
entre o tudo e o nada,
entre a terra segura e o precipício.
Temos pernas para andar
e temos olhos para ver.
Teremos cabeça para pensar?

Antes que a noite comece

Antes que a noite comece


há indecisões a tomar,
medos a conquistar,
inseguranças a ultrapassar.

Antes que a noite comece


há trabalhos inúteis a fazer,
conversas sem nexo a trocar,
acusações sem sentido a atirar.

Antes que a noite acabe


há que esgotar os sentidos,
que mitigar frustrações,
que vivenciar múltiplas vidas.

Porque quando a noite acabar,


no regresso adiado ao banal,
enfrenta-se a realidade diurna
onde o sonho não tem lugar.

164
Vês o meu coração?

O espelho da vida
reflete imagens
construídas a medos,
ansiedades e frustrações.

Na beleza copiada,
de capa de revista,
no estilo irreverente
da reverência aos outros,
enconde-se a realidade.

Nos olhares pintados


que buscam desejos,
nas formas esculpidas
que anseiam amores,
nas roupas despidas
que rompem pudores,
há uma só pergunta
que fica suspensa no ar:

Vês o meu coração?

Destroços da noite

Os destroços da noite
dão à costa
em frente ao espelho,

165
na manhã seguinte.

Entre as artes perdidas


e as roupas ausentes
irrompe frenética
a realidade oprimida.

Os anos regressam
e pesam insuportáveis.
Os medos impõem-se,
apoiados na ressaca.

Há que limpar os escombros,


recompor as ruínas,
juntar os restos da devastação
para enfrentar o dia
e sobreviver até à próxima noite.

A poesia do movimento

Como pássaro que voa


ela paira suspensa no ar,
numa elegante leveza
que desafia a gravidade.

Os seus membros alados


elevam-na aos céus etéreos,
na graciosidade de fêmea
que fascina e enleva o olhar.

166
Como ela, as suas roupas
esvoaçam, leves e soltas,
acentuando o encanto
numa insinuante sensualidade.

Também os cabelos airosos


acompanham a dança,
emoldurando, tempestuosos,
a perfeita serenidade do rosto.

Os seus seios túmidos


insinuam-se orgulhosos
naquele voo orgíaco,
de bacante festividade.

Eis a prova indesmentível


da feminidade da dança.
O erotismo das suas formas
é a poesia do movimento.

Eva renascida

Uma ninfa alvissima,


de longos cabelos
e pele dourada,
em pose de pequena sereia,
agarra a cabeleira loira
que lhe escorre pelas costas.

167
O seu corpo felino,
alongado e despido,
equilibra-se numa perna
assente atrás das costas,
que lhe expõe, infantil,
um pequeno pé sensual.

Ela entrega-se prazerosa


à voluptuosidade alheia,
ciente do poder de sedução
irresistível do seu corpo.
É Eva renascida
oferecendo a maçã a Adão.

Sozinho

Sozinho,
na estrada de pedra,
caminho sem tempo
de aldeia perdida.

Sozinho,
na sombra infindável,
do sol poente
de um dia de Verão.

Sozinho,
na infância vazia,

168
de pobreza repleta
no abandono do campo.

Sozinho,
caminha em frente,
confiante no futuro
de quem nada tem a perder.

Voyeurismo

Na selva urbana
os cartazes brotam das paredes
por geração espontânea.

Vigiam atentos
os citadinos que passam
sem sequer os verem.

Há olhos escondidos
entre a publicidade
que se atropela nas paredes.

Há quem veja sem ser visto


quem passa anónimo,
pelas ruas da urbe.

O conforto do anonimato
nas cidades grandes
acabou em definitivo.

169
Esta é a era do voyeurismo.

Torres fumegantes

As chaminés das olarias


elevam-se na cidade cinza
como gargalos de garrafas,
fumando, descomunais,
intermináveis charutos.

O fumo que expelem


entranha-se abundante
nas névoas, nas sombras,
no vento, no sol, na chuva,
na pele, nos cabelos,
nas roupas, nas ruas,
nas vidas e nas mortes
quotidianas do burgo.

As casas pintam-se
da cor do fumo,
por dentro e por fora,
tal como as pessoas
que passam soturnas,
entre baforadas negras
que lhes sugam a vida
a troco de um magro
e miserável sustento.

170
Cidade e habitantes
sucumbem, soterrados
entre os gases regurgitados
das torres fumegantes,
até ao último estertor.

Este é o verdadeiro inferno


que nenhum profeta anunciou.

Um balão

A magia de um balão
é um mistério da humanidade.
Aquela intumescência leve,
que flutua no ar,
é um encantamento
que ultrapassa o tempo,
percorre gerações
e revive eternamente
na imaginação infantil.

É o apelo da simplicidade,
o domínio do imprevisto,
a elegância do movimento,
mas também seguramente
o equilíbrio frágil
entre o tudo e o nada,
entre o poder do encanto

171
e a eminente destruição
numa assustadora explosão.

O rebentamento da bolha
é a certeza incontornável
que sempre desilude,
que sempre surpreende,
por mais que a experiência
nos ensine a sua inevitabilidade.
Por isso as crianças choram
quando rebenta um balão.
Por isso os adultos choram
quando uma vida acaba.

É o fim da ilusão
que nos comanda a vida.

Morrer de tédio

Sentados no cais,
dois jovens rapazes
contemplam os navios,
no trânsito do porto
de uma grande cidade.

O apelo do desconhecido
enche-lhes os sonhos.
A certeza das dificuldades
esvazia-lhes a alma.

172
Também eles, um dia,
gostariam de partir.
Para um qualquer lugar
onde as almas estão cheias
e os sonhos cumpridos.

Outros navios entram


no porto da cidade.
Igualmente carregados
de aspirações por cumprir,
de provações vencidas,
de esperanças renovadas.

No despender da vida
todos correm, em busca
do seu pedaço de paraíso.
Partir é nascer outra vez.
Ficar é morrer de tédio.

O salto

Há um jovem que salta


confiante, para a água
de um mar tranquilo.

No ímpeto de juventude
uma fúria de vida,
uma ânsia de experiência,

173
uma certeza de futuro
próprios da mocidade.

Aquele é um salto vindouro,


no desconhecido do mar
e no ignorado porvir.

Mas é um pulo pleno


de confiança, de certeza,
de anseio e do desejo
que enchem o ser juvenil.

É um arremesso temerário
ao mundo por descobrir,
na firmeza de quem
se arroga um direito inato
à felicidade de cada momento.

Zelo

Olhou receoso para a rua


em busca de sinais adversos.
Será que chove? Estará frio?
Um chapéu de chuva na mão
revela o zelo inquisitivo.

A dúvida é pertinente
mas o cuidado ineficaz.
O mundo é pleno de surpresas

174
e a vida permanente inquietação.

Não há precauções que bastem


nem diligências que tudo acautelem.
É necessário abraçar o risco,
assumindo que se vai molhar,
minimizando as consequências
mas familiarizado com elas.

Desvelo

Perdida em pensamentos,
planeia em segredo
as incertezas que vêm.

A casualidade da expressão,
de ligeira contemplação,
de cabelo apanhado,
de queixo apoiado na mão,
revela uma intimidade
que desarma o olhar.

Os pés descalços,
os ombros despidos
e as pernas cruzadas
elevam o íntimo ao sensual.

E a juventude da musa
completa a harmonia,

175
desvelando a paixão
num espectar deslumbrado.

Dualidades

Neste universo dual


há sempre um reverso
para cada anverso do ser.

Ao lado diurno, solar,


de pele luminosa
e lábios vermelhos,
de flores no cabelo
e olhar exultante,

sucede o lunar,
noturnal, sombrio,
da pele outonal
e a boca apagada,
de olhares dolentes.

Um não existe sem o outro.


Completam-se e dão-se
mútuo significado.
Porque não há alegria
que não conheça a tristeza,
nem melancolia
que não anseie a felicidade.

176
A sereia e os tucanos

Era uma jovem sereia,


de todas a mais bela.
Os cabelos longos e sedosos
escorriam-lhe o corpo
de encontro às escamas
que lhe completavam
a dual condição.

Na orla do mar,
junto às rochas batidas,
encontrou dois tucanos
e encantou-se com eles.

A sua plumagem colorida


e o voar incessante
completavam-lhe o ser.
Ela era mulher formosa
e era peixe que, veloz,
percorre as águas do mar,

mas o céu era dos tucanos


que voavam, esplendorosos,
nas suas asas às cores,
pelos ares ensolarados
daquela costa rochosa.

Então a sereia

177
estendeu os braços
e as mãos finas e delicadas,
aos pássaros encantados.

E ambos a elevaram
aos céus dos seus sonhos,
finalmente cumpridos
na sua plena existência.

Reencontro

Vislumbro a serenidade
de um olhar entre as sombras.
Olhos claros e profundos
num rosto perfeito de mulher.

A boca cheia, carnuda


é um beijo suspenso no ar.
O nariz pequeno e redondo
uma coroa na face de menina.

As sobrancelhas arqueiam,
como se interrogassem o meu olhar.
As longas pestanas convidam
a perder-me naquele ser.

Basta olhar um rosto


para justificar uma vida.
Comtemplá-lo ao acordar

178
é reencontrar a felicidade
todos os dias.

A sombra

Uma frágil linha oblíqua


divide o sol e a sombra,
a luz e a penumbra,
o presente e o passado.

Uma camisola infantil


pendurada num estendal,
projecta a silhueta no muro
exposto ao sol estival.

Contornos perfeitos
num muro em ruínas.
Lembranças dispersas
nos escombros da memória.

Aquela é uma sombra


no tempo que já passou.
Ficou gravada no muro
das recordações pretéritas.

Uma camisola tão efémera


quanto as trevas que esboça,
numa existência tão breve
quanto um dia de sol.

179
Olhares diferentes

Todos olham em frente,


no sentido progressivo
do caminho por diante.

Ou por conforto de olhar,


ou por curiosidade ansiosa,
ou por simples mimetismo.

Mas será que a viagem


não tem mais a oferecer
a quem olhar para outros lados?

Não será que o percurso


merece serena contemplação,
em vez da ânsia da chegada?

Quem olha diferente


aprende a diversidade.
Quem olha o que todos vêem
não aprende nada de novo.

Triste amor

Num palco infantil,


regiamente vestida,
exibia-se uma criança

180
para deleite dos pais.

Momento de glória
de parentes e educadores,
exaltação pedagógica
para memória futura.

Mas no rosto sincero


do adorado infante,
via-se plasmada
a tristeza profunda.

Triste o amor
que se expressa
em lágrimas inocentes.

Triste a pedagogia
que ensina a submissão
e a coerciva obediência.

A casa da trepadeira

Havia numa aldeia


uma velha casa
com uma trepadeira.

A casa era antiga,


de porta minúscula
e janelas a condizer.

181
Fora construída outrora
para gente humilde,
na estatura e condição.

Não obstante, a trepadeira


era enorme e viçosa,
carregada de flores.

Se a casa envelhecia
a trepadeira revigorava,
indiferente ao tempo.

As pessoas passaram
e a trepadeira ficou,
decorando a fachada.

Ao longo dos anos


cobriu por inteiro a casa,
decrépita e abandonada.

Ficou assim definitivamente


a casa da trepadeira,
sua verdadeira dona e possuidora.

Conversa catadora

A interação social,
nas comunidades de símios,

182
passa pela indispensável
actividade do catamento.

Esta não serve apenas


de higiene individual,
constituindo o ponto alto
do convívio familiar e grupal.

Entre os homens ainda impera


este costume ancestral,
que em vez de catar parasitas
busca temas de conversação.

A função é idêntica, socializar,


bem como higienizar,
já não o corpo mas a mente,
partilhando medos e obsessões.

Mas a conversa catadora,


que nos oferecem a toda a hora,
é uma evidência incontornável
da simiesca natureza humana.

Névoas passadas

Caminhava sozinha,
em frágil equilíbrio
sobre a terra alagada,
com um intenso nevoeiro

183
a esconder-lhe o destino.

Protegida do frio,
por grossas roupas de lã,
e da lama, por botas
de invernal resistência,
alcançou um árvore solitária,
enorme e de perfil sinistro.

Se não estivesse sozinha,


pensou angustiada,
o percurso seria mais fácil,
repartido o medo,
partilhada a ansiedade,
disfarçadas as fobias.

Mas nascemos sós


e sós temos que seguir
enfrentando a existência,
por mais companhias
que juntemos pelo caminho.

Avançou então,
receosa mas decidida,
com as botas enlameadas,
por entre as brumas
das névoas impenetráveis,
para nunca mais voltar.

184
O milagre

Um escadote
no meio de um campo.
Duas crianças que brincam.

Um rapaz de chapéu de palha


segura a escada,
enquanto prepara a subida.

Uma menina de sombrinha


salta da escada,
de chapéu aberto, em paraquedas.

Será que ela flutua no ar?

Ele suspende a escalada


e contempla o salto.
Esperando o milagre.

Casa vazia

A solidão é uma casa vazia.


Olho o jardim pela janela
e lembro os tempos passados.

Uma casa são vidas,


tempos partilhados,
rostos e sons e cheiros.

185
Uma casa é gente,
refeições e conversas,
anseios e desgostos.

Uma casa são crianças,


são velhos e aniversários,
tradições de Natal e Páscoa.

Uma casa não são paredes


e salas e quartos vazios
e cozinhas nuas e frias.

Nada faz sentir mais só


que uma casa vazia
e olhar o jardim pela janela.

O mundo ao avesso

Num bairro pobre da cidade


um fato-macaco, num estendal,
pendurado ao contrário,
anuncia o mundo ao avesso.

É uma sombra sinistra,


de braços estendidos ao chão,
que parece pedir ajuda,
não aos céus mas ao inferno.

186
Um cartaz revolucionário
que lembra, a quem passa,
as injustiças do mundo
e a transitoriedade da vida.

É uma simples revelação


de quem tem trabalho sujo
e lhe sobeja a família
para poder lavar a alma.

O carrocel

Nas suas lembranças remotas


surgem recordações de infância,
com um carrocel junto à praia
e cavalos de madeira pintada.

Ela montava nos belos animais,


de cores vivas e muitos dourados,
segurava as suas crinas macias
e rodopiava toda a noite sem parar.

Lembrava as gargalhadas que dava,


as tonturas que sentia, de tanto rodopiar,
os olhares carinhosos dos pais
e a alegria contagiante das outras crianças.

Ao lado as ondas marujavam.


Mesmo quando o sol se apagava

187
e o mar ficava invisível aos olhos,
restavam as ondas a relembrá-lo.

Mas um dia o carrocel desapareceu


e por essa altura a sua infância acabou.
Agora que pensa nisso, parece-lhe
que uma coisa foi consequência da outra.

Gostaria de voltar a andar de carrocel,


mesmo sem ter os pais a admirá-la,
mesmo sem ouvir o mar de fundo.
Bastaria voltar a ouvir a alegria das crianças.

O deserto vermelho

Como no velho filme de Antonioni,


ela percorria um deserto vermelho,
na sua solidão, sempre elegante,
de mãe e esposa doutrinada.

A travessia parecia interminável,


quando surgiu um desconhecido,
atraente, distinto, ousado,
um oásis verde, na aridez das areias.

Nuvens negras convergiram no horizonte


bem por cima daquele idílico valido.
Ele seguia resoluto, sempre adiante,
e ela mantinha, com dificuldade, a distância.

188
Chegou então o tempo das decisões,
a resolução do tudo ou nada pendente:
Seguir e enfrentar as tormentas
ou regressar ao conforto do deserto?

Marcas

Paredes brancas, caiadas,


paradas no tempo.
Porta de madeira, velha,
pintada vezes sem conta.
Escada de pedra polida,
gasta pelo uso multissecular.
Uma pequena floreira no topo,
marca a presente geração.

A menina dos doces

Passa uma menina


com um tabuleiro
de doces na cabeça,
enquanto, gulosa,
come, ela própria,
um do doces.

Um rapaz observa,
pela janela de casa,
a menina passando

189
e comendo doces.
O seu olhar expressa
um desejo ardente.

Ficamos sem saber se


pelos doces do tabuleiro
ou pela menina que passa,
lambuzando-os gulosa.

Sonho

À beira da estrada,
uma placa pequena
indica o caminho
para uma aldeia perdida,
de nome insólito, Sonho.

As flores silvestres,
fulgurantes na berma,
envolvem a placa,
impedindo, sem esforço,
a leitura a quem passa.

Fiquei na dúvida:
será o sonho tão perfeito
que queiram manter
os outros à distância?
Ou terá caducado,
virado talvez pesadelo

190
e entregue ao abandono?

Poesia

Alguém escreveu
que a poesia salvará o mundo.
Eu preferiria escrever
que salvará a humanidade.

Não há como resistir


ao tédio, à banalidade, à injustiça,
sem um pouco de poesia.

Quem aspira à mundanidade integra-se,


esconde a cabeça na areia
e tenta enriquecer, como os outros.

Quem aspira à humanidade


ou recorre à poesia
ou morre infeliz.

Caminhos inóspitos

Caminhos de rocha negra,


entre formações modeladas
de cores redondas, surreais.

Paisagem quase horizontal,


de seixos enormes, mestiços,

191
com o mar ali tão perto,
construindo rochas escuras
entre espumas brancas,
no batente das névoas soturnas.

Carreiros de pedras imensas


e inóspitas, que sobressaem
pontiagudas, desde muito longe.

Praias tristes de suprema beleza


que elevam a tranquilidade do mar.
Montanhas carregadas de negro,
coroadas por entre as nuvens.

Nuvens de arroz

A mulher de barro
caminha em carreiros,
de sachola no arrozal.

Nas mãos em socalcos,


as nuvens de cultivo
mais o céu refletido.

Lagos em tons claros


separam o azul do céu
do branco do arroz.

Com passos decididos

192
ela percorre as nuvens
em busca de sustento.

Templo das águas

Um templo solitário
no meio da existência,
refletido nas águas,

abençoa os caprichos,
de idade provecta,
da natureza hostil.

Permanece firme
na elegante dignidade
da beleza intemporal.

Um marco de pedra
na idade do tempo,
no meio do lago.

Ameaça

Um jogo de sombras
num túnel escuro
da uma velha cidade.
Um transeunte incauto
encara inseguro
uma ameaça que paira.

193
Abrupta e assustadora
ela revela-se atroz.
Mas não é mais
que uma sombra,
uma ilusão terrível
de fértil imaginação.

Constata assim que,


quase sempre,
o homem é a única
verdadeira ameaça
a si próprio.

Ao sol de outono

Deitado na relva
contemplo o céu brilhante
de uma tarde de Outono.

O verde claro da erva escorre,


como mel derretido,
para as águas calmas do rio.

As árvores vermelhas
que vejo ao longe, no jardim,
estão nuas ao sol de Outubro.

Os azuis e amarelos do céu

194
confundem-se, em pinceladas
de um quadro de Van Gogh.

Eu fecho os olhos,
respiro fundo
e dissolvo-me na paisagem.

O quarto aberto

Num quarto aberto,


uma janela sombria
e um belo rosto olhando,
de fora para dentro.

A cidade quadrada
aparece rubra, nas torres,
com raios de luz brilhante
intercalando os prédios.

As janelas indistintas
são semi-povoadas
por vultos azulados,
olhando ecrãs de televisão.

Um reflexo da luz urbana


penetra no quarto, às escuras,
e fende o soalho em dois,
deixando entrar a cidade.

195
Consciências sangrentas

Um touro morto
tombado no chão
de uma rua de aldeia.

Uma mulher de luto


lava o chão ensanguentado
com uma mangueira.

Duas crianças pequenas


assistem apreensivas
a este cenário de morte.

A violência brutal
como um acto banal
que percorre gerações.

As consciências, que não se limpam


tão facilmente como o sangue
dos animais mortos nas ruas.

O velho leitor

Um velho lê o jornal
sentado nas pedras,
amontoadas num estaleiro
de construção urbana.

196
Por detrás de si a cidade
eleva-se em andaimes,
em tijolos amontoados,
em paredes por rebocar.

Uma cidade em potencial,


que se materializa lentamente,
em novas construções
que se erguem, dia após dia.

No entretanto, sentado,
o velho lê como habitual,
aguardando serenamente
o progresso por publicar.

O gato voador

Suspenso no céu,
sobre ruas vazias
e entre muros de pedra,
um gato eleva nos ares
o seu destino felino,
rasgando névoas matinais.

Mesmo sem asas,


é um gato que voa!
Cruza seguro a rua,
sobrevoando o banal
e atingindo o espanto,

197
na memória gravada.

Rainha do mar

Deitada na orla
da areia do mar,
sente o corpo
molhado das ondas.

A frescura das águas


e o saibro encharcado
acariciam-lhe a pele
e aquecem-lhe o ser.

A espuma marinha
enfeita-lhe a figura,
coroando-a rainha
de oceanos fecundos.

Na ponta dos dedos

Mãos efémeras
desenham sonhos
sobre a água.

Formas dançantes
em ondas de paixão,
anéis de vida.

198
Construções fugazes
em toque singular,
espelho de sentimentos.

Bailado de dígitos
que emana em círculos
de sensorial beleza.

Realidade imaginada
de sentidos despertos
na ponta dos dedos.

Caminho deserto

Caminho deserto
sobre as águas
de cor flavescente.

À luz crepuscular,
de candeeiros acesos
por entre as sombras.

Fiada de casas
de formas perfeitas
e cores alternadas.

Silêncio de morte
em teatro de vida,
suspenso no tempo.

199
Calçadas antigas

Calçadas antigas,
de pedra polida,
onde se cruzam
velhos sem tempo.

De negro vestidos
entre casas brancas,
caiadas ao sol
das ruas vazias.

Igrejas arcaicas
em rampas remotas,
galinhas à solta
por escadarias íngremes.

Bons dias cantados


à aurora dos dias,
tardes descansadas
no crepúsculo da vida.

Jardim de luz

Entre névoas matinais


há quem se sente,
no jardim, a ler um jornal,

200
e há quem apenas passe,
por entre os gélidos
ares, velados de branco.

Neste jardim de luz


a cidade é uma sombra,
recortada no horizonte,

e as árvores despidas
agasalham os espíritos
dos solitários passantes.

Chegada ao paraíso

O lago era o espelho


de um céu azul brilhante,
mesclado de branco algodão.

No meio do anil celeste


surgia uma ilha nevada,
miragem entre nuvens etéreas.

A pequena ilhota celeste,


coroada pela torre da igreja,
expunha uma aldeia nas águas,

ao lado de uma montanha,


de cumes repletos de neve,
que estendia o arvoredo até ao lago.

201
Cenário de beleza sublime
que anunciava ao viajante
a chegada ao paraíso.

Eterna saudade

Perdidas no tempo
das mortes passadas
erguiam-se cruzes,
escuras e pesarosas,
por entre o mato
do abandono dos vivos.

Mas eis que do nada


surgem vultos negros,
de velhas mulheres
em cortejado louvor.
Ansiãs pungentes
que lembram finados
em choros cantados.

Mães, filhas, viúvas


exprimem amores antigos
em lutos pesados,
demonstrando enfim,
por entre o silvado,
a eterna saudade
de quem está distante.

202
A noiva

Uma noiva com ares de menina,


vestida de branco sujo e pobre,
um ramo de flores silvestres na mão,
demonstrava a alegria possivel
num rosto sofrido de camponesa,
a um indiscreto fotógrafo do evento.

Por detrás da pose matrimonial


uma casa de madeira antiga, de aldeia,
com duas janelas, quase em ruínas,
onde assomavam outros tantos rostos
de inquisitiva curiosidade feminina
ao especial acontecimento festivo.

Uma velha matrona, de ar cansado,


com a cabeça velada por um lenço,
exprimia alegria, contida num esgar,
quiçá da memória da sua boda remota.
Lembrava talvez, com alguma ironia,
as ilusões contidas naquele ato solene.

Uma mulher sem beleza a ostentar


e com a frescura juvenil esgotada,
olhava também, com espanto encalhado,
o destino daquela núbil pubescente,
com a inveja estampada no rosto
de quem se sente credora da sorte.

203
Alheia a tudo o que se passava
atrás do seu dia de casamento,
a menina sorria ao fotógrafo
hierática nas vestes angelicais,
de campesina em dia de enlace,
com o coração pleno de esperança.

Na aurora do amor

No calor velado
da intimidade da dança,
do desejo fugaz,
do abraço terno,

um olhar que expõe


paixões ocultas,
invejas reprimidas,
amores secretos.

Outros, envergonhados,
beijam-se e tocam-se,
amam-se fingidos,
na descoberta da paixão.

Na aurora da entrega,
de sentidos dispersos,
há que refinar a escolha
para a parceria perfeita.

204
Destino fatal

Sozinha no quarto
da sua infância,
ainda mal acabada,
ela lê atenta uma carta.

Na pose madura,
nas roupas elegantes,
no cabelo apanhado,
ela é uma mulher
de ar casadoiro.

No rosto infantil
de sonhos incumpridos,
nos medos ocultos,
ela é uma menina
que quer ser amada.

No contraste do ser
que ainda o não é,
a leitura de uma carta
anuncia o destino fatal.

Os Despojos da feira

Os despojos da feira
são um parque infantil,
aberto à imaginação

205
das crianças de sempre.

Ao levantar do cerco,
ao acertar das contas,
ficam os restos da festa
espalhados por entre as ruas.

São caixas e caixotes,


disposições imprevistas,
tudo serve o engenho
da criatividade juvenil.

Ontem como hoje e sempre


às crianças encanta a surpresa,
a desconformidade às normas,
por isso preferem a caixa ao conteúdo.

Roupas Estendidas

Há roupas estendidas
à porta dos citadinos,
que exibem misérias
sem pudor ou desonra.

Em terras de canícula
o sol está para a roupa
como a chuva se ancontra
para os maus humores.

206
Pelo que mais vale
expor vergonhas à janela
que mostrar a sujidade
à vista da vizinhança.

Bem bastam os enxovalhos


que a existência nos impõe.
É de cara e roupa lavada
que melhor se escondem as almas.

A Alcova Sombria

Entrou num quarto escuro,


que aos poucos se alumiou,
e entre as obscuridades
encontrou os seus medos.

As paredes eram de pedra,


rústica e sem polimento,
as mobílias velhas e usadas,
cobertas de pós antigos.

Mas o mais impressionante


foram os objectos dispersos,
um espelho de ar sinistro
que refletia um maléfico vazio,

um pote de loiça estranho,


com uma cabeça monstruosa

207
a servir-lhe de topo e tampa,
sabe-se lá a guardar o quê?

E sobretudo uma cadeira de verga


com uma hedionda máscara
de um demónio vermelho em cima,
de longas barbas e chifres na cabeça,

com os cornos pintalgados


e os olhos pintados de branco.
Benzeu-se e saiu correndo
fugindo ao horror sentido.

Aquele aposento não era de gente,


temente a Deus e aos anjos,
era o antro do cão maligno,
Belzebu, escarrado e cuspido.

Lágrimas escritas

Sentada num banco


da estação ferroviária,
ela escreve uma carta
desfeita em lágrimas.

Passam soldados,
passageiros tardios,
compradores de jornais,
olhares estranhos e penosos.

208
Ela esconde o rosto sofrido
onde escorrem lágrimas
que ninguém quer secar,
que antes preferiam não ver.

Não há uma mão estendida


a prometer um carinho.
Não há uma voz amiga
a suplicar desabafos.

Neste mundo egocêntrico


estende-se um deserto sentimental,
um desprezo pelas tristezas alheias,
um pudor pela solidariedade.

Pudesse ela dizer de viva voz


o que escreve oprimida,
talvez a tristeza a abandonasse,
talvez o mundo lhe sorrisse.

Na praia deserta

Na praia deserta
num Outono chuvoso,
ela passeia sozinha,
de sombrinha na mão,
por entre gaivotas
que voam em círculo.

209
Desce a rampa vazia
do salva vidas ausente,
rumo às aves marinhas
que, em bando desordenado,
se apropriaram da praia,

Contempla as nuvens, no céu


carregado e a prometer chuva,
e abre o chapéu vermelho,
rumando graciosa ao areal.

Descalça os sapatos
e enterra os pés na areia,
húmida da maré e da chuva.
Lentamente caminha
em direção à beira do mar.

Sente os pés molhados


da água fria e salgada,
observa a praia vazia,
ouvindo atentamente
o crocitar dos pássaros,
e sorri de felicidade.

Ao sabor da corrente

Não adianta evitar a deriva


quando se tem por destino

210
seguir simplesmente a corrente.

Se alguns anseiam lemes seguros


e rotas planeadas com precisão,
outros sentem prisão nas cartas
e nos cálculos antecipados a rigor.

A vida é feita de surpresas,


mesmo para quem as tenta evitar.
Por mais elaborados os planos
a sorte determina o sentido
do curso imperturbável da vida.

Melhor será abraçar a fortuna


e aproveitar a ventura da direção,
que nadar contra a correnteza
e acabar morrendo afogado.

Felicidade instintiva

Portadas de madeira
de tábuas grosseiras,
cruzadas, rústicas,
de veios salientes
e amplas rachaduras.

Duas mãos em cima,


outras duas em baixo.
Mãos pequenas,

211
mãos de crianças
de infâncias ausentes.

Um olho espreita
entre as mãos superiores.
Um pequeno rosto
vislumbra, numa racha
inferior das madeiras.

Há um esgar divertido,
de bochecha saliente,
nos rostos infantis.

Assim se infere que,


na miséria e na infância,
nada consegue conter
o instinto de viver feliz,
sem olhar adversidades.

Aspirações

Numa rua empedrada


e parada no tempo,
entre um salão fechado
e uma pensão aberta,
uma menina e um cão,
sentados na calçada,
contemplam a via
completamente deserta.

212
A menina, pensativa,
olha sem rumo
esperando o futuro.
O cão olha só para ela
e entrega-lhe uma pata,
que ela segura agradecida.

Se a atenção humana
se dispersa em ideais,
remotos e fugidios,
já a do cães se concentra
em quem lhes dá
o conforto do sustento
e a presença duradoura.

O humano aspira à grandeza,


enquanto o cão, mais pragmático,
contenta-se com a felicidade.

Vapores da noite

Nos vapores da janela


escorrem gotas de chuva
entre sombras luminosas.

Das ruas da cidade


chega um perfil desejável
de uma esbelta figura feminina,

213
de altos cabelos afro
e longos dedos finos
de modelo de revista.

Névoas envolvem-lhe
os lábios quentes de paixão
e os olhos semicerrados,

do desejo expresso
de quem quer provocar
desejos ocultos.

É um fantasma esculpido
nos vapores de uma noite
húmida de inverno,

que não me deixa dormir.

Nem só de pão

Por entre ruas cinzentas


de passados sombrios,
um jovem de ar cansado
carrega um tabuleiro de pão.

No seu ar miserável
andrajoso e triste,
na sua solidão latente,

214
nas ruas de vida ausente,

no seu olhar distante


de olhos quase fechados,
de quem esconde a vergonha
de uma vida sem sonhos,

podemos concluir, sem receio,


que nem só de pão vive o homem.

Felicidade escondida

Numa poltrona verde


senta-se magnífica,
no meio do colorido
das suas roupas festivas.

Ao lado uma selva,


com araras matizadas,
tucanos e feras pintalgadas,
entre a vegetação tropical.

No chão um tapete persa,


de sumptuoso policromo,
que lhe aconchega os pés
em oriental exotismo.

No rosto, apesar do rubor


que lhe pinta, radiantes,

215
as bochechas juvenis,
um pesaroso olhar de tristeza.

Não será assim entre a opulência,


a orgia da festa e da cor
ou a ostentação impúdica,
que se encontra a felicidade.

Olhares despidos

Um rosto oriental ansioso,


entre sombras desenhado,
de belos traços exóticos,
olha-me inquisitivo,
quase condenatório,
como se o meu olhar
lhe causasse ofensa irreparável.

Passam palácios e minaretes


pela janela cinzenta de viagem.
Cruzo continentes desconhecidos
e apaixono-me pela diversidade.
Olho esperançoso o rosto feminil,
aguardando um sinal prazeroso,
um sorriso afável, talvez sedutor,
que lamentavelmente não surge.

Sigo a viagem solitário


entre as cinzas do meu desejo,

216
aquecendo o frio da ausência
no calor das possibilidades,
mesmo que incumpridas.

Jovem cigana

Jovem cigana
de pele trigueira,
de tranças negras,
de longas saias
e blusa decotada,
que um xaile mal cobre.

Com um olhar profundo


de quem vê o futuro
com artes de feiticeira;
de mãos adornadas
com jóias de profana beleza
que te exaltam a feminez.

Perdida nos campos,


de velhos caminhos,
onde sonhos novos
enchem os percursos
trilhados a custo,
ao sol e à chuva.

Quantos caminhantes
levarão consigo anseios

217
da tua graciosa juventude?

Caminho ascendente

Subo, infindável,
uma longa escada,
carreiro ascendente
coberto de neve.

Entre árvores nuas,


vestidas de branco,
percurso cinzento
de alva moldura.

Catedral esculpida
por ramos cabelos,
negros de inverno,
de frio e de paz.

Caminho solitário,
a gelo aquecido,
por sombras diurnas
de eterna beleza.

Viagens felizes

Viagens afortunadas
de quem tem na rua
a sua morada.

218
Percursos audazes
de quem sobrevive
à singularidade do dia.

Caminhos pacíficos
de quem encontrou
as ruas vazias.

Paragens sadias
de quem se alimenta
da vida dos outros.

Chegadas felizes
de quem se contenta
com uma nova jornada.

Dádivas luminosas

Cascatas de luz celeste


tombam sobre a grande estação
e inundam de espuma etérea
o quotidiano dos viajantes.

Indiferentes, os transeuntes
percorrem os passos perdidos
das passagens banais,
das conversas frívolas,
das urgências fúteis,

219
alheios à benção luminosa
que jorra incessante dos céus
e que enche de vitalidade
o milagre de cada dia.

A luz, como a vida,


são dádivas à humanidade.
Devem ser gozadas
com a sofreguidão própria
de quem se sabe condenado
à eternidade das trevas.

A cortina e a mesa

Uma cortina flutua


num quarto vazio,
onde uma velha mesa
se ergue sozinha.

É um véu diáfano
que estende a luz
da janela às trevas
do quarto deserto.

É uma mesa reclusa


que esconde o exílio
interior, da vida secular
que acompanha o sol.

220
A cortina esvoaça
sobre a mesa arredia
e limpa-lhe o pó
da solitude perene.

A cidade invisível

Horizonte nublado,
fumado, aerófano,
onde se distinguem
silhuetas sombrias
de igrejas e catedrais.

Torres e zimbórios,
cúpulas e coruchéus,
erguidos aos céus,
proeminentes, altivos,
distantes da terra.

Invisíveis aos homens,


que se escondem
nas neblinas e fumos,
entre os eflúvios deletérios
da cidade invisível.

Em tons de sépia,
de passado remoto,
se evocam memórias,

221
vislumbres de morte,
abandonados ao tempo.

Caminho de paz

Sigo entre nuvens


do mais puro cândido,
sem ver o caminho,
de tão luminoso.

Marcado por mastros


de fios esticados,
condutores de vidas
por névoas perdidas.

O silêncio impera
nos ermos caminhos,
de branco pintados,
num convite à fé.

A paz do percurso
esconde-se na entrega
às névoas silentes
que conduzem as almas.

Mas entre a paz nevoada


e a guerra das sombras
prefiro desfazer tréguas
e enfrentar a realidade.

222
Floresta hibernal

Caules, troncos, ramos


brotam da terra húmida
entre nevoeiros invernais,
rumo aos céus nebulosos
das copas verdes ausentes.

Como serpentes hieráticas


contorcem-se, no espaço
desfocado dos dias curtos,
de longas brumas intensas
entre clarões luminosos.

Perco-me nas rugosidades


da cerradissima floresta,
enquanto as seivas correm
e os frutos são concebidos,
em orgíaca e ritual natureza.

Laboratórios de gente

São edifícios de madeira


em escombros periclitantes,
onde pulsam vidas imensas,
vibrantes na sobrevivência.

Há sempre roupas estendidas

223
e crianças, que pulam em magote.
Não faltam também os sorrisos
entre os que nada mais têm a oferecer.

Mulheres jovens mas consumidas,


com crianças mais pequenas ao colo,
trocam entre si vivências miseráveis
com os maridos sempre ausentes.

As crianças, como as progenitoras,


agrupam-se em vivaz socializar,
de jogos e brincadeiras de pobres
que antecipam já a inevitável partida.

São laboratórios vivos de gente


onde se experimentam traquejos.
Quando se não extinguem pelo caminho,
forjam-se beatos, plutocratas e maiorais.

Sombras banais

Ondas cruzadas
de linhas espessas
e de sombras finas.
Labirinto de formas.

De curvas e retas,
claras e escuras,
por pedras antigas

224
e lajes recentes.

Pedestres ausentes,
presentes olhares,
no mundo assimétrico
das voltas trocadas.

Passagem fugaz
de passos sem rumo.
Imagem irrisória
oferecida às musas

dos artistas banais,


que à míngua de artes
olham de viés
as bagatelas da vida.

Destinos nas sombras

Nas ruas de pedra


das terras antigas,
por vias silentes
em noites de trevas,

há vultos que passam


cantando sozinhos
as lendas perdidas
de passados distantes.

225
Nas pedras polidas
dos passos perdidos,
nas casas fechadas
das gentes ausentes,

nas plantas que trepam


paredes vazias,
há mortos que olham
os vivos que passam,

ansiando destinos,
aspirações frustradas,
negados na vida finda
e cumpridos nas sombras.

O mártir da ponte

A ponte era vasta


e a construção tardava.
Os operários trabalhavam
com afincado zelo,
mas de cada vez
que edificavam um pilar,
este desmoronava-se,
durante a correnteza da noite.

Alguém informou o sultão


Que era maldição do rio,
rogada por inimigos

226
que se opunham ao império.
Só um sacrifício humano
apaziguaria as águas fluviais
e permitiria a conclusão
daquela obra estratégica.

Escolheu-se então o ofertado


entre os trabalhadores incautos,
que foi emparedado vivo
no pilar amaldiçoado.
E ainda hoje o mártir
zela pela segurança da ponte,
que atravessa o rio Ujana
sob o seu olhar protetor.

Inspirado numa lenda albanesa descrita em "O Nicho da Vergonha" de Ismail


Kadaré

Invejas

Em cada percurso
público pela cidade
vejo cenários montados,
nas esquinas pedantes
das vaidades que passam.

Longe vão os tempos


das máscaras de ocasião.
Hoje não bastam a ninguém,
há que evidenciar mais,

227
um pacote completo.

O cenário exclusivista,
o guarda-roupa, os adereços,
as companhias perfeitas
e a imprensa cor de rosa caseira
a que se chamou redes sociais.

Só assim se monta o filme


do sucesso e do glamour,
da vida em festas constantes,
da profunda estupidez
das convicções militantes.

Assim se constroem vidas,


entre ilusões mediáticas
em chinela de trazer por casa.
Entre amigos fictícios
e conhecimentos virtuais.

Nada de novo debaixo do céu,


apenas novos meios de exposição
da mesma soberba de sempre.
Que atiça a inveja aos outros tolos.

A recriação do mundo

Há numa praia no Inverno


uma beleza primordial

228
de um mundo que renasce,
em cada dia e maré.

Entre a espuma branca


das ondas que rebentam
e trazem os despojos ao areal.

Estre as rochas que espreitam,


enterradas na areia molhada,
à espera que o mar as esconda.

Na luminosidade misteriosa,
que só o sol de Inverno tem,
numa praia deserta de gente.

Nas sombras projectadas


das pedras, das poças,
das algas, da espuma das ondas,
que nos transporta a imaginação
a um universo severo e primevo.

Entre o negro das rochas


e a claridade fria do céu,
o branco das ondas batidas
e o cinzento do areal inundado,
assim se recria o mundo,
quotidianamente na praia invernal.

229
Mortes

Há mortos que enterramos


na partida sentida da vida
e há mortos sepultados
na simples ausência esquecida.

Todos eles são fantasmas


que povoam a nossa existência.
Todos eles são lembranças
dolorosas dos dias passados.

E quando sucede nós próprios


morrermos, em vidas ausentes,
ou nos rendemos ao desespero,
ao vazio dos sonhos incumpridos,

ou nos lançamos, de corpo e alma,


nas covas profundas da morte,
incapazes de suportar, por mais tempo,
a dor mortal da eterna desilusão.

Na fila do trânsito

Olhares vazios
da espera prevista,
vidas paradas
na fila do trânsito.

230
Expostas em vitrine
a quem, como elas,
encalhou no percurso.

Faces de desespero
e rostos alegres;
fumos tabágicos
e vapores animalescos;
patrícios silentes
e vociferantes plebeus.

Passam desastres,
banais e distintos,
entre a chuva que cai
e a lama que espirra.

Há belas adormecidas
e lobos famintos,
gente que se diverte
e pobres desgraçados;

tronos de couro vestidos


e vãos de carrego,
entupidos de gente,

rumo à banalidade
de mais um dia frustrado.

231
Húmus

Os veios e cortes
que estalam a crosta,
rachada e gretada
de musgos e nós;

As cinzas que pintam


as cascas e fungos,
em rasgos expostas,
eretas e curvas;

As texturas agrestes
de árido orgânico,
queimadas do frio
e mirradas do sol;

Das árvores remotas,


de tempos arcaicos,
que esgotam de pé
as vidas hauridas;

Lembram aos homens,


no Inverno da vida,
os desgastes próprios,
marcados no corpo;

As peles murchas
curtidas, pintadas,

232
os brancos cabelos
quebrados, caídos;

Os humores gastos
esvaídos, esgotados,
as forças despedaçadas,
batidas, exaustas.

Pudéssemos nós, como elas,


morrer de pé dignamente,
em securas consumidos,
húmus regressado à terra.

Labirintos

As vielas e escadas
que sobem e descem,
caminhos antigos,
são labirintos cruzados,
vezes sem conta,
por quem busca a saída
das terras remotas;

Das paredes vetustas


que largam caliças
nas ruas de pedra;
dos oratórios de esquina
que abençoam passantes
(os poucos que ficam,

233
guardando passados
das terras vazias).

Das praças de outrora,


plenas de vidas,
de crianças brincando,
de velhos falando,
de amores intemporais,
restaram os dédalos
que aguardam audazes
que reinventem vivências
de terras futuras.

Viajante ancorado

Da janela do quarto
vejo as embarcações,
ancoradas no lodo
da maré vazante.

Também eu me sinto
encalhado em terra,
esperando ciclos
de águas renovadas.

Navego sem rumo


por mares profundos,
descobrindo refúgios
em terras distantes,

234
mas em cada regresso
ao cais de partida,
acabo na praia
atolado na areia.

Oxalá fosse viajante


sem porto de abrigo,
entregue à ventura
de cada destino.

Perdido na multidão

Perdido na multidão
intemporal da cidade,
em ruas cheias de gente
mas vazias de almas.

Percorro o eterno caos


dos que sempre passam,
apressados, na busca
do efémero, do nada.

Contemplo a azáfama
de um mundo que corre,
em busca de alguma coisa
que permita vencer a morte.

Entrego-me à corrente

235
incessante desta vida,
mas sem outras aspirações
que a descoberta da viagem.

Rapazes

Os rapazes serão rapazes


sempre e por toda a vida.

Mudam as roupas,
mudam os brinquedos,
mudam os ambientes,
mas não muda a natureza,
permanece a essência
da infância e da juventude.

A sede da descoberta,
a vontade de sobressair,
de liderar nos jogos,
de vencer tudo e todos.

A exibição gratuita,
quantas vezes cruel,
na construção do ego,
sempre deficitário.

A ânsia da competição,
que comanda este mundo,
perpetua a infância

236
dos rapazes,
ao longo da vida.

Este é um mundo de crianças


que competem sem freio
pela construção de egos,
eternamente vazios.

Cativeiro

Entre rochas negras


espreito o horizonte,
gelado e nebuloso,
sobre um mar furtivo.

Dois gigantes de pedra,


de soturna cor e presença,
guardam os mares velados
dos meus olhares indiscretos.

Um terceiro titã tombado,


vítima, talvez, do orgulhoso par,
completa o quadro latente
do mar obscuro, sonegado,

que em vão busco,


apesar do frio impiedoso,
para me libertar, enfim,
daquela costa sinistra.

237
Glacial inferno de bréu,
cárcere de guardas colossais,
desmesurados guardiães,
do meu infeliz cativeiro.

Deus omnisciente

Pairo sobre a cidade,


sobre as pessoas,
os pensamentos.

Voo sobre ilusões,


sobre desgostos,
os sentimentos.

Admiro as vicissitudes,
as sobrevivências
às realidades.

Amo as contrariedades
dos sonhos que fogem,
no quotidiano.

Regresso sereno
aos céus etéreos,
da eternidade.

Deus omnisciente,

238
que tudo conhece
mas nada faz.

Passados

Encontros e desencontros
sucedem-se na vida,
enchem os momentos
de paixões e desgostos,
mas todos terminam
no velho baú das memórias.

Há quem releve com ligeireza


as reminiscências do passado,
conformado com a sua irreversibilidade.
Outros remoem as vicissitudes,
os erros e oportunidades perdidas,
angustiados com o inalterável.

Do passado só podemos reter


a memória e a experiência.
Usemos a primeira com moderação
e a segunda com inteligência.
É só esse o passado que pode e deve
ser integrado nas vidas presentes.

A banalidade da vida

Correr pela vida fora,

239
como meio de enganar a morte,
é a filosofia de alguns.

Mas como quem corre à chuva


não evita molhar-se,
por mais rápido que corra,

também quem corre na vida


não evita o cansaço,
por mais longe que chegue.

Será a vida uma corrida


para acumular experiências,
no maior número possível?

Não será possível apreciar


a banalidade quotidiana,
com elevado grau de satisfação,

porventura igual ou maior


àquele que corre voraz,
em busca da eterna novidade?

Viver é usufruir, é encontrar paz,


é conviver pacificamente
com a mortalidade inevitável.

Ao contrário dos que correm


ao encontro do desconhecido,
que nunca satisfaz plenamente,

240
eu prefiro buscar a paz na vida
sentado na minha poltrona,
vivendo a prazerosa banalidade.

Porque se há alguma sabedoria


na experiência dos mais velhos,
ela reside precisamente

no convívio amigável
com a certeza da morte,
na banalidade da vida.

A vida descontrolada

A vida escreve-se
por linhas enviesadas
de uma obra inédita.

Cada palavra acrescentada,


cada página concluída,
cada capítulo encerrado,

são partes de um fascículo


de uma vida em curso,
de final ignorado pelo autor.

Não há demiurgos escondidos


mas simples improvisadores.

241
A vida é assim, descontrolada.

Resta vivê-la, dia após dia,


usufruindo o percurso
o melhor que soubermos,

porque a qualquer momento


o fim chega, por anunciar,
e a obra, boa ou má, conclui-se.

A história acaba abrupta,


sem que lhe possamos acrescentar
ou emendar uma só palavra que seja.

Danação

Na escuridão sem fim


da humanidade profunda,
valsas negras embalam
as fraquezas de cada um.

No reverso das paixões


erram, enterradas na lama,
embebidas em vinho soez,
almas soturnas pelos cantos.

Entre ambições e invejas,


soberbas e lubricidades,
sinistras consciências

242
chafurdam no lodaçal.

Nada de mais absurdo


que o mito do inferno danado,
pois não há maior danação
que o viver humano condenado.

Virtudes e limitações

Olhamos a infância e a juventude


com o embevecimento da inveja,
da mesma forma que olhávamos,
quando éramos jovens, a maturidade.

A insatisfação faz parte


da natureza humana,
incapaz de conviver
com as suas limitações.

Em vez de reconhecer
as qualidades intrínsecas,
lamentamos a ausência
das características alheias.

Mas também nas falhas


tendemos para a cegueira,
prolixos a apontar nos outros
os erros que não evitamos.

243
A constatação é afinal simples:
que os atributos e os defeitos dos outros
são sempre, inevitavelmente,
muito mais valorizados que os próprios.

Sobreviventes

Perdidas nas serras,


entre ermos frios
de lobos e malfeitores,
duas mulheres viveram
sozinhas um longo calvário.

Guardaram rebanhos
em casas desertas
e extensos silvados,
dormindo sobre palhas
cobertas por sarapilheiras.

À fome das sopas de urtigas,


senão mesmo vazias,
entregaram impotentes
as suas carnes e as vidas
de filhos e irmãos.

Condenadas pelo povo,


de moralidade hipócrita,
ao cruel ostracismo
dos aldeões ignorantes,

244
abençoados pelo cura.

Ninguém lhes devolve


as vidas roubadas,
mas a simples sobrevivência
é a mais perfeita expressão
da uma enorme vitória!

Ilhas periféricas

Enjeitados das cidades


arrumados na periferia
da cintura industrial,

em ilhas de pobres
rodeadas de ruas
com fachadas de ricos,

amontoados em bairros
de crime e de fome,
esperando, ansiosos, a fuga,

das ruínas de fábricas


encerradas pelo tempo
da desindustrialização,

dos despojos das casas


que esperam impulsos
de gentrificação,

245
aguardam impacientes,
trabalhos inexistentes
e subsídios ausentes,

antes que a morte


os aparte de vez
dos mal amados tugúrios.

A morte pelas costas

Enterram-se vivos
em complexos de morte.
Vive-se em negação
aspirando à imortalidade.

A morte suja, mancha,


avilta os que com ela lidam,
rotulados de abutres,
de carniceiros, de assassinos.

A vida é só para os vivos


e não tem lugar para o decesso.
Por isso a morte é chocante,
surpreende, chega a ofender!

Vivemos de costas
voltadas à morte,
como se esta não fosse

246
parte essencial da vida.

Na esperança pueril
que um dia bendito
vivamos eternamente,
numa nuvem eletrônica.

Sabe-se lá
a fazer o quê?

Bandeira enrolada

São dias e noites


à chuva e ao frio,
no meio do nada,
nas trevas profundas.

Num parco refúgio


de tábuas e zinco,
de bandeira na mão
e corneta na outra,

aguardando a chamada,
que sempre acontece,
breves minutos antes
da passagem do trem.

Resposta pronta,
procedimentos regulares,

247
olhares cautelosos
e bandeira levantada.

São vidas suspensas


no vazio das linhas,
para breves minutos
de segurança vital.

Sacrifício supremo
de quem quer ser gente
e trocar a sachola pesada
pela bandeira enrolada.

Homenagem sentida

Debaixo da chuva
que cai copiosa,
um mar de sombrinhas,
negras como o dia,

sobem a ladeira,
soturnamente vestida,
rumando ao local
da derradeira morada.

É um mar de sombras
que se move, hesitante,
entre paredes de pedra
e sobre a calçada gasta.

248
Uma última homenagem
a quem já partiu distante,
em sincero sacrifício
aos que ainda por cá ficaram.

Europa

Nas cinzas da destruição


renascem vidas tímidas
que buscam na sobrevivência
motivos de esperanças.

Há orgulhos engolidos
e revoltas dissimuladas
que aguardam a ocasião
para expressarem despeitos.

Mas entre os novos senhores


que conquistam normalidades
há sempre complacências
que ferem ainda mais os brios.

Não se pode ser guerreiro


e pacificador a seguir.
O conquistador tem a glória
da vitória e da revanche.

Só assim se mostra digno

249
do brilho de vencedor,
respeitando o inimigo
que não se deixa humilhar.

É no respeito mútuo
e na igual condição
se pode construir a paz,
depois da destruição.

Sombras e nevoeiro

Pelas ruas da urbe,


cinzenta e enevoada,
correm sinistras figuras.

Buscam na tensão violenta,


da fosca noite citadina,
consolos e vinganças.

A noite expõe os medos,


mas também as liberdades,
aos solitários passantes.

Na noite se encontram vidas


por entre as mortes expostas
e os muitos crimes velados.

No desconcerto da vida
há cintilações escondidas

250
que anunciam novas rotas

ocultas na escuridão
das noites negras e frias,
entre sombras e nevoeiro.

Arte derradeira

Por linhas vegetais


convergentes e fraturadas,
secas e gretadas,
até às folhas esbranquiçadas
que o Outono derrubou,
exibe-se um tronco mutilado
do que já foi uma árvore.

As marcas traumáticas
do corte abrupto e de través
estão patentes nas texturas,
nas deformidades secas
de que resta da planta,
altiva e orgulhosa,
no seu centenário porte.

Na cumplicidade forçada
da decadente corrupção,
o cepo suporta as folhas
e estas relembram a copa,
adiando a dupla morte,

251
seguramente inevitável,
por mais algum tempo.

Entretanto aprecio o encanto


de uma árvore que morre,
e numa derradeira expressão
de beleza e dignidade,
expressa a secura concêntrica
dos seus veios laminados,
em arte natural e suprema.

Autêntica escultura
erigida pelos elementos,
é capaz de envergonhar
o mais genial artista,
manifestamente incapaz
de copiar a natureza,
na singeleza bela da morte.

O cabo das canecas

Eram bandos de miseráveis


que enchiam a baixa lisboeta,
de crianças e bagagens às costas.
carregados de muitos sonhos.

Rumavam ao cais de embarque,


onde um veleiro os esperava,
com destino às distantes Canecas,

252
prometido paraíso da cana doce.

Mas eram promessas vãs


de gageiros manhosos,
que percorriam as aldeias
em busca de desespero,

em terras de fome do Alentejo


e nos ermos transmontanos,
entre os pobres povos ilhéus,
vendiam ilusões ao desbarato.

Mais de vinte mil rumaram,


com mulheres e filharada,
ao longínquo e ignoto Pacífico,
por seis meses de viagem.

A fome, o sarampo e a tísica


sepultaram tantos no mar,
enquanto outros nasciam
entre os piolhos do navio.

A volta do cabo Horn


era uma aflição desesperada,
de quem, após meses no mar,
temia a nave naufragada.

Com eles levavam saudades


das suas aldeias distantes,
cavaquinhos e cantigas

253
com que aqueciam horizontes.

Na chegada era uma festa,


mesmo durante a quarentena,
entre os cantares e dançares
das gentes da terra lusitana.

Mourejando de sol a sol,


entre os canaviais tropicais,
viveram anos de escravidão,
de sacrifício e sofrimento.

Uns por lá se enterraram,


outros vieram sepultar à terra,
mas muitos construíram futuros
nos destinos que adotaram.

Heróis tardios da epopeia marítima


de um povo de aventureiros
que sempre temeu mais a inércia
que enfrentar o cabo dos trabalhos.

Destino dos poderosos

Nos jogos de interesses


das políticas imperiais
tanta sorte tem o infame vencido
como o glorioso vencedor.

254
Se o primeiro é castigado
pelo insucesso sofrido,
o segundo é eliminado
pelas ambições que alimenta.

Na luta mortal pelo poder


é igualmente indispensável
afastar a incompetência
e a popularidade em demasia.

Rolam as cabeças a granel


para manter os soberanos
em governança vitalícia,
destino dos poderosos.

À costa

Já foi rainha dos banhos


higiénicos, de água gelada,
de culottes vestidas
e toucas nas cabeças.

Foi senhora dos bronzes,


dos grandes escaldões
e das peles queimadas,
curadas a creme Nivea.

É terra de pescadores
da antiga arte xávega,

255
que arrastam para a praia
o que o mar tem a oferecer.

Hoje é campo de vaidades


onde se mostram tatuagens
e piercings e músculos,
criados a proteína de plástico.

Mas é sobretudo dos surfistas


que, faça chuva ou faça sol,
de pranchas debaixo do braço,
passeiam em fatos de borracha.

É a Costa que já foi Charneca,


votada ao abandono completo,
e que hoje é jóia preciosa
disputada por ricos estrangeiros.

O retrato das ovelhas

Elas contemplam
de ar atento e solene,
no seu olhar saliente,
o fotógrafo imprevisto.

As grandes orelhas tombadas,


paralelamente ao rosto,
parecem perucas brancas
de ilustres juízes provectos.

256
Os grossos casacos,
da mais pura lã original,
completam com dignidade
o ar distinto e hierático.

Não posso deixar de concluir,


perante a nobreza do retrato,
que esta pose de escultura,
em majestoso decoro,

é o peremptório oposto
da proverbial ligeireza ovina,
que assim se desmente
em evidência exibida.

Mimi

Entre a arte de viver


e o viver da arte
há a pequena distância
que separa a vida da morte.

Se na arte de viver
se abdica do espírito
para salvar o corpo,
na abundância da riqueza,

no viver do artista

257
é o corpo sacrificado
à integridade da alma,
que aspira à posteridade.

Nas duas vias descritas


há uma figura comum,
personificada em Mimi,
de Puccini ou Kaurismäki.

A mulher que redime


os pecados dos homens,
no sacrifício da própria vida
às aspirações do amor.

Sem Mimi não há arte,


nem engenho ou riqueza.
Ela é a centelha de vida,
que alimenta o homem,

e a sombra de morte
que dá expressão final,
e significado essencial,
à própria vida dos homens.

Avieiros

À míngua de peixe no mar


aventuraram-se ao rio,
onde lhes bastou uma bateira

258
para viver, trabalhar e dormir.

Homens, mulheres e crianças,


eles nas redes, elas nos remos,
as crianças aos berros, de noite,
pedindo mamada, quando tardava.

Ao sol, o céu por telhado,


à chuva, um velho toldo,
o rio era a sua casa
e o peixe o seu sustento.

Era à noite que pescavam


o que as mulheres de dia vendiam,
enquanto os homens cuidavam
das embarcações e aprestos.

Erigiram barracos sobre estacas


nas praias fluviais desertas
onde melhor se albergaram
as famílias e os parcos haveres.

Uma pequena e única divisão


com sala, quartos e arrumos
e por cozinha dois tijolos,
era quanto lhes bastava.

Chamavam-lhes os ciganos,
gente nómada fluvial,
que de verão pescava no mar

259
e de inverno rumava ao rio.

Viviam fugidos às gentes da terra


e às autoridades que os perseguiam,
livres entre braços e mouchões,
à solta ao longo do grande rio.

Criaram novas embarcações,


ergueram aldeias palafiticas,
criaram gastronomia invejável
que ainda hoje atraem turistas.

Vieram da praia da Vieira


para o Tejo das lezirias.
São o povo dos avieiros,
migrantes e pescadores.

A dança dos vestidos

Dois vestidos finos


dançam num estendal
de roupa, virado ao mar,
ao sabor do vento.

Um claro e outro escuro,


em dança sensual,
alheios aos olhares acesos
dos passantes intrigados.

260
Lembram fantasmas
que, de dia, amedrontam
assombrados transeuntes,
afugentando-lhes os sonos.

Haverá até quem invoque


santos e padroeiras,
com milagrosas bênçãos
de afastar os demónios.

Mas os vestidos profanos


não rogam infortúnios,
dançam ao pôr do sol,
livres e leves ao vento.

Botes suplicantes

Entre névoas impenetráveis,


embarcações encavalitam-se,
temerosas das brumas
e receosas das neblinas.

São pequenos botes escuros


encalhados num cais branco.
Esperam que se alevantem
as densas cerrações nebulosas.

Desertos de gente e de mar,


navegam nuvens paradas,

261
como pequenas naves celestes
que pairam em céus marinhos.

De proas erguidas ao céu,


em silenciosa procissão,
aguardam o benfazejo sol
que os leve de volta ao mar.

Cadeira vazia

Entre fumos de tabaco


e vapores de bebidas quentes,
velhos sentados às mesas
lêem jornais no café.

Compenetrados nas leituras,


de chapéus ou boinas na cabeça,
semblantes carregados no rosto,
permanecem silentes e isolados.

Mas uma cadeira vazia,


numa mesa solitária,
deixa no ar uma ausência
que se adivinha definitiva.

Cada qual na sua mesa


prossegue, imperturbável,
o rotineiro quotidiano
sem reparar na falta.

262
Num mundo de solitários,
de leituras individuais,
as mesas e cadeiras vazias
não impressionam ninguém.

Viagem a Marte

Numa barraca de feira,


deserta de clientela,
um sonhador fantasista,
com pompa e circunstância,
oferece viagens a Marte
a 10 cêntimos por pessoa.

Sintomático dos tempos,


de ausência de sonho ou fé,
é o eloquente vazio de gentes
que rodeia o solitário feirante.
Parece que o planeta vermelho
já não interessa a ninguém.

Mas o homem não desiste


e persiste no marciano apelo,
demonstrando, pela persistência,
que mesmo em tempos prosaicos,
há sempre sonhadores inveterados
dispostos a oferecer quimeras.

263
Gentes pacatas

Passam mulheres de negro


que cruzam ruas brancas,
de paredes caiadas
e janelas fechadas.

Sozinhas ou aos pares,


nunca acompanhadas
por homens ou rapazes
ou sequer crianças.

Este é um mundo segregado


em que se vive sozinho
ou acompanhado do mesmo,
no género e condição.

Mulheres saem com mulheres,


crianças brincam umas com as outras,
homens convivem com homens
e só se encontram dentro de portas.

Estranhos valores e morais


que perduram nas mentalidades
destas gentes simples e pacatas
que parecem paradas no tempo.

264
O paraíso da noite

Na noite escura da cidade


um enorne cartaz em néon
convida o passante ao paraíso,
em letras curvas e garrafais.
Um soturno porteiro fardado
acolhe os interessados à entrada.

Este paraíso descendente,


tão profusamente iluminado,
cheira a engodo à distância,
a promessas falsas, de céus
que podem bem ser infernos,
se não para todos, para alguns.

Este é um mundo de enganos


em que até o chamamento ao paraíso
pode esconder um inferno.
No fundo, a manifestação inequívoca
que na vida tudo tem duas faces,
o paraiso de alguns é o inferno de outros.

Brincadeiras banais

Nas ruas da cidade violenta


crianças brincam, inocentes,
deitadas no alcatrão da rua,
contornando a giz silhuetas.

265
Cresceram no meio da violência
quotidiana, nas ruas cheias
de tiros, mortes e vinganças
e polícias que chegam tarde.

Assistem sem pudor ou receio


à violência que passa na TV,
que se lhes oferece, casa adentro
e que banalizam nas brincadeiras.

Que efeitos terá no futuro?


Ninguém saberá ao certo dizer.
Mas esta banalidade na infância
já dá o suficiente para refletir.

A dança da vida

Num fundo ocre outonal


de folhagem que resiste
a uma morte anunciada,

dançam, antropomórficas,
ramificações de luto vestidas,
em orgíaco e final ritual.

O olhar turva-se de espanto,


naquela aquarela de sangue,
visão tão bela quanto dramática.

266
Este bailado infernal da vida
intensifica-se, na descoberta
de outros personagens dançantes,

e o quadro fica emoldurado,


na beleza da natureza em festa
em eterna e permanente renovação.

Fatalismo

Há quem busque insistente


o lado alegre da vida,
o otimismo perene nos outros
que contagia os demais,
afastando as más vibrações.

Não é que o sinta de verdade,


usa-o como um bálsamo,
uma doce droga benigna
que afasta maus pensamentos
e ameniza o passar da vida.

Mas como qualquer drogado,


na falta do vicio entranhado,
cede aos efeitos da ressaca,
entregando-se ao sofrimento
até que a dose se renove.

267
Não me contento com placebos,
por isso abraço a tragédia da vida,
em toda a sua extensão,
para com ela viver concertado
na negra paz serena dos fatalistas.

Valentia

Eram montanhas de água


que galgavam, assustadoras,
o pontão e o alto farol,
escondidos por debaixo
da imponente parede de mar.

Ao longe viam-se as silhuetas


de fantásticas efígies
dos deuses marinhos em fúria,
que engoliam ávidos a terra
indefesa dos fracos mortais.

Mas eis que um incauto


emerge em sombra no pontão,
enfrentando o mar revolto
que tudo ameaça ruir,
ante a impotência humana.

Louco suicida ou milagreiro?


É sina dos homens do mar
enfrentar a ira das águas.

268
Antes morrer de valentia
que à míngua da segureza!

Ocaso invernal

Este é de facto um Inverno


que, estranha e inesperadamente,
se mostra quente com eloquência.

A neve cobre o chão e os telhados,


o céu é azul, com novelos brancos,
as árvores escondem-se negras e nuas.

E no entanto sente-se o calor.


As casas estão vermelhas vivas
e sobre a cidade paira uma aura verde.

O sol pinta em tons amarelo-ocre


os espaços de céu entre as nuvens,
iludindo o frio com raios luminosos.

O rio atravessa a cidade, correndo


por entre margens nevadas,
preservando altivo a sua liquidez.

O céu eleva-se gradualmente


em tons que começam amarelos,
passam pelos verdes e os ocres,

269
depois os brancos, até finalizarem
em azuis, ainda assim claros,
antes de escureceram ao poente,

também ele gradual, descendente,


quase surpreendente, com a luz
solar a perdurar com relutância

até a noite cair e o frio subir.


Este Inverno é mágico, aquece a alma
enquanto arrefece o corpo.

O arco das profundezas

Havia um arco encantado


numa esquina grotesca,
onde prédios expressionistas
evocavam contos de Kafka.

À esquerda uma calçada ascendia,


com pedras desiguais encaixadas,
riscadas, no meio, por um trilho
de tijolo bruto, hipnótico e geométrico.

À direita uma rampa semelhante,


mas desta feita descendente,
rumava a um pequeno largo, ao longe,
onde se vislumbravam espectros.

270
Entre elas um edifício insólito,
uma pirâmide irregular invertida,
ligava os dois arruamentos
com um ar negro e sinistro.

Um velho candeeiro na esquina,


pavimentos desiguais e disformes,
janelas minúsculas e escassas,
cobertura de vértices irregulares.

Dir-se-ia um desenho infantil


ou uma maqueta, de ar gótico,
construída para um filme de terror,
uma casa na cidade do Halloween.

A coroar este cenário medonho


um arco de pedra negra e gasta
acolhia soturno os visitantes:
bem-vindos às profundezas.

A ponte

No percurso ribeirinho,
da cidade cinzenta,
há uma ponte de ferro
refletida nas águas
calmas do rio corrente,
que abraça a urbe,
aqueles que passam,

271
as torrentes fluídas
e as névoas envolventes.

Na solidão matinal
do percurso cénico
encontramos, hipnótica,
a presença monumental
daquele gigante metálico,
que tanto orgulha o indígena
quanto intimida o forasteiro,
preso da sua imponência
na insignificância que sente.

Mas se há impacto maior


naquele monstro da técnica
é o da beleza subtil das formas,
arredondadas e regulares,
que se refletem entrelaçadas,
entre brumas e marés,
para deleite encantado
dos iniciados transeuntes
que param em contemplação.

A paz adiada

Entre a paz e a vitória


há diferença substancial.
A paz é o convívio sereno,
a vitória é a derrota do outro.

272
Quando um grupo de soldados
festeja a paz conquistada,
alegra-se com o fim da guerra,
mas pela força das armas.

Paz não é a conquista


e a humilhação dos outros,
não é a submissão pela força
nem a exultação da vitória.

Essa é um simulacro de paz


que entecipa o prolongar da guerra,
alimenta o ódio e a incompreensão,
exalta o desejo de vingança.

A paz verdadeira só é alcançada


na comunhão dos festejos,
no abraço fraterno de inimigos
e no abandono recíproco das armas.

A paz não pode ser o festejo


de um só dos contendores.
A paz unilateral é a guerra adiada
no ódio da humilhante derrota.

Sou poeta

Se poeta é quem escreve

273
por impulso irresistível,
por necessidade imperiosa
de exorcizar depressões,
então sou poeta.

Se ser poeta é verter


a alma por escrito,
em busca de bálsamo fugaz
para o desespero interior,
então sou poeta.

Se o poeta é aquele
que foge da fria realidade,
da banalidade insuportável
da frivolidade dos outros,
então sou poeta.

Se ser poeta è abraçar


a fatalidade da solidão,
a crescente misantropia
que advém da velhice,
então, infelizmente, sou poeta.

Sonhos incumpridos

Vejo-te só e altiva
à porta de uma casa velha,
de paredes brancas, caiadas,
de sorriso forçado, de ocasião.

274
Onde estarás tu,
que num velho vestido coçado
e de sandálias sujas e gastas
te mostravas tão soberba?

Estarás coberta de jóias,


poderosa administradora,
académica ilustre?
Estarás viva, sequer?

Olho a tua altivez pobre,


de quem se sente credora da vida,
e pergunto se a riqueza e o poder
te terão sanado essa angústia?

Ou se, pelo contrário,


incapaz de vencer o mundo,
terás sucumbido ao desastre
ou desistido da luta?

Vejo-te só e altiva,
a preto e branco desbotado,
e penso nos tempos passados
e nos sonhos, sempre incumpridos.

Mar de chapéus

Pairando sobre a rua

275
vi um mar de chapéus
em constante movimento.

Havia alguns carros,


parados e em andamento,
mas entre eles apenas chapéus,

às centenas, aos milhares,


vivos, formigando rua afora,
como pontos irrequietos,

que se intercalavam,
sem se tocarem, quase por magia,
tão improvável era a visão.

Brancos, pretos, cinza,


era uma paleta a preto e branco
onde os tons todos surgiam.

Nunca tamanha distinção


se afigurou tão indistinta,
em incessante manancial.

Nunca tanta humanidade


se mostrou tão desumana,
num formigal desencanto.

276
Horizonte insaciável

De pés mergulhados
na água salgada da praia,
três mulheres olham o mar,

duas delas, com infantes


de tenra idade ao colo materno,
indiferentes ao horizonte.

Nunca a simplicidade
foi tão bela ou eloquente
como neste retrato vivo,

das gentes humildes


que o mar nutre e aparta,
deixando em terra

o medo e a saudade
que o amor alimenta
e o horizonte não sacia.

A raiva

A raiva é um sentimento
que corre silencioso
nas veias dos homens.

Anda geralmente escondido,

277
reprimido em desabafos,
em ironias mais ou menos veladas,

mas basta pouco para espirrar,


para se soltar em jorros vitais
que pulsam em movimentos cegos,

que empurram as gentes pacatas


em sendas de ódio e violência,
imparáveis e facilmente manipuladas.

Depois do sangue vertido


e da morte espalhada a eito
fica a estranheza do silêncio

que sucede a morte dos corpos


e antecede a morte das almas,
entregues à cegueira da raiva.

Depois tudo regressa à normalidade,


seja a de sempre ou uma nova,
mas sempre banal, inerte, cansada,

latente nas veias, onde a ira corre


num constante mas frágil controlo,
até à próxima erupção mortífera.

278
Destinos fatais

O que terá a vida,


que desperta tão grandes
e opostas reacções?

Se uns a amam sem condição


e lamentam a morte anunciada,
aspirando à eternidade,

outros odeiam-na de tal modo


que não descansam enquanto
não lhe põem um termo antecipado.

Dizem os médicos que a culpa


é de uma enzima, um químico
que alguns segregam em insuficiência.

O simplismo da explicação
é sem dúvida atraente,
até pela irresponsabilidade que implica.

Livra o homem de dolorosas


e inconclusivas compreensões.
É cómoda, mas não me convence.

A vida tem tanto de bom


como tem também de mau.
Pode ser uma benção do céu

279
mas também uma maldição.
Será censurável o que mais não faz
que pôr fim a um longo sofrimento?

A química pode condicionar


por algum tempo, a disposição de cada um,
mas na essência nada muda em definitivo.

Uns estarão destinados a gozar a vida


enquanto outros condenados a sofrê-la,
até que a morte ponha termo à pena.

Agradeçam os primeiros a sua benção


mas respeitem nos segundos
a liberdade, mesmo na morte.

Símbolos nacionais

De quinas, castelos,
cruzes e esferas armilares
se faz a simbologia nacional,

desde os tempos primevos,


do mito da batalha de Ourique,
até ao euro e à União Europeia.

Mas quem sabe ao certo


a origem destes símbolos

280
e até que ponto são unificadores,

ou meramente circunstânciais
dos muitos valores e revoluções
perdidos no devir dos séculos?

Se o escudo de fundo branco,


com as cinco quinas azuis
(de Nossa Senhora ou da Borgonha),

são fundadores da dinastia,


já a bordadura vermelha,
de castelos e de flores-de-lis,
são adições castelhanas
e francesas de Capetos,
trazidas de França por Afonso III

e justificadas posteriormente,
por acesos e bem intencionados patriotas,
como alusivos à conquista do Algarve.

Perdidas as flores francesas,


talvez por ódios de Habsburgos,
surgiram então dragões bragantinos

após a guerra da restauração,


sem os quais se não derrotaria
o leão-cordeiro dos castelhanos.

Entretanto vieram as ordens,

281
militares e religiosas da reconquista,
confundir os símbolos nacionais.

O mestre de Avis trouxe a cruz da sua ordem


e o duque de Beja, rei improvável,
a cruz da ordem de Cristo e a esfera armilar,

que tratou de alardear a gosto


pelo monumental legado gótico
do seu manuelino e expansivo reinado.
Na metrópole quinas e castelos,
no ultramar cruzes e esferas,
foi regra centenária por ele instituída.

Mas eis que um rei imperador


quis unir reinos distantes e separados,
com a esfera brasileira e as quinas lusitanas.

O império durou pouco tempo,


pelo que a esfera ficou no Brasil
enquanto as quinas e os castelos

quedaram-se pelas terras lusitanas,


em que o azul e branco fundadores
foram adoptados por bandeira constitucional.

Mas a república revolucionária, confundiu


a nação lusitana com o partido vitorioso
e afastou da bandeira as cores nacionais,

282
impondo estandarte verde e vermelho,
as cores do partido e da revolução,
mesmo contra ilustres vontades republicanas.

Mais do que isso, repristinou


como simbolo, a brasileira esfera armilar,
simbolo de um regime com destino colonial.

Mais colonialista ainda,


o Estado novo foi rebuscar
a cruz de Cristo ao baú

e também a cruz de Avis,


como símbolos, ressurgidos das cinzas,
para as novas instituições nacionalistas,

fazendo renascer (no papel)


um Portugal manuelino,
que aspirava ao sonho imperial.

Se a esfera é um símbolo colonial,


o que fará na bandeira democrática
desta república descolonizada?

E se o branco e o azul
são as cores da fundação nacional,
porquê a manutenção teimosa

do verde e vermelho na bandeira,


que a constituição democrática reiterou,

283
talvez para legitimar herança da I República?

São de azul e branco simplesmente,


com as cinco quinas de Ourique,
os símbolos da nação lusitana.

Haja quem corajosamente reponha


esta verdade histórica indiscutível na bandeira,
que sempre identificou o povo lusitano,

desde a fundação do reino,


com o rei conquistador de Ourique
Afonso Henriques de Portugal.

Sobre os estendais

Há algo de poético
nos estendais de roupa.
Parece obsessão,
mas a verdade
é que me fascina o despudor
com que se exibem roupas lavadas
por esses estendais afora.

Mais fascinante ainda


é o concurso de estendais,
que atravessam ruas,
que ligam prédios e vidas,
que competem à soleira

284
pela distinção do guarda roupa
e pela inveja das marcas.

É a tragicomédia humana
exposta numa simples linha,
com roupas lavadas a pingar
em cima das invejas alheias,
da vizinhança e transeuntes.
Quem sabe se à espera
de alguma iniciativa furtiva,
de índole revolucionária
ou meramente capitalista.

Umbiguismo

Sinto a ansiedade crescer com a idade.


Não deveria ser o contrário?
Não deveria a experiência banalizar em rotina
as ânsias do quotidiano e até do eventual,
já nunca verdadeiramente surpreendente?

Mas não é isso que me acontece.


A velhice trouxe-me solidão e tédio,
a insatisfação permanente, que se agrava
com qualquer contrariedade,
com a incerteza a pairar no horizonte.

O tédio deprime mas também consola.


Incute uma falsa sensação de conforto

285
que, em repentes, podemos enganar
com iniciativas alimentadas a entusiasmo.
Mas a sua quebra gera ansiedade.

Acentua-se a saturação do trabalho,


a total repulsa por litígios e competições,
um desejo crescente de fuga para longe,
para o campo, para o estrangeiro,
da vida presente rumo a outra, alternativa.

A ânsia de que, ao longe, na reforma,


no campo, nas viagens, nos hobbies,
se esconde uma nova vida, um recomeço,
que afaste a ansiedade da alma
e faça renascer o gosto perdido pela vida.

E sobretudo o receio da ilusão,


de que, por mais que fuja desta vida,
me vá encontrar a mim mesmo,
velho, solitário e deprimido,
noutro canto tedioso da existência.

A verdade

A verdade é incómoda,
por isso ninguém a quer.
É um privilégio de egoístas.

Se a falo, outros a calam.

286
Se a exibo, outros a cobrem.
Se a grito, todos se ofendem.

A quem serve essa verdade


tão singular e ofensiva?
É o lenitivo de solitários.

Serve para curar as feridas


de quem nada tem a esconder,
porque nada espera dos outros.

Serve para viver mais um dia,


quando se não tem lágrimas
para derramar em ombros alheios.

Serve para rir do absurdo,


que o quotidiano nos impõe,
e salvar o que restar da sanidade.

Mas a verdade é imoral


porque ofende as falsas virtudes
e destapa os medos escondidos.

E se há algo imperdoável
para um ser humano perfeito
é que lhe exponham a verdade,

que o forcem a enfrentar


os medos e os fantasmas
que ele se empenha em esconder.

287
Antes viver na mentira,
no seu direito inalienável
ao pudor e à hipocrisia,

que enfrentar os traumas


da sua inevitável imperfeição
e da fatalidade da morte.

A verdade é o privilégio
dos loucos e dos poetas,
na verdade, os mesmos.

Abraço invernal

A nudez das árvores envolve,


como braços oscilantes
que se curvam, o corpo frio
e a mente de quem passa.

Os ramos despidos pelo Inverno


constroem padrões novos e ousados,
que interferem a luz e a visão,
atingindo o âmago da alma que os contempla.

Se as copas verdes dão sombra,


a frescura sedenta na canícula,
encobrem os espíritos arborícolas
escondidos, envergonhados na folhagem.

288
É no inverno que a árvore exulta
na beleza infinda dos seus ramos.
É nessa imensidão tentacular
que nos cobre, indefesos e assustados,

que admiro a elegância altiva da árvore


e com ela me quero envolver, eternamente,
por entre os braços contorcidos
que me abraçam a alma pungente.

Espera desesperada

Na solidão enevoada do cais,


entre ferros torcidos e cruzados,
entre focos de luz penetrante
que iluminam o palco anónimo
de quem espera ansioso a partida,

entre figuras singulares, como eu,


enevoadas como as plataformas,
ausentes como os comboios,
iluminadas por uma luz alheia,
que lhes invade a intimidade,

espero, de alma vazia, a partida


do que nem sequer chegou,
nem se sabe quando chega,
entre olhares vazios e silentes,

289
de rotineira desesperança.

Não fossem as névoas e as sombras,


não fossem os rostos pardos
e o silêncio eterno dos ausentes,
os ferros velhos e torcidos da estação
e o que poderia eu esperar na vida?

Caminhos herméticos

Na nudez invernal de ramos,


de fios vitais despidos ao frio,
há também lugar para a verticalidade,
que ascende os céus plúmbeos e tristes.

Perpendiculares à estrada recta,


que cruza o espaço e o tempo,
erguem-se possantes troncos
como falos herméticos antigos.

No fascínio dessa ereta nudez,


são altares, erguidos aos céus,
que marcam a divisão primordial
entre o que é terreno e o divino.

Em vez de profusão ramificada


há uma elegante disposição superior,
digna dos olímpicos demiurgos
que comandam os destinos mortais.

290
Percorro encantado esta catedral viva,
em respeitoso e numinoso percurso,
admirando a natureza e o sublime
na paz suprema da sobriedade.

Ser ou Não Ser

A vida é feita de dualidades:


Noite e dia,
Lua e sol,
Preiamar e vazante,
Homem e mulher,
Sim e não,
Branco e preto,
Nascer e morrer,
Terra e mar,
Bem e mal,
Deus e o diabo,
Comer e beber,
Subir e descer,
Partir e chegar,
Luz e escuridão,
Aberto e fechado,
Aceso, apagado,
A dormir, acordado,
Positivo, negativo,
Esquerdo e direito,
Dois braços, duas pernas,

291
Face e verso,
Alegria e tristeza,

E mais que não chegaria


O tempo para enumerar.

E no entanto do nada viemos


E para o nada regressamos.
Nesses momentos fulcrais
Que antecedem e sucedem
O ser
Atingimos a perfeição
Do reencontro com
a unidade.

Não ser.
Eis a perfeição
Da universal unicidade.

O limbo e a paz

No limbo das festas


uns folgam e outros trabalham.
Quem folga goza o interregno,
ansiando o compromisso adiado.
Quem trabalha lamenta a sorte,
invejando a folga alheia
e ansiando a sua, diferida.

292
Às vezes parece
que o que movimenta a vida
é o lamento presente
e o anseio futuro,
seja ele bom ou mau.

Um dia gostaria
de ser capaz de gozar
simplesmente o momento,
sem lamentos, nem anseios.
Apenas entregue
a uma paz perene.
Mas olho à minha volta
e não a encontro em ninguém.
Chego a duvidar que exista.

Depois puxo pela memória


e lembro que já a experimentei.
Foram momentos passados,
mais ou menos fugazes,
que podem voltar a cruzar
a minha existência entristecida,
e iluminar um caminho
que agora parece escuro.

Há pois que sair dos limbos


e agarrar a vida pelos cabelos,
mesmo que doa, que os arranque.
Só vivendo se alcança a paz,
nem que seja na morte.

293
Paz ou guerra

Se a insatisfação
é a natural condição humana
a ela se deve o progresso,
a ciência, a tecnologia.
Se, ao invés de insatisfeito,
o homem fosse pacífico,
contente no seu canto
com a dádiva da providência,
nunca ambicionaria mais
além da frugal subsistência.

Mas a insatisfação tem um reverso.


Traz a ansiedade, a revolta,
a inveja e a ganância.

Esta é a lamentável condição


da humanidade inteira,
viver insatisfeita mas criativa,
ambiciosa e produtiva
ou estagnar na paz estéril
de quem nada quer ou anseia,
nada elabora ou deseja,
mas repousa satisfeito
na serena paz da renúncia.

E a felicidade, onde se esconde,


na paz ou na guerra?

294
Olhando o vazio

A solidão e a neblina
preenchem o tempo e o espaço
sob a árvore negra e frondosa
da vida que segue, infinda,
mesmo sem nada de novo,
ausente de acrescentos vitais.

Sentado num banco da rua,


olhando o vazio branco de névoa,
sinto a vida esvair-me das veias
por entre os ramos da árvore,
sob a sua sinistra folhagem,
ao frio lajedo da praça.

Ao longe, por entre sombras,


há vidas escondidas, detrás das janelas,
fechadas do frio e da solidão
dos outros, que se sentam vazios
nas praças desertas da cidade branca,
entre as lajes frias e as árvores negras.

Fios de vida

Dois troncos nus,


servindo de postes
aos fios que ligam
a vida, de uns e outros.

295
Dois mastros eretos
que se repetem infindos,
até à eternidade,
na vasta planície.

Olho em frente
e não vejo o final.
Sigo porém os fios
ignorando o destino.

Caminho eterno
de fios de vida,
que pairam no ar
sobre a terra dura.

Meus passos pesados


seguem, rasteiros e lentos,
os fios dos outros,
na busca dos meus.

Sem nunca os alcançar.

Algo de novo

Virou a esquina
na manhã gelada
daquele dia, perdida
na memória indistinta,

296
e respirou fundo.
O bafo esfumou-se.

No ar triste matinal,
uma velha de negro
passou esvoaçante
e uma velha bicicleta
passou negra, a voar,
por ela, parada.

Parecia esperar
que a vida acordasse,
que o ar aquecesse,
que a cidade lhe desse,
ao virar da esquina,
Algo de novo.

Jogos de palavras

Faço poemas
mas não sou poeta.

Brinco com palavras.


Monto e desmonto,
encaixo e desencaixo
como peças coloridas
de um jogo de criança.

Às vezes

297
o resultado é bonito
e exulto
com orgulho inocente.

Outras não
e arranco
e recomeço
até surgir algo
do caos criativo,
até que a ordem
e a beleza brotem.

Eu sei que elas estão escondidas


por entre as palavras,
vislumbrando.

Eu nada crio,
apenas decifro
conteúdos ocultos e dispersos,
mistérios por revelar.

Os poetas
são arquitectos das palavras,
constroem monumentos
prenhes de significados
com arte e com estilo.

Eu brinco inocentemente
com a minha solidão.

298
Poeira universal

Na Vigia nada vigio


mas contemplo a Pena.

Sob a frondosa copa


de uma árvore centenária
sinto a brisa da serra
refrescante,
deixo-me embalar pelos sons
e odores idílicos
desta Sintra, que permanece,
parada no tempo,
nesta minha Vigia.

Passam faetontes
como nos romances do Eça,
quem sabe se escondendo
contemporâneos amores proibidos
de Carlos da Maia e Marias Eduardas,
de Vitores da Ega e Genovevas.
Mesmo falando línguas estrangeiras,
pois os amores tão pouco respeitam
as fronteiras quanto a consanguinidade,
na obra queirosiana.

Não busco amores fugazes


nem troféus de caça à turista,
como os Dâmasos de sempre,

299
apenas paz e inspiração
num solitário fim de tarde.

Espanto-me que,
por entre tantos turistas,
penando na Pena,
mourejando nos Mouros,
regalados na Regaleira,
persista este cantinho
meio velado da Vigia,
onde em réstia sobrevive
a velha Sintra de avoengos.

Não fossem, dispersos, alguns carros


e acreditaria que viajara no tempo,
Rumo à bela época.
Que o dia terminaria
num salutar tête-á-tête no Lawrence,
ou em romântico passeio crepuscular
pelos jardins de Seteais,
por entre frufus de cetins
e árias de Offenbach,
dedilhadas ao piano
por pálidas mãos feminis,
não menos acetinadas.

Outros decifrariam decerto


as silvícolas espécies que me rodeiam
neste pequeno recanto de floresta.
Mas eu, turista no betão criado,

300
limito-me a intuir,
com risco de elevado grau,
uns carvalhos e mansos pinheiros
por entre outras espécies incógnitas,
exóticas e coloridas,
aguardando redescoberta:
arbustos, flores, trepadeiras, cactos, heras,
sei lá quantas botânicas
divisões, classes, ordens, famílias, géneros e espécies.
Um jardim de positivo romantismo,
à contemporânea curiosidade preservado
ou à simples e inspiradora contemplação,
como é o meu caso.

Sento-me só e leio, ou escrevo,


ou leio, enquanto escrevo
e escrevo, enquanto leio,
porque uma coisa não pode existir sem a outra.

O parco resultado tem o leitor sob os olhos


e mais não é que uma memória futura
desta minha fugaz experiência,
indolente, talvez presumida,
mas seguramente individual,
Por isso única, irrepetível.

Será vaidade,
no meio de tanta diversidade
e sob séculos de esplendor,
meditar na própria unicidade?

301
Seria imodesto pensamento
se escondesse
exaltação de particulares virtudes
ante a beleza que me rodeia.
Acredite,
não me tenho em tamanha estima.

Prezo a minha unicidade


como a da folha verde, à minha frente,
que brilha à luz da tarde,
o raio de sol, que me acaricia a pele,
por entre densos ramos;
a flor lilás que à direita espreita,
por detrás de um simples cacto,
ou o pássaro anónimo que chilreia,
às minhas costas.

É a individualidade de cada coisa


que constrói a plenitude,
Do todo a riqueza.

Por isso, neste canto


sereno e brevíssimo da vida
sinto-me tão singularmente pleno
como um grão de areia.

Na certeza todavia que


não existe grão de poeira
que em si próprio não esconda

302
um universo inteiro por descobrir.

Fantasmas

Em cada coisa que faça


ou que diga,
em cada gesto inadvertido
ou atitude que tome,
vejo fantasmas.

Em cada jantar alargado,


mesmo nas conversas banais,
nas viagens de férias
e nos passeios semanais,
há lugares preenchidos
por espectros.

Nas festividades e aniversários,


nos dias de alegria
e também nos de tristeza,
nos livros que leio
e que deixo por ler,
nas músicas que ouço
e nas que evito,
há sempre espíritos
que pairam.

Nos rostos felizes


das crianças que crescem,

303
nas rugas que sulcam
os rostos dos velhos,
nas roupas que cheiram a mofo
e se acumulam
nos cantos escondidos da casa,
nas garrafas guardadas
para ocasiões especiais,
nas toalhas de linho
das noites de consoada,
há almas suspensas
que me penam.

Nos anos que passaram


e naqueles que,
cada vez menos,
me esperam,
há aparições
em crescendo
que se acumulam
inertes e silenciosas
e que carrego,
pesada cruz,
para sempre
e onde quer que vá.

Os mortos são fastasmas


que vivem
na memória dos vivos.

304
Caminhar é preciso

Caminho como num sonho.


Olho à minha volta
e reconheço os locais,
as pessoas,
os cheiros,
as cores,
mas ao mesmo tempo
tudo é estranho e desconhecido.
Tudo está trocado,
deslocado no tempo
e no espaço.

Será que conheço


verdadeiramente estas pessoas
ou são memórias dispersas
de olhares que me fitaram no passado,
de conversas roubadas
pela indiscrição dos meus ouvidos,
de farrapos arrancados
a personagens de outros?

Honestamente não sei.


Mas será importante sabê-lo?

Passo após passo


saboreio o desconhecido.
Aprecio o anonimato

305
da solidão,
a fluência
da mente que se perde,
que me perde, solitária,
no quotidiano estranho
e imprevisível.

Gosto do desconhecido,
da escuridão dos sentidos,
da volúpia da frivolidade.

Gosto dos rostos estranhos


que me sorriem
indiferentes
e dos que nem sequer sorriem,
apenas passam
indiferentemente perdidos
na sua própria solidão
ou na azáfama das banalidades.

Gosto do labirinto
do caminho disperso,
desatento,
errante
de surpresa em expectativa.

Fotografo com a mente


cada lugar,
cada recanto,
cada raio de luz

306
refletido nas águas,
cada sombra
que acinzenta a paisagem,
tornando-a mais bela
e misteriosa.

A memória grava cada um


desses instantes únicos,
irrepetíveis,
eternos.

E depois lança-os
em catadupa
na minha vivência febril
e descoordenada.
Será um sonho?

Mas o que é um sonho


senão uma amálgama
de pedaços dispersos
de realidade,
uma coletânea de vivências,
nossas e dos outros,
vividas e roubadas,
imaginadas e sofridas?

Onde está a diferença,


a fronteira entre o real
e o imaginado?

307
Será mais feliz o que vive
do que o que sonha?
Será o pesadelo
uma forma menor
de sofrimento?

Caminho apenas.
Real ou sonhado
só existe um caminho.

Caminhar é preciso,
viver não é preciso.

Passados

A forma como lidamos com o passado


é um dos grandes desafios da vida.
Tanto maior
quanto mais velhos ficamos e,
consequentemente,
mais passado carregamos às costas.

Podemos reprimi-lo,
colocá-lo numa gaveta
obstinadamente fechada,
que é preciso arrombar
com a ajuda do psicólogo
ou do padre.

308
Podemos usá-lo
à flor da pele
e transbordar de emoções
de cada vez que algo
perdido no tempo
nos vem à memória:

um momento feliz,
uma foto de alguém,
um local marcante
de tempos pretéritos.

Podemos guardá-lo
para momentos especiais,
aniversários,
casamentos
e funerais.

Podemos ainda usá-lo ao peito,


como uma medalha
que exibimos com orgulho.

Mas qualquer que seja


a estratégia utilizada
é impossível evitar que,
de vez em quando,
o passado irrompa
sem licença
pela nossa existência,
num ataque irresistível

309
e assustador de nostalgia,
que será tanto mais forte
quanto mais reprimido estiver.

É uma certeza
tão aterradora
quanto a de ser confrontado
com a sua própria mortalidade.

Mas não serão a mesma coisa?

O Moinho Vermelho

Vislumbro, sombrio,
por entre as névoas invernais
e o gelo acumulado,
nos parabrisas provectos
de velhas máquinas,
de séculos findos,
as pás de um antigo moinho.

Nele nunca se fez farinha,


ou moeu grãos ou sementes.
De vermelho sangue tingido,
erguido no alto da velha cidade,
vende sonhos e paixões
a gerações de visitantes,
sacrificando as ilusões
de quem nele teima buscar

310
a quimera do sucesso
e do estrelato terrestre.

Sozinho e escondido,
entre a neve e veículos tristes,
mais parece um vagabundo,
perdido na impiedosa urbe,
do que um anjo caído
de beatificas altitudes,
para o infernal quotidiano.

Um simples olhar

Um simples olhar,
algures entre a tristeza
e o medo,
tocou-me na alma,
ou no que por ela
se fizer passar.

Um rosto pretérito,
de chapéu emplumado,
olhos claros como água
e lábios vermelho triste.

Este olhar é uma súplica,


por um amor ausente,
por um auxílio premente,
pelo calor de um abraço,

311
ou de um beijo, se eu ousasse.

É um momento perdido
nos desencontros passados,
reencontrado enfim,
após décadas de abandono,
por alguém que o vislumbra,
e de piedade dele se enamora.

Reinos nebulosos

Entre a azáfama fumacenta


de uma época nebulosa,
surgem vultos, apressados,
que rasgam nuvens cinza
e sopram brumas, misteriosas.

Penumbra monocromática
de um tempo e ar viciados,
da fumaça das caldeiras,
das beatas fumegantes,
dos bafos débeis, que passam.

Lembra-me datas passadas


onde as névoas reinavam,
entre muitos olhares cegos
de tanto entrever, esforçados,
as vidas brumosas de antanho.

312
E por estranho que pareça,
revivo esse inferno poluto
com uma doce nostalgia.
Sobrava, em calor humano,
a vitalidade ameaçada.

Movimento estacionário

De tempo suspenso,
na luz difusa do palco,
contemplo encantado,
surpreso e confuso,
as estações, inertes,
da beleza em movimento.

A genialidade do olhar
disputa a sublime graça
do fluxo carnal, do gesto,
da lasciva sedução
de um corpo feminil,
num menear envolvente.

Quais estátuas ambulantes


da efémera dinâmica,
em torção voluptuosa,
que fugaz nos escapa,
para cair, enfim, lassa,
na lente fria do fotógrafo.

313
A dança (2)

Um ritmo alucinante
apodera-se, inclemente,
do corpo e dos sentidos,
num movimento perpétuo
de frenética energia,
Insuperável e contagiante.

De um lado soam batuques,


em experiente manusear
de instrumentos imemoriais.
Do outro balançam membros,
roupagens e torsos, a ritmo,
concertado entre sorrisos e palmas.

O tempo pára, impercebível,


e os espíritos elevam-se
ao prazer do frenesi.
Rodam saias, saltam pernas,
soltam-se cabeleiras e risos
aos ventos impetuosos da dança.

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