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ELTIT, Diamela. A máquina Pinochet. In: A máquina Pinochet e outros ensaios.

e-galáxia,
2017, Edição Kindle.
Texto originalmente publicado no jornal Clarín, de Buenos Aires, em dezembro de 2006.

Reconheço – devo fazê-lo – que nunca pensei, nem séria nem profundamente, na morte
de Pinochet, em parte por certa confusa superstição: pensava que se pensasse ele não morreria.
Mas, ainda assim, passavam-se os anos e ele continuava ali, persistente, teimoso.
Preferia não pensar porque se abria a porta irreparável do rancor e do pesar. Por isso,
quando o ditador – convertido em senador Pinochet – foi preso em Londres, pude experimentar
a maravilhosa sensação de algo parecido à justiça, ou talvez à vingança. Sua detenção me
pareceu um fato portentoso, porque a rigor sua viagem de cura a Londres acabou por derrubá-
lo, sua própria coluna vertebral o fez tombar. Penso que aí se deu sua queda. Ali se desfez
completamente a coluna vertebral que o sustentava.
Foi escarnecido. Conquanto sua prisão fosse de luxo, as câmeras o observaram de todos
os ângulos e reproduziram nos noticiários uma imagem impensável: a de um ditador que dava
voltas e mais voltas num pátio do qual não sairia por mais de um ano.
Pinochet se debilitou naquele ano. Os jovens, os filhos adolescentes do neoliberalismo,
começaram a ter certeza de que Pinochet era freak, um personagem duvidoso fugido dos
quadrinhos. Depois de Londres vieram os julgamentos em matéria de direitos humanos.
Pinochet perdeu seu caráter de senador vitalício e assim se encerrou um dos capítulos mais
abjetos da larga e difícil transição à democracia.
Mas não houve um juiz que o condenasse, o sistema político completo não pôde
condená-lo e, ainda que sem condenação, seguiu-se a deterioração de sua imagem. Seus
seguidores foram escasseando, mais velhos, mais caricaturescos.
A direita política se distanciou, a imagem do General não era rentável, tirava-lhe votos,
marcava-a a fogo. Especialmente quando se exibiram as contas do Banco Riggs e se
descobriram milhões de dólares depositados sob um conjunto de nomes falsos. Isso feriu a
direita política; não os crimes, mas o roubo. Evidentemente, a direita política sabia desses
roubos, a família inteira do ditador é ostentosa, sempre o foi. Essa família tem demasiado
dinheiro saído do nada; não do nada, senão dos cofres públicos.
Seus seguidores já não acusavam somente os “comunistas”, como chamavam aos
detratores de Pinochet, mas acusavam também a direita de traidores, de haver usado e abusado
de Pinochet para seus fins econômicos.
Pinochet, que não morria nunca, caiu doente: um infarto do miocárdio e um edema
pulmonar. Seus seguidores, umas cem pessoas, rogavam por sua saúde. E, como em outras
ocasiões, melhorava, caminhava pelo quarto, inclusive iam dar-lhe alta. De repente morreu, se
descompensou, como disseram os médicos, e foi impossível reanimá-lo.
Detonou-se um cenário midiático: Pinochet voltou a ocupar todas e cada uma das telas.
Pinochet morrera. Desencadeou-se esse fervor estranho que acompanha os mortos
televisionados, surgiram milhares de seguidores de Pinochet que esperaram horas para ver a
cara do morto. Assomou o rosto da direita política. Depois de anos de silêncio apareceram para
capturar seus eleitores.
Pinochet não teve um funeral de chefe de Estado. Milhares de pessoas celebraram seu
falecimento, e as diversas associações de direitos humanos e de vítimas da ditadura
denunciaram que morria sem nenhuma condenação judicial.
Quando me inteirei que Pinochet tinha morrido pensei naturalmente que Pinochet tinha
morrido. Algumas horas depois pensei que era muito positivo que Pinochet morrera antes que
nós, que lhe sobrevivíamos.
Mas também pensei, naquelas horas, nos mortos, nos desaparecidos, nos presos, nos
torturados, no exílio. Pensei que Pinochet está latente, que é uma máquina que não para, uma
máquina de destruição e abuso que, numa de suas identidades possíveis, chama-se Pinochet.
Que essa direita política que afluiu a seu funeral se chama Augusto Pinochet numa de suas
identidades ocultas. Que o exército incuba Pinochet entre suas armas e condecorações, que
sobrevivemos a um dos tantos Pinochets, mas que existe outro e outro e outro. Por isso não
descansaremos em paz. Nunca.

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