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Décio Freitas
Alfred Hitchcock,
The Saturday Evening Post, 07/07/1957
SUMÁRIO
Capítulo I ........................................................................ 5
Capítulo II ....................................................................... 13
Capítulo IV ...................................................................... 31
Capítulo V ....................................................................... 39
Capítulo VI ...................................................................... 48
Capítulo IX ..................................................................... 76
Capítulo X ...................................................................... 83
Capítulo XI ..................................................................... 91
Capítulo I
naquele crânio, traços físicos distintos dos comuns - nada que indicasse a
anomalia sustentada por Lombroso. E termina a carta com uma hipótese: "O
ato de matar não estará ligado às funções vitais do homem, como o ato de se
alimentar?"
Os abomináveis crimes cometidos por José Ramos na cidade de Porto
Alegre, em meados do século passado, só chocam e soam inverossímeis
porque se tende a esquecer a crua verdade de que o homem é,
essencialmente, um animal, sem dúvida superior aos outros animais, mas,
apesar desta evolução, não mais capaz do que eles de transcender a
animalidade.
Segue-se daí que, por ser um animal, está sujeito aos instintos
básicos de todos os animais: a necessidade do alimento, a compulsão
para o sexo (reprodução) e a busca do poder. O "maravilhoso"
homem, que arrogantemente se julga a criação de uma deidade, faz
parte de uma amoral ordem predatória e canibalesca. Os instintos
animais sobrevivem e subjazem na ordem civilizada que ele criou na
tentativa de elevar-se acima dos outros animais. A sociedade procura
controlar os instintos básicos da animalidade, ao passo que a religião
e a arte são um esforço do homem para se espiritualizar,
transcendendo a animalidade. Mediante a criação de uma ordem
moral, o homem tenta diferenciar-se do mundo animal não-humano.
Mas toda sua história atesta o fracasso destas tentativas. A estuante,
poderosa vitalidade do animal-homem não cessa de se manifestar,
indiferente aos valores do bem e do mal. A fundamental bête
humaine, que Émile Zola descreveu em sua obra, embora os
biógrafos testemunhem que o escritor nunca leu Charles Darwin,
nem admitiu conscientemente essa concepção - está presente todo
o tempo no homem, e emerge à menor oportunidade. Para Zola, as
interdições destinadas a manter sob controle a bête humaine, são
sempre precárias, e o homem está constantemente recaindo no
estado de natureza animal.
A ambição moral do homem de negar sua linhagem animal,
sempre o levou a condenar o homicídio, mas, ao mesmo tempo, dada
a irrefreabilidade dos instintos, nunca deixou de legitimá-lo, em
certas circunstâncias. O homicídio, em outras palavras, foi
regulamentado. Exemplo disso é o homicídio cometido
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Capítulo II
Bragança que fornecia pão à casa de José Ramos". Catarina responde, é claro,
negativa- mente. Mas em maio de 1869, durante uma expedição policial a uma
das ilhas do Guaíba onde se homiziavam escravos fugi- dos, é preso Silvestre,
um dos assassinos dos padeiros. Silvestre declara perante o juiz que antes do
assassinato "conversaram com o soldado de polícia José Ramos, o qual os
instigou ao crime, prometendo-lhes ajuda na fuga". Cometidos os
assassinatos, "esconderam-se na casa de José Ramos", o qual passou toda a
noite a pedir-lhes detalhes dos crimes, querendo saber minuciosamente como
se dera a morte dos padeiros".
Pouco antes do alvorecer, Ramos levou-os "até onde havia uma canoa
a espera, na qual chegaram à ilha". Em recompensa pela ajuda, os escravos
deram a Ramos "algumas moedas de ouro e prata tiradas aos padeiros". Não
é impossível que, tendo ouvido rumores sobre a cumplicidade de Ramos com
os assassinos de seus irmãos, Quintella queria fazer sondagens na casa da rua
do Arvoredo.
No meio da tarde, sob forte chuva, Quintella sobe a cavalo o íngreme
beco do Poço*, chega ao alto da colina por onde passa a rua da Igreja**, e
desce para a rua do Arvoredo. Quando chove, as ladeiras que baixam para a
rua do Arvoredo, com seus precipícios e socavões, viram cascatas. Repleta de
árvores frondosas, a rua faz jus ao nome. Não tem alinhamento; no seu curso,
ora se alarga, ora se estreita. Neste momento, as águas da chuva converteram
a rua sem pavimento em lamaçal. Predominam as casas de madeira, cobertas
de capim. As poucas casas de tijolos e telhas formam um casario de construção
acaçapada, com telhados gotejantes para os passeios.
A rua do Arvoredo fica numa zona ignóbil onde pulula uma humanidade
confusa e heterogênea: pequenos comerciantes, artesãos e profissionais
alemães; soldados de polícia e forças de linha; escravos-de-ganho e negros
calhambolas; caixeiros que dormem fora da casa do patrão; vagabundos,
rufiões, prostitutas. Vivem numa promiscuidade indescritível. Há algumas
moradias mais ou menos decentes, mas predominam os pardieiros infectos.
Várias pessoas ou famílias ocupam a mesma divisão, que lhes serve de
dormitório, cozinha e oficina; muitos dormem em enxergas. Não há esgoto
nem captação de águas. As fossas das latrinas raramente são esvaziadas. Joga-
se o lixo na rua, que é uma cloaca empestada; há porcaria por toda a parte.
Abundam, em espeluncas repugnantes, as tabernas, os bordéis, os antros e os
covis de toda espécie. Numa dobra da rua, situa-se o beco do Céu, ponto onde
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Capítulo III
mal insuportável. Como disse Sherlock Holmes, todo grande criminoso tem
uma personalidade complexa.
A fracassada tentativa contra Quintella lança-o num estado de profunda
prostração.
Durante duas semanas, permanece o dia inteiro deitado, olhos abertos,
fixos no teto. Quase não come, não fala. Por duas vezes, o chefe de Polícia
manda chamá-lo, mas ele não atende. Apesar disso, todas as manhãs sai para
fazer suas devoções, na igreja matriz. Incansável, Catarina procura reanimá-lo.
"Nestas ocasiões ele perdia sua alma e eu fazia tudo para que a recapturasse",
escreverá ela mais tarde, na cadeia, na sua confissão.
Figura trágica, essa Catarina Palse. Nasceu na Hungria, mas etnicamente
é alemã. Fazia parte da minoria alemã da Transilvânia, pioneira no povoamento
do território constituir a Hungria. Seu pai era um artesão-sapateiro numa que
viria a aldeia muito pobre; além de Catarina, teve outros dois filhos.
A tragédia começa quando em 1848, Kossuth promove a revolução
húngara contra o domínio austríaco. No ano seguinte, a Rússia invade a
Hungria, a fim de ajudar a Áustria a sufocar a revolta, de acordo com as
estipulações do Tratado de Viena. Na Transilvânia, os russos não poupam
atrocidades. Ao ocupar a aldeia, massacram os habitantes, matando os pais e
os irmãos de Catarina. Ela é estuprada pela soldadesca, que a deixa semimorta.
Tem então 12 anos. Três anos depois, aos 15 anos, casa com Peter Palsen, um
cardador de lã.
Não suportando a miséria, o casal resolve emigrar para o Brasil,
aconselhado e ajudado por pastores protestantes. Embarcam em Hamburgo
em 1856. Durante a viagem, o marido de Catarina se enforca e ela chegará
sozinha a Porto Alegre, em 1857, quando conta com 20 anos de idade.
Nada se sabe sobre sua vida na cidade antes de 1862, quando conhece
José Ramos. Apura-se que foram viver num quarto à rua dos Pecados
Mortais*, entre a rua da Praia e a rua da Ponte. Deu-se à rua o nome de Pecados
Mortais devido a um correr de pequenas casas habitadas por prostitutas. Em
meados de 1863, o casal vai viver na rua do Arvoredo, numa casa alugada por
Ramos. O aluguel é módico, pois a casa é mal agourada. Em janeiro de 1853,
um taverneiro que nela residia foi degolado por dois assaltantes, nunca
identificados.
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peixe iluminam mal e expelem uma fuligem que suja a roupa. Nas noites de
luar não são acesos. Segundo as posturas municipais, ao toque do sino da
matriz, em horário fixado pelo chefe de Polícia, ninguém pode estar fora de
casa, salvo licença policial ou necessidade de médico. É perigoso andar à noite
nos becos fundos e escuros em que se emboscam negros calhambolas, sempre
rápidos no punhal.
Ramos cometeu seus sete primeiros assassinatos à noite, protegido pela
semiescuridão. Dificilmente vizinhos ou passantes identificariam as vítimas
quando entravam na casa es- cura da rua do Arvoredo. Então, por que é que,
em 1864, o criminoso rompe seu padrão compulsivo e passa a agir de dia,
primeiro na tentativa contra Quintella e depois no assassinato de Januário e
seu caixeiro? Quintella é visto à porta da casa e Januário entra nela na
companhia do assassino. O risco é tanto maior quanto que, agora, Ramos já
não conta com o imbatível álibi proporcionado pelo açougueiro Claussner. Não
pode sofrear a compulsão de matar? Ou talvez queira, inconsciente- mente, ser
apanhado para que o impeçam de continuar matando? As imprudências que
comete no caso de Januário são tão gritantes durante várias horas circula pela
cidade na companhia de sua futura vítima - que de fato parece querer que o
descubram e o prendam.
Ramos está perjurando o chacal
- Um animal noturno. Isto lhe será fatal.
Quando Ramos e Januário chegam, Catarina, na cozinha, já prepara a
janta. Sentam-se à mesa, e comem e bebem à farta. A bebida deixa Januário
muito alegre. A certa altura, diz a Ramos:
- Olhe, vossemecê pode pagar quando quiser aquela dívida. Não há muita
pressa.
Finda a refeição, Ramos convida Januário para se sentarem em um sofá
na varanda. Em dado momento, Ramos se levanta e vai à cozinha, onde
recomenda a Catarina que fique em uma das janelas da rua, a fim de evitar que
alguém entre inesperada- mente, ou dar aviso em caso de perigo.
Depois Ramos entra no quarto e volta à varanda, empunhando um
machado. Ao vê-lo, Januário pergunta, rindo:
- Vai matar alguém?
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degolado, o corpo é arrastado para o porão. Quando volta à sala, Ramos ouve
do lado de fora da casa um gemido doloroso de cão. Junto à porta, o bicho
geme e arranha a madeira. Agarrado e levado para o porão, é degolado.
À luz de velas, Ramos esquarteja os dois corpos. Procede de forma
metódica e precisa: separa completamente os ossos de suas articulações;
divide em três porções a coluna vertebral; separa as costelas de suas colunas
vertebral e esternal; separa os ossos do ilíaco, do sacro e as tíbias dos perônios;
separa os ossos do tarso de suas articulações...
Joga as postas sangrentas num poço abandonado no pátio, cobrindo-o
com lixo e galhos verdes. Volta à casa, onde Catarina, de joelhos, limpa as
manchas de sangue.
Ramos reúne as roupas e os objetos pessoais das vítimas e guarda-os
numa caixa, no quarto. Sempre guardou cuidadosamente as pertenças
pessoais de suas vítimas, não as vendendo ou usando. São como que relíquias.
Às vezes, abre uma das caixas, retira as peças e fica longo tempo a olhá-las.
Quando um criminoso mata para roubar - demonstrando a combinação
mais desprezível de violência e avareza - diz- se que cometeu um latrocínio.
Mas será que no caso de Ramos o assassinato é apenas o recurso empregado
para obter uma vantagem material? Não lhe faltava astúcia para roubar e
despojar suas vítimas, sem necessidade de assassiná-las. Mas fica claro que seu
móvel principal é o assassinato - o prazer de matar. Poderia matar a facadas ou
a tiros, mas sempre prefere fender a cabeça da vítima a machadadas, de alto a
baixo. Em seguida ao assassinato, invariavelmente degola o morto, pelo único
prazer de degolar. Note-se que ele degola até mesmo o cãozinho. Para fazer
desaparecer os cadáveres, não precisaria esquartejá-los. O cão era de pequeno
tamanho, mas Ramos trata de esquartejá-lo também: o esquartejamento era
outro dos seus prazeres. Não menos significativo: ele se compraz em
contemplar os "souvenirs" dos seus assassinatos. No decorrer da narrativa, o
perfil psicológico de Ramos irá se delineando de forma mais nítida.
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Capítulo IV
passou a ser o cenário luxuoso em que a elite gaúcha exibe seu poder
e sua riqueza.
Todos os anos, pelo menos uma companhia lírica estrangeira
vem cantar no São Pedro, e isso sempre excita tremenda- mente a
cidade, sacudindo o torpor provinciano. Embora seja o mais importante
acontecimento artístico e social, isso não impede que, fora do palco, os
artistas sejam tratados como gente baixa. Os don juans endinheirados
compram os favores das cantoras e assim aos olhos da população elas
não passam de rameiras. Não obstante, essas mesmas atrizes são
chamadas a desempenhar, nos autos e outros dramas sagrados das
igrejas, o papel de santas e da Virgem e isso gratuitamente. Uma jovem
cantora italiana sofreu uma discriminação trágica em 1863. Depois de
representar o papel da Virgem numa festa da capela do Menino Deus,
contraiu varíola e morreu. O padre da igreja das Dores, recusou-lhe os
sacramentos, sob a alegação de que era mulher dissoluta. Indignado, o
diretor da companhia instaurou processo contra o padre, mas este foi
absolvido, pois, disse a sentença, "a justiça não se ocupa de questões
religiosas".
Ramos sente-se atraído pelo cenário do São Pedro. Circula feliz
entre os cavalheiros encasacados e as damas decota- das. Tornou-se
conhecido entre os frequentadores do São Pedro, que certamente não
ignoram sua baixa condição social. A música comove-o até as lágrimas.
Saía do teatro, diz Catarina, "purificado".
Nessa noite, depois do teatro, vai jogar cartas no beco do Poço;
bafejado pela sorte, ganha bom dinheiro. Volta à casa ao amanhecer. A
fêmea não dormiu a noite inteira, à espera do seu chacal.
Amorosamente, despe-o e deita-o. Ele dorme até o meio da tarde. É
despertado por um soldado, com intimação para comparecer,
imediatamente, à presença do chefe de Polícia. Segundo a versão
oficial, na manhã de sábado, os vizinhos estranharam que a taverna
permanecesse fechada, sem sinal de Januário e seu caixeiro. O
segundo caixeiro e os escravos disseram que nada sabiam sobre o
paradeiro de ambos. Contudo, depois do meio-dia, vizinhos fizeram
uma comunicação à polícia, dizendo que na véspera os dois haviam sido
vistos na companhia de Ramos.
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Capítulo V
volta pela rua da Ponte. No caminho, não podendo mais andar, pedi a um
rapaz que me acompanhasse à minha casa, com quem ceei.
-Quem era esse rapaz?
- Não o conheço e suponho que mora na rua do Rosário, mas não
sei em que casa.
- Na casa em que reside, mora mais alguém além de Catarina Palse
e a preta Senhorinha?
Tenta Ramos, mais uma vez, culpabilizar Henrique, o corcunda:
-Lá comia e dormia, há três semanas mais ou menos, o
alemão corcunda chamado Henrique. - Em que quarto dormia esse
alemão?
- Na varanda.
- Qual é o emprego desse alemão? Ele lhe paga aluguel da morada?
Por que motivo o recebeu em sua casa?
Henrique tinha sido empregado no vapor pequeno chamado
Balastraca e nada tratamos sobre o aluguel. Recebi-o em minha casa
como conhecido.
- Henrique estava na casa da rua do Arvoredo toda a tarde e noite
de sexta-feira? -Sai às quatro horas para ir ter com Januário e quando
voltei às nove horas da noite minha mulher me disse que Henrique estava
deitado na cama da varanda, mas eu não o vi.
- Em que quarto o senhor morava e em que cama dormia? Morava
na alcova da sala, dormia em uma marquesa larga que está nessa alcova.
- Quem lavou a cortina dessa cama que dá e ainda deixa ver sinais
de sangue? suja. lhe é apresenta-
-Não sei e minha mulher saberá por que trata da roupa
- De quem eram os sinais de sangue que havia embaixo de sua cama
e em uma travessa da mesma cama?
- Não reparei nisso.
Ramos não entrega os pontos. Quanto mais o interrogador aperta
o cerco, mais aumenta a inventividade das suas respostas.
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Capítulo VI
- Nesses últimos dias, não viu em casa de Ramos algum indício que
lhe causasse suspeita de crime?
- Não vi indício de crime. Sexta-feira só vi chegar à casa de Ramos o
padeiro, de manhã bem cedo. Domingo fui à tarde e vi a polícia que ia
prender Ramos. E este, recostado no sofá, me disse que estava preso.
-O que fez durante toda a tarde e noite de sexta-feira?
- Nada. Nem saí do hotel em que moro. Teria sido fácil conferir o
álibi, mas não consta que se tenha feito isso.
- Depois da prisão de Ramos, falou com Catarina?
Mais tarde se saberá que mantiveram demorada conversa, mas
agora ele o nega tranquilamente:
- Não. Fui procurá-la ontem e os vizinhos disseram que ela tinha ido
para a casa de uma comadre.
- Há quanto tempo conhece José Ramos?
- Conheço há cinco ou seis anos, mas há um ano passei muito tempo
sem o ver e supus que tivesse morrido. Nos últimos três meses, porém,
encontrei-o de novo.
- Conheceu um alemão que tinha um açougue na rua da Ponte por
trás das Dores chamado Claussner?
Henrique ajudou a matar Claussner, mas nega havê-lo conhecido:
-Não. Mas conheci outro alemão que cortava carne nesse açougue;
não me lembro do nome.
- Sabe por que razão Ramos está preso?
- Na noite de domingo, perguntei por isso a um outro alemão
vizinho de Ramos, chamado Augusto, e este me disse que era por terem
descoberto um poço com carne na casa de Ramos, mas que era carne de
boi.
- Foi domingo que o alemão Augusto lhe deu essa informação?
- Domingo, das cinco para as cinco e meia da tarde, fui à casa de
Augusto e ouvi diversas pessoas falando em português. Como não
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tinha visto na sala, andava fugido há dois dias e José Ramos o tinha ido
levar apadrinhado. Isso que acabo de dizer era de noite. Sábado às
mesmas horas, Catarina veio perguntar-me se ainda tinha que sair.
Respondi que não. Ela fechou as mesmas portas e tornou a abrir mais
tarde.
Senhorinha confirma que na sexta-feira, à tardinha, Catarina lhe foi
pedir água para o mate. Quando Ramos jantou na sexta-feira estava no
Riacho lavando roupa.
- Sábado ou domingo viu José Ramos ou Catarina lavar roupa e um
lugar da alcova da sala que tivesse nódoas de sangue?
- Sábado e domingo não vi nada disso, mas na sexta-feira, quando
entrei da praia, depois de ter visto Januário na casa, encontrei Catarina
lavando a escada que desce para o quintal e depois a vi lavar uma taquara
grossa que estava cheia de sangue. Perguntei a razão disso. Catarina me
disse que vindo da cozinha com um prato de comida tinha tropeçado e
derramado a gordura na escada e sobre a taquara. Disse que José Ramos
tinha matado uma galinha e a jogara pela janela, de modo que tinha
espalhado o sangue.
- Depois que Ramos foi preso, Catarina lhe disse alguma coisa que
se referisse a aquelas pessoas que tinham estado na casa sexta-feira?
- Não. Depois da prisão, Catarina não apareceu mais em casa e só
hoje me falou quando me encontrou defronte ao açougue da rua do
Arvoredo, dizendo-me que não sabia o que José Ramos tinha, mas que
estava gira.
São onze horas da noite quando o chefe de Polícia dá por
encerradas as inquirições. Desde a manhã, a multidão postada à frente da
secretaria de polícia não arredou pé. Quando o chefe de Polícia abre a
janela, a multidão irrompe em gritos violentos, exigindo a entrega dos
"alemães fabricantes de linguiça humana". Callado arenga a multidão,
pedindo que se disperse, pois os presos só sairão dali para serem postos
na cadeia, a fim de serem julgados e punidos pela justiça. A multidão se
enfurece ainda mais e brada que quer justiçar os culpados.
Assustada, Catarina chora e pede a Callado que não deixe matarem-
na, pois só Ramos é culpado. Este mantém a calma e ironiza:
52
Capítulo VII
a este para diversos pontos sem receber resposta. Ouvi dizer na venda
vizinha ao açougue de Claussner, que José Ramos e Rathmann tinha
levado todos os trastes do açougue de Claussner.
Koboldt levanta a seguir a suspeita de que outros alemães tenham
sido assassinados Por Ramos:
- Faz dois ou três meses, veio de Santa Cruz ou de Rio Pardo, uma
alemã cujo nome não sei, mas que direi depois, para vender uma porção
de charutos. Segundo me disse um cabo de polícia que fala alemão, essa
mulher fez algumas compras, que pagou e não recebeu os objetos.
Depois desapareceu sem se despedir de ninguém e por isso depois de
descobertos os crimes de José Ramos, entre os alemães nasceu a
desconfiança de que também essa mulher tivesse sido por ele
assassinada. Tendo vindo um colono de Nova Petrópolis recomenda- do
a mim e que chegou pela barca de São Leopoldo há quinze dias e
retirando-se na sexta-feira passada, disse-me que enquanto teve dinheiro
de uma subscrição feita para vir dar queixa ao presidente da Provincia,
Henrique, o corcunda, não o tinha deixado e o levara à casa de Ramos
para ver uma roupa que tinha mandado fazer. Há 8 ou 16 dias, José Ramos
ofereceu a Antônio Tum, padeiro em frente à praça da Harmonia, dois
contos de réis a juros.
Dia 21, José Ramos é submetido a exaustivo interrogatório. O chefe
de Polícia lhe pergunta se conhece duas caixas verdes que lhe são
mostradas e o respectivo conteúdo: roupas e objetos pessoais de
Claussner, como um relógio com um cordão de cabelo, uma corrente de
ouro e chaves. Ramos responde sem vacilar:
- Os três colarinhos e o peito de camisa comprei na casa de
Paradeda; os aventais, cobertores e travesseiros, comprei a Claussner; os
três colarinhos achei-os velhos no açougue; o relógio troquei com o
mesmo Claussner por outro de prata; o cordão de cabelo e as meias
comprei a colonos que chegaram há pouco e cujos nomes não sei.
- Por que razão algumas roupas apresentam manchas de Sangue
- Não sei.
- Como houve as duas caixas ou baús verdes?
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com poucos anos de idade foi viver com os pais na Transilvânia, terra de
Catarina. Isabel promove reuniões religiosas em sua casa e goza de grande
ascendência sobre alguns alemães. Anos depois, terá um papel importante na
revelação dos crimes da linguiça de carne humana.
- O que lhe disse Catarina, quando foi à sua casa, sobre a prisão de José
Ramos?
- Catarina me disse que estava infeliz por ter sido seu marido preso. Eu
lhe perguntei por diversas vezes sobre o motivo da prisão, respondendo-me
constantemente que não sabia. Depois saí com meu marido e um filho para
visitar meu cunhado. Passando pela casa de José Ramos, onde havia muita
gente junta, um moço chamado Guilherme, que vai ser meu cunhado, ouviu
um preto dizer que naquela casa tinham achado gente morta. Contei isso a
Catarina e ela respondeu que não sabia de nada e que isso eram ditos de
pretos. Toda a noite levou Catarina chorando e na hora de nos deitarmos, deu-
me para guardar uma bolsa com dinheiro, dizendo que tinha ganho lavando e
engomando. Esse dinheiro ficou guardado na minha caixa. Tendo de sair no dia
seguinte, e estando fora quando foram buscar Catarina, não pôde ser por ela
levado. Mas voltando depois um soldado para buscar uma chave e um lenço
de Catarina, entreguei-lhe também o dinheiro.
Encerrando, declara Isabel:
-Quando José Ramos e Catarina se ofereceram para se- - rem padrinhos
de meu filho, usavam luxo e ela tinha compra- do um vestido de seda e uma
capa de custo de quatro mil réis ao côvado, com o dinheiro da sorte.
Neste dia 22, são ouvidas outras pessoas, em sua maioria alemães
relacionados com Ramos e Claussner. Basicamente, confirmam tudo quanto
se apurara, mas não dizem tudo que sabem. Anos depois se descobrirá que a
vizinhança mais ou menos sabia das monstruosidades praticadas por José
Ramos e seus comparsas em meados de 1863, mas o medo lhes sela os lábios.
O diplomata Caillois registra em suas memórias: "É voz geral que o
celerado usava a carne de suas vítimas para fabricar e vender linguiça, mas é
impossível saber a origem de tais rumores." O ceticismo do chefe de Polícia a
respeito daqueles rumores, parece bem fundado: o fato de que Ramos
enterrara três cadáveres no pátio de sua casa, provava que ele não usava a
carne de suas vítimas para fabricar linguiça.
67
Capítulo VII
Capítulo IX
juntos cometeram. Quer se reconciliar com Deus, por isso faz essa
confissão.
Em 15 de outubro de 1868, por fim, o chefe de Polícia manda chamar
Catarina à sua presença. Em relatório ao presidente da Provincia, Antônio
Pinto e Silva, tentará explicar as razões da demora em atender Catarina:
"Reiteradas vezes, essa mulher me mandou aviso de que queria
falar-me sobre assunto grave e urgente, mas nunca me sobejava tempo
para isso, além de que se sabe que todos os presos estão sempre a querer
falar ao chefe de Polícia, habitual- mente para queixar-se do carcereiro ou
reivindicar privilégios (...) Além disso, como é do conhecimento de V. Exa.
a guerra e a epidemia de cólera me absorveram todo o tempo."
A Guerra do Paraguai se tornara de fato o centro da vida da
Província. Sozinho, o Rio Grande já dera, dizia-se, tantos soldados para a
guerra como todas as outras províncias somadas. Não bastasse isso, a
Corte pusera a província em pé de guerra, ao ordenar que se organizasse
com urgência em seu território, um terceiro corpo de exército. O
recrutamento se fazia de forma violenta e arbitrária. Os ânimos se
exacerbaram mais ainda quando a Assembleia Geral, em dezembro de
1868, adiou para depois da guerra a eleição dos deputados gerais da
província. Criticava-se a má condução da guerra. A presença de nu-
merosa soldadesca, sem mínimas condições de higiene, desencadeara o
cólera.
Dario Rafael Callado fora substituído na chefia da Polícia por
Gervásio Campello, também um estranho à província. Esta nova
autoridade se conduzia de forma tão desastrada que um deputado do
governo admitiu, que o "chefe de Polícia não está à altura do cargo que
exerce", pois "desde o princípio do ano, aparecem fatos que provam que
o senhor chefe de Polícia não tem procedido com a prudência e a discrição
necessárias em seu cargo". Principais acusações: recrutamentos
forçados, prisões ilegais, desleixo administrativos e desídia funcional. Os
deputados governamentais pressionavam o presidente para que
solicitasse à Corte sua substituição.
Em outubro, mais exatamente, uma quarta-feira, dia 6, Campello
recebe Catarina. O magistrado maranhense Francisco José Furtado, que
presenciou o interrogatório, deixou a seguinte descrição de Catarina;
80
Capítulo X
Capítulo XI
Capítulo XII
INFORMAÇÃO BIBLIOGRÁFICA
Hipólito José da Costa não tenha nenhum jornal correspondente aos anos
de 1863 e 1864, pode-se encontrar, em jornais de outros anos, rica
informação sobre a cidade.
Devo a uma informação do historiador Sérgio da Costa Franco, a
descoberta e a leitura, na Biblioteca Pública de Porto Alegre, da seguinte
obra rara: Crônica de Porto Alegre. Coleção de artigos críticos sobre
costumes e fatos locais, publica- dos semanalmente no Mercantil, pelo
colaborador O Estudante (3 vols., Porto Alegre, 1855-1859). As crônicas
foram escritas alguns anos antes dos fatos relatados neste livro, mas suas
observações básicas são notoriamente válidas para os anos de 1863 e
1864. Escritas em estilo ágil e saboroso, as crônicas do Estudante são um
repositório inestimável de informações sobre o cotidiano de Porto
Alegre, em todos os aspectos.
testemunha, mas ao juiz, que por sua vez as fazia aos declarantes; em
seguida, o juiz ditava as respostas ao escrivão; no ditado, o juiz não
empregava diretamente as palavras do declarante, mas "redigia" as
respostas. Claro está que este método comprometia a autenticidade das
respostas. Nos casos em que os imigrantes alemães não falavam a língua
portuguesa, a inautenticidade das respostas transcritas era ainda maior.
Pois o juiz valia-se do intérprete, o que significa que a resposta dos
declarantes era reformulada duas vezes. No intuito de evitar o tedioso
formalismo judicial, apresento as perguntas e respostas sob a forma de
diálogo.