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Décio Freitas

O Maior Crime da Terra*

*Título de notícia do jornal francês Le Temps sobre os crimes de José Ramos


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"O destino quis que eu matasse, matasse,


matasse..."
De José Ramos, a Catarina Palse.

"Alguns dos assassinos mais famosos da história da


criminologia - homens para quem
o arsênico era um recurso tão repugnante que
preferiam agredir as mulheres com instrumentos
contundentes - comportavam-se como
autênticos cavalheiros somente para conseguir
um relacionamento ideal com as mulheres
que pretendiam assassinar.
O que é verdadeiramente aterrador nos malvados, é o
seu atrativo superficial, sua aparência amistosa. Na
vida real, a maioria dos assassinos é gente educada, às
vezes, encantadora."

Alfred Hitchcock,
The Saturday Evening Post, 07/07/1957

"Enquanto eles me procuram por


toda parte, eu espreito emboscado na noite."

De um poema de Radovan Karadzic,


psiquiatra e líder dos
sérvios da Bósnia, autor do massacre
de milhares de muçulmanos
num campo de refugiados da ONU.
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SUMÁRIO

Capítulo I ........................................................................ 5

Capítulo II ....................................................................... 13

Capítulo III ...................................................................... 24

Capítulo IV ...................................................................... 31

Capítulo V ....................................................................... 39

Capítulo VI ...................................................................... 48

Capítulo VII ..................................................................... 56

Capítulo VIII ................................................................... 67

Capítulo IX ..................................................................... 76

Capítulo X ...................................................................... 83

Capítulo XI ..................................................................... 91

Capítulo XII .................................................................... 98

INFORMAÇÃO BIBLIOGRÁFICA..................................... 101

CADERNO DE FOTOGRAFIAS......................................... 105


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Capítulo I

Sete horas e trinta da manhã de 1º de agosto de 1893, na


Santa Casa de Misericórdia, hospital para pobres na cidade de
Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre. Num catre
imundo, um homem agoniza. Seu rosto, quase inteira- mente
comido pelo "mal-de-lázaro", causa repugnância. Quando o padre
lhe dá a extrema-unção, nada vê por que está completamente
cego. Suas últimas palavras:
-Deus me fará justiça!
Está também presente um jovem médico recém-formado, o dr. Eduardo
Sarmento Leite da Fonseca, que se celebrizará como Sarmento Leite. Desde
que começou a praticar a medicina na Santa Casa, o dr. Sarmento Leite se
interessou por aquele homem cujo nome, em criança, ouvira com horror e
asco. Verificado o decesso, o dr. Sarmento Leite e seu colega dr. Olinto
procedem à autópsia. Antes de enterrarem o morto, o dr. Sarmento Leite
requer e obtém do juiz autorização para guardar seu crânio.
Embora positivista convicto, o dr. Sarmento Leite tem dúvidas sobre a
teoria do cientista judeu-italiano Cesare Lombroso - a teoria do criminoso nato,
um tipo humano especial, intermediário entre o louco e o selvagem, produto
de anomalias verificáveis no cérebro. Estas anomalias, segundo Lombroso,
proviriam em parte da degeneração e em parte do atavismo. O dr. Sarmento
Leite está abalado pela revolução que desde o começo do ano assola seu
Estado natal, uma revolução na qual os homens sistematicamente degolam os
adversários, sejam estes combatentes aprisionados ou pessoas pacíficas,
inclusive mulheres e crianças. Será tão grande o número de criminosos natos?
Depois de examinar demoradamente o crânio do criminoso que viu morrer na
Santa Casa, o dr. Sarmento Leite escreve a um colega de turma no Rio de
Janeiro, onde se formou, expondo as suas conclusões. Não encontrou,
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naquele crânio, traços físicos distintos dos comuns - nada que indicasse a
anomalia sustentada por Lombroso. E termina a carta com uma hipótese: "O
ato de matar não estará ligado às funções vitais do homem, como o ato de se
alimentar?"
Os abomináveis crimes cometidos por José Ramos na cidade de Porto
Alegre, em meados do século passado, só chocam e soam inverossímeis
porque se tende a esquecer a crua verdade de que o homem é,
essencialmente, um animal, sem dúvida superior aos outros animais, mas,
apesar desta evolução, não mais capaz do que eles de transcender a
animalidade.
Segue-se daí que, por ser um animal, está sujeito aos instintos
básicos de todos os animais: a necessidade do alimento, a compulsão
para o sexo (reprodução) e a busca do poder. O "maravilhoso"
homem, que arrogantemente se julga a criação de uma deidade, faz
parte de uma amoral ordem predatória e canibalesca. Os instintos
animais sobrevivem e subjazem na ordem civilizada que ele criou na
tentativa de elevar-se acima dos outros animais. A sociedade procura
controlar os instintos básicos da animalidade, ao passo que a religião
e a arte são um esforço do homem para se espiritualizar,
transcendendo a animalidade. Mediante a criação de uma ordem
moral, o homem tenta diferenciar-se do mundo animal não-humano.
Mas toda sua história atesta o fracasso destas tentativas. A estuante,
poderosa vitalidade do animal-homem não cessa de se manifestar,
indiferente aos valores do bem e do mal. A fundamental bête
humaine, que Émile Zola descreveu em sua obra, embora os
biógrafos testemunhem que o escritor nunca leu Charles Darwin,
nem admitiu conscientemente essa concepção - está presente todo
o tempo no homem, e emerge à menor oportunidade. Para Zola, as
interdições destinadas a manter sob controle a bête humaine, são
sempre precárias, e o homem está constantemente recaindo no
estado de natureza animal.
A ambição moral do homem de negar sua linhagem animal,
sempre o levou a condenar o homicídio, mas, ao mesmo tempo, dada
a irrefreabilidade dos instintos, nunca deixou de legitimá-lo, em
certas circunstâncias. O homicídio, em outras palavras, foi
regulamentado. Exemplo disso é o homicídio cometido
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coletivamente, ao qual se empresta um sentido moral, em nome com


pátria, da religião, do povo, da classe social. Os glorificados líderes
destas carnificinas são, como disse Voltaire, delinquentes ilustres.
Também se autoriza o homicídio individual, em nome da lei ou do
estado de necessidade. Fora destas hipóteses, passa por
manifestação patológica, como se não traduzisse a incontrolável
bestialidade humana. A mola da violência homicida é o fantástico
gozo proporcionado pelo poder de matar, de dispor da vida de outro
homem - um poder que faz o homicida sentir-se um deus. Nada, nem
a possibilidade de morrer no patíbulo ou no campo de batalha,
dissuade o homem da busca do prazer de matar. No chamado
latrocínio, a vantagem econômica é apenas eventual e, como o
demonstra
A história criminal, quase sempre modesta. Nada mais do que
modestas eram as compensações materiais obtidas por José Ramos
em seus homicídios, e ninguém que se dê ao trabalho de ler esta
narrativa, terá a menor dúvida de que ele sentia um imenso prazer
em matar, um prazer ainda maior do que o proporcionado pela arte,
que amava apaixonadamente. Os habitantes da província se
entregavam periodicamente a grandes festins homicidas, em nome
da pátria, nos quais se cumpria de forma pontual o rito de degolar os
adversários, que por sua vez adotavam idêntico procedimento.
Deve- se admitir que Ramos achasse apenas natural o homicídio
individual-e a prática da degola. Tanto mais que, nos homicídios
individuais, costumava-se degolar a vítima. Nos suicídios - tão
frequentes, na capital e no interior, que um presidente da província,
em relatório à Assembleia Provincial, manifestou-se perplexo - era
frequente a auto degola.
Mas o que realmente horrorizou a cidade, para sempre, foi o
canibalismo. Ramos mandou fabricar e vender linguiça com a carne
de suas vítimas, e assim fez a cidade comer carne humana, violando
um dos interditos observados por todos os animais - não comer
outros da mesma espécie. A cidade, em consequência, empenhou-se
em negar o estigma do canibalismo, e são muitos os fatos a
indicarem isso.
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Um desses fatos foi a decisão de um juiz, apoiado pelo


promotor público, de não submeter ao júri os crimes da linguiça
humana, avocando a si o julgamento singular, a pretexto de que não
havia provas suficientes, motivo pelo qual absolveu liminarmente os
acusados. A falta de provas decorreu de flagrante desídia do próprio
julgador quando, no exercício da função de chefe de Polícia, deixou
de promover diligências policiais rotineiras e indeclináveis. O
objetivo dessa manobra foi evitar a publicidade que o julgamento
pelo júri daria aos crimes da linguiça humana, provocando uma
comoção popular ainda mais violenta que a de anos antes, quando
corriam apenas rumores sobre o fato.
Nenhum jornal da cidade noticiou os crimes da linguiça
humana. Não consta que os tenha noticiado algum jornal do Rio de
Janeiro. Até onde foi possível apurar, só um jornal uru- guaio e um
jornal francês registraram o caso, embora o fato ter sido comentado
por Charles Darwin, autorize a suposição de que algo saiu na
imprensa inglesa. Depois, os cronistas da cidade, embora referindo-
se aos crimes da linguiça humana, silenciaram sobre os detalhes
existentes no processo judicial.
No ano de 1948, comprovei pessoalmente o empenho da
cidade de negar os crimes da linguiça humana. A seguir, relato como
se deu isso. Nos anos 40, os dois jornais de maior circulação na cidade
eram o Correio do Povo e o Diário de Notícias, este um órgão dos
Diários Associados. A tiragem do primeiro excedia, folgadamente, a
do segundo. O apaixonado sonho de Ernesto Correa, diretor do
Diário de Notícias, era superar a tiragem do Correio do Povo, mas,
por mais que se esforçasse, não tinha êxito.
Conseguiu finalmente suplantar o concorrente, durante mais
de um ano, a partir de dezembro de 1948. E isso graças à publicação,
em forma de folhetim - um capítulo por dia - da história dos "crimes
célebres de Porto Alegre". Uma vez que eu era um repórter formado
em direito e já no exercício da advocacia, entendeu Ernesto Correa
de me designar para a tarefa. Mergulhei na massa considerável de
processos do Arquivo Público do Estado, pesquisando os "crimes
célebres". Foi um trabalho insano, mas, ao mesmo tempo,
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emocionante, e não tenho dúvida de que me deu o gosto pela


história.
Iniciei a pesquisa em janeiro de 1948 e já em dezembro o Diário
de Notícias iniciava a publicação dos folhetins. Não se tratava de
relato histórico, mas de novelização dos fatos, dentro de uma
preocupação nitidamente jornalística e, devo dizê-lo,
sensacionalista. Cada capítulo se fazia acompanhar de uma
ilustração, um desenho feito por Tom, artista cujo nome,
infelizmente, não recordo. O sucesso de público, enorme, permitiu
ao Diário de Notícias suplantar seu rival.
Por motivos que não vêm ao caso, não assinei os folhetins,
preferindo usar o pseudônimo de Mauricio Machado. O primeiro
folhetim foi exatamente sobre os crimes de José Ramos, sob o título
de O Açougue Humano da rua do Arvoredo. À medida que a história
avançava, Ernesto Corrêa passou a ser procurado, e pressionado, por
pessoas as mais diversas, representativas da cidade- lembro-me do
oficial de gabinete do prefeito e de um monsenhor no sentido de
silenciar-se sobre o - consumo de linguiça de carne humana pela
população. Ponderava-se, de uma maneira geral, que semelhante
revelação seria demasiado chocante para a população; argumentou-
se, mesmo, que a produção e o comércio de linguiça sofreriam uma
retração nas vendas. A pressão foi eficaz: o folhetim evitou ser
conclusivo sobre o consumo da linguiça de carne humana.
Fiquei chocado com aquela censura social, e creio que isso me
fez jogar o episódio nos porões da memória, entre outras tralhas. O
escritor Luiz Antônio de Assis Brasil, em 1986, lembrou-se dos crimes
de José Ramos quando trabalhava num romance cuja ação se
passava naquela época. Pediu-me subsídios, que incorporou a seu
romance Cães da Provincia, uma fascinante descida aos infernos da
loucura que assolava o burgo provinciano, e aparentemente pacato,
de 20 mil habitantes.
Só voltei ao assunto quando conheci em Porto Alegre o
historiador americano Roger Kintelsen, que aqui viveu entre 1989 e
1992, pesquisando para um livro sobre a cultura popular gaúcha na
segunda metade do século passado. Falei-lhe sobre o caso, e ele
manifestou interesse em ler os processos no Arquivo Público do
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Estado. Passados dias, Kintelsen informou-me que os processos,


simplesmente, haviam desaparecido do Arquivo. Noticiado o
desaparecimento pela Zero Hora, a direção do Arquivo Histórico
informou que a documentação se encontrava em seu poder, enviada
há anos pelo Arquivo Público.
Em 1948, eu havia consultado dois volumes de processos sobre
os crimes de José Ramos. Na verdade, três foram os processos em
três volumes separados que a Justiça instaurou - - contra José
Ramos. O primeiro processo versou sobre o assassinato do
português Januário e seu caixeiro. O segundo processo teve por
objeto o assassinato do açougueiro Claussner. Houve, finalmente,
um terceiro processo, relativos aos assassinatos da linguiça de carne
humana. O primeiro processo já não se encontrava em 1948 no
Arquivo Público do Estado; desaparecera completamente.
No Arquivo Histórico do Estado, Kintelsen só encontrou o
segundo processo, relativo ao assassinato de Claussner.
Desaparecera o terceiro processo, relativo aos crimes da linguiça
humana. Não foi tampouco encontrado no Arquivo Público do
Estado. Felizmente, em 1948, eu tirara fotocópia de tudo que
encontrara, ou seja, o segundo e o terceiro processos. Assim,
Kintelsen pôde documentar-se para seu livro, que segundo me
informam já foi publicado nos Estados Unidos. Posterior- mente,
achei no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, cópia autêntica do
segundo e do terceiro processos; também lá não se encontra o
primeiro processo.
Em 1993, o Arquivo Histórico tomou a iniciativa de publicar
uma transcrição do segundo processo, sob o título os crimes da rua
do Arvoredo. Prefaciando a publicação, o antropólogo Rovilio Costa
e o bibliófilo Itálico Marcon afirmam que "parece fora de dúvida que
o processo está salvo na integra". Mas o que "está salvo na integra"
é somente o segundo processo, relativo ao assassinato de Claussner.
Recapitulando, os fatos que configuram a negação, são em
resumo os seguintes: o desaparecimento do primeiro e do terceiro
processos; o golpe judicial para subtrair ao julgamento pelo júri o
caso da linguiça humana e ensejar a absolvição li- minar dos acusados
pelo juiz singular; o silêncio dos jornais locais da época e dos
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cronistas da cidade, salvo Aquiles Porto Alegre, que registra a


fabricação da linguiça de carne humana; e, em último lugar, mas não
menos importante, as pressões sofridas pelo Diário de Notícias, em
1948, para que não mencionasse a questão da linguiça de carne
humana.
Pensando bem, na medida em que, durante mais de 40 anos,
deixei de lado o caso de José Ramos, resistindo a todas as sugestões
para retomá-lo e ampliá-lo, nada mais fiz, como todo mundo, do que
negá-lo. Não queria, no fundo, aceitar a imutabilidade da bête
humaine. Engajei-me no projeto, caracteristicamente moderno, de
angelizar o homem mediante a mudança das estruturas sociais, pois
elas é que seriam responsáveis pelas repulsivas manifestações
predatórias e canibalescas do homem. Pois o preceito que rezava ser
condenável "comer carne humana", não devia ser tomado num
sentido apenas literal, mas também metafórico. A existente ordem
social constituía um sistema canibal, do qual o homem era uma
vítima digna de compaixão e solidariedade. Impunha-se criar uma
verdadeira ordem civilizada, um universo racional e justo, capaz de
transmutar a bête humaine em ange humaine. A desanimalização,
que nem a religião, nem a arte haviam conseguido, seria conseguida
por meio de um sistema social baseado na igualdade fraternal. O
desfecho do experimento, em várias partes do mundo, fala por si
mesmo.
Francamente, não vejo o caso de José Ramos como uma forma
patológica de manifestação da animalidade humana, visto que
corresponde à natureza essencial e imutável do homem, como o
atesta todo o quadro sangrento, devastador e caótico deste fim de
milênio, nas ruas das cidades e nos conflitos bélicos. O conceito de
patológico não tem nada de científico, já que as diversas disciplinas
psicológicas não projetam luz capaz de explicar e prever estas orgias
homicidas. O que a história da civilização e, particularmente, do
crime, testemunham fora de dúvida, é que o fenômeno pode se
manifestar em todos os indivíduos, todos os povos, todos os
sistemas sociais, sem que ninguém ou nenhuma instituição sejam
capazes de prevê- lo e, muito menos, impedi-lo. Não há maneira de
prever se um indivíduo guindado ao poder promoverá guerras e
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outros genocídios toda guerra é um genocídio - - ou quem, no meio


da multidão, é um serial killer. E a bestialidade como espetáculo e
divertimento, não é certamente uma invenção da moderna indústria
cultural; as arenas dos circos romanos são o precedente mais
notório. Em compensação, estamos num patamar acima do chacal:
nosso sorriso já não se destina, como primitivamente, a mostrar os
caninos, e o latido transformou-se em riso.
Isto posto, passemos à história de José Ramos, ou melhor, daquilo
que se pôde recuperar de tal história, mergulhada durante 130 anos no
fundo da memória coletiva da cidade. Todos os fatos do passado têm
a sua história assim como a sua lenda. Este livro é uma tentativa de
separar a história e a lenda nos crimes de José Ramos.
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Capítulo II

A história dos crimes de José Ramos deve começar pelos dois


últimos assassinatos, pois a partir daí é que se começa a desvendar a
trama.
Quando ele comete estes assassinatos, no dia 15 de abril de 1864, faz
mais de sete meses que não mata alguém. Desde que assassinou seu parceiro
Carlos Claussner, em setembro de 1863, sente-se inseguro. O açougueiro
alemão garantia-lhe o álibi perfeito e a certeza da impunidade. Não consegue
agora vencer o medo da forca.
Medo... Ele disse uma vez a Catarina Palse que não tinha medo de nada,
a não ser do medo: "Tenho medo do medo." Após a morte de Carlos Claussner,
sempre que decide matar, vê-se no lugar do parricida cujo enforcamento
assistiu, anos atrás, na praça da Harmonia. Contou o episódio a Catarina Palse.
A manhã é de julho. Deve ser uma manhã gelada. Ramos faz parte da
escolta que retira da prisão um jovem condenado à morte por parricídio o
conduz até a Santa Casa, no alto da colina. As praças estão fardadas a rigor:
ponche de pano azul, manta de lã, camisa de algodão, blusa de brim, calças
brancas e chapéu com barbicacho. Empunham espadas nuas, para evitar a
fuga do preso. Marcham a pé, menos o comandante, que vai a cavalo, à frente.
Diante da Santa Casa, uma pequena multidão está reunida para ver o
condenado. No oratório, ele é aguardado por familiares e por um padre. Pouco
depois, chegam o juiz das execuções, o escrivão, o meirinho, e irmãos da Santa
Casa vestidos com seus balandraus (capas). Lida a sentença, o carrasco retira-
lhe as algemas, manieta-lhe os braços e veste-lhe amplo casacão de algodão
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branco. O comandante da tropa entra no oratório e comunica há que a força


está formada.
O condenado sai, no centro de um quadrado de soldados, seguido pelo
sacerdote e por um irmão da Santa Casa.
O cortejo entra na capela de Nosso Senhor dos Passos, onde o
condenado assiste, genuflexo, à missa em intenção de sua alma. A seguir,
inicia-se a marcha para o largo da forca, na praça da Harmonia. Determina a lei
que o cortejo atravesse a cidade. Esta tem pouco mais de um quilômetro de
extensão, entre a Santa Casa e a praça da Harmonia; e a largura é de
pouco mais de quinhentos metros, contados entre a rua da Praia e a praça da
Matriz.
O cortejo desce a ladeira que liga o largo da Misericórdia à rua da Praia.
Noutro tempo, o trecho entre o largo da Misericórdia* e a rua da Ladeira,
chamava-se rua da Graça. A rua da Praia, propriamente dita, começava na
praça da Alfândega e ia até a rua da Passagem**.
Principal artéria comercial e residencial da cidade, a rua da Praia se
estende à margem do Guaíba. Predominam sobrados toscos e desgraciosos
que abrigam estabelecimentos comerciais no térreo e residências no segundo
pavimento. O calçamento é de pedras irregulares. Diante de cada casa, há pelo
menos dois frades de pedra. O escoamento pluvial se faz pelas sarjetas.
A rua está apinhada de gente nos passeios. Há espectadores à porta de
todas as casas comerciais e à janela das residências. O cortejo avança devagar,
horrendamente devagar, em meio a um silêncio pesado, enquanto o meirinho
faz o pregão: "Vai- se executar a sentença de morte natural, na forca, proferida
contra o condenado." O cortejo é seguido por cães vadios, que de resto
infestam a cidade.
Chega-se finalmente à praça da Harmonia, grande extensão às margens
do rio, na ponta da península. Trata-se de área pantanosa que anos depois será
aterrada. Durante a noite, limpou-se a vegetação rasteira e construiu-se o
cadafalso, diante da igreja das Dores. No público presente, predominam
escravos e escolares, mandados a fim de escarmentá-los com o exemplo do
que acontece aos infratores dos mandamentos e das leis. No cadafalso, o
meirinho lê a sentença pela última vez e o padre reza em voz alta o "Creio em
Deus". Num gesto rápido, o carrasco coloca o laço no pescoço do condenado
e retira o alçapão sob seus pés. O corpo se contorce e afinal se imobiliza. Então
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José Ramos perde os sentidos, tombando num baque surdo. Ramos já


assistira, imperturbável, a outro enforcamento. Mas este o abala de forma
violenta porque ele próprio é um parricida.
(* Praça Dom Feliciano. **Rua General Salustiano.)
Seu pai, Manoel Ramos, nasceu na província de São Pedro e no início da
Revolução Farroupilha serviu num esquadrão de cavalaria do exército de
Bento Gonçalves. Mas desertou e fugiu para Santa Catarina, onde se casou
com uma índia, Maria da Conceição, e se estabeleceu com venda de secos e
molhados na ilha do Desterro.
Aí nasce José Ramos, o mais velho de três filhos homens. Nos serões, o
pai conta os feitos da guerra, que José ouve atentamente. Pede ao pai que
conte, sem-número de vezes, as cargas de cavalaria em que se dava o toque
de "degolar", insistindo para que ele dê os detalhes sobre o modo de praticar
a degola.
Mas um dia, já rapaz, sai em defesa da mãe, espancada pelo pai bêbado.
Na luta entre os dois, José lança mão de uma faca e fere gravemente o pai, que
morre dois dias depois. O parricida foge para a província de São Pedro e senta
praça como soldado de polícia, função que exercerá de forma exemplar, até o
dia em que o surpreendem quando está prestes a degolar um preso em sua
cela.
O preso é ninguém menos que campara, o Robin Hood dos Pampas.
Também Campara - Domingos José da Costa- nasceu em Santa Catarina, filho
de um coronel muito bem-conceituado. Campara começa por praticar assaltos
em Lages; preso, foge para o Rio Grande do Sul e passa a operar em vá- rias
regiões da província. Torna-se célebre pelo fato de que rouba de ricos e
distribui o produto do saque entre os pobres. Contam-se rasgos de
generosidade sem nome, em benefício de famílias pobres e pessoas
desamparadas. Nunca matou ou feriu alguém. Nos assaltos, vale-se da astúcia,
da sua extraordinária força física e do prestígio de seu nome. Preso em Santa
Maria, foge da cadeia, mas em novembro de 1862 é preso de novo em Vacaria.
Para maior segurança, trancafiam-no no presídio de Porto Alegre, onde é
colocado sozinho em uma cela. José Ramos entra na cela, algema-o e tenta
degolá-lo, sob o pretexto de que o surpreendera quando tentava fugir. Na
verdade, Ramos deve sentir inveja daquele jovem simpático que, apesar de
todos os seus delitos, é amado pelo povo.
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Exigem-lhe que peça baixa, para evitar penalização criminal, desabona


tória à instituição. O título de baixa só é efetivamente expedido em 29 de
novembro de 1863, mas de fato ele deixa logo de exercer a função de soldado,
passando a servir como informante, diretamente ligado ao chefe de Polícia,
Da- rio Callado. A mudança de função é realmente uma promoção, pois Ramos
não só fica dispensado da disciplina militar, como passa a ganhar mais.
O chefe de Polícia, não se sabe por que motivo, anda às turras com a
Câmara de Vereadores e determina a José Ramos que a espione,
principalmente no tocante às licenças para construir, às obras públicas, à
fiscalização das posturas municipais. No Império, as cidades não têm prefeitos
e são administradas pelas câmaras. O chefe de Polícia, é de supor, quer reunir
provas de desídia e corrupção dos edis.
As provas são tão abundantes e gritantes que dispensa- riam
espionagem. Quarta cidade do Império - 20 mil habitantes, 4 mil casas, 18
edifícios públicos, 7 templos, comércio intenso - Porto Alegre é um caos
urbano.
Não sabemos o que José Ramos informa ao chefe de Polícia, mas a
situação urbana deve ser a mesma que descreveu na década anterior o
cronista da cidade que se escondia sob o pseudônimo de O Estudante.
Zombeteiramente, o cronista chama Porto Alegre de "cidade das alegrias" e
"terra alegre". Diz ao leitor que, para ver os "desconsertos das ruas", siga um
roteiro: "Comece pela praça, e vá seguindo por essas ruas fora: há de se ver
casas para as quais a gente desce 10 degraus, outras que ficam como ninhos
de cegonhas em cima do morro (...). Me lembra uma no beco do Barbosa*,
canto da rua, que os donos a hão de aproveitar quando puserem um guindaste
para içar e arrear os inquilinos; no Alto da Bronze há uma que o amigo dono
lhe emendou um andar por baixo; na rua da Igreja há duas onde a gente pode
entrar pelo telhado; na Várzea as casas que estavam na frente da rua ficaram
para o fundo, e nas marinhas os fundos das casas é que formam a frente
pitoresca da cidade." Lamenta que a "Ilustríssima" não veja estas coisas.
Quanto às obras públicas, "a nossa terra é caipora: as pontes ficam debaixo
d'água, os alicerces sobem para cima da terra. São gostos de engenheiros, e
ainda não há regulamentos para os gostos". Os negros não são policiados
devidamente: caminham pelas calçadas, e os capoeiras não são reprimidos; os
quilombolas que se homiziam na periferia da cidade não são "desbaratados";
cadáveres de negros encontrados nas ruas, só são removidos depois de muitas
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horas. Nos quintais de muitos sobrados ricos, há criações de porcos. Em toda


parte, o lixo se acumula. De resto, nessa altura estão consumadas as
monstruosidades urbanísticas que a cidade nunca conseguirá corrigir, e a
população já cultiva uma estética da fealdade que sobrevive ainda no final do
século XX. O diplomata francês Jean-Pierre Caillois dirá, em 1864, que a cidade
é "deprimente". Quando começa a praticar seus crimes, Ramos ainda tem por
função específica espionar a Câmara de Vereadores. Aos 26 anos, é um
mestiço-claro, alto e forte, com uma pequena barba.
Rua Barros Cassal*

Veste-se impecavelmente; suas botas estão sempre bem lustradas; o


cavalo é bem aperado. Possui razoável instrução, embora não se saiba como a
adquiriu. Além do português, fala e escreve o alemão. Gosta de ler, e suas
leituras prediletas são a poesia e a Bíblia; mas a sua grande paixão é a música,
que procura ouvir onde quer que a toquem. Quase todas as manhãs, vai à
missa na matriz e quase sempre comunga. Fanático da limpeza, detesta a
obscena sujeira da cidade. Suas boas maneiras encantam a todos. "Seria capaz
de seduzir o demônio", dirá o padre português Aureliano Dias. O diplomata
francês Jean-Pierre Caillois, que o viu no tribunal, teve uma impressão
diferente: "Seus olhos enormes têm quase sempre uma expressão infantil,
mas quando se exaspera, seu olhar se torna faiscante e assustador."
Depois da morte de Claussner, Ramos perdeu a tranquila autoconfiança
de que gozara ao matar seis pessoas, num curto período de dois meses, no ano
de 1863. Seu medo é de que, preso por um novo crime, descubra-se que é um
parricida, pois está certo de que jamais poderão puni-lo pelos crimes de 1863.
No período entre setembro de 1863 e 15 de abril de 1864, chegou a planejar
três assassinatos, mas, à última hora, recuou assustado.
A compulsão de matar se faz acompanhar da ânsia de gozar os frutos
materiais do crime. Sente falta, dolorosamente, dos grandes dias que viveu
após a série de assassinatos. Comprara para si roupas iguais às dos ricos:
sobrecasaca de pano preto, fraque de casimira e de merino roía, paletó com
gola de veludo e frente de seda, calças de caxemira preta, colete de casimira,
camisas... Para sua mulher Catarina, comprara chapéus, grenadinas de seda,
tarlatana fina, faixas de gorgorão, capas de seda, espartilhos, luvas de pelica e
leques de madre- pérola. Permitira-se comer e beber do melhor: azeitonas de
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Elvas e do Douro; lagostas e ostras; atum em lata; perdiz e tordo em conservas;


farinha láctea de Henry Nestlé de Vovoy; vinhos do Reno, do Mosela, de
Bordeaux, da Borgonha; licores finos, champanhe, cognac, cerveja importada,
mostarda belga. Fumara os melhores charutos de Havana, superiores aos que
eram fabricados pelos imigrantes alemães. Alugara um escravo, que o seguia
na rua, empunhando um guarda-sol para proteger-lhe a cabeça. No último
carnaval, ainda tivera dinheiro suficiente para participar de um baile "masqué"
no teatro São Pedro, fantasiado de vereador: casaca azul com botões
amarelos, chapéu armado de feltro com plumas e bastão encastoa- do em
imitação de prata e ouro.
Agora, o dinheiro acabou. Ramos está reduzido aos magros 20 mil réis
que ganha mensalmente como informante da polícia; pagos os 14 mil réis do
aluguel da rua do Arvoredo', passaria fome sem o dinheiro que a companheira
Catarina Palse ganha como engomadeira. Nas noites em que sai à rua, Catarina
traz pouco dinheiro, pois as prostitutas são tantas que inundam as ruas de
noite e os homens têm preferência pelas escravas-de-ganho, negras ou
mulatas, que os amos, até mesmo mulheres ricas, empregam no ofício.
O chacal que mora em Ramos está, acima de tudo, sequioso de sangue.
E em meados de março de 1864, assume finalmente a determinação de matar
de novo.
Isso quando conhece o português José Luís de Caldas Quintella, na casa
de Luís Antônio Rodrigues Príncipe, seu fia- dor na casa da rua do Arvoredo*.
Príncipe é um comerciante português que aos 40 anos permanece solteiro.
Passa por rico, pois vive numa casa de três andares na rua de Bragança**, uma
das ruas das classes nobres: no andar térreo, estão os armazéns de secos e
molhados; no primeiro andar, com seis janelas, está sua residência; no segundo
andar, há um belo mirante. Vivem também na casa os caixeiros, dois meninos
portugueses, dois escravos e uma escrava. Veste luxuosamente: sobrecasaca
verde, colete amarelo, calça branca.
Quintella reside no Rio de Janeiro, onde possui um botequim. Veio a
Porto Alegre, faz meses, a fim de arrecadar o espólio de seus dois irmãos,
Manuel e Antônio, padeiros à rua de Bragança, assassinados dentro de casa, a
golpes de achas de lenha, por seus escravos Delfino, Silvestre e Camilo, fugidos
para lugar incerto e não sabido. Os padeiros deviam ser senho res-de-escravos
do tipo descrito pelo irreverente cronista O Estudante: "Senhores que tratam
19

os escravos a um quarto de ração de comida, meia ração de sono, ração e meia


de trabalho e três rações de chicote."
Principe figura entre os devedores dos irmãos assassinados e Quintella
exige pagamento imediato, sob pena protesto e falência.
(*Rua Fernando Machado. **Rua Mal. Floriano)

Poucos dias depois, quando examina um fogão no estabelecimento de


um leiloeiro no beco da Ópera*, Ramos avista Quintella que passa a pé,
envergando uma sobrecasaca de cor de rapé e empunhando um chapéu de sol
de pano azul e cabo de latão. Ramos puxa conversa:
- O senhor tem uma questão judicial contra Principe, não é?
- É, por causa de dinheiro que devia a meus falecidos irmãos.
- Ah, então fiz bem em não emprestar uma quantia que Principe me
pediu.
Ramos avalia Quintella. Mora no Rio de Janeiro e não tem familiares ou
amigos íntimos na cidade. Não haverá quem se interesse em averiguar seu
desaparecimento. Ramos faz discretas indagações sobre o lugar onde mora o
português e apura que costuma carregar consigo boas quantias.
Na semana seguinte, está sentado na venda de um português de
sobrenome Antunes, à rua da Ponte**, quando vê Quintella a cavalo. Rápido,
sai à rua e o aborda:
- Olhe, tenho uma letra de Príncipe, no valor de um conto e
seiscentos mil réis. Passe em minha casa que a mostrarei.
- Isso é mentira - Diz rudemente Quintella - Disse-me há dias que não
emprestou dinheiro a Principe.
- Disse por discrição. Preciso de dinheiro e estou disposto a vender
a letra por metade de seu valor.
Após um momento de vacilação, Caldas manifesta interesse:
- Está bem, passarei em sua casa hoje à tarde, quando sair.
20

Quando mais tarde for ouvido pela polícia, Príncipe negará


categoricamente que deva seja o que for a José Ramos. Eis como transcorre a
inquirição:
- Conhece José Ramos?
- Conheço como freguês que ia comprar à minha casa há dois anos.
- É credor ou devedor dele?
(Rua Uruguai* Rua Riachuelo**.)

- Sou credor da quantia de 33 e tantos mil réis de gêneros vendidos.


- Sob que fundamento José Ramos declarou ter uma letra sua?
- Não sei e há alguns dias vi correr esse boato, pelo que publiquei
hoje um desmentido pelos jornais. Posso mostrar meus livros pelos quais
se vê que José Ramos está mensalmente debitado em pequenas quantias
por compras de gêneros e no dia 8 de março, instado por mim, pagou 20
mil reis por conta.
- Encarregou-o de alguma cobrança?
-Não, nem haverá devedor algum meu que possa declarar isso.
-Não o encarregou de alguma comissão?
- Na Semana Santa, estando sem caixeiro, mandei José Ramos
comprar banha de porco e ele trouxe-me a amostra. Depois foi fazer a
compra, mas por favor e sem receber pagamento.
Parece falsa, portanto, a alegação de José Ramos de que possuía uma
letra de Príncipe. Apesar de tudo, transparece que havia uma intimidade
bastante grande entre os dois; não é sem motivo que Príncipe se tornou fiador
de Ramos. Não se pode evitar uma suspeita: estará Príncipe interessado na
eliminação de Quintella, que o ameaça de falência?
E talvez a ida de Quintella à casa de Ramos não seja motivada pela
avareza. Quando investiga os dois últimos assassinatos de Ramos, em abril de
1864, a polícia faz indagações sobre uma possível ligação entre ele e os três
escravos que assassinaram os dois padeiros portugueses da rua de Bragança,
em junho de 1863. Pergunta-se mesmo a Catarina "se no ano passado, José
Ramos esteve em casa com três negros", se "por esse tempo José Ramos
apareceu em casa com dinheiro em prata e ouro" e se "era a padaria da rua de
21

Bragança que fornecia pão à casa de José Ramos". Catarina responde, é claro,
negativa- mente. Mas em maio de 1869, durante uma expedição policial a uma
das ilhas do Guaíba onde se homiziavam escravos fugi- dos, é preso Silvestre,
um dos assassinos dos padeiros. Silvestre declara perante o juiz que antes do
assassinato "conversaram com o soldado de polícia José Ramos, o qual os
instigou ao crime, prometendo-lhes ajuda na fuga". Cometidos os
assassinatos, "esconderam-se na casa de José Ramos", o qual passou toda a
noite a pedir-lhes detalhes dos crimes, querendo saber minuciosamente como
se dera a morte dos padeiros".
Pouco antes do alvorecer, Ramos levou-os "até onde havia uma canoa
a espera, na qual chegaram à ilha". Em recompensa pela ajuda, os escravos
deram a Ramos "algumas moedas de ouro e prata tiradas aos padeiros". Não
é impossível que, tendo ouvido rumores sobre a cumplicidade de Ramos com
os assassinos de seus irmãos, Quintella queria fazer sondagens na casa da rua
do Arvoredo.
No meio da tarde, sob forte chuva, Quintella sobe a cavalo o íngreme
beco do Poço*, chega ao alto da colina por onde passa a rua da Igreja**, e
desce para a rua do Arvoredo. Quando chove, as ladeiras que baixam para a
rua do Arvoredo, com seus precipícios e socavões, viram cascatas. Repleta de
árvores frondosas, a rua faz jus ao nome. Não tem alinhamento; no seu curso,
ora se alarga, ora se estreita. Neste momento, as águas da chuva converteram
a rua sem pavimento em lamaçal. Predominam as casas de madeira, cobertas
de capim. As poucas casas de tijolos e telhas formam um casario de construção
acaçapada, com telhados gotejantes para os passeios.
A rua do Arvoredo fica numa zona ignóbil onde pulula uma humanidade
confusa e heterogênea: pequenos comerciantes, artesãos e profissionais
alemães; soldados de polícia e forças de linha; escravos-de-ganho e negros
calhambolas; caixeiros que dormem fora da casa do patrão; vagabundos,
rufiões, prostitutas. Vivem numa promiscuidade indescritível. Há algumas
moradias mais ou menos decentes, mas predominam os pardieiros infectos.
Várias pessoas ou famílias ocupam a mesma divisão, que lhes serve de
dormitório, cozinha e oficina; muitos dormem em enxergas. Não há esgoto
nem captação de águas. As fossas das latrinas raramente são esvaziadas. Joga-
se o lixo na rua, que é uma cloaca empestada; há porcaria por toda a parte.
Abundam, em espeluncas repugnantes, as tabernas, os bordéis, os antros e os
covis de toda espécie. Numa dobra da rua, situa-se o beco do Céu, ponto onde
22

à noite perambulam prostitutas. A zona é um lugar de eleição para o crime e o


vício.
As casas não têm número e Quintella custa a achar a de Ramos, de porta
e janelas, com dois pavimentos, em frente ao quintal do palácio do governo.
(*Borges de Medeiros, mais ou menos**Rua Duque de Caxias.)
23

Quintella apeia-se e prende o cavalo numa árvore. Quando se acerca da


casa, avista por uma janela que o vento entreabriu, sentado no sofá da sala,
um homem corado, de barba cerrada e bigode. Parece-lhe um homem de boa
estatura; como está sentado, Quintella não pode perceber que se trata de um
corcunda.
- Ramos saiu, mas não tarda - diz o homem, com carregado sotaque
alemão.
Nisso, Catarina abre a porta. Como todas as mulheres de baixa condição,
usa um vestido e um xale de cores vivas; uma touca cobre-lhe a cabeça.
Convida:
-Entre, Ramos saiu, mas não demora.
Quando está para entrar, Quintella volta a olhar para a janela. Avista,
então, no interior de uma alcova, um homem que parece escutar e espreitar.
Quintella não identifica o homem na semiescuridão, mas intui o significado de
toda a cena.
Sem se despedir de Catarina, monta a cavalo e se afasta rápido, quase a
trote.
24

Capítulo III

Se o homem é ele e sua circunstância, qual a "circunstância" que em


José Ramos desencadeia forças instintuais para infringir, maniacamente, o
ancestral interdito "não matarás"? Nunca confessou coisa alguma e dele não
conhecemos mais do que umas poucas frases apenas para negar a autoria. Sua
"alma", como diz Catarina Palse, é mais entrevista do que conhecida, através
dos crimes que pratica.
A vida é, para José Ramos, uma guerra permanente, guerra de todos
contra todos em que os melhores e mais fortes devem prevalecer, eliminando
os fracos e os tolos. Não mata por matar, como os tolos e os fracos; não mata
tampouco por esporte. Mata para afirmar sua superioridade e sua força sobre
as pessoas que despreza. Escolhe suas vítimas segundo sua fraqueza e sua
vulnerabilidade. Mas também mata para manifestar seu desafiador desprezo
pelos que se consideram superiores e mais fortes por- que têm o poder,
conforme se verá pelo seu empenho de oferecer a linguiça de carne humana
às autoridades da província. Transmite esta concepção aos seus fiéis e
dedicados seguidores.
Não cultiva ilusões. Sabe que pode fracassar e sofrer punição, e
abomina esta hipótese, não tanto pelas suas consequências em si mesmas,
como porque isso poderá comprometer a imagem que tem de si mesmo - sua
força e sua superioridade. Só não perdoa a si mesmo o assassinato do pai, o
homem mais forte e superior que conheceu, e tem medo de que este crime.
Descubram Tem uma confiança cega em sua própria sorte, que ele
chama de "destino". Atribui seus êxitos e insucessos ao destino. Quando é
malsucedido, entra em estado de pânico: será que o destino o abandonou?
Sofre atrozmente, ao mesmo tempo, quando tem de sofrear o chacal que ruge
em seu interior. A auto repressão do desejo de violência homicida lhe faz um
25

mal insuportável. Como disse Sherlock Holmes, todo grande criminoso tem
uma personalidade complexa.
A fracassada tentativa contra Quintella lança-o num estado de profunda
prostração.
Durante duas semanas, permanece o dia inteiro deitado, olhos abertos,
fixos no teto. Quase não come, não fala. Por duas vezes, o chefe de Polícia
manda chamá-lo, mas ele não atende. Apesar disso, todas as manhãs sai para
fazer suas devoções, na igreja matriz. Incansável, Catarina procura reanimá-lo.
"Nestas ocasiões ele perdia sua alma e eu fazia tudo para que a recapturasse",
escreverá ela mais tarde, na cadeia, na sua confissão.
Figura trágica, essa Catarina Palse. Nasceu na Hungria, mas etnicamente
é alemã. Fazia parte da minoria alemã da Transilvânia, pioneira no povoamento
do território constituir a Hungria. Seu pai era um artesão-sapateiro numa que
viria a aldeia muito pobre; além de Catarina, teve outros dois filhos.
A tragédia começa quando em 1848, Kossuth promove a revolução
húngara contra o domínio austríaco. No ano seguinte, a Rússia invade a
Hungria, a fim de ajudar a Áustria a sufocar a revolta, de acordo com as
estipulações do Tratado de Viena. Na Transilvânia, os russos não poupam
atrocidades. Ao ocupar a aldeia, massacram os habitantes, matando os pais e
os irmãos de Catarina. Ela é estuprada pela soldadesca, que a deixa semimorta.
Tem então 12 anos. Três anos depois, aos 15 anos, casa com Peter Palsen, um
cardador de lã.
Não suportando a miséria, o casal resolve emigrar para o Brasil,
aconselhado e ajudado por pastores protestantes. Embarcam em Hamburgo
em 1856. Durante a viagem, o marido de Catarina se enforca e ela chegará
sozinha a Porto Alegre, em 1857, quando conta com 20 anos de idade.
Nada se sabe sobre sua vida na cidade antes de 1862, quando conhece
José Ramos. Apura-se que foram viver num quarto à rua dos Pecados
Mortais*, entre a rua da Praia e a rua da Ponte. Deu-se à rua o nome de Pecados
Mortais devido a um correr de pequenas casas habitadas por prostitutas. Em
meados de 1863, o casal vai viver na rua do Arvoredo, numa casa alugada por
Ramos. O aluguel é módico, pois a casa é mal agourada. Em janeiro de 1853,
um taverneiro que nela residia foi degolado por dois assaltantes, nunca
identificados.
26

Não há qualquer descrição que confirme a tradição segundo a qual seria


mulher de grande beleza física. Jean-Pierre Caillois, que a viu no tribunal,
registrou em suas memórias uma impressão que contradiz a tradição popular:
"A acusada Catarina Palse é inteiramente desprovida de dotes físicos e mal se
pode acreditar que exercesse atração. Baixa e obesa, só tem de belos os
longos cabelos loiros e olhos muito azuis."
Os esforços de Catarina para animar Ramos são coroa- dos de êxito
quando ela lhe sugere que mate o taverneiro português Januário Martins
Ramos da Silva, estabelecido à rua da Igreja, esquina da rua Rosário**.
Entusiasmado, Ramos põe-se imediatamente de pé, cheio de energia, e sai
para executar o plano.
Uma testemunha descreve Januário como "velho e trigueiro" e outra
como "magro e meio velho". Passa por homem rico e vive sozinho na parte
superior do sobrado de sua taverna. No porão, vivem seus dois caixeiros, um
com 13 e outro com 14 anos. Foi em função desses caixeiros que Ramos e Ja-
nuário se relacionaram. Como é costume, caixeiros trabalham em troca de casa
e comida, sem qualquer salário. Só gozam uma folga por mês, nas tardes de
domingo ou em dias feria- dos. Sua jornada de trabalho é de 16 horas, maior
que a dos escravos. Certo dia, os dois caixeiros fazem uma espécie de greve,
exigindo folga todos os domingos e feriados. Januário chama a polícia e
Ramos, destacado para atender a ocorrência, encerra-se no porão com os dois
garotos e lhes dá uma surra de pranchadas.
Ramos presta outro relevante serviço ao taverneiro. Como muitos
portugueses, Januário deixou a família em Portugal, e aqui se dá à mancebia
com escravas negras, obrigadas a uma dupla jornada - na cozinha e na cama.
Quando se cansa delas, vende-as, dando as crias de inhapa. E assim o sórdido
sátiro se diverte, até que compra uma esbelta e bonita moçambicana de 18
anos, pela qual se toma de paixão, e de ciúmes obsessivos. Como tem sono
pesado, desconfia que durante a noite a crioula se escapole a fim de entregar-
se a amores clandestinos. "Vigie para mim a negra bandida", pede a Ramos.
Logo na primeira noite de vigilância, Ramos flagra a negra saltando o muro e
dirigindo-se para o porão do Teatro São Pedro, onde escravos que trabalham
na obra dormem e se entregam a "distrações imorais", como diz a parte
policial. Januário mói a pauladas a escrava, mas ela registra queixa na polícia;
graças à intervenção de Ramos, a queixa dá em nada.
27

(Rua Bento Martins* **Rua Vigário José Inácio.)

Januário torna-se fornecedor de vinhos e licores a Ramos. Quando este


não tem dinheiro, o taverneiro lhe vende fiado. Mas, ultimamente, a dívida se
acumulou, e Januário pressiona o devedor.
Dia 15 de abril, uma sexta-feira, perto do meio-dia, Ramos vai à taverna
de Januário. Fala-lhe de um excelente negócio; um lanchão atracado nas
docas, na altura do largo do Paraíso, oferece um carregamento de milho de
São Leopoldo, a preço muito baixo. O taverneiro se interessa e os dois seguem
para as docas. Examinada a mercadoria, o taverneiro quer logo pagá-la
integralmente, porém o zelador do lanchão alega que o dono se ausentou e só
voltará no dia seguinte. Mas aceita um sinal do negócio. Na volta, Januário
passa na alfândega para pagar sua taxa de escravos e Ramos o convida para
jantarem em sua casa, à rua do Arvoredo. Após ligeira hesitação, Januário
concorda. Quando sobem a rua do Rosário, passa pelos dois um dos caixeiros
de Januário, José Inácio de Souza Ávila. Januário chama o caixeiro e lhe diz que
se o procurarem por motivo urgente, vá avisá-lo na casa de Ramos.
São quatro horas da tarde quando apeiam do cavalo de- fronte à casa de
Ramos. Januário veste como o comum dos médios comerciantes, no dia a dia:
camisa de algodão, colete, calça preta, chapéu, chinelos sem meias; fuma
cigarro de palha.
Januário foi a única vítima convidada para jantar. Nos casos anteriores,
convidou as vítimas para cearem. São diferentes, nesse tempo, os horários das
refeições. Almoça-se às 10 horas, janta-se entre 3 e 4 horas da tarde e ceia-se
entre 7 e 8 horas da noite.
O detalhe é importante. À noite, as ruas da cidade vivem imersas numa
semiescuridão em que mal se distingue a fisionomia dos passantes. Parte da
cidade é iluminada por lampiões a óleo de peixe. Desde o começo da década,
a administração provincial tenta substituir os lampiões a óleo de peixe por
lampiões a querosene. Mas nenhuma cidade ou vila pode iluminar suas ruas
sem a autorização da Corte do Rio. Em novembro de 1863, são acesos com
querosene os dois primeiros lampiões, na esquina em que mora o Doutor
Chefe de Polícia. Depois são iluminadas pelo mesmo sistema a rua da Praia e
as proximidades das residências de autoridades. Em 1864, ainda há 250
lampiões a óleo de peixe, inclusive na rua do Arvoredo. Os lampiões a óleo de
28

peixe iluminam mal e expelem uma fuligem que suja a roupa. Nas noites de
luar não são acesos. Segundo as posturas municipais, ao toque do sino da
matriz, em horário fixado pelo chefe de Polícia, ninguém pode estar fora de
casa, salvo licença policial ou necessidade de médico. É perigoso andar à noite
nos becos fundos e escuros em que se emboscam negros calhambolas, sempre
rápidos no punhal.
Ramos cometeu seus sete primeiros assassinatos à noite, protegido pela
semiescuridão. Dificilmente vizinhos ou passantes identificariam as vítimas
quando entravam na casa es- cura da rua do Arvoredo. Então, por que é que,
em 1864, o criminoso rompe seu padrão compulsivo e passa a agir de dia,
primeiro na tentativa contra Quintella e depois no assassinato de Januário e
seu caixeiro? Quintella é visto à porta da casa e Januário entra nela na
companhia do assassino. O risco é tanto maior quanto que, agora, Ramos já
não conta com o imbatível álibi proporcionado pelo açougueiro Claussner. Não
pode sofrear a compulsão de matar? Ou talvez queira, inconsciente- mente, ser
apanhado para que o impeçam de continuar matando? As imprudências que
comete no caso de Januário são tão gritantes durante várias horas circula pela
cidade na companhia de sua futura vítima - que de fato parece querer que o
descubram e o prendam.
Ramos está perjurando o chacal
- Um animal noturno. Isto lhe será fatal.
Quando Ramos e Januário chegam, Catarina, na cozinha, já prepara a
janta. Sentam-se à mesa, e comem e bebem à farta. A bebida deixa Januário
muito alegre. A certa altura, diz a Ramos:

- Olhe, vossemecê pode pagar quando quiser aquela dívida. Não há muita
pressa.
Finda a refeição, Ramos convida Januário para se sentarem em um sofá
na varanda. Em dado momento, Ramos se levanta e vai à cozinha, onde
recomenda a Catarina que fique em uma das janelas da rua, a fim de evitar que
alguém entre inesperada- mente, ou dar aviso em caso de perigo.
Depois Ramos entra no quarto e volta à varanda, empunhando um
machado. Ao vê-lo, Januário pergunta, rindo:
- Vai matar alguém?
29

É verdade- responde Ramos. - Adivinhe quem será...


Em todos os assassinatos, Ramos segue sempre o mesmo método. Num
movimento rápido, fende a cabeça da vítima, de alto a baixo, e em seguida a
degola. Ao cair de borco, Januário ainda diz:
- Maldito! Mataste-me!
Catarina entra na sala e pergunta se está tudo acabado.
Ramos esvazia os bolsos de Januário: duas moedas de ouro, uma de
cinco e outra de quatro mil réis; sete moedas nacionais de quinhentos réis cada
uma; sete moedas de oitocentos réis; vinte e três moedas de quatrocentos réis
cada uma. Enroladas num lenço, encontra mais moedas: três mil e quinhentos
réis em moedas nacionais; uma moeda de cobre e uma moeda de prata, no
valor de quatrocentos e quarenta réis cada uma. Deve- se saber que, nesse
tempo, a província vive inundada de moe- das estrangeiras de ouro e prata
(inglesas, uruguaias, peruanas, bolivianas), pelas quais as pessoas pagam um
ágio de até 10% em troca do desacreditado dinheiro nacional de papel.
Alegre, Ramos exclama:
- O destino me favoreceu!
Arrasta o cadáver para o porão e o despe completamente. Ordena a
Catarina que limpe o sangue, monta a cavalo e sai em busca do caixeiro José.
Encontra-o na taverna da rua da Igreja e diz-lhe que Januário mandara
chamá-lo à casa da rua do Arvoredo. O menino prontamente tira o avental e se
dispõe a segui-lo. Ramos manda-o montar na garupa. No caminho, pergunta
ao menino se dissera a alguém a onde fora Januário.

- Não falei a ninguém - mente o menino.


Segue-os um cãozinho preto com uma malha que vai da garganta ao
ventre. Pertence a Januário, mas afeiçoou-se ao menino.
Na casa, Ramos diz ao menino que Januário saiu, mas volta logo.
Oferece-lhe café e pão; depois, convida-o a sentar-se no sofá. Entra no quarto
e volta com o machado. Ao contrário de Januário, o menino adivinha as
intenções de Ramos. Ergue- se e, chorando, corre para um canto da sala.
Catarina contará que ouviu "um aí e um barulho de coisa que caía". Depois de
30

degolado, o corpo é arrastado para o porão. Quando volta à sala, Ramos ouve
do lado de fora da casa um gemido doloroso de cão. Junto à porta, o bicho
geme e arranha a madeira. Agarrado e levado para o porão, é degolado.
À luz de velas, Ramos esquarteja os dois corpos. Procede de forma
metódica e precisa: separa completamente os ossos de suas articulações;
divide em três porções a coluna vertebral; separa as costelas de suas colunas
vertebral e esternal; separa os ossos do ilíaco, do sacro e as tíbias dos perônios;
separa os ossos do tarso de suas articulações...
Joga as postas sangrentas num poço abandonado no pátio, cobrindo-o
com lixo e galhos verdes. Volta à casa, onde Catarina, de joelhos, limpa as
manchas de sangue.
Ramos reúne as roupas e os objetos pessoais das vítimas e guarda-os
numa caixa, no quarto. Sempre guardou cuidadosamente as pertenças
pessoais de suas vítimas, não as vendendo ou usando. São como que relíquias.
Às vezes, abre uma das caixas, retira as peças e fica longo tempo a olhá-las.
Quando um criminoso mata para roubar - demonstrando a combinação
mais desprezível de violência e avareza - diz- se que cometeu um latrocínio.
Mas será que no caso de Ramos o assassinato é apenas o recurso empregado
para obter uma vantagem material? Não lhe faltava astúcia para roubar e
despojar suas vítimas, sem necessidade de assassiná-las. Mas fica claro que seu
móvel principal é o assassinato - o prazer de matar. Poderia matar a facadas ou
a tiros, mas sempre prefere fender a cabeça da vítima a machadadas, de alto a
baixo. Em seguida ao assassinato, invariavelmente degola o morto, pelo único
prazer de degolar. Note-se que ele degola até mesmo o cãozinho. Para fazer
desaparecer os cadáveres, não precisaria esquartejá-los. O cão era de pequeno
tamanho, mas Ramos trata de esquartejá-lo também: o esquartejamento era
outro dos seus prazeres. Não menos significativo: ele se compraz em
contemplar os "souvenirs" dos seus assassinatos. No decorrer da narrativa, o
perfil psicológico de Ramos irá se delineando de forma mais nítida.
31

Capítulo IV

Sempre que mata, Ramos cumpre um ritual obsessivo. Senta-


se à mesa, recita um salmo da Bíblia e come sofregamente o que lhe
é servido por Catarina (nunca come à mesa com ela). Depois se
escanhoa e toma um banho. Estes banhos que se seguem aos
assassinatos, sempre são demorados. Nunca fica na tina menos de
uma hora. Veste-se lenta e caprichosa- mente: camisa de seda,
sobrecasaca de pano preto, colete de casimira e alfinete na gravata.
Perfuma-se abundantemente, mais do que o habitual. Nesta cidade
em que, à exceção dos escravos, todos se perfumam a fim de
defender-se dos odores fétidos que saturam o ar, Ramos se destaca
pela abundância do perfume e por isso durante muito tempo será
chamado de "Monstro Perfumado".
Terminada a toalete, ordena a Catarina- nunca pede nada a
Catarina, simplesmente lhe ordena - que encarregue um moleque de
buscar lhe uma caleça.
O agente da violência e da morte sente um apaixonado interesse
pela arte. Através desta, ele se espiritualiza; o homem recobra seus
direitos sobre o chacal. Faz-se transportar até o teatro São Pedro, onde
32

essa noite se representa Lucia de Lamermoor. Quando não há


espetáculo no São Pedro, vai ao velho teatrinho da rua de Bragança,
que o povo chama de "teatrinho-ratoeira". De resto, gosta de todo tipo
de diverti- mentos. Não perde as retretas, os circos, os concertos ao ar
livre nas praças da Matriz e da Alfândega, os espetáculos de
saltimbancos nos tablados dos largos da Forca e da Quitanda, as
passeatas das três bandas de música da cidade. Não per- de tampouco
as duas principais festas religiosas, no começo do ano, a da Santa Casa
e a da capela gótica do Menino Deus, descritas pelo cronista Estudante:
"A da Santa Casa... festa aristocrática, festa vestida de damasco, e em
rico toucado, festa de modos pausados, e aspecto solene; a outra, pelo
contrário, festa aldeã, vestida de branco, com chapeuzinho de palha, e
folguedos no rosto, e riso nos lábios." Não perde as procissões, as
novenas e as missas cantadas, mas também assiste aos batuques de
negros na Várzea. No passo do Feijó, assiste às carreiras em cancha
reta. Nunca deixa de ler, de cabo a rabo, O Diógenes, jornal "crítico e
literário". Mas a sua grande paixão é o teatro São Pedro.
Ele está no ponto mais nobre da cidade - a praça da Matriz.
Situam-se ali o palácio da Presidência, a Igreja Matriz da Madre de Deus,
a Casa da Real Fazenda, a Capela do Divino e a secretaria da Polícia, em
prédios do século XVIII. A praça é um enorme espaço retangular sem
ajardinamento, coberta de inço. Oferece uma vista deslumbrante do
estuário do Guaíba. Na face contrária à Igreja da Matriz e ao Palácio da
Presidência, de costas para o estuário, construiu-se o teatro São Pedro.
Maior prédio da cidade, o povo apelidou-o de O Marmanjo.
O teatro patenteia o orgulho ostentatório das elites locais. O
Império criou uma nobreza a fim de selar a adesão da rebelde elite
gaúcha ao regime e suas instituições. Os vinte titulares da nobreza
provincial, barões, condes e viscondes, são gran des estancieiros, civis
ou militares, que vivem em Porto Alegre, em solares servidos por
numerosa escravaria. A esta nobreza se associa uma burguesia
mercantil, composta predominantemente de portugueses, que no
passado se enriqueceram com o tráfico de escravos. As duas categorias
sociais reuniram os capitais necessários à construção do teatro,
imponente e desmesurada- mente grande para uma cidade de 20 mil
habitantes. Desde sua inauguração, seis anos antes, o São Pedro
33

passou a ser o cenário luxuoso em que a elite gaúcha exibe seu poder
e sua riqueza.
Todos os anos, pelo menos uma companhia lírica estrangeira
vem cantar no São Pedro, e isso sempre excita tremenda- mente a
cidade, sacudindo o torpor provinciano. Embora seja o mais importante
acontecimento artístico e social, isso não impede que, fora do palco, os
artistas sejam tratados como gente baixa. Os don juans endinheirados
compram os favores das cantoras e assim aos olhos da população elas
não passam de rameiras. Não obstante, essas mesmas atrizes são
chamadas a desempenhar, nos autos e outros dramas sagrados das
igrejas, o papel de santas e da Virgem e isso gratuitamente. Uma jovem
cantora italiana sofreu uma discriminação trágica em 1863. Depois de
representar o papel da Virgem numa festa da capela do Menino Deus,
contraiu varíola e morreu. O padre da igreja das Dores, recusou-lhe os
sacramentos, sob a alegação de que era mulher dissoluta. Indignado, o
diretor da companhia instaurou processo contra o padre, mas este foi
absolvido, pois, disse a sentença, "a justiça não se ocupa de questões
religiosas".
Ramos sente-se atraído pelo cenário do São Pedro. Circula feliz
entre os cavalheiros encasacados e as damas decota- das. Tornou-se
conhecido entre os frequentadores do São Pedro, que certamente não
ignoram sua baixa condição social. A música comove-o até as lágrimas.
Saía do teatro, diz Catarina, "purificado".
Nessa noite, depois do teatro, vai jogar cartas no beco do Poço;
bafejado pela sorte, ganha bom dinheiro. Volta à casa ao amanhecer. A
fêmea não dormiu a noite inteira, à espera do seu chacal.
Amorosamente, despe-o e deita-o. Ele dorme até o meio da tarde. É
despertado por um soldado, com intimação para comparecer,
imediatamente, à presença do chefe de Polícia. Segundo a versão
oficial, na manhã de sábado, os vizinhos estranharam que a taverna
permanecesse fechada, sem sinal de Januário e seu caixeiro. O
segundo caixeiro e os escravos disseram que nada sabiam sobre o
paradeiro de ambos. Contudo, depois do meio-dia, vizinhos fizeram
uma comunicação à polícia, dizendo que na véspera os dois haviam sido
vistos na companhia de Ramos.
34

Este admite perante o chefe de Polícia que na véspera esteve


com Januário e seu caixeiro, mas alega que ambos haviam embarcado
em um lanchão para o Caí. O chefe de Polícia deixa-o ir, mas manda
vigiá-lo. No dia seguinte, um domingo pela manhã, um subdelegado
prende Ramos. Segunda pela manhã, o chefe de Polícia em pessoa
procede a uma busca e apreensão na casa de Ramos.
Tudo muito rápido. Em relatório à Corte, o presidente da
Província, João Marcelino, gabará a "pronta e eficiente ação da
polícia". Mas essa mesma eficiência contrasta com a displicência
policial no caso das outras vítimas. Os parentes destas comunicaram
seus desaparecimentos à polícia; o cônsul alemão pediu providências.
Nos registros policiais da época, constam esses pedidos de
providências, mas não há notícia de qualquer diligência policial. No
entanto, bastou o desaparecimento de dois portugueses, para que a
polícia agisse de forma impressionantemente rápida. Talvez tudo se
explique pelas tensas relações entre as comunidades luso-brasileira e
alemã.
As colônias agrícolas alemãs, sobretudo a de São Leopoldo, "Vila
ruiva", são a menina dos olhos dos presidentes provinciais; em seus
relatórios à Corte, nenhum outro assunto merece mais espaço. Graças
aos alemães, a província conhece um grande impulso econômico.
Mas, em Porto Alegre, onde as duas comunidades convivem, as
diferenças culturais fazem seu ofício. Os "ruivos", como são chamados
os alemães, pertencem a uma outra etnia, falam língua diferente e
muitos professam uma religião que não é a católica. A acentuada ética
do trabalho dos alemães contrasta com a ética da ociosidade que a
escravidão implantou na província.
Os luso-brasileiros desprezam-nos porque trabalham com as
mãos e os chamam de "negros". Os 3 mil alemães que vivem em Porto
Alegre - mais de 15% da população - fazem forte concorrência aos luso-
brasileiros em múltiplas atividades. Cada vez mais, desbancam-nos no
comércio; os artesãos alemães competem com os escravos-de-ganho,
que são o meio de vida de boa parcela dos luso-brasileiros.
Os alemães controlam o comércio por atacado de fazendas,
ferramentas, ferro "em barra", louças e roupas feitas, e penetram cada
vez mais nos ramos controlados pelos portugueses, como
35

mantimentos, bebidas, móveis, marchantaria e casas de pasto. Os


alemães não se interessam pelo negócio de botequins o número de
botequins na cidade é impressionante, - nas mãos dos portugueses - e
de joias, controlado pelos judeus.
Os profissionais e artesãos alemães são chapeleiros, caldeireiros,
charuteiros, cigarreiros, mecânicos, funileiros, ferreiros, serralheiros,
padeiros, sapateiros, celeiros, tintureiros, cervejeiros. As quatro únicas
costureiras da cidade são alemãs. Os alemães sentem se discriminados.
Não gozam de direitos políticos. Os casamentos celebrados pelos
pastores protestantes não têm efeitos jurídicos, à diferença do que
ocorre com os casamentos celebrados pelo clero católico. Em 1862, os
deputados da Assembleias Provincial barram uma tentativa de atribuir
efeitos civis aos casamentos celebrados pelos pastores. A liberdade de
culto, proclamada pelo Império, está na prática sujeita a limitações. Os
pastores das comunidades evangélicas precisam ser confirmados na
função pelo presidente da província, depois de referendados pelo
cônsul alemão. Um projeto para pagar um ordenado aos pastores,
como se faz com os padres católicos, tropeça em encarniçada oposição
dos deputa- dos. Os templos protestantes não podem ostentar torres
e sinos, o que explica que Robert Avé-Lallemant, em 1858, não tenha
visto na cidade nenhum templo protestante. A Constituição assegura
liberdade religiosa, mas o protestantismo só é permitido como "culto
doméstico". De resto, o jornal do bispado, A Estrela do Sul, faz cerrada
e insidiosa campanha contra o protestantismo.
Mas os "ruivos" não discriminam menos os brasileiros, nas
relações pessoais ou sociais, e essa discriminação assume formas
acintosas. O cronista Estudante conta como tentou entrar num baile de
alemães, na sociedade Recreio, pagando o ingresso. O porteiro alemão
disse-lhe, no seu português arrevesado, que "o baile é só para alemães,
brasileiros não podem entrar". Quando o jornalista insiste, é ameaçado
de espanca- mento por um grupo de alemães.
Os luso-brasileiros não se conformam com o fato de os alemães
tratarem moças brancas de sua própria etnia como es- cravas. Os
alemães enriquecidos, não querendo criadas negras, mandavam vir da
Alemanha meninas órfãs. Para ressarcir-se do preço da passagem,
exigem que elas trabalhem sem salário por sete anos. Mas algumas
36

fogem e então os patrões pedem à polícia que as traga de volta, sob


alegação de que são seus tutores. O cronista O Estudante se indigna ao
ver "meninas ruivas levadas à maneira de negras fugidas, entre
soldados". Às vezes, os luso-brasileiros fazem subscrições para
resgatar as "meninas ruivas".
Essas tensões explodirão à plena luz quando vierem à tona os
assassinatos de José Ramos.
Na manhã de segunda-feira, 18 de março, o chefe de Polícia, Dario
Rafael Callado, apresenta-se com grande aparato na casa da rua do
Arvoredo, em uma caleça puxada por dois cavalos. Um escrivão e dois
oficiais de justiça descem de uma segunda caleça. Numa carroça,
chegam dois condenados às galés, escoltados por praças fortemente
armadas. Já se encontram na casa, pouco antes retirados da cadeia sob
ferros, os três mora- dores: José Ramos, Catarina Palse e a escrava
Senhorinha.
Na sala da varanda e no quarto, são bem visíveis manchas de
sangue, mal lavadas.
- Estas manchas de chefe de Polícia. sangue, de que são?
Pergunta o Catarina, que aparenta grande nervosismo, abre a
boca para responder, mas Ramos se antecipa:
- É sangue de galinha mal morta que fugiu pela casa,
ocasionando este estrago.
São aprendidos vários objetos que depois se revelarão provas
decisivas. No quarto do casal: dois chapéus de pano preto, copa baixa;
um chapéu de cor parda; um freio de metal com rédeas e cabeçada com
prata; um par de coturnos pequenos, já usados; sete pães de sabão;
numa caixa de Catarina, dois pares de suspensórios; onze maços de
vela de composição; numa caixa fechada à chave, são encontradas
algumas das moedas roubadas a Januário. São os "souvenirs" de
Ramos.
Na parte exterior da cama, junto aos pés, aparecem três nódoas
de sangue, "como de mão suja que ali passou". Num rodapé de cassa
da mesma cama, mais sangue mal lavado. No assoalho, em frente à
porta, outra grande nódoa de sangue mal lavado. Num passadiço, por
37

baixo da escada, dentro de um cesto, entre outros objetos, são


encontrados uma escova e um trapo manchados de sangue ainda vivo.
No porão da cozinha, são achados dois machados, um de cabo mais
curto e outro de cabo mais longo, bem como uma serra. Atrás de um
muro, o inspetor de quarteirão encontra a chave da taverna de
Januário; no meio de umas moitas, o inspetor encontra uma bengala
de cana com castão branco e um laço encarnado embrulhando papéis,
tudo pertencente a Januário.
As manchas de sangue são abundantes no porão. Os dois galés
são postos a escavar no pátio. Numa cova rasa, aparecem ossos das
extremidades inferiores e da bacia de um corpo humano; noutra cova,
com três palmos de comprimento e dois de largura, descobre-se o
resto do mesmo corpo, ainda envolto em roupa e em avançado estado
de decomposição. Não são, evidentemente, restos dos cadáveres de
Januário e seu caixeiro.
Seus despojos são encontrados no fundo do poço, junta- mente
com o cãozinho preto.
De quem é o cadáver encontrado nas duas covas do pátio?
Ramos, Catarina e Senhorinha declaram que não sabem. Inútil insistir:
não têm ideia de quem possa ser. O chefe de Polícia manda reconduzir
os três à prisão e intensifica as investigações sobre a identidade do
desconhecido.
Ao entardecer, surge a hipótese de que os restos cadavéricos das
duas covas sejam de Carlos Gottlieb Claussner, um açougueiro da rua
da Ponte, desaparecido desde o começo de setembro do ano anterior.
Jean-Pierre Callois registrou a repercussão que teve na cidade o
descobrimento dos três cadáveres no pátio da casa de José Ramos.
"Desde as primeiras horas da manhã, antes mesmo que a
autoridade exumasse os restos dos três corpos, uma grande agi- tação
tomou conta dos moradores, que já não tiveram outro assunto. Sendo
muito frequentes e comuns os crimes de morte nesta cidade do Brasil
meridional, poder-se-ia perguntar o motivo de tão notável comoção.
Pouco depois da janta, fui à casa do cônsul prussiano e este se
mostrava muito apreensivo, devido ao rumor que atribuía
nacionalidade alemã aos assassinos, ciam havendo ainda outras e
38

numerosas vítimas que não apare- porque de sua carne se fizera


linguiça. O cônsul se pusera em comunicação com o presidente da
Província e este lhe assegurara que os boatos não tinham qualquer
fundamento. Apesar disso, o cônsul se mostrava intranquilo, tanto
mais que desde o meio-dia uma multidão começou a se formar diante
do birô policial e repetia aqueles rumores. A autoridade policial deve-
ria ter tomado providências preventivas suscetíveis de impedir os
tristes acontecimentos que à noite tumultuaram a cidade."
39

Capítulo V

O chefe de Polícia, Dario Callado, deve estar preocupa- do ao iniciar o


inquérito sobre os assassinatos de José Ramos. Pois o criminoso, afinal de
contas, estava a seu serviço como informante.
Esse magistrado nordestino que a Corte mandou para chefiar a polícia
provincial - sempre são nomeadas para o cargo pessoas estranhas à terra- é
alvo de muitas críticas. O ora- dor mais eloquente e temível da província,
deputado Silveira Martins, denuncia prisões ilegais, espancamentos de presos
e irregularidades administrativas. Callado manda prender um homem só
porque assobiou durante um espetáculo no São Pedro. Um rico comerciante
da praça passa a noite na cadeia por- que lhe negou cumprimento. Negros não
podem caminhar na calçada, e ao surpreender um na rua do Rosário, Callado
lhe dá voz de prisão e manda dar-lhe 25 açoites que o inutilizam para o trabalho
durante muito tempo. O jornal oposicionista denuncia "os crimes e as infâmias
dos agentes do chefe de Po- lícia em toda a Província". Callado é afeiçoado a
aventuras galantes; especializou-se em atrizes e frequenta os camarins dos
teatros. Durante uma temporada de ópera no São Pedro, interessa-se por uma
cantora subalterna, mas ela não lhe aceita os avanços, pois dedica seus afetos
a um tenente do regimento de linha. Uma noite em que Callado espreita a
porta do camarim da atriz, ela sai para o corredor que se comunica com o
palco, na companhia do tenente. O corredor está deserto, e antes de entrar no
palco, ela e o tenente se agarram aos beijos. Callado acode, pega o tenente
pelo braço e dá-lhe uma grande sova de bengala, dizendo que era próprio de
desclassificado estar assim a beijar em lugar tão público uma mulher. Não se
sabe qual o desfecho do ridículo incidente, mas o escândalo alimenta a
maledicência da cidade durante semanas.
40

O interrogatório começa com Catarina Palse. Ela se de- clara solteira,


com 27 anos de idade e engomadeira de profissão. Uma vez que só fala
alemão, é ouvida através de intérprete juramentado. Conta do termo que ela
se declara "filha de Huberto Palse", mas na realidade Palse era o sobrenome
de seu marido falecido durante a viagem da Alemanha para o Brasil. Sua
estratégia no interrogatório, consiste em admitir aquilo que não pode ser
negado: a autoria de José Ramos no assassinato das pessoas cujos cadáveres
foram encontrados no quintal. Tenta atenuar sua responsabilidade, alegando
que foi mera espectadora. Mas está sobretudo interessada em evitar que
venham à tona os crimes de 1863.
O relato que páginas atrás reconstituiu os dois assassinatos, baseou-se
nas informações obtidas pela polícia em 1864 e nas informações que surgirão
mais tarde. Os interrogatórios a que é submetida Catarina em 1864, mostram
que em vários pontos ela faltou com a verdade.
- Quem esteve na casa na sexta-feira e sábado da semana passada?
- Das três para as quatro da tarde de sexta-feira, esteve um homem
que tinha venda na rua da Igreja, já velho e trigueiro, e às sete para as oito
horas um menino a quem eu não conhecia.
- O que fizeram lá?
- O homem foi convidado por José Ramos para jantar e sentaram-se
à mesa juntos, seriam quatro e meia. Fui dar água às galinhas e quando
voltei achei caído no chão o homem da venda e José Ramos o agarrou e
arrastou para o porão. O homem nessa ocasião tinha duas feridas na
cabeça.
Na verdade, Catarina não foi dar água às galinhas, mas postou-se na
janela, a fim de prevenir Ramos do aparecimento inesperado de alguma
pessoa. Fala simplesmente em "duas feridas na cabeça", quando de fato
está havia sido fendida a machadadas e separada do corpo pela degola.
- Que mais fez José Ramos nessa tarde? - Saiu depois de ter
guardado no porão o corpo do homem da venda que estava morto.
Seriam seis horas quando saiu e voltou às sete e meia trazendo um
menino. Sentaram-se juntos na sala. As oito horas, mais ou menos, fui
falar com a preta Senhorinha. Quando voltei para a sala, encontrei José
Ramos arrastando o menino, já morto, e eu lhe vi duas feridas na testa.
41

- Onde depositou ele o corpo do menino e o que fez depois dos


cadáveres?
- Pós o corpo do menino junto com o do homem no quintal, para
onde já tinha levado o do homem, do porão onde esteve primeiro. Depois
cortou os dois corpos em pedaços e os atirou em um poço botando terra
em cima. Vi isso por estar na janela da varanda. Seriam onze horas quando
José Ramos saiu e não vi a que horas voltou, por já estar dormindo.
O esquartejamento se deu no porão, mas Catarina não dizer que
desceu ao porão especialmente para assisti-lo; quer diz, então, que
assistiu ao esquartejamento no pátio, por ter casualmente ido à janela.
Ramos saiu para o São Pedro mais ou menos às oito horas da noite; não
se entende por que razão Catarina diz que ele saiu às onze horas da noite.
Com qual dos dois machados presentes José Ramos
feriu o homem? Catarina indica um dos dois machados, ao qual o
chefe de Polícia prende uma inscrição: "Instrumento do crime apontado
por Catarina Palse".
O chefe de Polícia apresenta pertenças de Januário: cabeçada e
freio, velas, sabão, linhas e suspensórios.
- Quando trouxe José Ramos estes objetos para casa? -Não vi
quando trouxe esses objetos. Domingo de manhã José Ramos os guardou
na minha caixa.
- De quem eram os sapatos e os botins que lhe são presentes?
- Os sapatos eram do homem e os botins do menino, José Ramos
tirou os sapatos do homem quando o corpo estava no porão. Quando eu
estava na varanda, José Ramos atirou para lá os botins do menino.
Quando José Ramos atirou para a varanda os botins do menino, não
ouviu rumor na sala nem por esse fato desconfiou de novo crime?
- Não desconfiei e só reconheci o que havia quando aparecer o
corpo do menino arrastado por José Ramos. · Como combina o que acaba
de declarar com o que - disse há pouco, a saber: que tinha ido falar com
Senhorinha e ao voltar à varanda encontrou José Ramos arrastando o
menino?
42

-Não me expliquei bem. Eu estava na varanda, fui falar com


Senhorinha e na volta ouvi um "ai" do menino e barulho de coisa que caía.
Logo depois, José Ramos atirou os sapatos na varanda e apareceu
arrastando o corpo do menino. -0 que foi dizer a Senhorinha?
Fui perguntar-lhe se tinha água quente para o mate.
- Há quanto tempo está morando naquela casa? Há sete meses.
- De quem era o cadáver, cujos restos foram descoberto no porão?
- Não sei nem posso saber sobre isso coisa alguma por- que quando
me mudei para a casa com José Ramos, nós a achamos limpa.
Callado manda introduzir José Ramos e prepara-se para interrogá-
lo, quando recebe aviso de que o presidente da província quer falar-lhe
com urgência. A repartição policial fica na rua da Igreja, perto do palácio
presidencial.
Na companhia do presidente, Callado avista, surpreso, o médico e
escritor José Antônio do Vale Caldre e Fião, uma das personalidades
importantes da cidade. Nascido em Porto Alegre em 1821, Caldre e Fião
estudou medicina no Rio de Janeiro. Em 1847, editou no Rio o primeiro
romance brasileiro, A Divina Pastora. Dois anos depois, outro romance, O
Corsário. Antiescravista convicto, fez através do jornal O Filantropo
campanha contra o tráfico, especialmente contra o grande traficante
Manoel Pinto da Fonseca. Tentam suborná-lo e ameaçam-no de morte.
Para garantir a vida, muda-se para a província natal, no começo dos anos
cinquenta. Elege-se suplente de deputado geral, prossegue em sua
pregação antiescravista no jornal O Rio-Grandense e exerce a medicina (é
um dos 26 médicos da cidade). Médico de pobres, especialmente de
negros, tornou-se figura venerada pela população.
Sua presença no palácio é para comunicar que reconheceu em José
Ramos, quando era conduzido para a cadeia, o indivíduo que durante
meses lhe seguira os passos. Nada se sabe sobre a conversa entre o
médico e as suas autoridades. Mas há registro de que Callado,
provavelmente por pressão de escravocratas locais, mandou vigiá-lo para
estar informado sobre suas atividades abolicionistas.
O interrogatório de Ramos será pobre em resultados. Apesar das
evidências mais clamorosas, ele negará tudo sistematicamente,
43

sustentando versões inverossímeis. Não difere Ramos, quanto a isso, da


grande maioria de criminosos que cometem seus crimes mediante o
emprego da astúcia para não serem descobertos. Como regra, não há
flagrante nesses crimes e isso permite a negação da autoria - negação que
suscitará dúvidas nos julgadores.
- Na sexta-feira esteve em sua casa com Januário, dono da venda à
rua da Igreja, esquina da do Rosário, e o que fez aparecer no quintal de
sua casa, enterrando em um poço, o cadáver do mesmo Januário, partido
em pedaços?
- Estive com Januário nesse dia em minha casa, às quatro horas mais
ou menos, e não sei como apareceu o corpo desse homem no quintal de
minha casa.
- Nesse dia, das seis para as sete horas da noite, foi chamar o
caixeiro de Januário e com ele esteve sentado em sua casa no sofá da
sala? - Fui chamar o caixeiro de Januário, mas não o levei para minha casa.
Quem esteve comigo em minha casa foi um mulatinho a quem conheço,
mas cujo nome não sei, nem posso indicar sua morada.
- Como apareceu em sua casa o cadáver do caixeiro de Januário
enterrado no mesmo lugar que este e também esquartejado?
Nesta altura, pela primeira vez, Ramos insinua que os assassinatos
foram obra de Catarina e Henrique, o corcunda:
-Não sei. Quando cheguei à minha casa, estava minha mulher
Catarina com um alemão corcunda. - Januário jantou em sua casa nesse
dia?
- Não. Fomos juntos para a doca. Januário jantou comigo como
disse há pouco, por não entender bem a pergunta.
há mais de dois meses. Nesse dia não esteve em minha casa,
- A que horas esteve com Januário sexta-feira? Às quatro horas,
mais ou menos, saí com ele e fomos para a doca. Lá estive até cerca das
seis horas e Januário falou com o homem de um lanchão. Despedindo-se,
Januário me pediu que chamasse o caixeiro da venda e lhe dissesse que
fosse onde sabia. Com efeito, chamei o caixeiro e o trouxe até a esquina
da praça do Palácio, aí o deixei e fui para minha casa depois de dar uma
44

volta pela rua da Ponte. No caminho, não podendo mais andar, pedi a um
rapaz que me acompanhasse à minha casa, com quem ceei.
-Quem era esse rapaz?
- Não o conheço e suponho que mora na rua do Rosário, mas não
sei em que casa.
- Na casa em que reside, mora mais alguém além de Catarina Palse
e a preta Senhorinha?
Tenta Ramos, mais uma vez, culpabilizar Henrique, o corcunda:
-Lá comia e dormia, há três semanas mais ou menos, o
alemão corcunda chamado Henrique. - Em que quarto dormia esse
alemão?
- Na varanda.
- Qual é o emprego desse alemão? Ele lhe paga aluguel da morada?
Por que motivo o recebeu em sua casa?
Henrique tinha sido empregado no vapor pequeno chamado
Balastraca e nada tratamos sobre o aluguel. Recebi-o em minha casa
como conhecido.
- Henrique estava na casa da rua do Arvoredo toda a tarde e noite
de sexta-feira? -Sai às quatro horas para ir ter com Januário e quando
voltei às nove horas da noite minha mulher me disse que Henrique estava
deitado na cama da varanda, mas eu não o vi.
- Em que quarto o senhor morava e em que cama dormia? Morava
na alcova da sala, dormia em uma marquesa larga que está nessa alcova.
- Quem lavou a cortina dessa cama que dá e ainda deixa ver sinais
de sangue? suja. lhe é apresenta-
-Não sei e minha mulher saberá por que trata da roupa
- De quem eram os sinais de sangue que havia embaixo de sua cama
e em uma travessa da mesma cama?
- Não reparei nisso.
Ramos não entrega os pontos. Quanto mais o interrogador aperta
o cerco, mais aumenta a inventividade das suas respostas.
45

- De onde houve as velas, o sabão, as linhas, a cabeçada que foram


achados em seu quarto e na caixa de Catarina guardada no mesmo
quarto?
- O freio e a cabeçada comprei por seis patacas a um rapaz que
apareceu em minha casa e a quem não conheço, as velas e o sabão
comprei a um barco vindo da Alemanha, as linhas comprei a uns colonos
e os suspensórios arrematei em um leilão há mais de um ano.
-A quem pertencem a bengala e os chapéus achados em sua casa,
sendo aquela atrás do muro do pátio e estes no seu quarto?
-Não sei.
- Conhece este machado?
- Conheço, é meu bem como os dois outros que estão presentes. -
Como houve estes botins e sapatos que foram encontrados em seu
quarto?
- Achei-os ontem debaixo da escada de minha casa. Perguntei à
minha mulher de quem eram e ela me disse que eram do corcunda ou da
negra. Então eu mandei que os levasse para cima e foram levados para o
meu quarto.
- Que negócio tinha com Januário para o procurar na tarde de sexta-
feira?
- Não tinha com ele nenhum negócio e fui à venda tomar dos vinténs
de Genebra dizendo a Januário que ia comprar um saco de milho na doca.
Januário me disse que iríamos juntos.
Durante o dia, as investigações reforçam a suposição de que os
restos encontrados na cova do pátio pertenciam ao açougueiro
Claussner. Amigos e conhecidos identificaram como do açougueiro
objetos encontrados na casa de Ramos.
-Conheceu o alemão Claussner e lhe comprou um açougue?
- Conheci e lhe comprei o açougue.
- Onde está esse alemão?
- Está para as colônias, mas não sei para onde. Foi com outro alemão
chamado Frederico.
46

- Fez pagamento dessa compra?


- Fiz no valor de 50 ou 60 e tantos mil réis e em minha casa deve
estar o recibo.
- Alguém assistiu a esse pagamento?
- Estiveram Claussner e Frederico que se foram embora juntos.
- Há quanto tempo mora nessa casa da rua do Arvoredo?
-Há oito meses.
- Em que mês fez o negócio com Claussner?
- Em setembro ou outubro do ano passado. - Depois da venda do
açougue esteve com Claussner em alguma parte?
- Claussner dormiu ainda no açougue dois ou três dias e depois
mudou-se para o Caminho Novo, mas não sei para que casa.
Nisto, comparece o sargento Honório Corrêa, do 3º Batalhão de
Infantaria. Perguntado se conhecia, como seus, o freio e cabeçada que lhe
eram apresentados, responde:
- Estes objetos são meus. Estiveram em casa do inspetor de
quarteirão, Palma Dias, emprestados. Ultimamente, há um mês,
entreguei-os a Januário, cujo cadáver foi hoje descoberto, para os vender.
Faz oito dias, jantando com Januário, que era meu tio, vi lá esses objetos.
Depois disso, não me disse que os tivesse vendido.
Perguntado sobre estas declarações, Ramos não vacila:
- Provavelmente, o homem a quem Januário os vendeu, vendeu-os
a mim.
Chamada Catarina, perguntam-lhe na presença de Ramos se era
exato que o mesmo, na sexta-feira, jantara com Januário, matara-o depois
com um machado e outro tanto fizera com o menino, esquartejando
depois os dois.
- É verdade, segundo já declarei
- Responde Catarina.
O chefe de Polícia pergunta a Ramos:
47

- O que tem a dizer sobre o que acaba de ouvir?


- É mentira tudo quanto declara Catarina.
- Como não observou que seu quarto, sua cama e as roupas dessa
estavam manchadas de sangue?
-Não vejo bem de dia e a limpeza do quarto pertence à minha
mulher.
48

Capítulo VI

H enrique, o corcunda, é um dos personagens sinistros na história


dos crimes da rua do Arvoredo. Só se saberá disso, entretanto, vários
anos depois. Tem o gênio da dissimulação e se sai bem no interrogatório
a que é submetido, afastando qualquer suspeita, a ponto de que sequer
foi denunciado pelo promotor nos dois primeiros inquéritos instaurados.
Seu nome é Henrique Ritmann: solteiro, 24 anos de idade, ferreiro
de profissão. No momento trabalha na barca Concórdia e reside no Hotel
Alemão, na rua da Praia. Como só fala o alemão, é ouvido através de
intérprete.
Começa por desmentir a afirmação de José Ramos de durante as
três últimas semanas dormira e comera na casa que da rua do Arvoredo.
- Residiu na casa de José Ramos e em que tempo?
- Residi lá sexta-feira, sábado, domingo, segunda e terça-feira da
semana passada, quatro dias ao todo, por convite de José Ramos, a quem
emprestei uma onça no dia 12 deste mês.
- Onde residiu desde terça-feira até hoje?
- No hotel da rua da Praia.
Curiosamente, não lhe é perguntado por que residiu durante
aqueles dias na casa de Ramos.
- Depois de sexta-feira, alguma vez esteve na casa de José Ramos?
- Na sexta-feira passada, pela manhã, estive lá e deixei uma japona
à mulher de Ramos para consertar e domingo voltei para receber a
japona. Hoje de manhã também lá fui, mas não o encontrei.
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- Nesses últimos dias, não viu em casa de Ramos algum indício que
lhe causasse suspeita de crime?
- Não vi indício de crime. Sexta-feira só vi chegar à casa de Ramos o
padeiro, de manhã bem cedo. Domingo fui à tarde e vi a polícia que ia
prender Ramos. E este, recostado no sofá, me disse que estava preso.
-O que fez durante toda a tarde e noite de sexta-feira?
- Nada. Nem saí do hotel em que moro. Teria sido fácil conferir o
álibi, mas não consta que se tenha feito isso.
- Depois da prisão de Ramos, falou com Catarina?
Mais tarde se saberá que mantiveram demorada conversa, mas
agora ele o nega tranquilamente:
- Não. Fui procurá-la ontem e os vizinhos disseram que ela tinha ido
para a casa de uma comadre.
- Há quanto tempo conhece José Ramos?
- Conheço há cinco ou seis anos, mas há um ano passei muito tempo
sem o ver e supus que tivesse morrido. Nos últimos três meses, porém,
encontrei-o de novo.
- Conheceu um alemão que tinha um açougue na rua da Ponte por
trás das Dores chamado Claussner?
Henrique ajudou a matar Claussner, mas nega havê-lo conhecido:
-Não. Mas conheci outro alemão que cortava carne nesse açougue;
não me lembro do nome.
- Sabe por que razão Ramos está preso?
- Na noite de domingo, perguntei por isso a um outro alemão
vizinho de Ramos, chamado Augusto, e este me disse que era por terem
descoberto um poço com carne na casa de Ramos, mas que era carne de
boi.
- Foi domingo que o alemão Augusto lhe deu essa informação?
- Domingo, das cinco para as cinco e meia da tarde, fui à casa de
Augusto e ouvi diversas pessoas falando em português. Como não
50

entendo o português, perguntei a Augusto e ele me referiu o que acabo


de dizer.
Mandam-no em paz, livre de suspeitas.
A negra Senhorinha pertence a uma instituição muito comum no
sistema escravista brasileiro - a dos escravos-de- ganho. São, em
comparação aos demais escravos, privilegia- dos. Moram fora da casa do
amo e exercem uma profissão qualquer; sua única obrigação é a de
entregarem ao amo, no final do dia, uma féria. Em geral, são escravos
velhos, sem condições de enfrentar as agruras e os riscos de uma fuga;
além do mais, têm a oportunidade de fazerem uma poupança e assim são
os escravos que com mais frequência compram a alforria. Os amos são
pessoas da baixa classe média e até mesmo pessoas pobres. Esse é o caso
da ama de Senhorinha, Balbina Palmeiro, uma mulher velha e pobre. Aos
54 anos de idade, Senhorinha é uma escrava de escasso valor econômico.
Faz dois meses que mora na casa de Ramos, mas só para dormir. Durante
quase todo dia, mal aparece; passa-o a lavar roupa no Riacho e à tardinha
volta para cozinhar mocotó a fim de vendê-lo.
As declarações de Senhorinha comprometem a versão através da
qual Catarina procurou isenta-se de envolvimento nos assassinatos.
- Viu entrar na casa de José Ramos, sexta-feira última, um homem
que tinha venda na rua da Igreja, esquina da do Rosário, e um menino,
caixeiro da mesma venda?
- As cinco horas da tarde, mais ou menos, vi na casa esse -homem,
que era magro e meio velho, e a quem conhecia de vista e chamavam
Januário. Estava sentado no sofá da sala com José Ramos. Saí para
entregar roupa e quando voltei, depois das seis horas, vi na sala um
menino mastigando sentado no sofá, à direita de José Ramos.
Conta a seguir o que viu de suspeito:
- Sexta-feira às nove horas, a mulher de Ramos fechou a - porta da
cozinha e outra do meio da casa que vai Senhorinha engana-se quanto à
hora certamente não para a sala. tinha relógio como acontece de resto
com outras testemunhas.
- Assim, eu não podia sair nem para o quintal, nem para a rua. Às
onze horas, Catarina veio abrir as portas e disse que o menino que eu
51

tinha visto na sala, andava fugido há dois dias e José Ramos o tinha ido
levar apadrinhado. Isso que acabo de dizer era de noite. Sábado às
mesmas horas, Catarina veio perguntar-me se ainda tinha que sair.
Respondi que não. Ela fechou as mesmas portas e tornou a abrir mais
tarde.
Senhorinha confirma que na sexta-feira, à tardinha, Catarina lhe foi
pedir água para o mate. Quando Ramos jantou na sexta-feira estava no
Riacho lavando roupa.
- Sábado ou domingo viu José Ramos ou Catarina lavar roupa e um
lugar da alcova da sala que tivesse nódoas de sangue?
- Sábado e domingo não vi nada disso, mas na sexta-feira, quando
entrei da praia, depois de ter visto Januário na casa, encontrei Catarina
lavando a escada que desce para o quintal e depois a vi lavar uma taquara
grossa que estava cheia de sangue. Perguntei a razão disso. Catarina me
disse que vindo da cozinha com um prato de comida tinha tropeçado e
derramado a gordura na escada e sobre a taquara. Disse que José Ramos
tinha matado uma galinha e a jogara pela janela, de modo que tinha
espalhado o sangue.
- Depois que Ramos foi preso, Catarina lhe disse alguma coisa que
se referisse a aquelas pessoas que tinham estado na casa sexta-feira?
- Não. Depois da prisão, Catarina não apareceu mais em casa e só
hoje me falou quando me encontrou defronte ao açougue da rua do
Arvoredo, dizendo-me que não sabia o que José Ramos tinha, mas que
estava gira.
São onze horas da noite quando o chefe de Polícia dá por
encerradas as inquirições. Desde a manhã, a multidão postada à frente da
secretaria de polícia não arredou pé. Quando o chefe de Polícia abre a
janela, a multidão irrompe em gritos violentos, exigindo a entrega dos
"alemães fabricantes de linguiça humana". Callado arenga a multidão,
pedindo que se disperse, pois os presos só sairão dali para serem postos
na cadeia, a fim de serem julgados e punidos pela justiça. A multidão se
enfurece ainda mais e brada que quer justiçar os culpados.
Assustada, Catarina chora e pede a Callado que não deixe matarem-
na, pois só Ramos é culpado. Este mantém a calma e ironiza:
52

- Não tenha medo. Cães que latem não mordem.


As praças de que dispõe o chefe de Polícia são insuficientes para
garantir a vida dos presos. Rapidamente são requisitadas vinte praças de
um batalhão de infantaria, mas a multidão as cerca e as dispersa. Mais
trinta praças são requisitadas. Armas embaladas, formam um quadrado e
avançam para dispersar a multidão. Mas esta não se assusta, atirando
pedras e garrafas que ferem um oficial e algumas praças. Estas reagem,
formam de novo um quadrado e nele metem os presos. A fúria popular
recrudesce. Os manifestantes recuam da praça da Matriz para o beco do
Poço, continuando a arremessar pedras e garrafas. Sob o comando de um
coronel, chega um reforço de mais quinze praças que dispersam
violentamente a multidão.
A força militar marcha para a cadeia, os presos metidos no centro
de um quadrado. Mas os populares não esmorecem. Apedrejam
continuamente a força e fazem-na recuar para a praça da Matriz. Na altura
do palácio presidencial, alguém do povo dispara sobre a força, que em
resposta abre fogo sobre a multidão. Esta se dispersa, mas volta à carga
durante todo o trajeto entre a secretaria de Polícia e a cadeia. Nas
proximidades da cadeia, torna a atacar violentamente a força policial.
No relatório ao presidente da Província, dirá o chefe de Polícia que
as praças "a ninguém ofenderam, por se ter ordenado pontaria alta". Nas
suas memórias, o cônsul Caillois dá versão diferente: "A multidão se
compunha de caixeiros de comerciantes portugueses, de pessoas
habitualmente desocupa- das e mesmo de alguns escravos. Sua cólera era
muito grande e aparentavam não ter medo dos soldados. Os choques
foram violentos e na altura do palácio presidencial morreram duas
pessoas, uma das quais um marujo fluvial e a outra um preto." O Jornal
do Comércio, do Rio, informará que houve um morto e diversos feridos.
Os presos são afinal encerrados na cadeia, mas a multidão ali
permanece até quase o amanhecer, gritando "morte aos assassinos
alemães" e "morte aos fazedores de linguiça de carne humana".
Nessa noite a cidade não dorme, e são sobretudo os ale- mães s que
perdem o sono. Alguns se entrincheiram em suas casas e seus
estabelecimentos comerciais. Soldados são distribuídos por diferentes
pontos da cidade para garantir os alemães.
53

O cônsul da Prússia convoca uma reunião do corpo consular em sua


residência, à rua da Ladeira, a fim de discutir a situação. Afora outros
cônsules germânicos - Bremen, Hamburgo, Wurtemberg-comparecem os
da Argentina, Austria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos,
França, Holanda, Rússia, Suécia, Suíça e Uruguai. Só não comparecem os
cônsules da Grã-Bretanha e de Portugal. Estão também presentes 7
grandes comerciantes alemães e 3 comerciantes judeus de joias. Estão
todos receosos de tumultos populares que ponham em risco a
integridade física e as propriedades dos estrangeiros. Os cônsules e os
comerciantes germânicos estão especialmente preocupa- dos com os
rumores de que os imigrantes alemães "comem carne humana, como os
índios", segundo diz o representante da Prússia. Resolvem formar uma
comissão composta dos cônsules germânicos, austríaco e suíço para se
entenderem com o presidente da Província e pedir garantias para os
estrangeiros. A entrevista se realiza depois da meia-noite e o presidente
em exercício da província, comendador Patrício Correa da Câmara,
empenha sua palavra de que a ordem será mantida.
O dia transcorre tenso. O presidente coloca em prontidão toda a
força militar da cidade. Quase todo comércio fecha suas portas e poucas
pessoas saem à rua. Em relatório à Corte, o presidente justifica suas
medidas pelo temor de que "os ânimos voltem a se exaltar, como no ano
passado, por motivo da questão inglesa".
A "questão inglesa", ou "questão Christie", pôs a nu em janeiro de
1863 a tensão étnica em que vive a cidade.
Em junho de 1861, naufragou na costa da província, no lugar
chamado Albardão, a fragata inglesa Prince of Walles. Moradores da
vizinhança atacaram a tripulação e saquearam a fragata. Antes que o
chefe de Polícia, Dario Callado, mandasse prendê-los, os culpados fugiram
para a Banda Oriental. Christie, ali nau- embaixador britânico no Rio,
denuncia que os moradores do litoral viviam do produto do saque dos
navios que por fraguavam. Afirma que em Mostarda, os moradores
usavam faróis falsos para desnortear os navios e fazê-los dar à costa. No
caso do Prince os Walles, diz Christie, as autoridades deixaram os
piladores fugirem para o Uruguai. Insistentemente, o embaixador pede
indenização. A crise diplomática se agrava quando a polícia do Rio prende
dois oficiais da marinha inglesa por embriaguez. Em dezembro de 1862, o
54

Brasil rompe relações diplomáticas com a Inglaterra. Dias depois, um


certo The- odore von Büller, escreve no jornal alemão da cidade, Deutsche
Zeitung, longo artigo em que dá razão aos ingleses.
O sentimento patriótico se encrespa. Populares se reúnem na praça
da Alfândega, armados de alavancas e picaretas, e marcham para
depredar a tipografia do jornal, na rua da Praia, perto da rua Santa
Catarina, aos gritos de "morram os alemães!". A polícia impede a
depredação, mas um alemão sai gravemente ferido. Os populares não
desistem; à noite, ocupam a rua da Praia, a rua do Rosário e a rua Santa
Catarina. Reunidos numa sociedade beneficente à rua Santa Catarina*, os
alemães se armam para o que der e vier. A cidade se enche de rumores
alarmantes. Corre que os colonos de São Leopoldo se preparam para
marchar sobre a capital, a fim de defender a vida e os bens de seus
patrícios de Porto Alegre. O governo coloca um contingente da Guarda
Nacional na boca da ponte do rio Gravataí, mas a marcha não se realiza.
Assustado, von Büller transfere a responsabilidade para a comissão
diretora do jornal, encabeçada por Guilherme Brügen e Frederico
Haensel, que são imediatamente chamados. a Palácio e interpelados pelo
presidente. Eles assumem o compromisso de se retratarem, mas à saída
do Palácio, são agredi- dos por populares. Os líderes da comunidade
alemã assinam uma ata perante o chefe de Polícia, "protestando a sua
estima e consideração por seus amigos brasileiros". Um jornal luso-
brasileiro dirá que a retratação era devida em respeito "aos direitos e
prerrogativas de uma nação livre". O presidente Espiridião Pimentel
admite que o conflito refletiu "a odiosidade entre nacionais e alemães".
O episódio da noite de 18 para 19 de abril de 1864 provocará novo
conflito entre luso-brasileiros e alemães. O cônsul da Prússia, em longa
publicação a que aderem outros 18 representantes consulares, aplaude a
ação enérgica das autoridades contra os manifestantes.
. O abaixo-assinado provoca indignação contra os alemães. O
presidente da Província publica protesto contra o documento
"impertinente, calunioso e ofensivo".
*Rua Doutor Flores
55

A Câmara Municipal divulga protesto contra "o receio que nutre o


corpo consular de que graves prejuízos podiam ter resultado à
tranquilidade dos súditos das nações que representam e especialmente
os alemães", por motivo da "espontânea indignação pelos nefandos
assassinatos perpetrados por José Ramos". A inconformidade dos 9
vereadores é com "o apoio dado por estrangeiros a uma ação policial que
fez correr o sangue de alguns brasileiros".
Os crimes de José Ramos provocam, assim, um incidente
diplomático. Anos mais tarde, os crimes se transformarão, para o Império,
numa questão de Estado.
Embora só se tenham encontrado os restos de três corpos, a voz
popular é de que são muitos os assassinatos. Os crimes são atribuídos aos
"alemães", ainda que o autor ostensivo se chame José Ramos. Não há,
até então, no inquérito policial, qualquer menção da "linguiça de carne
humana", mas é o que corre insistentemente na cidade. Dia 19, o chefe de
Polícia manda oito condenados às galés fazerem minuciosas escavações
no porão e no pátio da casa da rua do Arvoredo. A terra é revolvida palmo
a palmo. Para que não reste nenhuma dúvida, Callado manda dois
condenados esvaziarem a latrina, na parte exterior da casa. Nada se
encontra.
56

Capítulo VII

Um brinco de ouro permitirá identificar como sendo de Carlos


Claussner, o açougueiro da rua da Ponte, a ossada que se desenterrou no
pátio da casa de José Ramos.
Os médicos legistas, Joaquim Pedro Soares e Manuel Pereira da
Silva Ubatuba, atestam em seu laudo a completa de- composição do
cadáver, impossibilitando um reconhecimento. Mas o laudo fornece uma
pista: "A cabeça está privada de partes moles e apenas nota-se, sobre as
fossas temporais, e apófises mastóides na parte da membrana que
facilmente se despedaça, restos prováveis de pele do plano muscular que
reveste esta região; colado a esta membrana, nota-se um brinco de ouro
de forma circular."
O prussiano João Tehse, que exerce a profissão de charuteiro, faz a
identificação cabal. Mais ou menos dois anos antes, Tehse foi durante
nove meses aprendiz de açougueiro no estabelecimento de Claussner. Daí
saiu para se instalar com açougue por conta própria, trocando depois esta
profissão pela de charuteiro. Conduzido até a Santa Casa para ver a
ossada, de- clara em auto de reconhecimento identificar "a cabeça de
Claussner por um brinco que estava preso na caveira".
Ouvidos pelo chefe de Polícia, outros alemães que conheceram
Claussner - marceneiros, pintores, açougueiros, padeiros, sapateiros,
charuteiros, comerciantes-declaram que ele usava um brinco na orelha
esquerda. De resto, todos identificam como de Claussner os objetos
pessoais encontrados na casa de José Ramos.
57

Tudo é estranho nesse Carlos Claussner, peça-chave na


engrenagem criminosa de José Ramos. Nasceu em Markersdorf, Saxônia,
em 1828, filho de João Gottlob Frederico Claussner, classificado nos
documentos como "proprietário". Antes de emigrar para o Brasil, Carlos
exerce a profissão de tecedor de meias. Em maio de 1859, aos 31 anos,
embarca em Hamburgo para o Rio. Embarca solteiro, como é o caso da
maior parte dos imigrantes, homens e mulheres. O que o leva a emigrar?
O termo "proprietário", usado em relação a seu pai, não indica um
camponês ou artesão na Alemanha desse tempo, mas alguém que vive do
rendimento de suas terras. Emigra-se para fugir da miséria, mas esse não
parece ser o caso de Claussner.
O passaporte o descreve de forma bastante detalhada:
"altura média, cabelos castanhos negros, testa franca, olhos azuis
grisados, nariz e boca ordinários, dentes bons, barba raspada, queixo e
formação do rosto oval, cor saudável". Indica sinal característico,
confirmado pelas testemunhas que o reconheceram: " cicatriz do olho
esquerdo até a boca e beiço inferior do dito lado esquerdo". Em Porto
Alegre, para disfarçar a feia cicatriz, passa a usar na orelha esquerda um
grande brinco de forma circular.
Deve ter trazido algum capital, pois assim que chega a Porto Alegre,
se estabelece com açougue na rua da Ponte, perto dos fundos da igreja
das Dores. Essa igreja ainda não tem torres; e, como não se fez ainda a
escadaria entre a rua da Praia e a igreja, o acesso a esta é pelos fundos, na
rua da Ponte. De manhã, quando saem da missa, as senhoras mandam os
escravos comprarem carne no açougue, e assim, este prospera
rapidamente.
Açougueiros sempre provocaram mal-estar e medo: empunhando
afiadíssimos instrumentos cortantes, esquartejam e retalham a carne;
seus aventais vivem manchados de sangue. Não bastasse isso, Claussner
ostentava um gilvaz que emprestava ao seu rosto um aspecto sinistro.
Seus compatriotas mantêm com ele relações de fria sociabilidade. Não o
convidam para suas casas e suas festas; ele vive solitariamente, comendo
e dormindo no próprio açougue. Em junho de 1863, conhece José Ramos
e ambos imediatamente se tornam unha e carne. Encontram-se quase
todos os dias e passam longo tempo a conversar no interior do açougue,
em alemão, pois Ramos é fluente nessa língua. Volta e meia, Ramos
58

convida Claussner a jantar em sua casa, o que desmente a afirmação de


Catarina de que não conhecera pessoalmente o açougueiro. "Pareciam
irmãos", dirá Catarina.
Em agosto de 1863, Claussner diz a vários compatriotas que quer
mudar-se para Montevidéu.
Súbito, termina a amizade e Ramos decide matar Claussner. No
dia 1º de setembro de 1963, manda um certo Carlos Rathmann, um alemão
de Cassel com 61 anos de idade e residente há cerca de um mês num
quarto nos fundos da casa da rua do Arvoredo, amolar num marceneiro
da rua da Igreja um facão de dois cabos e uma machadinha. Cerca das 23
horas do dia 2 de setembro, Ramos e Rathmann montam a cavalo na rua
do Arvoredo e se dirigem para o açougue, levando o facão e a
machadinha. Ramos possui a chave e entra, deixando Rathmann do lado
de fora.
Claussner é atacado enquanto dorme. O machado lhe fende a
cabeça de alto a baixo. Ainda vive quando Ramos o degola com o facão
de dois cabos. Ato contínuo, Ramos passa a esquartejar o cadáver,
metodicamente, como é seu costume. Está entregue a essa tarefa
quando entra Rathmann, que recua repugnado e depois se senta a um
canto a chorar.
Claussner trouxe da Alemanha dois baús de madeira, um muito
grande e outro pequeno. No baú maior, Ramos coloca os pedaços do
corpo de Claussner, no menor, acomoda objetos e roupas da vítima. Passa
a esquadrinhar o açougue em busca de dinheiro e encontra uma quantia
que, a julgar pelas larguezas posteriores de Ramos, devia ser significativa.
As roupas e os objetos serão avaliados judicialmente em 85 mil réis, mais
de quatro vezes o ordenado de Ramos como informante da polícia.
Amanhece quando Ramos manda Rathmann ao largo do Paraíso*
alugar dois escravos-de-ganho. Os negros carregam os baús, a pau e
corda, até a rua do Arvoredo. No pátio, Ramos enterra os despojos. Nos
dias que se seguem, Ramos gasta abundantemente, dizendo a todos que
ganhou na loteria; oferece dinheiro a juros a várias pessoas. Propala ao
mesmo tempo que comprou o açougue e faz questão de exibir um recibo
que comprova a transação.
* Praça 15 de Novembro.
59

Um comerciante português, vizinho de Claussner, viu na manhã de


dois de setembro os dois negros carregando os baús. Ramos disse-lhe que
havia comprado o açougue. Claussner se retirava para a colônia de Nova
Petrópolis e já estava embarcado em um lanchão, para o qual mandara
conduzir suas tralhas. A outras pessoas, Ramos dirá que Claussner viajou
para Montevidéu. O açougueiro de fato falava ultimamente em mudar-se
para a Banda Oriental, mas seus conhecidos estranharam que não se
tenha despedido.
Pouco depois do assassinato, Ramos vai a um Te-déum, na igreja
matriz, em ação de graças por haver o Imperador es- capado de um
desastre na fortaleza de São João, no Rio. À noite, assiste no São Pedro à
ópera Lombardos, o teatro está quase vazio, devido à "péssima
execução", diz o jornal Diógenes.
Durante alguns dias, Rathmann atende no açougue, cortando e
vendendo carne. De tanto em tanto, Ramos aparece no açougue. O
padeiro Gustavo Koboldt, que fornecia pão a Claussner, ouve de
Rathmann que o açougueiro estava doente na casa de Ramos.
Está a reconstituirão que se pode fazer do assassinato de Claussner,
na base de informações dispersas dos processos e particularmente da
confissão que Catarina fará mais tarde.
Vejamos o jogo dos personagens para se isentarem culpa e
responsabilidade.
Reinquirida no dia 20 de abril de 1864 e perguntada se conheceu
Carlos Claussner, Catarina responde com firmeza:
- Não o conheci, nem nunca o vi.
A autoridade supõe que Claussner tenha sido assassinado na casa
da rua do Arvoredo, e daí a pergunta:
- Há seis ou sete meses, quando José Ramos foi trabalhar no
açougue, segundo declarou em seu primeiro interroga- tório, não soube
nem viu que ele cometesse uma morte na casa da rua do Arvoredo?
- Não vi nem soube de coisa alguma a esse respeito.
60

A autoridade pondera que há provas do assassinato de Calussner


por Ramos:
- Não se resolve a declarar a maneira como o fato se deu?
- Nada sei sobre isso. Saio muitas vezes de noite e muita gente me
tem visto na rua.
Pode ser que em alguma dessas ocasiões José Ramos cometesse o
crime e só me lembro de que há alguns meses ele saiu uma tarde, dizendo
que ia para uma chácara e só voltou no dia seguinte, mas não o vi trazer
coisa alguma. Dias depois, José Ramos trouxe dois baús e me disse que o
alemão do açougue se tinha ido embora, ficando ele José Ramos com o
açougue.
-José Ramos conduziu a caixa menor para o porão?
- Não vi. Saí de tarde de casa, andei toda a noite na rua e voltei
depois da meia-noite. Pela manhã cedo, vi a caixa aberta e vazia no quarto
da sala.
Antes de reinterrogar José Ramos, a autoridade ouve Gustavo
Koboldt, um padeiro prussiano de 32 anos. Pergunta- do o que sabe
relativamente às relações entre José Ramos e Carlos Claussner, e sobre o
desaparecimento deste, declara:
- Tendo uma padaria, eu fornecia pão a Claussner, dono - de um
açougue à rua da Ponte. Faz seis meses, comprei-lhe um coche, devendo
pagar-lhe com um mês de fornecimento de pão. Forneci pão durante
cinco ou seis dias. Então, indo à casa de Claussner entregar pão, encontrei
lá um alemão velho chama- do Rathmann, que me disse estar Claussner
doente em casa de Ramos, onde morava o mesmo Rathmann. Dois dias
depois, José Ramos foi à minha casa e me disse que levasse à sua casa,
onde estava Claussner, o pão que devia a este. Um dia depois, encontrei
na rua a José Ramos, que me disse ter comprado o açougue de Claussner
com todo o ativo e passivo. Eu devia, portanto, pagar-lhe o pão que devia
a Claussner. Perguntei como passava Claussner e José Ramos respondeu
que já tinha embarcado para fora. Face a isso, entreguei diariamente a
José Ramos o pão que devia a Claussner, porque não desconfiava, nem
ninguém desconfiou até agora, que Claussner tivesse sido vítima de um
crime. Todos deram crédito à viagem que Ramos propalava, embora
Schmidt, sócio de Claussner e que tinha apartado a sociedade, escrevesse
61

a este para diversos pontos sem receber resposta. Ouvi dizer na venda
vizinha ao açougue de Claussner, que José Ramos e Rathmann tinha
levado todos os trastes do açougue de Claussner.
Koboldt levanta a seguir a suspeita de que outros alemães tenham
sido assassinados Por Ramos:
- Faz dois ou três meses, veio de Santa Cruz ou de Rio Pardo, uma
alemã cujo nome não sei, mas que direi depois, para vender uma porção
de charutos. Segundo me disse um cabo de polícia que fala alemão, essa
mulher fez algumas compras, que pagou e não recebeu os objetos.
Depois desapareceu sem se despedir de ninguém e por isso depois de
descobertos os crimes de José Ramos, entre os alemães nasceu a
desconfiança de que também essa mulher tivesse sido por ele
assassinada. Tendo vindo um colono de Nova Petrópolis recomenda- do
a mim e que chegou pela barca de São Leopoldo há quinze dias e
retirando-se na sexta-feira passada, disse-me que enquanto teve dinheiro
de uma subscrição feita para vir dar queixa ao presidente da Provincia,
Henrique, o corcunda, não o tinha deixado e o levara à casa de Ramos
para ver uma roupa que tinha mandado fazer. Há 8 ou 16 dias, José Ramos
ofereceu a Antônio Tum, padeiro em frente à praça da Harmonia, dois
contos de réis a juros.
Dia 21, José Ramos é submetido a exaustivo interrogatório. O chefe
de Polícia lhe pergunta se conhece duas caixas verdes que lhe são
mostradas e o respectivo conteúdo: roupas e objetos pessoais de
Claussner, como um relógio com um cordão de cabelo, uma corrente de
ouro e chaves. Ramos responde sem vacilar:
- Os três colarinhos e o peito de camisa comprei na casa de
Paradeda; os aventais, cobertores e travesseiros, comprei a Claussner; os
três colarinhos achei-os velhos no açougue; o relógio troquei com o
mesmo Claussner por outro de prata; o cordão de cabelo e as meias
comprei a colonos que chegaram há pouco e cujos nomes não sei.
- Por que razão algumas roupas apresentam manchas de Sangue
- Não sei.
- Como houve as duas caixas ou baús verdes?
62

- Troquei-as com Claussner por serem estas muito pesadas para


viajar.
Não sabe por que há manchas de sangue no interior dos baús.
- Como foram parar em suas mãos estes papéis que lhe são mostrados:
dois passaportes, dois bilhetes de passagens, uma receita e um convite
para batismo pertencentes a Claussner? -Achei esses papéis quando
comprei o açougue em uma tábua sobre a porta (sic).
- Achou só esses papéis?
- Creio que eram só esses. - Como foram ter à sua casa outros papéis,
como a receita e um bilhete de passagem para Carlos Schmidt, que foi
sócio de Claussner? Esses papéis estavam junto com os outros.
A autoridade mostra-lhe um recibo de venda do açougue, escrito em alemão e
datado de 2 de setembro de 1863, e pergunta se foi passado por Claussner:
- Sim, é o recibo.
- Quantos dias depois dessa data partiu Claussner para a viagem que diz
ter ele feito? -
- Sete ou oito dias depois, porque dormiu ainda três no açougue e esteve
uns dias pelo Caminho Novo*.
- Claussner usava um brinco na orelha?
Todos os que conheceram Claussner declaram que o brinco na orelha chamava
a atenção pelo seu tamanho, mas Ramos responde tranquilamente:
- Nunca reparei nisso.
Nessa altura, a autoridade muda o rumo do interrogatório e faz muitas
perguntas sobre Quintella. Ramos confirma que dissera ao comerciante
português que possuía uma letra de Príncipe, mas dá a seguinte explicação:
- Passou-se o seguinte: estando esse moço a dizer que Príncipe havia de
quebrar, eu me opus a isso e declarei que emprestaria dinheiro a Príncipe se
fosse preciso, como já tinha dado um conto e tanto. Mas isso era caçoada, pois
não tenho dinheiro nem para pagar o aluguel. Então o moço disse que havia
de passar pela minha casa para ver o documento de Príncipe. Acho que com
efeito passou, pois achando-me na cozinha a mulher me disse que me estavam
procurando e eu mandei dizer que não estava em casa.
63

*Rua Voluntários da Pátria.

O interrogatório volta para Claussner:


- Quem o ajudou a conduzir as duas caixas verdes do açougue de
Claussner para sua casa?
- Foram um carroceiro e um preto, cujo nome não sei. - Quem o ajudou a
conduzir os outros objetos do açougue?
- Foram pretos da rua quando desmanchei o açougue.
- Carlos Rathmann nesse tempo morava em sua casa e o ajudou a
desmanchar o açougue?
- Não estou certo, mas parece que antes disso já tinha corrido de casa a
Rathmann por ser muito bêbado.
Depois de mais algumas perguntas e respostas pouco relevantes, o
chefe de Polícia quer saber de que rendimentos vivia Ramos depois que deu
baixa. Trata-se de uma cartada audaciosa de Callado, pois Ramos poderia
responder que ganhava como informante da própria polícia. Mas talvez
Callado saiba que Ramos guardará esta carta na manga a fim de negociar uma
pena mais branda. Ramos de fato silencia sobre seu emprego secreto:
- A mulher com quem vivo lavava e ganhava, e eu cobrava para alguns
comerciantes, como Príncipe e Antônio Turn, pedia dinheiro emprestado e
ainda devo a Antônio Turn e Henrique, o corcunda.
Segue-se uma acareação com Catarina, que reitera ter ele The ordenado
que lavasse as roupas para fazer desaparecer as manchas de sangue. Único
comentário de Ramos:
- É mentira.
Ele está lutando para não ser enforcado - e o faz com fria engenhosidade
e astuta mestria. Não confessa, não confessará jamais. Não tem nenhum
sentimento de culpa e não quer expiar aquilo que foi, como nos contará
Catarina, a sua "felicidade".
64

A emigração não foi um sucesso para todos os alemães e há entre eles


alguns reduzidos à marginalidade. Esse o caso de Carlos Rathmann, que aos 61
anos não tem ocupação ou morada fixas. Faz 20 anos que não tem notícias da
mulher. Alcoólatra inveterado, perambula de botequim em botequim, filando
bebidas. Neste momento, vive na Cascata, de favor, no rancho de uma chácara.
Apesar de tudo, sai-se bem no interrogatório.
- Conheceu Claussner?
- Vi-o algumas vezes, mas não o conhecia.
- Que destino deu Claussner a seu açougue?
-José Ramos me disse que Claussner era seu devedor e lhe tinha vendido
o açougue, retirando-se para Montevidéu.
- Ajudou a conduzir para a casa de José Ramos os trastes de Claussner?
- Na ocasião em que José Ramos disse ter comprado o açougue, eu
morava na casa dele, pagando três mil reis por um quarto e por isso ajudei a
conduzir os trastes sem suspeitar de coisa alguma. Estive um mês morando na
casa de José Ramos e isto há sete ou oito meses.
Portanto, Rathmann morava na casa de Ramos quando assassinaram
Claussner. Prossegue:
- Adoecendo, fui para a Santa Casa, onde estive dois meses e dias, dali
fui para a casa do seleiro Mateus, no caminho do Menino Deus, e estive
ajudando a fazer arreios para os carros da Várzea. Aí morei perto de quatro
meses. Há dez dias mudei-me para uma chácara na Cascata.
- Entre os trastes de Claussner estavam os dois baús pintados de verde,
aqui presentes?
- Não vi lá esses baús nem outros, só havia na casa os parelhos próprios
do açougue.
- Claussner esteve na casa de Ramos doente?
-Durante os meses que lá morei, Claussner não dormiu na casa, mas
morava no açougue.
- Quando foram conduzidos para a casa de José Ramos
os objetos da casa de Claussner, apareceram lá os baús?
65

- Não os vi lá, era possível estarem guardados em algum quarto. Em uma


venda da rua de Bragança, em frente à rua da Alegria, onde às vezes Ramos
me pagou bebida, ouvi-o dizer, haverá dois meses, que tinha tirado três contos
de réis na loteria, e ainda recebia vinte mil réis da polícia, assim explicando os
gastos que fazia. Sendo certo que muitos alemães tinham ouvido Ramos
contar que havia tirado uma sorte na loteria.
Por que será que Ramos gosta de ser padrinho? Sabe-se que é padrinho
de pelo menos sete filhos de casais alemães que moram na vizinhança. Quando
sabe do nascimento de uma criança, visita os pais, na companhia de Catarina-
e se oferece para padrinho. Um de seus compadres é o belga João Gabriel
Kerkove, pintor, com 26 anos de idade, morador à rua do Arvoredo.
Kerkove detalha seu álibi durante os últimos dias. Informa que Ramos e
Catarina haviam prometido visitá-lo no domingo, mas só ela apareceu, visto
que a polícia estava na casa. Acrescenta:
- Catarina depois me pediu que fossem ver se quando fechassem a porta
da casa de José Ramos lhe davam a chave. Fui e falando ao subdelegado,
perguntei se podia falar com José Ramos. Ele disse que não porque era
culpado. De noite, disse a Catarina que fosse para casa e ela me pediu que
fosse também ficar lá. Recusei-me, mas minha mulher a foi acompanhar até a
casa de Ramos, e deixando-a, voltou. Mais tarde, passei pela casa de Ramos
com minha familia e o vi sair preso. Perguntei à ordenança se a mulher também
ia e como me disse levei-a com minha família para casa de meu cunhado João
Skinc, que não, na rua da Praia, e de lá a levei para dormir em minha casa. Mais
tarde, minha mulher me contou que Catarina tinha dado para guardar uma
bolsa com dinheiro e um lenço com uma chave. Segunda-feira, antes das seis
horas da manhã, saí para meu serviço no Caminho Novo e voltando de noite
minha mulher me contou que estando sua mãe só em casa, por ter ela saído
para tratar de negócios de casamento, tinha vindo uma ordenança chamar
Catarina. Estando já minha mulher em casa, voltou a ordenança para receber a
chave e o lenço, e então ela entregou também o dinheiro.
- Catarina não declarou a razão por que José Ramos estava preso?
- Perguntei-lhe muitas vezes e ela respondeu que não sabia.
No dia seguinte, 22 de abril, é ouvida a mulher de Kerkove, Isabel Bössig,
24 anos de idade, de prendas domésticas. Diz que veio morar em Porto Alegre
um ano atrás, mas não informa onde morava antes. Nasceu na Prússia, mas
66

com poucos anos de idade foi viver com os pais na Transilvânia, terra de
Catarina. Isabel promove reuniões religiosas em sua casa e goza de grande
ascendência sobre alguns alemães. Anos depois, terá um papel importante na
revelação dos crimes da linguiça de carne humana.
- O que lhe disse Catarina, quando foi à sua casa, sobre a prisão de José
Ramos?
- Catarina me disse que estava infeliz por ter sido seu marido preso. Eu
lhe perguntei por diversas vezes sobre o motivo da prisão, respondendo-me
constantemente que não sabia. Depois saí com meu marido e um filho para
visitar meu cunhado. Passando pela casa de José Ramos, onde havia muita
gente junta, um moço chamado Guilherme, que vai ser meu cunhado, ouviu
um preto dizer que naquela casa tinham achado gente morta. Contei isso a
Catarina e ela respondeu que não sabia de nada e que isso eram ditos de
pretos. Toda a noite levou Catarina chorando e na hora de nos deitarmos, deu-
me para guardar uma bolsa com dinheiro, dizendo que tinha ganho lavando e
engomando. Esse dinheiro ficou guardado na minha caixa. Tendo de sair no dia
seguinte, e estando fora quando foram buscar Catarina, não pôde ser por ela
levado. Mas voltando depois um soldado para buscar uma chave e um lenço
de Catarina, entreguei-lhe também o dinheiro.
Encerrando, declara Isabel:
-Quando José Ramos e Catarina se ofereceram para se- - rem padrinhos
de meu filho, usavam luxo e ela tinha compra- do um vestido de seda e uma
capa de custo de quatro mil réis ao côvado, com o dinheiro da sorte.
Neste dia 22, são ouvidas outras pessoas, em sua maioria alemães
relacionados com Ramos e Claussner. Basicamente, confirmam tudo quanto
se apurara, mas não dizem tudo que sabem. Anos depois se descobrirá que a
vizinhança mais ou menos sabia das monstruosidades praticadas por José
Ramos e seus comparsas em meados de 1863, mas o medo lhes sela os lábios.
O diplomata Caillois registra em suas memórias: "É voz geral que o
celerado usava a carne de suas vítimas para fabricar e vender linguiça, mas é
impossível saber a origem de tais rumores." O ceticismo do chefe de Polícia a
respeito daqueles rumores, parece bem fundado: o fato de que Ramos
enterrara três cadáveres no pátio de sua casa, provava que ele não usava a
carne de suas vítimas para fabricar linguiça.
67

Capítulo VII

Esporeado pela opinião pública, Callado imprimiu excepcional celeridade


ao inquérito policial, ouvindo em quatro dias os acusados e todas as
testemunhas. Efetuou estes procedimentos na condição de "doutor
chefe de Polícia". Preside a partir daí o processo judicial na condição de
"doutor juiz de Direito chefe de Polícia".
O exercício simultâneo ou sucessivo das funções chefe de Polícia e
juiz de Direito é autorizado pela lei em algumas províncias, como o Rio
Grande do Sul, onde são escassas as pessoas com formação jurídica. O
chefe de Polícia pode também cumprir funções judiciais. Dado que ele
próprio instruiu o inquérito policial, pode-se imaginar qual será sua
isenção quando atua como julgador. No caso dos crimes de José Ramos,
o exercício concomitante das funções de chefe de Polícia e juiz de Direito,
permite a Dario Callado evitar que surjam revelações constrangedoras
sobre seus vínculos funcionais e pessoais com o criminoso. Dado que José
Ramos era um informante do chefe de Polícia, a oposição poderá suscitar
a polêmica questão da verba para "despesas secretas", que não precisam
ser comprovadas. Além disso, para segurança de Callado, é só depois da
pronúncia que a inquirição das testemunhas e demais atos do processo
se tornam públicos.
A Justiça é uma das calamidades do regime imperial. Os juízes de
Direito são nomeados pelo Imperador, sem outra exigência que a de
serem bacharéis com um ano de prática do foro. São "perpétuos", é certo,
mas o Imperador pode suspendê-los ou removê-los, arbitrariamente.
Extremamente mal pagos, ganham apenas "o suficiente para não morrer
68

de fome", dirá o jornal oposicionista A Reforma, que acrescenta tratar-se


de "magistratura coacta, pobre, transitória e amovível". Não são poucos
os magistrados que fazem carreira política; há casos de exercício
simultâneo das funções de juiz e deputado, ganhando os dois
vencimentos. Os juízes constantemente dão partes de doente e tiram
licença, com vencimento. Durante a maior parte do tempo, a Justiça é
administrada por leigos e suplentes. Quando no exercício, faltam às
audiências e comissionam escrivães para ouvir testemunhas. Nas
sentenças, transigem à conta das eleições.
Dia 9 de maio, os peritos Georg Pfeiffer e Rodolfo Appenzeller
entregam à Justiça o auto de exame e corpo de delito do suposto recibo
de Claussner para Ramos sobre a venda do açougue. O recibo, escrito em
alemão, dizia:
"Afirmo que vendi ao Sr. José Ramos o meu açougue com todos os
seus pertences que se achar na casa, pelo preço de quarenta e cinco mil
réis (RS 45$000). Aos 2 de setembro de 1863, rua da ponte, em Porto
Alegre. (assinado) Carlos Claussner."
Os peritos usaram como termo de comparação a firma de Claussner
no seu passaporte. Compararam em seguida a letra e a assinatura do
recibo com a letra e as assinaturas de José Ramos constantes do
processo. Os peritos respondem que as assinaturas do passaporte e do
recibo "não têm semelhança alguma". Declaram que o nome de Claussner
no recibo se distingue por erros, pois consta "Carlos Klausen", enquanto
o verdadeiro nome, segundo a certidão de batismo, era "Carlos Gottlieb
Claussner". Ao mesmo tempo, a letra e a assinatura no recibo "têm toda
a semelhança com as do punho de José Ramos". Em conclusão, o recibo
"parece ser falsificado pela mão de José Ramos".
Ouvido em juízo a 11 de maio, Ramos não se perturba:
- De quem é a escrita do recibo? - Foi Claussner quem me entregou
o recibo quando me vendeu o açougue.
- Como explica ter sido reconhecido que o recibo foi
- Escrito não pôr Claussner mas provavelmente pelo senhor?
-Não sei quem escreveu este recibo, mas ele me foi entregue por
Claussner.
69

- Como explica se ter encontrado enterrado em sua casa o cadáver


de Claussner?
Mais uma vez, Ramos lança suspeitas sobre Catarina:
- Não sei explicar isso. Quem estava todo o dia em casa era minha
mulher, que poderá explicar.
- Por que motivo negou a presença de Rathmann no açougue logo
depois do desaparecimento de Claussner, quando este confessa tiver lá
estado e diversas testemunhas o confirmam?
-Eu não estava bem certo se esse velho se achava ou não em minha
companhia quando trabalhei no açougue.
Os julgamentos pelo júri são marcados para os dias 12 e 13 de
agosto. Caillois descreve o clima emocional existente na cidade por
ocasião do julgamento:
"Os habitantes desta cidade são impressionáveis ao extremo, pois
não foi necessário mais do que um simples rumor para que se
produzissem as mais estranhas manifestações coletivas. São bem poucas
as pessoas que não jurem que os criminosos usassem carne de suas
vítimas para fabricação de linguiça e isso tem como consequência que
ninguém mais quer comer tal produto. Não poucas pessoas sentiram
grande mal-estar e buscaram o socorro dos médicos. A opinião da cidade
insiste em que o crime foi obra dos alemães, considerados muito
excêntricos em seus hábitos alimentares, pois comem coisas que o gentio
(sic) não come. Ouve-se dizer que se o tribunal não os condenar à morte,
os próprios moradores farão justiça pelas suas mãos." Acrescenta Caillois:
"Sensíveis à hostilidade existente contra eles, os alemães em geral se
abstiveram de comparecer à sessão. As autoridades foram prudentes,
mobilizando muitos soldados para assegurar a ordem e evitar qualquer
transbordamento."
Os julgamentos se realizam em dias muito frios, no paço da Câmara
de Vereadores. Nos dois dias, o interesse pelos julgamentos é realçado
pela presença de importantes personalidades, como o tribuno Silveira
Martins, o jornalista Carlos von Koseritz e o escritor Caldre e Fião. Como
se diz que Januário e seu caixeiro foram mortos por alemães, o comércio
70

destes, prudentemente, fecha suas portas. Quando entra no prédio da


Câmara, José Ramos é agredido por populares.
No dia 12, José Ramos e Catarina Palse são julgados pelo assassinato
de Januário e seu caixeiro. Ele é condenado à pena de morte na forca e
ela, como cúmplice, a 13 anos e 4 meses de prisão, com trabalho. Isso é
tudo o que sabemos, pois o processo sumiu.
Só um processo, em um volume, permaneceu no Arquivo Público.
Este processo dá conta das primeiras diligências realizadas pelo chefe de
Polícia, quando recebeu a denúncia sobre o desaparecimento de Januário
e seu caixeiro. A busca e a exumação no pátio da casa de Ramos
redundaram, como se lembra, no descobrimento dos cadáveres de
Januário, do caixeiro e de Claussner. Consta do processo o interrogatório
a que foram submetidos Ramos e Catarina a respeito de Januá- rio e do
caixeiro. Após isso, não se fala mais, neste processo, sobre tais
assassinatos. Tudo mais que se segue, é sobre o assassinato de Claussner:
interrogatório de acusados, inquirição de testemunhas, perícias,
instrução judicial e finalmente julgamento pelo júri. Não é difícil perceber
o que ocorreu. Tratando-se de dois crimes, praticados em diferentes
ocasiões, formou-se um processo para cada um deles: um sobre o
assassinato de Januário e seu caixeiro, e outro sobre o assassinato de
Claussner. O que sumiu, foi o processo sobre o assassinato de Januário e
seu caixeiro. Só se consegue saber que Ramos e Catarina foram julgados
e condenados no primeiro julgamento, graças à informação do códice
existente no Arquivo Público sobre o rol de culpados do Cartório do Júri
e Execuções Criminais do foro de Porto Alegre.
O mistério do sumiço se torna ainda mais intrigante porque o caso
não terminou no julgamento do dia 12 de agosto de 1864. Determinava a
lei que, quando houvesse condenação à morte, o juiz devia apelar ex-
oficio para a instância superior e o réu podia protestar por novo júri, o
qual se realizava invariavelmente. Houve, portanto, um segundo júri, cuja
decisão nos é desconhecida. Sabemos que a pena de morte de Ra-mos foi
comutada para prisão perpétua, mas não sabemos se esta comutação
resultou de decisão do segundo júri ou de graça do Imperador.
São assim dois os processos desaparecidos: o que versa sobre o
assassinato de Januário e seu caixeiro, e o que versa sobre os seis
assassinatos ligados à fabricação de linguiça de carne humana. Não se
71

sabe quando desapareceu o processo de Januário e seu caixeiro: em 1948,


ele já não se encontrava no Arquivo Público. O último processo, o da
linguiça de carne humana, ainda se encontrava no Arquivo Público em
1948, ano em que foi fotocopiado. Terá havido apenas um extravio
resultante de negligência ou uma ocultação deliberada? A questão será
retomada mais adiante, no desdobramento do relato.
No dia 13 de agosto de 1864, José Ramos e Carlos Rathmann são
julgados pela morte de Carlos Claussner.
Callado pronunciou Ramos como incurso nas penas do crime de
latrocínio, capitulação que não importa necessariamente na punição com
pena de morte. Há no Código criminal do Império três graus de penas:
grau máximo, grau médio e grau mínimo. No latrocínio, a pena máxima é
a morte; no grau médio, a pena é de galés perpétuas; a pena mínima é de
20 anos de galés. A sentença de pronúncia não indica em qual dos graus
estaria incurso José Ramos. Este também é pronunciado como autor do
crime de falsidade, por causa do recibo atribuí- do a Claussner. Carlos
Rathmann foi pronunciado como cúmplice, sujeito às penas de galés
perpétuas (grau máximo), 20 anos de galés (grau médio) ou 13 anos de
galés (grau mínimo). Catarina foi deixada de fora, pois o juiz tem a
faculdade de absolver o acusado sem julgamento pelo júri.
Rathmann está antecipadamente absolvido, pois o próprio
promotor considerou muito frágeis as provas contra ele: "O delito de José
Ramos pode ser que também alcance, pelo menos em qualidade de
cúmplice, ao acusado Carlos Rathmann, atentas as circunstâncias de
morar este, ao tempo do delito, com Ramos, conforme confessou, e ser
visto, no dia subsequente ao desaparecimento de Claussner, junto com
Ramos, no dito açougue; mas não vendo nós contra ele nenhuma outra
razão que fortifique nossa convicção, abstêm-no por isso de estendermo-
nos sobre Rathmann."
Sorteados os jurados, em número de 12, e nomeados defensores
aos réus, que se declararam pobres, procede-se ao in- terrogatório de
Ramos e Rathmann em plenário.
Quando o juiz, como é de praxe, pergunta a Ramos se sabe por que
razão será julgado, ele se levanta e diz com grande veemência:
72

- Estou sendo julgado por se ter achado no porão de minha casa os


fragmentos de um esqueleto que se supõe ser de Carlos Claussner. Mas
sou vítima de indício, não havendo prova convincente de minha
criminalidade. Muito me admira que Catarina não tenha sido incluída
neste processo, pois ela é que governa a casa, ela é que podia saber como
se passaram os fatos e dar uma explicação razoável. Quanto a este crime
e ao outro pelo qual fui condenado ontem, sou inocente.
Neste ponto, Ramos se recusa a responder às perguntas do juiz:
- Nada mais tenho a responder.
O juiz manda encerrar o auto, "em vista do seu 'estado de
agitação"". Perda de controle ou simulação? Em todo caso, depois de lido
o auto, Ramos não quis assiná-lo.
Feita a acusação e a defesa, das quais não consta sequer um
resumo, o juiz formula os quesitos e o júri passa a deliberar. Algumas das
respostas aos quesitos são incongruentes e só podem ser fruto de
benevolência para com o réu.
Deve-se saber o que é o júri nesse tempo. Constitui uma conquista
importante do liberalismo, pois substituiu os julga- mentos inquisitoriais
dos tempos da Colônia, mas dista muito de ser democrático. Só os
proprietários, possuidores de uma renda mínima, podem ser jurados, os
que exercem o comércio e a indústria, precisam ter o duplo da renda.
Assim, os jurados não são pessoas ignorantes ou atrasadas. Ninguém
acredita na imparcialidade ou isenção dos veredictos do júri. O
desembargador Francisco da Rocha, no exercício da presidência da
Província, em relatório à Assembleia Provincial, frisou o descrédito do júri,
pois "de antemão sabe-se se o réu será absolvido ou condenado". Daí
que, volta e meia, após um júri, um jurado apareça assassinado. As
respostas dos jurados aos quesitos formulados pelo juiz deixam
transparecer o inequívoco propósito de beneficiar José Ramos. O
primeiro quesito se refere à autoria: "O réu José Ramos, em princípio do
mês de setembro de 1863, matou a Carlos Claussner na casa deste à rua
da Ponte desta cidade?". Dois jurados respondem negativamente,
inocentando José Ramos. Não sendo desse modo unânime a condenação,
não pode o juiz aplicar a pena de morte, o que é de crucial importância
para Ramos. O imperador poderia indultá-lo da primeira condenação à
morte, mas não havia precedente de indulto em duas condenações.
73

O segundo quesito foi sutilmente formulado de modo a condicionar


uma resposta favorável ao réu: "O réu José Ramos, depois de haver
cometido essa morte, tirou para si, por meio de violência, todos os efeitos
que achou na casa de Claussner, parte dos quais foram encontrados na
casa do réu?". Ora, efetivamente, Ramos não se apropriou de "todos os
efeitos" que achou na casa de Claussner.
Assim, por 11 votos a 1, os jurados declararam que Ramos não
cometeu o crime de latrocínio.
O favorecimento foi ainda mais evidente na resposta ao terceiro
quesito, em que se perguntava se o réu cometera o crime "com
premeditação". Os jurados responderam, por unanimidade, que "o réu
José Ramos não cometeu o crime com premeditação". A seguir, por
maioria de 7 votos, o júri declarou que "o réu José Ramos não cometeu o
crime com abuso de confiança nele posta". E, para rematar, decidiu por
maioria de votos que "o réu José Ramos não cometeu o crime com
surpresa".
Em outros dois quesitos separados, o júri julgou-o cul- pado do
crime de falsidade, relativamente ao recibo de venda do açougue: nem
podia ser outra a decisão, dado que havia perícia categórica nesse
sentido.
Quanto a Carlos Rathmann, foi absolvido por unanimidade.
Ramos a 14 anos e um mês de prisão com trabalho e mandou pôr
em liberdade a Carlos Rathmann. Condenou ainda Ramos a uma multa de
150 mil réis, importância resultante de uma avaliação judicial dos objetos
e pertences de Claussner retirados do açougue.
Através de Caillois, sabemos que o cônsul prussiano ficou
descontente com o resultado deste julgamento: "O cônsul ale- mão está
convencido de que a magnanimidade do júri neste julgamento se deve à
circunstância de que a vítima era um alemão. Disse mais haver observado
que nos processos em que os réus são alemães, estes sofrem penalização
mais severa do que os naturais da terra. Ele acredita que este julgamento
deverá aumentar a intranquilidade dos súditos alemães nesta província."
Na primeira noite após o julgamento, Ramos tem um sonho.
74

Aguarda na prisão o dia da execução. Não se perturba quando o


vão buscar: cabeça erguida, marcha resolutamente através da cidade,
indiferente à curiosidade da multidão. Sobe os degraus do cadafalso com
passo firme, até o topo da escada, onde o aguarda o carrasco. Ajoelha-se
e reza com o padre nosso, em voz alta, o "Creio em Deus". Coloca-se em
seguida no centro do cadafalso, sobre o alçapão. O carrasco coloca-lhe o
nó no pescoço e num gesto rápido puxa o alçapão. Mas este não se abre,
enguiçado. O carrasco puxa e puxa o alçapão - e nada. Ramos é retirado
do patíbulo e levado para baixo, onde fica num quadrado de soldados. O
carrasco experimenta o alçapão e, surpreen- dentemente, ele funciona
muito bem. Trazem de volta o condenado, mas, mais uma vez, o alçapão
não funciona. Chamam um marceneiro que examina e experimenta várias
vezes o alçapão: não há nenhum defeito, está tudo funcionando muito
bem. Trazido Ramos de volta, o carrasco tenta executar o enforcamento,
mas em vão, pois o alçapão não funciona. Supondo que tudo se deva à
inabilidade do carrasco, o juiz das execuções manda substitui-lo, mas o
alçapão teima em não abrir. E assim transcorre a manhã, sem que
consigam enforcar Ramos. Um clamor se levanta na multidão: "Milagre!
Inocente! Mártir!". Do alto do patibulo, Ramos sorri e abana para a
multidão. Conduzem-no de volta para a cadeia, numa marcha triunfal. Ao
anoitecer, o juiz das execuções vem comunicar-lhe que a pena de morte
foi sus- pensa por tempo indeterminado.
Diz Ramos: "O destino jamais permitirá que eu seja enforca- do!" E
acrescenta que "pessoa de grande importância interessada no meu
silêncio, assegurou-me que seremos indultados quando houver o
casamento da princesa Isabel".
Não consta, no Arquivo Nacional, decreto do Impera- dor
indultando José Ramos, o que faz presumir que a conversão da pena à de
morte em prisão perpétua foi feita pelo segundo júri. Costumeiramente,
converte-se a pena de morte em prisão perpétua com galés, o que sujeita
o condenado a andar com calceta no pé e corrente de ferro. No caso de
Ramos, singular- mente, a pena passa a ser apenas de prisão perpétua
com trabalho. Desse modo, até os 60 anos, de acordo com a lei, Ramos
terá de executar os trabalhos que, na prisão ou fora dela, lhe forem
determinados. Quanto à pena imposta pelo júri à Catarina, não haverá
alteração.
75

Ambos passam a cumprir a pena no novo presídio que Caxias


mandara construir quando governava a província, nas proximidades da
praça da Harmonia.
Um acaso permite a Ramos amenizar as condições de sua prisão.
Compartilha a cela com um mulato chamado Joaquim, proprietário de um
escravo negro. Mesmo na prisão, pode um senhor valer-se dos serviços
de seu escravo. O de Joaquim, todos os dias, faz a limpeza da cela, lava e
passa a roupa dos dois presos, leva-lhes comida e às vezes os substitui no
trabalho determinado pelo carcereiro. Para impedir que o escravo fuja,
Joaquim promete alforriá-lo quando sair da prisão, daí a cinco anos.
De vez em vez, o carcereiro permite encontros entre Ramos e
Catarina. Mas, a partir de 1866, Catarina se recusa a novos encontros, por
mais que Ramos lhe suplique. Metida numa cela, ela subtraiu-se ao
demoníaco fascínio de Ramos. E decidiu romper o véu que encobre toda
a repugnante verdade sobre os crimes da linguiça humana.
76

Capítulo IX

O encarceramento de José Ramos e Catarina Palse aplacou o


anseio vindicativo da população.
E embora permaneça vivo o descontentamento com a inação ou
omissão das autoridades para esclarecer a fabricação de linguiça de carne
humana, as atenções coletivas se voltam para outros acontecimentos.
Em 1864, concluiu-se e inaugura-se uma nova e grande cadeia na
ponta da península; ainda que a população apreciasse a velha cadeia,
anexa a um quartel militar, pelo fato de que "sua fachada e disposição
interna não dão indícios do fim para que é destinada", segundo o cronista
Domingos de Araújo e Silva, ela era fonte permanente de intranquilidade
pública, pois ensejava fugas frequentes de presos.
A comunidade alemã se alvoroça quando no mesmo ano, o
professor, jornalista e escritor Carlos von Koseritz muda sua residência de
Pelotas para Porto Alegre, assumindo a liderança e a defesa dos
imigrantes. A comunidade comemora também a elevação de São
Leopoldo à condição de cidade e a construção, à rua Senhor dos Passos,
de um prédio que se parece a um templo. No fim do ano, inaugura-se o
tráfego do primeiro transporte coletivo, as maxambombas, e o exército
brasileiro invade o Uruguai, depondo em fevereiro do ano seguinte o
presidente Atanásio Aguirre, que contrariava interesses brasileiros.
O ano de 1865 é marcado pela invasão de São Borja, Itaqui e
Uruguaiana pelos paraguaios, dando início à guerra. Em julho, quando o
Imperador vem a Porto Alegre, rumo a Uruguaiana, para receber a
rendição paraguaia, a população se sente tão lisonjeada que o dia de sua
chegada passa a ser feriado. Inicia-se a canalização de água, mas ainda
durante muito tempo a população continuará a se abastecer em fontes
públicas, ou através de pipas transportadas em carroças, a 60 réis a pipa.
Neste ano, morre o admirado e popular poeta e tribuno Félix da Cunha.
77

Os negros se regozijam porque a polícia autoriza os batuques e as danças


de congo nos dias festivos, até o pôr-do- sol.
Em meados de 1866, inaugura-se no Campo da Redenção a
exposição agrícola e industrial da província, que assim mostra ao resto do
país e aos vizinhos do Prata o seu desenvolvimento econômico.
Em 1867, um grande acontecimento: inaugura-se o telégrafo entre
a cidade e o Rio de Janeiro - uma necessidade imposta pela guerra. Uma
lei autoriza a construção de uma ferrovia entre Porto Alegre e São
Leopoldo. Mas em 1867, também irrompe em Porto Alegre uma epidemia
de cólera, que em poucos meses mata quase 300 pessoas. À noite, a
cidade assume um aspecto lúgubre. Na embocadura das ruas e nas
praças, crepitam grandes fogueiras de alcatrão. Condenados às galés
transportam as vítimas em padiolas. O médico e escritor Caldre e Fião se
desdobra, incansável, no socorro às vítimas. O dramaturgo Qorpo Santo,
homem abastado, é submetido a exame de sanidade mental em processo
de interdição promovido por familiares. Generaliza-se a iluminação por
querosene, e a numeração das casas, iniciada por Caxias, já abrange quase
toda a cidade. Em dezembro, o governo man- da executar o contrato para
a iluminação a gás de hidrogênio carbonado.
Em 1868, após quatro anos de governo liberal, os conservadores
voltam ao poder e isso se faz acompanhar da demissão de grande número
de funcionários nomeados pelo regime anterior. Conclui-se e inaugura-se,
com grande júbilo popular, no largo do Paraíso, o novo, belo e imponente
Mercado Público. Instala-se o Partenon Literário.
José Ramos e Catarina Palse jazem quase esquecidos na prisão. A
única visita que Ramos recebe, a cada quinze dias, é a do padre Aureliano
Dias, que o ouve em confissão e lhe dá a comunhão. Para cumprir este
dever religioso, Ramos "lustra os bigodes e enverga uma sobrecasaca
surrada", informa o padre. Será que ele confessa seus crimes ao padre?
Natural- mente, o padre jamais falou sobre isso, pois, embora viva
escandalosamente amancebado com uma escrava negra, preserva o
segredo da confissão. Mas Ramos não deve ter confessa- do os crimes.
No seu sistema psicológico, os homicídios não são "crimes".
Sem que se perceba, está em gestação um novo desdobramento do
drama. A partir de determinado momento, Catarina passa a ser
78

regularmente visitada por uma alemã. Isabel Kerhkove. Ouvira-se essa


mulher no inquérito policial de 1864, acerca de sua amizade com Catarina.
Nessa ocasião, declarou que desde sua chegada a Porto Alegre, um ano
antes, tornara-se amiga de Catarina e Ramos. Um dia, ambos foram à sua
casa, oferecendo-se para padrinhos de um filho. Na noite da prisão de
Ramos, Catarina foi à casa de Isabel, pedindo hospedagem, pois o
subdelegado a tinha mandado dormir fora de casa. Catarina passou toda
a noite a chorar e entregou-lhe, para guardar, uma bolsa com dinheiro,
explicando que o ganhara engomando roupa. A polícia, mais tarde,
apreendeu a bolsa.
Todas as semanas, realizavam-se na casa de Isabel, reuniões
religiosas, das quais participava Catarina. Lia-se a Bíblia e recitavam-se
salmos. Isabel presidia invariavelmente as reuniões.
Durante as visitas de Isabel a Catarina, na prisão, ambas leem a
Bíblia e recitam salmos. Nas horas vagas, sozinha, Catarina lê a Biblia.
Certo dia, lá por fins de 1866, Catarina pede uma audiência ao chefe
de Polícia sob a alegação de que tem assunto importante a tratar. Não é
atendida. Renova o pedido em janeiro de 1867, e mais uma vez não é
atendida. Então, pede papel e lápis. Sua consciência está "cancerada pelo
remorso", e quer confessar.
Em abril de 1868, faz chegar às mãos do chefe de Polícia um
caderno, no qual há 54 folhas escritas a lápis, em um dialeto alemão. O
chefe de Polícia engaveta o caderno. Catarina, enquanto isso, reitera os
pedidos de audiência, sempre desatendidos pela autoridade.
Em agosto de 1868, finalmente, a autoridade pede ao intérprete do
comércio, Júlio Henrique Knorr, um suíço, que traduza o texto do
caderno. O perito encontra grande dificuldade em fazer a tradução, pois
o texto está escrito no dialeto alemão da Transilvânia. Diversas vezes,
Knorr vai à cela de Catarina para consultá-la sobre o significado de
palavras e expressões. Knorr leva dois meses para concluir a tradução.
Trata-se de um texto confuso, em que o relato se mistura
constantemente com citações da Bíblia e exaltações místicas. Catarina
narra sua vida na Hungria, a viagem e a chegada ao Brasil, o modo como
conheceu Ramos, a vida pregressa deste e, finalmente, os crimes que
79

juntos cometeram. Quer se reconciliar com Deus, por isso faz essa
confissão.
Em 15 de outubro de 1868, por fim, o chefe de Polícia manda chamar
Catarina à sua presença. Em relatório ao presidente da Provincia, Antônio
Pinto e Silva, tentará explicar as razões da demora em atender Catarina:
"Reiteradas vezes, essa mulher me mandou aviso de que queria
falar-me sobre assunto grave e urgente, mas nunca me sobejava tempo
para isso, além de que se sabe que todos os presos estão sempre a querer
falar ao chefe de Polícia, habitual- mente para queixar-se do carcereiro ou
reivindicar privilégios (...) Além disso, como é do conhecimento de V. Exa.
a guerra e a epidemia de cólera me absorveram todo o tempo."
A Guerra do Paraguai se tornara de fato o centro da vida da
Província. Sozinho, o Rio Grande já dera, dizia-se, tantos soldados para a
guerra como todas as outras províncias somadas. Não bastasse isso, a
Corte pusera a província em pé de guerra, ao ordenar que se organizasse
com urgência em seu território, um terceiro corpo de exército. O
recrutamento se fazia de forma violenta e arbitrária. Os ânimos se
exacerbaram mais ainda quando a Assembleia Geral, em dezembro de
1868, adiou para depois da guerra a eleição dos deputados gerais da
província. Criticava-se a má condução da guerra. A presença de nu-
merosa soldadesca, sem mínimas condições de higiene, desencadeara o
cólera.
Dario Rafael Callado fora substituído na chefia da Polícia por
Gervásio Campello, também um estranho à província. Esta nova
autoridade se conduzia de forma tão desastrada que um deputado do
governo admitiu, que o "chefe de Polícia não está à altura do cargo que
exerce", pois "desde o princípio do ano, aparecem fatos que provam que
o senhor chefe de Polícia não tem procedido com a prudência e a discrição
necessárias em seu cargo". Principais acusações: recrutamentos
forçados, prisões ilegais, desleixo administrativos e desídia funcional. Os
deputados governamentais pressionavam o presidente para que
solicitasse à Corte sua substituição.
Em outubro, mais exatamente, uma quarta-feira, dia 6, Campello
recebe Catarina. O magistrado maranhense Francisco José Furtado, que
presenciou o interrogatório, deixou a seguinte descrição de Catarina;
80

"Magra como pau-de-virar-tripa, olhos azuis muito brilhantes e cabelos


loiros ressequidos como palha, usava um vestido de alpaca cor de pinhão
desbotado, chale pequeno, branco e preto, em mau estado, pendente
dos ombros."
Campello pergunta-lhe qual é o assunto. - Quero confessar tudo
sobre os crimes - responde tranquilamente Catarina. O chefe de Polícia
chama o escrivão e passa a ouvir Catarina, "livre de ferros e sem coação
alguma". Conforme a praxe, pergunta-lhe o nome completo, a filiação, a
naturalidade, a profissão, se sabe ler e escrever e... a religião. Nisso, uma
surpresa:
- Protestante, não é?
- Nem eu nem meus irmãos somos evangélicos. Somos muckers,
não temos pastores nem templos. Que religião é essa?
- A que muitos de nós trouxemos de nosso país. Imigramos porque
as autoridades e os evangélicos nos perseguiam.
Ninguém ouviu ainda falar em semelhante seita. Só a partir de 1871
é que as autoridades e a população de São Leopoldo terão notícias da
seita de Jacobina Maurer. A historiografia sobre os muckers estabeleceu
que o movimento nasceu em São Leopoldo, produto endógeno de
contradições sociais e discórdias religiosas na colônia germânica. A
revelação de Catarina sugere outra hipótese sobre os muckers.
No início do século passado, surgiu em Königsberg - a cidade onde
nasceu e viveu Kant uma seita denominada - mucker, como resultado das
pregações de Johann Heinrich Scönherr e Johann Wilhelm Ebel,
insatisfeitos com a tendência excessivamente racionalista do
protestantismo pregado pela universidade local. Baseados na Bíblia,
tornam-se os profetas de uma teosofia muito assemelhada ao
agnosticismo. Fizeram prosélitos em muitas partes da Alemanha, mas, a
partir de 1835, passaram a ser perseguidos, sob a acusação de
imoralidade, pois regulavam minuciosamente as relações sexuais de
casais e admitiam uma certa promiscuidade sexual. Pregadores muckers
difundiam a seita entre luteranos e calvinistas alemães da Transilvânia.
Após a derrota da revolução anti-austríaca de Kossut, desencadeou-se
forte perseguição contra os muckers, muitos dos quais emigraram.
81

Na confissão escrita de Catarina, não há referência à sua condição


de mucker. No mais, o que ela dirá ao chefe de Polícia coincide, mais ou
menos, com o que consta da confissão escrita, salvo algumas diferenças
menores.
Explica Catarina sua decisão de confessar tudo:
- Tenho vivido na abominação do pecado e do crime. corpo está
perdido, mas minha alma ainda pode ser salva.
Conta que tudo começou quando foram viver na casa Meu da rua
do Arvoredo:
- Uma noite, Ramos me disse que nada queria esconder de mim. O
destino quisera que ele matasse e se apossasse dos haveres de suas
vítimas. Teria que matar muitas pessoas. Os mortos não precisavam de
dinheiro ou riqueza, enquanto nós dois tínhamos direito a isso devido aos
nossos sofrimentos. Explicou que até então não matara porque tinha
medo da forca, mas agora já não tinha medo, graças a Claussner.
-Qual era a amizade entre os dois? -pergunta Campello.
- Fizeram-se amigos desde que Claussner se estabeleceu com
açougue na rua da Ponte. Quase todas as noites, Ramos ia visitá-lo no
açougue, onde ficavam juntos por muito tempo. Às vezes brigavam e
nessas ocasiões, Ramos voltava arreliado para casa. Volta e meia, Ramos
surrava Claussner. Quando isso acontecia, ficava muito triste e até
chorava, repetindo que não podia viver sem a amizade de Claussner. Certa
noite, voltou muito alegre, dizendo que Claussner descobrira uma
maneira de impedir que os assassinatos viessem a ser provados.
- Que maneira era essa?
-As vítimas seriam esquartejadas e sua carne usada por Claussner
para fabricar lingüiça. Os cadáveres assim desapare- ceriam e nunca se
poderia provar nada.
-Esses planos sinistros não a horrorizaram?
- Tudo que eu queria era que ele fosse feliz. Nunca conheci pessoa
tão feliz como ele depois que matava. Eu achava que ninguém tinha o
direito de lhe arrebatar essa felicidade.
82

Não parece, entretanto, que a "felicidade" de Ramos fosse o único


motivo da cumplicidade de Catarina. Na algaravia do caderno
encaminhado ao chefe de Polícia, há evidência de que ela própria estava
interessada nos crimes. Conta que, após as matanças e bestialidades que
assistira em sua aldeia, praticadas pelos soldados russos, tomara a
decisão de "buscar a felicidade por todos os meios" e que embarcara para
o Brasil com esse propósito. Justificava-se: quando sofreu o estupro,
sentiu- se "inteiramente abandonada pelo Senhor" e convenceu-se de
que o "demônio reina no mundo". Considerava Ramos um "homem
fraco", mas ainda assim, "o melhor instrumento para realizar minha
felicidade".
Nessa altura, revela Catarina que quando ela e Ramos viviam na rua
dos Pecados Mortais, teve uma filha, de "pai desconhecido", da qual se
desfez, colocando-a na roda dos expostos da Santa Casa. Fez isso a
pedido de Ramos, que "não gosta de crianças".
83

Capítulo X

Depois que Claussner lhe deu a garantia da impunidade, o chacal


sai à caça de vítimas. O principal campo de caça é o largo do Paraíso, que
alguns ainda chamam pelo antigo nome de largo dos Ferreiros: um
enorme espaço compreendido pela rua de Bragança, pela travessa do
Paraíso, pelo beco da Ópera e pela margem do rio, onde fica a entrada
principal do Mercado Público. No lugar da atual praça 15 de novembro,
funciona o Mercado Público, substituído em 1869 pelo atual mercado, em
área do rio aterrada. No alinhamento da travessa do Paraíso, erguem-se a
Casa do Contrato, o quartel do Corpo Policial, a Real Provedoria da
Fazenda, sobrados burgueses, oficinas, ferrarias náuticas, lojas de
fazendas.
Na margem do rio, onde depois será a praça Parobé, es- tão a doca
e a rampa para embarque e desembarque de mercadorias e passageiros
de São Leopoldo e outras colônias. Há sempre vinte ou trinta
embarcações no local. Ao longo da margem, de onde se avistam as ilhas,
há laranjeiras, limoeiros, romeiras e coqueiros que dão sombra e frutos.
O mercado, erguido cerca de vinte anos antes, quase na esquina da rua
de Bragança, por uma associação privada, é um quadrado de linhas
simples, com quatro portões laterais pinta- dos de vermelho. Nas bancas
internas, há açougues e vendas de laticínios. Nas bancas externas,
funcionam armarinhos, lojas, armazéns, tavernas, casas de pasto. O
mercado se fez pequeno, o comércio transborda para as adjacências. Em
quitandas, as pretas minas vendem doces e rapaduras, ou fazem canjica
e mocotó em seus caldeirões. No largo se alinham pesadas carre- tas de
bois que trouxeram gêneros do interior, a boiada solta pasta ao pé da
praia. Cabeça baixa, escravos-de-ganho se agru- pam num determinado
ponto, prontos para transportar volu- mes às costas ou sobre a cabeça.
Há cavalos, caleças, tilburis, jardineiras, à espera de clientes. No largo e
84

no mercado, circu- lam comerciantes, colonos, marujos e donas de casa


que em- punham guarda-sóis, seguidas de escravas com samburás.
Ramos busca pessoas do interior, principalmente mulheres alemãs
sozinhas e a negócios na cidade.
colona de Santa Cruz, chamada Luisa nunca se soube todo o seu
nome- chama a atenção de Ramos numa casa de pasto do Mercado.
Catarina contará que era "uma viúva jovem e muito bonita". Veio a Porto
Alegre a fim de vender uma grande partida de charutos. Ramos puxa
conversa e a acompanha em várias lojas onde faz compras. Passeia com
ela nas três ruas nobres da cidade - a da Praia, a de Bragança e a da Ponte.
Nenhuma mulher luso-brasileira sai à rua sozinha e muito menos na
companhia de um desconhecido. Os costumes liberais dos alemães
concorrem para o mau conceito de que gozam. As mulheres são vistas
como pouco menos que prostitutas. Os homens passam por tolos, pois
aceitam casar-se com mulheres que já não são mais virgens, e toleram
infidelidades conjugais.
Ramos convida Luísa para cear em sua casa na noite seguinte e
explica-lhe minuciosamente o caminho. Monta a cavalo e se dirige para o
açougue da rua da Ponte, onde confabula com Claussner e Henrique, o
corcunda. Nessa mesma noite, Claussner e Henrique transportam para a
rua do Arvoredo, em lombo de cavalo, dois baús de madeira, um maior e
outro menor.
Na noite seguinte, dia 2 de junho de 1863, aí pelas 20 horas, Luísa
segue para a casa de Ramos num cabriolé alugado numa cocheira da rua
de Bragança. O cronista Estudante chama este tipo de veículo de
"cabriolé de indígenas", para distingui-los dos bonitos cabriolés
franceses. Quando chega à casa de Ramos, Catarina prepara a ceia e vai
recebê-la na sala. Conversam em alemão e Luísa pergunta se é mulher de
Ramos. Não, apenas a empregada, responde Catarina. A resposta devia
causar estranheza a Luísa, pois deve saber que alemãs não se empregam
como criadas.
Enquanto Catarina serve à mesa, Ramos e Luísa comem e bebem.
Terminada a ceia, os dois ficam a conversar na sala. Luísa tomou bastante
vinho e está alegre. Em dado momento, Ramos vai à cozinha e volta
empunhando um machado.
85

Colhida de surpresa, Luísa não tem tempo de esboçar resistência,


Ramos fere-lhe a cabeça de alto a baixo e em seguida a degola. Arrasta o
cadáver para o porão e aí o esquarteja, colocando os pedaços nos dois
baús.
Antes do amanhecer, ainda noite escura, Claussner e Henrique
aparecem com uma carroça, na qual colocam os dois baús,
transportando-os para o açougue da rua da Ponte.
Claussner imediatamente põe mãos à obra, na presença de Ramos
e Henrique.
O açougueiro desossa a carne e a mói numa pequena máquina.
Tempera a carne com sal, pimenta e outras especiarias. Pega tripas secas,
intatas e sem furos, e ata uma das pontas com barbante. Na ponta que
ficou aberta, coloca um canudo, através do qual introduz o guisado.
Quando a tripa está cheia, ata a segunda extremidade com um barbante.
Com uma agulha, faz pequenos furos na llinguiça a fim de verificar se ficou
algum ar. Isso feito, pendura a lingüiça num arame estendido nos fundos
do açougue.
No pátio do açougue, os ossos são incinerados e as cin- zas jogadas
no Guaíba.
Na véspera, Ramos adquiriu uma carroça, na qual manda o
açougueiro colocar a linguiça, misturada com carne de gado. Ordena ao
açougueiro que ofereça a linguiça, a baixo preço, na residência do
presidente da Província, do chefe de Polícia, do bispo, do comandante do
Corpo Policial, do guar- da-mor da Alfândega e do cônsul da Prússia. O que
sobrar, será vendido no açougue. Este procedimento será repetido em
todos os outros casos, vendendo-se também a linguiça, às vezes, na
residência de ricos comerciantes luso-brasileiros e alemães. A aceitação é
grande, pois poucos são os que fazem linguiça na cidade.
Por que é que Ramos manda oferecer linguiça, a baixo preço, na
casa das principais autoridades da província e de alguns grandes
comerciantes? A finalidade da fabricação de linguiça com a carne de suas
vítimas consistia em fazer desaparecer o corpo de delito - um ardil
diabolicamente astucioso que deu resultado, como se verá mais adiante.
Mas não há nenhuma finalidade prática no empenho de fazer autoridades
e pessoas ricas comerem a linguiça, ou, por outra, cometerem um ato de
86

canibalismo, sem o saberem. O delirante narcisismo de Ramos infunde-


lhe o mais profundo desprezo pela humanidade; julga-se no direito de
dispor da vida dos outros e a destrói com inaudita violência. É inegável o
prazer que sente ao matar, isto lhe deve conferir uma sensação de força
e superioridade. Como não pode matar os poderosos, vinga-se deles,
induzindo-os a uma prática que infringe um sacrossanto interdito. Não
importa que eles não saibam que estão comendo carne humana: ele o
sabe e isso é o quanto basta para a satisfação de seu narcisismo.
Ao mesmo tempo, tanto ele como seus comparsas são canibais
conscientes.
Quando Campello pergunta se alguma vez comera desta linguiça,
Catarina responde:
- Nesta noite, fritei uma das linguiças, que foi comida por Ramos e
Claussner, a fim de ver se ficara boa. Eu só comi um pequeno pedaço, e
achei que estava boa. O resto foi vendi- do no dia seguinte. Em todos os
outros casos, sempre se provou a linguiça antes de colocá-la à venda.
Duas noites depois, novo assassinato. Desta vez, a vítima é um
colono de Nova Petrópolis chamado Afonso, que veio à capital a fim de
fazer compras para si e para outros colonos. Ramos conheceu-o quatro
dias antes, no mercado do largo do Paraíso, inteirando-se de que estava
bastante endinheirado. Embriaga Afonso numa taverna no beco do Poço
e convida-o para continuarem a beber em sua casa. Monta a cavalo,
levando o colono na garupa. Avançam com dificuldade, pois sopra, em
direção contrária, o vento minuano, varrendo as ruas e levantando poeira.
Já na rua do Arvoredo, não muito longe da casa de Ramos, o colono
se recusa a prosseguir, quer voltar a seu hotel, na rua da Praia, para
dormir. Ramos não consegue vencer a obstinação do ébrio, mas nisso
aparece Henrique, o corcunda, que anda nas proximidades. Presencia a
cena, pega uma pedra e golpeia o colono na cabeça, por trás. Arrastam-
no desacorda- do até a casa. Catarina se retira para a cozinha e Henrique
vai para o pátio. Nenhum dos dois - assim o afirmam eles - assiste ao
assassinato. São repetidos por Ramos os procedimentos adotados em
relação a Luísa: a machadada na cabeça, a degola, o esquartejamento, a
colocação dos pedaços nos baús. Ao amanhecer, de novo, Henrique e
Claussner transportam o baú numa carroça, até o açougue. Campello
pergunta como sabe que a linguiça era de carne humana.
87

- Isso me disse Ramos e ouvi muitas vezes os três conversarem


sobre o assunto - responde Catarina. E acrescenta: - Eu também provei.
Na Transilvânia, durante a guerra, a fome nos obrigou a comer carne de
mortos. Na cidade, todos que- riam comer a linguiça feita por Claussner,
pois acharam-na mais saborosa do que a comum. Chamavam-na de
"linguiça especial". Reclamavam quando estava em falta e alguns pediam
a Claussner que a reservasse para eles.
- Ramos dividia o dinheiro com Claussner e Henrique?
-Não. Dava uma pequena parte a Henrique, mas Claussner nada
queria, dizendo que fazia aquilo por amizade a Ramos.
Quando o magistrado alude ao fato de "terem roubado Quando o
magistrado alude ao fato de "terem roubado de mortos", Catarina
responde, com absoluta simplicidade: -Mortos estão mortos e não podem
ser donos de nada.
Deixaram de existir e de ser proprietários. Não roubamos nada. O
magistrado faz mais algumas perguntas sobre tópicos irrelevantes e
manda encerrar o depoimento, quando Catarina o interrompe:
- Houve outros crimes.
Catarina começa a falar sobre dois assassinatos cometi- dos em fins
de julho, mas logo se cala. Diante da insistência do magistrado, revela que
as vítimas foram aliciadas por ela própria, no beco do Céu.
No primeiro processo, dissera Catarina que às vezes saía a passear
sozinha pela cidade, voltando tarde para casa. Dado que mulheres não
saiam para passear à noite pelas escuras e perigosas ruas da cidade, a
afirmação foi tida como álibi de Catarina para desvincular-se dos
assassinatos e nada dizer.
Nesta altura, Catarina informa que Ramos a aconselhara a
frequentar o beco do Céu, para conhecer e atrair homens. endinheirados
do interior. Verificando que a vítima estava bem provida de dinheiro,
Catarina convidava-a para ir à sua casa, pois "morava sozinha".
O chefe de Polícia quer saber se mantinha relações sexuais com
estes homens. Catarina responde que sim, e não apenas com estes
homens, mas também com outros, mesmo amigos de Ramos, como
88

Henrique, o corcunda. No caderno encaminhado ao chefe de Polícia,


consta a seguinte observação de Catarina sobre estas relações sexuais:
"Não pequei na cama com esses homens, pois não tive qualquer
satisfação. Minha única satisfação era vê-los estendidos em cima de mim,
como animais. Ramos foi o único homem em minha vida que teve res-
peito por mim, me tratou como se eu fosse alguém."
Catarina mostra-se muito lacônica no relato do assassinato dos
homens que atraiu do beco do Céu. Informa que um deles se chamava
Schmitt, comerciante em São Leopoldo, e outro se chamava Winkler,
comerciante no Rio de Janeiro. Não cita os prenomes; e
surpreendentemente isto não lhe é perguntado pela autoridade. Em
ambos os casos, Ramos esconde-se na cozinha enquanto Catarina
conversa com as vítimas na sala. Em dado momento, Catarina se retira e
Ramos consuma o crime. Ambas as vítimas traziam consigo "algum
dinheiro".
Nesses dois casos doravante será sempre assim - os - baús são
transportados até o açougue por dois negros-de-ganho, com pau e corda.
Conta Catarina que, passados alguns dias, Ramos caminha pela rua
da Igreja quando vê dois negros que transportam uma mulher numa
cadeirinha. Os negros marcham a trote e fazem uma parada para
descansar no ponto por onde passa Ramos. Um dos negros onde fita
insistentemente Ramos: é um dos passa Ra- que transportaram os baús
até o açougue. Terá o negro percebido o conteúdo dos baús? Talvez o
denuncie à Polícia... Segundo Catarina, esse incidente deixa Ramos "fora
de si". Atemorizado, confina-se em casa por duas semanas, sem sair, sob
qualquer pretexto.
Aos poucos, recupera a autoconfiança e em meados de julho
comete o quinto assassinato. Desta vez, a vítima é um alemão de Santa
Catarina, imediato de uma escuna que trans- porta carga entre Porto
Alegre e Desterro. Ramos o conhece numa casa de jogo e convida-o para
cear na rua do Arvoredo. Terminada a ceia, Ramos ataca, mas sofre uma
surpresa. Quando vai dar a machadada, o marujo, num gesto rápido,
segura-lhe o pulso. Engalfinham-se e rolam pelo chão. O marujo é muito
forte, leva a melhor e se põe a espancar Ramos caído no chão. Catarina
empunha um pesado martelo e golpeia o marujo na nuca, deixando-o
89

desacordado. Ramos procede como de costume. Catarina não menciona


o nome da vítima, nem é perguntada pela autoridade.
No começo de agosto, o sexto assassinato. Uma tarde em que
perambula pelo largo do Paraíso, Ramos conhece um alemão chamado
Hans Fritsche, residente em Montevidéu. Faz contrabando, uma das
atividades intensas e rendosas da época. Ramos nota que ele traz consigo
bastante dinheiro e convida-o para cear em sua casa.
Derrubado pela machadada que lhe fende o crânio, Fritsche
levanta-se e, sangrando copiosamente, os miolos a mostra, ganha a porta
da rua. Tropegamente, sai correndo pela noite escura. Ramos chama
Henrique no pátio e ambos saem atrás de Fritsche. Este tropeça e cai.
Ramos e Henrique arrastam-no agonizante até a casa.
Ao saquear a vítima, Ramos encontra dinheiro nacional e uruguaio.
Mas também moeda falsa, tanto de papel quanto de metal: esterlinas,
onças e quarto de onças falsas. A província vive inundada de moeda falsa
e Ramos não tem dificuldade em passá-la adiante. Com o dinheiro de
Fritsche, arremata num leilão uma velha negra quitandeira, que passa a
render-lhe oito mil réis.
Após cada assassinato, Ramos cumpre o ritual: banha- se, perfuma-
se e vai a um espetáculo no São Pedro. Em fins de junho de 1863, inicia
suas apresentações em Porto Alegre uma companhia lírica, com um
repertório de 20 óperas. Ramos fala a Catarina, com grande entusiasmo,
sobre a ópera Lucrécia Bórgia e a opereta A Filha do Regimento.
Catarina explica o motivo do assassinato do açougueiro: - Claussner
disse a Ramos que se cansara daquilo e que tinha medo de serem
descobertos. Os fregueses insistiam em comentar o gosto estranho da
linguiça, embora todos a achas- sem deliciosa. Declarou que de nenhuma
maneira voltaria a participar daquilo. Quando Ramos lhe fez ameaças,
Claussner respondeu que contaria tudo à Polícia. Mas logo disse que
liquidaria o negócio do açougue e se mudaria para Montevidéu.
- Então por que insistiu em matar Claussner?
- Tinha medo de que, em momento de fraqueza, ele confessasse
tudo. Manifestava tanto arrependimento, que Ramos temeu que de
Montevidéu mandasse uma denúncia à polícia da província. O mais seguro
90

seria calar Claussner para sempre. O depoimento de Catarina, iniciado


pela manhã, só termina à tardinha. "Mostrava-se aliviada pela confissão",
informará o chefe de Polícia em seu relatório. "No que me respeita, como
entenderá Vossa Excelência, a confissão deixou-me repugnado e
espantado, visto que jamais ouvira falar em semelhantes horrores."
O magistrado maranhense Francisco José Furtado, presente ao
depoimento, registrará suas impressões num livro publicado muitos anos
depois: "Catarina pintou os horrorosos crimes com cores tão vivas que se
tinha a impressão de estar a presenciá-los, mas ela não manifestava
perturbação. Sentia-se que ela não estava a prestar contas à Justiça e sim
a Deus. Nessa noite, tive dificuldade em conciliar o sono."
91

Capítulo XI

No tempo em que é ouvido sobre as declarações de Catarina,


Ramos vive na prisão em condições que o tornam um prisioneiro
privilegiado.
Miseravelmente alimentados, desfigurados, minados por tumores
e úlceras, os presos mal conservam a aparência humana. - São cadáveres
vivos. Vivem na maior imundície; não se lavam. Por isso, quando saem às
ruas para executar trabalhos, muito antes de serem vistos anunciam-se
de longe pelo mau cheiro que exalam. Mas Ramos compartilha da comida
dos guardas e barbeia-se regularmente. Raramente executa os trabalhos
forçados a que foi condenado. Às vezes, é dispensado mediante simples
alegação de doença, sem qualquer exame médico. Tanto no interior do
presídio como fora dele, é escalado para supervisionar o trabalho dos
demais presos, que trata com extremo rigor. Em meados de 1866,
escalam-no para chefiar os presos que traba- lham na recuperação dos
estragos causados no teatro São Pedro pelas tropas nele alojadas antes
de seguirem para a guerra do Paraguai. Imprime tal rigor no trabalho que
os presos se amotinam e o moem a pancadas. Vê no recrutamento uma
oportunidade de sair da prisão. Contrariando a lei, são recrutados, não
vadios e malfeitores, mas jovens trabalhadores e até mesmo chefes de
família: sequestrados e aferrolhados em calabouços ou navios de guerra,
nunca mais a família tem notícias deles. O pedido de Ramos é assim
acolhido prontamente e ele se prepara para partir quando sobrevém a
confissão de Catarina.
Diante da autoridade, mantém-se arrogante. Posto a par do
depoimento de Catarina, nega tudo:
- São invencionices de mulher louca. Onde estão os cadáveres para
provar o que disse?
E, estranhamente, nada mais lhe é perguntado.
92

Henrique, o corcunda, admite que ajudou a carregar as caixas, mas


alega que pensou tratar-se de carne de boi.
-E como Ramos obtinha essa carne de boi? Qual a sua origem?
-Nunca perguntei. Não me meto em negócios alheios. Entretanto,
no dia seguinte, em longo depoimento, Henrique confirma tudo que
dissera Catarina. No seu livro de recordações, o juiz Francisco José
Furtado dá a entender que tanto Ramos como Henrique foram
submetidos a algum tipo de coação: "O chefe de Polícia pediu ao
carcereiro que submetesse Ramos e Henrique a interrogatório mais
enérgico. Não obstante os recursos empregados, Ramos continuou a
protestar inocência, mas Henrique contou tudo." Numa confissão bas-
tante detalhada, Henrique admite sua cumplicidade e, salvo em pontos
secundários, sua versão dos fatos coincide com a de Catarina. Henrique
insiste em que pessoalmente jamais matou alguém, nem o movia o lucro,
tanto mais que Ramos lhe dava uma "miséria", como roupas das vítimas
e importâncias em dinheiro que "mal chegavam para pequenas
despesas". Nesse caso, por que é que ajudava Ramos em seus crimes?
-Tinha medo dele. Ameaçava matar-me se não o ajudas- se. Quem o
conhece, sabe que é capaz de tudo. É um demônio.
Submetidos os três a uma acareação, Catarina e Henrique
sustentam suas declarações, mas Ramos, obstinadamente, nega tudo. A
acareação termina quando Ramos dá um salto e tenta estrangular
Catarina.
Diz Francisco José Furtado que foi por sugestão sua que o chefe de
Polícia decidiu ouvir Isabel Kerhkove, amiga e conselheira religiosa de
Catarina. Isabel declara textualmente o seguinte:
- Em dezembro de 1863, Catarina me procurou em minha casa e me
contou as maldades praticadas por Ramos. Mas justificou essas ações,
dizendo que as vítimas viviam no peca- do e mereciam morrer. Todos os
vizinhos haviam percebido que se passavam coisas estranhas na casa de
Ramos e Catarina, pois muitas pessoas que lá entravam não mais saíam.
Também se dizia que usavam a carne das vítimas para fabricar linguiça e
isso me foi confirmado por Catarina. Ramos era pessoa da polícia e por
isso todos achavam que seria perigoso envolver- se no assunto. Os
brasileiros não gostam dos alemães e todos temiam perseguições.
93

Campello resolve ouvir alguns alemães que já haviam prestado


testemunho em 1864: o açougueiro prussiano Carlos Schmidt; o
charuteiro prussiano João Hugo Tehse; o pintor belga e marido de Isabel,
João Gabriel Kerkove; o sapateiro saxônio Antônio Lehmann. Para
espanto de Campello, todos admitem que em 1863 tinham "ouvido falar"
nos assassinatos e na fabricação de linguiça de carne humana, mas "não
tinham certeza" e temiam "fazer acusação falsa".
Furtado faz uma reflexão filosófica: "Todo mundo tem medo da
polícia porque todos têm alguma coisa a esconder, todo mundo tem a
consciência mais ou menos pesada, todos levam uma vida mais ou menos
dupla."
Os crimes assumiram uma nova configuração. Quando se começou
a desenredar a trama, José Ramos parecia um maníaco homicida agindo
solitariamente, sem ajuda de ninguém - um serial killer. Catarina se
afigurava apenas uma cúmplice - passiva, quase uma espectadora,
preocupada apenas em agra- dar o seu amo. À medida que se progride na
pesquisa, delineia- se nítida a cumplicidade militante de Catarina; ela
instiga e anima Ramos, e participa do festim canibalesco. O açougueiro
Carlos Claussner, com seu misterioso passado e seu horrendo gilvaz, não
é personagem menos perversa do que Ramos. Dele é a ideia de
transformar a carne das vítimas em linguiça, a fim de desaparecer o corpo
de delito; e, tranquilamente, desossa os cadáveres para manufaturar a
linguiça, que em seguida sai a oferecer pela cidade. Há, ainda, mais dois
cúmplices que desempenham tarefas auxiliares, mas também
espantosamente perversas: Henrique, o corcunda, e Rathmann. Trata-se,
pois, de uma sociedade criminosa de cinco comparsas cujo objetivo não é
o roubo, como acontece em tais casos, mas simplesmente o homicídio -
matar pelo prazer de matar. Como e por que estes criminosos tão atípicos
se conheceram e se aquadrilharam no medíocre burgo sulino, é coisa que
não sabemos - e talvez nunca venhamos a saber.
Feitas as inquirições, Campello hesita sobre o próximo passo a dar
no inquérito. Não há corpo de delito, e a lei declara que não pode ser
suprido pela confissão dos acusados. Mas a lei autoriza o corpo de delito
indireto e Campello não tem dúvida de que poderá elaborá-lo. Graças às
queixas dos familiares e amigos de várias das vítimas, dando conta de seu
desaparecimento, será possível estabelecer sua identidade. Os escravos-
94

de-ganho que transportaram as caixas com os despojos, poderão ser


facilmente localizados; sangue deve ter escorrido das caixas e eles terão
sentido mau cheiro. Novas inquirições das pessoas relacionadas com
Ramos, Catarina e Henrique, certamente trarão elementos
esclarecedores. Sabe Campello, enfim, que uma investigação policial,
quando conduzida de forma tenaz e arguta, sempre traz resultados. De
qualquer forma, caberá ao júri decidir. Mas a perspectiva de um júri em
que os dois réus confessos relatarão publicamente os detalhes dos
assassinatos e da fabricação da linguiça de carne humana, deve assustar
Campello. Em 1864, bastara o rumor de que os três últimos assassinatos
haviam sido cometidos por alemães, para que uma vaga de
antigermanismo desabasse sobre a cidade; a reação violenta do
populacho luso-brasileiro criara a ameaça de um conflito racial nas ruas
da cidade, obrigando o governo a mobilizar tropa para manter a ordem
pública. A conclusão judicial de que o autor principal era um luso-brasileiro
e só sua cúmplice Catarina Palse era alemã, demonstrara que o rumor não
tinha fundamento e restabelecera a paz pública.
Mas as últimas revelações de Catarina, Henrique e Isa- bel,
provavam que as acusações aos alemães não eram inteiramente
destituídas de fundamento. Não só a ideia da fabricação da linguiça de
carne humana partira de um alemão, o açougueiro Claussner, como ele
próprio realizara a sinistra empreitada. A ativa participação de outros dois
alemães, Catarina e Henrique, reforçaria aos olhos dos luso-brasileiros a
responsabilidade da antipática comunidade estrangeira. Quais seriam as
consequências da revelação de que, por culpa dos ale- mães, a população
comera carne humana? Na verdade, as con- sequências seriam
imprevisíveis, e na hipótese mais favorável, criar-se-ia um clima de
persistente hostilidade aos imigrantes, desestimulando a política
imigratória que o governo imperial desenvolvia com tão excelentes
resultados econômicos.
Não se pode prever qual a reação dos moradores da cidade quando
souberem que de fato comeram carne humana... O interesse da ordem
pública precede a qualquer outro, deve pensar Campello. Além do mais,
o açougueiro está morto, Ramos não sairá vivo da cadeia, e Catarina e
Henrique não oferecerão mais qualquer periculosidade. Não deve haver
dúvidas para o magistrado: em primeiro lugar, a ordem pública.
95

Como agente de confiança do governo imperial, Campello deve


também ponderar as consequências políticas do caso. O cabeça dos
crimes abomináveis era um empregado do governo, pago pelos cofres
públicos e diretamente ligado ao chefe de Polícia. A oposição, sempre à
espreita de erros e falhas do governo, não perderá a oportunidade. Fora
de qualquer dúvida, sustentará inescrupulosamente que o governo tinha
culpa e por isso não aprofundara as investigações no passado; só agira
após a confissão dos culpados, quando já não podia ocultar a verdade. Há
eleições à vista, e as consequências eleitorais do caso podem ser
desastrosas para o governo.
Segundo Furtado, Campello manifestou suas dúvidas ao
presidente da Província, mas este "lavou as mãos, dizendo ao chefe de
Polícia que cumprisse seu dever". Aumentam os receios de Campello
quando por esses dias o cônsul da Prússia visita o presidente da Província
a fim de interpelá-lo sobre os rumores de que o governo pretende "acusar
os alemães de pra- ticarem a antropofagia". O cônsul adverte o
presidente de que semelhante procedimento poderá determinar "a
cessação imediata da imigração germânica". Estes fatos, relatados por
Furtado, dão nova configuração ao caso dos crimes de José Ramos: eles
se transformaram numa "questão de Estado".
Campello, segundo Furtado, envia um memorando cifrado ao
ministério da Justiça, expondo o assunto. Vinte dias depois, numa mala
da Corte, recebe correspondência, também cifrada, do ministério. Diz
Furtado não ter apurado o conteúdo da correspondência, mas, por
coincidência, dois dias de- pois de havê-la recebido, Campello se decide.
Prolata despacho dando por encerrado o inquérito e manda ouvir o
promotor, "já ciente de todas as conveniências do governo", diz Furtado.
O promotor se pronuncia em termos lacônicos e ambíguos:
"Do exame do presente sumário resulta que José Ramos, nos
meses de junho e julho de 1863, assassinou uma colona chamada Luísa,
de Santa Cruz; um colono chamado Afonso, de Nova Petrópolis; um
comerciante chamado Schmitt, de São Leopoldo; um comerciante
chamado Winkler, do Rio de Janeiro; um marujo de Santa Catarina,
inominado; e Hans Fritsche, de Montevidéu, todos esquartejados e
levados em caixas para o açougue de Carlos Claussner, à rua da Ponte,
onde este último teria transformado seus cadáveres em linguiça vendida
96

ao público. O móvel de José Ramos seria o de despojar as vítimas de seus


haveres em dinheiro e o de Claussner o de fazer desaparecer os
cadáveres. As provas desses crimes consistem nas confissões de Catarina
Palse (fls. 27/41) e Henrique Ritmann (fls. 44/45), as quais, nem por serem
convincentes, tornam dispensável o auto de exame de corpo delito, caso
em que caberia aos autores as qualificações dos artigos 271 e 167 do
Código Criminal. O ilustre Doutor Chefe de Polícia apreciará as
circunstâncias, decidindo com o saber e a justiça costumeiros, preser-
vando os ditames da lei."
Semelhante manifestação do Ministério Público, que por sistema
sempre pede a condenação dos acusados, importa em pedir a
impronúncia.
Em despacho de quase duas laudas, depois de resumir as confissões
de Catarina e Henrique, o chefe de Polícia, no exercício das funções de juiz
de Direito, adota o parecer do Ministério Público, concluindo que as
confissões, embora "indubitávelmente convincentes", não bastam para
"suprir a falta do corpo de delito" e assim ao "juiz, escravo da lei, impõe-
se a impronúncia dos acusados". Esta sentença, segundo Furtado, revela
o "porco caráter de Campello".
José Ramos, portanto, ganhou o jogo ao dar sumiço nos cadáveres;
assegurou-se a impunidade. Teria cometido o crime perfeito se houvesse
parado depois que Claussner se recusou a continuar. Talvez ele não
pudesse parar, teriam de fazê-lo parar, dando solução e alívio à sua alma
penada.
Campello realizara o inquérito em segredo de justiça. Quando
arquivou o processo, manteve-o em segredo de justiça. Mas o caso deve
ter transpirado.
Em primeiro lugar, na própria cidade. Desde 1864, já não se come
mais linguiça em Porto Alegre, e um cronista, Aquiles Porto Alegre,
informa que "durante muito tempo a linguiça esteve banida de todas as
mesas".
Cerca de quinze dias depois, um jornal uruguaio, El Oriental, publica
uma notícia: "As autoridades da província de São Pedro do Rio Grande do
Sul descobriram que os ale- mães, motivados pela avareza, matam
pessoas para fazer e vender linguiça de sua carne. Sirva isso de
97

advertência para que o governo oriental traga sob vigilância esses


estrangeiros."
Pouco mais de um mês após o arquivamento, o jornal francês Le
Temps publica uma pequena notícia, sob o título O maior crime da terra:
"O mundo civilizado estremecerá de horror ao saber que no Império do
Brasil se pratica o canibalismo. Na cidade de Porto Alegre, quase na
fronteira com a República Oriental do Uruguai e a República Argentina,
um grupo de alemães assassinou seis pessoas e com sua carne fabricou
linguiça, vendendo-a ao público, que a comeu despreocupadamente.
Tem-se aí mais uma prova da barbárie germânica que hoje inquieta a
França e a Europa.
O visível antigermanismo do jornal francês se explica num
momento em que a guerra franco-prussiana já é iminente.
Também em Porto Alegre, o episódio servirá para alimentar o
antigermanismo. Germaniza-se o nome do criminoso. Ramos é
transformado em Ramis ou Rams. Em documentos e jornais da época,
atribui-se esse sobrenome ao cabeça dos crimes. E, ao longo do tempo,
os cronistas da cidade insistirão naquela grafia.
98

Capítulo XII

Está terminada a carreira da alcateia da rua do Arvoredo. Durante


vários anos, não haverá notícias do sinistro casal. Nunca mais se terá
notícias de Henrique, o corcunda.
Em junho de 1877, cumprida integralmente sua pena, Catarina é
posta em liberdade, quando já completou 41 anos de idade. Durante seis
anos, nada se saberá de sua vida.
No ano de 1883, a polícia é informada de que no porão de um prédio
no beco do Barbosa, reúnem-se frequentemente, encabeçados por uma
mulher chamada Suzana Schmitt, adeptos da seita dos "muckers" de São
Leopoldo. Suzana e mais cinco crentes são chamados à polícia a fim de
esclarecimento. Catarina Palse está entre os que são ouvidos. Declaram
de forma unânime e veemente que nada têm a ver com os partidários de
Jacobina. Depois de advertidos a respeitar a "ordem pública", são
mandados embora. Nesse tempo, aliás, já se acalmaram as paixões
despertadas pelo sangrento episódio do morro de Ferrabrás. Os
'muckers" submetidos a segundo julgamento, no mesmo ano de 1883, são
absolvidos.
No ano seguinte, ela é vista nas ruas por Aquiles Porto Alegre, um
cronista da cidade: "Aí por volta de 1884, eu encontrei Catarina, mais de
uma vez, com grosseiro chapéu de palha na cabeça e chinelos sem meias,
atravessando as ruas da cidade, com um carregamento de chinelas que
ela e Ramos faziam na cadeia e que vendiam nas tavernas. Estava
cancerosa e apresentava um aspecto repugnante, ao ponto de que eu
nunca poder explicar com que atrativos aquela mulher fatal, com
promessas de amor, fez tantas vítimas!"
A ser verdade que sofria de câncer em 1884, sobreviveu muitos
anos à doença.
99

Em 1887, serve de testemunha no inquérito sobre a mor- te a


facadas, no interior de uma espelunca no beco do Fanha", de um jovem
farmacêutico português. Nessa espelunca se realizam "bailes de
crioulas"* a que sempre comparecem homens brancos, "uma vergonha
para a família", diz um jornal. Alega Catarina que se achava no local "por
acaso". O médico e escritor Caldre e Fião, residente no beco, presta os
primeiros socorros à vítima.
No mesmo ano de 1887, Catarina vai viver na Santa Casa, onde
presta serviços como faxineira. E quem ela encontra morando na Santa
Casa desde 1879?
Ninguém menos do que José Ramos. Graças à sua astúcia, vivia no
presídio da ponta da península em melhores condições do que os demais
presos pobres. A alimentação destes, fornecida pelo Estado, consistia
num caldo ralo que lhes abreviava a existência. Ramos consegue a mesma
alimentação dos guardas do presídio.
Mas em 1876, ele não consegue esquivar-se ao trabalho forçado na
construção de um paredão em torno do presídio, destinado a aumentar a
segurança, pois as fugas são frequentes. Ramos contrai pneumonia e é
internado na Santa Casa, como todos os presos quando adoecem. Ele se
cura da pneumonia, mas emprega sua arte para continuar vivendo na
Santa Casa, não se sabe sob o pretexto, e aí continuará até a sua morte.
Torna-se benquisto entre os médicos e administradores, e a certa
altura vê-lo trabalhando como auxiliar de enfermagem. Revela-se
especialmente dedicado aos enfermos agonizantes. Passa as noites em
claro, ao lado deles, até o momento de exalarem o último suspiro. Pode-
se supor que ele e Catarina se encontrem e se falem.
No ano de 1891, Catarina morre e é enterrada como indigente no
cemitério da Santa Casa.
Também José Ramos morre na Santa Casa. A certa altura, a besta
fica completamente cega e adquire lepra. Passa os dias num pavilhão de
leprosos, coçando tranquilamente sua lepra. Quando morre, o auto de
arrecadação de suas pertenças pessoais faz menção a 15 livros, mas não
refere os títulos ou assuntos.
100

* Rua Caldas Junior

Quando Catarina Palse faz suas confissões, em 1868, o cientista


Charles Darwin está com 60 anos de idade. No inverno de 1868, quando
sai a quinta edição da Origem das Espécies e ele já está consagrado como
o mais importante cientista da Europa, recebe informações sobre os
crimes de José Ramos. Não se sabe como obteve essas informações: se
foi notícia publicada em jornais ingleses, ou relato feito pelo cônsul inglês
em Porto Alegre, pois nesse tempo representante diplomáticos do país
espalhados pelo mundo enviam ao cientista dados ou materiais que
possam interessar-lhe.
Darwin lança em seu caderno de anotações o seguinte comentário:
"Informa-se que no extremo meridional do Brasil, na pequena cidade de
Porto Alegre, um grupo de perversos (vicious) matou várias pessoas,
usando sua carne para manufaturar linguiça, que não só comeram como
também induziram os habitantes a comê-la. Uma vez que nesta região do
Brasil há uma enorme disponibilidade de carne bovina, a explicação para
o canibalismo não deve ser a fome. O temor de Lyell de que a humanidade
perca a sua posição nobre e volte à bestialidade é certamente infundado,
mas as regressões ocasionais à bestialidade sempre ocorrerão. Há um
chacal adormecido em cada homem."
101

INFORMAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

1. Por mais paciente e esforçada que seja sua pesquisa, nenhum


historiador pode afirmar que esgotou as fontes. A história da
historiografia prova isso até o cansaço. Não há obra definitiva; mais dia
menos dia, alguém descobrirá novas e insuspeitadas fontes.
Se isso é verdade em países que possuem grandes arquivos
superiormente organizados, imagina-se como não será em países, como
o Brasil, em que os arquivos possuem mesquinhos acervos e, pior ainda,
pessimamente organizados. Documentos e livros sobre a história
brasileira podem estar em arquivos ou bibliotecas de outros países, sem
falar nas coleções particulares, existentes em toda parte.
Todo livro de história é, portanto, provisório. A narrativa dos crimes
de José Ramos, feita neste livro, é fragmentária, lacunosa e parcial.
Ninguém mais insatisfeito do que o autor; são sem conta as questões que
parecem obscuras.

2. A principal fonte sobre os crimes de José Ramos está nos três


processos judiciais instaurados. O primeiro processo, referente ao
assassinato de Januário e seu caixeiro, já havia desaparecido do Arquivo
Público do Estado em 1948 e dele não se conhece nenhuma cópia. O
segundo processo, sobre o assassinato do açougueiro Claussner, pode
ser encontrado no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e foi trans- crito
na publicação os crimes da rua do Arvoredo (Porto Ale- gre, 1993). O
terceiro processo, que versa sobre o assassinato de seis pessoas e a
fabricação de linguiça de carne humana, desapareceu do Arquivo Público
do Estado depois de 1948. O autor possui cópia fotostática deste terceiro
processo. No Arquivo Nacional, há cópias do segundo e do terceiro
processos.
102

Não consta do processo, o original da confissão escrita de Catarina


Palse, mas apenas a tradução efetuada pelo tradutor juramentado, não
havendo assim maneira de avaliar a fidelidade e a qualidade da tradução.
Em relatórios e correspondências oficiais da copiosa do-
cumentação manuscrita existente no Arquivo Nacional sobre a província,
há importantes informações sobre os crimes de José Ramos. Na secção
de manuscritos da Biblioteca Nacional, encontra-se um documento
anônimo que relata cronologicamente os crimes e termina quando José
Ramos é transferido para a Santa Casa.
Agradeço a Erica Werneck da Silva a ajuda que me deu no Arquivo
Nacional. Igualmente agradeço ao engenheiro Eric Held, residente em
Santa Catarina, a informação sobre as cartas do Dr. Sarmento Leite a seu
colega do Rio de Janeiro, bem como a oportunidade de lê-las e copiá-las.
Informações suplementares sobre os crimes foram colhidas em
diversas fontes impressas, destacando-se as seguintes: Jean-Pierre
Caillois, Mémoires d'un Diplomate (Paris, 1881) e Francisco José Furtado,
minhas viagens pelo Brasil (Recife, 1891). Os últimos anos e a morte de
José Ramos na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, estão
relatados num opúsculo anônimo, A crônica de um bandido (Rio de
Janeiro, s/d). As informações sobre as pertenças pessoais de José Ramos,
foram colhidas em processo judicial existente no Arquivo Público do Rio
Grande do Sul.

3. As informações sobre a cidade e sua vida cotidiana na metade


do século passado, sobre a política e a administração, provêm de um
grande número de fontes.
São importantes os relatórios dos presidentes da província
(Arquivo Histórico do RS e Biblioteca Pública de Porto. Alegre). Em
processos criminais, no Arquivo Público, colhi "faits divers"
extremamente interessantes. No Arquivo Municipal de Porto Alegre,
encontra-se muita coisa sobre a história administrativa da cidade. Nos
anais do legislativo provincial, existentes na biblioteca da atual
Assembleia Legislativa, há um rico manancial sobre os mais diferentes
assuntos de Porto Alegre. Embora o Museu de Comunicação Social
103

Hipólito José da Costa não tenha nenhum jornal correspondente aos anos
de 1863 e 1864, pode-se encontrar, em jornais de outros anos, rica
informação sobre a cidade.
Devo a uma informação do historiador Sérgio da Costa Franco, a
descoberta e a leitura, na Biblioteca Pública de Porto Alegre, da seguinte
obra rara: Crônica de Porto Alegre. Coleção de artigos críticos sobre
costumes e fatos locais, publica- dos semanalmente no Mercantil, pelo
colaborador O Estudante (3 vols., Porto Alegre, 1855-1859). As crônicas
foram escritas alguns anos antes dos fatos relatados neste livro, mas suas
observações básicas são notoriamente válidas para os anos de 1863 e
1864. Escritas em estilo ágil e saboroso, as crônicas do Estudante são um
repositório inestimável de informações sobre o cotidiano de Porto
Alegre, em todos os aspectos.

4. Colhi também subsídios de valor inestimável nas obras a seguir


relacionadas:

ACHYLLES PORTO ALEGRE, Vultos e Fatos do Rio Grande do Sul


(Porto Alegre, 1919); Através do Passado (Porto Alegre, 1920); Palavras ao
Vento (Porto Alegre, 1925); Homens do Passado (Porto Alegre, 1922);
Noutros Tempos (Porto Alegre, 1922); Paisagens Mortas (Porto alegre,
1922); Jardim de Saudades (Porto Alegre, 1921);
ANTONIO ALVARES PEREIRA CORUJA, Antigualhas (Rev. Ins. Hist. e
Geogr. do RS, números 105 a 108-1947); ARSENE ISABELLE, Viagem ao RS
(Porto Alegre, 1946);
ATHOS DAMASCENO FERREIRA, Palco, Salão e Picadeiro em Porto
Alegre no Século XIX (Porto Alegre, 1956);
AUGUSTO PORTO ALEGRE, A Fundação de Porto Alegre (Porto
Alegre, 1906);
CARLOS H. OBERACKER JR, Carlos von Koseritz (São Paulo, 1961);
104

CALDRE E FIÃO, A Divina Pastora (Porto Alegre, 1991); CLOVIS


SILVEIRA DE OLIVEIRA, Porto Alegre, a cidade e sua formação (Porto
Alegre, 1993);
CORUJA FILHO (Sebastião Leão), Datas Rio-Grandenses (Por- to
Alegre, 1862);
DOMINGOS DE ARAÚJO E SILVA, Dicionário Histórico e Geográfico
da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul (Rio de Janeiro, 1865);
DIVERSOS AUTORES, Almanaques, de 1867 a 1873;
FRANCISCO RIOPARDENSE DE MACEDO, Porto Alegre, origem e
crescimento (Porto Alegre, 1968);
FRANCISCO RIOPARDENSE DE MACEDO, Porto Alegre, história e
vida da cidade (Porto Alegre, 1973);
GUILHERMINO CESAR, História da Literatura do RS (Porto
Alegre,1956);
LUIZ CARLOS DA CUNHA CARNEIRO/REJANE PENNA, Porto Alegre,
de aldeia à metrópole (Porto Alegre, 1992);
ROBERT AVÉ-LALLEMANT, Viagem pela província do RS (Belo
Horizonte, 1980);
SÉRGIO DA COSTA FRANCO, Guia Histórico de Porto Alegre (Porto
Alegre, 1988);
WALTER SPALDING, Pequena História de Porto Alegre (Porto Alegre,
1957).

Consultei ainda, com proveito, jornais da época, como O Diógenes,


A Estrela do Sul e O Mercantil.

5. Os diálogos existentes no livro não são uma tentativa de


"romancear" o episódio. Naquele tempo, como aliás ainda hoje, os
interrogatórios e as inquirições se processavam da seguinte maneira: o
juiz formulava as perguntas ao réu ou à testemunha; nem o promotor,
nem o advogado, formulavam as perguntas diretamente ao réu ou à
105

testemunha, mas ao juiz, que por sua vez as fazia aos declarantes; em
seguida, o juiz ditava as respostas ao escrivão; no ditado, o juiz não
empregava diretamente as palavras do declarante, mas "redigia" as
respostas. Claro está que este método comprometia a autenticidade das
respostas. Nos casos em que os imigrantes alemães não falavam a língua
portuguesa, a inautenticidade das respostas transcritas era ainda maior.
Pois o juiz valia-se do intérprete, o que significa que a resposta dos
declarantes era reformulada duas vezes. No intuito de evitar o tedioso
formalismo judicial, apresento as perguntas e respostas sob a forma de
diálogo.

6. Tomei ainda outras liberdades, a fim de evitar que o livro se


transformasse em um tedioso relatório forense.
A cena do enforcamento não foi relatada por José Ramos a
Catarina com tantos detalhes. Baseei-me na descrição que Augusto Porto
Alegre fez de um enforcamento em A Fundação de Porto Alegre.
Do mesmo modo, o ambiente da zona da rua Fernando Machado,
quando Quintella vai à casa de José Ramos, foi descrito com base nas
crônicas do Estudante.

7. Inspirei-me nas considerações sobre a animalidade humana, no


ensaio Between Animal and Angel, de John Weightmann, publicado na
edição de março de 1996 do New York Book Review, e adotei vários
conceitos usados naquele ensaio. O texto de Weigthmann me levou a
reler a Origem das Espécies e a fazer consultas na Charles Darwin Library,
em fevereiro de 1996, em Londres.

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