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Alta Idade Média

“Gênese da sociedade cristã: a Alta Idade Média’” – Jérôme Baschet (2004,


tradução de 2006)

• Professor da École des Hautes Etudes en Sciences Sociales


• Especialista em iconografia - crenças, representações e
expressões visuais no Ocidente medieval
• 1997 - Jérôme Baschet leciona também na Universidade
Autônoma de Chiapas, em San Cristóbal de las Casas, no
México
• Interesse no Movimento Zapatista

Obras:
• Lieu sacré, lieu d’images, les fresques de Bominacco (1991)
• Les justices de l’Au-delà, les représentations de l’enfer en
France et en Italie, XIIe-XVe siècles (1993)
• Le sein du père. Abraham et la paternité dans l’Occident
médiéval (2000)
Instalação de novos povos e fragmentação do Ocidente
Invasões bárbaras?
Conotação negativa dos termos “invasão” e “bárbaros”

Instalação dos povos germânicos deve ser imaginada sobretudo como uma infiltração lenta, durante
vários séculos, como uma imigração progressiva

Zona de fronteira ao norte do Império – espaços de trocas e interpenetração

Sedentarização de grupos germânicos

Vândalos, visigodos, ostrogodos, burgúndios, francos, anglos e saxões, lombardos

Aumento do poderio dos francos – dinastia merovíngia (séc. VI)

Mesmo após a instalação dos povos germânicos, o Ocidente alto-medieval continua a ser marcado
pela instabilidade de povoamento e pela presença dos recém-chegados
A fusão romano-germânica
Efeitos da fragmentação da unidade romana e da instauração dos reinos germânicos

Deslocamento do centro de gravidade do mundo ocidental do Mediterrâneo para o Noroeste da


Europa (papel da antiga fronteira romana, peso demográfico da Gália, expansão dos francos)

Conquista duradoura da Espanha pelos mulçumanos

Desabamento do sistema fiscal romano (séc. VI) – fator que favoreceu a conquista pelos povos
germânicos

Desaparecimento do Estado – profunda regionalização (reinos germânicos)


 Processo de convergência das estruturas sociais e culturais romanas com as dos povos germânicos
– papel fundamental das elites (estilo de vida comum cada vez mais militarizado – fundado sobre a
propriedade de terra e o controle das cidades)

Fusão cultural romano-germânica – um dos traços fundamentais da Alta Idade Média


A conturbação das estruturas antigas
O declínio comercial e urbano
Declínio e quase desaparecimento do grande comércio – insegurança e destruição progressiva da
rede de estradas romanas

Afeta o que compunha o essencial da circulação de mercadorias do Império – os produtos


alimentares de base e os produtos artesanais

Séc. VI – declínio maciço de todos os setores do artesanato (exceto da metalurgia) e o fim das ilhas
de prosperidade econômica que tinham sido preservadas até então

Regionalização das atividades produtivas

Declínio das cidades – mas nunca deixaram de existir completamente/ principais atores políticos no
nível local nos séculos V e VI/ autonomia das elites urbanas e desenvolvimento da função episcopal

Ruralização – difusão lenta de certas inovações técnicas e leve expansão das superfícies cultivadas
Desaparecimento da escravidão
Transformações da estruturas sociais rurais

Mundo romano – essencial da produção agrícola assegurado no quadro do grande domínio escravista

Entre o fim Antiguidade tardia e o fim da Alta Idade Média – desaparecimento da escravidão
produtiva (permanência da escravidão doméstica)

Diversas vias de interpretação

Diminuição da separação entre livre e não-livres – reconhecimento dos escravos como cristãos
(mudança da percepção religiosa dos escravos e amenização da sua exclusão da sociedade humana)

Processo de vinculação - formação do grande domínio (reserva e manso) – assegura o poderio dos
grupos dominantes (aristocracia e Igreja)

Pequenos camponeses livres (terras independentes dos grandes domínios - alódios)


Dificuldade dos proprietários de manter a dominação sobre os escravos com o declínio do aparelho
do Estado antigo

Cronologia da extinção da escravidão – não menos sujeita à controversa

Pierre Bonnassie – “a extinção do regime escravagista é uma longa história que se estende por toda
a Alta Idade Média”

Essencial do processo – entre os séculos V e VIII

Séculos IX e X – manifesta os últimos esforços para salvar um sistema que se tornara insustentável
Liberação dos escravos (manumissio) – passam a engrossa o pequeno campesinato livre, mas a
liberação nem sempre se dá sem restrições (manumissio cum obsequio – prevê uma ressalva de
obediência e a obrigação de prestar serviços ao senhor)
Vinculação (chasement) dos escravos – por vezes acompanhada de manumissio (não modifica
formalmente a condição jurídica do beneficiário)
Se multiplicam as situações intermediárias que tornam fluida a delimitação anterior entre livres e
não-livres – prefiguram a consolidação da categoria medieval de servidão

Modalidade fundamental da transição do escravagismo para o feudalismo – progressiva atenuação


da diferença entre livre e não-livres

Perda da validade prática dessa distinção

Transformação lenta e por etapas (fenômeno complexo e de difícil compreensão)

Novo sistema cuja forma estabilizada será claramente perceptível a partir do século XI
Conversão ao cristianismo e enraizamento da Igreja
Conversão dos reis germânicos
Poderio dos bispos e florescimento do movimento monástico
Bispos – pilares da Igreja no Ocidente cristão dos séculos V a VIII

Captam em seu benefício o que subsiste das estruturas urbanas romanas – crescimento de prestígio
e aristocratização da Igreja

Principal autoridade urbana, concentrando em si poderes religiosos e políticos

Culto aos santos - torna-se um dos fundamentos da organização social

Santos – cuja vida exemplar e a perfeição heroica transformam os restos corporais em um depósito
de sacralidade (canal privilegiado de comunicação com a divindade e garantia de proteção celeste)

Cada diocese tem o seu santo padroeiro – o renome do santo confere o prestígio da sede episcopal
Relíquias – bem mais preciosos que se pode possuir sobre a terra e os instrumentos indispensáveis
de contato com o mundo celeste

Não existe uma estruturação hierarquizada da Igreja ocidental – nos séculos V e VI o bispo de Roma
tem os olhos voltados principalmente para o Império do Oriente

Gregório, o Grande (papa de 590 a 604) - obra teológica e moral que dá a medida da afirmação da
instituição eclesial de seu tempo (objetivo fundamental para a sociedade cristã: a salvação de almas)

Peter Brown – distância cada vez maior entre clérigos e laicos e da posição dominante reivindicada
por um clero que pretende guiar a sociedade e enunciar as normas que convêm ao “governo das
almas”
Movimento monástico – tem seu início durante os séculos da Alta Idade Média

Século V – Ocidente

Século VI – as fundações monásticas se multiplicam assumidas com frequência pelos bispos ou, por
vezes, a título privado

O conjunto desses estabelecimentos permite ao cristianismo fincar o pé nos campos

Ao lado da rede urbana dos bispos, existe agora uma plantação rural de fundações monásticas

Contragolpe da formação de uma sociedade que se quer inteiramente cristã, mas se admite
necessariamente imperfeita

Refúgio de um ideal ascético em meio a um mundo que a teologia moral de Agostinho e de Gregório
entrega à onipresença do pecado
Instrumento de aprofundamento da cristianização do espaço ocidental e da penetração da Igreja no
campo
A luta contra o paganismo
Por volta de 500, o cristianismo é ainda essencialmente uma religião das cidades

É nesse momento que a palavra “pagão” recebe o significado cristão que conhecemos até hoje

O politeísmo antigo é considerado uma crença de homens rurais atrasados

Para os cristãos, os deuses antigos existem, mas são demônios, que é preciso caçar

Expulsão dos demônios – encontra-se no centro de toda narrativa de propagação da fé cristã contra o
paganismo

Batismo, exorcismo, destruição dos templos pagãos

Dificuldades no combate contra o paganismo – sacralidade difusa do mundo natural que os pagãos
percebem como impregnado de forças sobrenaturais

Visão cristã do mundo – dessacralizar totalmente a natureza, submetendo-a inteiramente ao homem


Durante os séculos da Alta Idade Média, duas atitudes complementares são postas em marcha:
destruir e desviar

Destruição de preferência acompanhada de uma substituição

Desvio – busca pontos de contato que permitem que o cristianismo recubra o paganismo de um
modo menos brutal

Importância do culto aos santos – permite a cristianização de numerosas crenças e ritos pagãos
(conferência de uma sacralidade legítima)

Maleabilidade na luta sempre renovada contra o paganismo

Essa maleabilidade marca também o limite de conversão do Ocidente medieval ao cristianismo e da


formação de uma sociedade cristã no seio da qual a Igreja começa a adquirir uma posição dominante
Renascimento carolíngio (séculos VIII e IX)
A aliança da Igreja e do Império
Ascensão militar de uma família aristocrática franca. Carlos Martel; Pepino, o Breve; Carlos Magno

Começa a se urdir uma aliança entre a monarquia franca e o pontífice romano

Carlos Magno (768-814) – política de conquista militar, consegue reunificar uma parte considerável
do antigo Império do Ocidente

796 - construção do palácio em Aix-la-Chapelle – confirma a alteração do centro de gravidade para a


Europa do Noroeste

800 – coroação imperial (Leão III) – imperador legitimado por Roma

Construção de uma ponte com esse novo poder e distanciamento do imperador de Constantinopla
Ruptura de uma das últimas pontes entre o Oriente e o Ocidente – distanciamento progressivo até o
cisma de 1054 entre as Igrejas católica e ortodoxa
Emergência do papado como verdadeiro poder

Aliança entre o Império e a Igreja que assegura, através de uma troca equilibrada de serviços e
apoios, o desenvolvimento conjunto de um e de outro

“Patrimônio de São Pedro” – doação de Constantino


“Se, mesmo antes, a Igreja havia se apoiado no poder real, esforçando-se para institucionalizar e
acentuar a distância que o separava do grupo aristocrático, agora é o papa que consagra o poderio da
dinastia carolíngia e dela recebe, em troca, a confirmação de sua base territorial e material” (p. 72)

Legitimação das ações do imperador como as de um príncipe cristão

Autonomia judiciária e fiscal para as terras da Igreja, subtraindo-as da intervenção do poder real ou
imperial (779 – dízimo)

Esboço de traços da instituição eclesial dos séculos posteriores e de muitas das regras pelas quais a
Igreja pretende ordenar a sociedade cristã
Imagem de uma administração bem organizada e centralizada é ilusória

Condes, duques, marqueses, aristocracia local ou guerreiros

Controle dos territórios – repousa sobre os laços de fidelidade pessoal, solenizados por um
juramento ou pela recomendação vassálica entre o imperador e os aristocratas encarregados das
províncias

A ideologia carolíngia, formulada pelos clérigos, subordina o grupo aristocrático ao soberano,


considerado a única fonte das “honras”

Desenvolvimento das zonas rurais

Salto demográfico desde os séculos VIII e IX

Retomada do grande comércio (mercadores exteriores ao Império)

Reorganização monetária – sistema fundado sobre a prata


Prestígio imperial e unificação cristã
Domínio do pensamento, do livro e da liturgia

Letrados carolíngios (corte de Carlos Magno e de Luís, o Piedoso)

Ler e difundir os textos fundamentais do cristianismo – dispor exemplares mais numerosos e mais
confiáveis de livros essenciais (Sagradas Escrituras, mas também os manuscritos litúrgicos
indispensáveis à celebração do culto, bem como os clássicos da literatura cristã)

Dois instrumentos necessários: uma escrita de melhor qualidade (generalizam o uso da “minúscula
carolíngia”) e hábito de separar as palavras uma das outras, assim como as frases (sistema de
pontuação)

Grandes avanços na história das técnicas intelectuais

Aumento da produção de livros – melhor organização dos scriptoria


Obras ligadas às necessidades do culto cristão e literatura latina clássica (permitem aprender as
regras do bom latim e informam sobre o passado pagão)

Conservação do essencial da literatura latina antiga – clérigos copistas

Língua latina – transmissão do texto bíblico correto e compreensão dos fundamentos do


pensamento cristão

Bilinguismo que marca toda a Idade Média – de um lado, as línguas vernáculas faladas localmente
pela população e, de outro lado, uma língua erudita, aquela do texto sagrado e da Igreja, tornada
incompreensível para o comum dos fiéis

Dualidade linguística – aprofunda o fosso entre os clérigos e os laicos e assegura uma unidade
marcante à Igreja ocidental
Reforma litúrgica – grande diversidade de tradições litúrgicas; projeto de disseminação da liturgia de
Roma para o Império

Aliança entre Aix e Roma, servido aos interesses conjuntos dos dois poderes e manifestando o novo
papel e o prestígio conferido ao papa no Ocidente

Renascimento artístico – inseparável de uma visão de ordem social sob condução do poder eclesial e
imperial (vontade de fazer reviver a Antiguidade, época de esplendor do Império)

Morte de Luís, o Piedoso (840) – processo de descentralização do poder

888 – morre o imperador Carlos, o Gordo, e ninguém o sucede


Diferentes interpretações

Perceber o episódio carolíngio como sendo, ao mesmo tempo, o resultado das transformações dos
séculos da Alta Idade Média e uma primeira síntese que prepara o despontar dos séculos posteriores
da Idade Média

Retomada da produção e das trocas

Uso do juramento de fidelidade como base da organização política

Afirmação da Igreja

Por meio da aliança com o Império dos francos, a Igreja consolida sua organização e lança as bases
de sua posição dominante no seio da sociedade

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