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GRANDEZA E CONTRADIÇÕES DA

REPÚBLICA DO ANO II

1. Tendências sociais e prática política do movimento popular ─ De junho de 1793 ao inverno,


o movimento dos Sans-Culottes parisienses permitira a consolidação do Governo
revolucionário e a estabilização da ditadura jacobina de salvação pública, ao mesmo tempo
que impunha a uma Convenção renitente medidas adequadas para melhorar a sorte das
massas.

(...) As aspirações sociais populares tornaram-se precisas através das lutas reivindicadoras. Em
1793, reclamou-se o maximum dos cereais a fim de se harmonizar o preço do pão com os
salários, isto é, a fim de permitir viver o sans-culotte: o direito à existência foi invocado como
um argumento de apoio. Qual seria ele? Corresponderia à pequena propriedade artesanal e
comercial: “Que ninguém possa ter mais que uma oficina, mais que uma loja.” Estas medidas
radicais “fariam desaparecer pouco a pouco a imensa desigualdade das fortunas e crescer o
número dos proprietários”. Em nenhum outro momento da Revolução se encontra uma
formulação tão nítida do ideal social popular: ideal à medida dos artesãos e dos lojistas que
formavam os quadros da sans-culotterie. Ideal ainda à medida da massa dos consumidores e
dos pequenos produtores urbanos, hostis ao mesmo tempo a todos os vendedores diretos ou
indiretos de subsistências e a todos os empresários cujas iniciativas capitalistas ameaçavam
reduzi-los à categoria de trabalhadores assalariados dependentes. Ideal enfim, que, no seu
desejo de limitar as consequências da propriedade privada, conservando-a, se opunha
fundamentalmente ao da burguesia que conduzia a Revolução.

(...) As tendências políticas da sans-culotterie não deixavam de ir ao encontro das concepções


burguesas. A soberania reside no povo: deste princípio deriva todo o comportamento político
dos militantes populares, tratando-se lá para eles, não de uma abstração, mas da realidade
concreta do povo reunido em suas assembleias de seção e exercendo a totalidade de seus
direitos: os mais conscientes tendiam para o governo direto.

2. Governo revolucionário e ditadura jacobina.

O governo revolucionário é um governo de guerra. “A revolução é a guerra da liberdade contra


os seus inimigos.” Seu objetivo é fundar a República: após a vitória, tornar-se-á o governo
constitucional, “regime da liberdade vitoriosa e pacífica”. Pelo fato de fazer a guerra, “o
governo revolucionário necessita de uma atividade extraordinária”, deve “agir como o raio”:
não se pode “submeter ao mesmo regime a paz e a guerra, a saúde e a doença”. O governo
tem, portanto, em mãos a força coativa, ou seja, o Terror. “A força, não está ela feita apenas
para proteger o crime?” O governo revolucionário não deve “aos inimigos do povo senão a
morte”. Mas o Terror está ao serviço único da República: a virtude, “princípio fundamental do
governo democrático ou popular”, constitui a garantia de que o governo revolucionário não
volta ao despotismo. A virtude, “isto é, segundo Robespierre, o amor da pátria e de suas leis”,
“o devotamento magnânimo que confunde todos os interesses privados no interesse geral”.

A maquinaria revolucionária aperfeiçoou-se, mas no serviço exclusivo do governo. O Clube dos


Jacobinos, sociedade-matriz, constitui sua peça mestra, reduzindo pouco a pouco o papel
autônomo desempenhado pelas organizações populares. Recrutando-se nas camadas da média
burguesia, em geral compradores de bens nacionais, os Jacobinos são os homens da
Resistência: face a todos os perigos conjugados, entendem conservar as conquistas políticas e
sociais de Oitenta e nove; tendo isto em vista, aliaram-se ao povo sans-culotte. Partidários do
liberalismo econômico, aceitaram a regulamentação e a taxação como uma medida de guerra e
como uma concessão às reivindicações populares. Seu recrutamento, em consequência do
movimento da Revolução e de sucessivas depurações, democratizou-se um tanto, porém
mantendo sempre a preeminência da média burguesia.

(...) O Jacobinismo, que caracterizou a teoria e a prática do Governo revolucionário, do mesmo


modo, que por uma ideologia derivada do rousseaunismo, define-se por um temperamento e
uma técnica políticos. Religião ou mística, tem-se dito: mais simplesmente, os Jacobinos
presumiam que a liberdade e a igualdade constituem os caracteres de uma sociedade
racionalmente concebida. Fanatismo?... Da firmeza de sua atitude e de seu dogmatismo dão
explicação à grandeza do perigo e à necessária disciplina contra um inimigo irreconciliável. Os
Jacobinos tiveram o sentimento, jamais claramente explicitado, de que a democracia deve ser
dirigida, de que não se pode confiar na espontaneidade revolucionária das massas. O povo
bem que a quer, disse Robespierre, mas nem sempre a vê. Os Jacobinos julgaram necessário
esclarecê-lo, na realidade conduzi-lo. Daí uma técnica cujo mecanismo foi desde há muito
desmontado, e não sem preconceito de hostilidade. Os Jacobinos puseram no devido ponto a
prática dos comitês restritos, fixando a doutrina, precisando a linha política, concretizando-a
por meio de palavras de ordem.

(...) A economia dirigida instaurada no outono de 1793 sob a pressão das massas correspondia,
no espírito dos governantes, menos a uma concepção teórica da organização social que às
exigências da defesa nacional: tratava-se de alimentar, de equipar, de armar os homens do
levante em massa, de reabastecer as populações das cidades, no momento em que o comércio
externo estava detido em virtude do bloqueio e a França parecia uma praça sitiada.

Não obstante, esboçavam-se os traços de uma democracia social. Montanheses e Jacobinos


não projetam integrar as massas populares na nação burguesa senão através do acesso à
propriedade definido no sentido de 1789.

Mas, a Montanha deu enfim satisfação aos camponeses pela abolição definitiva, sem
indenização, de todos os direitos senhoriais. O decreto de 1793 impede os proprietários de
exigirem dos arrendatários e dos meeiros qualquer prestação de substituição (mas em que
medida foi ele aplicado?).

O ponto culminante dessa política, que tendia para a criação de uma nação de pequenos
proprietários, foi constituído pelos decretos de 8 e de 13 de ventoso, ano II (26 de fevereiro e 3
de março de 1794), que despojava os suspeitos de seus bens (“Aquele que se revela inimigo de
seu país não pode ser nele proprietário”, de acordo com Saint-Just), a fim de transferi-los aos
patriotas indigentes. Não se tratava aí do “programa de uma revolução nova” mas, de uma
medida política e social que se inscrevia na linha da revolução burguesa: o confisco não foi
jamais senão um meio de luta contra a aristocracia, o acesso à propriedade um fator de
consolidação social.
3 – A impossível República igualitária

1. Parada e declínio do movimento popular (primavera de 1794) – No fim do inverno do ano II,
os traços da revolução que se vinham delineando desde o estabelecimento do Governo
revolucionário enrijeceram. Enquanto a regulamentação, a taxação e a direção da economia,
exigidas pelos sans-culottes, combatidas pelos proprietários, asseguravam penosamente, à
exceção do pão, o abastecimento da população parisiense, as necessidades da defesa nacional,
como uma concepção burguesa do poder político, arrastavam mais e mais o Governo
revolucionário a garantir-se da obediência passiva das organizações populares e a reduzir a
democracia sans-culotte à medida jacobina.

2. A queda do Governo revolucionário e o fim do movimento popular. Nos primeiros dias de


termidor, agravou-se na Convenção a desagregação do grupo montanhês. A divisão, já antiga,
entre os dois Comitês piorou. Os membros do Comitê de Segurança Geral eram hostis ao
Comitê de Salvação Pública e particularmente a Robespierre, por razões ao mesmo tempo
pessoais e de princípio. A delimitação dos poderes entre os dois Comitês não tinha sido nunca
devidamente precisada: a política geral era o objeto de um conflito de atribuições desde a
criação de um Birô de polícia dependente do Comitê de Salvação Pública. A hostilidade do
Comitê de Segurança Geral teria sido facilmente neutralizada, se o de Salvação Pública não
tivesse, ele próprio, dividido: intervêm aqui não apenas a polícia social e a aplicação dos
decretos, mas igualmente os conflitos de atribuições, os rancores políticos e as oposições de
temperamento.

(...) Não podemos esquecer que a Revolução Francesa foi, essencialmente, uma luta do
conjunto do Terceiro Estado contra a aristocracia europeia. Nessa luta, a burguesia comandava.
No essencial, ódio à aristocracia e vontade de vencer, os sans-culottes concordavam com a
burguesia revolucionária.

A oposição, porém, manifestara-se rapidamente entre o movimento popular e a ditadura


jacobina do ano II. Se ela foi agravada com as consequências da guerra, nem por isso deixou de
traduzir as irredutíveis tendências de duas categorias sociais diferentes.

(...) Os antagonismos entre a ditadura jacobina e o movimento popular não eram os únicos em
causa: as contradições próprias à sans-culotterie transportavam em germe a ruína do sistema
do ano II. Os Sans-Culottes não constituíam uma classe, nem seu movimento um partido de
classe. Artesãos e lojistas, companheiros e jornaleiros formaram, com uma minoria burguesa,
uma coalizão que exibiu contra a aristocracia uma força irresistível. Mas, no interior dessa
coalizão, afirmou-se a oposição entre os que, sendo artesãos e lojistas, viviam do lucro auferido
da propriedade privada dos meios de produção, e os que, companheiros e jornaleiros, só
dispunham do salário. As necessidades da Revolução tinham soldado por um momento a
unidade da sans-culotterie e rejeitado para um segundo plano os conflitos de interesses que
atiçavam seus diversos elementos, mas não podiam suprimi-los. De recrutamento
heterogêneo, os sans-culottes não tinham nenhuma consciência de classe. Afirmavam em geral
sua hostilidade ao capitalismo mas não o faziam pelos mesmos motivos. O artesão recusava
ver-se conduzido pelo assalariado; o companheiro execrava o açambarcador que lhe encarecia
a vida. Assalariados, os companheiros, entretanto, não possuíam nenhuma consciência social
própria: sua mentalidade estava de preferência modelada pelo artesanato, não tendo a
concentração capitalista ainda despertado o sentido de solidariedade de classe. Tinham apenas
uma certa noção de sua unidade assinada por suas ocupações manuais, por suas vestes e por
seu gênero de vida. Também a falta de instrução, que engendrava nas fileiras populares um
sentimento de inferioridade e, por vezes, de impotência: quando os homens de talento da
pequena burguesia vieram a faltar à sans-culotterie, esta se perdeu.

A marcha da história, em sua dialética mesmo, explica ainda o malogro da tentativa do ano II.
Cinco anos de lutas revolucionárias constantes consumiram os melhores e arrebataram, com o
tempo, ao movimento popular o seu vigor e a sua vivacidade, enquanto a grande esperança
sempre adiada desmobilizava pouco a pouco as massas.

(...) Ao mesmo tempo, a sans-culotterie vira desfazerem-se seus quadros, pelo próprio efeito
do triunfo popular na primavera e no decurso do verão de 1793: inúmeros militantes, sem
obtenção de um posto como uma legítima recompensa de sua atividade. A eficiência do
Governo revolucionário era feita, de resto, a este preço. No outono de 1793, as administrações
foram depuradas e povoadas de bons sans-culottes. Apareceu então um novo conformismo
ilustrado pelo exemplo dos comissários revolucionários das seções parisienses, na origem o
elemento mais popular e mais combativo do novo pessoal político. Sua condição e o sucesso
mesmo de sua tarefa exigiam que fossem assalariados: durante o ano II, esses militantes
secionários se transformaram em funcionários, tanto mais dóceis às ordens do governo porque
podiam recear perder as vantagens adquiridas. O poder revolucionário achou-se reforçado.
Mas resultou daí um enfraquecimento do movimento popular e uma alteração de suas
relações com o governo. A atividade política das organizações secionárias se encontrou freada,
a democracia debilitada. O processo de burocratização acarretou gradualmente a paralisia do
espírito crítico e da combatividade política das massas. Afirmou-se, finalmente, um
amolecimento do controle sobre o aparelho governamental, cujas tendências autoritárias se
reforçaram. Os robespierristas assistiram impotentes a esta evolução.

O termidor (período conservador que substitui o período revolucionário) destruiu a esperança


popular de uma democracia igualitária. Mas, nessa data, o terror, através de seus terríveis
golpes, completou a destruição da antiga sociedade e limpara o terreno para a instauração de
novas relações sociais: o reino burguês dos notáveis podia começar.

SOBOUL, Albert. A Revolução francesa Difel – S.P. 1974.

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