Você está na página 1de 4

O ABORTO E A ESCRAVIDÃO

Abortion and Slavery1

Por William Gairdner

Os antigos regimes democráticos não podiam admitir qualquer ataque ao seu direito de definir
certas classes de humanos como não-pessoas, especialmente seus escravos. Com as democracias
modernas não é diferente. Para os antigos, a menor admissão perante a lei de que um escravo fosse
capaz de coisas como roubar ou cometer adultério, seria tratá-lo como um ser humano livre, um
cidadão e, portanto, alguém com total proteção legal contra a própria escravidão! Esta admissão teria
derrubado todo o sistema escravocrata, e é por isso que certos senhores excessivamente sentimenta is
poderiam ser punidos pela lei se ousassem considerar seus escravos em termos demasiadame nte
humanos. Cato comeu e bebeu com seus escravos, sua esposa amamentou filhos de escravas, mas ele
rigorosamente os comprava e vendia de todo modo.
A importância das categorias legais (e da Psicologia com sua propaganda servil) para a pureza
ideológica de todos os sistemas políticos não deve ser subestimada. Os antigos as usavam para
justificar a escravidão e os massacres. Campanhas modernas de genocídio, como no Camboja ou na
África, usam-nas para liquidar raças inteiras. E, é claro, os elaboradores de políticas nazistas,
sofisticados e altamente instruídos, entendiam intimamente o motivo pelo qual a não-humanidade era
uma necessidade: possibilitava o assassinato de pessoas com deficiência, o infanticídio e o extermínio
de todos os desprezados pelos cidadãos moralistas. As categorias legais de pessoas são uma técnica
destinada a transformar sujeitos humanos em objetos sem direitos (ou com direitos especiais,
subordinados apenas) com a finalidade de sustentar um tipo de regime ideológico ou outro. Os liberais
democratas modernos e seus irmãos liberais azuis embarcaram no mesmo curso.
A moderna batalha contra o “direito” ao aborto tornou-se um divisor de águas em todas
as democracias modernas por uma razão: a grávida moderna igualitária busca o direito igualitário e
desimpedido à liberdade sexual e econômica do homem, e não pode alcançá-la sem um controle
absoluto sobre o fruto das paixões que lhe aprisiona. Portanto, não querendo admitir o assassinato,
ela usa sua considerável influência ideológica para fazer com que seu filho não nascido desapareça
legalmente, naquilo que a história mostrará como a expressão mais radical e perniciosa dos direitos
democráticos já manifestados na história humana.
Essa luta não é sobre bebês não nascidos. Trata-se de uma defesa febril e quase teológica da
ideologia democrática igualitária contra as reivindicações contrárias à biologia humana e à sociedade
natural que dela provém espontaneamente. Em suma, o argumento do direito ao aborto possui a
mesma relação imediata com a manutenção ideológica da democracia igualitária que o direito de
possuir escravos possuía com a manutenção da velha democracia – ou o direito dos arianos de liquid ar
judeus. O paradoxo – e a ironia – para a maioria dos liberais modernos (especialmente para os liberais
judeus) é que, enquanto eles condenam a escravidão com um desprezo unânime e orgulhoso,
vigorosamente defendem o direito de abortar com um zelo cego, comum a todos que dependem desta
lei.

1
https://www.williamgairdner.ca/wp-content/themes/totalpress-child/essays/abortion-and-slavery.pdf
A questão chave seria o conflito entre os direitos da mulher e os direitos do nascituro. Mas
isto é perder o ponto. O conflito não está entre os direitos de dois indivíduos, mas entre o direito
expresso da mulher e o direito superior da comunidade de defender o direito não expresso de um
cidadão não nascido. Na mulher grávida, esses dois direitos residem fisicamente e simbolicame nte
no mesmo corpo. Mas como a democracia moderna reduziu-se a uma luta simplista entre os direitos
concorrentes dos indivíduos – neste caso, a mãe e a criança – e não reconhece nenhuma autoridade
moral mais elevada, a estratégia tem sido invocar a lei para negar a humanidade do protagonista
indefeso. Ora, isto é justamente a metáfora do escravo de Platão (que descreve como cada um de nós
corre o risco de se escravizar às próprias paixões), em uma nova roupagem: esse escravo interior não
é uma paixão, mas o fruto da paixão convenientemente transformado pela lei em um escravo.
Em suma, a necessidade ideológica de uma definição legal do nascituro como não-pessoa
evoluiu da nossa necessidade cada vez mais febril de sustentar a democracia igualitária, da mesma
forma que a velha defesa da não-personalidade do escravo era essencial para manter a escravidão – e
a velha democracia. A maioria dos antigos filósofos platônicos insistia que a democracia não era
possível sem a escravidão. Tampouco seria o igualitarismo democrático. Uma conclusão inevitável é
que as nações modernas liquidam anualmente cerca de vinte por cento dos seus potenciais cidadãos
nativos em nome dos direitos e da pureza ideológica.
É claro que a categoria da não-pessoa (em sua origem, provavelmente um mecanismo de
guerra) é uma expressão legal de uma estrutura moral interna/externa mais fundamental, pela qual os
humanos historicamente se uniram contra seus inimigos virtuais. Ela tem sido amplamente utilizada
pelos Estados totalitários deste século para prender mais facilmente seus próprios cidadãos (como
inimigos internos), asfixiá-los, queimá-los e matá-los de fome, ou simplesmente liquidá- los.

A necessidade de um julgamento substituto

Esta estratégia de exclusão é de profunda importância ideológica e econômica para o Estado


do Bem-Estar moderno, porque a não-pessoa conduz imediatamente à necessidade do chamado
“julgamento substituto 2 ”, pelo qual um agente do Estado, ou algum outro profissional licenciado,
pode tomar decisões cruciais sobre educação, tratamento, saúde, vida ou sobre o verdadeiro
assassinato por eutanásia dos objetos não-personificados designados. A não-personalidade e a
estratégia do julgamento substituto que ela permite são essenciais para todo sistema político, como
um meio de prevenir-se dos poderosos contra-argumentos apresentados pela natureza à ideologia. A
natureza convoca a mãe para sua tarefa, enquanto a ideologia a convoca para o exército ou para o
escritório. A natureza afirma que não existe dois seres humanos iguais. A ideologia igualitária tenta
criá-los. Devido ao fato de que aspectos da vida privada são cada vez mais administrados pelo poder
público em todas as democracias do bem-estar modernas, tudo se torna uma competição orçamentár ia
por recursos limitados, e a coerência ideológica não pode se manter, a menos que estas decisões sejam
tomadas das mãos privadas e controladas centralizadamente pelo Estado. Significa que classes

2
O julgamento substituto é frequentemente invocado como um parâmetro para a tomada de decisão quando um
paciente não possui capacidade de tomar decisões e não deixa uma diretriz antecipada. Usando um julgamento
substituto, médicos e familiares tentam tomar a decisão que o paciente teria tomado se ele ou ela fosse capaz de
decidir. No entanto, evidências empíricas sugerem que a base moral para o julgamento substituído é infundada. Apesar
disso, muitos médicos e bioéticos continuam a confiar na noção de julgamento substituto. [Alexia M. Torke, MD.
Substituted Judgment: The Limitations of Autonomy in Surrogate Decision Making. Society of General Internal
Medicine, 2008 Sep; 23(9): 1514–1517. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC2518005/>]
(N do T).
inteiras de cidadãos podem cair potencialmente na categoria da não-pessoa em cujo nome o Estado
exercerá seu julgamento para equilibrar seus orçamentos. Por exemplo, em simples termos
econômicos, o argumento para o aborto da criança não-pessoa é esmagador. É simplesmente muito
mais barato abortar do que gastar dinheiro público com assistência social para uma mãe solteira.
Cerca de 400 dólares em um aborto, contra 10.000 dólares por ano na manutenção de cinco anos de
bem-estar para uma mãe solteira.
Em vez de permitir o desmoronamento ideológico de um serviço público como o “Universal
Medicare”, os cidadãos desesperados são obrigados a esperar meses por um tratamento. Muitos
pioram e morrem enquanto esperam. Conheço pessoas no Canadá – onde contratar para um
atendimento médico privado é ilegal – nesta situação, que se ofereceram para pagar seus tratamentos
de seus próprios bolsos. Elas foram impedidas e morreram. Uma fila para o serviço público é uma
maneira de recusar o tratamento, a fim de sustentar a ilusão do serviço público igualitário. Deste
modo, as democracias do bem-estar sacrificam silenciosamente seus cidadãos em nome do seu ideal,
da mesma forma que as antigas. O Estado buscará, através do desespero econômico, classificar cada
vez mais enfermos e frágeis como necessitados de um julgamento substituto, a fim de submetê - los
aos assassinos licenciados sob uma política de “eutanásia”, e assim evitar a erosão da ideologia
igualitária. É o protótipo de toda a guerra orçamentária dentro do Estado de Bem-Estar Social e tem
a ver profundamente com a escravidão, no sentido real de que ninguém é mais escravo ou vítima do
Estado do que alguém primeiro definido como não-pessoa, depois entregue ao Estado para uma
decisão final.

O efeito filosófico – a grande ironia do nosso tempo

Onde quer que a democracia tenha entrado em erupção, ela geralmente começa como uma
teoria política prática que defende um controle maior, para mais pessoas, e mais liberdade das
restrições externas, dentre as quais as piores são as restrições da natureza. Inicialmente, a democracia
significava liberdade dos reis, dos senhores feudais, ou dos senhores políticos. No passado recente,
significou liberdade de leis opressoras, controle de classe e tradições religiosas.
Em sua forma igualitária contemporânea, especialmente expressa na teoria da liberdade
sexual, significa a liberdade de qualquer restrição moral imposta. Pode agora significar a liberdade
de escolher nosso próprio “estilo de vida” moral, independentemente, ou mesmo em oposição aos
valores normativos de nossa comunidade. Com efeito, sob o reino deste pluralismo democrático, os
valores dos outros são descritos como “julgadores”, um esforço para escravizar moralmente o
indivíduo livre e, por implicação, inerentemente bom. No extremo desta linguagem moderna de
liberdade (embora pudesse ser encontrada bem desdenhada em alguns antigos libertinos) é possível
ler manifestos promovendo incesto, pedofilia e sexo intergeracional como técnicas para a “liberta ção ”
social e moral de uma sociedade “sexo-negativa”. A liberdade democrática move-se apenas em uma
direção – em direção ao autonomismo extremo do indivíduo e ao repúdio anárquico da moralidade
coletiva -, mas onde terminará?
A moralidade antiga jaz de ponta cabeça. Para os antigos, a liberdade da alma decorria
somente do autodomínio e do autocontrole. O mundo externo, em maior parte constituído por
acidentes como nascimento, guerra e morte, era incidental e não poderia, em princípio, influenc iar
esse poder de controle. Autocontrole é liberdade.
Para os modernos, tão encantados pelo conceito democrático, a liberdade vem da desobrigação
e da autoexpressão – de um repúdio ao controle, tanto de si mesmo (caso contrário, há o risco de ser
considerado “reprimido”) e especialmente dos outros, que, ao admoestar certos comportamentos,
dizem estar “impondo” sua autoridade social, moral ou política.
No entanto, a coroada ironia dos tempos modernos – e um dos grandes paradoxos da
democracia contemporânea – é que, embora o homem moderno se imagine social, moral e
politicamente livre, ele se comunica alegremente com o universo em termos totalmente determinis tas
que, quase sem exceção, o descrevem como um escravo ou “produto” de alguma força além da sua
vontade. Por exemplo, ele é implacavelmente descrito como um produto do condicionamento social,
e esta crença subjaz quase toda a pesquisa moderna das ciências sociais. Ou então, ele é tido como o
boneco das forças internas, psicológicas (psicanálise freudiana); ou, aos olhos do físico, ele é apenas
uma combinação quântica de matéria pura; ou para o biólogo, um produto das seleções naturais
aleatórias da lei darwiniana. Por último, diz-se que as sociedades mais ricas do mundo estão
transbordando com centenas de milhões de “codependentes” indefesos necessitados de
aconselhamento imediato.
O mesmo vale para todo o monólogo político “progressista” moderno, no qual milhões de
vítimas negligenciadas do “condicionamento” social e econômico são consideradas aptas à
reeducação, à terapia, ou necessitadas de alguma outra “política” especial a ser trabalhada e
administrada por especialistas instruídos. Estes últimos formam a elite intelectual do
fundamentalismo secular moderno, e normalmente se concebem como aqueles que escaparam – em
virtude do seu conhecimento especial – da falsa conscientização do estado mental condicionado que
deploram (e que infalivelmente caracterizam como uma forma de escravidão). Eles são elites – não
mais escravos – salvos por sua autodefinição pretensiosa.
O mesmo vale também para o Marxismo, a mais difundida e perniciosa das teorias da
conspiração, segundo a qual todo o mundo desenvolvido é uma vítima escravizada de um processo
histórico inevitável e de um sistema de classes capitalista opressor que explora a maior parte do povo.
A chamada teoria da “desconstrução” moderna, hoje uma sombra intelectual debilitante e
generalizada da história marxista, argumenta, basicamente, que os sistemas de poder de um tipo ou
de outro permeiam todos os níveis da sociedade humana, e que até mesmo as motivações altruís t as
são, na verdade, jogadas estratégicas para entrincheirar esses sistemas e manter massas humanas a
eles escravizadas. Os marxistas bradam pela “libertação” da humanidade, invadindo a sociedade com
programas caros e coercivos de justiça redistributiva e “substantiva”, destinados a reverter os efeitos
da natureza e da sociedade, exigindo o tratamento diferenciado de seres humanos considerados
juridicamente iguais.
Quão bizarro e irônico é o fato de que, nestes tempos de ampla celebração da liberdade
democrática, nosso homem supostamente livre imagina a si mesmo um produto totalmente
subordinado – ou vítima – dos processos e ordenamentos físicos do mundo, muito mais do que em
qualquer época da história.

Tradução: Valéria Cutrim

Você também pode gostar