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Produção literária brasileira no século

19 circulava pelo mundo


19/09/2012

Por Elton Alisson

Agência FAPESP – Já no início do século 19 um leitor no Rio de Janeiro podia encomendar


um livro recém-lançado em Paris, na França, e recebê-lo em 28 dias, que era o tempo que a obra
necessitava para ser transportada por navio até o Brasil e que equivale, aproximadamente, ao
mesmo prazo que empresas de comércio eletrônico estrangeiras, como a norte-americana
Amazon, levam para entregar uma obra hoje no país quando não encomendada pelo sistema de
correio expresso.

Na mesma época, obras de autores brasileiros, como Marília de Dirceu, de Tomás Antônio


Gonzaga (1744-1810), foram traduzidas para o francês, o italiano, o latim e o russo, a exemplo
do que ocorre atualmente com os livros mais lidos no mundo, que são lançados quase que
simultaneamente em diferentes idiomas.

Como os exemplos demonstram, a globalização da cultura não é um processo que se iniciou no


século 20, com o advento das tecnologias de informação e comunicação. Mas remonta ao início
do século 16 – quando espanhóis e portugueses começaram a viajar pelo globo – e se
intensificou no século 19, quando os livros e impressos começaram a circular pelo mundo,
criando uma forma especial de conexão entre as pessoas em diferentes partes do planeta, tal
como a internet faz hoje.

De modo a estudar o fenômeno sob uma perspectiva transnacional, pesquisadores do Brasil,


Portugal, França e Inglaterra iniciaram um Projeto Temático, com apoio da FAPESP, com o
objetivo de conhecer melhor os impressos e as ideias que circulavam entre os quatro países
entre 1789 a 1914.

No período, que ficou conhecido como o “longo século 19”, houve uma notável ampliação do
público leitor e mudanças tecnológicas, como a ampliação da rede ferroviária europeia e o
desenvolvimento dos navios a vapor, que facilitaram a divulgação e a circulação dos impressos
pelas diferentes partes do globo.

Nessa época, quando os países começaram a se definir como nações que queriam se separar uma
das outras, ao mesmo tempo em que o processo de integração ganhava força, livros brasileiros
foram traduzidos para o francês e publicados na forma de folhetim em jornais em Paris e obras
de autores franceses também fizeram o percurso inverso.

“A tradução de livros na forma de folhetim fazia com que pessoas, em diferentes lugares do
mundo, ficassem conectadas, porque liam mais ou menos ao mesmo tempo a mesma história
nos jornais”, disse Marcia Azevedo de Abreu, professora do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do projeto, à Agência
FAPESP.

“Um capítulo de um livro recém-publicado na França era mandado por navio e traduzido no
Brasil. Às vezes, o autor adoecia, por exemplo, e a tradução não podia sair aqui”, contou a
pesquisadora.

Neste período também foram lançados livros e manifestos por intelectuais brasileiros, que
estudaram em universidades de Portugal e da França e se tornaram membros de importantes
instituições acadêmicas estrangeiras, como o Instituto Histórico de Paris.

Durante a permanência na França, por exemplo, os brasileiros conheceram e estabeleceram


relações com os intelectuais nativos, que lhes ajudaram a lançar publicações como a
revistaNiterói.

Na revista, que circulou primeiramente em Paris e que para ser lida no Brasil era preciso
importá-la, foi publicado pelo poeta brasileiro Gonçalves de Magalhães (1811-1882) o primeiro
Manifesto Romântico Brasileiro.

Já a primeira tradução para o francês de O Guarani, de José de Alencar (1829-1877), foi
publicada também em folhetim no século 19, sob o título Les filles du Soleil (As filhas do Sol),
em um jornal lançado na França por um grupo de brasileiros para divulgar o Brasil no país
europeu.

“Algumas obras de grandes autores brasileiros também foram impressas primeiramente na


França por Baptiste Louis Garnier, que foi o maior editor brasileiro do século 19, porque era
mais caro importar papel branco do que impresso no Brasil nesta época”, disse Abreu.

“Além disso, era mais chique para os leitores brasileiros comprar um livro impresso na França, e
as próprias editoras exploravam isso na publicidade, destacando que a obra havia acabado de
chegar de Paris ou escrevendo na primeira página da obra que ela foi impressa na França”,
destacou a pesquisadora.

Por outro lado, de acordo com Abreu, assim que terminou a proibição de se imprimir
publicações no Brasil, que vigorou até 1808, alguns livreiros, como o francês Paul Martin,
começaram a publicar livros no Brasil e exportá-los para Portugal - onde a família de livreiros
franceses Martin também possuía uma livraria -, que desempenhou um importante papel no
processo de integração literária entre os países por meio das traduções.

Como a grande referência no século 19, a França traduzia na época obras de todo o planeta para
o francês, que era a língua que o mundo inteiro lia e partir da qual os países faziam as traduções
para seus idiomas oficiais.

Ao perceber que uma determinada obra lançada na França fez sucesso, os portugueses logo
tratavam de traduzi-la para a língua portuguesa e a enviavam para o Brasil, possibilitando que
não só as elites, que liam francês, pudessem ter acesso à obra.
“O Brasil era a filial de muitos livreiros de Portugal, que eram muito ativos e traduziam muito
rapidamente livros e impressos e enviavam para cá”, disse Abreu.

“Mas não eram só os brasileiros que esperavam o que os estrangeiros mandavam para cá. Os
estrangeiros também esperavam o que o Brasil mandava para o exterior”, ressaltou a
pesquisadora.

Falso atraso e dependência cultural

Na avaliação da pesquisadora, as constatações feitas no primeiro ano do projeto de pesquisa


contrariam o paradigma de que o Brasil esteve sempre atrasado culturalmente em relação aos
outros países, e mais recebeu do que exerceu influência cultural.

“A gente aprende que a França influencia culturalmente Portugal, que por sua vez influencia o
Brasil, e que a influência cultural se esgota aqui. Mas temos observado que também há livros e
impressos que saíram do Brasil e foram para estes países e que as trocas entre eles eram
desiguais, mas recíprocas”, disse Abreu.

A primeira história da literatura brasileira, por exemplo, foi escrita pelo francês Ferdinand
Denis (1798-1890), que publicou em 1826 um livro na França intitulado O resumo da história
literária do Brasil.

Já uma das mais importantes obras de Victor Hugo (1802-1885), o romance Les Misérables, foi


publicado no Brasil antes mesmo de ser lançado na França, graças a um contrato de
exclusividade com o editor do autor francês, conforme uma notícia publicada no Jornal do
Commercio no Brasil em 10 de março de 1862 e confirmada pelos pesquisadores, alardeando
que o mundo inteiro deveria estar com ciúmes do país pelo feito.

“Nós vimos que essas conexões entre o Brasil e outros países já existiam muito antes e que não
havia a ideia de atraso, de dependência e de influência cultural, que não estão bem colocadas”,
disse Abreu.

“Não que o Brasil fosse o centro do universo no século 19. Mas não era tão ruim como estamos
acostumados a pensar, e o país estava sincronizado com outros no tempo, do ponto de vista da
leitura”, afirmou a pesquisadora.

De acordo com Abreu, um dos fatores que contribuem para essa falsa percepção do atraso
cultural do Brasil em relação ao mundo é que se costuma pensar que economia e cultura são
indissociáveis.

Como o país não era economicamente desenvolvido no século 19, se pressupunha que sua
cultura também era atrasada e fortemente dependente e influenciada por outros países.

“Uma das conclusões preliminares importantes deste projeto de pesquisa é que a economia e a
cultura não são tão casadas assim. No mesmo país em que havia escravos e era economicamente
dependente, circulavam livros que eram lidos ao mesmo tempo aqui e em Paris”, disse Abreu.
Continuidade da pesquisa

Os pesquisadores estão buscando identificar quais os editores que atuavam transnacionalmente


e quantos e quais autores brasileiros tiveram obras traduzidas no século 19.

A pesquisa está sendo realizada em bibliotecas, além de em arquivos dos editores, comerciais e
de polícia do Brasil e dos três outros países participantes do projeto, em que é possível analisar,
por exemplo, os contratos comerciais de livreiros realizados com brasileiros e quais editores se
instalaram no país.

De acordo com Abreu, o projeto deve ganhar maior impulso agora, após a realização da Escola
São Paulo de Estudos Avançados sobre a Globalização da Cultura no século 19, que
ocorreu no final de agosto no IEL e Universidade de São Paulo (USP), com apoio da FAPESP.

O evento reuniu professores e estudantes de pós-graduação de diversos países, que poderão se


integrar no projeto.

“Nós estamos em fase de prospecção e estabelecimento de parcerias com pesquisadores da


França, Portugal e Inglaterra, sendo que alguns já se conheciam e trabalharam juntos e outros
não. E a Escola possibilitou trazer todos esses pesquisadores para passar uma semana juntos e
ouvir as sugestões dos alunos, para afinar as referências”, disse Abreu. 

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