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NEVES, Guilherme Pereira das– UFF/Cnpq

ELÉTRONS NÃO SÃO INTRINSECAMENTE INTERESSANTES COMO GENTE

De início, queria expressar meu agradecimento à Direção da ANPUH-RJ pelo


convite para essa conferência, que muito me honra. Não obstante, quando um anjo
desavisado soprou no ouvido do Francisco Martinho a idéia de convidar-me para
falar de biografias, suponho que ele se tenha deixado levar, talvez, pela tênue
lembrança de alguma aula menos confusa a que assistira na Graduação, há muitos
anos, ou, mais provavelmente, pela vaga impressão de que meus trabalhos, ao
longo desse período, tenham girado, quase sempre, em torno de indivíduos. De fato,
de D. Rodrigo ao bispo Azeredo Coutinho, do padre Miguelinho a frei Caneca, de
Jean-Louis Carra a Luís Gonzaga das Virgens, dos irmãos Suassunas a Antônio
Ribeiro dos Santos, da multidão de clérigos nem sempre dignos da Mesa da
Consciência e Ordens aos em tudo anônimos, exceto nos nomes, fiéis que
encomendavam ex-votos pintados, minhas investigações buscaram sempre ancorar
suas reflexões em torno de personagens concretas. Até mesmo em alguns textos de
caráter teórico-metodológico que produzi, foram os historiadores, como Joaquim
Manuel de Macedo e Oliveira Lima, mais do que escolas ou vastas sínteses
abstratas, que me atraíram e motivaram.
Nem por isso, porém, me vejo como um especialista em biografias. E nem
creio que possam ser inseridos nesta categoria os diversos verbetes biográficos que
ousei escrever para alguns dicionários!
Assim sendo, tenho que considerar uma verdadeira temeridade o convite do
Francisco com que fui distinguido, temeridade pela qual, infelizmente, a essa altura,
a platéia aqui presente terá de arcar nos próximos minutos. Nessas condições, me
parece quase impossível acompanhar o tema proposto pela organização deste
evento – que só descobri ao ler a programação – “Historiografia das Grandes
Biografias”. Em seu lugar, vou me ater ao título um tanto enigmático que propuz,
quando, após muita hesitação, aceitei o convite: “Elétrons não são intrinsicamente
interessantes como gente”, a partir do qual gostaria de desenvolver uma reflexão
sobre as relações, bastante complicadas, entre indivíduo e historiografia.
***
Como muitos, certamente, escolhi história enquanto curso de Graduação
levado pelo fascínio das civilizações antigas e pela aura romântica, à Indiana Jones,
que cerca os arqueólogos – até o momento em que, num trabalho de campo,
desenterrei uma gigantesca batata doce acreditando que se tratava de um vaso!
Mas dela, da história, aproximei-me muito mais, antes como depois, através de
obras literárias e de biografias; e, apesar de um certa vergonha em estabelecer a
comparação, não resisto à lembrança de que outro não foi o papel de Walter Scott
para ninguém menos do que Leopold von Ranke.
Ainda na infância, recordo-me de uma coleção de perfis de cientistas notáveis
de várias épocas, escrita para crianças por Aquarone, intitulada Grandes benfeitores
da humanidade. Já na adolescência, acompanhei o nascimento da cirurgia moderna
no final do século XIX com um livro de que não me lembro do título nem do autor e
atravessei, um tanto desorientado, as vidas de Maria Antonieta e de Maria Stuart por
Stefan Zweig, achadas entre os livros de meu pai, assim como um esquecido
romance de Marcia Davenport sobre a saga dos operários e capitalistas do aço na
região de Pittsburg, intitulado O vale da decisão. Ao final do ginásio, ganhei, e
penosamente li, o enorme Julian, de Gore Vidal, sobre o imperador conhecido como
o Apóstata, sem desconfiar nem da importância do autor nem da personagem. Um
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pouco mais tarde, foi a vez de percorrer sofregamente a série Os reis malditos, de
Maurice Druon, que uns tios tinham deixado lá em casa durante uma estadia no
exterior, e cujas notas históricas, ao final de cada volume, despertaram espanto e
admiração. De cambulhada – deve ter sido por essa época – veio o Byron de André
Maurois e Agonia e êxtase, de Irving Stone, sobre Miguelângelo, e mais outros do
mesmo tipo, assim como me lembro das discussões em família a respeito da
propriedade de publicar-se, ou não, Rui, o homem e o mito, de Raimundo
Magalhães Jr. Paralelamente, o gosto pela música conduzia-me a escarafunchar os
verbetes de compositores e intérpretes, que ia descobrindo, numa antiga edição do
famoso Grove’s, que meu avô me legara. Em algum momento da faculdade, com
uma nova sensibilidade em relação à sociedade aflorando, encontrei na magnífica
biblioteca da Maison de France, e devorei de um jato, La route de la liberté, a
tradução de um romance histórico sobre o período da Reconstrução nos Estados
Unidos do americano de esquerda Howard Fast (não se espantem, a espécie
existe!). Foi, talvez, o meu E o vento levou, filme a que minha mãe, por outras
razões, tinha assistido pelo menos oito vezes.
Apesar de posteriores recaídas periódicas em obras desse gênero, como o
Shogun de James Clavell, meu gosto tendeu a redirecionar-se e, acredito, a
aprimorar-se, desde então. Numa vereda paralela, embora já não pertencesse à
geração Paissandu, veio, a partir dessa mesma época, a descoberta do cinema,
com os enigmas e jogos verbais da memória em Hiroshima, mon amour, as
repetições solenes de O ano passado em Marienbad, o lento fluir de uma vida em
Providence. A multiplicidade de pontos-de-vista em Rashomon. O crepúsculo do
mundo ocidental burguês nos filmes de Visconti. O lugar da técnica em 2001 e a
perfeição formal da encenação em Barry Lindon de Kubrick. A sensibilidade do
século XVIII posta a nu em La marquise d’O de Eric Rohmer. A extraordinária
análise social e psicológica com que Ettore Scola revestiu Um dia muito especial,
essa história dos gestos, dos trajes e das crenças, feita somente com música e
dança, que se chama O baile, e ainda a recente e deslumbrante microhistória visual
que denominou de Competição desleal.
Alguns anos depois de formado, enquanto buscava no rádio de ondas curtas
notícias sobre a Revolução dos Cravos em Portugal, vi algumas das crenças, que
tinha adquirido, ruírem diante da experiência pessoal narrada por Dominique Desanti
– em Les staliniens – como jornalista na Europa do Leste, no período do imediato
pós-guerra; embora certas esperanças ainda continuassem acalentadas pelos
sonhos de toda uma geração e por outras obras, como a experiência, também
pessoal, relatada no De la Chine de Maria Antonieta Macciochi. Mais tarde, vieram
os depoimentos sob a forma de entrevistas, de Duby, de Bourdieu, de Ricoeur, e
algumas autobiografias – como a de Popper, puro cérebro; a de Feyerabend, puro
coração; e, decisiva, a de Collingwood.
Ao mesmo tempo, antes como depois, os romances e contos de A. J. Cronin,
de Morris West, de Charles Morgan e de Somerset Maugham, das estantes de meus
pais, e os de José de Alencar e Érico Veríssimo, dos trabalhos escolares, foram
deslocados, em ritmos e tempos diversos, pelas leituras de Georges Duhamel,
Joseph Conrad e Thomas Mann, intercaladas com as Ilusões perdidas de Balzac; a
Cartuxa, mais do que O vermelho e o negro, de Stendhal; o Leopardo de
Lampedusa; a discreta perfeição dos Três contos e a ironia arrasadora do Bouvard
et Pécuchet de Flaubert; Guerra e paz; o Lima Barreto de Isaías Caminha e do
Policarpo; Machado do Memorial e de Esaú e Jacó; Guimarães Rosa de Sagarana e
Primeiras histórias; algum Graciliano; de José Lins, o Fogo morto; o sufocante
Repouso de Cornélio Pena e a mítica cidade mineira de Autran Dourado; mais os
três volumes, recém-reeditados, do Espelho partido de Marques Rebelo; e ainda
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Camus e Sartre. Como Luciano Figueiredo me fez lembrar com um simpático e-mail
em que procurava conter o desespero que esta conferência me causava – no início
da década de 1980, às voltas com a interminável dissertação de mestrado, apelidei
Rodrigo de Souza Coutinho de “meu marquês de Rollebon”, a figura histórica cuja
biografia o protagonista de A náusea, Antoine Roquetin, não consegue desenvolver.
Por essa altura, já por dever de ofício, fora buscar o Robinson Crusoe, a Viagem
sentimental de Sterne, as Rêveries d’un promeneur solitaire de Rousseau e o
Werther, como janelas para o século XVIII que me intrigava.
Mas basta de lero-lero, vida, noves fora, zero, diria Manuel Bandeira. Vou
parar por aqui com essa egotrip, que pode ter divertido um ou outro, e até mesmo
redespertado lembranças agradáveis naqueles que comigo partilharam algumas
dessas referências, mas que certamente há de ter parecido, à maioria, um devaneio
pretencioso, à maneira de essa é minha vida, antes do momento em que tais coisas
começam a justificar-se. Na realidade, ao preparar essa conferência, premido pelo
tempo, pela multiplicidade de outras obrigações, pelo peso do título da programação,
“Historiografia das Grandes Biografias”, e pela minha ignorância do assunto –
embora decidido a conduzi-la na direção que anunciei no início, como uma reflexão
sobre as relações entre indivíduo e historiografia – achei que era minha obrigação
traçar um panorama da escrita biográfica. E haveria melhor ponto de partida do que
o esboço de uma biografia, ainda que fosse a minha, a única que tinha capacidade
para fazer, e reduzida à expressão mais simples, a das leituras que me formaram?
Com isso, tinha dois objetivos. Primeiro, queria dar uma idéia da variedade
dos tipos de escritos biográficos, das modalidades de enredos de que um autor
dispõe para tratar de suas experiências pessoais ou daquelas de uma personagem.
Segundo, queria destacar as próprias características da escrita biográfica em si, de
modo a ser capaz de relacioná-la, enquanto uma prática específica, à da escrita da
história em geral. É dessas duas questões que vou tratar em seguida.
***
Quanto à primeira dessas questões, as obras que escolhi para indicar a
trajetória das minhas leituras devem ter soado como um bom saco de gatos.
Claramente, não se limitam às obras que se podem classificar como biografias. No
entanto, não as apontei por acaso. Todas (até mesmo os filmes), de uma forma ou
outra, considero que foram fundamentais para cultivar em mim uma certa
sensibilidade em relação ao indivíduo e à história. Sob esse ângulo, elas evidenciam
o quanto é difícil de caracterizar a biografia enquanto tal, uma palavra de fins do
século XVII, inícios do XVIII em inglês, francês e alemão, mas da primeira metade
do XIX no mundo português.1 E evidenciam também a dificuldade de definir as
múltiplas e tênues fronteiras que a biografia mantém com outros gêneros, como os
depoimentos pessoais; a reportagem; as obras de ficção – em especial, os filmes e,
sobretudo, o modelo literário do romance, que se constituiu nos séculos XVIII e XIX
em torno de um protagonista; o romance histórico; e, no limite, a própria prática
historiográfica dos historiadores profissionais.
Para minha sorte, a fim de tratar dessa questão, dispunha em casa de um
livro já antigo de Daniel Madelénat, que nunca havia utilizado, mas que se revelou
uma grata surpresa, tanto quanto tive tempo para lê-lo, e do qual extraí quase todas
as informações que se seguem, além de algumas que precedem. 2 Segundo
Madelénat, então professor de literatura geral e comparada na Universidade de
Clermont II, a definição de biografia move-se entre dois pólos. No primeiro, trata-se
da idéia de que consiste no relato histórico consagrado a um só indivíduo. No
1
Ver Antônio Geraldo da Cunha. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1982. p. 111 e a obra indicada na nota seguinte, p. 13-14.
2
La biographie. Paris, Presses Universitaires de France, 1984.
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segundo, a caracterização é mais elaborada e tende a acentuar o aspecto literário,
que pretende ressuscitar artisticamente uma vida ou um destino individual.
Após discutir essas concepções, propõe, ele próprio, a seguinte definição:
biografia é a “[n]arrativa escrita ou oral, em prosa, que um narrador faz da vida de
uma personagem histórica (colocando a ênfase na existência individual e na
continuidade de uma personalidade).” E comenta então: o “gênero se encontra
assim definido pela forma (narração, prosa), pelo assunto tratado (uma personagem
real; por conseguinte, trata-se de um texto referencial e não de uma ficção) e,
facultativamente, pela perspectiva da narrativa, pela focalização sobre uma
interioridade e uma visão de mundo”. Logo depois, ainda acrescenta: “As palavras
narrativa, narrador, histórico indicam o pertencimento comum [do gênero] à literatura
e à história, com a necessária discrição que exigem a complexidade do problema e
as polêmicas que suscitou.”3
Portanto, de forma alguma parece uma questão decidida pertencer a biografia
aos domínios de Clio. E certamente não lhes pertenciam, como hoje os entendemos,
as obras de caráter biográfico desde a Antigüidade até o século XVIII. Dos gregos
do século V a. C. ao Dicionário histórico e crítico de Bayle, no final do século XVII,
passando pelos cumes de Suetônio, Plutarco, Eginardo, Joinville, pelos vales das
hagiografias medievais e pelas encostas cada vez mais escarpadas da erudição
nascente, com Bolland e Papebroch, o panorama mudou, mas conservaram-se, em
grande medida, os artifícios retóricos, as preocupações de louvor e o caráter literário
das construções, indicando, quase sempre, a ausência ou, pelo menos, o lugar
secundário ocupado pelo aspecto referencial da narrativa, que fará a fortuna da
historiografia posterior, propriamente moderna.
Mais próximo de nós, vale lembrar um certo tipo de obra a que recorremos
com freqüência quando a abordagem de nossos trabalhos passa pelo conhecimento
de informações sobre indivíduos históricos concretos. Não me refiro a dicionários e
enciclopédias, mas a essas coleções de vidas, que ora parecem tomar Plutarco
como modelo, ora reúnem uma erudição à altura dos bolandistas e mauristas do
século XVII, e que se encontram repertoriadas e indexadas por J. Galante de Sousa
num volume dos mais úteis da escassa produção erudita do país intitulado Índice de
biobibliografia brasileira.4 Entretanto, essas obras não chegam a constituir biografias
e, quando não são recheadas pela erudição de um Inocêncio Francisco da Silva,
acabam sempre presas aos modelos retóricos da Antigüidade, manejados em
proveito da pátria – seja a nacional, seja a estadual, seara que Manoel Salgado
Guimarães vai explorar, suponho, na 5ª feira.
Na realidade, como observa Madelénat, apoiando-se em Harold Nicolson,
quando predominam a fé e o dogmatismo, a biografia, torna-se dedutiva,
moralizante, didática ou simplesmente superficial; no entanto, quando triunfa a
dúvida e o ceticismo, quando volta a surgir o interesse pelas condutas humanas, ela
passa a ser indutiva, crítica, desinvolta e realista. 5 Esta é a tendência do século
XVIII, que, juntamente com o nascimento do romance à Fielding, Smollett e Sterne,
anuncia o novo paradigma romântico da biografia, com o Life of Johnson (1791).
Seu autor, James Boswell, após mais de vinte anos de convivência com o famoso
dicionarista e quase trinta de elaboração, declarava estar absolutamente seguro de
que o método biográfico empregado em suas mais de mil páginas, ao combinar uma
história do curso visível no mundo de Samuel Johnson com uma visão de seu

3
Madelénat, La biographie..., p. 20.
4
Rio de Janeiro, INL, 1963.
5
Madelénat, La biographie..., p. 34.
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espírito, era “o mais perfeito que se pod[ia] conceber”, tornando-a “mais uma Vida do
que qualquer obra jamais surgida.”6
Nas primeiras décadas do século XIX, uma crescente onda biográfica seguiu
na esteira do sucesso de Boswell, propelida pelo impulso que personagens
extraordinárias no cenário político e cultural europeu tinham concedido: Danton,
Robespierre, Bonaparte, Wellington, Byron e outros. Em 1846, aparecia em Paris até
mesmo uma História de Napoleão redigida por um mulato baiano, Caetano Lopes de
Moura, que servira de médico nos exércitos do imperador e que se fixara como
tradutor na capital francesa, como revela a tese de titular da Lúcia Bastos. 7
Entretanto, o movimento não deixou de regredir em seguida, à medida que se
consolidava uma prática historiográfica profissional e que tendia a predominar uma
concepção cientificista e positivista da natureza e da sociedade. Em 1849, depois
que os impasses da revolução tinham desfeito as esperanças românticas, Saint-
Beuve escreveu: “Já assumi suficientemente a posição do advogado; assumamos
agora a do juiz”.8
Somente nos anos ao redor da Primeira Grande Guerra a biografia iria
recuperar o prestígio e a irradiação anterior, com a irrupção de uma enorme
quantidade de obras, que, nos Estados Unidos, alcançaram a cifra de 4.800 entre
1916 e 1930; ou seja, uma média de 320 por ano. 9 Foi então que autores como
Litton Strachey, Emil Ludwig, Stefan Zweig e André Maurois estabeleceram o
paradigma contemporâneo da biografia, recorrendo aos insights propiciados pela
literatura, pelo historismo alemão, pela revalorização da intuição por H. Bergson e
pelas teorias psicanalíticas de S. Freud, que resultaram numa imagem mais
complexa do indivíduo, fracionado em personalidades diversas, nem sempre
congruentes nem conciliáveis.10 Ludwig, por exemplo, tinha como ideal “alcançar a
semelhança psicológica de um romance, guardando ao mesmo tempo a precisão
histórica de um diário íntimo”.11
Dessa forma, a biografia contemporânea aparenta-se, diz Madelénat,
“estreitamente ao romance moderno, com seus jogos em relação aos pontos de
vista e aos tempos, seus mergulhos na interioridade, sua disposição convergente
das intrigas secundárias, seus leitmotive; ela se inspira igualmente da poesia, do
jornalismo e do cinema (com sua predileção pelo espetacular e pelo sensacional). O
biógrafo [...], artista completo, encenador de uma existência, acelera, atrasa,
manipula o ‘andamento’.”12 Enquanto isso, até no campo mais acadêmico, Sartre e
Bourdieu passaram a disputar a interpretação de Flaubert, enquanto Le Goff
começava a preparar o seu São Luís.13 Não é de admirar, assim, que Pierre Chaunu,
campeão da história serial, voltada para o coletivo, saudasse entusiasmado, em
1982, uma nova leva de biografias com elevadas tiragens. Afinal, por que não
encarar essas obras, destinadas a “reencontrar a palpitação do ser, o destino
individual e o drama da consciência”, como uma espécie de compensação à tradição
dos Annales, funcionando ambas as tendências como o yin e o yang alternados do

6
Apud Madelénat, La biographie..., p. 56.
7
As representações napoleônicas em Portugal: imaginário e política (c. 1808-1810), defendida na
UERJ em abril de 2002 e que se encontra em curso de preparação para publicação.
8
Apud Madelénat, La biographie..., p. 62.
9
J. A. Garraty, apud Madelénat, La biographie..., p. 66.
10
A Vida de Schleiermacher de W. Dilthey é de 1870; o Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência de Bergson, de 1889; e a Interpretação dos sonhos, de 1900.
11
Apud Madelénat, La biographie..., p. 67.
12
Madelénat, La biographie..., p. 65.
13
L’idiot de la famille, do primeiro, aparece em 1971; Les règles de l’art, do segundo, em 1992; o de Le
Goff surgiu em 1996, mas começou a ser redigido 15 anos antes, ou seja, por volta de 1981.
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pensamento chinês, indicando o holismo e o individualismo presentes em todas as
sociedades?14
Aí está o ponto, que corresponde à segunda questão anunciada
anteriormente: quais as relações que a biografia mantém com a história? Sob esse
aspecto, quem quiser aproveitar o Madelénat ainda encontrará nele, certamente,
muitos outros subsídios interessantes, que não pude utilizar, inclusive uma
discussão sobre a dimensão epistemológica e outra sobre a dimensão literária da
biografia, além de uma esplêndida bibliografia, que registra nada menos do que
doze bibliografias sobre biografia! No entanto, vou tomar um rumo algo diferente.
***
Há alguns anos, tento passar para meus alunos uma concepção da história –
que fui buscar em Arnaldo Momigliano, Georges Lefebvre e outros – na qual a
disciplina, em sua vertente atual, surgiu da combinação de três tradições diferentes
num momento-chave, que H.-G. Gadamer define como o do surgimento de uma
consciência histórica.15 De fato, a despeito de uma ou outra antecipação, até
meados do século XVIII – ou, para colocar em outros termos, até o Declínio e queda
do império romano de Edward Gibbon (1776) – são três correntes distintas às quais
pode-se atribuir o caráter de prática historiográfica.
Em primeiro lugar, há a tradição criada na Antigüidade clássica, revitalizada
pelo Renascimento, da historia magistra vitae, a história mestra da vida, ciceroniana.
Nela, o que importa não é a representação de um processo real, como de fato
ocorreu, mas, sim, a organização dos episódios de tal modo que deles se possa
extrair uma moral, um ensinamento para a vida, seja a particular de um indivíduo,
seja a pública de um governante. Ilustra-a perfeitamente uma anedota registrada por
Lefebvre.16 No início do século XVIII, o abbé René Aubert de Vertot (1655-1735),
autor de numerosas obras – dentre as quais se inclui uma narrativa da Restauração
portuguesa de 1640 – preparava uma história do cerco de Rodes ou de Malta pelos
turcos. Um amigo prestativo foi levar-lhe uma referência que julgava inédita sobre o
tema, mas acabou surpreendido pela reação do eclesiástico: “O meu cerco está
feito!” Essa atitude demonstra que, para ele, o importante era a elaboração literária,
que lhe permitia fazer, do cerco de Rodes, o seu cerco.
Em segundo lugar, embora também presente de maneira um tanto subliminar
nos autores antigos e medievais, a partir de Maquiavel, passando pelos teóricos da
Segunda Escolástica, por Grotius, Hobbes, Puffendorf, Montesquieu, até Adam
Smith, Rousseau e os demais representantes da Ilustração, desenvolveu-se uma
segunda corrente, de reflexão cada vez mais secularizada sobre a vida dos homens
em sociedade, para a qual muitos dos argumentos eram históricos, embora estes
não fossem deduzidos de uma pesquisa empírica e, sim, de um gigantesco esforço
de racionalização. A construção de um passado não como foi na realidade, mas
como a razão exigia que devesse ter sido. Por conseguinte, um trabalho de
teorização sobre a idéia de sociedade que, ao se acumular, colocava à disposição
dos pósteros não propriamente uma história, mas sobretudo uma série de
pressupostos, de esquemas mentais, para interpretar as ações dos homens e dos
povos.

14
Apud Madelénat, La biographie..., p. 74.
15
O problema da consciência histórica. Trad. de Paulo C. D. Estrada. Rio de Janeiro, Fundação
Getúlio Vargas, 1998. Ver ainda Arnaldo Momigliano. Problèmes d’historiographie ancienne et
moderne. Trad. de A. Tachet. Paris, Gallimard, 1983; Georges Lefebvre. La naissance de
l’historiographie moderne. Paris, Flammarion, 1971; e Denys Hay. Annalists and Historians: Western
Historiography from the Eighth to the Eighteenth Centuries. London, Methuen, 1977.
16
Lefebvre, La naissance..., p. 110.
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Finalmente, em terceiro, as disputas doutrinais das Reformas, da protestante
como da católica, deslancharam um frenético movimento de investigação empírica
em torno das raízes do cristianismo e das bases da doutrina e do percurso da Igreja.
Ao mesmo tempo, o humanismo renascentista, ao valorizar a Antigüidade, passou a
exigir um conhecimento mais detalhado e aprofundado, não só do latim e do grego,
como também das instituições e dos episódios da história greco-romana. Se o
impulso religioso levou aos extraordinários trabalhos de erudição da geração de
Mabillon e de Bolland, a curiosidade dos humanistas resultou nos gabinetes de
antigüidades e em referências muito mais precisas sobre o passado. Sobre esse
aspecto, Anthony Grafton observa que a animada conversação durante um jantar
nos famosos jardins do erudito romano seiscentista Angelo Colocci subitamente
estancou-se, quando os convivas se deram conta de que não sabiam o tamanho
exato da stade, a unidade constituída de mil pés, com que os romanos mediam o
mundo. Afinal, qual era o tamanho do pé romano? 17
De uma certa forma, foi Gibbon quem soube integrar essas três tradições
diversas numa prática historiográfica única, estabelecendo o modelo inicial da
historiografia contemporânea, combinando o grande estilista da prosa inglesa, que
ele era, com o gosto pela erudição, que adquirira de Muratori, e com uma reflexão
de natureza filosófica, inspirada em Montesquieu e nos amigos enciclopedistas, que
relacionava a queda de Roma aos efeitos da difusão do cristianismo. Entretanto, a
fama pelo feito acabou cabendo a Leopold von Ranke, porque, escrevendo após a
Revolução Francesa, escorou suas obras no quadro de uma Europa dividida em
estados nacionais, situação inimaginável para Gibbon meio século antes.
Na realidade, foram os efeitos da concepção do poder secularizado, que 1789
consolidou, os responsáveis pela acolhida e pela promoção do modelo
historiográfico que Gibbon e Ranke definiram. Modelo baseado na investigação
empírica de documentos, interpretados à luz de uma reflexão filosófica racional
sobre os homens em sociedade fundada em uma longa e sólida tradição e, além
disso, apresentado sob a forma de uma narrativa ao mesmo tempo elegante,
dramática e compreensível para as camadas cada vez mais largas da população
políticamente ativa que se alfabetizara. População, por isso, capaz de introjetar uma
consciência histórica que concebia o passado como o enredo de um contínuo
progresso em direção ao presente, que esse modelo apresentava com os foros de
uma ciência, a fim de apagar as diferenças entre os indivíduos e grupos, de modo a
ressaltar a unidade inquestionável da nação, que vinha substituir, no imaginário
político, a fidelidade ao monarca do Antigo Regime.
A partir desse pecado original, a historiografia contemporânea cresceu à
sombra do poder, assegurando, em troca de seus serviços, rapidamente difundidos
pela escola, a institucionalização de suas atividades, por meio da criação não só de
postos nas universidades e academias, mas também de mecanismos de
consagração e difusão para os seus praticantes. Na dinâmica do campo intelectual,
que assim se constituiu à maneira de Bourdieu, cada geração buscou a originalidade
que lhe permitia chegar às posições de destaque, mas nenhuma delas pôde abrir
mão nem do ideal da história como uma ciência, capaz de estabelecer uma verdade,
nem do modelo historiográfico definido por Gibbon e Ranke, sob o risco de fazer
desmoronar todo o edificio. Dessa lógica cartesiana, como mostrou Gadamer, nem
mesmo Dilthey conseguiu escapar. No entanto, os problemas e as exigências se
acumularam.

Remaking the Renaissance. New York Review of Books. New York, 46(4):34-38, March 4, 1999. p.
17

34 (uma resenha de Ingrid Rowland. The Culture of the High Renaissance: Ancients and Moderns in
Sixteenth-Century Rome).
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No fim do século XIX, eram tantos esses problemas que a história
institucionalizada se viu encurralada em disputas acadêmicas, movidas seja por
praticantes mais novos, seja principalmente por vizinhos epistemológicos, como
sociólogos, economistas, geógrafos, antropólogos, linguístas e psicólogos, dotados
de uma concepção mais rigorosa de ciência, como, ontem, aqui, apontou Lúcia
Guimarães a propósito de François Simiand. Ameaçada de morte, a história reagiu
como pôde, ou seja, buscando alianças com os inimigos, dos quais passou a
importar problemáticas, abordagens e objetos. Nasceu, assim, a tendência que se
iria cristalizar e celebrizar, a partir de 1929, com os Annales de Febvre e Bloch, de
aproximação da história com as ciências sociais. Não se rompia o paradigma
rankeano, mas ele sofria uma inflexão. O fundamental, agora, deixava de ser o
tratamento empírico das fontes documentais, que fizera a fortuna da disciplina no
século anterior, substituído pela exigência da teoria, adaptada a partir de modelos
econômicos e sociológicos, relegando-se também a um plano subconsciente os
aspectos artísticos da elaboração dos textos, apesar da verve literária de um Febvre
ou de um Braudel. Preocupação teórica que continuou justificando a pretensão à
ciência da disciplina e que ainda abriu, na conjuntura do Front Populaire, as portas
para o diálogo com o marxismo, até então mantido à margem da academia.
Esse modelo renovado alastrou-se pelo mundo e consolidou o lugar de
destaque ocupado pela história no mundo acadêmico. O sucesso, porém, não veio
sem custos. A crescente especialização das investigações, que o modelo de ciência
implicava, a despeito das ambições braudelianas de fazer da história uma síntese
das ciências humanas, resultou numa crescente fragmentação da disciplina e em
pesquisas cada vez mais formalizadas, vazadas numa linguagem exotérica, com o
recurso aos procedimentos estatísticos da história quantitativa, que tendiam a
transformar o campo historiográfico numa dimensão diacrônica da economia, da
sociologia, da demografia e assim por diante. Essa tendência alienou os não-
especialistas, ou seja, o público culto que recorria à história para situar-se no mundo
e que tinha constituído não só a razão de ser da produção desse tipo de
conhecimento no século XIX, como também a principal justificativa para acolher a
disciplina à sombra do poder, enquanto dispensador de verbas e de posições. Para
esse público leigo, passaram a restar os trabalhos dos historiadores de segunda
categoria, situados nas margens das posições de prestígio e inspirados, em geral,
por alguma versão ideológica simplista de direita ou de esquerda (de Gaxote a
Huberman); e também as biografias, geradas por autores na realidade mais
próximos da literatura, como Strachey, Zweig, Ludwig, Maurois e seus seguidores.
Ao final da década de 1970, essa situação foi percebida por alguns expoentes
e jovens, de maneira consciente ou não, enquanto um risco para a existência da
disciplina. Por volta de 1985, Bartolomé Benassar, autor de uma daquelas
gigantescas teses regionais francesas sobre Valladolid, altamente especializada,
não conseguia mais esconder, numa palestra na UFF, a inveja que sentira quando
viu o Montaillou de Le Roy Ladurie, em edição de bolso, sendo vendido na banca de
jornais de uma estação de trem. Essa percepção resultou em uma nova inflexão do
paradigma rankeano. Tratava-se de recuperar o poder da história de contar uma
história, resgatando os aspectos literários da prática historiográfica, que a
preocupação teórica de quase cem anos tinha eclipsado. Tal retorno à narrativa
implicava ainda em dois corolários. Primeiro, o indivíduo, até então
predominantemente um joguete nas mãos de vastas forças impessoais ou então um
simples elo nas cadeias de amplas estruturas meta-humanas, ressuscitava da morte
a que fora condenado e resgatava sua dignidade de objeto, com Ginzburg, Natalie
Davis, Darnton e outros. Segundo, o reconhecimento da dimensão literária da
prática historiográfica colocava em cheque a pretensão de convertê-la em ciência,
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fazendo valorizar, na bolsa das discussões acadêmicas sobre o estatuto
epistemológico da história, as ações do velho historismo de fins do século XIX e
inícios do XX – de Dilthey a Aron, Croce e Collingwood – agora ampliadas pelas
óticas de Heidegger, Gadamer, Foucault ou Ricoeur.
A nova inflexão, porém, abriu o flanco da história a um perigo inesperado.
Assim como, no final do século XIX, a disciplina se vira ameaçada pela maior
formalização das ciências sociais nascentes, ao tirar do armário a dimensão
narrativa de sua prática, ela se expôs agora às investidas dos campos ainda menos
formalizados do que ela – em particular, o dos estudos literários – inchados de inveja
com as benesses que sua pretensa condição de ciência lhe tinha assegurado nas
sempre magras distribuições de recursos de pesquisa, que o Estado atribui aos
excluídos do hard core formado por aqueles setores cujos produtos vinculam-se
diretamente ao mercado. Com Hayden White e o linguistic turn, as fronteiras entre
história e literatura se desfazem, dando a idéia de que, enfim, superava-se o
paradigma rankeano.
O problema, nesse ambiente pós-moderno, é que o fim do paradigma
rankeano é também o fim da história – não naquele sentido altamente ideologizado e
academicamente precário de Fukuyama et caterva – mas, sim, na dissolução de
uma prática que responde pela consciência histórica de que largas parcelas da
humanidade passaram a estar dotadas desde fins do século XVIII. Apesar das
manipulações de que foi objeto por parte da historiografia ingênua do século XIX,
essa consciência histórica, cultivada pelos historiadores desde Gibbon, serviu de
fundamento para algumas das principais idéias que podem tornar o mundo uma
realidade menos injusta, como a de tolerância, a dos direitos do indivíduo, a da
diferença do outro e a da valorização e respeito por uma atitude crítica diante de
tudo.
Renegar, por conseguinte, o paradigma rankeano, apesar de todos os seus
problemas, significa recusar o precioso equilíbrio – ainda que ora tendendo para um
elemento, ora para outro – que uma disciplina, a história, alcançou entre
formulações explicativas abstratas (as teorias), elementos de prova corporificados
em objetos empíricos (as fontes) e um discurso capaz de discutir, para cada um e
para todos, a própria condição humana, ao fazer reviver outras experiências e outras
situações (aspecto literário), que obrigam a enxergar o outro como outro, que
desvendam os preconceitos embutidos em cada tradição, para exorcizá-los, como
diria Sérgio Buarque.
A essa altura, meus ouvintes hão de achar que esqueci do tema desta
conferência. Muito pelo contrário. É esta volta pela história e a epistemologia da
história que vai me permitir, espero!, situar a questão da biografia e do indivíduo em
relação à historiografia e, finalmente, concluir.
***
Sem dúvida, no afã de fazer-se uma ciência, a historiografia dominante de
boa parte do século XX deixou-se obcecar pela teoria e julgou que iria chegar ao
paraíso através dos procedimentos mais formalizados das ciências sociais, com a
eliminação do evento e do indivíduo de seu campo de observação. No entanto, esse
tipo de história de que estou falando – cuja genealogia é mais longa do que supõe a
nova história – move-se em direção contrária e mantém muito mais pontos de
contato com a literatura do que estamos em geral dispostos a reconhecer. Como
diriam René Wellek e Austin Warren, ambas, a história e a literatura, produzem
jardins imaginários povoados com sapos autênticos, ainda que a variedade dos
sapos não seja, provavelmente, a mesma nos dois casos. Isto porque o objeto delas
não são as generalidades abstratas, teóricas, produzidas pelas cabeças dos
praticantes das ciências duras, mas, sim, os particulares concretos, empíricos, em
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suas individualidades, tal como aparecem para qualquer mortal no dia-a-dia,
propostos pela linguagem.
Para emprestar densidade e sentido a esses particulares, para torná-los
significativos, o historiador, como o ficcionista, não pode senão procurar
contextualizá-los, situando-os em um certo ambiente e considerando os seus
movimentos nessa paisagem. Ao proceder assim, ele jamais dispõe de informações
suficientes para assegurar a reconstituição integral do ambiente, tal como ele foi, e
se vê na contingência de recorrer à sua imaginação, construída a partir da sua
própria experiência, de modo a transportar-se para a situação do outro – ainda que
deva tomar certos cuidados para não ferir a verossimilhança do que propõe. Ao
fazê-lo, ele não está recuperando um inalcançável passado, mas projetando naquele
mundo imaginário, que está trazendo à luz, os medos e esperanças de sua própria
época, do meio de onde proveio e de si mesmo. Por isso, o Antigo Regime de
Goubert, o Estado Absolutista do Anderson, a Ilustração de Peter Gay e o meu
próprio marquês de Rollebon. Por isso, o dito de Febvre, lembrado ontem por Lúcia
Guimarães, de que a história é filha de seu tempo.
Nesse processo, o que distingue a história da literatura, ou, se quisermos, a
variedade dos sapos que povoam os jardins imaginários dessas duas criações
humanas, são os instrumentos a que historiadores e literatos recorrem para
assegurar aquela verossimilhança de que falei. Estes, os literatos, não têm limites
para sua fantasia e podem, até mesmo, imaginar situações que nunca existiram,
como na fição científica. Regem-se, na realidade, por uma espécie de lógica formal,
sem compromisso com o real, em que é a coerência das asserções desenvolvidas a
partir dos postulados estabelecidos que importa. Veja-se o caso de Kafka, ao fazer
Gregor Samsa acordar uma manhã transformado numa barata. Já os historiadores
têm a obrigação de reportar-se a uma realidade – mesmo que não saibam e não
possam saber qual seja – através de um procedimento referencial, próximo daquele
utilizado pelas ciências empíricas. E são as fontes, ou seja, os pedaços do passado
que ainda estão presentes no presente, que permitem essa operação. Em si, as
fontes não garantem a realidade do passado, mas impedem que se faça do passado
qualquer passado. Nesse jogo entre imaginação e realismo reside a originalidade da
história, como evidencia aquela extraordinária “Nota da Autora” que Marguerite
Yourcenar coloca ao final de A obra em negro.
Surpreendentemente, por outro lado, essa recriação pessoal não deixa de
tocar alguns outros, contemporâneos ou pósteros, que passam a partilhar, em
alguma medida, a idéia daquele Antigo Regime ou daquele marquês de Rollebon.
Criam-se, assim, histórias, talhadas de acordo com diferentes moldes, próprias para
diferentes experiências. E, em cada uma daquelas que assentam bem no corpo de
minha mente, tenho uma roupa para o mundo que me cerca e me oprime. Tenho
também uma ponta do diálogo a travar com meus contemporâneos, se os
preconceitos e os antolhos – os meus e os deles – não impedirem a conversa. Por
isso, a cada experiência de compreender alguém numa situação diferente, exercita-
se essa habilidade de dialogar e amplia-se a possibilidade da convivência humana.
Nessa perspectiva, não é maior o poder da história, nem da literatura.
A biografia, por esse ângulo, não passa de um caso particular da história ou
da literatura. De uma certa maneira, toda história e toda literatura é – alargando-se
bastante o sentido da palavra – uma biografia, no sentido de que constituem
esforços para recuperar o que há de individual, de particular, no outro: num
indivíduo, sim, mas também num evento, numa situação, num período. Períodos,
situações, eventos e indivíduos excepcionais? Não necessariamente. Apesar de
suas inclinações e aspirações divergentes, a historiografia estrutural do século XX
nos habituou a relativizar os grandes acontecimentos, a considerar as periodizações
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como decorrentes da abordagem adotada e a valorizar, como na demografia
histórica, o indivíduo anônimo e aparentemente sem expressão.
Certa vez, numa aula à qual Francisco Martinho pode ter estado presente,
comparei a novidade dos Annales ao movimento da câmara num filme de Fred
Astaire (Top Hat ou O picolino), deslocando-se do protagonista, na frente do palco,
para a multidão do corpo de dançarinos, todos também de casaca e cartola, quase
tão bons como ele, que compunham o fundo da cena. Recentemente, Alain Corbin
lançou O mundo reencontrado de Louis-François Pinagot, um livro com mais de
trezentas páginas, ao qual acrescentou um subtítulo, nos traços de um
desconhecido, 1798-1876, desconhecido este que ele chama de “um Jean Valjean
que jamais roubou um pão.” 18 Trata-se de um fabricante de tamancos do interior
francês durante a maior parte do século XIX, que não sabia ler nem escrever e que
não teve qualquer participação destacada na vida de seu país. Do Pinagot de Corbin
ao São Luís de Le Goff, a distância cronológica e social é enorme, mas ambos
tomam suas precauções. O primeiro fala de “reconstruir uma existência”, mas não se
propõe propriamente a fazer uma biografia de Pinagot e, sim, a situar o mundo de
Pinagot.19 O medievalista famoso quer fazer, como explica na “Introdução”, uma
biografia do rei-santo (mas a palavra não aparece na folha de rosto) e não um
estudo do “reino de São Luís”, nem de “São Luís e seu reino”, nem de “São Luís e a
Cristandade”, nem de “São Luís e sua época”. Contudo, não deixa de classificar seu
trabalho, mais adiante, como uma “biografia histórica”.20
O emprego do adjetivo, como o mundo de Pinagot, deixam entrever um
problema. Não são muitas as biografias assim designadas escritas por historiadores
de ofício, reconhecidos como tais. Mesmo no Brasil, quais são os membros da
academia que se tornaram conhecidos por essa especialidade, como ficou, há
tempos, Otávio Tarquínio de Souza? Quais atualmente escrevem biografias? Da
minha parte, só conheço o Jorge Ferreira, que prepara uma biografia do Jango,
embora não faltem outros exemplos de uma preocupação biográfica. 21 A resposta a
esse desencontro, me parece, decorre das trajetórias divergentes que a biografia e a
história percorreram no último século. Radicada no particular e no excepcional, a
primeira, diante das tendências teóricas e globalizantes da segunda, tendeu a
tornar-se o domínio dos literatos. Por mais que, hoje, a história tenha se movido em
direção contrária e tenha voltado a valorizar o que os biógrafos buscavam para
satisfação de um público bastante amplo, permanece o receio, entre os
historiadores, de desvalorizar a sua inserção profissional, caso ousassem colocar,
como subtítulo de seu livro, uma biografia. Sob esse aspecto, o problema não é
epistemológico, mas sociológico ou cultural.
Na realidade, para concluir, acredito que essa discussão seja irrelevante. O
que importa não é a biografia. O que importa, quando um biógrafo de profissão
como Jean Lacouture escreve uma biografia coletiva da qualidade de Os jesuítas, é
compreender e valorizar a contribuição que a abordagem do indivíduo e do particular
pode propiciar, seja na história, seja na biografia, seja na prosopografia, que Tania
Bessone abordará amanhã. Como, de um certo modo, quis sugerir com a narrativa
de minhas leituras no início. Isto porque, como observa Steve Weinberg, prêmio
Nobel de física, não “estudamos as partículas elementares porque elas sejam
18
Alain Corbin. Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot: sur les traces d’un inconnu, 1798-1876.
Paris, Flammarion, 1998. p. 9.
19
Corbin, Le monde..., p. 8.
20
Jacques Le Goff. Saint Louis. Paris, Gallimard, 1996. p. 13 e 14.
21
Vejam-se Keila Grinberg. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de
Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002 e Sandra Lauderdale Graham.
Caetana Says No: Women’s Stories from a Brazilian Slave Society. Cambridge, University Press,
2002.
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intrinsicamente interessantes, como gente. Elas não são – se você tiver visto um
elétron, terá visto todos”. 22 Frase que poderíamos reescrever da seguinte forma:
ninguém que tiver conhecido um ser humano poderá dizer que conheceu todos os
outros, porque cada um deles é instrinsicamente interessante. Para nossa felicidade,
de historiadores como de biógrafos.

The Revolution that Didn’t Happen. The New York Review of Books. New York, 45(15):48-52,
22

October 8, 1998. p. 50, (um artigo sobre o livro famoso de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções
científicas).
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