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Madelénat, La biographie..., p. 20.
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Rio de Janeiro, INL, 1963.
5
Madelénat, La biographie..., p. 34.
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espírito, era “o mais perfeito que se pod[ia] conceber”, tornando-a “mais uma Vida do
que qualquer obra jamais surgida.”6
Nas primeiras décadas do século XIX, uma crescente onda biográfica seguiu
na esteira do sucesso de Boswell, propelida pelo impulso que personagens
extraordinárias no cenário político e cultural europeu tinham concedido: Danton,
Robespierre, Bonaparte, Wellington, Byron e outros. Em 1846, aparecia em Paris até
mesmo uma História de Napoleão redigida por um mulato baiano, Caetano Lopes de
Moura, que servira de médico nos exércitos do imperador e que se fixara como
tradutor na capital francesa, como revela a tese de titular da Lúcia Bastos. 7
Entretanto, o movimento não deixou de regredir em seguida, à medida que se
consolidava uma prática historiográfica profissional e que tendia a predominar uma
concepção cientificista e positivista da natureza e da sociedade. Em 1849, depois
que os impasses da revolução tinham desfeito as esperanças românticas, Saint-
Beuve escreveu: “Já assumi suficientemente a posição do advogado; assumamos
agora a do juiz”.8
Somente nos anos ao redor da Primeira Grande Guerra a biografia iria
recuperar o prestígio e a irradiação anterior, com a irrupção de uma enorme
quantidade de obras, que, nos Estados Unidos, alcançaram a cifra de 4.800 entre
1916 e 1930; ou seja, uma média de 320 por ano. 9 Foi então que autores como
Litton Strachey, Emil Ludwig, Stefan Zweig e André Maurois estabeleceram o
paradigma contemporâneo da biografia, recorrendo aos insights propiciados pela
literatura, pelo historismo alemão, pela revalorização da intuição por H. Bergson e
pelas teorias psicanalíticas de S. Freud, que resultaram numa imagem mais
complexa do indivíduo, fracionado em personalidades diversas, nem sempre
congruentes nem conciliáveis.10 Ludwig, por exemplo, tinha como ideal “alcançar a
semelhança psicológica de um romance, guardando ao mesmo tempo a precisão
histórica de um diário íntimo”.11
Dessa forma, a biografia contemporânea aparenta-se, diz Madelénat,
“estreitamente ao romance moderno, com seus jogos em relação aos pontos de
vista e aos tempos, seus mergulhos na interioridade, sua disposição convergente
das intrigas secundárias, seus leitmotive; ela se inspira igualmente da poesia, do
jornalismo e do cinema (com sua predileção pelo espetacular e pelo sensacional). O
biógrafo [...], artista completo, encenador de uma existência, acelera, atrasa,
manipula o ‘andamento’.”12 Enquanto isso, até no campo mais acadêmico, Sartre e
Bourdieu passaram a disputar a interpretação de Flaubert, enquanto Le Goff
começava a preparar o seu São Luís.13 Não é de admirar, assim, que Pierre Chaunu,
campeão da história serial, voltada para o coletivo, saudasse entusiasmado, em
1982, uma nova leva de biografias com elevadas tiragens. Afinal, por que não
encarar essas obras, destinadas a “reencontrar a palpitação do ser, o destino
individual e o drama da consciência”, como uma espécie de compensação à tradição
dos Annales, funcionando ambas as tendências como o yin e o yang alternados do
6
Apud Madelénat, La biographie..., p. 56.
7
As representações napoleônicas em Portugal: imaginário e política (c. 1808-1810), defendida na
UERJ em abril de 2002 e que se encontra em curso de preparação para publicação.
8
Apud Madelénat, La biographie..., p. 62.
9
J. A. Garraty, apud Madelénat, La biographie..., p. 66.
10
A Vida de Schleiermacher de W. Dilthey é de 1870; o Ensaio sobre os dados imediatos da
consciência de Bergson, de 1889; e a Interpretação dos sonhos, de 1900.
11
Apud Madelénat, La biographie..., p. 67.
12
Madelénat, La biographie..., p. 65.
13
L’idiot de la famille, do primeiro, aparece em 1971; Les règles de l’art, do segundo, em 1992; o de Le
Goff surgiu em 1996, mas começou a ser redigido 15 anos antes, ou seja, por volta de 1981.
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pensamento chinês, indicando o holismo e o individualismo presentes em todas as
sociedades?14
Aí está o ponto, que corresponde à segunda questão anunciada
anteriormente: quais as relações que a biografia mantém com a história? Sob esse
aspecto, quem quiser aproveitar o Madelénat ainda encontrará nele, certamente,
muitos outros subsídios interessantes, que não pude utilizar, inclusive uma
discussão sobre a dimensão epistemológica e outra sobre a dimensão literária da
biografia, além de uma esplêndida bibliografia, que registra nada menos do que
doze bibliografias sobre biografia! No entanto, vou tomar um rumo algo diferente.
***
Há alguns anos, tento passar para meus alunos uma concepção da história –
que fui buscar em Arnaldo Momigliano, Georges Lefebvre e outros – na qual a
disciplina, em sua vertente atual, surgiu da combinação de três tradições diferentes
num momento-chave, que H.-G. Gadamer define como o do surgimento de uma
consciência histórica.15 De fato, a despeito de uma ou outra antecipação, até
meados do século XVIII – ou, para colocar em outros termos, até o Declínio e queda
do império romano de Edward Gibbon (1776) – são três correntes distintas às quais
pode-se atribuir o caráter de prática historiográfica.
Em primeiro lugar, há a tradição criada na Antigüidade clássica, revitalizada
pelo Renascimento, da historia magistra vitae, a história mestra da vida, ciceroniana.
Nela, o que importa não é a representação de um processo real, como de fato
ocorreu, mas, sim, a organização dos episódios de tal modo que deles se possa
extrair uma moral, um ensinamento para a vida, seja a particular de um indivíduo,
seja a pública de um governante. Ilustra-a perfeitamente uma anedota registrada por
Lefebvre.16 No início do século XVIII, o abbé René Aubert de Vertot (1655-1735),
autor de numerosas obras – dentre as quais se inclui uma narrativa da Restauração
portuguesa de 1640 – preparava uma história do cerco de Rodes ou de Malta pelos
turcos. Um amigo prestativo foi levar-lhe uma referência que julgava inédita sobre o
tema, mas acabou surpreendido pela reação do eclesiástico: “O meu cerco está
feito!” Essa atitude demonstra que, para ele, o importante era a elaboração literária,
que lhe permitia fazer, do cerco de Rodes, o seu cerco.
Em segundo lugar, embora também presente de maneira um tanto subliminar
nos autores antigos e medievais, a partir de Maquiavel, passando pelos teóricos da
Segunda Escolástica, por Grotius, Hobbes, Puffendorf, Montesquieu, até Adam
Smith, Rousseau e os demais representantes da Ilustração, desenvolveu-se uma
segunda corrente, de reflexão cada vez mais secularizada sobre a vida dos homens
em sociedade, para a qual muitos dos argumentos eram históricos, embora estes
não fossem deduzidos de uma pesquisa empírica e, sim, de um gigantesco esforço
de racionalização. A construção de um passado não como foi na realidade, mas
como a razão exigia que devesse ter sido. Por conseguinte, um trabalho de
teorização sobre a idéia de sociedade que, ao se acumular, colocava à disposição
dos pósteros não propriamente uma história, mas sobretudo uma série de
pressupostos, de esquemas mentais, para interpretar as ações dos homens e dos
povos.
14
Apud Madelénat, La biographie..., p. 74.
15
O problema da consciência histórica. Trad. de Paulo C. D. Estrada. Rio de Janeiro, Fundação
Getúlio Vargas, 1998. Ver ainda Arnaldo Momigliano. Problèmes d’historiographie ancienne et
moderne. Trad. de A. Tachet. Paris, Gallimard, 1983; Georges Lefebvre. La naissance de
l’historiographie moderne. Paris, Flammarion, 1971; e Denys Hay. Annalists and Historians: Western
Historiography from the Eighth to the Eighteenth Centuries. London, Methuen, 1977.
16
Lefebvre, La naissance..., p. 110.
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Finalmente, em terceiro, as disputas doutrinais das Reformas, da protestante
como da católica, deslancharam um frenético movimento de investigação empírica
em torno das raízes do cristianismo e das bases da doutrina e do percurso da Igreja.
Ao mesmo tempo, o humanismo renascentista, ao valorizar a Antigüidade, passou a
exigir um conhecimento mais detalhado e aprofundado, não só do latim e do grego,
como também das instituições e dos episódios da história greco-romana. Se o
impulso religioso levou aos extraordinários trabalhos de erudição da geração de
Mabillon e de Bolland, a curiosidade dos humanistas resultou nos gabinetes de
antigüidades e em referências muito mais precisas sobre o passado. Sobre esse
aspecto, Anthony Grafton observa que a animada conversação durante um jantar
nos famosos jardins do erudito romano seiscentista Angelo Colocci subitamente
estancou-se, quando os convivas se deram conta de que não sabiam o tamanho
exato da stade, a unidade constituída de mil pés, com que os romanos mediam o
mundo. Afinal, qual era o tamanho do pé romano? 17
De uma certa forma, foi Gibbon quem soube integrar essas três tradições
diversas numa prática historiográfica única, estabelecendo o modelo inicial da
historiografia contemporânea, combinando o grande estilista da prosa inglesa, que
ele era, com o gosto pela erudição, que adquirira de Muratori, e com uma reflexão
de natureza filosófica, inspirada em Montesquieu e nos amigos enciclopedistas, que
relacionava a queda de Roma aos efeitos da difusão do cristianismo. Entretanto, a
fama pelo feito acabou cabendo a Leopold von Ranke, porque, escrevendo após a
Revolução Francesa, escorou suas obras no quadro de uma Europa dividida em
estados nacionais, situação inimaginável para Gibbon meio século antes.
Na realidade, foram os efeitos da concepção do poder secularizado, que 1789
consolidou, os responsáveis pela acolhida e pela promoção do modelo
historiográfico que Gibbon e Ranke definiram. Modelo baseado na investigação
empírica de documentos, interpretados à luz de uma reflexão filosófica racional
sobre os homens em sociedade fundada em uma longa e sólida tradição e, além
disso, apresentado sob a forma de uma narrativa ao mesmo tempo elegante,
dramática e compreensível para as camadas cada vez mais largas da população
políticamente ativa que se alfabetizara. População, por isso, capaz de introjetar uma
consciência histórica que concebia o passado como o enredo de um contínuo
progresso em direção ao presente, que esse modelo apresentava com os foros de
uma ciência, a fim de apagar as diferenças entre os indivíduos e grupos, de modo a
ressaltar a unidade inquestionável da nação, que vinha substituir, no imaginário
político, a fidelidade ao monarca do Antigo Regime.
A partir desse pecado original, a historiografia contemporânea cresceu à
sombra do poder, assegurando, em troca de seus serviços, rapidamente difundidos
pela escola, a institucionalização de suas atividades, por meio da criação não só de
postos nas universidades e academias, mas também de mecanismos de
consagração e difusão para os seus praticantes. Na dinâmica do campo intelectual,
que assim se constituiu à maneira de Bourdieu, cada geração buscou a originalidade
que lhe permitia chegar às posições de destaque, mas nenhuma delas pôde abrir
mão nem do ideal da história como uma ciência, capaz de estabelecer uma verdade,
nem do modelo historiográfico definido por Gibbon e Ranke, sob o risco de fazer
desmoronar todo o edificio. Dessa lógica cartesiana, como mostrou Gadamer, nem
mesmo Dilthey conseguiu escapar. No entanto, os problemas e as exigências se
acumularam.
Remaking the Renaissance. New York Review of Books. New York, 46(4):34-38, March 4, 1999. p.
17
34 (uma resenha de Ingrid Rowland. The Culture of the High Renaissance: Ancients and Moderns in
Sixteenth-Century Rome).
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No fim do século XIX, eram tantos esses problemas que a história
institucionalizada se viu encurralada em disputas acadêmicas, movidas seja por
praticantes mais novos, seja principalmente por vizinhos epistemológicos, como
sociólogos, economistas, geógrafos, antropólogos, linguístas e psicólogos, dotados
de uma concepção mais rigorosa de ciência, como, ontem, aqui, apontou Lúcia
Guimarães a propósito de François Simiand. Ameaçada de morte, a história reagiu
como pôde, ou seja, buscando alianças com os inimigos, dos quais passou a
importar problemáticas, abordagens e objetos. Nasceu, assim, a tendência que se
iria cristalizar e celebrizar, a partir de 1929, com os Annales de Febvre e Bloch, de
aproximação da história com as ciências sociais. Não se rompia o paradigma
rankeano, mas ele sofria uma inflexão. O fundamental, agora, deixava de ser o
tratamento empírico das fontes documentais, que fizera a fortuna da disciplina no
século anterior, substituído pela exigência da teoria, adaptada a partir de modelos
econômicos e sociológicos, relegando-se também a um plano subconsciente os
aspectos artísticos da elaboração dos textos, apesar da verve literária de um Febvre
ou de um Braudel. Preocupação teórica que continuou justificando a pretensão à
ciência da disciplina e que ainda abriu, na conjuntura do Front Populaire, as portas
para o diálogo com o marxismo, até então mantido à margem da academia.
Esse modelo renovado alastrou-se pelo mundo e consolidou o lugar de
destaque ocupado pela história no mundo acadêmico. O sucesso, porém, não veio
sem custos. A crescente especialização das investigações, que o modelo de ciência
implicava, a despeito das ambições braudelianas de fazer da história uma síntese
das ciências humanas, resultou numa crescente fragmentação da disciplina e em
pesquisas cada vez mais formalizadas, vazadas numa linguagem exotérica, com o
recurso aos procedimentos estatísticos da história quantitativa, que tendiam a
transformar o campo historiográfico numa dimensão diacrônica da economia, da
sociologia, da demografia e assim por diante. Essa tendência alienou os não-
especialistas, ou seja, o público culto que recorria à história para situar-se no mundo
e que tinha constituído não só a razão de ser da produção desse tipo de
conhecimento no século XIX, como também a principal justificativa para acolher a
disciplina à sombra do poder, enquanto dispensador de verbas e de posições. Para
esse público leigo, passaram a restar os trabalhos dos historiadores de segunda
categoria, situados nas margens das posições de prestígio e inspirados, em geral,
por alguma versão ideológica simplista de direita ou de esquerda (de Gaxote a
Huberman); e também as biografias, geradas por autores na realidade mais
próximos da literatura, como Strachey, Zweig, Ludwig, Maurois e seus seguidores.
Ao final da década de 1970, essa situação foi percebida por alguns expoentes
e jovens, de maneira consciente ou não, enquanto um risco para a existência da
disciplina. Por volta de 1985, Bartolomé Benassar, autor de uma daquelas
gigantescas teses regionais francesas sobre Valladolid, altamente especializada,
não conseguia mais esconder, numa palestra na UFF, a inveja que sentira quando
viu o Montaillou de Le Roy Ladurie, em edição de bolso, sendo vendido na banca de
jornais de uma estação de trem. Essa percepção resultou em uma nova inflexão do
paradigma rankeano. Tratava-se de recuperar o poder da história de contar uma
história, resgatando os aspectos literários da prática historiográfica, que a
preocupação teórica de quase cem anos tinha eclipsado. Tal retorno à narrativa
implicava ainda em dois corolários. Primeiro, o indivíduo, até então
predominantemente um joguete nas mãos de vastas forças impessoais ou então um
simples elo nas cadeias de amplas estruturas meta-humanas, ressuscitava da morte
a que fora condenado e resgatava sua dignidade de objeto, com Ginzburg, Natalie
Davis, Darnton e outros. Segundo, o reconhecimento da dimensão literária da
prática historiográfica colocava em cheque a pretensão de convertê-la em ciência,
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fazendo valorizar, na bolsa das discussões acadêmicas sobre o estatuto
epistemológico da história, as ações do velho historismo de fins do século XIX e
inícios do XX – de Dilthey a Aron, Croce e Collingwood – agora ampliadas pelas
óticas de Heidegger, Gadamer, Foucault ou Ricoeur.
A nova inflexão, porém, abriu o flanco da história a um perigo inesperado.
Assim como, no final do século XIX, a disciplina se vira ameaçada pela maior
formalização das ciências sociais nascentes, ao tirar do armário a dimensão
narrativa de sua prática, ela se expôs agora às investidas dos campos ainda menos
formalizados do que ela – em particular, o dos estudos literários – inchados de inveja
com as benesses que sua pretensa condição de ciência lhe tinha assegurado nas
sempre magras distribuições de recursos de pesquisa, que o Estado atribui aos
excluídos do hard core formado por aqueles setores cujos produtos vinculam-se
diretamente ao mercado. Com Hayden White e o linguistic turn, as fronteiras entre
história e literatura se desfazem, dando a idéia de que, enfim, superava-se o
paradigma rankeano.
O problema, nesse ambiente pós-moderno, é que o fim do paradigma
rankeano é também o fim da história – não naquele sentido altamente ideologizado e
academicamente precário de Fukuyama et caterva – mas, sim, na dissolução de
uma prática que responde pela consciência histórica de que largas parcelas da
humanidade passaram a estar dotadas desde fins do século XVIII. Apesar das
manipulações de que foi objeto por parte da historiografia ingênua do século XIX,
essa consciência histórica, cultivada pelos historiadores desde Gibbon, serviu de
fundamento para algumas das principais idéias que podem tornar o mundo uma
realidade menos injusta, como a de tolerância, a dos direitos do indivíduo, a da
diferença do outro e a da valorização e respeito por uma atitude crítica diante de
tudo.
Renegar, por conseguinte, o paradigma rankeano, apesar de todos os seus
problemas, significa recusar o precioso equilíbrio – ainda que ora tendendo para um
elemento, ora para outro – que uma disciplina, a história, alcançou entre
formulações explicativas abstratas (as teorias), elementos de prova corporificados
em objetos empíricos (as fontes) e um discurso capaz de discutir, para cada um e
para todos, a própria condição humana, ao fazer reviver outras experiências e outras
situações (aspecto literário), que obrigam a enxergar o outro como outro, que
desvendam os preconceitos embutidos em cada tradição, para exorcizá-los, como
diria Sérgio Buarque.
A essa altura, meus ouvintes hão de achar que esqueci do tema desta
conferência. Muito pelo contrário. É esta volta pela história e a epistemologia da
história que vai me permitir, espero!, situar a questão da biografia e do indivíduo em
relação à historiografia e, finalmente, concluir.
***
Sem dúvida, no afã de fazer-se uma ciência, a historiografia dominante de
boa parte do século XX deixou-se obcecar pela teoria e julgou que iria chegar ao
paraíso através dos procedimentos mais formalizados das ciências sociais, com a
eliminação do evento e do indivíduo de seu campo de observação. No entanto, esse
tipo de história de que estou falando – cuja genealogia é mais longa do que supõe a
nova história – move-se em direção contrária e mantém muito mais pontos de
contato com a literatura do que estamos em geral dispostos a reconhecer. Como
diriam René Wellek e Austin Warren, ambas, a história e a literatura, produzem
jardins imaginários povoados com sapos autênticos, ainda que a variedade dos
sapos não seja, provavelmente, a mesma nos dois casos. Isto porque o objeto delas
não são as generalidades abstratas, teóricas, produzidas pelas cabeças dos
praticantes das ciências duras, mas, sim, os particulares concretos, empíricos, em
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suas individualidades, tal como aparecem para qualquer mortal no dia-a-dia,
propostos pela linguagem.
Para emprestar densidade e sentido a esses particulares, para torná-los
significativos, o historiador, como o ficcionista, não pode senão procurar
contextualizá-los, situando-os em um certo ambiente e considerando os seus
movimentos nessa paisagem. Ao proceder assim, ele jamais dispõe de informações
suficientes para assegurar a reconstituição integral do ambiente, tal como ele foi, e
se vê na contingência de recorrer à sua imaginação, construída a partir da sua
própria experiência, de modo a transportar-se para a situação do outro – ainda que
deva tomar certos cuidados para não ferir a verossimilhança do que propõe. Ao
fazê-lo, ele não está recuperando um inalcançável passado, mas projetando naquele
mundo imaginário, que está trazendo à luz, os medos e esperanças de sua própria
época, do meio de onde proveio e de si mesmo. Por isso, o Antigo Regime de
Goubert, o Estado Absolutista do Anderson, a Ilustração de Peter Gay e o meu
próprio marquês de Rollebon. Por isso, o dito de Febvre, lembrado ontem por Lúcia
Guimarães, de que a história é filha de seu tempo.
Nesse processo, o que distingue a história da literatura, ou, se quisermos, a
variedade dos sapos que povoam os jardins imaginários dessas duas criações
humanas, são os instrumentos a que historiadores e literatos recorrem para
assegurar aquela verossimilhança de que falei. Estes, os literatos, não têm limites
para sua fantasia e podem, até mesmo, imaginar situações que nunca existiram,
como na fição científica. Regem-se, na realidade, por uma espécie de lógica formal,
sem compromisso com o real, em que é a coerência das asserções desenvolvidas a
partir dos postulados estabelecidos que importa. Veja-se o caso de Kafka, ao fazer
Gregor Samsa acordar uma manhã transformado numa barata. Já os historiadores
têm a obrigação de reportar-se a uma realidade – mesmo que não saibam e não
possam saber qual seja – através de um procedimento referencial, próximo daquele
utilizado pelas ciências empíricas. E são as fontes, ou seja, os pedaços do passado
que ainda estão presentes no presente, que permitem essa operação. Em si, as
fontes não garantem a realidade do passado, mas impedem que se faça do passado
qualquer passado. Nesse jogo entre imaginação e realismo reside a originalidade da
história, como evidencia aquela extraordinária “Nota da Autora” que Marguerite
Yourcenar coloca ao final de A obra em negro.
Surpreendentemente, por outro lado, essa recriação pessoal não deixa de
tocar alguns outros, contemporâneos ou pósteros, que passam a partilhar, em
alguma medida, a idéia daquele Antigo Regime ou daquele marquês de Rollebon.
Criam-se, assim, histórias, talhadas de acordo com diferentes moldes, próprias para
diferentes experiências. E, em cada uma daquelas que assentam bem no corpo de
minha mente, tenho uma roupa para o mundo que me cerca e me oprime. Tenho
também uma ponta do diálogo a travar com meus contemporâneos, se os
preconceitos e os antolhos – os meus e os deles – não impedirem a conversa. Por
isso, a cada experiência de compreender alguém numa situação diferente, exercita-
se essa habilidade de dialogar e amplia-se a possibilidade da convivência humana.
Nessa perspectiva, não é maior o poder da história, nem da literatura.
A biografia, por esse ângulo, não passa de um caso particular da história ou
da literatura. De uma certa maneira, toda história e toda literatura é – alargando-se
bastante o sentido da palavra – uma biografia, no sentido de que constituem
esforços para recuperar o que há de individual, de particular, no outro: num
indivíduo, sim, mas também num evento, numa situação, num período. Períodos,
situações, eventos e indivíduos excepcionais? Não necessariamente. Apesar de
suas inclinações e aspirações divergentes, a historiografia estrutural do século XX
nos habituou a relativizar os grandes acontecimentos, a considerar as periodizações
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como decorrentes da abordagem adotada e a valorizar, como na demografia
histórica, o indivíduo anônimo e aparentemente sem expressão.
Certa vez, numa aula à qual Francisco Martinho pode ter estado presente,
comparei a novidade dos Annales ao movimento da câmara num filme de Fred
Astaire (Top Hat ou O picolino), deslocando-se do protagonista, na frente do palco,
para a multidão do corpo de dançarinos, todos também de casaca e cartola, quase
tão bons como ele, que compunham o fundo da cena. Recentemente, Alain Corbin
lançou O mundo reencontrado de Louis-François Pinagot, um livro com mais de
trezentas páginas, ao qual acrescentou um subtítulo, nos traços de um
desconhecido, 1798-1876, desconhecido este que ele chama de “um Jean Valjean
que jamais roubou um pão.” 18 Trata-se de um fabricante de tamancos do interior
francês durante a maior parte do século XIX, que não sabia ler nem escrever e que
não teve qualquer participação destacada na vida de seu país. Do Pinagot de Corbin
ao São Luís de Le Goff, a distância cronológica e social é enorme, mas ambos
tomam suas precauções. O primeiro fala de “reconstruir uma existência”, mas não se
propõe propriamente a fazer uma biografia de Pinagot e, sim, a situar o mundo de
Pinagot.19 O medievalista famoso quer fazer, como explica na “Introdução”, uma
biografia do rei-santo (mas a palavra não aparece na folha de rosto) e não um
estudo do “reino de São Luís”, nem de “São Luís e seu reino”, nem de “São Luís e a
Cristandade”, nem de “São Luís e sua época”. Contudo, não deixa de classificar seu
trabalho, mais adiante, como uma “biografia histórica”.20
O emprego do adjetivo, como o mundo de Pinagot, deixam entrever um
problema. Não são muitas as biografias assim designadas escritas por historiadores
de ofício, reconhecidos como tais. Mesmo no Brasil, quais são os membros da
academia que se tornaram conhecidos por essa especialidade, como ficou, há
tempos, Otávio Tarquínio de Souza? Quais atualmente escrevem biografias? Da
minha parte, só conheço o Jorge Ferreira, que prepara uma biografia do Jango,
embora não faltem outros exemplos de uma preocupação biográfica. 21 A resposta a
esse desencontro, me parece, decorre das trajetórias divergentes que a biografia e a
história percorreram no último século. Radicada no particular e no excepcional, a
primeira, diante das tendências teóricas e globalizantes da segunda, tendeu a
tornar-se o domínio dos literatos. Por mais que, hoje, a história tenha se movido em
direção contrária e tenha voltado a valorizar o que os biógrafos buscavam para
satisfação de um público bastante amplo, permanece o receio, entre os
historiadores, de desvalorizar a sua inserção profissional, caso ousassem colocar,
como subtítulo de seu livro, uma biografia. Sob esse aspecto, o problema não é
epistemológico, mas sociológico ou cultural.
Na realidade, para concluir, acredito que essa discussão seja irrelevante. O
que importa não é a biografia. O que importa, quando um biógrafo de profissão
como Jean Lacouture escreve uma biografia coletiva da qualidade de Os jesuítas, é
compreender e valorizar a contribuição que a abordagem do indivíduo e do particular
pode propiciar, seja na história, seja na biografia, seja na prosopografia, que Tania
Bessone abordará amanhã. Como, de um certo modo, quis sugerir com a narrativa
de minhas leituras no início. Isto porque, como observa Steve Weinberg, prêmio
Nobel de física, não “estudamos as partículas elementares porque elas sejam
18
Alain Corbin. Le monde retrouvé de Louis-François Pinagot: sur les traces d’un inconnu, 1798-1876.
Paris, Flammarion, 1998. p. 9.
19
Corbin, Le monde..., p. 8.
20
Jacques Le Goff. Saint Louis. Paris, Gallimard, 1996. p. 13 e 14.
21
Vejam-se Keila Grinberg. O fiador dos brasileiros: cidadania, escravidão e direito civil no tempo de
Antonio Pereira Rebouças. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002 e Sandra Lauderdale Graham.
Caetana Says No: Women’s Stories from a Brazilian Slave Society. Cambridge, University Press,
2002.
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intrinsicamente interessantes, como gente. Elas não são – se você tiver visto um
elétron, terá visto todos”. 22 Frase que poderíamos reescrever da seguinte forma:
ninguém que tiver conhecido um ser humano poderá dizer que conheceu todos os
outros, porque cada um deles é instrinsicamente interessante. Para nossa felicidade,
de historiadores como de biógrafos.
The Revolution that Didn’t Happen. The New York Review of Books. New York, 45(15):48-52,
22
October 8, 1998. p. 50, (um artigo sobre o livro famoso de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções
científicas).
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