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DOMINIQUE POULOT

Um história
do patrimônio
no Ocidente

L 11:40 tle
Título original: Une histoire du patrimoine en Occident, XVIIIe-XXIe' siècle.
Du monument aux valeurs
C) Presses Universitaires de France, 2006
C) Editora Estação Liberdade, 2009, para esta tradução SUMÁRIO
Preparação Huendel Viana
Revisão Jonathan Busato
Assistência editorial Leandro Rodrigues
Composição Johannes C. Bergmann/Estação Liberdade
Imagem de capa Musée d'Orsay. O Daniel Thierry/Photononstop.
Editores Angel Bojadsen e Edilberto Fernando Vem Introdução
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 9
Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, RJ
Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações 15
P894h
Poulot, Dominique, 1956- Uma partilha das obras de cultura 19
Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do
monumento aos valores / Dominique Poulot ; tradução Guilherme Uma encarnação da construção nacional 25
João de Freitas Teixeira. — São Paulo : Estação Liberdade, 2009.
Um recurso comum 29
A caminho de uma antropologia histórica da
Tradução de: Une histoire du patrimoine en Occident
ISBN 978-85-7448-170-8

patrimonialização francesa 33
1. Património cultural — Europa — História. 2. Patrimônio
cultural —Avaliação — Europa. 3. Europa — Civilização. 4. Europa -
Política cultural. 1. Título.

09-4801.
1
CDD: 363.69
CDU: 351-852 UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 39
A invenção identitária 40
A transferência da sacralidade 42
Esta obra, publicada no âmbito do Ano da França no Brasil e do programa de participação à publicação Carlos. A construção do valor 44
Drummond de Andrade, contou com o apoio do Ministério francês das Relaçóes Exteriores.
O monumento e a história 45
"França.Br 2009" Ano da França no Brasil/2009 é organizada no Brasil pelo Comissariado geral brasileiro, pelo
Ministério da Cultura c pelo Ministério das Relações Exteriores; na França, pelo Comissariado geral francês, pelo O território da Cidade 53
Ministério das Relações exteriores e européias, pelo Ministério da Cultura e da Comunicação e por Culturesfrance.
O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica 61
Cet ouvragc, publié dans le cadre de l'Année de la France au Brésil et du Programme d'Aide à la Publication Carlos As provas da história 71
Drummond de Andrade, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères.
França.Br 2009 l'Année de la France au Brésil est organisée :
En France : par le Commissariat général français, le Ministère des Affaires étrangères et européennes, le Ministère de
la Culture et de la Communication et Culturesfrance. 2
Au Brésil : par le Commissariat général brésilien, le Ministère de la Culture et le Ministère des Relations Extérieures.
UMA NOVA AUTENTICIDADE 85
Todos os direitos reservados à Uma nova história 89
Editora Estação Liberdade Ltda. O triunfo da alegoria 96
Rua Dona Elisa, 116 1 01155-030 | São Paulo-SP Distribuir o patrimônio em novos lugares 102
Tel.: (11) 3661 2881 |Fax: (11) 3825 4239
O museu regenerador 109
www.estacaoliberdade.com.br
O combate pela autenticidade 116

7
INTRODUÇÃO
3
A MEMÓRIA INSPIRADORA 123
O culto dos homens ilustres
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
125
A funcionalização dos mortos 129 Os monumentos constituem uma parte essencial da glória
A busca de um santuário do Estado 140 de qualquer sociedade humana: eles carregam a memória
A encarnação dos antepassados 152 de um povo para além de sua própria existência e acabam
por torná-lo contemporâneo das geraçóes que vêm se esta-
belecer em seus campos abandonados.
Chateaubriand, Mémoires d'outre-tombe.
4
O TRABALHO DO LUTO 157
Uma consciência literária 161 Na nossa vida cultural, raros são os termos que possuem um poder
Os desafios a enfrentar por uma geração 166 de evocação tão grande quanto "patrimônio". Ele parece acompanhar
Uma teoria do patrimônio 174 a multiplicação dos aniversários e das comemorações, característica de
A administração do luto e da ressurreição 178 nossa atual modernidade. O acúmulo de vestígios e restos revelados,
Uma história do ponto de vista da civilização 183 conservados e aclimatados segundo práticas diversas, parece respon-
Uma arqueologia dos Modernos 188 der ao fluxo da produção contemporânea de artefatos. Deste modo,
A conservação para o futuro 192 o patrimônio sanciona, a todo instante, a passagem acelerada que
atribui uma posição "de destaque" a objetos ou práticas, de acordo
com a análise de James Clifford sobre a evolução dos paradigmas da
5 conservação.'
A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE 197 No decorrer do século XX, o patrimônio assume, cada vez mais ex-
A nova urgência da transmissão 199 plicitamente, sua implementação positiva, segundo juízos de valor que
A formação de um cânon 203 afirmam uma verdadeira escolha. Os desafios ideológicos, econômicos e
As civilidades do patrimônio 207 sociais extrapolam amplamente as fronteiras disciplinares (entre história,
O ponto de vista da recepção 213 estética ou história da arte, folclore ou antropologia) —, como pode ser
O caso do território-patrimônio 219 notado, no decorrer das décadas de 1970-1980, pelo reconhecimento
Os valores da apropriação 224 de "novos patrimônios", que abrange uma profusão de esforços públicos
Um patrimônio da significação 228 e privados em favor de múltiplas comunidades. Progressivamente, o
entusiasmo pela promoção e valorização do patrimônio passa por uma
verdadeira "cruzada" no âmago do mundo ocidental
Conclusão
Uma definição orientada pelo futuro 231 1. James Clifford, Malaise dans la culture: L'Ethnographie, la littérature et l'art au XX'
Um conjunto de releituras siècle, Paris: Ensba, 1998.
236
2. David Lowenthal, The Heritage Crusade and the Spoils of History, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1998.
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

Por conseguinte, não cansamos de evocar "patrimônios" a serem no decorrer dos últimos dois séculos, limita-se comumente ao elogio
conservados e transmitidos, relacionados com universos absolutamente de seus arautos mais notáveis, bons servidores e grandes estadistas;
heterogêneos: a apreciação estética do cotidiano, mesmo que apenas servindo-se da pátria como ilustração, ela enaltece o labor da ciência
de outrora; a indispensável manutenção do legado arquitetural; a pre- e os avanços da instrução pública. O historiador torna-se, então, um
servação de habilidades artesanais, até mesmo de personnes ressources expert em matéria de normas patrimoniais; neste caso, a tomada de
[especialistas em determinada área], segundo a expressão quebequense; consciência, de modo progressivo, em relação à herança passa por
a proteção de costumes locais, no mesmo plano de certos gêneros um imperativo moral universalmente compartilhado. Outra história
de vida ameaçados de extinção... Fala-se de um patrimônio não só do patrimônio, porém, pode acompanhar o combate militante travado
histórico, artístico ou arqueológico, mas ainda etnológico, biológico por associações ou movimentos envolvidos com a conservação. Oriunda
ou natural; não só material, mas imaterial; não só local, regional ou de um compromisso contra o vandalismo, ela é então, muitas vezes,
nacional, mas mundial. Às vezes, o ecletismo de tais considerações prisioneira das polêmicas próprias ao gênero, denunciando, natural-
redunda em contradições ou leva à incoerência. mente, as lacunas do patrimônio oficial e suas eventuais falências, bem
Se o conceito de "patrimônio" conhece, atualmente, uma popula- longe de celebrar a memória das instituições.
ridade espetacular, associada aos investimentos de toda a ordem (polí- Essas duas historiografias, construídas simetricamente, elaboram
tica, financeira) suscitados por ele, a investigação a seu respeito oscila a posteriori uma coerência ilusória — ao reunirem, sob o termo
entre a evocação de algo inefável — os valores da civilização — e a aten- "patrimônio", elementos que outrora não lhe diziam respeito; por
ção exclusiva prestada às instituições e aos profissionais do setor. Uma conseguinte, esboçam uma continuidade de doutrina e perdem-se,
dificuldade particular refere-se ao fato de que o próprio patrimônio mais ou menos, na ilusão teleológica. A defesa, desenvolvida frequen-
determina as condições concretas de sua abordagem, comunicação e temente nos dias de hoje, em favor de um patrimônio cada vez mais
controle; de fato, por seu intermédio, o pesquisador é conduzido ao completo, contra o elitismo ou em nome da exaustividade científica,
âmago de um quadro de valores que se afirma incontestável. No caso deixa escapar o fato de que o objetivo do patrimônio não consiste,
concreto, os pontos de vista reenviam aos sistemas de partilha obser- de modo algum, em duplicar a realidade à maneira do "mapa dilatado" de
vados em outros campos quando se trata de "discutir o indiscutível", Borges, coincidente• com o território que, supostamente, ele representa.4
segundo a fórmula do sociólogo Alain Desrosières.3 A oposição verifica- "Os colégios de cartógrafos", escreve o autor argentino, "lavraram um
se, de um lado, entre a descrição e a prescrição, e, de outro, na própria mapa do Império com seu formato e que coincidia com ele, ponto
ciência, entre "posição realista" que exprime "fiabilidade do cálculo" e por ponto. Menos apaixonadas pelo estudo da cartografia, as gerações
sociologia construtivista do conhecimento. seguintes decidiram que este mapa dilatado era inútil e, de forma
A história da proteção e da transmissão do patrimônio — atinente impiedosa, abandonaram-no à inclemência do sol e dos invernos.
às leis, a suas modalidades de aplicação e aos critérios das interven- Nos desertos do Oeste, subsistem vestígios bastante estragados do
ções — tem sido empreendida, frequentemente, no âmbito de tarefas mapa; eles são habitados por animais e mendigos." Esse mapa em pe-
profissionais e por ocasião de aniversários e de retrospectivas. Essa his- daços é uma excelente imagem de uma crise radical da mimesis, que cul-
tória-memória do patrimônio nacional, constituída progressivamente mina no desaparecimento das representações e no impasse da ciência.

3. Alain Desrosières, La Politique des grands nombres: Histoire de la raison statistique, 4. J. L. Borges, "De Ia Rigueur de Ia science", in Histoire universelle de l'infamie / Histoire
Paris: La Découverte, 1993, p. 395-413. de l'éternité, Paris: UGE, 1994, p. 107.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

De fato, é evidente que fracassaria o patrimônio que fosse um controle ela confunde-se com uma história administrativa ou, melhor ainda,
utópico do tempo, tentando reproduzi-lo de uma forma idêntica. socioadministrativa. Uma definição "restrita" do patrimônio marca,
O patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em muitas vezes, as perspectivas na matéria, orientadas pelos laudos de
certificar a identidade e em afirmar valores, além da celebração de experts. Tal é o caso da teleologia, que é manifesta, por exemplo, nas
sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica. Nesse aspecto compilações retrospectivas de episódios considerados como "patrimo-
é que a história parece, com tamanha frequência, "morta", no sentido niais", tendo, supostamente, inspirado a legislação contemporânea/
corrente. Mas, ao contrário, o patrimônio é "vivo", graças às profissões Em outras investigações, trata-se sobretudo de analisar o modo de vida
de fé e aos usos comemorativos que o acompanham.' no patrimônio e como são utilizados os monumentos ou os museus.
Nos últimos anos, as ciências humanas e sociais têm multiplicado Semelhante história está em condições de saber como os príncipes
os estudos sobre o patrimônio, desenvolvidos mais amplamente, sem fizeram uso dos valores patrimoniais para desenvolver, ou não, es-
dúvida, na área da história e da antropologia, a partir de um domínio tratégias, ganhar prestígio e até mesmo consolidar alianças políticas.
que, na origem, é muito bem circunscrito, ou seja, o da história das A história do colecionismo é, particularmente, tributária desse tipo de
artes — e do livro, se considerarmos o patrimônio escrito como par- interesse. Para além dele, o desafio consiste em considerar a posição do
cela, bem cedo reconhecida, do conjunto patrimonial. No começo, patrimônio no desenvolvimento de uma coletividade: a aparição ou
tratava-se de abordar o corpus mais ou menos canônico, tal como havia o fracasso de um patrimônio comum assinala, sem dúvida, seu êxito
sido concebido por diferentes épocas — assim, Bernard Teyssèdre e seu ou sua falência.
projeto de dispor as histórias dos patrimônios artísticos em diversos O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de
círculos e em diferentes momentos da história; ou Francis Haskell seus objetos, pelo valor estético — e, na maioria das vezes, documental,
e seu desígnio de uma história das (re)descobertas do gosto.6 Nesse além de ilustrativo, inclusive de reconhecimento sentimental — que
sentido, a história do patrimônio não designa verdadeiramente um lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto específico, legal
conteúdo de pesquisas específicas, nem alega uma instância explicativa ou administrativo. Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade
particular para pensar a articulação entre cultural, social e político. política, ambos os aspectos sancionados pela opinião pública; essa
Logo em seguida, o campo da história do patrimônio se fragmentou dupla relação é que lhe serve de suporte para uma representação da
em outros tantos objetos de diferentes investigações, desde os museus civilização, no cerne da interação complexa das sensibilidades relati-
até os monumentos, passando pelo novo patrimônio imaterial. Esse identas.Pr
vamente ao passado, de suas diversas apropriações e da construção das
rápido desenvolvimento foi acompanhado por uma profusão semân- se impor, de acordo com a espécie de evidência que
tica que, finalmente, tornou bastante incerta, ao longo do tempo, a é a sua atualmente, a noção teve de passar por um processo complexo,
unidade de semelhantes estudos. de longa duração e profundamente cultural; ela é o resultado de uma
Tal como é praticada há uma geração, com êxito incontestável, dialética da conservação e da destruição no âmago da sucessão das
a história do patrimônio é amplamente a história da maneira como formas ou dos estilos de heranças históricas que haviam sido adotados
uma sociedade constrói seu patrimônio. Em particular no caso francês,
7. Assim, Andrea Emiliani (org.), Leggi, bandi e provvedimenti per la tutela dei beni
5. David Lowenthal, op. cit., p. 121-122; Hervé Glavarec e Guy Saez, Le Patrimoine
artistici e culturali negli antichi stati italiani, 1571-1860, Bolonha: Nuova Alfa,
saisi par les associations, Paris: La Documentation française, 2002.
1996. Sobre os usos do anacronismo, cf. Nicole Loraux, "Éloge de l'anachronisme en
6. Bernard Teyssèdre, L'Histoire de l'art vue du Grand Siècle, Paris: Julliard, 1964; Francis histoire", in Le Genre humain, n. 27, 1993; e G. Didi-Huberman, Devant le Temps:
Haskell, La Norme et le caprice, Paris: Flammarion, 1986. Histoire de l'art et anachronisme des images, Paris: Minuit, 2000.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

pelas sociedades ocidentais. Ela estabeleceu-se a partir do modelo do A "modelagem humana do histórico", segundo Alphonse Dupront,
"e
nquadramento" de algumas obras em determinado momento da res- ocupa uma posição eminente na invenção patrimonial, "quanto às la-
pectiva história — enquadramento utilizado, deformado, transmitido, tências laboriosas da memória coletiva, quanto à confissão de modelos
esquecido, de geração em geração. Nesse caso, cada um abrangia mais ou ou à proclamação de 'fontes' e, sobretudo, quanto às necessidades pro-
menos o outro, absorvendo-o e modificando-o enquanto, paralelamente, fundas de viver a duração, contínua ou descontínua, e de acordo com
9
alterava-se a definição e a significação do "vandalismo", suscitando, às a amplitude de sua influência". As diferenças no plano da recepção
vezes, acirrados conflitos a propósito dos respectivos contornos. Com (de seleção) dependem amplamente dessas condicionantes, quando
efeito, a escolha de um patrimônio, como aponta Judith Schlanger no determinados tipos de objetos ou de edifícios se tornam patrimoniais,
livro La Mémoire des wuvres, "além de um efeito e de um desafio de por oposição a um grande número de outros que são negligenciados ou
instituição, é uma instituição".8 destruídos. O detalhe das práticas eruditas — ou, em outras palavras, a
A atitude patrimonial compreende dois aspectos essenciais: a assi- maneira como foi concebido o "quadro" da coleta, classificação,
milação do passado, que é sempre transformação, metamorfose dos exposição e interpretação — determina o processo de ocorrência do
vestígios e dos restos, recreação anacrônica; e a relação de fundamental patrimonial.'° No entanto, a apropriação por um público — a maneira
estranheza estabelecida, simultaneamente, por qualquer presença de como o patrimônio é visitado, interpretado, e exerce influência — está
testemunhas do tempo remoto na atualidade. O primeiro aspecto sus- associada também às formas de sua apresentação, ao olhar, bem acolhido
tenta o esforço de pedagogia (de ordem cívica), enquanto o segundo ou importunado, aos catálogos ou aos itinerários. As diversas definições
leva a um reconhecimento do tesouro, "reconhecimento que constitui do patrimônio, através de testemunhos convergentes ou contraditórios,
a própria virtude do tesouro" (Alphonse Dupront). A época clássica e os efeitos de expectativa ou de saber que ele pode provocar ou mobili-
foi marcada pela busca da excelência da informação: nesse caso, a zar nos espectadores alimentam identidades e entretecem sociabilidades
publicidade dos acervos é sempre cerimônia a serviço do fausto da em diferentes escalas — locais, nacionais, globalizadas —, ou, às vezes,
pessoa do príncipe. Por sua vez, a época das revoluções liberais assiste sem qualquer atribuição territorial. O patrimônio elabora-se, em cada
ao triunfo do projeto de formar os cidadãos pela instrução e pelo instante, com base na soma de seus objetos, na configuração de suas
culto do Estado-Nação: o senso do patrimônio é dominado, assim, afinidades e na definição de seus horizontes.
pela pedagogia de sua divulgação. Por último, na virada do século XX
para o XXI, o patrimônio deve contribuir para revelar a identidade de
cada um, graças ao espelho que ele fornece de si mesmo e ao contato Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações
que ele permite com o outro: o outro de um passado perdido e como
que tornado selvagem; o outro, se for o caso, do alhures etnográfico. O patrimônio contribui, tradicionalmente, para a legitimidade do
Lugar da pessoa pública, em particular da figura do rei, lugar da poder, que, muitas vezes, participa de uma mitologia das origens. Ele
história edificante, lugar da identidade cultural: assim poderiam ser
enunciados, de maneira bastante sumária, os imaginários do patri- 9. Alphonse Dupront, "L'Histoire après Freud", in Revue de l'Enseignement Supérieur,
mônio ocidental. 1968, p. 27-63 (aqui, p. 46).
10. Para Jacques Derrida ( Mal d'archive, Paris: Galilée, 1995), os arquivos implicam um
lugar e uma técnica que determinam a estrutura do arquivável, em sua ocorrência e
8. Judith Schlanger, "Le Passé pertinent", in La Mémoire des oeuvres, Paris: Nathan, em sua relação com o futuro: "O arquivo foi sempre uma garantia e, como qualquer
1992, p. 110 ss. penhor, uma garantia de futuro" (p. 37).

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

encarna o que, de acordo com Pierre Legendre, será designado por Assim, o patrimônio ilustra o quanto cultura e política, para citar
"g
enealogia", entendida como "ato de transmitir, ou seja, afinal de Hannah Arendt, "imbricam-se mutuamente porque não é o saber ou
contas, as montagens de ficção que tornam possível que tal ato seja a verdade que está em jogo, mas sobretudo o julgamento e a decisão, a
realizado e repetido através das gerações"." Para o direito romano, o troca criteriosa de opiniões incidindo sobre a esfera da vida pública
patrimônio era o conjunto dos bens familiares, vislumbrados não se- e sobre o mundo comum
gundo seu valor pecuniário, mas em sua condição de bens-a-transmitir. A recusa de "origens" — relativamente ao aspecto religioso ou
Tal característica acabava por distingui-los absolutamente dos outros mítico, em benefício de "começos" seculares que evocam a atividade
bens que "não estão inscritos em um estatuto [...], mas são conside- humana e não cessam de ser questionados — configura daqui em
rados separadamente em um mundo de objetos dotados de um valor diante o compromisso contemporâneo, tanto crítico quanto político.
próprio que lhes é atribuído, exclusivamente, pela troca e pela moeda". A meditação de Edward Said14 sobre a ideia de começos prefere referir-se,
De fato, na cultura do patrimonium, "a norma social exigia que os assim, a Mallarmé, a propósito do "demônio da analogia", para en-
bens de alguém fossem oriundos da herança paterna, que, por sua fatizar uma contemporaneidade marcada pelo impossível vínculo à
vez, deveria ser transmitida. [...] Era malvisto interromper a cadeia origem e à inspiração, e para afirmar o peso da intencionalidade em
de transmissão, da qual a instituição familiar havia sido publicamente um trabalho, daqui em diante, privado das musas /No sentido banal,
incumb ida". atualmente o patrimônio confunde-se com a herança, cuja presença
Desse modo, o termo "patrimônio" refere-se aos "bens de herança" pode ser verificada à nossa volta e que reivindicamos como nossa,
que, de acordo com o dicionarista Littré, por exemplo, "passam, se- tanto mais que estamos prontos a tomar providências para assegurar
gundo as leis, dos pais e das mães para sua filiação". Ele não evoca a sua preservação e inteligibilidade. Esses bens recebem, portanto, uma
priori o tesouro ou a obra-prima. — nem que ele tenha a ver stricto afetação particular; e estão submetidos a um modo específico de ges-
sensu com a categoria, reivindicada pelas ciências, do verdadeiro e do tão. O respeito a tais condições é garantido por leis ou regulamentos,
falso, mesmo que deva alegar a autenticidade. Assim, na retórica das até mesmo por uma militância empenhada, em que, nos fatos, seja
lutas identitárias, as evocações do passado não coincidem, conforme inscrito o princípio de transmissão ao futuro. De acordo com o re-
tem sido observado frequentemente, com as análises do historiador, sumo proposto, de maneira bastante pragmática, por André Chastel,
do etnólogo ou do arqueólogo. No entanto, apesar de desprovidas de "O patrimônio reconhece-se pelo fato de que sua perda constitui um
realidade, até mesmo de verossimilhança, elas revelam-se regularmente sacrifício e que sua conservação pressupõe sacrifícios".
eficazes: David Lowenthal conseguiu repertoriar inumeráveis avatares Na relação entre manifestação e princípio, superfície e funda-
de algo verossímil que, nesse aspecto, se tornou realmente verdadeiro. mentos, o patrimônio participa de uma metáfora central de nossa
modernidade, a dos modelos de "profundidade" — de acordo com
11. Pierre Legendre, L'Inestimable objet de la transmission: Étude sur le principe généalogique a palavra forjada por Frederic Jameson — ou ainda a do paradigma
en Occident, Paris: Fayard, 1985, p. 50.
indiciário, em conformidade com o qualificativo adotado por Carlo
12. Yann Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit
romain", in Archives de la philosophie du droit, 1980, Sirey, p. 425; e "Pères, citoyens
et cité des pères", in Histoire de la famille,I , Paris: Le Seuil, I986, p. 206. Cf. ainda,
de outro ponto de vista, Claudia Moatti, "La Construction du patrimoine culturel à
Rome au Ier siècle avant et au Ier siècle après J.-C.", in Mario Citroni (org.), Memoria 13. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972.
e identità: La cultura romana costruisce la sua immagine, Florença: Giorgio Pasquali, 14. Edward W. Said, Beginnings: Intention and Method (I975), Londres: Granta, I995,
2003, p. 81-98. novo prefácio, p. XIX, 67-68.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

Ginzburg.1 A amplitude do patrimônio é sua característica mais que há de suceder-lhe: as eras futuras hão de mencionar tal aspecto,
evidente. O essencial da literatura patrimonial, no sentido corrente, evento que será célebre no mais longínquo futuro. Ao passo que o
empenha-se em descrever sua geografia — para gerenciá-la em melhores tempo e os pensamentos de nossos sucessores estarão voltados para "18 os
condições. Esta se confunde com uma oferta de documentos ou com acontecimentos do momento, como ocorre agora com os nossos [...I.
proposições turísticas, em poucas palavras, com um corpus, repertoriado Pelo contrário, o momento revolucionário abordará o tema da pos-
segundo modalidades mais ou menos sofisticadas. Em compensação, a teridade com um voluntarismo assumido: longe das figuras de estilo
profundidade do patrimônio evoca o que, em primeira análise, poderia da sobrevivência literária, a palavra define então um ato político, o de
ser designado por memória da qual ele depende e é a manifestação. A lite- instaurar uma memória duradoura e eficaz a partir das lições extraídas
ratura prescritiva ou documental não dá, de modo algum, testemunho de um passado infamante. Mais tarde, a relação do patrimônio com
dessa profundidade patrimonial, ao contrário de determinada meditação uma profundidade soterrada — a da autenticidade e até mesmo do
sobre a usura do tempo e sobre o lugar do passado no presente — nem inconsciente no século XX — passou por uma considerável mudança,
que fosse para negá-lo ou esnobar a seu respeito — ou desses diversos sob a influência de um sentido inédito das rupturas e, talvez, do mo-
paratextos, tais como prefácios, anotações, apologias e dedicatórias, que delo da arqueologia no âmago das "grandes narrativas"sucesivas.19
acompanham a literatura artística.
A relação geral com essa profundidade parece, de qualquer modo, ter
sofrido um deslocamento, do início da modernidade ao século XVIII, ao Uma partilha das obras de cultura
invocar a Posteridade em vez do Tempo. Mas, tal posteridade é cada vez
menos garantida: assim, Swift chega a imaginar, na profusão de elementos Para Jean-Claude Passeron, a definição antropológica da cultura,
que envolvem A Tale of a Tub, um jovem Príncipe Posteridade que carece tal como ela foi apresentada por Tylor em Primitive Culture (1871)
de sabedoria e de discernimento; além disso, sua imaturidade ameaça — ou seja, o conjunto da vida simbólica de um grupo ou de uma
a fé antiga na perpetuidade da transmissão.16 De maneira ainda mais sociedade —, supõe "a existência de uma entidade homogênea capaz
explícita, alguns autores e artistas inscrevem-se no momento presente, de operar homogeneamente em tudo o que ela manda fazer ou sentir
sem se comprometerem seja na reivindicação de um passado, seja na a seus integrantes: ela equivale a confundir uma estrutura com um
expectativa de um futuro: esse pensamento do instante é, particular- cafarnaum"." Pelo contrário, esse autor propõe identificar três sig-
mente, representado nas Luzes, na França Mas, desde o início do nificações distintas da cultura: a cultura-estilo, a cultura declarativa
século, Swift, para citá-lo de novo, observava que "é agradável observar e a cultura corpus. A primeira designa o conjunto dos modelos de
a facilidade com que a época presente aventa hipóteses sobre aquela representação e das práticas que orientam a organização das formas
da vida social. A segunda, a de uma cultura como comportamento
15. Frederic Jameson, Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism, Durham:
Duke UP, 1991, p. I2; Carlo Ginzburg, "Traces: racines d'un paradigme indiciaire", 18. Jonathan Swift, Pensées sur divers sujets moraux et divertissants: (Euvres , Paris, Pléiade,
in Mythes, emblèmes, traces: Morphologie et histoire, Paris: Flammarion , I989. 1965, p. 572. "It is pleasant to observe how free the present age is in laying taxes on
16. Jonathan Swift, "The Epistle Dedicatory to his Royal Highness Prince Posterity", the next. FUTURE AGES SHALL TALK OF THIS; THIS SHALL BE FAMOUS TO ALL POSTERITY.
in A Tale of a Tub; Aleida Assmann, "Texts, Traces, Trash: The Changing Media of Whereas their time and thoughts will be taken up about present things, as ours are now."
Cultural Memory", in Representations, vol. 56, 1996, p. 123-134. 19. Julian Thomas, Archaeology and Modernity, Londres: Routledge, 2004.
17. Thomas M. Kavanagh, Esthetics of the Moment: Literature and Art in the French 20. J.-C. Passeron, Le Raisonnement sociologique (l'espace non poppérien du raisonnnement
Enlightenment, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, I996. naturel), Paris: Nathan, 1991, p. 323.

18 19
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

declarativo, corresponde à reivindicação de uma identidade de grupo: convertidos, ou por qualquer índice da estima manifestada). A terceira
é a "formulação autocentrada da cultura que uma cultura mostra de si configuração entende-se em termos de impacto sobre o campo de
mesma em sua definição falada ou escrita das relações entre os valores, referência cultural (a influência de um objeto cultural sobre a fisio-
o homem e o mundo". Por último, a cultura como corpus de obras va- nomia de objetos do mesmo gênero). A quarta equivale à canonização
lorizadas define o universo simbólico de um grupo social, ao privilegiar (a aceitação desse objeto pelo grupo de especialistas, capacitados para
um reduzido número de objetos culturais como outros tantos de seus conferir-lhe legitimidade). Enfim, o último elemento de recepção tem
símbolos favoritos. É, evidentemente esta última configuração que a ver com a duração (a persistência de um objeto cultural no tempo,
tradicionalmente coincide com a definição canônica do patrimônio. graças a um conhecimento ampliado ou não). Apesar de corresponder
O patrimônio institucionalizado não passa, em vários aspectos, a algumas dessas configurações, a definição patrimonial não se coaduna
de uma câmera de gravação dos movimentos aleatórios brownianos, forçosamente, de maneira positiva, com todos os critérios, pelo fato
cujo contorno é desenhado a partir de manifestações de admiração e de depender de uma história da mediação considerada "sob a óptica
reconhecimento, de compras e revendas, além de acúmulo de bens e de 22
dos conflitos de poderes e de personalidades".
rejeições. Pintado por Modigliani como Novo pilota [Novo piloto], o Em particular, ela ilustra o que Ernest Gombrich designa por
grande retrato de Paul Guillaume — figura de marchand, colecionador "clima social" de excelência e de admiração artísticas. "Seria possível
e mecenas a quem se deve o essencial do museu parisiense de Orangerie estudá-lo", escreve ele, "ao esboçar um verdadeiro programa, com base
— pode passar por emblemático dos atores contemporâneos da consti- nos arquivos dos preços alcançados nos leilões, na difusão das repro-
tuição de patrimônios reunidos em diferentes locais; aliás, às vezes, são duções e na organização de peregrinações preparadas pelas agências
apenas coleções de marchands. Os mecanismos de aquisição, conserva- de turismo [...], ao anotar o desenvolvimento de seitas exclusivas, até
ção e transmissão das obras, tratando-se da formação e da evolução do mesmo de heresias [...], ao identificar os heróis da cultura que con-
corpus de monumentos protegidos ou das coleções de museus, envolvem tinuam suscitando, como é costume dizer, o 'culto de uma minoria'
um horizonte de expectativa associado às representações de um grupo e ao colocar a emergência e o desaparecimento de tais reputações em
social, à sua sensibilidade e a suas experiências, próximas ou longínquas. correlação com outros movimentos sociais. Seria possível, também,
Para essa problemática, Hans Robert Jauss forneceu a definição clássica: fazer um grande número de comentários interessantes a propósito das
"O sistema de referências objetivamente formulável, para cada obra, no condições sociais que facilitam o respeito pelos velhos mestres e pelo
momento da história em que ela aparece, resulta de três fatores princi- clima que incentiva a considerar, com orgulho, as realizações da arte
pais: a experiência prévia do público relativamente ao gênero de que ela contemporânea."23 Essa configuração inscreve-se em uma longa tradi-
faz parte; a forma e a temática de obras anteriores cujo conhecimento se ção, a da literatura artística. Além disso, seu saber consiste sempre em
pressupõe; e a oposição entre mundo imaginário e realidade cotidiana."21 conhecer os lugares, sobretudo "lugares de passagem" das obras, como
De acordo com a socióloga norte-americana Wendy Griswold, lugares de propriedade e de transmissão. Com o desenvolvimento de
é possível compilar no mínimo cinco configurações relativamente à uma circulação associada ao mercado, tem aumentado a importância
recepção de objetos culturais. A primeira é a interpretação (conce- do connoisseurship e do atribuicionismo: o crítico de arte e arqueólogo
bida como elaboração da significação). A segunda identifica-se com
o sucesso (a popularidade, avaliada pelo número de adeptos ou
22. Wendy Griswold, Cultures and Societies in a Changing World, Thousand Oaks: Pine
Forge, 1994. Cf. ainda Francis Haskell, op. cit., p. 33-34.
21. Hans-Robert Jauss, Pour une Esthétique de la réception, Paris: Gallimard, 1978. 23. Ernst Hans Gombrich, L'Écologie des images, Paris: Flammarion, 1982.

20 2I
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

Quatremè de Quincy (1755-1849) já constatara o peso do que ele baseava-se na busca de um diálogo entre fontes literárias e fontes
designava, com desdém, como uma "espécie de saber". figuradas, assim como no surgimento de uma história cultural; para
Por conseguinte, a patrimonialização coincide amplamente com a ser possível construir a definição do patrimônio, impunha-se esta-
tradição da cultura erudita. Como foi observado por Jacques Thuillier, belecer, previamente, a autenticidade e o valor dos monumentos de
em relação à finalidade da criação artística, "o texto escrito tem desem- qualquer espécie.
penhado, até aqui, um papel determinante, e pode-se dizer que, por A disputa, nesse caso entre partidários e adversários da patrimo-
seu intermédio, foi implantado o panorama [...] ao fixar as hierarquias: nialização, mobiliza incansavelmente discursos contraditórios sobre o
por consequência, ele estabelece, durante um prazo mais ou menos destino a ser dado às obras, ou seja, sobre as relações que elas podem
longo, a própria sobrevida da obra". Em poucas palavras, "considerando estabelecer no espaço público. Tal discussão é, em particular, acirrada
os períodos antigos, a distribuição das pinturas e das esculturas conserva- no que diz respeito à originalidade — democrática e cultural — do
das acabou por corresponder praticamente ao esquema dos artistas e das museu relativamente à coleção tradicional. As relações com a publi-
obras, constantes nas citações dos historiadores antigos — sem grande cidade das coleções — enaltecida ou considerada como ilusória — e
relação com a própria produção, tal como esta pode ser confirmada por com a destinação da obra exposta — reconhecida como autêntica,
documentos de arquivo. Salvo algumas exceções, a resistência das escolas desvalorizada ou negada — orientaram, assim, o essencial dos discursos
e das obras dependeu da presença dos livros, assim como da data de ulteriores ao esboçarem quatro figuras principais.
sua publicação; a realidade acabou por acomodar-se ao texto escrito". 24 A ortodoxia museal descreve os efeitos positivos dos museus no espí-
Os séculos XVIII e XIX constituem, nesse aspecto, momentos estratégi- rito das reivindicações de abertura da segunda metade do século XVIII.
cos que assistem à elaboração de cânones, repertórios e catálogos — seja Esses estabelecimentos permitiram, ao que tudo indica, a iniciação
do teatro à música, ou da pintura à literatura — e, especificamente, à dos visitantes à alta cultura, até então reservada ao privilégio ou à
instalação de museus, primeiros lugares da objetivação de "culturas". riqueza. Em poucas palavras, eles divulgavam a cultura em condições
A gênese do patrimônio evoca, assim, as leituras eruditas em- semelhantes às que usufruíam seus proprietários ou detentores, legi-
penhadas em interpretar as obras como outros tantos documentos timados pela tradição. A crítica, de inspiração ou de herança contrar-
sobre o passado, transformando, particularmente, a compreensão das revolucionária — pelo menos no caso francês —, sustentava por seu
antiguidades clássicas e, em seguida, nacionais em um desafio inte- turno a existência de uma desculturação: o museu alterava a cultura
lectual e político.25 A era da erudição, no século XVII, apoiava-se na em nome da utilidade social e modificava as condutas legítimas sem
preocupação com as fontes: "O método moderno de pesquisa histórica deixar de permanecer estranho ao povo convidado a frequentá-lo.
está inteiramente baseado na distinção entre fontes originais e fontes Seu encerramento, em última instância, a fim de restaurar o antigo
de segunda mão."26 O desenvolvimento da reflexão, no século XVIII, vínculo ou, melhor ainda, sua reapropriação pelos usuários legítimos,
colecionadores e amadores, seria o único meio de suprimir essa per-
24. J. Thuillier, Leçon inaugurale, Collège de France, Paris, I3 jan. 1978, p. 15. versão ideológica, possibilitando um renascimento cultural.
25. Francis Haskell, L'Historien et les images, Paris: Gallimard, I996. A escola progressista, ao contrário, denunciava a confiscação da
26. Arnaldo Momigliano, "Ancient History and the Antiquarian", in cultura legítima operada pelo museu em benefício dos privilegiados
Journal of the
Warburg and Courtauld Institutes, n. 13, 1950, p. 285-3I5; retomado em Problèmes
da sociedade, aliás os únicos que tinham condições de tirar um real
d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983; e em Joseph M. Levine,
"The Antiquarian Enterprise, I500-1800", Humanism and History: Origins ofModern proveito da instituição: uma educação verdadeiramente democrática
English Historiography, Ithaca: Cornell University Press, I987, p. 73-106. deveria estender uma relação com a cultura, que havia permanecido

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

como o apanágio de um número reduzido de pessoas. Por fim, uma atributo da soberania e na constituição de um Estado-Nação moderno."
crítica radical negava este último projeto e qualquer esperança de futuro Essa concepção é hierárquica e baseia-se em uma administração com-
radioso para o estabelecimento. O museu seria destinado ao uso de uma plexa. Nesta perspectiva, qualquer implementação de um patrimônio
clientela de filisteus, no sentido de Hannah Arendt: por meio dessas serve-se de saberes eruditos, especializados, suscetíveis de legitimar tal
obras-primas, eles procuram "engrandecer-se". Bem longe de autorizar intervenção, tal restauração, tal inventário, ou de combatê-los — ca-
uma apropriação qualquer, coletiva ou elitista, ele era, por excelência, pazes também de acompanhar uma mobilização cívica ou ideológica.
o lugar de um desapossamento generalizado. O patrimônio, em outros termos, é um trabalho (por exemplo, o de
Não causará espanto que os partidários de uma virtualidade de- repertoriar e de fazer a revisão de corpus de monumentos); aliás, seu
mocrática desse estabelecimento se tornem os defensores convencidos estatuto e sua ambição dependeram concretamente da posição ocu-
da autenticidade da cultura conservada e exposta; ora, essa postura é pada, em cada período, por antiquários, arqueólogos, historiadores da
colocada em dúvida por seus adversários que privilegiam a hipótese de arte... no âmago da comunidade intelectual nacional — em particular
uma solução de continuidade, no caso concreto, uma perda do sentido. diante de seus pares linguistas, folcloristas ou arquivistas. O mesmo é
Contrariamente a uma legitimidade baseada na utilidade de um equipa- dizer quanto o patrimônio está ligado, mais amplamente, aos valores
mento coletivo, a crítica tradicional invocava uma gratuidade implícita da atribuídos a algumas atividades — da mão e da vista — na represen-
verdadeira cultura. Defender, por exemplo, que as condutas individuais tação de si de uma sociedade.
dos colecionadores seriam as únicas capazes de manter o nível de civi- As primeiras medidas conservadoras, iniciadas pelo papado e por
lização descartava a questão do museu, que passava por um dispositivo outros estados da Itália, culminaram no reconhecimento de um cânon
marginal, para não dizer parasita. Na melhor das hipóteses, a relação sus- dos mestres e no princípio de um corpus de objetos a definir e a pro-
citada por seu intermédio com o patrimônio limitava-se a uma utilidade teger. Uma das principais datas refere-se ao "decreto de 1601, pelo
secundária; e, na pior, dava testemunho do fracasso de uma transmissão qual o grande duque Ferdinando de Médicis enumerava dezoito céle-
legítima. De fato, a democratização da civilização só seria viável mediante bres pintores do passado cujas obras não deviam ser vendidas para o
sua alteração: essa é a dialética do pão e circo; as vicissitudes de sua longa exterior".29 Essa declaração solene visava afirmar e perpetuar a excelência
evolução podem ser encontradas no discurso intelectual contemporâneo.27 do príncipe e do país. Tal é também um dos desígnios das coleções régias
O espetáculo do museu alimentava então uma postura sobre a decadência que deram origem, por intermédio da Europa, aos museus nacionais.
ou o' exílio da cultura, além de nutrir a ampla literatura da melancolia pós- No decorrer do século XVIII, prestava-se uma atenção inédita à eficá-
-revolucionária, a propósito de um mundo fragmentado ou perdido. cia que orienta a ideia de herança: tal medida era considerada como o
meio de dissipar a ignorância, aperfeiçoar as artes, além de despertar
o espírito público e o amor pela pátria. A preocupação de utilidade rela-
Uma encarnação da construção nacional cionava, daí em diante, a conservação de um patrimônio com os efeitos
pretendidos tanto para a formação do público como para a prosperidade
O caso francês ilustra o que o sociólogo Luigi Bobbio designa por do país. O processo de legitimação patriótica — iniciado dessa forma —
concepção nacional-patrimonial, baseada na metáfora da herança, no
28. Luigi Bobbio, Le politiche dei beni culturali in Europa, Bolonha: Il Mulino, I992.
27. Patrick Brantlinger, Bread Circuses: Theories ofMass Culture as Social Decay, Ithaca: 29. Ernst Hans Gombrich, Réflexions sur l'histoire de l'art (1987), Nimes: Jacqueline
Cornell University Press, 1983. Chambon, 1992, p. 296.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

assumiu aos poucos uma fisionomia contemporânea com as confiscações menos, com a narrativa de uma socialização progressiva e generosa de
e as transferências sucessivas da Revolução Francesa. Nesse momento- coleções e de títulos de propriedade: ao servir-se da pátria como ilustra-
32
-li miar — para retomar a fórmula do antropólogo Victor Turner — em ção, ela enaltecia o labor da ciência e os avanços da instrução pública.
que ocorreu a desintegração da antiga comunidade e a emergência da Esta construção efetuou-se, de acordo com cada país, em datas
nova é que se tornou mais evidente a reivindicação de um patrimônio bastante diversas: mas, no final do século XIX, por toda a Europa a
ad hoc, baseado em novas justificativas, acompanhado eventualmente literatura do patrimônio confundia-se mais ou menos com a denúncia
pela proscrição dos antigos signos.30 O patrimônio inscreveu-se desde das perdas constatadas e com uma tipologia histórica das destruições,
então em uma vontade geral de criar conexões, vontade que marcou ou seja, pavor e denúncia. Essa mobilização forneceu-lhe seu princípio
os séculos XIX e XX, em relação com as representações hierárquicas e íntimo de engendramento, ao ritmo das perdas denunciadas na "caixa
regulamentares do período precedente. de poupança" do progresso da humanidade (a imagem encontra-se na
obra de Charles Péguy). Convém, aliás, observar que essa literatura pa-
33
O patrimônio no sentido "legal" surgiu com as legislações nacionais
do século XIX, legislações que lhe garantiram um destino específico no trimonial deu lugar, em breve, não tanto a uma história no sentido estrito
meio de todas as manifestações sociais dos objetos. Aliás, tal postura do termo, mas à evocação de um movimento de criação e de acúmulo
foi assumida em nome do povo, como destinatário eminente e, ao espontâneo, infelizmente interrompido em diferentes lugares. Ao presente
mesmo tempo, o derradeiro responsável por essa herança. A França da "congelado", resultado de uma percepção intelectualizada, historicizada,
primeira metade do século XIX foi, por excelência, o lugar da elabo- Péguy opunha os valores da liberdade do verdadeiro presente. Com
ração progressiva e muitas vezes conflitante dos valores patrimoniais Bergson, a relação da vida com a história tornou-se uma genuína constru-
— em oposição, especificamente, ao direito de propriedade?' Em toda ção filosófica que enfatiza o fluxo e a emergência, contrariamente a tudo
parte da Europa, os liberais descobriram e, em seguida, celebraram o que tende a fixar-se, oprimir e tiranizar. Desde então, o patrimônio
a preservação das antiguidades nacionais como um dever patriótico podia inscrever-se em uma relação com o tempo que não era o da história
— forma moderna de uma cultura declarativa, para falar como Jean- e que, às vezes, o rejeitava"; não se pode desenvolver aqui este aspecto,
Claude Passeron. As destruições de toda espécie foram paralelamente mas é quase certo que determinado anti-intelectualismo da defesa e da
qualificadas, de maneira genérica, como vandalismo. Na França, o ilustração do patrimônio alimentou-se com essa tradição da relação com
célebre colecionador de estampas Michel Hennin foi o primeiro a pro- o tempo e com esse pensamento da atualidade "viva".
mover uma história ponderada das destruições e das conservações: ele Neste ponto, pode esclarecer-nos o que Roland Barthes havia vislum-
35
demonstrou, por um lado, o recuo universal do vandalismo diante da brado sob a denominação de "teatralidade" ; assim, sugere-se o termo
tomada de consciência da herança (mesmo que os interesses pecuniários
e determinados delírios ideológicos ou patrióticos tivessem alterado, 32. Michel Hennin, Les Monuments de l'histoire de France: Catalogue des production de la
sculpture, de la peinture et de la gravure relatives à l'histoire de France et eles Français,
regularmente, o curso de seu progresso); por outro, a democratização
10 vols., Paris: J.-F. Delion, 1856-1863.
contínua das fruições A patrimonialização confundia-se, mais ou Charles Péguy, "Clio: Dialogue de l'histoire et de l'âme païenne", in Robert Burac
33.
(org.), Oeuvres en prose complètes, Paris: Gallimard, III, 1992, p. 1028 ss.
30. Victor Turner, Dramas, Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society, 34. Cf., a este propósito, os comentários de Georges Poulet, Études sur le temps humain,
Ithaca: Cornell University Press, 1974. Paris: Plon, 1950.
31. Cf. a apresentação clássica do tema, resumida por Joseph L. Sax, "Heritage Preserva- 35. "O que é a teatralidade? É o teatro sem o texto, é uma espessura de signos e sensações
tion as a Public Duty: The Abbé Grégoire and the Origins of an Idea", in Michigan que se edifica no palco a partir do argumento escrito; é essa espécie de percepção
Law Review, vol. 88, n. 5, I990, p. 1I42-1169. ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

"patrimonialidade" para designar a modalidade sensível de uma A este modelo opõem-se outras construções que implicam mais
experiência do passado, articulada com uma organização do saber - precisamente a sociedade civil pelo viés de intelectuais e de associações.
identificação, atribuição — capaz de autentificá-lo. Uma primeira Miroslav Hroch, através de uma comparação dos grupos patrióticos em
patrimonialidade encontra-se na relação íntima ou secreta de um diferentes nações, na Europa Central, identificou três fases: .à primeira
proprietário ou de usufrutuários em diferentes níveis, de especialistas situa-se entre 1789 e 1815, quando uma intelligentsia restrita, a única
ou de iniciados, em nome de afinidades e convicções, assim como de envolvida pela emergência das ideias nacionais associadas à Revolução
racionalizações eruditas e de condutas políticas, com determinados Francesa, foi bem-sucedida na tentativa de conservar o patrimônio
objetos, lugares ou monumentos. Mais tarde, na sequência de um longo cultural (coletânea de canções e contos populares, codificação e divul-
processo de patrimonialização, a nação é que se tornou o objeto por gação da língua). Durante uma segunda época (1815-1848), essa ideia
excelência da patrimonialidade, fornecendo, por assim dizer, o quadro difundiu-se entre a burguesia, levando a uma transcrição política desse
de interpretação de qualquer objeto do passado. No caso francês, a empreendimento cultural. Enfim, o ano de 1848 inaugurava o último
patrimonialização oficial elaborou-se a partir da Revolução, segundo período, quando o nacionalismo recebeu um amplo apoio popular,
o modelo de uma negociação entre os valores da nação definida em ilustrado pela Primeira Guerra Mundial e pela queda do Império dos
novos termos pela forma contratual e os valores, desta vez, "culturais", Habsburgos.37 No caso concreto, é no mínimo delicado separar, no
que vão aparecendo aos poucos, além de estabilizarem no espaço e decorrer do processo, cultura e nacionalismo."
no tempo essa construção abstrata — de fato, com o desaparecimento
da Igreja e das corporações, a patrimonialidade tradicional tinha ficado
fora de circuito. Esse compromisso laborioso entre nacionalidade do Um recurso comum
contrato e nacionalidade de cultura é que permitiu o triunfo de uma
nação-patrimônio a que Camille Jullian, por exemplo, se referia em Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, os beligerantes mobi-
sua lição inaugural do Cours d'Histoire et d'Antiquités Nationales, lizaram amplamente a cultura no esforço de guerra, exacerbando os
39
no Collège de France, em 7 de dezembro de 1906: "As ruínas dos julgamentos mais xenófobos em relação aos patrimônios estrangeiros.
monumentos dão testemunho não apenas da mão de um operário ou No período entre as duas guerras, o surgimento de ideologias totalitárias,
da planta de um arquiteto, mas também dos sentimentos de um povo; decididas a transformar a exaltação da herança em um instrumento de
elas refletem, para uma pátria, o espírito de uma geração de homens."36 propaganda, teve consideráveis consequências sobre a própria imagem
Daí um historicismo mais ou menos explícito, até mesmo uma ver- da cultura, que se tornou objeto de críticas radicais ou de diagnósticos
dadeira teleologia das heranças sucessivas, assim como a convicção de
que o patrimônio, pela necessidade de sua preservação, deve receber 37. Miroslav Hroch, "De l'Ethnicité à la nation: Un Chemin oublié vers la modernité", in
o apoio do Estado. Anthropologie et Sociétés, vol. 19-3, I995, p. 71-86; e Social Preconditions ofNational
Revival in Europe: A Comparative Analysis ofthe Social Composition ofPatriotic Groups
Among the Smaller European Nations, Nova York: Columbia University Press, 2000.
submergem o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior." (Roland Barthes, opposition entre nationa-
38. Alain Dieckoff, "La Déconstruction d'une illusion: L'Introuvable
"Le Théâtre de Baudelaire", in Essais critiques, 1954, p. 41.) lisme politique et nationalisme culturel", in L'Année Sociologique, vol. 46, n. 1, 1996.
36. Primeira lição proferida no Collège de France, em forma de exposição de método, d'art
39. Christina Kott, Protéger, confisquer, de'placer: Le Service de préservation des oeuvres
"La vie et l'étude des monuments (rançais" foi publicada em Revue Bleue, Paris, vol. en Belgique et en France occupées pendant la Première Guerre mondiale, 1914-1924, tese,
1, p. 3-4. Na sequência, os nove cursos de 1905 a 19I3 foram editados em Camille EHESS, 2002; Yann Harlaut, La Cathédrale de Reims du 4 septembre Ie914 au 10 juillet
Jullian, Au Seuil de notre histoire, Paris: Boivin, 1930. Ie938: Idéologies, controverses et pragmatisme, tese, Universidade de Reims, 2006.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

catastróficos. Em 1936, Élie Halévy escrevia que essa época das ti- providências para sua manutenção e transmissão, parece satisfazer uma
ranias caracteriza-se "do ponto de vista intelectual (pela) estatização das aspirações profundas das sociedades contemporâneas. Encarnação
do pensamento, que por sua vez assume duas formas: uma negativa, consensual dos valores cívicos, além de pretexto para articular atitudes
pela supressão de qualquer opinião julgada desfavorável ao interesse culturais e práticas de consumo, essa verdadeira explosão de iniciativas
nacional; e a outra positiva, por aquilo que designamos como a orga- patrimoniais corresponde certamente à nova condição — pelo menos
nização d.o entusiasmo"40. nesse plano — de obras ou de lugares que se encontravam sem uso no
Entretanto, as destruições da Segunda Guerra Mundial (bairros e espaço público. Mas, sobretudo, ela fornece recursos apropriados para
cidades inteiras) é que, sem dúvida, tiveram as mais relevantes consequên- alimentar um ideal de participação ativa no âmago de coletividades
cias sobre a consciência patrimonial europeia, assim como sobre suas inéditas (no museu ou in situ, .diante do monumento ou sobre um
modalidades de restauração e de uso. A conservação dos monumentos território). Sob o signo de uma "provocação da memória", o patrimônio
visava, daí em diante, algo que superava o horizonte do antiquário instala-se assim no centro da instituição da cultura e é acompanhado
ou histórico: o que Louis Grodecki designava por busca do "valor do por uma ética, ao mesmo tempo, da precaução e da fruição. Desse
efeito produzido"; a reforma do centro antigo de Varsóvia é um notável modo, esboça-se, em arqueologia ou em arquivística, uma exigência de
exemplo dessas novas representações. Para o professor Zachwatowicz, respeito pelo objeto, ao definir regras de tratamento de sua diferença»
artesão da reconstrução fidedigna do século XVIII e, às vezes, do século O conjunto dessas iniciativas revela a generalização de uma sen-
XVI, a justificativa do empreendimento tem a ver com "a vontade de sibilidade em relação a uma herança "cultural" cujo interesse parece,
fornecer ao país a consciência de um passado cultural que havia sido com ou sem razão, ter sido negado ou ignorado durante um período
ameaçado de negação e de aniquilamento".41 Nem o valor de monu- demasiado longo. Esse postulado alimenta, hoje em dia, uma consciência
mentalidade intencional, nem o de monumento histórico, nem o do aguda de que a definição e os contornos dos patrimônios estão profun-
monumento antigo — para retomar a tipologia do historiador da arte damente associados à atualidade de uma sociedade, a seus interesses
Alois Riegl —, constituem aqui a referência obrigatória. O mesmo se do momento e até mesmo a suas modas. De fato, tal restauração de
passa com as discussões a propósito da reconstrução do castelo na área monumentos históricos, tal museografia, tais conclusões dos folcloristas
central de Berlim, desencadeadas em meados da década de 1990, em nome do século passado são tão reveladoras de um momento da metamorfose
da reconquista da cidade perdida. Pode-se reconhecer aí uma das figuras patrimonial quanto da autenticidade dos objetos ou das práticas que,
características do patrimônio contemporâneo, tornado lugar-comum dos supostamente, elas deveriam conservar e valorizar; assim, sob a óptica
discursos sobre a identidade. moderna, o patrimônio revelaria leituras em vários planos.
O termo "patrimônio" conheceu desse modo um notável sucesso Essa nova consciência da patrimonialização acompanha a promoção
no mundo inteiro: o caso da França, país em que o rápido desenvol- de novas relíquias, em uma perspectiva relativamente restritiva. Com
vimento da fórmula apoiou-se na comemoração do Ano do Patrimônio, efeito, em numerosos países, o patrimônio tornou-se um dos desafios
no limiar da década de 1980, é uma de suas mais notáveis ilustra- do desenvolvimento cultural. Na França, segundo parece, tal ambição
ções. A representação de uma herança a ser conservada, tomando as data do decreto de nomeação de André Malraux como ministro de

40. Élie Halévy, L'Ère des tyrannies, Paris: Gallimard, 1938 [2. ed., 1990]. 42. Cf., entre as numerosas referências, Michael Shanks e Christopher Tilley, Re-cons-
41. Apud Louis Grodecki, "Tendances actuelles dans la restauration des monuments tructing Archaeology — Theory and Practice, Londres: Routledge, 1922, p. 138. Nesse
historiques", in Les Monuments historiques de la France, 1965, retomado in Le Moyen aspecto, a literatura sobre o arquivo é considerável: cf. Helen Freshwater, "The allure
Age retrouvé, II, Paris: Flammarion, 1991, p. 398. of the archive", in Poetics Today, vol. 24, n. 4, 2003, p. 729-758.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

Estado dos Assuntos Culturais (3 de fevereiro de 1959), que o incum- em torno da temática do patrimônio, e, se for o caso, exportáveis na
bia "de garantir a mais ampla audiência a nosso patrimônio cultural". área de influência de cada nação, esteve assim particularmente presente
Mais tarde, em 1975, o termo foi estendido à Comunidade Europeia, na Europa nos últimos anos.
enquanto os discursos oficiais davam testemunho, progressivamente, Hoje em dia, a patrimonialização parece confundir-se com a patri-
de um desígnio militante. O vocabulário administrativo carregou sua monialidade — no sentido em que a atribuição do qualificativo "pa-
marca, desde a promoção dos "novos patrimônios", em 1981, até o trimônio" a objetos no seio de determinada sociedade e sua preservação
colóquio Les Monuments Historiques Demain (1984), os Encontros legal identifica-se, aparentemente, com o lugar sensível e íntimo que
Nacionais dos Ecomuseus (En Avant la Mémoire!, 1986) ou o Fórum eles ocupam no âmago das consciências individuais ou dos grupos
do Patrimônio, realizado, de maneira aparentemente paradoxal, na Cité sociais, em decorrência do esforço despendido para viver em harmonia
des Sciences et de l'Industrie de la Villette (Paris, 1987). Na esteira de com a cultura material do passado. Entretanto, o patrimônio não está
todos esses eventos, uma abundante literatura profissional tem mos- indene, muito pelo contrário, de vontades predadoras: tanto os monu-
trado empenho em inventariar os patrimônios inéditos ou em adaptar mentos celebrados pela "tradição do novo" quanto os objetos da família
os patrimônios já identificados que exigem ser renovados e atualizados. que, cotidianamente, entram no museu têm a ver com modalidades de
Tais mutações passaram por ritmos diversificados, segundo as apropriação que, sem qualquer embasamento, são consideradas óbvias,
tradições culturais dos diferentes países; no entanto, o movimento de para não dizer "naturais". Esperamos que o retorno aos alicerces do
conjunto não deixa de ser impressionante. A partir do decênio 1980- patrimônio nacional — de acordo com nossa proposta neste livro -
1990, políticos e cidadãos compartilharam a "evidência" segundo a qual permita uma abordagem renovada do fenômeno.
tudo deveria ser considerado a priori como elemento do patrimônio
(a fórmula é utilizada, nos últimos quinze anos, por diferentes minis-
tros ou responsáveis europeus). Trata-se de encontrar, de novo, a figura A caminho de uma antropologia histórica da
já evocada da cultura-estilo: com a atribuição de estatuto de museu para patrimonialização francesa
o jardin ouvrier43, assim como para o galpão de ensaios de um grupo
de rock pesado, as culturas de todos os grupos sociais são suscetíveis de As inscrições da patrimonialidade e as formas de patrimonialização
passar por patrimônios, em um caleidoscópio de identidades. Enfim, passam, entre o final do século XVIII e a década de 1830, de uma repre-
a antecipação dos riscos de desaparecimento contribui para que o de- sentação "monumental" do saber e da memória para uma configuração
safio econômico se torne patente. Ao exigir uma redefinição científica que compreende todos os elementos da cultura material do passado, tal
e, ao mesmo tempo, um novo estatuto para os objetos visados, cada como ela era compreendida, na época, pela nova história." A partir da
reivindicação de um novo registro no patrimônio suscita também mer- Revolução, diferentes processos — da invenção do museu à invenção
cados especializados — o da restauração e o do tratamento. A ideia de do monumento histórico, desde a reconfiguração da arqueologia aos
um reservatório de empregos e de habilidades amplamente disponíveis sucessos do romance histórico — inventaram uma tradição patrimo-
nial que remete à nova coletividade nacional e, durante muito tempo,
43. Criados no final do século XIX, os jardins ouvriers — e, após a Segunda Guerra irá permanecer como a base das atitudes francesas diante da herança.
Mundial, designados por jardins familiaux ou hortas comunitárias — são parcelas
de terreno disponibilizadas pelas municipalidades, visando melhorar as condições de
vida dos operários ao proporcionar-lhes, além de uma autossubsistência alimentar, 44. Cf. Patrick H. Hutton, "The Role of Memory in the Historiography of the French
o contato com a natureza, afastando-os dos botequins. [N.T.] Revolution", in History and Theory, vol. 30, n. 1, 199I, p. 56-69.

32 33
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

A Revolução não é somente uma vontade de desligar-se do Antigo de arquivos e de monumentos entre imundícies ou depósitos negligen-
Regime que serve de suporte ao que François Furet designava por "uma ciados indicam o advento da modernidade. Ao longo do século XIX,
espécie de hipertrofia da consciência histórica" — entenda-se, a cons- uma infinidade de diversos monumentos, de tapeçarias a túmulos,
ciência exacerbada da ruptura, conjugada a uma atrofia do sentido da são "inventados" por diferentes patrimonializadores, de acordo com
profundidade da história" —, mas constitui também uma inflexão im- o espírito de um salvamento: eles passam por elementos privilegia-
portante da inscrição memorial. Na sequência desses decênios, a memória dos da memória cultural — ao lado das práticas costumeiras e das
cultural convoca de maneira privilegiada os vestígios materiais do passado, tradições orais, ou seja, as "vozes que vêm do passado", coletadas
por intermédio dos textos." O presente estudo gostaria de delinear, em e estudadas simultaneamente, assim como à procura das últimas
primeiro lugar, a reviravolta desse modo de inscrição da memória cultural testemunhas de um passado desaparecido." Na sequência, a manu-
que tem a ver, amplamente, com a emergência de uma representação da tenção de antiguidades no seio dos lares burgueses e a proliferação
história, cuja função, de acordo com a afirmação de Alphonse Dupront, dos arquivos familiares participaram do mesmo movimento pelo qual
consiste em "desdobrar o que foi endurecido elo tempo" em uma varie- a transmissão à posteridade, muito apreciada pelas Luzes e pela Revo-
dade cada vez mais considerável de objetos. lução, reconfigurou-se em um tratamento de objetos materiais, sempre
A consciência de viver em uma temporalidade comum, de perten- incompletos e ameaçados."
cer a uma contemporaneidade afastada do passado e distinta de um O primeiro capítulo deste livro é dedicado ao regime da curiosidade
futuro ilimitado e incerto, é provavelmente um dos resultados mais histórica, tal como é concebido pelas Luzes. Ele havia estabelecido
evidentes dos decênios revolucionário e imperial, transformando-os com os monumentos, as coleções históricas e as antiguidades uma
em uma experiência amplamente compartilhada.47 O Antigo Regime relação ambígua; de fato, aos testemunhos materiais autênticos são
havia desaparecido mediante a destruição de seus signos, vestígios e acrescentados monumentos imaginários, organizados e apresentados
símbolos; mais tarde, porém, sua nostalgia mobilizou suas relíquias ao público em espaços abertos, de diferentes status, desde os "países das
— assim como as lembranças orais consignadas com um maior ou ilusões" até os jardins públicos. Semelhantes dispositivos forneceram
menor grau de devoção. Mas esse conjunto de ruínas já não oferece aos espectadores não só elementos de conhecimento, mas também de
perspectiva contínua, nem permite uma leitura convincente: sua frag- fruição e de emoção; os supostos benefícios da paisagem constituída por
mentação sugere um trabalho de esquecimento e supressão que deverá monumentos antigos alimentaram, paralelamente, utopias arquiteturais
ser integrado, daí em diante, às representações do passado. Nesse e políticas. Aos poucos, a comparação entre objetos dos antiquários e
domínio, os textos limitaram-se a desempenhar um papel bastante textos dos historiadores esboçava a fisionomia inédita de uma auten-
precário, diferentemente dos períodos precedentes, em que a transmis- ticidade passada — figura de ruptura com o presente, o familiar e o
são à posteridade reivindicava, acima de tudo, o documento escrito. convencional.
Os múltiplos episódios de descobertas, no decorrer do século XIX, Dois episódios particularmente cruciais forneceram, em seguida,
matéria para os três capítulos centrais deste livro. O primeiro é o do
"
45. François Furet, Penser Ia Révolution Française, Paris: Gallimard, 1978, p. 15, 31-32, vandalismo" revolucionário. A nacionalização de bens patrimoniais, o
46-49.
46. Jan Assmann, "Collective Memory and Cultural Identity", in New German Critique,
vol. 65, 1995, p. 125-133. 48. Philippe Joutard, Ces Voix qui nous viennent du passé, Paris: Hachette, 1983.
47. Nesse aspecto, concordo com Peter Fritzsche, "Specters of History: On Nostalgia, 49. Para sua versão contemporânea, cf. Janet Hoskins, Biographical Objects, How Things
Exile and Modernity", in American Historical Review, vol. 106, n. 5, 2005. Tell the Stones of People's Live:, Londres: Routledge, 1998.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

inventário das riquezas da França, as medidas iconoclastas acabaram por instituição da educação." O esforço ulterior do político e historiador
suscitar uma consciência inédita dos vestígios do passado na paisagem François Guizot (1787-1874) é exemplar de uma vontade de superar,
presente, sem deixar de enfatizar uma opacidade sem precedentes, por uma colocação em perspectiva histórica, visões partidárias con-
ao mesmo tempo ameaçadora e crepuscular. Uma busca histérica denadas à falência, além de ter fundado, em uma imparcialidade sem
de utilidade marcou, em seguida, sua recensão e conservação. Entre precedentes, a conservação da civilização e de sua herança.
os vencidos da história, a preocupação em proteger determinado Finalmente, o primado dos vestígios materiais sobre as outras fon-
monumento do passado, sinal de uma diferença quase ontológica, tes torna-se banal nos escritos dos arqueólogos: "O menor vestígio que
incrementou um sentido do passado que, pelo contrário, se tornou tenha escapado das ruínas da Antiguidade fornece-nos a seu respeito
valor de resistência. mais ensinamentos", afirma Raoul-Rochette, "que todos os livros." Daí
Nesse aspecto, a questão dos mortos é fundamental, já que remete resulta uma nova poética do saber histórico, da qual Napoleão Bonaparte
à partilha entre comunidade e coletividade: a funcionalização dos mor- é testemunha ao garantir que foi "levado à Síria", segundo a afirmação
tos, reconhecida por Reinhart Koselleck como origem do novo regime, de Alexandre Lenoir 51 , depois de ter visitado o Museu dos Monumentos
traduz-se por uma nova economia relativa aos monumentos. Outrora, Franceses. Contrariamente ao modelo clássico da coleta de monumentos
os defuntos pertenciam à comunidade cristã ou a uma comunidade ou da compilação dos antiquários, o romance histórico, assim como a
da lembrança. Daí em diante, o processo de patrimonialização das viagem pitoresca, serve-se de monumentos e de lugares como se tratasse
personalidades importantes exige uma utilidade material e documen- de outros tantos cronotopos (M. Bakhtin, cf. cap. 4) propícios a instigar o
tal para a coletividade. Trata-se, nesse caso, de uma dessacralização leitor. Na sequência, a prosa de Walter Scott, assim como o colecionismo
dos monumentos, acompanhada por processos de desencarnação do de Alexandre du Sommerard no Hôtel de Cluny52, circunscrevem o es-
Estado, pela obsessão da idolatria e, de maneira geral, pelo temor paço da vida privada como o verdadeiro lugar de inscrição da diferença
do sensualismo em relação às imagens. Até hoje, tal clivagem per- histórica." Daí em diante, o passado torna-se o pretexto para investi-
corre a literatura patrimonial, produzida na França, entre a nostalgia mentos subjetivos e, ao mesmo tempo, para um uso crítico, capazes de
de uma herança comunitária (e religiosa) e o funcionalismo de um constituir um acervo a partir de uma diversidade inédita das referências
patrimônio que ilustra o universal (laico). Por um lado, a patrimo- — em vez dos estereótipos precedentes, o Antiquado ou Antigo Regime.
nialização justifica-se por preocupações práticas e pela eficácia dos
valores modernos; por outro, a exigência de vínculos e o protesto em
prol de uma identidade em partilha têm valor de reivindicação de uma
50. Cf. Frédérique Diodati-Remandet, "La Réflexion éducative de Hugo sous la monar-
patrimonialidade ameaçada. chie de Juillet", relatório da comunicação ao Groupe Hugo (Universidade de Paris
A geração de 1830 realizou um trabalho de luto, em relação tanto ao VII), em 20 de maio de 1995.
Antigo Regime, ao qual já não pode retornar, quanto à ilusão do futuro 51. Arqueólogo francês (1761-1839) que, durante a Revolução Francesa, coletou e pre-
servou um grande número de esculturas e monumentos funerários, tendo criado o
proposto em 1789. Diante do que parece ser uma insegurança moral Musée des Monuments Français no antigo convento dos Petits-Augustins, em Paris;
inédita — a responsabilidade de destruir ou perpetuar determinados atualmente, École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (ENSBA). [N.T.]
edifícios, símbolos da beleza universal, é deixada a seus proprietários oca- 52. Edifício do século XV, localizado perto da Sorbonne, que serviu de residência ao
arqueólogo Alexandre Du Sommerard (1779-1842), colecionador de objetos de
sionais —, Victor Hugo (1802-1885) defende uma garantia irrevogável
arte da Idade Média e do Renascimento. Atualmente, museu que abriga a "Seção
da transmissão, delineando um horizonte de expectativa desligado, daí Medieval" do Departamento dos Objetos de Arte do Louvre. [N.T.]
em diante, do apelo às lembranças, integrado a uma reflexão sobre a 53. Stephen Bann, The Clothing of Clio, Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

36 37
1

UMA REPRESENTAÇÃO DO
SABER E DA MEMÓRIA

Um idioma comum seria o único recurso para estabelecer


uma correspondência que se estendesse a todas as partes
do gênero humano e as ligasse contra a Natureza que tem
sido maltratada incessantemente por nós, do ponto de vis-
ta físico e moral. No pressuposto da aceitação e regulamen-
tação deste idioma, as noções tornam-se, imediatamente,
permanentes; desaparece a distância entre os tempos; os
lugares tocam-se; formam-se vínculos entre todos os pontos
habitados do espaço e da duração; além disso, todos os
seres vivos & pensantes estabelecem intercâmbio entre si.
Diderot e D'Alembert, "Encyclopédie", in Ency-
clopédie, Paris, 1751-1772, vol. 5.

A famosa Voyage en Italie de Goethe ilustra, de maneira clássica, o


percurso de um viajante que conhece, como é designado pelo autor,
um segundo nascimento"'; trata-se, também, por excelência, de uma
viagem patrimonializadora, oportunidade para uma série de aquisições,
que redundou na criação de uma casa-museu em Weimar, na qual os
viajantes do século XIX puderam, por sua vez, usufruir dos múltiplos
tesouros e lembranças do mundo antigo, coletados no decorrer dos pé-
riplos goethianos de 1786-1788. De resto, as notas de Goethe contêm
numerosos resumos para o historiador do patrimônio e dos museus -
desde as observações sobre a iluminação noturna das estátuas nos museus
romanos, a partir da década de 1780, até a intuição de um vínculo entre o
progresso dos recursos de reprodução, a comercialização de novos produ-
tos de "populuxo"2 e a multiplicação dos elementos de um patrimônio.
Como prova, ele apresenta "o arriscado empreendimento que consistiu

1. Cf. Goethe, Voyage en Italie, edição estabelecida por Jean Lacoste, Paris: Bartillat,
2003.
2. Cf., por exemplo, Maxine Berg, "From Imitation to Invention: Creating Commo-
dities in Eighteenth-Century Britain", in The Economic History Review, vol. 55, n.
1, 2002. ["Populuxo": consumismo acelerado pelo desejo de modernidade. (N.T.)]

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

em realizar uma cópia das Logge [no Vaticano] de Rafael para a impe- Veneza e o Império da Áustria"5. O viajante encontrou-se realmente em
ratriz Catarina", de que nosso viajante tem um conhecimento parcial apuros e só conseguiu escapar dessa situação crítica graças ao testemunho
em setembro de 1787, equiparando-o às diversões para turistas, como em seu favor de um italiano que conhecia bem Frankfurt. Esse episó-
são, na época, a encáustica e a fabricação de pedras artificiais. 3 Mas, dio mostra, de maneira exemplar, o que seríamos tentados a designar
no livro citado, vamos chamar a atenção sobretudo para três episódios, como uma pedagogia política do patrimônio: o intelectual alienígena
cuja natureza é bastante diferente — duas gargalhadas e um início de propôs, por assim dizer, uma identidade (memorial e estética) a uma
motim —, que dão testemunho do que poderia ser designado como comunidade que desejava ignorar semelhante atribuição. "Eu não po-
uma antropologia histórica do patrimônio. deria criticar os habitantes de Malcesine, acostumados desde a infância
a este edifício, por não o terem considerado — a exemplo de minha
percepção — como uma beleza pitoresca. Com seus resplandecentes
A invenção identitária raios, o sol veio, providencialmente, iluminar a torre, as rochas e as
muralhas; então, comecei a descrever-lhes esse cenário com entusiasmo.
Qualquer tipo de patrimônio, tal como o entendemos atualmente, Mas, como meu público estava de costas para os objetos elogiados e se
tem a vocação de encarnar uma identidade em certo número de obras ou recusava afastar-se de mim, todas as cabeças giraram de repente [...]
de lugares. Neste aspecto, conhece-se o sucesso obtido pelas páginas de para o objeto descrito. [...] Nada lhes poupei, nem sequer a hera que,
Goethe dedicadas à catedral de Estrasburgo.4 Em Malcesine, perto há séculos, tinha tido tempo para cobrir o rochedo e os muros com a
de Verona, ele enfrentou o que, de acordo com suas palavras, é "uma mais deslumbrante decoração."
perigosa aventura", mas "cuja lembrança (lhe) parece divertida", sem Nesse episódio, verifica-se o confronto entre duas representações: a
deixar de ser significativa. O viajante estava desenhando, no próprio primeira, familiar aos súditos do Antigo Regime, era a de um territó-
local, um velho castelo quando, aos poucos, juntou-se uma multidão rio, cujos limites são materializados por diversos monumentos e cujo
à sua volta, perguntando-lhe o motivo de seu trabalho; os espectadores controle dependia de um saber estratégico, objeto eventual de espiona-
acabaram por rasgar seu desenho e mandaram chamar o podestade. gem. A representação estetizada de uma paisagem a ser desenhada ou
Diante dessa autoridade, Goethe afirmou que se limitava a reproduzir pintada — que ilustra, aqui, a categoria do sublime ou a do pitoresco
restos e não propriamente uma fortaleza, enquanto seus adversários medieval — caracterizava, em compensação, o mundo das elites,
6
opinaram que ele estava fazendo espionagem por conta do território vi- em particular o microcosmo dos amadores de desenho. O homem
zinho. O debate acabou por fazer referência à definição do que é digno de gosto, estranho à comunidade tradicional, transformava-se aqui
de ser relevado: a evocação das ruínas de Roma, ou do anfiteatro de no mentor de um orgulho local, propondo-lhe inscrever-se em uma
Verona, para defender a causa das "belezas pitorescas" da Idade Média i magem que ele havia inventado — e que há de tornar-se rapidamente
foi contestada pelos habitantes. Com efeito, os edifícios romanos eram um lugar-comum romântico. Para além da viagem pitoresca, da qual
célebres "em todo o mundo", contrariamente a "estas torres que nada ela participava com essa figura de desenhador de temas, a postura de
têm de notável a não ser o fato de indicarem a divisa entre o território de Goethe anunciava uma posição que, mais tarde, será ocupada pelo
3. Goethe, op. cit., p. 458.
4. Cf.,France-Almg para a interpretação de conjunto, Louis Dumont, L'Idéologie allemande: 5. Goethe, op. cit., p. 37 (14 set. 1786).
et retour, Paris: Gallimard, 1991; Celia Applegate, A Nation of Provinciais: 6. Benedict Anderson, Imagined Communities: Reflections on the Origin and Spread of
The German Idea of Heimat, Berkeley: University of California Press, 1990. Nationalism, Nova York/Londres: Verso, 1991.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÁO DO SABER E DA MEMÓRIA

Inspetor dos Monumentos Históricos, na configuração imaginada, em essas pessoas "professavam tal religião e ainda tinham o costume de
1830, pelo político influente e historiador François Guizot: trata-se da prestar-lhe adoração". "Ela acrescentou que, ultimamente, uma senhora
capacidade de dirigir as consciências e os modos de apropriação dos dessa religião tinha ficado de joelhos diante da estátua para adorá-la.
habitantes, graças a uma pedagogia política e cultural.' Entretempo, Como boa cristã, não pôde deixar de rir diante de um ato tão bizarro
o viajante tornar-se-á um expert, empossado de uma legitimidade e teve de sair da sala para não dar uma gargalhada." "Como eu próprio
que, evidentemente, não existia nesse caso, já que ela é amplamente não conseguia afastar-me da Minerva", prosseguiu Goethe, "a mulher
a herança do momento revolucionário. Para a geração de 1820-1830, perguntou-me se, porventura, eu tinha uma amante parecida com
a definição patrimonial das paisagens da França Antiga elaborou-se a esse mármore por exercer tamanho atrativo sobre mim. Essa senhora
partir da tábula rasa dos velhos territórios políticos das províncias, de- li mitava-se a conhecer a devoção e o amor; assim, não podia ter qual-
pois de ter sido aceita a nova divisão administrativa em departamentos: quer ideia, seja da pura admiração por uma obra nobre, ou do respeito
9
na perspectiva, acalentada por Emmanuel Sieyès, de uma adunação fraterno pelo gênio do artista."
territorial, adaptada a uma nova arte política.8 O tema tornou-se recorrente em numerosos relatos de viajantes ou
de visitantes de museus. Semelhantes estereótipos suscitam a questão
da cristalização, para retomar a célebre análise stendhaliana do amor,
A transferência da sacralidade em face da ignorância. Nesse aspecto, Goethe não defendeu qualquer
proposição — quando, afinal, a retórica revolucionária e, em seguida,
O segundo episódio remete à necessária articulação de um patri- suas versões progressistas ulteriores hão de conformar-se a um ideal
mônio com práticas, em face de um sensualismo que, por sua vez, de educação. Em particular, o valor superior das obras de arte da An-
receia tanto mais os efeitos perversos de afinidades imprevistas que tiguidade culminará, na versão revolucionária, em um panegírico da
ele está pronto a elogiar as consequências benéficas de identificações apropriação nacional, na perspectiva de uma regeneração: "A maior
legítimas, educativas ou patrióticas. parte dos monumentos da Antiguidade limita-se a oferecer aos súdi-
A propósito de uma estátua de Minerva do palácio Giustiniani, tos dos déspotas um espetáculo penoso, lembranças amargas e lições
Goethe descreveu os comentários da mulher do porteiro: impressio- inúteis, já que raramente eles tiveram coragem de tirar proveito desses
nada com a admiração suscitada nos ingleses por esse objeto, ela havia objetos. Pelo contrário, os povos livres apreciam ver em tais obras o
concluído que se tratava de uma imagem sagrada de outrora; assim, gênio das artes apoiado pelo gênio da Liberdade; elas servem-lhes de
modelos. Além disso, o gênero de estudo pelo qual a Grécia e a Itália
7. Para o Relatório referente à criação deste cargo, cf. Françoise Choay, A alegoria do republicanas são associadas à França regenerada é uma das disciplinas
patrimônio, 3a ed., São Paulo: Unesp/Estação Liberdade, 2006, "Anexo", p. 259. [N.T.)
cujo gosto deve ser divulgado o mais amplamente possível e cujo ensino
8. De acordo com Sieyès, o projeto de constituição da nação passa por um trabalho
de adunação — tendo em vista a unidade de cidadãos iguais pelo sacrifício dos in- deve ser facilitado."
divíduos — que implica o novo corte departamental, a supressão das comunidades
e das distinções geográficas, em poucas palavras, uma divisão instrumental. Alain
Desrosières, La Politique des grands nombres, Paris: La Découverte, 1993, p. 43-48;
Pierre Rosanvallon, Le Peuple introuvable: Histoire de la représentation démocratique
en France, Paris: Gallimard, 1998. Para a fisionomia dessa ciência social, cf. Keith
M. Baker, "Closing the French Revolution: Saint-Simon and Comte", in François
Furet e Mona Ozouf (orgs.), The Transformation of Political Culture, Ie789-Ie848,
Oxford: Pergamon, 1989, p. 337 ss. 9. Goethe, op. cit., p. 184 (Roma, 13 jan. 1787).

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

A construção do valor parecem negar, de antemão, qualquer tentativa de ordem pedagógica


ao zombarem do interesse que os estrangeiros ricos nutrem por "lem-
No final de fevereiro de 1787, Goethe dirigiu-se, pela Via Appia, branças" antigas.
de Roma para Velletri, sítio em que ele descobriu lugares "de uma be- Se, nos dois primeiros episódios, permanece indene o amor próprio
leza inexprimível" e, sobretudo, o museu do cavaleiro Borgia, espaço do viajante, já que a ingenuidade encontra-se na origem de reações
ocupado por antiguidades e raridades de toda a espécie: "Seria imper- ridículas ou incongruentes, neste último caso ele é achincalhado por
doável não visitar, com maior frequência, este tesouro situado tão perto uma subversão do saber e do gosto. Após a Revolução Francesa, Quatre-
de Roma; mas, o vínculo mágico que nos prende a esta cidade pode mère de Quincy defenderá a antiga afeição às obras, mesmo quando ela
servir de desculpa." A fórmula indicava a especificidade da Urbs e, por está baseada em ilusões e erros, por dar testemunho de uma verdadeira
extensão, de qualquer capital cultural: a distinção entre patrimônio admiração ou, pelo menos, de um sentido de sua destinação e de seu
universal e patrimônios locais remetia a uma escala de excelência ou contexto. Mas as experiências de Goethe não têm relação com o mundo
de abundância, sem ser exclusiva de diferentes partilhas. No entanto, pós-revolucionário — desse novo tradicionalismo que corresponde à
o episódio é válido, sobretudo por enfatizar contestações imprevistas reviravolta anterior. Sua viagem dava testemunho de um mundo do
relativamente ao valor dos objetos. patrimônio amplamente incoativo, exposto a inúmeras contestações, e
Ao deixar o gabinete Borgia 1°, Goethe foi, de fato, vítima de uma que devia lutar para conseguir a legitimidade exclusiva na abordagem
brincadeira detestada por ele: "Ao nos dirigirmos para a estalagem, das paisagens, lugares e objetos do passado. y
algumas mulheres, sentadas diante da porta das casas, propuseram-nos
o seguinte: 'Os senhores não gostariam, também, de comprar anti-
guidades?' E como demonstrássemos nosso interesse, elas trouxeram O monumento e a história
velhas caldeiras, atiçadores e outros utensílios em mau estado, dando
gargalhadas por nos terem pregado tal peça. Ficamos furiosos, mas O dicionário de D'Aviler ( Cours d'architecture avec une ample explica-
nosso guia tranquilizou-nos ao garantir que se tratava de uma brinca- tion par ordre alphabétique de tous les termes, 1761) definia o monumento
deira habitual e era um tributo a ser pago por todos os estrangeiros." nestes termos: "qualquer construção que serve para conservar a memória
Essa espécie de vexame imposto aos incautos estrangeiros constituía do tempo e de seu fabricante ou daquele para quem havia sido erguido,
uma inversão carnavalesca da arte antiga à contemporânea, de um tal como um arco de triunfo, um mausoléu ou uma pirâmide". O depu-
gabinete de elite às baterias de cozinha com utensílios desgastados, o tado Armand-Guy Kersaint, em seu Discours sur les monuments publics,
que evocava forçosamente o deboche dos filósofos e dos historiadores pronunciado em 15 de dezembro de 1791, declarava igualmente
em relação aos antiquários que estariam interessados exclusivamente que "os monumentos são as testemunhas irrepreensíveis da história;
pelas caçarolas e colheres dos Antigos — ver Diderot e seu desdém pelo sem suas augustas ruínas, tudo o que ela nos transmitiu dos gregos e
erudito Fougeroux.12 De qualquer modo, tais manifestações femininas romanos teria deixado a impressão de uma simples fábula" (p. VI).13

10. Cf. Marco Nocca (org.), Le quattro voci del mondo: Arte, cultura e saperi nella collezione
di Stefano Borgia Ie731-1804, Nápoles: Electa, 2001. 13. Sobre a teoria da arquitetura no século XVIII, cf. Françoise Fichet, La Théorie archi-
tecturale à l'âge classique, anthologie, Bruxelas: Mardaga, 1979; John Summerson, Le
11. Goethe, op. cit., p. 208-209 (22 de fevereiro de 1787). Langage de l'architecture classique, Paris: Thames & Hudson, 1992; Werner Szambien,
12. Em seu comentário a respeito de Recherches sur les mines d'Herculanum, por M. Symétrie, goût , caractère: Théorie et terminologie de l'architecture à l'âge classique, 1550-
Fougeroux de Bondaroi, 1769. Ie800, Paris: Picard, 1986.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

Por sua vez, o Dictionnaire des beaux-arts (1806) de Aubin-Louis Millin linguagem compartilhada da arquitetura que refletisse os gostos e os
continuava definindo o monumento como uma "obra de arte erguida conhecimentos de diversas civilizações, ao serem contestados seus
em uma praça pública para conservar e transmitir à posteridade a me- fundamentos "naturais". O tratado do padre De Lubersac é um bom
mória das personagens ilustres ou dos acontecimentos notáveis [...], resumo de tal campo de investigação (seu Discours sur les monuments
uma obra de arquitetura em que as artes do desenho foram utilizadas publics de tous les âges et de tous les peuples connus, de 1775, compreen-
para falar à posteridade". Além disso, em sua acepção banal, o termo dia igualmente uma análise crítica das fabriques — veja definição mais
é sinônimo de "túmulo". abaixo — construídas nos jardins contemporâneos, tal como o parque
Nas publicações neoclássicas, o monumento situava-se no topo de Monceau, em Paris), assim como o de Nicolas Le Camus de Mézières
uma escala implícita dos valores, como único digno de transmitir à (Le Génie de l'architecture ou l'analogie de cet art avec nos sensations,
posteridade os sinais de uma civilização importante. Seu estudo har- 1780), ele próprio autor de uma descrição do jardim pitoresco, sua
monizava-se com um credo estético, assim como ético-político. Desse ambição final. Em seu livro Lettres sur l'architecture des anciens (1787),
modo, a pirâmide representava para Étienne-Louis Boullée o monu- Viel de Saint-Maux explicava a inspiração "simbólica" e "alegórica"
mento por excelência, pelo fato de ter conseguido atravessar os séculos, da arquitetura antiga: os templos da Antiguidade eram celebrações da
dando testemunho de um povo famoso pelo interesse manifestado por astronomia em todos os seus detalhes; cada forma e cada número eram
seus mortos: "É óbvio que, ao erguer essa espécie de monumento, o escolhidos por sua lição ou embelezados com alguma mensagem signi-
objetivo é perpetuar a memória daqueles a quem eles são dedicados. ficativa. A impossível decifração dos monumentos antigos não era seu
Convém, portanto, que tais monumentos sejam concebidos de maneira menor atrativo, no momento em que o hieróglifo passava por ser um
a desafiar os danos provocados pelo tempo; os egípcios deixaram-nos paradigma. Para Dominique-Vivant Denon, os monumentos egípcios
exemplos famosos."14 No entanto, a passagem do monumento para o "eram os livros abertos em que a ciência era desenvolvida, a moral era
santuário, nas versões negativas da história, ilustrava a transformação ditada e as artes úteis eram professadas; tudo falava, tudo era animado
da estátua em ídolo. Autor de Origine, progrès et décadence de l'idolâtrie 6
e sempre com o mesmo espírito".1 Em um círculo interminável da
(1757), Guillaume-Alexandre de Méhégan assegurava que as estátuas interpretação simbólica, o relatório de Lenoir, Antiquités mexicaines,
— inicialmente associadas aos túmulos — acabaram por se transfor- reconhecia, por sua vez, hieróglifos nos monumentos americanos.
mar em altares de divindades: "Esses túmulos foram convertidos aos De maneira geral, a arquitetura, "associada ao brusco desenvol-
poucos em uma espécie de templos... Um primeiro movimento faz vimento do urbanismo, à criação de novas cidades e à exumação das
quase sempre imaginar — sobretudo a homens rudimentares — que cidades soterradas, é sem dúvida o mais amplo e mais bem caracterizado
17
as almas associadas às cinzas permanecem, de algum modo, com elas domínio de aplicação — ou de projeção utópica — da arte neoclássica".
e continuam habitando nos mesmos lugares."15 Os projetos de embelezamento urbano do século XVIII, as cidades
A convicção de que existe uma linguagem simbólica dos monu-
mentos era acompanhada e alimentada pela tarefa de inventário do 16. D.-V. Denon, Voyage dans la Basse et Haute-Égypte en 1798 et Ie799, Paris: Didot
l'Ainé, 1802, p. 180.
mundo antigo. Além disso, tratava-se de defender o princípio de uma
17. Jean Leymarie, prefácio de David e Roma, Roma: De Lucca, 1980, p. 10. Cf. sobre
14. Étienne-Louis Boullée, Architecture: Essai sur l'art, apresentação de Jean-Marie Pérouse esses temas: Allan Braham, L'Architecture des Lumières de Soufflot à Ledoux, Paris:
Berger-Levrault, 1982 (1. ed. em inglês, 1980); Helen Rosenau, "The Functional and
de Montclos, Paris: Hermann, 1968.
the Ideal in Late Eighteenth Century French Architecture", in Architectural Review,
15. ApudAnne Betty Weinshenker, "Idolatry and Sculpture in Ancien Regime France", t. 140, 1966; Antony Vidler, Claude-Nicolas Ledoux: Architecture and Social Reforme
in Eighteenth-Century Studies, vol. 38, n. 3, 2005, p. 495-507. at the End of the Ancien Régime, Cambridge: MIT, 1990.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÁO DO SABER E DA MEMÓRIA

i maginárias das utopias iluministas, enfim, as festas da Revolução a história, é que servem de referência para julgar o poder dos reis e a
Francesa acalentavam a ideia de um monumento público ideal que, civilização dos povos do passado"."
"pelas imagens oferecidas a nossos sentidos", deveria, de acordo com O verbete "Monumento" do Dictionnaire (1806), de Millin, subli-
Boullée, "estimular em nós sentimentos análogos ao uso a que ele é nhava que, em cada monumento, deviam ser levados em consideração
destinado".18 Em seu livro Architecture (1847), Claude-Nicolas Ledoux estes dois pontos: "Em primeiro lugar, o corpo, volume isolado que,
— precursor da arquitetura funcional — resumia o empreendimento por uma forma agradável e particular, deve chamar a atenção; e, em
visado e seus desafios: "Se os artistas aceitassem adotar o sistema segundo lugar, o espírito, ou a alma, que deve produzir a impressão
simbólico que caracteriza cada produção, eles haveriam de adquirir principal que se pretende obter... Se a forma e o conjunto de um
uma glória semelhante à que é atribuída aos poetas; dariam forma às monumento tiverem conseguido atrair o olhar do espectador, convirá
ideias de quem lhes solicita seu conselho e não haveria sequer uma então que, ao aproximar-se, ele venha a encontrar todos os detalhes
pedra que, em suas obras, não fosse significativa para os passantes" (I, em conformidade com sua destinação. Convém que, nos ornamentos,
p. 115); à semelhança de um La Font de Saint-Yenne, que criticava nada haja que desvie a atenção do objeto principal, mas que sejam
a cena de gênero ("o pintor historiador é o único que pinta a alma, análogos ao caráter do monumento. O que designamos por alma
enquanto os outros limitam-se a pintar para seus olhos"), ele atacava de um monumento é sempre sua parte principal. Ela consiste seja
os "arquitetos do retrato" em nome do gênero monumental — dos em inscrições, seja em figuras pintadas ou esculpidas que podem ser
valores do memorial e da comemoração. Desse modo, o arquiteto históricas ou alegóricas. A expressividade dessas obras deve superar
assemelha-se ao detentor da história e da memória das civilizações. a simples escrita porque, sem isso, dar-se-ia preferência a este (sic)."
Kersaint abria seu Discours sur les monuments publics, pronunciado no Em 1813, Saint-Valery-Seheult, "arquiteto da história", revelava
Conselho do Departamento de Paris, com esta fórmula: "É realmente "a engenhosidade e os grandes segredos da arquitetura histórica" em
honrosa a ocupação — além de seu desígnio ser inteiramente digno de termos exemplares: "Como será possível considerar a arquitetura?
glória — cujo objetivo consiste em transmitir, aos séculos vindouros, Como uma linguagem, uma arte ou uma ciência? Tais são as questões
monumentos que hão de suscitar sua admiração" (p. 3). Em tais que terá de se formular aquele que se dedica a estudá-la. Ao considerar
condições, compreende-se que a solidez dos monumentos presentes um monumento, ele descobrirá que essa arte tem uma linguagem já
possa garantir o novo regime da posteridade: "A confiança que deve que o edifício deve conversar com o espectador e indicar-lhe o obje-
ser inspirada em relação à estabilidade de nossas novas leis irá apoiar- tivo pelo qual havia sido erguido. Uma linguagem é a totalidade das
se, por uma espécie de instinto, na solidez dos edifícios destinados a palavras utilizadas por uma nação para exprimir suas necessidades e
conservá-las e a perpetuar sua duração".19 Essa era também a opinião seus pensamentos por meio de sons ou caracteres que falam aos olhos.
de Pierre Vignon, arquiteto da igreja da Madeleine (construída em Ao exprimir diferentes sentimentos e pensamentos por caracteres
21
Paris de 1764 a 1842), evocando o restabelecimento das Academias significativos, a arquitetura é, portanto, uma linguagem" ; eis o que
das Belas-Artes em 1814: "Os arquitetos são depositários da glória das a distingue de uma construção [bâtiment] qualquer, "obra do meca-
nações; muitas vezes, os monumentos erguidos por eles, e não tanto nismo". Com efeito, a construção "é o resultado de uma necessidade;

18. É.-L. Boullée, op. cit., f. 70. 20. Pierre Vignon, Sur le Rétablissement des Académies des Beaux-Arts, Paris, 1814.
19. Mark K. Deming e Claudine de Vaulchier, "La Loi et ses monuments en 1791", in
21. A. Saint-Valery-Seheult, Le Génie et les grands secrets de l'architecture historique, Paris,
Dix-Huitième Siècle, vol. 14, 1982, p. 117-130. 1813, p. 7-9.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

seu objetivo consiste em preservar os homens das doenças, livrando-os Convém que a linguagem utilizada para formar tais inscrições seja a
22
das intempéries sazonais. Ela está baseada nas proporções e na mecâ- da nação que ergue o edifício."
nica do corpo humano. Por sua vez, o monumento tem ambições mais A aplicação desses princípios de "distinção" entre a arte e o útil
nobres e elevadas: sua origem foi ocasionada pelo desejo da glória; seu culminou em uma tipologia dos monumentos, mais ou menos ex-
objetivo consiste em conservar, para a posteridade, a lembrança de plícita, segundo os autores ou os arquitetos. Para Kersaint, os monu-
algo importante. Trata-se de um templo da imortalidade, um poema mentos comemorativos simples, sob a forma de estrelas ou pirâmides,
sublime, cuja poesia divina faz lembrar ao espírito, pelo órgão da visão, distinguiam-se dos monumentos públicos mistos — tais como mu-
as ações dos homens ilustres. Assim, uma construção tem a ver com a seus, templos e bibliotecas —, que, além de cumprirem uma função
arte de construir, enquanto o monumento refere-se à arquitetura". Em bem definida, desempenhavam um papel comemorativo. A propósito
suma, a arquitetura "não consiste, de modo algum, em juntar pedra do concurso promovido pelo administrador da Região do Ródano, visando
sobre pedra, mas [...] seu engenho reside na arte tão difícil de levá-las a construção de um monumento em homenagem a Bonaparte, na place
a se exprimir ao espírito pelo órgão da visão". Um paralelo entre os Bellecour, em Lyon, o arquiteto Goulet estabelecia uma distinção seme-
monumentos do México, do Egito e dos Incas — testemunho, entre lhante: "Parece-me que há uma grande diferença entre um monumento
outros, dos múltiplos exercícios contemporâneos sobre o mesmo público, propriamente dito, e um monumento triunfal. Por monumentos
tema — permitiu que o autor tirasse a conclusão relativamente a públicos, deve-se entender um chafariz, uma ponte, um mercado co-
uma linguagem primitiva, extraída da natureza, que havia sido mantida berto, uma bolsa de valores, assim como todos os prédios destinados ao
na arquitetura e devia ser utilizada, de preferência a qualquer outra, uso e às necessidades da vida pública; no entanto, entre eles, não podem
na composição dos monumentos, mesmo que seja admitido acrescen- ser incluídos os edifícios dedicados à glória dos homens importantes ou
tar-lhe inscrições. "As linguagens vulgares confundem-se e perdem-se à memória de um acontecimento notável. Os primeiros devem exibir a
nas mudanças ocorridas na superfície do globo; por sua vez, a lingua- marca da simplicidade e da severidade, enquanto os outros devem ser
gem da arquitetura é imutável e seus poemas brilham sempre com luxuosos, elegantes e magnificentes; portanto, é impossível confundi-los.
o mesmo resplendor [...]. O aspecto do monumento deve indicar [...] Com efeito, a utilidade do objeto é que irá impressionar sempre
o motivo que esteve na origem de sua construção; os caracteres da o comum mortal, enquanto o herói estará presente apenas como deco-
linguagem da arquitetura devem, também, indicá-lo; deve ser evitado ração acessória ou somente para fornecer seu nome ao monumento.""
tudo o que seja estranho a seu tema... Os caracteres ou ornamentos A preeminência atribuída pelos dois textos ao monumento "comemo-
devem lembrar esse pensamento e, em geral, tudo deve ser circunscrito rativo" ou "triunfal" é bastante característica. Ocorre que o impera-
ao tema escolhido pela arquitetura... [...]. Ao formar o paralelo entre tivo de utilidade pública leva, muitas vezes, a uma fusão dos gêneros
os monumentos repletos de inscrições em linguagens vulgares e aqueles — correndo o risco de ameaçar a legibilidade do monumento sob a
em que os caracteres da linguagem primitiva indicam ao espírito o quantidade de informações a serem transmitidas.
motivo que esteve na origem de sua construção, ficamos convencidos
da superioridade dos últimos, já que eles se referem, ao mesmo tempo, 22. Ibidem, p. 17-18.
ao coração e à imaginação. Nem por isso deixa de ser verdade que é 23. "Réflexions sur un monument à élever à Bonaparte par le citoyen Goulet, architecte
possível tolerar os caracteres dessas linguagens nos edifícios... pode-se et adjoint-maire du VF arrondissement de Paris", in Journal des Bâtiments, n. 137, 6 de
nivôse do ano X, p. 20-22. De forma mais geral, consultaremos Bruno Klein, "Napo-
formar inscrições que repetem o pensamento já traçado pelos carac- leons Triumphbogen in Paris und der Wandel der offiziellen Kunstanschauungen im
teres da linguagem primitiva; mas, nesse uso, deve haver parcimônia. Premier Empire", in Zeitschrift für Kunstgeschichte, vol. 59, n. 2, 1996, p. 224-269.

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O cúmulo do monumento "escrito" foi atingido, sem qualquer Francesa. No interior da coluna, será colocada uma cúpula com um
dúvida, com a proposição do arquiteto Goulet no sentido de erguer chafariz de água e de fogo: por ocasião das festas, ele servirá de facho
um monumento destinado a conter todas as leis francesas, chamado luminoso para os parisienses. "Finalmente, o detalhe mais belo desta
Templo das Leis: uma rotunda rodeada por quatro galerias ofereceria coluna nacional — aliás, o recinto do Louvre dará a impressão de
uma superfície de 4.800 m2 em que seriam inscritas, em mesas salientes formar sua estilóbata — será seu andar térreo, erguido cerca de um
e amovíveis, com caracteres bastante legíveis, todas as leis ou códigos metro acima do chão. Aí, será possível ver, entre os quatro pórticos,
25
da República. Essa proposta inscrevia-se em uma série de projetos de os amplos quadros das principais vitórias do imortal Bonaparte."
monumentos enciclopédicos a serviço da comemoração e da história Esse programa pretendia monumentalizar, de certa maneira, o ter-
nacional francesa.24 ritório nacional, graças à representação cartográfica. O século XIX
Em 16 de vendémiaire e em 16 de nivôse do ano X, o Journal des forjará, pelo contrário, diversos museus imaginários do solo francês,
Bâtiments publicava um projeto de "coluna nacional no centro de graças ao livro de Taylor e Nodier, Voyages romantiques et pittoresques
uma porção de mapa-múndi formando a planta geral da França, no dans l'Ancienne France — narrativas destinadas, desta vez, não para
meio do Carroussel, desimpedido das casas". No pátio do Louvre seria celebrar as vitórias da nação moderna, mas sobretudo para esboçar a
26
erguida, em um pedestal octogonal, uma coluna de 10 metros de raio falência de suas tradições e de seus monumentos antigos.
por 135 metros de altura: "Que a torre seja decorada, por dentro e por
fora, em toda a sua altura, por quinze andares de relevos circulares; em
torno de cada um, serão abertas, perpendicularmente às oito faces do O território da Cidade
pedestal, oito janelas — portanto, um total de 120 — para fornecer
o máximo de luminosidade ao interior do edifício, formando o com- Entre as imagens constantes do território humano, perfila-se a de
partimento das molduras dos quadros de todos os departamentos da uma organização espacial da Cidade que deve ser mantida e remanejada,
República. Em cada um desses grandes quadros, ver-se-á não só a carta 27
bem cuidada e protegida. A lição da semântica revela, aliás, como a
geográfica de um departamento, suas produções territoriais e indus- palavra "território" evoca ideias de apropriação, de apossamento ou, no
triais, suas cidades, aldeias e lugarejos, mas também o quadro de seu mínimo, de uso.28 Esse imaginário do território manteve regularmente
mérito à vitória." Uma dupla escadaria interna levará a cada patamar uma relação estreita com a estética, enunciando diferentes figuras
que "será rodeado por uma galeria ou por um simples balcão interior, mediante as quais a paisagem adquire sentido. No Renascimento,
com assentos à sua volta a fim de que cada visitante, calmamente, de a redescoberta da Antiguidade clássica foi acompanhada por uma
patamar em patamar, possa observar cada parcela da França. Os depar- série de dispositivos e de figuras que visavam elaborar um território-
tamentos mais próximos da capital estarão no primeiro andar e os
mais afastados encontrar-se-ão na parte mais alta da torre". No topo,
25. B*** amador e Campmas (engenheiro hidráulico), in Journal des Bâtiments, n. 115;
uma plataforma octogonal receberá uma coluna que, em cima de um e, depois, n. 140, p. 69.
capitel de mármore negro, carrega uma estátua colossal da República 26. Para a vertente alemã do fenômeno relacionado com a nova representação das ruínas
do passado, cf. Peter Fritzsche, Stranded in the Present: Modern Time and the Melan-
choly of History, Cambridge: Harvard University Press, 2004, p. 98-127.
24. Cf. Goulet, Observations sur les embellissements de Paris et sur les monuments qui sy 27. David Storey, Territory: The Claiming of Space, Harlow: Prentice Hall, 2001.
construisent; projet d'architecture et d'amélioration; suivis d'une nouvelle distribution des 28. Nesse sentido, cf. Leo Spitzer, " Milieu et Ambiance: An Essay in Historical Semantics",
arrondissements municipaux de Paris et d'un essai sur les contributions, 1808, p. 13-14. in Philosophical and Phenomenological Research, vol. III, 1942-1943, p. 1-42, 169-218.

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-patrimônio — na França, reinventou-se a Gália —, promover a criação contenant le catalogue de tous les ouvrages tant imprimés que manuscrits qui
de gabinetes de curiosidades, além de refletir sobre a engenhosidade traitent de l'histoire du Royaume ou qui y ont rapport: em 17.487 obras
mecânica." O exemplo mais célebre foi a proteção das antiguidades, repertoriadas, 2.506 referiam-se diretamente ao passado das cidades (ou
iniciada pelo Papado. O território do príncipe, no século XVI, tornou- seja, cerca de 15%). Ao lado dos escritos sobre a história eclesiástica e
se objeto de uma "captura" no âmago de uma reflexão sobre os lugares sobre a pesquisa da origem da cidade (no desfilar dos títulos, verifica-se
que pretendia ser ciência da classificação universal", entrando, assim, o crescimento do número das antiguidades ou das obras de arte antigas),
com tudo o que ele continha e evocava, nos programas do gabinete um terceiro gênero descrevia os monumentos ao lembrar constantemente
das curiosidades: como programa ideal de compendium principesco, o passado do qual esses lugares haviam sido as testemunhas. Assim este
as Inscriptions ou titres du théâtre magnifique de Samuel Quiccheberg título de 1600: Les Antiquités, les fondations et singularités des plus célèbres
repertoriam, na primeira classe, tudo o que se referia à "regio" do villes, châteaux et places remarquables du royaume de France, avec les choses
fundador do Théâtre. Essa seção do gabinete das curiosidades reunia les plus remarquables advenues en icelui. Na segunda metade do século
plantas geográficas, figuras de antepassados, genealogias, referenciais de XVIII, todavia, "aparecem as imagens funcionais da cidade, focalizadas
sua cidade, exemplos de plantas e de animais.31 No decorrer do século na beleza e utilidade dos centros urbanos"". O gênero passava do mo-
XVIII, a política em relação à herança material do passado deu lugar a numental para o funcional: desde o final do século XVII, "o guia dos
um imaginário do santuário tanto nos diferentes dispositivos utópicos, monumentos amplia-se para incluir as instituições e atividades próprias
quanto na literatura dos antiquários ou nos escritos "esclarecidos". 32 de cada cidade"34.
O essencial da literatura sobre as cidades, do século XVI ao XVIII, Nos séculos XVI e XVII, o interesse pelas Antiguidades orientava
compunha-se por "Antiguidades" e outros guias dos monumentos urba- seus esforços para o religioso, para a evolução das ordens, para a fun-
nos. Daniel Roche procedeu à análise minuciosa do inventário lavrado, dação dos edifícios do culto e para os vestígios da história, tais como
em 1719, por P. Lelong em sua Bibliothèque historique de la France epitáfios ou decretos de fundação. No decorrer do século XVIII, a
categoria dos objetos notáveis indicava o que merecia ser visto, o que
29. Roberto Weiss, The Renaissance Discovery of Classical Antiquity, Oxford: Blackwell, era digno de satisfazer a curiosidade dos estrangeiros e dos habitantes.
1969; Horst Bredekamp, La Nostalgia de l'antique: Statues, machines et cabinets de A própria estrutura dos guias coincidia, aos poucos, com a dos catá-
curiosités, Paris: Diderot, 1996; Frédérique Lemerle, La Renaissance et les antiquités
de la Gaule, Bruxelas: Brepols, 2005. logos: tratava-se de repertoriar o conjunto das riquezas artísticas. Para
30. Frances Yates, L'Art de la mémoire, Paris: Gallimard, 1975; Oliver Impey e Arthur L'Almanach Parisien, era motivo de vanglória o fato de indicar, "por
MacGregor, The Origins of Museums, Oxford: Clarendon, 1985; e Antonella Lugli, ordem alfabética, todos os monumentos das belas-artes disseminados
Naturalia et Mirabilia: Les Cabinets de curiosités en Europe, Paris: A. Biro, 1983.
na cidade de Paris e arredores, assim como os lugares relevantes pela
31. Cf. sua tradução definitiva e seu estudo por Nicolette Brout, "Le Traité muséologi-
que de Quiccheberg", in L'Extraordinaire jardin de la mémoire, Gilly: Musée royal grandeza do desenho ou por seus painéis de pintura e de escultura:
de PansemiotcMariemont, 2004, p. 69-135. Jan C. Westerhoff, "A World of Signs: Baroque edifícios sagrados, castelos e mansões régias, palácios, palacetes, prédios
, the Polyhistor and the Early Modern Wunderkammer", in journal of
the History of Ideas, vol. 62, n. 4, 2001, p. 633-650, fornece o estado das pesquisas,
públicos e casas de lazer". Sua ambição era sublinhada nestes termos:
cm particular, sobre Camilo e Quiccheberg. "Por esta palavra, entendemos todos os Edifícios, tanto sagrados como
32. Nesse aspecto, inspiramo-nos em Louis Martin e em seu comentário por Stephen
Bann, "Shrines, Curiosities, and the Rhetoric of Display", in Lynne Cooke e Peter
Wollen (orgs.), Visual Display: Culture beyond Appearances, Dia Center for the Arts, 33. Jean-Claude Perrot, Genèse d'une ville moderne: Caen au XVIIIe siècle, Paris/La Haye:
Seattle: Bay, 1995, 15-29; "Shrines, Gardens, Utopias", in New Literary History, vol. Mouton, 1975, 2 vols., I, 1, p. 17-27.
25, n. 4, 1994, p. 825-837. 34. Roger Chartier, Histoire de la France urbaine, Paris: Le Seuil, 1981, 3, p. 174.

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e o Palais-Royal. Em 1787, na 9á edição de Gentlemen's Guide in this Tour


37
profanos, que são o resultado não só da devoção de nossos Reis e de sua
magnificência, mas também do zelo e do amor de seus Súditos por through France, Thomas Martyn apresentava um percurso bastante com-
sua Pessoa sagrada. Uns são destinados a lembrar a memória de algum pleto, característico dos gostos e interesses do final do século: academias,
evento; outros estão a serviço dos Cidadãos. Em uma palavra, trata-se de gabinetes de curiosidades, galerias, palácios, bibliotecas e monumentos
todos os lugares em que as Artes desenvolveram sua engenhosidade para figuram nessa descrição como outras tantas visitas obrigatórias. Todas
erguer seja um Templo augusto, seja a representação de um grande Rei, essas obras fornecem uma "leitura" da cidade que legitima a afirmação de
cujo bronze exprime seus traços no centro de uma Praça pública; seja dos Roland Barthes segundo a qual "falamos de nossa cidade simplesmente
Troféus sob o símbolo de uma Porta."" ao habitá-la, ao percorrê-la e ao observá-la".
Brice, Dezallier d'Argenville e Thiéry contribuíram, através de seus A vinda dos viajantes, extremamente lisonjeira para estimular o
guias, para criar uma cultura parisiense. Semelhante abundância de obras orgulho local, tinha um interesse econômico; portanto, cada cidade
correspondia a uma importante demanda, de acordo com a observa- empenhava-se em preservar e valorizar seus monumentos, em particular
ção de Hébert e Alletz, autores de L'Almanach Parisien, no prefácio da seNîmes ela tinha o privilégio de dispor de algumas obras de arte antigas. Em
la edição, em 1761: "O gosto pelas artes ganhou todos os estados porque, , a deliberação municipal de 13 de julho de 1643 lembrava que
atualmente, pretende-se saber um pouco de tudo e ser capaz de proferir "as Antiguidades — servindo de decoração à cidade — são tão consi-
uma opinião; além disso, convém acomodar-se ao gosto de seu século." deráveis e possuem uma tão elevada reputação que as populações mais
No momento em que o conhecimento da cidade, lugar de expressão estranhas vêm dos lugares mais recuados para visitá-las e admirá-las,
privilegiada do engenho humano, se tornou indispensável, o Guide o que deve emocionar, em igual proporção, o coração dos habitantes
des amateurs (1787) de Thiéry repertoriava, em seu prefácio, "todos os da dita cidade de Nîmes no sentido de conservá-las religiosamente e
monumentos antigos e modernos, estabelecimentos úteis, manufaturas, i mpedir que fiquem em ruínas, sejam demolidas e soterradas". Desde
gabinetes de curiosidades, enfim, todos os outros objetos interessantes". sua criação, em 1683, a Académie Royale de Nomes apresentava-se
Entre os visitantes estrangeiros, os ingleses do grand tour 36 mostravam como a garantia do respeito que a cidade deve manifestar por suas
uma particular avidez por itinerários que levassem à descoberta das ci- obras de arte antigas. No século XVIII, a municipalidade explicitava
dades do continente europeu. Em seu guia prático — The Grand Tour... as vantagens a auferir da manutenção dos monumentos nestes termos:
(Londres, 1749), em quatro volumes —, Thomas Nugent empenhava-se "Os monumentos antigos que dão prestígio à cidade por sua beleza
em organizar minuciosamente a visita da capital francesa: o viajante deve inimitável seriam, então, mostrados ao visitante estrangeiro, sempre
começar pelo Palais-Royal, ao qual pode dedicar três dias para contemplar ávido e curioso em observá-los e admirá-los; tais monumentos, menos-
sua coleção de quadros. Em seguida, ele vai contemplar Saint-Sulpice e prezados atualmente, seriam indubitavelmente bem cuidados se o habi-
os Invalides antes de visitar as academias, o Jardin des Plantes e as ma- tante pudesse orgulhar-se de usufruir livremente de sua contemplação,
38
nufaturas (Gobelins, Savonnerie...). No ano seguinte, o guia de William além de constatar que o estrangeiro se beneficia da mesma fruição." '
Lucas recomendava em primeiro lugar o Louvre e, em seguida, as Tuileries
Shewing the Different
37. William Lucas, A Five Weeks Tour to Paris, Versailles, Marli,&c.:
Pleasurb Attending one, two, or four Persons through This Tour, and the Most Reasonable and
Charge
35. Cf.XXe
Gales Chabaud, Évelyne Cohen et al. (orgs.), Les Guides imprimés du XVI' au Method of Performing it: with an Accurate Description of Paris and the Neigh-
siècle: Villes, paysages, voyages, Paris: Belin, 2000. bouring Palaces , Gardens, Water-Works, Paintings, etc..., 2. ed. London: T. Waller, 1752.
36. Expressão para designar uma tradicional viagem de aprendizagem pela Europa, 38. Line Teisseyre-Sallmann, "Urbanisme et société: 1:Exemple de Nimes aux XVII' et
empreendida principalmente por jovens aristocratas ingleses no século XVIII. [N.T.] XVIII' siècles", in Annales ESC, 1980, p. 982.

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Esse exemplo provincial remetia, em um movimento patrimonial Neste aspecto, verificava-se a ligação íntima entre a nova representação
clássico que vai das pequenas às grandes pátrias, a um fenômeno de escala da inscrição da memória cultural e o programa de histórias patrióticas
europeia, focalizado na maior coleção de monumentos antigos da Cidade inéditas: primeiro exemplo, sem dúvida, de uma reconfiguração, cujo
por excelência, ou seja, Roma. A partir dos editos — Albari de 1733, e testemunho será dado, na sequência, pela França revolucionária, de
Valenti de 1750 —, o interesse "turístico" inscrevia-se, de fato, cada vez acordo com outras modalidades.
mais entre as preocupações oficiais. No âmago da estética neoclássica, O caso de Herculano e de Pompeia ilustra outra importante muta-
verificou-se o aparecimento de uma cultura e de uma política da conser- ção: o surgimento de preocupações éticas e políticas na sensibilidade à
vação, no exato momento em que um grande número de obras de arte arqueologia que, ulteriormente, assumiram uma importância conside-
era espalhado através da Europa. Entre 1784 e 1789, Giuseppe Antonio rável, em particular sob a ocupação francesa.'" O gosto, tão relevante
Guattani publicou o primeiro periódico dedicado, em grande parte, no século XVIII, pelo material da arte culminou aqui na paixão de
à arqueologia: os Monumenti Antichi Inediti Ovvero Notizie Sulle Antichità argumentar a propósito da técnica das escavações: assim, cada viajante
e Belle Arti di Roma. Certamente, os museus pontificais participaram ou visitante arrogava-se o direito de saber o que deveria ter sido feito
42
da busca exasperada das obras-primas, mas sua pretensão limitou-se — em geral, condenando a gestão dos sítios arqueológicos. A famosa
a reunir exempla suscetíveis de ilustrar a história da arte nascente, em carta aberta do historiador da arte e arqueólogo alemão J. J. Winckel-
detrimento dos objetos boni ma non singolari, que, aliás, poderiam ser mann, em 1762, marcou uma data nesse aspecto (Lettre de M. l'abbé
exportados sem prejuízo. De qualquer modo, o tecido conjuntivo das Winckelmann à M le comte de Brühl sur les découvertes d'Herculanum,
obras-primas, as obras menos acabadas ou as minores, foram adquirindo 1764): o antiquário manifestava seu apoio — sobretudo contra Alcu-
uma importância cada vez maior. Desde o final desse século, os princi- bierre — à atividade desenvolvida, entre 1750 e 1765, pelo engenheiro
pais estados italianos dispunham de uma legislação destinada a evitar a militar suíço Karl Jakob Weber, que tinha intenção de publicar o
dispersão de suas riquezas artísticas: o caso romano é particularmente resultado de seu trabalho, de maneira sistemática, relacionando as anti-
revelador." Finalmente, Arnaldo Momigliano mostrou que o novo inte- guidades com seus sítios arqueológicos e mobilizando o maior número
resse pelas sociedades antigas pré-romanas, em particular pelos etruscos, possível de fontes. Depois de seu óbito — por esgotamento —, seus
povo desprovido de tradição literária, correspondia a um culto inédito documentos serviram a Francesco La Vega para extrair a planta geral de
pelas identidades locais e regionais, como é comprovado pela emergência Pompeia e para fazer a proposta no sentido de elaborar uma história das
de histórias de diferentes "pátrias" italianas, ao mesmo tempo que dava escavações; apesar disso, a curiosidade erudita internacional continuava
satisfação à importância crescente das antiguidades na escrita da história.40 sendo alimentada por publicações respaldadas a partir de informações
clandestinas, fora da corte dos Bourbons e do círculo oficial da arqueo-
39. Cf. o balanço apresentado, recentemente, por Valter Curzi, Bene culturale e pubblica logia "vesuviana"43. Paralelamente, assistia-se à proliferação dos "guias
utilità: Politiche di tutela a Roma tra Ancien Regime e Restaurazione, Bolonha: Minerva, do estrangeiro", consequência do fluxo dos viajantes: para cada coleção,
2004.
40. Cf. Melissa Calaresu, "Images of Ancient Rome in Late Eighteenth-Century Neapoli-
41. Ronald T. Ridley, The Eagle and the Spade: Archaeology in Rome during the Napoleonic
tan Historiography", in Journal of the History of Ideas, vol. 58, n. 4, 1997, p. 641-661.
Era, Cambridge: Cambridge University, 1992.
Sir William Hamilton identifica-se com o registro napolitano, relacionado com a
paisagem e com os objetos arqueológicos; cf. Volcanoes and Vases, Londres: Bristish 42. Nancy H. Ramage, "Goods, Graves and Scholars: 18th-Century Archaeologists in
Museum, 2000. Os monumentos do território nacional podem ser, também, objeto de Britain and Italy", in American Journal ofArchaeology, vol. 96, n. 4, 1992, p. 653-661.
representações em série, segundo um projeto de coleção de lugares de prestígio à glória 43. Christopher Charles Parslow, RediscoveringAntiquity: Karl Weber and the Excavation
do artista: Julius Bryant, Turner Painting the Nation, Londres: English Heritage, 1996. of Herculaneum, Pompeii and Stabiae, Cambridge: Cambridge University, 1995.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

eles enumeravam as etapas de sua formação e descreviam, sala por sala, A expressão mais nítida dessas exigências foi apresentada por J. J.
os objetos expostos. A obra Le Antichità di Ercolano esposte con qualche de Lalande, que, em um livro sobre sua estada na Itália, escreveu
spiegazione, publicada em Nápoles de 1755 a 1792, correspondia a uma o seguinte: "A manutenção desses monumentos, assim como o respeito
dessas tentativas — desta vez oficial — de colocar em ordem, em um que lhes é devido, nada tem a ver com algum preconceito, convenção
enquadramento histórico e tipológico, o enorme material descoberto, ou interesse. A Filosofia e a Política devem levar-nos a conservar os
além das descrições parciais dos múltiplos relatos de viagem. monumentos dos homens ilustres, como um germe para produzir ou-
Assim, generalizava-se a convicção de uma responsabilidade coletiva tros: aliás, deve-se perpetuar a lembrança dos Impérios que ocuparam
em relação às obras-primas universais, para não falar das antiguidades de a terra; seus progressos e sua queda são uma lição para nós. [...] Seria
menor importância44; ao mesmo tempo, eram apresentados projetos para uma magnificência bem digna de um grande Rei e de um Estado po-
museus de cópias. Com certeza, desde a origem do cânon das Antigui- deroso se eles mandassem construir propositalmente uma vasta galeria
dades, as tentativas de moldar as mais belas estátuas correspondiam ao para reunir as cópias, em mosaico, dos afrescos mais famosos que se
desígnio de cada país no sentido de se apropriar dos cânones do Belo para encontram na Itália [...], distribuindo-os em boa ordem e de forma
fornecer seus modelos aos artistas jovens." Entretanto, sob a influência atraente no meio de uma esplendorosa arquitetura."47 O expediente da
das viagens à Itália e da constituição da estética como concepção geral da cópia correspondia a um sonho de ubiquidade das obras-primas, assim
arte em detrimento dos discursos especializados anteriores, o século XVIII como a um ideal de seriação de monumentos paradigmáticos para o
forjou a ideia de que a arte deve servir para divulgar a educação e, por uso não só dos estudantes das academias, mas também dos connaisseurs.
conseguinte, prossegue o desígnio de colocar à disposição, de forma
cômoda e sistemática, seus exemplos mais belos. Os projetos de cópia,
em mosaico, das Stanze do Vaticano definiam implicitamente a noção de O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica
"r
esponsabilidade coletiva na conservação"46. Em seu livro Réflexions cri-
tiques sur les différentes écoles de peinture (1752), Boyer d'Argens sugeria Do triplo ponto de vista — construção de monumentos "históri-
tal iniciativa e acrescentava: "Os custos seriam consideráveis: mas todas cos"; forma de organizar sua reunião; e, por último, seu comentário
as nações que se vangloriam de seu apreço pelas artes deveriam contribuir por um guia —, o jardim das ilusões era um dispositivo essencial do
para essa operação". O presidente do parlamento da Borgonha, Ch. de patrimônio imaginado pelo século XVIII. Perambulando por seus
Brosses — autor de Lettres écrites"-alie, que relatam uma viagem à Itália atalhos tortuosos, passa-se de continente em continente, ou de século
(1739-1740) —, chegou a imaginar o estabelecimento em Versalhes de em século. Um dos mais belos jardins ingleses é o de Milord Stowe,
um museu de cópias, julgando que "seria uma despesa digna do Rei se que contém o número expressivo de 38 monumentos: Templo de Vê-
ele contratasse operários para executar, em uma das amplas galerias, em nus e de Baco, pirâmides, igrejas góticas, etc. Ele é célebre na Europa
Versalhes, os grandes afrescos de Rafael". inteira e, em um de seus livros, Rousseau serviu-se de M. de Wolmar,
ao acompanhar Saint-Preux em seu pomar, para afirmar o seguinte:
44. Jacques Guillerme, "La Naissance du sentiment de responsabilité collective dans la "O mestre e o criador desta sublime solidão mandou construir neste
conservation", in Gazette des Beaux-Arts, vol. 65, 1965.
local até mesmo ruínas, templos, edifícios antigos; assim, os tempos
45. Francis Haskell e Nicholas Penny, Pour l'Amour de l'antique, Paris: Hachette, 1988.
46. Jacques Guillerme, "Monument/monumentalité: De la Plénitude des symboles à la
fascination du vide", preâmbulo de Marilu Cantelli, L'Illusion monumentale, Liège: 47. J. J.&tc
Lefrançois de Lalande, Voyage d'un français en Italie, fait dans les années 1765
Mardaga, 1991, p. 7-13. , 1769, p. 546, 571.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

e também os lugares são reunidos neste espaço com uma magnificência coletânea publicada a partir de 1752 com essa intenção. A origem
bem superior à da natureza humana."48 O passeio entre as fabriques, derradeira desse interesse pelos estilos históricos e exóticos é, certa-
disseminadas no meio desses "territórios" [pays], convidava o espectador mente, o Entwurff einer historischen Architectur, do arquiteto e escultor
a uma exploração dos lugares e dos tempos. Essa moda — criticada, austríaco J. B. Fischer von Erlach, publicado em 1721."
em parte, no final do século — pretendeu "elaborar a maior variedade A porta chinesa, a tenda turca e até mesmo as ruínas góticas no
possível de construções à força de amontoar, em um espaço reduzido, parque Monceau, em Paris, foram concebidas de acordo com essa
as produções de todos os climas e os monumentos de todos os séculos, tradição baseada em uma apresentação compreensiva da arquitetura
ou concentrar em um recinto fechado, por assim dizer, o universo do passado e de países longínquos, mesmo que, "a partir da década
inteiro".49 Assim, o jardim do século XVIII inscrevia-se em uma longa de 1770, essas estruturas exóticas sejam mostradas não tanto como
tradição do espaço da coleção e da exposição, entre Éden e Jerusalém a exposição engenhosa de conhecimentos acumulados, mas com um
Celestial ou Utopia." espírito de deleite que inclui, em parte, o desejo ardente por aventuras
52
"Fabrique" significava, ainda em 1756, na definição de Watelet e por viagens em países fantásticos, em tempos e lugares longínquos".
para a Encyclopédie: "Qualquer construção que se identifica por sua O acúmulo de monumentos expostos no jardim mostrava, de qualquer
representação." No entanto, rapidamente o termo acabou por designar modo, uma "imagem mundial" que, segundo os casos, trazia a marca dos
uma pequena construção erguida em um jardim, evolução de sentido conhecimentos geográficos ou limitava-se aos grandes impérios, cuja exis-
que esclarece a concepção dos parques em que a Natureza era con- tência era reconhecida pela historiografia tradicional, particularmente
figurada de acordo com Le Lorrain, Ruysdaël e Vernet.51 Para Dora maçônica. Os jardins organizavam uma encenação de acordo com
Wiebenson, as origens do Bosque dos Túmulos [Bois des Tombeaux], as recomendações dos guias: o do duque D'Harcourt, por exemplo,
cujas imagens são numerosas, mesmo antes de 1780 (Île des Tombeaux, prescrevia "a ordenação dos diferentes elementos de forma apropriada".
nos jardins de Bagatelle, em Paris; Vallée des Tombeaux, em Betz, perto Devia-se dispor, de acordo com o resumo do historiador da arte Jurgis
de Ermenonville, no norte da Bacia Parisiense), encontravam-se nas Baltrusaitis, "pinheiros e carvalhos druídicos em torno dos edifícios
publicações de ornamentos arquiteturais de Delafosse, Le Geay e góticos; palmeiras à volta de quiosques muçulmanos; salgueiros,
Cuvilliès, editadas no final da década de 1760. "A vulgarização de espelhos de água e rochedos em torno dos pavilhões chineses"." Em
uma noção de estudo relativa a estilos históricos de ornamento para suma, o jardim fornecia uma moldura bem definida para cada tipo de
a ampliação do número dos modelos à disposição dos artistas poderia monumento, à maneira de uma museografia do contexto.
ter começado com a obra Recueil d'antiquités, do conde de Caylus, A disposição geral dos jardins, a situação das fabriques, a localização
dos cursos de água e a orientação espacial correspondiam às preocupa-
48. Rousseau, Julie ou La Nouvelle Héloïse, 1761, 4' parte, carta XI, Paris: Garnier/ ções dos grandes tratados de pintura, em particular o de Roger de Piles,
Flammarion, p. 363.
e incluindo a obra de A. de Laborde, Description des nouveaux jardins
49. René-Louis de Girardin, De la Composition des paysages, ou des moyens d'embellir la
nature autour des habitations, en joignant l'agréable à l'utile (Genebra, 1777), Paris: de France et de ses anciens châteaux, publicada em 1808 (conhecida por
Champ Urbain, 1980, p. 20. "Laborde", por descrever admiravelmente os jardins de seu tempo). Por
50. Cf., em uma abundante literatura, a síntese recente de Maria Clara Ruggieri Tricoli, sua vez, René-Louis de Girardin organizou o passeio como se tratasse
Il Richiamo dell'Eden: Dal collezionismo naturalistico all'esposizione museale, Florença:
Vallecchi, 2004.
51. Monique Mosser, Jardins en France Ie760-1820, Paris: CNMHS, 1977, p. 21-24; 52. "Le parc Monceau et ses fabriques", in Monuments Historiques, n. 5, 1976, p. 18.
"Des jardins", in Revue de l'Art, n. 129, 2000. 53. Jurgis Baltrusaitis, "Jardins et pays d'illusions", in Traverses, n. 5-6, 1976, p. 94-119.

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do percurso de uma galeria, passando dos quadros pequenos de cavalete modestamente em uma ranhura no meio da sombra de um espesso
para o quadro principal do ateliê. Ele delineou um "atalho dos pintores", ramalhete de teixos, ciprestes, salgueiros chorões, oliveiras... Quando
evocado pelo livro Itinéraire des jardins d'Ermenonville, nestes termos: se trata de celebrar uma ação heroica, deve-se colocá-los no meio
"Ao ter o ardente anseio de seguir as pegadas dos grandes mestres, o de um ramalhete de ciprestes ou de carvalhos verdes, além de plantar
jovem estudante encontrará, em cada etapa desse atalho, matéria para loureiros em torno do monumento, localizado na convergência de
aprofundar seus estudos e ficar cada vez mais próximo de seu objetivo; todos os caminhos."" O jardim era um acúmulo de monumentos
e o artista já consagrado poderá estudar as formas mais bem-sucedidas, repletos de significações demonstrativas, à imagem das vinhetas da
variadas e pitorescas dos zimbros — aliás, os mais belos, e em maior Encyclopédie.57
quantidade, são encontrados apenas nesse atalho."" Em várias oportuni- Em 1820, em seu livro L'Abeille des Jardins, J.-P. Brès propunha
dades, ele insistia sobre a noção — pictural — da unidade do conjunto um jardim "fantástico" em que diversos terrenos, no meio de um lago,
e a ligação das relações sobre os símbolos, as associações de ideias, as apresentariam um resumo dos quatro cantos do planeta. Um "jardim
lembranças, as imagens, que, balizando o passeio, "se destacam suces- cronológico" permitia remontar o tempo, através de pirâmides, restos
sivamente". Ele chegou até mesmo a escrever em maiúsculas: "QUE de obeliscos, urnas funerárias, múmias e esfinges, colunas gregas e ruínas de
TUDO ESTEJA JUNTO E QUE TUDO ESTEJA LIGADO." O jardim exigia, por templos, monumentos romanos e judaicos, no centro, chineses — "por-
conseguinte, um mirante do qual fosse possível abranger, uma após a que os chineses estão convencidos de serem o centro do mundo" — e,
outra, as diferentes perspectivas. por último, dolmens e outras pedras oscilantes. O jardim de Tourves
Em sua obra sobre o jardim de Monceau (1779), o arquiteto- (no departamento de Var, litoral da Provence), criado entre 1767 e
-paisagista L. de Carmontelle representava, na planta, todas as cenas 1777, ilustrava um curso de filosofia inscrito na geografia simbólica
— tenda tártara, leiteria, tendas turcas, moinho de vento holandês, das implantações de fabriques, na toponímia e nos epitáfios imagi-
pavilhão chinês, castelo gótico em ruínas, minarete, rochedo — com nários." A leiteria, situada no início do circuito, apresentava várias
a indicação do respectivo mirante para cada uma." Assim, a história características do "gabinete de reflexão" iniciático, muito apreciado
oferecida pelo jardim a seus visitantes estava orientada pelas leis da ence- nos cenáculos maçônicos." O jardim é, também, exemplar da relação
nação. O projeto (1780) de Francesco Bettini para o jardim de Dolfino, ambígua, para não dizer equivocada, das fabriques com as ruínas au-
embaixador de Veneza na França, continha uma semiologia rigorosa do tênticas, já que a cópia de um cibório gótico, executada pela fábrica de
monumento funerário. Assim, a Ilha dos Túmulos devia inspirar três Vacherie, é considerada como um original e gravada como tal no livro
tipos de sentimentos fúnebres: a lembrança agradável, a dor e a memória de Millin, Voyage dans les de'partements du Midi de la France (5 vols.,
de uma ação heroica, graças a uma disposição perfeita das fabriques. Paris, 1807-1811).
"Tratando-se de perpetuar uma lembrança agradável, esse monumento
deve ser colocado sobre uma linda coluna decorada com ramalhetes de
56. Jurgis Baltrusaitis, op. cit.
rosas, jasmins, sarmentos de vinha, em posição ascendente e que virão 57. Madeleine Pinault, "Diderot et les illustrateurs de l'Encyclopédie", in Revue de l'Art,
fazer-lhe sombra em guirlanda. Os ramalhetes da dor hão de esconder-se vol. 66, 1984, p. 17-38.
58. Serge Conard, "Tourves, fabrique et géometrie", in Monuments Historiques, vol. 5,
1976, p. 46-48.
54. René-Louis de Girardin, op. cit. 59. Sobre este tema, cf. Magnus Olausson, "Freemasonry, Occultism, and the Picturesque
55. David Hays, "Carmontelle's Design for the Jardin de Monceau", in Eighteenth-Century Garden towards the End of the Eighteenth Century", in Art History, vol. 8, dez.
Studies, vol. 32, ri. 4, Verão 1999, p. 447-462. 1985, p. 413-433.

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Tal confusão é tanto mais notável visto que a arte da Idade Média, século XVIII crepuscular pela Idade Média — será que se pode falar
de maneira geral sinônimo de ridículo e de mau gosto, foi reconhecida de pré-romântico? — não chegou a estabelecer verdadeiras relações
apenas na decoração dos jardins.60 Nesse espaço, as fabriques góticas com o estudo erudito das antiguidades nacionais.°
podem estar misturadas aos edifícios "clóricos" (principalmente a partir O classicismo tinha considerado os monumentos góticos como
do modelo dos templos gregos de Pesto, antiga cidade da Itália) ou uma arquitetura de bárbaros, inspirada ora no desenho das florestas,
chineses a fim de diversificar o pitoresco da paisagem ou contribuir ora em modelos islâmicos, mouriscos ou árabes; essa estranheza fun-
para uma estética das ruínas.61 Se, em meados do século, Pierre Patte damental permitiria explicar tal "ridículo das proporções". Na segunda
deplorava "o ridículo e o grotesco das proporções" da ordem gótica metade do século XVIII — e, em primeiro lugar, na Inglaterra —, a
(Discours sur l'architecture, 1754), Louis Sébastien Mercier, no final nova benevolência pela Idade Média vai basear-se no estranhamento
do século, descrevia a catedral Notre-Dame de Paris como um monu- que lhe é reconhecido em relação à "recusa de aceitar a arquitetura
mento "amplo e melancólico", dotado de uma "iluminação tenebrosa" gótica na esferade uma civilização familiar" (J. Baltrusaitis). Aliás, os
e de uma "engenhosidade ousada", lamentando que ele tenha perdido, termos utilizados por Mona Ozouf para descrever a atitude das Luzes
no decorrer de um recente branqueamento, a "aparência venerável da perante a festa popular poderiam ser aplicados, também, às reações
Antiguidade"62. Os canteiros de obras de Sainte-Croix de Orléans e diante do gótico: "Parece que, então, as pessoas dispõem apenas de
da Sainte-Chapelle de Paris manifestavam, por outro lado, a continui- duas linguagens: a da extravagância ou a da barbárie."" Em um caso,
dade na indústria da construção [bâtiment]. No entanto, esse gosto do o gótico ofuscava a razão, enquanto no outro ele solicitava o interesse
dos curiosos; mas, nas duas hipóteses, "sem enternecimento nem nostal-
60. Esmond De Beer, "Gothic: Origin and Diffusion of the Term, the Idea of Style gia". Nessa óptica, devemos entender que ele não alimentava a nostalgia
Architecture", in Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. XI, 1948. Para modernista que conhecemos — a "tristeza sem objeto", a "repetição que
uma antologia do desdém em relação ao gótico, cf. P. Frankl, The Gothic: Literary
Sources and Interpretations through Eigth Centuries, Princeton: Princeton University, deplora a inautenticidade de qualquer repetição" —, na busca utópica
65
1960, p. 370-414; W. Herrmann, Laugier and Eighteenth Century French Theory, de um lugar original e autêntico, voltada "para um passado futuro" ;
Londres: Zwemmer, 1962, p. 235-236.
li mitava-se a ser uma das culturas longínquas, "primitivas", pelas quais
61. O texto Mémoires sur l'ancienne chevalerie, do historiador e filólogo J.-B. de Lacurne
Sainte-Palaye — lido na Academia entre 1744 e 1746, publicado em Mémoires de o século nutria certa curiosidade. Em seu livro Génie du christianisme,
l'Académie des Inscriptions, em 1753, e reeditado, separadamente, a partir de 1756 - Chateaubriand é um bom vulgarizador das teses precedentes: "A ordem
serve de fundamento à crença favorável a respeito de uma Idade Média, cavalheiresca gótica, no meio de suas proporções grosseiras, tem uma beleza, todavia,
e sentimental, contrariamente à imagem pessimista dos filósofos. A moda chega ao
teatro sobretudo com a revolução do cenário e figurinos "verdadeiros", lançada por que lhe é particular. Julga-se que ela nos vem dos árabes, assim como a
Diderot e Marmontel, em torno de 1755; por sua vez, a propósito de Tancredo, escultura do mesmo estilo. Sua afinidade com os monumentos do Egito
Grimm fala dos "costumes patéticos" da cavalaria, em 1760. Tal moda é adotada
nos levaria a acreditar, sobretudo, que ela nos teria sido transmitida pelos
pelos gravadores, no período compreendido entre 1775-1780, que começam a tratar
a Idade Média à maneira romântica; os pintores da história acabaram por imitá-los, primeiros cristãos do Oriente; mas, ainda assim, preferimos relacionar
a partir do Salon de 1773 ( Mort de Saint Louis por Doyen). Em seu livro Génie du
christianisme, Chateaubriand retomou esses lugares-comuns sentimentais ao citar, em
particular, Sainte-Palaye, que escrevia: "O senhor Amanieu des Escas — ao deixar a 63. Cf. o balanço apresentado por Jean Nayrolles, L'Invention de l'art roman à l'époque
mesa, no inverno ao lado de uma lareira bem quente, no salão totalmente coberto moderne (XVIII' XIXe siècles), Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2005, p. 56-71.
de esteiras —, tendo à sua volta os escudeiros, conversava com eles sobre armas e 64. Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, Paris: Gallimard, 1976, p. 9.
amor porque, em sua casa, todos, até mesmo os criados do mais baixo escalão, se 65. Susan Stewart, On Longing: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir,
interessavam pelo amor."
the Collection, Durham: Duke University Press, 1993; Jean Starobinski, "Le concept
62. L.-S. Mercier, Tableau de Paris, 1782, t. VII, cap. DLIV, "Notre-Dame", p. 71-73. de nostalgie", in Diogène, vol. 54, 1966, p. 93.

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sua origem com a natureza. Além de terem sido os primeiros templos fabrique desenhada por volta de 1780, compunha-se de seis colunas
da Divindade, as florestas suscitaram nos homens a primeira ideia da de pé dedicadas a Newton, Descartes, Voltaire, Penn, Montesquieu e
arquitetura."66 Em seu livro Recueil d'architecture (1829), Jean-Charles Rousseau, além de outras três ainda no chão, destinadas de antemão
Krafft explicava, por sua vez, que o gótico podia ser utilizado em aos filósofos dos séculos vindouros. Em última instância, tratava-se
"construções pouco importantes em que a severidade dos princípios realmente de enfatizar o valor da humanidade em geral. Tal foi o caso
pode ser modificada e, sem consequências nefastas, prestar-se ao elã relativo a Newton, cujo cenotáfio elaborado por Gay — 1º prêmio do
da imaginação". Entretempo, impôs-se a ideia de um valor da arte concurso de emulação de 21 de novembro de 1800 —, compreendia
primitiva, mais apreciada que a dos civilizados; aliás, ela já havia sido a reprodução das obras completas desse gênio em placas de mármore:
defendida por Diderot. O gótico continuava parecendo realmente "Trata-se de um cenotáfio em homenagem a Newton e ao mesmo
monstruoso, mas agora elogiava-se seu "caráter". tempo de um Templo da Natureza, de um memorial pessoal e de um
68
No jardim com suas construções, o templo dos druidas, a torre museu de astronomia". O projeto do museu-memorial dedicado a
feudal, a fachada gótica, o pavilhão chinês configuram outras tantas Nicolas Poussin — cuja obra havia influenciado a pintura clássica dos
69
alegorias que, relativamente a qualquer monumento autêntico, repre- séculos XVII e XVIII — baseou-se nos mesmos princípios.
sentavam melhor os diversos períodos da história. Um monumento A abundância das inscrições fictícias nos jardins não chegou a
real é, de fato, um edifício particular que havia correspondido a uma contradizer esse projeto: longe de ser entendido como um conjunto de
encomenda ou a uma necessidade específica, segundo critérios bem indícios particulares, ela operou em favor da generalidade das correspon-
definidos; por isso mesmo, limitado em suas ambições e em seu sucesso. dências. Ao descrever o discurso das fabriques no espaço do jardim, Jean
Inversamente, as elites de então acalentavam o sonho de um monu- Starobinski constatava que, "neste território, cuja intenção consistiria
mento que viesse a esboçar, seja uma época ou um mundo longínquo, em reunir tudo, tudo é menos presente que representado; ainda melhor,
de modo integral, para o futuro. Elas tinham, portanto, o projeto de tudo é menos representado que rememorado [...]. A arquitetura das
edificá-lo: mais ou menos em ruínas, tais construções definiriam fabriques [...] eterniza figuras queridas ou nomes gloriosos. Não seria
perfeitamente o patrimônio que, em seu entender, seria passível de mais verdadeiro afirmar que ela instaura ausências a fim de suscitar em
ser reconhecido pela sociedade. Em sua obra Nouvelle Description des melhores condições, a seu respeito, a memória fervorosa, a saudade e a
environs de Paris (1787), J.-A. Dulaure justificava os jardins do conde
aux plans
de Albon, perto de Paris, que constituíam uma espécie de panteão: 68. Mémoire sur le remplacement de la Bastille et divers projets pour l'Arsenal joint
natio le
et élévations d'une place nationale à la gloire de la liberté présentés à lAssemblée
aliás, na esteira de John Mac Manners, é possível se questionar se ele . Sobre o tema geral, cf. Alfred Neumeyer, "Monuments to 'genius' in German
era dedicado à Liberdade ou à Ciência.67 Além de um obelisco em ho- Classicism", in Journal of the Warburg Institute, II, 2, 1938, p. 159-163.
menagem à esposa e um templo para o Cristo moribundo, ele incluía 69. Projeto pelo arquiteto Harou de um sacellum [capela) perto de Les Andelys — cidade
natal de N. Poussin —, publicado em Journal des Bâtiments Civils..., n. 188, 29 de
estátuas de Haller, Mirabeau, o velho, Court de Gébelin, Franklin e
prairial do ano X, p. 466-467. Cf. ainda J.-G. Legrand, "Monument à consacrer
Guilherme Tell. Em Ermenonville, o Templo da Filosofia Moderna, au Poussin", in Journal des Arts, des Sciences et de Littérature, n. 77, 25 de thermidor
do ano VIII (13 de agosto de 1800), p. 78. "Ele desejava e merecia viver entre os
pastores, na feliz Arcádia, e quando ele gravava estas palavras sensíveis, quem pode
66. François René (visconde de Chateaubriand), Génie du christianisme (1802), Paris:
duvidar que sua alma emocionada não tenha formulado este desejo: Que eu possa,
Garnier-Flammarion, 1993, T. I, p. 400. um dia, em campos tão tranquilos, obter um túmulo semelhante!" Sobre o assunto,
67. John Mac Manners, Death and Enlightenment: Changing Attitudes to Death among cf. Margaret Fields Denton, "Death in Frendi Arcady: Nicolas Poussin's the Arcadian
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University Shepherds and Burial Reform in France c. 1800", in Eighteenth-Century Studies, vol.
Press, 1981. 36, n. 2, 2003, p. 195-216.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

suave melancolia? Ausência ou, por trás dos túmulos fictícios, simula-
cro de ausência; assim, trata-se de uma dupla ausência."" Esses Elísios As provas da história
— "distância entre Éden e Paraíso, entre terra e sombras pagãs"71 -
encarnavam uma reflexão do século sobre a lembrança e o monumento, Na época clássica, o Dictionnaire de A. Furetière define a "História"
a história de um país e a leitura dos epitáfios." Essa representação como uma "narrativa feita com arte; descrição, narração consistente,
de um território prolixo reencontrava o sonho de cidades antigas em ininterrupta e verdadeira dos fatos mais memoráveis e das ações mais
que as ruas e as praças seriam outras tantas mensagens dirigidas ao célebres". Essa tradição prolongou-se amplamente pelo século XVIII,
cidadão"; ela alimentava também o desejo de "hieróglifos", como se em que a erudição aparecia ainda como uma prática discreta, sem teo-
dizia frequentemente na época, do gosto e do saber. ria, enquanto o discurso era o monopólio do historiador, que podia
A Revolução — do cidadão Verhelst74 ao barão de Norvins, pas- escrever a história de uma nação ou de um reinado a partir de um pe-
sando pelo Élysée, segundo o projeto de Alexandre Lenoir — deu queno corpus de textos publicados e das histórias de seus predecessores.
lugar a um grande número de jardins históricos, ao mesmo tempo O "gênero" da história da França parecia, assim, desprovido grande-
Panteão, Museu, Campo Santo e escola de civismo. Deste ponto de mente daquilo que, em nosso entender, faz a especificidade do ofício
vista, o pitoresco didático orientou-se por uma "melancolia cívica", de historiador." Certamente, as querelas jansenistas atribuíram uma
tanto mais que o século XVIII havia insistido grandemente sobre as i mportância sem precedentes ao debate sobre os direitos históricos da
relações entre a alma melancólica e a virtude cívica; nesse caso, a Ingla- monarquia." Mas, fato significativo, Jacob-Nicolas Moreau — conser-
terra representou — e, de maneira geral, os países nórdicos da Europa vador do Dêpot des Chartes [Arquivo de documentos, especialmente da
— a terra da liberdade e do spleen. Na sequência, sob a Revolução, Idade Média] — não levou em consideração os documentos inéditos
a aliança entre a desconfiança e o republicanismo passou a ser uma em seu Discours sur l'histoire de France (21 vols., 1777-1779): ele não
evidência; e, em 1800, em sua reflexão sobre a literatura considerada fez qualquer menção ao trabalho de coleta das legislações para a refle-
em suas relações com as instituições sociais, a escritora Madame de Staël xão do cargo, de acordo com a tradição dos antigos legistas." Como
tornou-se a intérprete da opinião comum segundo a qual a liberdade foi mostrado por Arnaldo Momigliano, a verdadeira preocupação do
e a virtude exigiam a meditação que leva à melancolia." historiador, tal como ela é vislumbrada desde o século XIX, era então
apanágio dos antiquários e dos colecionadores de gabinetes históricos."

70. Jean Starobinski, Ie789: Les Emblèmes de la raison, Paris: Flammarion, 1973, p. 196. 76. François Furet, "L'ensemble histoire", in Livre et société dans la France du XVIII
71. Louis Marin, "L'effet Sharawadgi ou le jardin de Julie", in Traverses, n. 5-6, 1976, p. 116. siècle, Paris/La Haye: Mouton, 1965-1970, II, p. 97-110; Philippe Ariès, Le Temps
de l'histoire (Ie954), Paris: Le Seuil, 1986, p. 158-160; Suzanne Gearhart, The Open
72. Lionello Sozzi, "I Sepolcri e le discussioni sulle tombe negli anni dei Direttorio e
Boundary of History and Fiction: A Criticai Approach to the French Enlightenment,
dei Consolato", in Giornale Storico della Letteratura Italiana, vol. 44, n. 8, 1967,
Princeton: Princeton University Press, 1984, cap. 2.
p. 567-588.
77. Catherine Maire, De la Cause de Dieu à la cause de la nation: Le Jansénisme au XVIII'
73. Sobre o termo "cidadão", cf. Raymonde Monnier, Républicanisme, patriotisme et
siècle, Paris: Gallimard, 1998; Dale van Kley, Les Origens religieuses de la Révolution
Révolution Française, Paris: L'Harmattan, 2005, p. 93-122 ("Être citoyen sous la
Française 1560-Ie791, Paris: Le Seuil, 2002.
Révolution") e p. 233-258 ("Le patriotisme des Lumières à la Révolution").
78. Dieter Gembicki, Histoire et politique à la fin de l'Ancien Régime: Jacob-Nicolas Moreau,
74. Plan allégorique d'un jardin de la Révolution Française et des vertus républicaines pelo
Paris: Nizet, 1979; Blandine Barret-Kriegel, Les historiem et la monarchie, I: Jean
cidadão Verhelst, em 13 de agosto de 1793.
Mabillon, Paris: PUF, 1988, p. 215-267.
75. Cf. a demonstração de Eric Gidal, "Civic Melancholy: English Gloom and French
79. Arnaldo Momigliano, Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Galli-
Enlightenment", in Eighteenth-Century Studies, vol. 37, n. 1, 2003, p. 23-45.
mard, 1983.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

O primeiro "curioso" com a pretensão de reunir as antiguidades fran- Por sua vez, o rei fundou, em 1663, a Petite Academie, destinada
cesas foi, sem dúvida, Fabri de Peiresc (1580-1637); o segundo nome a compor divisas, fabricar medalhas e proceder ao registro dos even-
mais importante é o de Roger de Gaignières — uma célebre descrição tos mais importantes do reino. Reorganizada em 1701, ela passou
de seu gabinete foi elaborada por Germain Brice.80 Além disso, foi a a Bels-Ltrdenominar-se, em 1716, Académie des Inscriptions et des
partir de coleções que o século XVII criou a diplomática, ou seja, a . A evolução de suas práticas culminou em dedicá-la à história,
ciência da história e das diversas formas dos documentos legais e admi- vocação homologada pelo novo regulamento de 1786; desde o final
nistrativos, com a redação de catálogos descritivos (o do beneditino de 1724, um de seus integrantes — o oratoriano e escritor É.-L. de
J. Mabillon e o de Ch. du Fresne, senhor Du Cange); ou a numismática, Foncemagne — anunciava sua intenção de despender todos os esforços
com Ezechiel Spanheim, Jacob Spon e Patin; finalmente, a "leitura da instituição na história da monarquia. Mas foi Camille Falconet
dos velhos romances" com Jean Chatelain. Em grande parte, o século quem lançou verdadeiramente um programa de trabalho, em um dis-
XVIII desenvolveu e aprofundou, de um ponto de vista científico, os curso lido em 28 de janeiro de 1727, "Sur nos Premiers Traducteurs
métodos e as investigações do século XVII: esse foi o caso, em parti- français avec un essai de Bibliothèque française": "Limitem-se a levar
cular, da erudição beneditina.81 em consideração o campo que é a Pátria, e hão de verificar que ela é
ainda mais ampla para exercer os talentos dos senhores e desenvolver
80. "Além dos desenhos dos túmulos mais notáveis, o mesmo gabinete fornece os vitrais
em tal trabalho seus conhecimentos [...1. Por que sentir desdém por
das mais belas igrejas da França, cujas cores foram copiadas com toda a fidelidade
[...] ninguém, até aqui, tinha dado conta disso; aliás, ao prestar mais atenção, tal nós mesmos em vez de adotarmos o exemplo dos gregos e romanos em
procura tem grande utilidade para as genealogias e para as fundações E...] Mas um dos relação ao que fizeram por eles mesmos? Cientistas de outras Nações
aspectos mais singulares e mais raros, de acordo com um grande número de pessoas,
é a coletânea de todas as modalidades de vestir, na corte e na cidade, utilizadas na
que se reconhecem inferiores à Nação Francesa consideraram de forma
França, desde o reino de São Luís até o presente, para toda a espécie de pessoas, até mais nobre seus próprios países." Após a longa enumeração dos traba-
os serviçais, extraídas de diversas pinturas antigas com o maior esmero." (Germain lhos a empreender, sua conclusão fazia um apelo para o estudo de tudo
Brice, Description de la ville de Paris, Paris, 1713, t. III, p. 116.)
81. É difícil avaliar a repercussão real do estudo das antiguidades nacionais na elite culta
o que se presta a "lisonjear a curiosidade de um francês que faz algum
do século XVII. Alguns indícios levam a pensar que os eruditos operavam, para não caso ao que diz respeito à nação e à sua pátria. Como isso é útil para
dizer na indiferença, pelo menos em um desinteresse bastante generalizado: essa é a a Pátria! Que penhor de glória para os senhores". Mas, no decorrer do
tese do fracasso da erudição que Blandine Kriegel defende em Les Historiens et la mo-
narchie, II: La Défaite de l'érudition, Paris: PUF, 1988. Por ocasião do óbito de R. de século XVIII, as antiguidades nacionais suscitaram o interesse apenas de
Gaignières, em 1715, suas coleções — legadas por ele ao rei — foram desfeitas; em um um reduzido círculo de grandes trabalhadores, no essencial magistrados,
milhar de pinturas, Luís XIV conservou apenas o retrato de João, o Bom. Os outros amigos ou ex-alunos de Falconet — por exemplo, Sainte-Palaye"
quadros foram leiloados: o Charles VII, de Jean Fouquet, que formava um lote com
um retrato de Maria d'Anjou, foi adquirido por apenas 3 libras e 14 cêntimos.
Os desenhos dos túmulos do acervo de Gaignières foram publicados por Jean Adhémar 82. O próprio Falconet empreendeu a elaboração do Dictionnaire géographique, em
em Gazette des Beaux-Arts; do mesmo modo, as grandes publicações de documentos, colaboração com Sainte-Palaye: este redigiu o glossário, a história dos trovadores e o
lançadas pelos beneditinos ou com sua colaboração, soçobraram, quase sempre, antes Dictionnaire des antiquités françoises, que, por sua vez, repertoriava as obras publicadas
de atingirem seu termo, até mesmo antes do 1º volume. Esse foi o caso de L'Histoire sobre os usos e costumes, além das leis. Rigoley de Juvigny, com a colaboração de
littéraire de Dom Rivet; de Monasticon Gallinacum (1694) de Dom Michel Germain, Foncemagne, Sainte-Palaye e Bréquigny, editou a Bibliothèque françoise (1772-1773).
que permaneceu, até 1871 (org. L. Delisle), manuscrito com suas 150 gravuras; ou as Por último, a Academia instituiu prêmios sobre o tema do estabelecimento da religião
compilações do gabinete dos documentos de Jacob-Nicolas Moreau. Para as aparições e na Gália e sobre o progresso das artes e das ciências, depois de Carlos Magno; as dis-
os usos do termo "antiguidade", assim como para a história da expressão "Idade Média", sertações produzidas foram utilizadas pelo historiador L.-P. Anquetil, em 1797, para
cf. Jurgen Voss, Das Mittelalter im historischen Denken Frankreichs: Untersuchungen zur esboçar um panorama das artes e das ciências na Idade Média, que foi apresentado
Geschichte des Mittelalterbegriffs und der Mittelalterbewertung von der zweiten Hãle des à nova "Academia das Ciências Morais e Políticas" do Institut de France (cf. Lionel
16 bis zur Mitte des 19. Jhs, Munique: W. Fink, 1972, p. 73 ss. Gossman, Medievalism and the Ideology of the Enlightenment, Baltimore, 1968).

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

considerando que as pessoas de gosto haviam conservado uma imagem amador, quando se procura apenas o prazer de contemplar o que é belo;
negativa a respeito dos integrantes desse grupo. ou como artista, para aprimorar sua instrução e seu gosto; ou, por úl-
Em relação às fontes, o saber da época estabelecia a distinção entre timo, como um connaisseur, que, além dos dois objetivos precedentes,
antiguidades e monumentos.83 No início do século XIX, dois verbetes tem o propósito de apreciar o assunto, a ideia, o espírito, o estilo, a exe-
do Dictionnaire de Millin esclareciam retrospectivamente tal distinção cução dos monumentos, de interpretá-los, conhecer seus autores e des-
fundamental, no momento em que ela estava periclitante. Eis como foi cobrir sua história. A ciência que se interessa, assim, pelas obras de arte
definida no verbete "Arqueologia": "A ciência dos usos e costumes dos entre os monumentos antigos é chamada arqueologia. Como é costume
antigos. A dos monumentos antigos é uma de suas partes essenciais; é atribuir o nome de antiguidades às obras de arte entre os monumentos
possível considerá-los na acepção mais especial da palavra, ou seja, no da Antiguidade, o estudo dessas obras designa-se também por arqueo-
sentido em que eles servem para conservar a memória dos aconteci- logia. Aquele que possui tal ciência não deve ser confundido com quem
mentos e das pessoas; ou como obras de arte, relativamente ao prazer é apenas antiquário [...]. Portanto, essa ciência deveria interessar-se em
inspirado por sua forma. Portanto, a ciência da Antiguidade pode geral por monumentos de toda a Antiguidade que chegaram até nós.
ser abordada sob dois aspectos: é possível considerar os monumentos Essa ampla extensão fez com que tivesse sido estabelecido um número
somente como tais e ter como objetivo unicamente estudar os usos e de antiguidades e arqueologias tão grande quanto o de povos antigos.
costumes, a constituição política, a teologia, as cerimônias religiosas, Entretanto, como numerosas nações antigas não se distinguiram na
as leis, a segurança pública, a vida privada, etc., dos antigos. Então, os arte e, por conseguinte, seus monumentos não merecem ser analisados
monumentos literários, tais como as obras dos autores, os documentos nesse aspecto, a arqueologia, habitualmente, trata apenas das obras
legais e administrativos, as inscrições; os monumentos da arte, tais conservadas por quatro nações: Egito, Grécia, Etrúria (atual Toscana, na
como os restos da arquitetura, escultura, pintura, glíptica, numis- Itália) e Roma. Em seu sentido estrito, a arqueologia designa, portanto,
84
mática, etc.; e os monumentos mecânicos, tais como os utensílios, as o conhecimento dos monumentos artísticos desses quatro povos."
armas, etc.; são igualmente importantes, afinal, eles servem apenas Nessas condições, concebe-se a profunda indignidade do estudo
para explicar os usos e costumes dos antigos. Esta parte da ciência dos monumentos franceses. Em sua obra Monuments de la monarchie
é designada comumente por antiguidades, e o nome de antiquário é française, publicada entre 1729 e 1733, o beneditino B. de Montfaucon
atribuído àquele que a possui. Em seguida, pode-se considerar, sob uma multiplicava, assim, justificativas e precauções oratórias, chegando
relação particular, os monumentos cujo único interesse tem a ver com mesmo a escrever na apresentação: "Falou-se tanto dos gregos e dos ro-
o fato de serem obras das belas-artes. Eles podem ser abordados como manos que é perfeitamente razoável prestar alguma atenção ao que nos
toca de perto sem receio de perder o caráter da venerável antiguidade."
De maneira geral, sobre a elaboração da história literária, cf. o trabalho inacabado de Além de qualificar os monumentos como testemunhas dos "tempos de
Claude Cristin, Aux Origines de l'histoire littéraire, Grenoble: Presses Universitaires ignorância", Montfaucon acrescentava que "seu aspecto grosseiro fez
de Grenoble, 1873; e Luc Fraisse, Les fondements de l'histoire littéraire: De Saint-René
Taillandier à Lanson, Paris: Champion, 2002, estudo que começa em 1733 e inclui
com que nossos antepassados, sem conhecimento da importância desses
uma análise de Histoire littéraire "alie de Pierre-Louis Guingené (1811-1819). monumentos, tivessem permitido o desaparecimento da maior parte
Para a relação desses ensaios com as coleçóes, cf. Neil Kenny, "Books in space and deles. Foi apenas nos últimos tempos que houve quem se apercebesse
time: Bibliomania and early modern histories of learning and literature in France",
in Modern, Language, Quarterly, 61, 2, 2000, p. 253-286. de que, por mais grosseiros que sejam, tais monumentos instruem
83. Peter Burke, "Images as Evidente in Seventeenth-Century Europe", inJouralfthe
History of Ideas, 2003, p. 273-296.
84. Aubin-Louis Millin, Dictionnaire des beaux-arts, 1806, p. 51.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

sobre inúmeros aspectos que não podem ser encontrados alhures: esse tanto como verdadeiras histórias, mas como coletâneas imensas de todos
gosto diferenciado pela escultura e pela pintura, em diversos séculos, os materiais que devem estar a serviço da história. Em decorrência de sua
pode mesmo [grifo de Dominique Poulo- t] ser contado entre os fatos condição, os beneditinos, por mais eruditos que sejam, limitaram-se, pro-
históricos". Este beneditino tinha publicado, em 1719, o primeiro dos positalmente ou por impossibilidade, a conhecer os monumentos: foram à
quinze volumes de L'Antiquité expliquée, obra que pretendia relacionar sua procura, procederam à sua análise, emitiram juízos a seu respeito, tendo
a religião da Antiguidade greco-romana com os cultos de mistério de estabelecido a ordem dos fatos a partir do testemunho desses monumentos.
Isis, Átis e Mitra. Tal empreendimento de livraria fazia referência a Convém reconhecer que as pedras estão colocadas na ordem adequada,
obras medievais, mas para reconhecer nessa época outros tantos mo- mas o acabamento do edifício exige algo mais que as mãos deles.""
numentos druídicos, até mesmo o paradigma dos hieróglifos egípcios, Essa tradicional oposição entre pedante e homem de gosto dupli-
arguindo em favor de uma continuidade entre a Antiguidade e o cris- cava-se de outra, não menos repisada, que separava o erudito do filó-
tianismo, entre gregos ou romanos e celtas. Assim, nas coletâneas de sofo. Para Diderot, em seu Salon de 1767, "Voltaire escreve a história
monumentos gravados, Montfaucon reconhecia plenamente a Idade como os grandes estatuários antigos faziam o busto [...], ele amplia,
Média, mas em nome da Antiguidade "nobre". Um passado longínquo exagera e corrige as formas. Estará certo? Ou equivocado? Para o pe-
e prestigioso (o Egito como origem do mundo) justificava o estudo dante, ele equivoca-se, enquanto tem razão para o homem de gosto"."
das Antiguidades da França. Em compensação, na nova coletânea, a Certamente, inúmeros pontos de encontro entre defensores dos filó-
motivação nacional, patriótica, era evidente: "Além de que o gosto e sofos e representantes da erudição "parlamentar" tornaram a oposição
o engenho de tempos tão grosseiros são um espetáculo bastante diver- menos caricatural. No verbete "Erudição" da Encyclopédie, D'Alembert
tido, o interesse pela nação compensa, aqui, o prazer que poderia ser parece pretender colocar um termo a tal querela, reconhecendo que "o
extraído de monumentos com maior elegância."" espírito filosófico encontra frequentes oportunidades de exercer-se nas
A metáfora da pedreira e do monumento erguido por um arquiteto matérias de erudição" (e, em primeiro lugar, sem dúvida, na crítica das
percorreu, então, o intercâmbio entre eruditos e letrados, singularmente fontes, segundo os critérios sugeridos por Bayle 89). Assim, esboçava-se
9
nos confrontos de caráter ideológico e pessoal. No momento em que o que Judith Shklar designou por "reabilitação da história" 0.
Sainte-Palaye se apresentou à Academia contra um "verdadeiro" autor, os Bayle suscitava também a grande admiração de Denys-François
9
bons espíritos fizeram o seguinte comentário: "Eis uma forma de equi- Secousse, o mestre de Lacurne de Sainte-Palaye. 1 Quanto a Voltaire,
parar Mansart com quem, da pedreira, extraiu as pedras que serviram
para construir Versalhes."" O princípio da divisão do trabalho continu-
87. Cf. Dieter Gembicki, op. cit., p. 269-270.
ava ainda explícito em uma carta do ministro da Justiça, A. Th. Hue de 88. Em uma abundante literatura, cf. Matthew Anthony Fitzsimons, "Voltaire: History
Miromesnil, para o intendente da Guiana (1783): "Esses numerosos Unexemplary and en Philosophe", in The Review of Politics, vol. 40, n. 4, out. 1978, p.
447-468; republicado em The Past Recaptured, Notre Dame: Notre Dame University,
volumes in-fólio que, até aqui, têm sido preparados pela Congregação
1983, p. 106-127.
Beneditina de Saint-Maur sobre um grande número de províncias, tais 89. Pierre Bayle (1647-1706), escritor francês; sua crítica das superstições populares
como a Bretanha, o Languedoc e a Borgonha, devem ser considerados não e seu monumental Dictionnaire historique et critique (1696-1697) anunciavam o
pensamento filosófico do século XVIII. [N.T.]
85. "Prospectus", in L'Antiquité expliquée, I, Paris: Compagnie de Librairies, 1716. [N.T.] 90. Judith Shklar, "Jean d'Alembert and the Rehabilitation of History", in Journal of the
86. Apud Lionel Gossman, op. cit., p. 103. [Jules Hardouin-Mansart (1646-1708), foi History of Ideas, vol. 42, 1981, p. 643-664.
o primeiro arquiteto de Luís XIV, que realizou a ampliação do Palácio de Versalhes 91. Jacob Soll, "Empirical History and the Transformation of Political Criticism in France
(Galeria dos Espelhos e Capela). (N.T.)] from Bodin to Bayle", in Journal of the History of Ideas, vol. 64, n. 2, 2003, p. 297 ss.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

formado na esfera dos jesuítas, ele acompanhava as discussões da


Académie Desse modo, o prestígio dos indícios do passado permaneceu precá-
des Inscriptions, e seu respeito chegava a ponto de solicitar a rio no âmago da república das letras, em contraste com o culto votado
Foncemagne para reler sua obra histórica antes da publicação. Em seu aos textos clássicos, muito apreciados pelo gosto universal. Numerosos
ensaio histórico, Le Siècle de Louis XIV (1751), ele não poupou elogios bons espíritos deploravam o incrível caos em que haviam sido sub-
aos grandes eruditos, beneditinos ou jesuítas. Do mesmo modo, a pe- mersos pela sucessão dos séculos, oferecendo resistência em preencher
dido dos espíritos cultos, D'Alembert vai interceder junto a Frederico II sua memória com fatos já ocorridos, inúteis ao projeto da razão: um
para obter informação sobre o manuscrito de J. Froissart, em Breslau. i maginário da saturação dominava sua perspectiva. Eles preferiam
Os estudos historiográficos recentes convidam também a reconsiderar i maginar uma sociedade ideal em que, na sequência de uma seleção
a análise tradicional ao suprimir as diferenças estabelecidas, de forma cuidadosa, subsistiria apenas um passado escolhido e meditado, digno
demasiado nítida até então, entre história filosófica e história erudita. do "nacionalismo da humanidade"" forjado pelo cosmopolitismo
"O erro seria acreditar", escreve Jean-Marie Goulemont, "que discurso das Luzes. Quando, hoje em dia, pensamos espontaneamente o patri-
sobre a história da Idade Clássica e novo discurso — ao sublinhar que mônio em termos de conquistas a serem ampliadas, em vista de uma
as Luzes se haviam inspirado em ambos — seguem vias autônomas: conservação cada vez mais completa e mais garantida dos restos mais
um mantém-se em sua integridade primordial, ao passo que o outro rudimentares do passado, o século XVIII, fatigado com as trivialidades
adquire, aos poucos, sem deixar de ser de forma contínua, a coerência da história, considerava-o no âmbito de uma depuração negociada a ser
e a nitidez, aliás adotadas mais tarde em Esquisse d'un tableau historique empreendida. As testemunhas das origens eram as únicas que podiam
des progrès de l'esprit humain."93. Ocorre que o século XVIII filosófico, ser legitimamente preservadas — de tal modo a época sonhava, natu-
em busca constante de um uso pedagógico da história, exasperava-se ralmente, com os alicerces (com sua energia desaparecida que deve ser
recuperada ou superada) : assim, esboçava-se um programa de trabalho
96
regularmente com as preocupações eruditas, a tal ponto que, em Émile,
97
Rousseau escreve que "não sabemos tirar qualquer verdadeiro proveito do historiador em forma de busca das prefigurações.
da história; tudo é absorvido pela crítica de erudição; como se fosse Pensar as antiguidades podia, então, culminar em uma modalidade de
muito importante constatar a veracidade de um fato com a condição de projeto político ou, pelo menos, de compromisso cívico. A reflexão
ser possível extrair dele uma instrução útil"94 A paixão pelo útil levou, de Joseph Addison (1672-1719) sobre a numismática — Dialogues
inclusive, D'Alembert a "desejar que, em cada centenário, se fizesse um upon the Usefulness of Ancient Medals (1721) — estabelecia, assim, a
apanhado dos fatos históricos realmente úteis e que o resto fosse quei- distinção entre a adequada apreciação da arte das moedas, elogiada pela
mado" (Réflexions sur l'histoire). Assim, o gosto e a utilidade convergiam virtude cívica e pela revolução financeira inglesa, e as manifestações de
para julgar que a Idade Média merecia apenas um resumo cronológico um saber pedantesco. O sentimento do objeto antigo tinha pouco a ver
que, sucintamente, colocasse em ordem esse caos "em que a barbárie, a com a crítica das fontes e com a administração da prova: ele contribuía
ignorância e a superstição cobriam a face do mundo" (Essai sur les moeurs ). para elaborar um pensamento da coletividade e da atualidade em que

92. Jean Froissart (c. 1337-c. 1405), um dos mais importantes cronistas da França medieval; Nova York:
95. Carleton J. Hayes, The Historical Evolution of Modern Nationalism,
seus textos foram considerados como a expressão mais significativa do renascimento Richard Smith, 1931, p. 13-17.
cavalheiresco, ocorrido na França e na Inglaterra durante o século XIV. (N.T.] Paris: PUF,
96. Michel Delon, L'Idée d'énergie au tournant des Lumières (1770-1820),
93. Jean-Marie Goulemot, Discours, histoire et révolution, 1988.
Paris: UGE, 1975, p. 482.
94. Cf. o verbete "Histoire", p. 407-411 de Raymond Trousson e Frédéric S. Eigeldinger ' reviewers", in Review of
97. Charles F. Millett, "Ancient historians and 'Enlightened
(orgs.), Dictionnaire de Jean-Jacques Rousseau, Paris: Champion, 1996. Politics, vol. 21, n. 3, 1959, p. 550-565.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA

cada qual poderia tornar-se antiquário." Na França, a pesquisa histórica apenas de longas e insignificantes nomenclaturas sobre os monumentos
mais "esclarecida" menosprezava "a sucessão dos fatos relacionados com das artes, em Paris e arredores; além disso, nem uma única linha para
armas e guerras" (G. Bonnot de Mably) para se empenhar em desven- mostrar como observá-los com proveito e deleite." 101
cilhar o emaranhado dos "princípios incontestáveis". A historiografia Em compensação, os princípios de J. J. Winckelmann parecem
de H. Bouvainvilliers, J.-B. Du Bos e Ch. Montesquieu promoveu responder às exigências de uma história "filosófica" que menosprezaria
o debate da história da Gália com uma preocupação constante de os aspectos acessórios, de acordo com a tradição de Vasari, a propó-
rendimento imediato. Em suma, essa história tentava elaborar cená- sito dos artistas e das obras, para se dedicar a um quadro das relações
rios a propósito de um processo marcado por uma longa decadência, entre arte e liberdade. "As artes associadas ao desenho começaram",
mas que podia alimentar, simultaneamente, um esforço de memória: escreve ele, "como todas as outras invenções humanas, pela estrita ne-
"O esquecimento não é, de modo algum, ignorância. Até mesmo cessidade; em seguida, elas desejaram profundamente alcançar o belo.
esquecidas, as antigas noções de sociedade e de ordem devem ser não E depois, passaram ao excesso e ao desmesurado. Esses são os três pe-
tanto inculcadas, mas reanimadas; a história é uma reminiscência."99 ríodos principais. [...] Neste livro, vamos descrever, as artes do desenho
Em meados do século, "fundamentalmente, a reconstituição da insti- tais como elas haviam sido em sua origem; e depois trataremos das
tuição original permanece o objetivo essencial da historiografia [...] diferentes matérias sobre as quais trabalharam os artistas e, em seguida,
A revelação de novos documentos, a nova interpretação atribuída, aqui da influência dos climas sobre esses artistas." 10 Em Winckelmann, a
e ali, a esta ou aquela ordenação régia, o que poderia ser designado erudição devia permitir sobretudo o acesso ao ideal grego, para além
como progresso da erudição, depende da dinâmica própria a essa re- do tempo corrompido pelo mau gosto e pela servidão: nesse aspecto,
consideração periódica e não pode dissimular uma estabilidade legível ela estava a serviço de um desígnio de ruptura radical. Eis por que
para além das divergências de detalhe"100. Lionel Gossman tem motivos para defender que o combate das Luzes
O que considerávamos desde o Romantismo como um sentimento contra a tradição e a história é compatível com a ideia de um retorno
103
rudimentar do passado — a cor local, o pitoresco — não importava à história, depois de terem sido afastados seus aspectos malfazejos.
mais agora. L'Année littéraire elogiava, em 1765, une Histoire de la O contraste é considerável com o monumento erguido, simultanea-
ville de Lille nos seguintes termos: "Não há lugar para confundir esta mente, por Séroux d'Agincourt à história da arte, em sua "fraqueza" em
história com a maior parte daquelas narrativas, cujo único objeto é a relação aos tempos intermediários, apesar do caráter igualmente iniciador
cidade. O autor esboçou os costumes e o espírito dos homens; o que de seu empreendimento comparativo. Se o exercício do antiquário era
se torna interessante para todas as regiões." Desse modo, a maior parte praticamente similar nos dois casos, a obra winckelmanniana introduzia
das coletâneas de monumentos são estranhos ao gosto "filosófico". Por uma revolução de grande amplitude na implementação da documentação,
exemplo, como introdução à tradução bastante livre, elaborada pelo ge-
neral Pommereul, no ano VI, da obra do teórico neoclássico, Francesco 101. Général Pommereul, De l'Art de voir dans les beaux-arts, traduit de l'italien de Milizia;
Milizia, De l'Art de voir dans les beaux-arts, lê-se o seguinte: "Dispomos suivi Des institutions propres à faire fleurir la France, et D'un état des objets d'art dont
ses musées ont été enrichis par la guerre de la Liberté, Paris: Bernard, ano 6, 1798.

98. David Alvarez, "'Poetical Cash': Joseph Addison, Antiquarianism, and Aesthetic 102. Cf. as profissões de fé do conservador de museu Alexandre Lenoir, membro influente
da Revolução Francesa: "O objeto de uma história ponderada da arte consiste em
Value", in Eighteenth-Century Studies, vol. 38, n. 3, Primavera 2005, p. 509-531.
remontar até sua origem, acompanhar seus avanços e variações até sua perfeição,
99. François Furet e Mona Ozouf, "Mably et Boulainvilliers: Deux Légitimations histo- além de identificar sua decadência e queda até sua extinção" ( Musée, ano IX, p. 50).
riques de la société française au in Annales ESC, 1979, p. 169-170.
103. Lionel Gossman, "History as Decipherment: Romantic Historiography and the
100. Jean-Marie Goulemot, op. cit., p. 427. Discovery of the Order", in New Literary History, vol. 18, n. 1, 1986, p. 23-57.

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das ficções e das convenções que a organizam. Em igualdade de circuns- disso, ela evocava o desaparecimento — com os documentos que lhes
tâncias, o texto de Séroux — importa sublinhar —, na sequência de um davam justificação ou serviam de caução — de esmerados interesses
processo de edição particularmente complexo, constituía sobretudo uma patrimoniais. Se, como foi demonstrado por Anthony Grafton, a nota
memória dos arquivos consultados ou elaborados — e de seu eventual de erudição é sinal de pertencimento a uma comunidade moral -
desaparecimento. Uma ego-história, à mercê das notas esparsas do reivindicação da verdade e da autoridade —, nesse caso formula-se
opus magnum dessa primeira história da arte, transpôs a Revolução: o a questão a respeito das convenções e das categorias da análise, no
manuscrito, terminado sob o Antigo Regime, foi publicado nos novos aspecto em que elas envolvem regras de fiabilidade, critérios de crença
tempos, com a menção aqui e ali da diferença manifesta entre os dois e utensílios de credenciamento — relativamente à articulação entre
mundos. A nota de rodapé tornou-se então o recurso pelo qual não só se depósito de indícios do passado e saberes apropriados para validá-los
fazia referência aos arquivos, à sua consulta ao acaso de visitas, descobertas — no momento em que, de repente, verifica-se uma mudança de toda
inesperadas e salvamentos imprevistos, mais ou menos favorecidos pela a economia moral dos bens simbólicos.105
sociabilidade do Antigo Regime mas também, finalmente, evocava-se
a passagem dessa afinidade erudita para a proscrição de seus materiais.
Em uma divagação sobre o castelo de Verger, na província de
Anjou, Séroux dirigia à república das letras a seguinte observação:
"Na sequência dos últimos distúrbios, ignoro em que estado ficará
o próprio castelo e tudo o que ele continha de interessante para a
história da França e das três artes, no momento em que o visitei em
1764. [...] No canto de uma sala que servia de biblioteca, encontrei
manuscritos da história da França, assim como livros gregos e latinos
com anotações manuscritas de Eleonora, princesa de Rohan. Com
o máximo cuidado, recuperei esse material para depositá-lo, em se-
guida, na biblioteca de Soubise: bastante feliz por ter fornecido uma
prova de minha afeição particular por uma família de tão elevada
reputação e, desse modo, reconhecer suas liberalidades em meu favor
e em favor de meus familiares que, desde os mais remotos tempos até
este momento, têm servido nos exércitos comandados por célebres
generais com tal nome."'" Semelhante referência memorial lembrava
a existência de formas de sociabilidade tradicional para ter acesso aos
arquivos e escrever a história de determinadas corporações, seja no
círculo dos parlamentos ou na escrita das histórias das cidades; além

104. Jean-Baptiste-Louis-George Séroux d'Agincourt, Histoire de l'art par les monuments,


depuis sa décadence au IV siècle jusqu'à son renouvellement au XVIe, II, "Sculpture". 105. Anthony Grafton, Les Origines tragiques de l'érudition: Une Histoire de la note en bas
Paris, 1825, p. 70, n. c. [Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 77, nota 53. (N.T.)] de page, Paris: Le Seuil, 1998.

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2

UMA NOVA AUTENTICIDADE

A história — farol eterno das nações, patrimônio indestru-


tível que as fez passar da infância para a idade adulta -
serve-lhes de instrução e de advertência em cada página.
Discurso destinado a ser pronunciado na
Assembleia Nacional por Jean-Henri Bancal,
deputado representante dos Citoyens-pétition-
naires da cidade de Clermont-Ferrand, sede do
Departamento de Puy-de-Dôme, 29 jul. 1791.'

A Revolução Francesa é tributária da cultura material do passado


sob duas formas principais. O tempo inscreve-se nos monumentos
deixados in situ, na paisagem das cidades, enquanto as obras, os livros
e os arquivos acumulam-se nas coleções de caráter científico ou nos
acervos de bibliotecas. No entanto, todos esses materiais são imedia-
tamente requisitados por serem úteis. Eles podem convir, segundo
a distinção clássica de Rabaut Saint-Étienne (21 de dezembro de
1792), "à instrução pública [que] esclarece e exercita o espírito" e "à
educação nacional [que] deve formar a sensibilidade". De acordo com
sua explicação, "a primeira deve fornecer esclarecimentos, enquanto
a segunda suscita virtudes; a primeira contribuirá para a reputação
da sociedade, enquanto a segunda, para sua consistência e seu dina-
mismo. A instrução pública exige liceus, colégios, academias, livros,
instrumentos, cálculos, métodos; ela está implantada em recintos
fechados. Por sua vez, a educação nacional requer circos, ginásios,
armas, jogos públicos, festas nacionais, a cooperação fraterna de to-
das as idades e de ambos os sexos, além do espetáculo imponente e
pacífico da sociedade humana reunida."2 De fato, a cultura material

1. Philippe Bourdin, "Bancai des Issarts, militant, député et notable: de l'utopie poli-
tique à l'ordre moral", in Revue Historique, vol. 302, n. 4, 2000, p. 895-937.
2. Cf. James Guillaume (org.), Procès-verbaux du Comité d'instruction publique de la
Convention, Paris, 1891-1907, p. 232. A fórmula é comentada por Mona Ozouf, La
Fête révolutionnaire, Paris: Gallimard, 1976; e por Keith M. Baker, Condorcet from

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE

do passado integra ao mesmo tempo um processo de reescrita da


história e a reconfiguração das imagens públicas, a elaboração de uma Talvez seja impossível encontrar melhor apresentação do modelo
nova memória dos saberes e um discurso sobre a monumentalidade epistemológico moderno da "profundeza", tal como é esboçado por
coletiva; desse modo, ela alimenta uma reflexão sobre a arqueologia Frederic Jameson — sem deixar de relacionar o episódio com outras
e a história, a estética e o político. dissimulações de Michelet — com as curas de lama nas Termas de
A melhor ilustração dessa mudança encontra-se no historiador Acqui (Itália), nas profundezas do mar ou da montanha.
Jules Michelet (1798-1874), no célebre trecho do livro Le Peuple, no Contra a postura do artista, Michelet reivindicava a do historiador-
qual a busca do "instinto do povo" encarna-se no face a face com um -arqueólogo: ele apresentava-se como homem que se enfurnava nos
"gigantesco monumento" — extraordinário momento onírico que acaba arquivos e nos subterrâneos das criptas, em busca das ruínas do
evocando a imagem do "gigantesco elmo" e da "montanha de plumas" tempo. Desse modo, ele definia — ao lado do porta-voz excepcional
na corte do Castelo de Otranto — romance inglês de 1764, o primeiro do patrimônio francês, encarnado por Victor Hugo — outra figura de
da literatura gótica, escrito por Horace Walpole. Essa é a oportunidade patrimonializador, dedicado à recuperação dos túmulos esquecidos,
de opor, termo a termo, a abordagem, por um lado, estética do artista servidor de memórias privadas de manutenção e, preferencialmente,
e, por outro, arqueológica do historiador — ou, ainda, em termos rie- da primeira de todas elas, a do Povo. Ora, a figura da exumação revo-
glianos, o culto do monumento antigo e o do monumento histórico. lucionária — não a exumação dessacralizante dos reis da abadia de
Saint-Denis, mas a exumação simbólica, sob a forma de ascensão até
Ah! como ele está, hoje, desfigurado, sobrecarregado com aditamentos a revelação dos princípios originais da nação — marcou surdamente
estranhos, manchas esbranquiçadas e bolores, conspurcado pelas chuvas, essa construção fantasmática. Nesse sentido, pelo menos, é que nos
lama e insultos dos passantes!... O pintor, o homem da arte pela arte, chega, propomos questionar, aqui, o legado revolucionário em matéria de
observa e sente-se atraído exatamente por essas manchas... Por minha parte, entendimento do passado.
eu gostaria de arrancá-las. Ouça, pintor de passagem, isto não é um brin- No lugar da esperança da salvação, instalaram-se com as Luzes dois
quedo de arte, preste atenção, mas um altar! Tenho de esburacar a terra para tipos de futuro: a prognosis racional e a filosofia da história. A previsão
descobrir as bases profundas desse monumento; a inscrição, dou-me conta opunha-se exatamente à profecia: o futuro tornava-se o domínio de
agora, está completamente soterrada, escondida bem longe, embaixo... possibilidades finitas. "Enquanto a profecia transgride as balizas da ex-
E, para cavar, não tenho enxada, nem barra de ferro, nem picareta; vou periência e dos cálculos, a prognosis permanece nos limites da situação
contentar-me em utilizar minhas unhas. [...] Hoje, ainda estou cavando... política." No entanto, "sub specie aeternitas, é indiferente que o futuro
Eu gostaria de alcançar o fundo da terra; mas, não gostaria de exumar um seja considerado em termos de fé ou de cálculo ponderado: nada de novo
monumento do ódio e da guerra civil... Pelo contrário, tenho desejo de pode emergir". Somente "a filosofia da história separa, pela primeira vez,
encontrar, ao descer debaixo desta terra estéril e gélida, as profundezas em a modernidade de seu passado e, no mesmo momento, inaugura nossa
que ressurge o calor social, em que se conserva o tesouro da vida universal, modernidade por um novo futuro. Uma consciência do tempo e do fu-
em que voltariam a abrir-se, para todos, as nascentes exauridas do amor.' turo começa a desenvolver-se no obscurantismo da política absolutista,
inicialmente em surdina, e mais tarde abertamente, combinando de
Natural Philosophy to Social Mathematics, Chicago: Chicago University, 1975 (trad.
fr.: Condorcet: Raison et politique, Paris: Hermann, 1988, p. 416 ss).
3. J. Michelet, Le Peuple, Paris, Comptoir des Imprimeurs unis, 1846, p. 154-155. Romanticism: Religion, Revolution, Nature", in Journal of the History of ldeas, vol.
Sobre os desafios da época de Le Peuple, cf. Arthur Mitzman, "Michelet and Social 57, n. 4, 1996, p. 659-682.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE
UMA NOVA AUTENTICIDADE

forma audaciosa a política e a profecia. Nesse instante, na filosofia "ao mesmo tempo, a uma angústia generalizada e menos consciente
do progresso, introduz-se uma mistura típica do século XVIII, ou causada por um futuro apresentado como um espaço ilimitado". Para
seja, predição racional e expectativa de uma salvação."4 A fraseologia combater, em melhores condições, essa "desorientação", o "sentido
de Robespierre — em particular o famoso discurso de 10 de maio de vivenciado" da Revolução integrava-se, pelo imaginário, em uma
1793 sobre a Constituição — fornece uma boa ilustração do tema temporalidade cíclica que equivale a uma obstrução do futuro vazio e
em que a aceleração do tempo encarnava a tarefa a ser empreendida em ameaçador. Daí, a contradição entre um sentido oficial, teleológico,
direção a uma época de liberdade e de felicidade. Segundo a feliz fór- e um sentido ilusório, permitindo, "a um só tempo, o recalcamento do
mula de Reinhart Koselleck, o futuro torna-se "irresistível — o que, futuro ilimitado e a celebração da Revolução."8 Ora, ao dar testemunho
paradoxalmente, corresponde à sua construtibilidade". 5 Em suma, "a eloquente de um mundo fragmentado, o patrimônio assegurava também
Revolução liberava um novo futuro, pressentido seja como progresso a continuidade — de um passado regenerado a um futuro estabilizado.
ou catástrofe, e, pelo mesmo movimento, um novo passado; o caráter Ele podia configurar a permanência dos valores e dos recursos diante da
de estranheza inédita deste último levava-o a adequar-se para se tornar incerteza do futuro — com a condição de não implicar o retorno ao antigo
o objeto particular da ciência crítica-histórica."6 estado das coisas, perspectiva indubitavelmente ameaçadora, e portanto,
Concretamente, o tempo novo inscreve-se em uma proliferação de fundamentar-se na razão. A materialidade das coisas podia servir de vín-
panfletos e opúsculos diversos que dão conta da atualidade de múltiplos culo entre a história e a posteridade, encarnar uma lição do passado que
"fatos históricos" — do jornalismo revolucionário aos Tableaux de la Révo- corresponde à afirmação dos princípios; ela era não tanto uma ameaça
lution Française.7 Nessa perspectiva, o conjunto dos gestos de cerceamento para a experiência revolucionária, mas uma possibilidade de elaborar a
da Revolução, tradicionalmente associados a uma "estratégia consciente, definição abstrata da nação, ao manifestar sua realidade concreta>
apesar de ser mais ou menos secreta, dos políticos moderados" remetia,

4. Reinhart Koselleck, Future Past: On the Semantics of Historical Time, Cambridge: Uma nova história
MIT, 1979, p. 17.
5. Assim, o homem novo aparece, ao mesmo tempo, como um "dom" e como uma Mesmo que Grimm ou Diderot tenham manifestado, ocasional-
tarefa prática a ser empreendida. (Mona Ozouf, L'Homme régénéré, Paris: Gallimard,
1989, p. 131-132.)
mente, sua admiração pelo pitoresco da cavalaria, o período medieval
6. Fórmula de Reinhart Koselleck, op. cit. Sobre esse aspecto, cf. as análises de François
Furet, "Ancien Régime", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), Dictionnaire critique
8. A maîtrisefórmula foi forjada por Hans-Ulrich Gumbrecht; cf. "Chants révolutionnaires et
de la Révolution Française, Paris: Flammarion, 1989, p. 627-638.
de l'avenir", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, 1975, p. 244.
7. Pierre Rétat, "Forme et discours d'un journal révolutionnaire: Les Révolution de Paris Foi aplicada por Mona Ozouf ao dossiê da festa nestes termos: "Ao questionar o vo-
en 1789", in Claude Labrosse, Pierre Rétat e Henri Duranton (orgs.), L'Instrument cabulário da comemoração, a finalidade da festa é puramente conservadora: trata-se
périodique: La Fonction de la presse au XVIII' siècle, Lyon: Presses Universitaires de apenas de manter, perpetuar, conservar [...]. O apelo à memória deve ser dirigido,
Lyon, 1986, p. 139-178; L'Espace et le Temps Reconstruits: La Révolution Française efetivamente, por uma representação do futuro. No entanto, as repercussões atribuí-
une Révolution des Mentalités et des Cultures?, Marselha, 22-24 fev. 1989 (Atas do das à festa comemorativa estão dotadas de um valor exclusivamente repetitivo. [...]
colóquio), Aix-en-Provence: Publications de l'Université de Provence, 1990; Warren Ela está incumbida, precisamente, de encarnar esse desfecho voluntário e arbitrário."
Roberts, The Public, the Populace, and Images of the French Revolution: Jacques-Louis Portanto, o objetivo consistiria em manter "uma memória sem história" uma vez que,
David and Jean-Louis Prieur, Revolutionary Artists, Albany: State University of New "subtraída aos caprichos do tempo, projetada na eternidade do discurso, a Revolu-
York, 2000; Claudette Hould, La Révolution par l'écriture: Les Tableaux de la Révolu- ção desestimulará os homens, seja a contestá-la ou a prossegui-la" ("De thermidor
tion Française — une entreprise éditoriale d'information (Ie791-1817), Paris: Réunion à brumaire: Le Discours de la Révolution sur elle-même", in Revue Historique, vol.
des Musées Nationaux, 2005. 243, 1970, p. 31-66, aqui, p. 37-38).

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havia mantido uma posição muito mais significativa nas versões con- todos os conhecimentos humanos, a história é aquele que deve receber,
servadoras do mito primitivo, como outras tantas imagens dos "bons o mais rapidamente possível, todas as influências das revoluções que
velhos tempos."9 No declínio do século, as imagens da Idade Média acabam de se operar entre nós; no momento em que nos separamos
remetiam, cada vez mais, a uma época heroica (e perdida) da realeza tão completamente dos séculos passados, convém abordá-los a partir
francesa contra as imagens concorrentes do modelo antigo ou do Éden de uma última e nova perspectiva. Além da nossa maneira de ser, nossa
selvagem. Em seu panorama de Trois siècles de la littérature (1779), maneira de ver deve ser transformada. Essa distinção da história entre
um jornalista antifilosófico, tal como Sabathier de Castres, elogiava antiga e moderna será suprimida; toda a história, até mesmo a de on-
encomiasticamente Sainte-Palaye por seu interesse pela "história dos tem, será considerada como antiga. Os fatos permanecerão os mesmos,
bons velhos tempos de nossa monarquia". Portanto, a escola histórica mas apresentar-se-ão para nós como diferentes porque haveremos de
dos magistrados opôs-se logicamente aos tumultos institucionais no observá-los e julgá-los de maneira diferente" (p. 17).1 1
momento em que a Revolução rejeitava radicalmente tudo o que a Na verdade, a história dos revolucionários — de Condorcet aos
havia precedido ("Há quem se apoie na história; mas nossa história ideólogos — retomou as convicções anteriores relativamente a uma
não é nosso código", proclamava Rabaut Saint-Étienne; por sua vez, necessária utilidade da disciplina: o curso de história da École Centrale
Sieyès afirmava que não se deve desanimar pelo fato de "nada encon- du Rhône foi qualificado por seu professor como "moral reduzida em
trar na história que possa convir à nossa posição"10). Em seu Rapport exemplos." 12 Para Destutt de Tracy, considerado o chefe dos ideólogos,
sur les Académies (1791), o escritor e moralista Sébastien-Roch N. os compêndios deveriam fornecer "um quadro completo da marcha
de Chamfort dirigia um ataque contundente contra a Académie des do espírito humano que mostra as verdadeiras causas de seus suces-
Inscriptions, que se limitava a enunciar os lugares-comuns tanto da sos e de seus desvios". No entanto, as circunstâncias conferiam uma
futilidade dos conhecimentos eruditos como do ridículo de pedantes força inédita ao imperativo de seleção que já orientava a relação com
interessados em bagatelas. Mas essa foi sobretudo a oportunidade para o material do passado. As antiguidades nacionais davam testemunho
derrubar "os srs. Secousse, Foncemagne e vários outros membros dessa de épocas bárbaras, indignas do universal estético e histórico. Nada de
companhia" que haviam pretendido "estudar nossas antiguidades fran- surpreendente, por conseguinte, em escutar um filósofo da história,
cesas para desnaturalizá-las, deturpar as origens de nossa história, colo- Condorcet, reivindicando na tribuna da Assembleia Nacional a des-
car às ordens do despotismo uma falsa erudição, combater e condenar truição dos arquivos:
de antemão a assembleia nacional, ao declarar equivocada e perigosa a
opinião que retira do Rei o poder legislativo para atribuí-lo à Nação". "Hoje, comemora-se o aniversário do dia memorável em que, ao der-
Daí em diante, a história pretendeu, de fato, estar em harmonia rubar a nobreza, a Assembleia Constituinte colocou a última pedra no edi-
com tempos inéditos. O programa do Liceu republicano para o IX ano fício da igualdade política. É hoje que, na capital, a Razão queima no sopé
letivo, ou seja, o ano II, enunciava claramente suas novas tarefas: "Entre da estátua de Luís XIV esses imensos volumes que atestavam a futilidade
dessa casta; e ainda subsistem outros vestígios nas Bibliotecas Públicas,
nas Câmeras de Contas, nas repartições de provas e nos escritórios dos
9. François Pupil, Le Style troubadour ou la nostalgie du bon vieux temps, Nancy: Presses
Universitaires de Nancy, 1985.
10. Jean-Paul Rabaut Saint-Étienne, Considérations sur les intérêts du Tiers-État, adressées 11. Cf. ainda Daniel Nordman (org.), L'École normale de l'an Leçons d'histoire, de
au peuple des provinces, 1788, p. 13-14; Emmanuel Sieyès, Qu'est-ce que le Tiers-État?, géographie, d'économie politique, Paris: Dunod, 1994.
org. Roberto Zapperi, Genebra: Droz, 1970, p. 175. Cf. Jean Egret, La Prérévolution
française (Ie787-Ie788), Paris: PUF, 1%2, p. 332. 12. Louis Trenard, Lyon, de l'Encyclopédie au Préromantisme, Paris: PUF, 1958, p. 495.

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genealogistas. Importa que todos esses depósitos sejam reunidos em uma Lavallée, na abertura do 1 tomo de Mémoires de l'Académie, evocava as
2

destruição comum." Ao anunciar a comemoração do 14 de julho, o decreto posições dos antiquários do Antigo Regime, preocupados em legitimar
de 20 de junho de 1790 referia-se a esta dupla proclamação: "É importante seus trabalhos. No entanto, ele trazia a marca de uma nova busca de legi-
para a glória da nação impedir a subsistência de algum monumento que ti midade, estreitamente atribuída aos poderes instituídos — a tal ponto
faça lembrar ideias de escravidão. [...1 Convém à dignidade de um povo que Flaubert, em seu Dictionnaire des idées reçues, citará ironicamente a
livre consagrar-se tão-somente a ações que ele próprio tenha considerado Academia Céltica no capítulo da independência das academias: "Não será
e reconhecido como grandes e úteis. simples que uma nação [...] conceba uma elevada ideia de sua própria
nobreza? E que, dirigindo um olhar religioso para seus antepassados, ela
Em seu livro Idées sur les arts, publicado em pluviôse do ano II, E-A. se aplique a desvencilhar, nas lembranças históricas, a estima de que eles
Boissy d'Anglas definia assim essa nova dignidade: "A França regenerada usufruíram na terra, e procure dar-se conta se lhe é permitido acrescentar,
acabou recebendo do despotismo, já moribundo, uma ampla e impressio- à solenidade de uma glória recentemente adquirida, o nobre orgulho de
nante herança que ela deveria repudiar sem qualquer constrangimento. uma glória herdada? Que a nação francesa se entregue sem inquietação
Para os séculos e para o universo, ele lhe havia restituído o imenso depó- a essa busca, seu orgulho não será decepcionado; ela cultiva ainda o solo
sito de todos os conhecimentos humanos, o resultado de todos os talentos que, em direção ao ápice dos tempos, mais fértil em homens que em safras,
do espírito, o produto de todas as criações do gênio. Ela lhes [às "'nações povoou o globo antes de alimentá-lo [...]. O território habitado por nós
que, um dia, hão de suceder-lhe"'] fica devendo, além de não interromper, havia sido a metrópole desse povo que, pelo excedente de sua população,
por uma culposa indiferença, a marcha e os avanços do espírito humano, colonizou um tão grande número de regiões longínquas. Enquanto filhos
fazer para a posteridade o que os séculos passados fizeram em seu favor." mais velhos dos celtas, nenhum povo estrangeiro conseguiu desapossar-
A França tornou-se, pelo mesmo movimento, depositária da história nos de sua herança, e, apesar de ter usurpado nosso território, não chegou
universal e guia do futuro, já que ela havia assumido, "de uma só vez, a a obscurecer nossa filiação [...]. Talvez fosse mesmo possível para alguns
ambição de pretender servir de exemplo às nações" (Sieyès). cientistas comprovar que a presença dos francos entre nós é o resultado
Esse foi o caso particularmente da Academia Céltica, fundada em não tanto de uma invasão, mas do retorno de uma grande porção de
1804, em que Cambry, Volney, La Révellière-Lépeaux, Lenoir, Mangourit, nossos irmãos para sua primeira pátria. Assim, portanto, fiéis guardiões
Roquefort e, em seguida, Millin, Dulaure... comungavam sob a mesma dos túmulos celtas em que repousam os pais de tantos povos belicosos,
divisa: "Gloriae Majorum". 13 A associação propunha-se lançar um podemos até mesmo afirmar-nos como o ramo mais antigo da grande
programa de pesquisas linguísticas, etnológicas e arqueológicas, com o família das nações."
objetivo de provar que as antiguidades nacionais francesas eram simples- Nada é mais afastado de Ossian, traduzido parcialmente por
mente os monumentos do povo celta, ou seja, o povo original da terra; Diderot, Turgot ou Suard, que oferecia, em sua obscuridade, a abor-
assim, seria estabelecida definitivamente a identidade das antiguidades dagem de uma selvageria melancólica, entre perda e confusão, sem
francesas e das antiguidades universais. O discurso preliminar de Joseph conseguir conciliar sensibilidade com heroísmo — além disso, nada é
retomado, aqui, da discussão sobre a autenticidade do conhecimento
13. Mona Ozouf, "L'Invention de l'ethnographie française: Le Questionnaire de l'Académie dos tempos druídicos, bastante complexo, pela Europa.14 Nada é mais
Celtique", in Annales ESC, n. 2, 1981, p. 210-230; Nicole Belmont (org.), Aux Sources
de l'Ethnologie française: L'Académie Celtique, Paris: CTHS, 1995; André Burguière,
"L'Historiographie des origines de la France: Genèse d'un imaginaire national", in 14. Sobre o estado das disputas eruditas da época, cf. Kristine Louise Haugen, "Ossian
Annales HSS, n. 1, 2003, p. 41-62. and the invention of textual history", in Journal of the History ofldeas, vol. 59, n. 2,

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afastado, também, do caso alemão em que a ênfase é colocada na a investigação foi empreendida com um sentimento de urgência, à procura
reivindicação do particular15; assim, antes da viagem à Itália, Goethe das últimas testemunhas — dos contemporâneos das origens — cujo ine-
enaltecia — em seu ensaio Sur l'Architecture gothique (1722) — a lutável desaparecimento era previsível: exemplo de um momento apenas
catedral de Estrasburgo como monumento da arte alemã, baseada em perceptível em que a antiga diversidade dos sujeitos cede o lugar à nova
princípios nacionais e ao mesmo tempo na natureza. Pelo contrário, forma de excelência, ou seja, à uniformidade dos cidadãos.18
ao propor ao governo — em sua obra Antiquités gauloises et romaines O terceiro parágrafo do questionário, elaborado por Dulaure e
recueillies dans les jardins du Palais du Sénat (1807) — a "criação de Mangourit entre abril e julho de 1805, classificado e redigido por
um museu", "verdadeiramente nacional", C.-M. Grivaud definia tal Dulaure, fixou-se no que seu secretário perpétuo Éloi Johanneau
estabelecimento como algo "composto unicamente por monumentos designava por "nomenclatura e configuração" dos monumentos para
antigos, existentes na França". A instância legitimante permanecia o "restituir-lhes (o lugar a que têm direito) na história geral da Gália".
universal antigo, a tal ponto que ele inspirou amplamente o Génie du Trata-se das "Questões sobre os monumentos antigos": "23. Foi desco-
christianisme: "Não cessamos de nos recriar a partir das instituições berto algum campo com túmulos? Onde é que ele se encontra? Será no
da Antiguidade e rejeitamos reconhecer que o culto evangélico seja o acostamento de um caminho antigo, nas margens de um rio, no cimo
único resíduo dessa antiguidade que tenha chegado até nós. Se fixamos de uma montanha, em um terreno outrora estéril, em antigas divisas?
nosso olhar no padre cristão, no mesmo instante somos transportados Qual é o nome desse cemitério antigo? Estará relacionado com algum
para a pátria de Numa, Licurgo ou Zoroastro. A tiara mostra-nos o tipo de tradição popular? Situa-se a oeste ou ao sul do lugar [habitado
persa errante por cima das ruínas de Suza e Ectabana perto do qual] ele se encontra? 24. Qual é a forma, a matéria desses
Os monumentos franceses configuram, assim, os últimos sinais de um túmulos? Qual é sua disposição geral em relação aos pontos cardeais?
mundo já perdido ou a caminho de desaparecer; sua melhor ilustração Já foram escavados? Está confirmado que não o foram? O que foi en-
encontra-se no Questionnaire 17 da Academia Céltica sobre os usos e cos- contrado no local? 25. Esses túmulos estão acompanhados por algumas
tumes. Como é referido por seu secretário temporário, M.-A. Mangourit, construções antigas? Qual é sua forma, e que grau de perfeição deve
"alguém observou com engenhosidade, na última assembleia, que conviria ser atribuído à sua arte? Ou, então, tais construções não passam de
apressarmo-nos na formulação de nossas questões porque o Código e as um amontoado de pedras sem forma, fragmentos de rochas amonto-
outras instituições que, atualmente, dirigem a França conduzirão necessa- adas, erguidas e amparadas por outros fragmentos de rochas isoladas
riamente à extinção de um grande número de costumes típicos". Portanto, e implantadas em forma de obelisco, ou várias dessas rochas estão
dispostas em um plano circular ou longitudinal? Haverá alguma que
1998, p. 309-327; e para uma recente análise literária, o artigo de Dafydd Moore, apresente, grosseiramente, a forma de um assento? 26. Cada um dos
"HeroicEighten-Cury incoherence in James Macpherson's the poems of Ossian", in monumentos brutos que acabam de ser indicados existe alhures ou
Studies, vol. 34, n. 1, 2000, p. 43-59.
foi construído isoladamente? As pedras de sua construção pertencem
15. Louis Dumont, "Peuple et nation chez Herder et Fichte", in Libre, n. 6, 1979, p.
233-250. ao solo em que ele se encontra ou foram extraídas de outro lugar?
16. François René (visconde de Chateaubriand), Génie du christianisme (1802), Paris: Qual é a sua denominação e a do terreno ocupado por elas? Qual é a
Garnier-Flammarion, 1993, T. 1, t. II, p. 57. opinião do povo a seu respeito? Que tradição foi conservada por elas
17. Elaborado entre abril e julho de 1805, este questionário foi distribuído, a partir de
1807, às "pessoas mais esclarecidas" de cada departamento francês; elas deveriam
enviar as respostas para o secretário perpétuo da Academia. Cf. <http://www.garae. 18. Arthur Onck Lovejoy. The Great Chain of Being: A Study of the History of an Idea,
fr/spip.php?article227> (último acesso: jul. 2009). [N.T.] Cambridge: Harvard University Press, 1933.

94 95
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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE

sobre o motivo e o autor de sua construção? Que fábula maravilhosa Mas, se toda a história moderna francesa torna-se, de repente,
é relatada a seu respeito? O povo pratica à sua volta algum tipo de estranha aos novos fundamentos da sociedade e do político — e, por
superstição? Espalha óleo? Depõe flores? Os passantes acrescentam assim dizer, tão afastada quanto são longínquos os objetos da Antigui-
uma ou várias pedras ao amontoado de pedras a que se dá o nome de dade —, a herança material pode entrar na economia geral dos "monu-
sepultura, túmulo, mausoléu, jazigo, etc.? Que ideias estão associadas mentos" disponíveis e manipuláveis, segundo o modelo explicitado no
a essa prática? Quais são os monumentos ou as ruínas de construção capítulo precedente. Esse quadro fornece um "horizonte de recepção"
atribuídos às fadas, a César ou ao diabo? 27. Existe no interior dos a obras que — em razão da perda de sua situação, de seu contexto ou,
lugares consagrados ao culto, ou alhures, algumas pedras às quais o mais amplamente, das condições originais de seu projeto — estavam
9
povo atribui a faculdade de fazer milagres [...] qual é o nome e a forma privadas, daí em diante, dessa dimensão.1 Uma nova economia moral
dessas pedras [...] quais são esses milagres?" Essa pesquisa não é, como das imagens pretendia estar, então, na origem de uma conservação
foi aduzido precipitadamente, o precursor da etnologia francesa: Mona maduramente refletida; tal possibilidade só poderia aparecer depois
Ozouf esclareceu perfeitamente tal mito. Em seu contexto é que o que fosse descartada a ideia de um passado, fonte de legitimidade
20
documento se compreende como a ilustração talvez mais consequente para os negócios do Estado. Aliás, como havia sido resumido por
da representação patrimonial revolucionária, entre inventário das Hannah Arendt: "O passado torna-se referência com a condição de
singularidades e projeção do universal, consciência de uma paisagem que seja transmitido como tradição; por sua vez, a autoridade torna-
21
cultural diversificada e expectativa de seu desaparecimento. se tradição com a condição de apresentar-se historicamente." Pelo
contrário, a revolução exige um modo a-histórico da autoridade (eis
o desafio, em particular, de um "retorno" aos princípios da natureza)
O triunfo da alegoria e um modo de existência do passado que não é a tradição (em vez
voluntári) um vínculo obrigatório, impõe-se a ideia de um reconhecimento
de
Com a Revolução Francesa, o passado nacional transforma-se, com Daí em diante, a transmissão "à posteridade" foi o resul-
efeito, integralmente em um Antigo Regime amaldiçoado; segundo uma tado de iniciativas ponderadas, desenvolvidas propositalmente, e não
denominação forjada propositalmente com esse fim. Os anos concebidos o fruto do curso dos acontecimentos; nesse sentido, o patrimônio
a posteriori como fundadores do patrimônio inscrevem-se, portanto, em deve ser entendido como uma forma da reorganização racional dos
contradição aparente com a evolução que, supostamente, eles deveriam recursos para a nova coletividade, ao contrário dos usos que esta ou
prefigurar: no mais profundo de uma convicção da insignificância do aquela herança poderia ter imposto, anteriormente, a determinada
passado para a construção do novo, insignificância decorrente da consi- comunidade seja ela de "raça", como se dizia, da inteligência ou
deração unívoca relativa ao contrato na definição da nação.A atitude a
adotar em relação à herança do passado e da desordem legada pelo acaso
dos 19. Cf. o balanço equilibrado proposto por Martyn P. Thompson a respeito das teses da
sdevr séculos tinha a ver, daí em diante, com a Lei; nesse sentido é que nova história política, "Reception theory and the interpretation of historical meaning",
entendida a intuição de Michelet, ao evocar um "tribunal revolucio- in History and Theory, vol. 32, n. 3, out. 1993, p. 248-272.
nário" dos arquivos. Assim, a devastação ou as reutilizações do decênio 20. Em relação ao papel instrumental da tradição na política do Antigo Regime, cf.
diferem, radicalmente, dos episódios precedentes, ou seja, fundição das Denis Richet, La France moderne: L'Esprit des institution, Paris: Flammarion, 1973,
p. 129-131, 143-146, 148-163; e Keith M. Baker, Au Tribunal de l'opinion: Essais
peças de prata e ouro da realeza para encher os cofres públicos, icono- sur l'imaginaire politique au XVIII' siècle, Paris: Payot, 1993.
clastia religiosa, substituição de uma decoração obsoleta por outra, etc. 21. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE

da arte, porque pesa continuamente sobre as elites a suspeita de pos- durante muito tempo, a memória dos benfeitores da humanidade"," essa
síveis manipulações do povo. convicção era dificilmente compatível com uma hostilidade rousseau-
De acordo com os decretos oficiais, a conformidade das obras do niana diante da representação. Como se sabe, a contradição caracterizava
passado deveria operar-se, do ponto de vista profissional, fora da praça os organizadores das festas revolucionárias: "persuadidos do poder das
pública, por rasuras, supressões e diferentes medidas, realizadas em i magens", servem-se dele "sem deixarem de permanecer obstinadamente 26
ateliê. As recomendações das Assembleias sugeriam um trabalho capaz convencidos da falsidade de tudo o que assume a forma de figura".
de fazer desaparecer, sem deixar rastro, os símbolos condenados, ao A característica mais notável da sensibilidade às imagens na Re-
contrário do gesto iconoclasta que usufrui do espetáculo da destrui- volução foi, então, a substituição de modelos: do icônico pelo nar-
ção visível, até mesmo do efeito das ruínas na praça pública, além de rativo." Exibidos por ocasião das festas, os "ícones" manifestam, por
contar com suas repercussões demonstrativas.22 Rapidamente, o novo exemplo, uma rejeição e a impossibilidade de "relatar" o acontecimento
termo "vandalismo" designa uma conduta escandalosa porque, além histórico ou a vida do "mártir" republicano. A propósito da festa em
de ser retardada e ignorante, é sobretudo ilegítima por depender da homenagem a Marat, Mona Ozouf mostrou que o cortejo tornava-se
iniciativa de grupos isolados, de facções particulares — para não dizer uma "frisa", concebida por "um ponto de vista de arquiteto", que em
de conspiradores contrarrevolucionários. vez "das circunstâncias da vida de Marat, desenroladas segundo a or-
Um trabalho permanente deve, em suma, posicionar o patrimônio dem de uma gênese", expunha "o recorte das características lendárias:
contra o passado, como um dos símbolos da vontade revolucionária, pura distribuição de papéis alusivos sem a mínima profundidade". Do
associado aos dois temas do reconhecimento e da emulação — do mesmo mesmo modo, a festa elaborada por David para o aniversário de 10
modo que, segundo a fórmula de Hayden White, os historiadores das de agosto fracassou em sua narrativa ao representar a história da Re-
Luzes escreviam a história contra o passado. 23 Tenta-se forjar uma nova volução sob a forma de cartazes e inscrições: "Esvaziado de história, o
28
representação do passado por uma criteriosa distinção entre o despre- espetáculo vai relegá-la, ainda outra vez, ao texto escrito." De forma
zível a ser suprimido e algo de memorável a ser instaurado ou, às vezes, mais abrangente, a segunda metade do século XVIII havia rejeitado
a recuperar, mas sempre em nome de uma reabilitação do verdadeiro. amplamente a complexidade de linguagens abstratas — e, portanto,
Sua melhor definição é fornecida pelo presidente do Comitê de Instru- confusas — para enfatizar a utilidade de um discurso que associava as
ção Pública, Mathieu, que propôs em 28 de frimaire do ano XI (18 de i magens e as palavras em uma estreita relação com a experiência dos
dezembro de 1793) a coleta "do que pode servir ao mesmo tempo sentidos." Parece ser bastante nítida a raiz filosófica e linguística do
de ornamento, troféu, além de apoio à liberdade e à igualdade". 24 Mas,
se alguém continua afirmando que o "verdadeiro objetivo" das obras de 25. Instruction sur la manière d'inventorier et de conserver [...) par la Commission temporaire
arte "consiste em prolongar a lembrança das ações úteis e em fazer viver, des arts, ano II.
26. Mona Ozouf, La Fête révolutionnaire, op. cit., p. 244.
La
27. Klaus Herding, "Utopie concrète à l'échelle mondiale: L'Art de la Révolution", in
Révolution Française et l'Europe Ie789-1799, Paris, Grand Palais, t. 1, p. XL (Catálogo
22. Sobre a poética das ruínas e de seus aspectos patrimoniais, cf. a coletânea editada da exposição).
por Brian Neville e Johanne Villeneuve. Waste-Site Stories: The Recycling of Memory .
28. Mona Ozouf, op. cit., p. 21-43.
Albany: State University of New York Press, 2002.
23. Hayden White, Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe, 29. Cf. Theresa M. Kelley, "Visual Suppressions, Emblems and the Sister Arts", in
Eighteenth-Century Studies, vol. 17, n. 1, 1983, p. 28-60, para a demonstração sobre
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973, p. 63.
a evolução das edições de Ripa. [Cesare Ripa (c. 1560-1625), autor de Iconologia.
24. James Guillaume, op. cit., p. 180. Em Significado nas artes visuais, o mestre alemão Erwin Panofsky define esta obra

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"privilégio da metáfora, enaltecida em Condillac, tornada primitiva corrida mortal em direção ao anonimato", mas que, para J.-P. Brissot,
deste último a Turgot ou Herder; devaneio sobre a gestualidade; ideia por exemplo, não passa da recusa de "transformar o homem-Rei em um
de uma original comunhão mental, cuja oposição ao consenso mo- Deus"35. Multiplicadas no decorrer do ano II, as fórmulas exprimem
derno será sobrecarregada, em Rousseau, com a nostalgia"". suficientemente que a "idolatria" continuava ameaçando a encarnação
A preeminência da alegoria, confirmada por todos os observado- da pátria36; a imagem nunca mais será ilusória, para evitar qualquer
res, dava conta dessa especificidade. Com efeito, "diferentemente do equívoco na reverência devida com exclusividade aos princípios.
simulacro e do símbolo, a alegoria é", se dermos crédito a Quatremère A Revolução pretendia conduzir o homem à "maioridade" diante
de Quincy, uma "imitação até certo ponto inimitável".31. Na esteira de da imagem, segundo a fórmula kantiana do Sapere aude [Tenha cora-
seu estudo sobre as teorias estéticas de Quatremère, Philippe Junod gem de fazer uso de seu próprio entendimento], além de impedir sua
chega mesmo a tirar a conclusão, nesse autor, do paradoxo de um ideal regressão à relação primitiva com o ídolo. Tal programa teria exigido,
de pintura "para cegos inteligentes"." Assim, "quando o ministério do em substância — como foi bem observado por Ernst Gombrich
Interior pretende, em pluviôse do ano VII, fixar o modo de celebração dar a conhecer Condillac a todos os franceses, com o receio de que
da festa da Soberania do Povo", ele convida os artistas a procurar "ima- uma eventual "sonolência da razão" suscitasse ainda outros ídolos."
gens" ou, de preferência, corrigindo-se, "ideias".3 Sob esse aspecto, a Tarefa rapidamente reconhecida como impossível, em vários planos, e
alegoria, apesar de sua evidente dificuldade de leitura — aliás, aspecto cujo abandono deixava um espaço livre para a encarnação dos mártires
que
"transpêci"3 lhe é criticado com frequência —, corresponde ao novo ideal de e santos patriotas: uma obra-prima republicana, tal como o quadro
por impedir que se esqueça sua distância em relação A morte de Marat de David, oferece "a presença palpável do ídolo" e, ao
ao que é verdadeiro. A suspeita que pesa sobre a representação imitativa mesmo tempo, uma "figura ideal, clássica e distanciada"?8 Do mesmo
mantém uma relação óbvia com a teoria política revolucionária, ou seja, modo, Albert Mathiez pôde insistir sobre as tendências comuns dos
a necessária impessoalidade do poder que Marcel Gauchet lê como "uma "cultos revolucionários" e das práticas tradicionais das religiões reve-
ladas: "Evidentemente, o patriota que ostentava o cocar nacional não
atribuía a esse pedaço de pano, em geral, o poder de fazer milagres;
como "aquela 'summa' da iconografia que, abeberando-se em fontes tanto clássicas
e medievais como contemporâneas, foi chamada, justamente, de 'chave das alego- nesse aspecto, verificava-se uma diferença entre seu estado de espírito
rias dos séculos XVII e XVIII', e explorada por artistas e poetas tão ilustres quanto e o do católico que pendura ao pescoço uma medalha benzida, ou
Bernini, Poussin, Vermeer, e Milton [...] publicada em 1593, reeditada inúmeras alguma relíquia preciosa. De qualquer modo, não deixa de ser verdade
vezes e traduzida em quatro línguas [...]" (São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 216).
Cf. <http://publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_neGrieco.pdf (úl-
>
que o cocar, a medalha ou a relíquia são, no mesmo plano, símbolos
tima consulta: jul. 2009)(N.T.).] religiosos por terem a seguinte característica em comum: eles represen-
30. Daniel Droixhe, La Linguistique et l'appel de l'histoire, Ie600-1800, Genebra: Droz, tam, concretizam, evocam um conjunto de ideias ou sentimentos, ou
1978, p. 348.
31. Apud Mona Ozouf, op. cit., p. 252.
32. Philippe Junod, Transparente et opacité: Essai sur les fondements rhétoriques de l'art 35. Marcel Gauchet, La Révolution des droits de l'homme, Paris: Gallimard, 1989, p. 27,
moderne, Lausanne: d'Homme, 1975, p. 309. que cita essa fórmula de J.-P. Brissot, pronunciada em 3 de agosto de 1789.
33. Apud Mona Ozouf, op. cit., p. 252. 36. Cf. as circulares citadas por Lucien Jaume, Le Discours jacobin et la démocratie, Paris:
34. Fayard, 1989, p. 183, 342.
Marc Richir, "Révolution et transparente sociale", in J. C. Fichte, Considérations
destinées à rectifier le jugement du public sur Révolution Française, Paris: Payot, 37. Ernst-Hans Gombrich, "The Dream of Reason: Symbolism in the French Revolution",
1974; e Myriam Revault d'Allones, "Le Jacobinisme ou les apories du politique", in in The British Journal for Eighteenth-Century Studies, vol. 2, n. 3, 1979, p. 187-205.
Reune Française de Science Politique, vol. 4, ago. 1986, p. 519-527. 38. Fórmula forjada por Klaus Herding, op. cit.

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seja, uma fé. [...] Aliás, não é absolutamente verdadeiro que o valor é atribuído ao monumento que, extraído do passado, tem valor, a
dos símbolos revolucionários se limitasse a simples sinais ou alegorias contragosto, para o futuro, ao demonstrar que os valores presentes
inofensivas sem virtude nem eficácia particular."39 Todavia, a Revolu- são eternos, apesar de terem sido combatidos, outrora, pelos mal-
ção temia que uma eventual perversão da razão levasse a substituir os intencionados. Nesse mesmo movimento que destruía as imagens
extravios do passado por uma nova idolatria. A escolha de atrizes para corrompidas do Antigo Regime, a Revolução pretendia, portanto,
N
figurar as "divindades", por ocasião das festas, pretendia atenuar esse despotismo.
revelar a arte ãoautêntica, até então relegada aos depósitos obscuros do
deslize porque — desincumbidas, imediatamente depois da cerimônia, foi sem malícia que determinadas obras passaram
de qualquer status simbólico — elas não exerciam o papel de inter- despercebidas ou foram esquecidas: elas revelavam um talento desco-
cessor.40 Do mesmo modo, a possibilidade de um acordo entre a moral nhecido ou ofuscado, exigindo de saída a atenção dos republicanos.
evangélica e a moral republicana teria ocorrido no âmago de uma religião A iniciativa estava diretamente associada a um pensamento que estabe-
depurada: a teofilantropia pretendia existir "sem padres — substituídos lecia a separação entre a permanência da natureza humana e a perversão
pelos pais de família — nem emblemas, imagens ou estátuas, ou seja, histórica das sociedades, em favor de uma restauração do verdadeiro e
um retorno à simplicidade das origens (os teofilantropos por pouco do belo, outrora desdenhados ou dissimulados por terem sido vítimas
41
evitaram a denominação de 'cristãos primitivos')". de diversas conspirações. Ao proceder desta forma, a Revolução anulava
a historicidade em benefício do presente, ao tratar esse legado como
42
precursor de sua gloriosa atualidade. Ela retomava amplamente à sua
Distribuir o patrimônio em novos lugares conta a opinião dos filósofos e de seus êmulos que, de acordo com o
resumo de Arnaldo Momigliano, "consideravam a história como uma
A nova época pretendeu tirar partido da experiência e do talento luta permanente de alguns sábios, de quem eles eram os continuadores,
natural dos homens. Tal postura explica que o qualificativo "regenerado" contra a violência, a superstição e a tolice da maior parte das pessoas'''.
Certamente, a literatura artística ou a memória coletiva — a herança
39. Albert Mathiez, Les Origines des cubes révolutionnaires, Paris: Beijais, 1904, p. 34-35. das antigas comunidades de especialistas ou dos que mantêm familia-
Cf. ainda Albert Soboul, "Sentiment religieux et cultes populaires pendant la ridade com a obra — são importantes na maneira como se considera e
Révolution: Saintes patriotes et martyrs de la liberté", in Annales Historiques de la
Révolution Française, vol. XXIX, 1957, p. 195-213. A partir de quatro estudos de
aborda os objetos. No entanto, seus novos lugares de conservação e de
casos (Paris, Toulouse, Departamentos de Aube e de Bouches-du-Rhône) sobre os exposição determinavam grandemente, daí em diante, seus valores -
primeiros decênios do século até 1789, Cissie Fairchilds pretendeu mostrar a impor- os de obras-primas restauradas, de documentos convenientemente
tância considerável dos objetos religiosos no consumo doméstico e como a influência
jansenista acabou pesando na autonomização desses artefatos: uma demonstração colocados em perspectiva ou de ilustrações pertinentes . Tais lugares
que espera ser validada por outros meios e pode esclarecer alguns aspectos da mu- — os museus, o Panthéon, os jardins, os depósitos ou conservatórios -
tação ulterior — cf. "Marketing the Counter-Reformation: Religious Objects and
tornaram-se o teatro de múltiplas consagrações e desconsagrações.
Consumerism in Early Modern France", in Christine Adams, Jack R. Censer e Lisa
Jane Graham (orgs.), Visions and Revisions of Eighteenth-Century France, University Com efeito, para os diferentes especialistas, essa foi a oportunidade de
Park: The Pennsylvania University Press, 1997. atribuir novas significações aos objetos reunidos no mesmo espaço; as
40. Maurice Agulhon, Marianne au combat: L'Imagerie et la symbolique re'publicaines de
Ie789 à Ie880, Paris: Flammarion, 1979, p. 38; Madelyn Gutwirth, Reviw
Twilight of the 42. Donald Egbert, "The Idea of Avant-Garde in Art and Politics", in American Historical
Goddesses: Women and Representation in the French Revolutionary Era, New Brunswick:
, vol. 2, 1967, p. 339-366.
Rutgers University Press, 1992.
43. Arnaldo Momigliano, "La Contribution de Gibbon à la méthode historique", in
41. Mona Ozouf, "Religion révolutionnaire", op. cit., p. 610.
Problèmes d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983, p. 335-336.

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rivalidades ou as contradições entre essas novas atribuições constituí- vantagem de promover debates sobre os tutores e os recursos dessa edu-
ram outros tantos conflitos de classificação e de legitimidade. Assim, cação regeneradora, sobre o perigo das corporações renascentes, sobre
em 26 de vendémiaire do ano VIII, o administrador do museu especial seus interesses particulares, etcEm pé de igualdade com o Panthéon ou
da École Française, em Versalhes, E. A. Gibelin, protestava junto de com outros templos (um projeto monumental de Durand e Thibault
Sieyès contra a remoção das marinhas do pintor Vernet, que deveriam elaborava, para o concurso do ano II, um Templo da Igualdade que,
servir, por ordem do ministro da Marinha, para a instrução dos futuros em seguida, reaparecia como um lugar de reunião de cidadãos a fim de
45
marinheiros. Em 4 de nivôse do mesmo ano, L. Daubenton44 solicitava, praticarem nesse espaço "um culto qualquer" ), o museu era um lugar
em nome do Museum National d'Histoire Naturelle (1793), ao Musée do qual se exigia a imediata eficácia e a ambição universal. Paradigma
Central des Arts um Cristo da coluna em jaspe sanguíneo: "O interesse da perfeição sensualista absoluta, ele encarnava uma vantagem de
que, eventualmente, essa peça possa ter do ponto de vista artístico não ordem pedagógica que permitia conferir uma utilidade de princípio
se compara com sua importância para o estudo da História Natural." a acervos, sem a qual sua significação e apropriação permaneceriam
No dia 13, o Musée rejeitava abrir mão dessa "belíssima figura": "Se o problemáticas. Evocar seus recursos e seu poder era enaltecer a energia
mérito desse objeto se limitasse à matéria, a administração teria tido a revolucionária, sua capacidade para subordinar tal monumento par-
solicitude de oferecê-lo ao senhor." Do mesmo modo, o Conservatoire ticular ao ensino dos novos princípios — o que é denunciado, ime-
National des Arts et Métiers e o Museu dos Monumentos Franceses diatamente, por alguns (Quatremère de Quincy, por exemplo) como
entraram em competição a propósito dos revestimentos de madeira do uma desnaturalização da arte, novo gênero de vandalismo.
castelo de Écouen: em nome da unidade arquitetural e sentimental, eles Com efeito, semelhante investimento museográfico envolvia o
foram reivindicados por Lenoir para terminar a sala do século XVI, no desapossamento do Estado tradicional. A consciência revolucionária
Louvre. Por sua vez, o colega do Conservatoire defendeu seus direitos manifestava uma real indiferença, para não dizer uma hostilidade decla-
nestes termos: "É importante que os lambris de Écouen entrem (no rada, em relação à inscrição territorial ou histórica dos monumentos e
Conservatoire) como monumento histórico da arte, como elemento das coleções; inversamente, ela prosseguia uma distribuição equitativa
de comparação da marcenaria em diferentes épocas, além de mostrar do patrimônio por todo o território nacional e, ao mesmo tempo, ali-
aos artistas o ponto de partida da caminhada progressiva do gênio. mentava a centralização tradicional das obras-primas. Quando as leis de
Colocar esse monumento em local diferente do Conservatoire seria 24 e 25 de janeiro de 1790 organizaram uma divisão inédita do espaço
mutilar, de alguma forma, a história da marcenaria e romper a série francês em 83 departamentos, o Comissão dos Monumentos pretendeu
dos conhecimentos que apresentam a marcha sucessiva da arte, desde formar, com a ajuda dos objetos reconhecidos e inventariados por ele,
seu começo até o mais avançado de seus progressos." Tais reivindicações um museu em cada departamento. Em 2 de dezembro do mesmo ano,
desenhavam, em cada momento, uma "biografia cultural dos objetos", Bréquigny, o ilustre membro da Académie des Inscriptions, propunha
correspondendo aos diferentes valores que lhes eram reconhecidos. "a distribuição dos monumentos" nas igrejas transformadas em museus:
2 Imagem ideal de uma abertura das Luzes a todos, em um espaço "Todos esses monumentos", escreve ele, "pertencem em geral à Nação.
utópico de comunhão com o Belo e com os Princípios, o museu tinha a Portanto, convém que, na medida do possível, todos os indivíduos
possam ter seu usufruto e, em meu entender, a melhor contribuição

44. Louis Daubenton (1716-1800), naturalista francês e um dos colaboradores da Histoire


naturelle (perto de quarenta volumes, de 1749 a 1804), sob a direção de Georges- 45. James A. Leith, "The terror: Adding the Cultural Dimension", in Canadian Journal
Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788). [N.T.] of History, vol. XXXII, 1997, p. 315-337.

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nesse sentido consistirá em atribuir um dos depósitos em que eles serão nacional, utópica — do patrimônio foi bem descrita no relatório de
reunidos, com a condição de que tal acervo seja o mais completo possível J. Lakanal47 sobre as Écoles centrales e seus museus-bibliotecas, em dezem-
a cada departamento." bro de 1794: "A engenhosidade impulsionará sua flama depuradora até as
O "Projet d'instruction pour hâter les établissements de bibliothè- extremidades da República. Daí, por um esforço recíproco, direcionado
ques et de muséums", apresentado em novembro de 1792, reafirmava naturalmente para o centro, formar-se-á uma circulação da qual depen-
que "cada departamento formará seus estabelecimentos públicos ao dem a boa disposição e a vida do corpo social." Essa é a forma de delinear,
escolher, em primeiro lugar, o que poderá lhe convir entre os monu- na perspectiva de remodelar a sociedade, uma circulação patrimonial à
mentos espalhados por seu território; o excedente será destinado a outros custa de coleções originais, inacessíveis ou deterioradas.
departamentos menos dotados nesse gênero de objetos, a fim de que se Neste ponto, abordamos as relações complexas dos revolucioná-
consiga, na medida do possível, uma distribuição equitativa das ciências rios com a questão do luxo e, de forma mais específica, com o status
e das coleções que lhes pertencem". Tal projeto previa "a execução de um do artista, além de sua relação com suas criações e com as criações
plano que, em todas as partes da República, apresentará amplos depó- anteriores — já que o senso patrimonial identifica-se com uma moral
sitos de livros, quadros, esculturas e objetos preciosos de toda a espécie, da propriedade, ao mesmo tempo pública e privada, para além das
que estarão disponíveis em sua totalidade, organizados de acordo com repetidas condenações da futilidade." A crise da representação tradi-
o mesmo critério e subdivididos segundo as mesmas regras, até mesmo cional implementou uma crítica contra os abusos de riqueza, contra os
nos detalhes mais insignificantes". Em suma, uma "útil e ponderada objetos de luxo e, igualmente, contra a superabundância de palavras.
distribuição" deveria "vivificar todas essas riquezas, centuplicá-las" e, A separação entre os artigos de distinção — que carregam, daí em diante,
finalmente, "animá-las em benefício do ignorante que as desdenha". o estigma do luxo amaldiçoado — e as obras de arte foi uma primeira
Assim, inscrevia-se a distribuição territorial do patrimônio no âmago condição para construir uma ideia de patrimônio artístico legítimo.49
de uma economia da circulação, baseada em equipamentos cuidado- Sabe-se como os debates, em matéria de edição, sobre o direito autoral e
samente concebidos e distribuídos, qualificados pelo abbé Grégoire" a figura do escritor acabaram por estigmatizar o autor "absoluto" como
como "ateliês do espírito humano". uma criatura do privilégio, substituindo-o pela imagem cívica de um
Tal resolução caracterizou o decênio, já que, em 1801, a obra anô- criador a serviço do bem público, de um herói das Luzes. Carla Hesse
nima Correspondance de deux généraux sur divers sujets sugeria o estabele- insiste justamente sobre a instabilidade da síntese realizada dessa forma,
cimento "dos museus secundários nas principais cidades da França, em que "combina uma instrumentalização a serviço do bem público com
que haveria a preocupação de reunir, o mais rapidamente possível, as
cópias dos melhores exemplares dos mais célebres pintores". A penúria,
47. Joseph Lakanal (1762-1845), político francês. Enquanto membro da Convenção,
frequentemente deplorada, de bons exemplos, artísticos e morais, é a entre as numerosas medidas relativas à instrução pública (1793-1795), promoveu a
consequência de um panteão de originais por definição limitado, que criação das Écoles centrales — uma por departamento. Nestas instituições, a ênfase
é colocada no ensino científico, em vez da tradição clássica dominada pelo latim.
não pode ser depauperado; pelo contrário, sua influência deverá crescer [N.T.]
pelo recurso à "multiplicação de exemplares". A malha — no plano 48. Sobre o debate geral a esse propósito, cf. Isser Woloch, "On the Latent Illiberalism of
the French Revolution", in American Historical Review, vol. 95, 1990, p. 1467-1470.
49. Remy G. Saisselin, The Enlightenment against the Baroque: Economics and Aesthetics
46. Henri Grégoire, conhecido como abbé Grégoire (1750-1831), padre e político in the Eighteenth-Century, Berkeley: University of California Press, 1992, p. 133;
francês, prestou juramento à Constituição Civil do Clero (1790); como deputado John Shovlin, "The Cultural Politics of Luxury in Eighteenth-Century France", in
da Convenção promoveu a votação pela abolição da escravatura. [N.T.] French Historical Studies, vol. 23, n. 4, 2000, p. 577-606.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE

uma teoria do autor baseada no direito natural", dando lugar a uma O museu regenerador
série de renegociações que se estendeu durante todo esse período."
A representação de um patrimônio revolucionado, ou seja, cortado O museu constituiu uma instituição-chave do empreendimento
da história, tinha a ver com o paradoxo de uma herança identificada de regeneração; acima de tudo, ele encarnava uma súbita e espeta-
com a permanência de princípios de que, em última instância, ela cular publicidade das artes, sob a forma da reivindicação atendida, da
"conquista" coletiva. Simples episódio ou transição de aparência lógica
procede e, daí em diante, deve defender contra seus primeiros pro-
prietários ou comanditários que haviam sido seus atores, por assim no resto da Europa, a abertura de museus inspirou-se, na França, na
dizer, involuntários. O empreendimento patrimonial prosseguia, desse retórica da ruptura instauradora. Mas, sobretudo, o museu era um
modo, um desígnio de emancipação que não deixava de revelar, através espaço em que o estatuto a atribuir às imagens herdadas do Antigo
dos "monumentos", a relação com as origens. Sua justificativa era a de Regime revelou-se como um desafio crucial: um dispositivo para ale-
excluir qualquer consideração de um "trabalho" da duração — genuína gorizar o passado.
"profundidade" do tempo.51 Segundo a célebre fórmula do membro Se alguns — entre eles, o abbé Grégoire — chegaram a evocar a
influente do partido liberal, Benjamin Constant, os revolucionários possibilidade de uma memória do Antigo Regime, a fim de votá-lo
"espantam-se que a lembrança de vários séculos não tenha desaparecido a um "pelourinho eterno", o projeto de um estudo esclarecido dos
rapidamente diante dos decretos de um dia. Considerando que a lei é erros do passado, a partir da hipótese de uma história negativa, cujo
a expressão da vontade geral, ela deveria, em sua opinião, prevalecer ensino teria efeitos positivos, afigurava-se difícil, uma vez que, eviden-
em relação a qualquer outro poder, incluindo o da memória e o do temente, limitar-se-ia a estigmatizar os mal-intencionados. O desejo
tempo."52 Tal era exatamente o projeto que permitiria viver, por assim de uma amnésia generalizada — que seria a antítese da lembrança da
dizer, no mesmo nível com as origens, mediante uma verdadeira "tra- militância — deveria ler-se, nessas condições, como falta de segurança
vessia" dos tempos intermediários, em particular de toda a civilização ou como extremismo político? De fato, esses debates participavam
do Antigo Regime. O conjunto dessas características esboçava um do que Mona Ozouf designa por comum "pessimismo original sobre
patrimônio sem outro proprietário além da humanidade inteira, tendo a história da França" ou, no mínimo, de uma convicção da instabi-
atingido a idade da razão. Verificava-se, segundo parece, a fusão entre lidade histórica." Uma leitura radical sobre o tema foi fornecida, há
passado, presente e futuro, respaldada na garantia dos princípios de pouco, por Bernard Groethuysen: "Entre os revolucionários [...] a fé
que a Nação era, daí em diante, depositária. no reinado futuro da razão compensa a visão pessimista dos tempos
passados. Essa falta de racionalidade na vida dos homens não deve
ser atribuída ao ser humano. Cada homem está dotado de razão e,
como criatura da natureza, faz parte de um todo coerente. Não é
ele nem a natureza que é irracional, mas sua situação atual de vida.
E essa situação tem a ver com as lacunas da organização social [...].
50. Carla Hesse, Publishing and Cultural Politics in Revolutionary Paris, 1789-1810, O século XVIII é dominado pela ideia da antinomia entre racionalismo
Berkeley: University of California Press, 1991, p. 122-123. inerente à natureza do homem e o irracionalismo da vida humana,
51. Mona Ozouf, "Régénération", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), Dictionnaire
critique, op. cit.
tal como é testemunhado pelo curso da história: ele é pessimista em
52. Benjamin Constant, "De l'Usurpation", in Marcel Gauchet (org.), De la Liberté chez
les modernes, Paris: Le Livre de Poche, 1980, p. 189-190. 53. Mona Ozouf, "De thermidor à brumaire..." , in Revue Historique, op. cit., p. 40-41.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE UMA NOVA AUTENTICIDADE

sua concepção da história e, ao mesmo tempo, otimista na concepção escrito na introdução de seu livro: se a filosofia forçou a superstição
que tem da natureza. Para explicar essa antinomia, deve existir um a encontrar regras nas condutas do passado, "não será que ela deve
terceiro elemento (:) a sociedade."" De fato, em Condorcet, como é compreender, na mesma proscrição, o preconceito que rejeitasse com
resumido por Keith Baker, "o progresso histórico (é percebido) como orgulho as lições da experiência?" A abertura da "10a época" justificava,
um processo de incrementação, dependendo do acúmulo constante e de fato, a "tentativa de delinear com alguma verossimilhança o quadro
da disposição dos conhecimentos (em que) o erro é uma consequência dos destinos futuros da espécie humana, de acordo com os resultados de
natural da defasagem entre o que podemos e o que desejamos conhecer, sua história". Como é resumido por Keith M. Baker: "A história
57

defasagem perpetuada e tornada nociva por poderosos interesses bem deveria, portanto, tornar-se a auxiliar da ciência social".58. Assim, a
arraigados"." Em suma, quando a razão se amplia à custa da supersti- obra-prima do passado não tem virtude pedagógica a não ser mediante
ção e da tradição, o uso do passado desenvolve-se contra ele próprio. a comprovação de que os valores presentes já existiam outrora, mas
Enviada, em março de 1794, para todos os departamentos pela haviam sido combatidos pelos mal-intencionados.
Comissão Temporária das Artes, a célebre Instruction sur la manière O escritor e moralista N. de Chamfort já havia garantido que
d'inventorier et de conserver dans toute l'étendue de la Republique tous "a única história digna de atenção é a dos povos livres, enquanto a
les objets qui peuvent servir aux arts, aux sciences et à l'enseignement - dos povos subjugados ao despotismo não passa de uma coletânea de
cuja redação havia sido confiada a F. Vicq d'Azyr e Dom Poirier, historietas"." Eis a distinção reivindicada por P. Daunou — na época,
beneditino de Saint-Germain-des-Prés — proclamava que "as lições presidente da Convenção (período da Revolução Francesa entre setem-
do passado, marcadas indelevelmente, podem ser repertoriadas bro de 1792 e outubro de 1795) — por ocasião da Festa da Queda do
por nosso século, que terá condições de transmiti-las, com novas Trono em 10 de agosto, 23 de thermidor do ano III, ao lembrar que
páginas, à lembrança da posteridade". Nessa perspectiva, F. Vicq "os anais de um povo inteiro eram suprimidos pela história de uma
d'Azyr escrevia que "todos esses objetos preciosos, que têm sido família, forçando a nação a procurar nesse episódio as causas de sua
mantidos longe do povo ou que lhe eram mostrados apenas para alegria e os períodos anuais de seus folguedos públicos"; entretanto,
suscitar seu espanto ou respeito, todas as riquezas [...], daqui em no tempo presente, "os cidadãos dos países livres limitam-se a cele-
diante, servirão para a instrução pública: elas servirão para formar brar e a prestar homenagem aos acontecimentos imortais da família
legisladores com base filosófica, magistrados esclarecidos, agricul- nacional". O periódico literário La Décade Philosophique, Littéraire
do
tores instruídos. [...] A indiferença [...] seria um crime".56 Aqui, a et Politique (1794-1804) dirá, de forma mais sóbria, em germinal
evocação da impostura, sacerdotal e régia, que mantinha as obras a ano X: "A história da França, propriamente falando, existe apenas após
distância do povo, suscitando o temor e a admiração, justificava a ini- a Revolução."69 Essa tarefa permanente de apropriação transformou
ciativa que acabava de ser empreendida no sentido de proceder a um
humain, apres. Alain
inventário e à sua preservaçáo. A fórmula evoca o que Condorcet havia 57. Condorcet, Esquisse d'un tableau historique des progrès de l'esprit
Pons, Paris: Garnier-Flammarion, 1988.

54. Bernard Groethuysen, La Philosophie de la Révolution Française, 58. Keith M. Baker, op. cit., p. 463.
Paris: Gallimard, : Maximes et
1982, p. 249. O tema é desenvolvido por Henry Vyverberg, Historical Pessimism in 59. Sébastien-Roch N. de Chamfort, Produits de la civilisation perfectionnée
pensées — Caracteres et anecdotes (1795), Paris: Gallimard, 1970, Máxima n. 486.
the French Enlightenment, Cambridge: Harvard University Press, 1958.
27 jul. 1793, in James Guillaume,
55. Keith M. Baker, Condorcet from Natural Philosophy to Social Mathematics, op. cit., 60. Pierre Daunou, Essai sur l'instruction publique,
p. 467. op. cit., 1, p. 581: "Para instituir uma República, é insuficiente derrubar um trono
56. Cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, se ainda não tiverem sido abolidas todas as obras da realeza, se não tiverem sido
3. ed., São Paulo: Unesp/Estação
Liberdade, 2006, p. 114, nota 45. [N.T.] suprimidas suas criações morais, se não tiverem sido desenraizados os hábitos que

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o patrimônio em um dos símbolos da vontade revolucionária e par- Entretanto, o temor de sucumbir ao ídolo antigo era permanente",
ticipou de um imaginário de utopia no sentido em que ela previa, alimentado pela fragilidade comum dos homens diante da imagem;
como afirmava Pierre Francastel, "os efeitos sociais benéficos das artes esse medo tinha a ver com a "dúvida no cerne do sensualismo", a qual
depuradas" — no caso concreto, o fim da idolatria.61 suscita "o pavor de não ter conseguido pensar em tudo".
65

Sob o Antigo Regime, de fato, por uma impostura premeditada, o O ato iconoclasta por excelência é a destruição, total ou parcial,
ídolo usurpava um respeito a que não tinha direito; com efeito, ele era uma executada in situ, que aniquila a mensagem original da obra: o melhor
i magem sobreavaliada, cujo gesto iconoclasta manifestava a vacuidade. exemplo dessa operação é fornecido pela demolição da Bastilha. Mas,
Eis o que, desde 1757, na introdução de sua obra, Guillaume-Alexandre se a lei de 23 de outubro de 1790 previa a fundição geral dos objetos
de Méhégan havia afirmado: "A idolatria estava associada à constituição preciosos encontrados nas igrejas, as Instructions concernant les châsses,
dos Estados; ela havia sido transformada pelo tempo em uma espécie de reliquaires et nutres pièces d'orfevrerie provenant du mobilier des maisons
fundamento dos Impérios, dos quais esperava receber toda a proteção."62 ecclésiastiques et destines à la fonte, publicadas no ano seguinte, ordenavam
Repetia-se, incessantemente, que os objetos em questão eram outros tantos a conservação de todas as obras anteriores a 1300 nas quais o valor do
"chocalhos" com os quais o adulto regride à enfermidade da infância. trabalho artístico fosse superior ao do metal e que tivessem algum inte-
A retórica da iconoclastia opunha a um adversário irracional, obscuran- resse por sua qualidade histórica ou pelas informações sobre a evolução
tista, até mesmo obsceno, o bom senso do patriota. Na edição de 1792 de do traje — aliás, a lógica do materiam superabat opus. Tal lógica levou os
sua obra, que obteve grande sucesso, tendo sido vivamente recomendada membros da Comissão dos Monumentos — que, em 4 de agosto de
pelos panfletos radicais, Louis Lavicomterie de Saint-Samson — jurista, 1793, examinaram as estátuas restantes da abadia de Saint-Denis —
polígrafo e membro da Convenção, além de primeiro historiógrafo repu-
blicano — afirmava o seguinte: "Se, depois de ter lido esta obra, algum Women Became Modern, Princeton: Princeton University Press, 2001. Sobre o título
de historiógrafo, cf. François Fossier, "La Charge d'historiographe du XVI' au XIX'
vil idólatra ainda rasteja diante deles, tendo percorrido sem pavor catorze siècle", in Revue Historique, vol. 523, 1977; e "A Propos du Titre d'historiographe
séculos de infortúnios e crimes, neste caso, afirmo que a servidão quebrou, sous l'Ancien Régime", in Revue d'Histoire Moderne et Contemporaine, vol. 32, 1985.
em sua alma, a mola da natureza; afirmo que se trata de um cego nato."63 64. Cf. ainda Robert Sauzet, "L'Iconoclasme dans le diocèse de Nîmes au XVI' et au dé-
but du XVII' siècle", in Revue d'Histoire de l'Église de France, vol. 56, 1980, p. 5-15.
A iconoclastia revolucionária tem numerosas características das iconoclastias clássicas
ela havia imposto, se, finalmente, não houver apropriação das ideias e dos costumes
da modernidade. Desse ponto de vista, podemos apenas indicar o interesse de uma
políticos para harmonizá-los com uma constituição republicana." Sobre essa posição
de La Décade, cf. Jacques Le Goff, Histoire et mémoire, Paris: Gallimard, 1988, p. 253. abordagem "antropológica" dos gestos iconoclastas que permitisse enfatizar certas
regularidades (por exemplo, a decapitação das estátuas). Cf. alguns elementos em
Em relação à iconoclastia da Revolução sobre ela própria — assim como sobre a
destruição simbólica das leis anteriores à medida de sua radicalização cf. Jonathan Natalie Zemon Davis, Les Cultes du peuple, Paris: Aubier, 1979, p. 251-307; Phyllis
Ribner, Broken Tablets: The Cult of the Law in French Art from David to Delacroix, Mack Crew, Calvinist Preaching and Iconoclasm in the Netherlands, Ie544-1569,
Berkeley: University of California Press, 1993. Cambridge: Cambridge University Press, 1978 (que insiste sobre a "magia" do ato e
sobre seu caráter, finalmente, pedagógico); John Phillips, The Reformation of Images:
61. Bronislaw Baczko, Lumières de l'utopie, Paris: Payot, 1978, p. 36, 51. Cf. ainda Ale-
Destruction of Art in England Ie535-1660, Berkeley: University of Califórnia Press,
xandre Cioranescu, L'Avenir du passé: Utopie et littérature, Paris: Gallimard, 1972;
1973; Ann Kibbey, The Interpretation of Material Shapes in Puritanism: A Study of
Christian Marouby, Utopie et primitivisme: Essai sur L'imaginaire anthropologique à
Rethoric, Prejudice and Violente, Cambridge: Cambridge University Press, 1986 (que
l'âge classique, Paris: Le Seuil, 1990.
evoca, nas p. 42-64, um "materialismo iconoclasta"). Prestemos atenção para não
62. Guillaume-Alexandre de Méhégan, Origine, progrès et décadence de L'idolâtrie, Paris: esquecer a relação da iconoclastia com o medo: Jean Delumeau, em La peur en Occi-
Paul-Denys Brocas, 1757, p. 18. dent, Paris: Fayard, 1978, p. 185, apresenta o vandalismo como "um rito coletivo de
63. Louis Lavicomterie de Saint-Samson, Crimes des rois de France, depuis Clovis jusqu'à exorcismo", derradeiro recurso para conjurar "a profundidade de um medo coletivo".
Louis XVI, Paris: Au Bureau des Révolutions de Paris, 1792, p. 3. Cf. ainda o caso da 65. Mona Ozouf evoca uma verdadeira "reconstituição do meio ambiente", em que "nada
historiadora Louise de Kéralio em Carla Hesse, The Other Enlightenment: How French pareceu insignificante" ("Régénération", in Dictionnaire critique, op. cit., p. 825).

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a conservar, no depósito de Petits-Augustins, as estátuas jacentes dos dúvida, mal informada, como um edifício que pode ser descartado e
séculos XIV e XV, interessantes pelo realismo de suas características destruído sem inconveniente, como um amontoado de objetos, sem
e da indumentária. Ao mesmo tempo, eles decidiram abandonar as outro valor além da matéria bruta, a Comissão dos Trabalhos Públicos,
esculturas dos séculos precedentes por não oferecerem qualquer carac- suficientemente esclarecida [...], vai apreciá-la como um dos mais belos
terística notável, "seja para as artes ou para a história".66 monumentos da Europa, que não pode deixar de ser conservado em
Essas diferentes intervenções contaram com a participação, em bom estado para a honra da nação". Por conseguinte, a municipalidade
diversos planos, do povo e de uma elite de especialistas; a operação reivindicou que, em nome do patrimônio, as despesas de manutenção
foi tanto oficial e regular (nesse caso, organizada por gestores públicos fossem assumidas pelo governo: "Como a supracitada catedral é um
ou multidões convidadas) quanto espontânea, até mesmo anárquica. monumento público que, por ser obra-prima de arquitetura, pode ser
A ação pôde também desenrolar-se alhures: nesse caso, a eliminação do considerado como pertencente à França inteira e não ao departamento
objeto foi diferida, seja com o objetivo de cumprir uma tarefa delicada, de Somme, nem à cidade de Amiens, tampouco a uma seção dessa
uma reutilização técnica (retomada do Hôtel de la Monnaie), seja para comuna; além disso, é palpável que os cidadãos, em reduzido número,
integrar sua destruição a uma festa ulterior, em um lugar mais propício. que se reúnem nesse local para o culto, nunca terão condições de
Enquanto o motim, a favor da conservação ou da destruição, se desen- conservar, em bom estado, esse imenso prédio; sobretudo depois de ter
cadeava sempre diante do monumento in situ e assumia um caráter sido menosprezado, como foi o caso após a Revolução, é evidente que a
global, a iconoclastia parcial associada à conservação assemelhava-se administração terá toda a razão em continuar reivindicando os recursos
à "limpeza" dos monumentos, efetuada no próprio local (rasurar as do governo para as reformas."
inscrições) ou intervenções limitadas, realizadas por profissionais, após O reconhecimento do valor artístico podia ser acompanhado ou não
transferência para o "centro de triagem" ou para o ateliê (apagar os por mutilações, assim como sua reutilização podia operar-se no próprio
brasões estampados nos livros, etc.). Aliás, a remoção — por exemplo, local ou exigir uma transferência. A conservação do monumento podia
de objetos de culto — fazia-se às vezes de forma discreta, até mesmo servir-se da dissimulação de toda espécie de recursos (estátua por trás
secreta, para evitar os roubos ou os protestos populares. Assim, os de uma paliçada, quadro virado para a parede, símbolos escamoteados,
atores e o caráter do ato iconoclasta eram, evidentemente, diferentes etc.). Tal conservação era, em geral, efêmera: a pretensão em garantir
de acordo com as circunstâncias — na praça pública, na discrição de a subsistência do objeto levava, logicamente, a depositá-lo em um
um gabinete ou de uma biblioteca — de sua realização. Seu alcance, museu. Podia tratar-se então de coleções acessíveis ao público em
porém, permaneceu idêntico, ou seja, uma nova ponderação do va- geral, ou de acervos de obras úteis, mas repreensíveis, destinadas aos
lor do passado para o presente, em nome de um saber autêntico dos artistas e cientistas. A transferência para o museu impunha-se, par-
princípios e da ciência. ticularmente no caso de alguns monumentos, cuja permanência na
Ocorre que a aplicação de semelhante "doutrina" assumiu um cará- praça pública havia sido rejeitada. O decreto de 3 de brumaire do ano
ter bastante pragmático, como é ilustrado pelo exemplo da catedral de II (24 de outubro de 1793), promulgado na sequência do Relatório de
Amiens: enquanto "ela é considerada pela Comissão das Armas, sem Romme, indicava no artigo 2º que "os monumentos públicos remo-
víveis, que suscitam o interesse das artes e da história, portadores de
66. Em relação à abadia de Saint-Denis, cf. a síntese de Pamela Z. Blum, Early Gothic algum dos sinais proscritos, cujo desaparecimento causaria um prejuízo
Saint-Denis: Restorations and Survivals, Berkeley: University of Califórnia, 1992; além
de Roger Bourderon (org.), Saint-Denis ou le Jugement dernier des Rois, Saint-Denis: real, serão transportados para o museu mais próximo, no qual deverão
PSD, 1993 (Atas do Colóquio). ser conservados para a instrução nacional". Daí, a ideia, proposta por

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Alexandre Lenoir, de um " Museum inacessível ao público no qual são Nas imagens herdadas do passado, esse desígnio de regeneração
reunidos os objetos que, por seu caráter e nas circunstâncias atuais, operava uma dissociação fundamental entre o trabalho despendido,
não podem ser expostos, mas estarão disponíveis aos artistas para seu o savoir-faire desenvolvido pelo artista e o sentido exigido por seus
progresso". A proibição de obras nocivas foi, explicitamente, conce- patrões. O efeito direto de semelhante distinção acarretou uma reifi-
bida como provisória: com a consolidação da República, as imagens cação do legado que se traduziu pelo primado atribuído ao trabalho,
"feudais" perderão seus poderes e poderão ser mostradas sem risco. até mesmo a seu estatuto de prova para a ciência social. Desse modo,
enviados pela Comissão dos Monumentos nos primeiros dias de
setembro de 1793, Cossard e Mulot sublinharam o interesse de con-
O combate pela autenticidade servar o medalhão de Luís XIV na prefeitura de Troyes: certamente,
foi necessário "removê-lo da vista dos republicanos que, por seu ódio
A iconoclastia identificava-se com uma hábil restauração; ela remo- contra o despotismo, não teriam suportado observá-lo durante muito
via das obras as marcas contingentes da história para enfatizar o valor tempo"; mas "tais ornamentos, elaborados pelo cinzel de Girardon,
atual, autêntico, mas outrora ignorado, desconhecido, negado ou mani- exigem serem conservados por respeito à arte, por reconhecimento
pulado de maneira mal-intencionada. Essa retórica da restauração tinha de seu autor e pelo interesse na formação dos alunos". Entre uma
como complemento lógico, a propósito das remoções das obras-primas infinidade de textos similares, o depoimento do membro a Conven-
estrangeiras, a da repatriação. A vinda de "Roma a Paris" manifestava ção, Lequinio, em 7 de setembro de 1793, sobre os túmulos dos reis
uma verdadeira substituição de um passado transitório pelo presente na abadia de Saint-Denis resumia esse expediente instrumentalista:
eterno. O melhor testemunho foi deixado neste discurso de François de "Não convém, de modo algum, que esses monumentos sejam objetos
Neufchâteau: "Os homens ilustres trabalharam não para os reis, nem de idolatria para o povo; mas eles devem existir para alimentar a ad-
para os pontífices, tampouco para seus equívocos. Pode-se dizer que miração dos amigos das artes, assim como a emulação e o gênio dos
o gênio é o ouro da divindade; nada de impuro chega a conspurcá-lo. artistas." O valor patrimonial do objeto remetia, em primeiro lugar,
Esses homens ilustres, durante séculos de servidão, cederam à necessi- ao elogio do trabalho que o havia produzido; em seguida, tal valor
dade da criação. Eles elaboraram suas obras não tanto para sua época, participava da permanência da lembrança artesanal e artística, além
mas para obedecer ao instinto da glória e, se é que se pode falar assim, do culto da memória dos homens ilustres; por último, ele sugeria um
à consciência do futuro. Sem dúvida, eles adivinhavam os destinos dos mundo subjacente da arte, submetido tanto a critérios constantes (os
povos; e seus quadros sublimes constituíram o testamento pelo qual da natureza humana), quanto às "revoluções" da história. Portanto,
eles legaram ao gênio da liberdade o cuidado de oferecer-lhes a verda- diferentes estratégias poderão manifestar-se no interior do mesmo
deira apoteose e a honra de discernir-lhes a verdadeira palma de que quadro conceitual, mais ou menos propensas a reconhecer a obra como
eles se sentiam dignos."67 Nesse aspecto, tratava-se de uma restituição presente e, nesse caso, a confirmar seu estatuto ou, pelo contrário, a
do valor; de fato, as obras desempenhavam o papel de alegorias revo- compartilhá-la entre parcela eterna e parcela caduca — o que obriga a
lucionárias ao tomarem o lugar das ilusões, daí em diante destruídas, um cuidado especial na sua apresentação. Nos museus, além de forne-
que elas estavam incumbidas, inicialmente, de fazer perdurar. cerem modelos aos artistas, as obras-primas serviam de instrução sobre
o que é justo e injusto nas sociedades, assim como formavam, em cada
67. Sobre o contexto, cf. Martin Rosenberg, "Raphael's Transfiguration and Napoleon's cidadão, o legislador das artes. Apresentado em 1808 por Joachim Le
cultural politics", in Eighteenth-Century Studies, vol. 19, 1986, p. 180-205. Breton, em nome do Institut de France, o Rapport historique sur l'état

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et les progrès des beaux-arts en France afirmava que "a história das belas- ele esperava assistir ao renascimento da arte grega: mas como conciliar
artes de uma nação é, de alguma forma, a história de seu governo e de uma visão messiânica da liberdade com um organicismo?69 Daí, um
seus costumes", reivindicando uma leitura política e social das obras. debate capital entre aqueles que consideram os dois postulados como
Mas, enquanto os revolucionários julgavam ter substituído a ilusão incompatíveis e aqueles que propõem (sem grande sucesso) sua conci-
pela verdade — a imagem, daí em diante, considerada como o que ela liação. Concretamente, a Revolução Francesa fornecia a seus admirado-
representava para o ídolo, o qual, anteriormente, encarnava o erro ao res a expectativa de igualar os gregos, para não dizer de superá-los, em
ocultar sua própria natureza —, a contrarrevolução lia, simetricamente, nome de um democratismo estético, baseado no efeito das instituições:
uma alteração absurda ou falsa da herança. Para além de um equívoco a força das leis regeneradoras, segundo o que se julgava, não podia ser
primordial — o museu alimentava-se com as ruínas do mundo —, a sobreavaliada. Entre os revolucionários, as obras patrimonializadas
tese contrarrevolucionária denunciava a carência de gosto e a igno- eram outras tantas figuras dos princípios eternos: elas remetiam não
rância: eis o que A. Rivarol transformou em motivo recorrente do tanto a um passado específico, mas à atualidade de uma promessa.
discurso da reação. Ao exigir que o Diretório (período da Revolução Inversamente, para seus adversários, a impossibilidade de um retorno à
Francesa entre outubro de 1795 e setembro de 1799) suspendesse a perfeição antiga tornara-se, no plano político, um artigo de fé. As causas
pilhagem dos monumentos romanos, a petição dos artistas afirmava físicas do milagre grego eram, naturalmente, enfatizadas; por sua vez, no
recear somente que "tal entusiasmo que nos deixa apaixonados pelas campo oposto, a valorização incidia sobre as causas morais."
produções do gênio não venha a desencaminhar até mesmo os amigos As representações antagonistas do Museum universal são, nesse
mais ardorosos em relação aos verdadeiros interesses". Entretanto, a aspecto, exemplares. Enquanto ele era identificado por Quatremère
obra de Quatremère de Quincy, Lettres à Miranda — que havia inspi- com Roma, Mathieu imaginava-o confundido, no futuro, com a
rado a petição —, criticava abertamente uma "tola afeição pelas artes" República, a partir da transformação utópica: "Ao considerar tudo
e uma "sabença" de "supostos eruditos": "Nada é tão perigoso quanto o que a Natureza e a arte fizeram e podem fazer na França, a Repú-
71
um amigo ignorante." A idolatria condenada, aqui, remetia a um pro- blica inteira será um imenso e esplêndido Museum." O museu do
letariado de semicultos e a intelectuais mambembes ("Outras tantas futuro dava testemunho, aqui, de um ideal ainda a realizar — o de
crianças que se disputam imagens"); ela evocava também a figura de uma humanidade superior —, enquanto Roma-museu encarnava, em
um desenraizamento que se referia a operações comerciais, quando "as Quatremère, a república das artes e das letras, espaço homogêneo da
obras tornam-se outros tantos 'fardos de mercadorias' a transportar". inteligência europeia, hoje destruído. Em um caso (Mathieu), bastava
O aspecto mais pernicioso dessa idolatria do gênio, identificado por que a vontade geral mantivesse tal expectativa; no outro (Quatremère
Quatremère com o espírito revolucionário, tinha a ver com o ativismo ou, ainda, Carlo Fea), um conjunto de circunstâncias, de condições
artístico que ela alimentava: sabe-se como o horror da ação era uma pedra
de toque inabalável da posição contrarrevolucionária." Winckelmann
havia insistido sobre o fato de que a melhor qualidade da escultura grega 69. Sobre o debate ulterior, cf. Brian Vick, "Greek Origins and Organic Metaphors: Ideais
of Cultural Autonomy in Neohumanist Germany from Winckelmann to Curtius",
correspondia a um período bem determinado, ou seja, o produto de in Journal of the History of Ideas, vol. 63, n. 3, 2002, p. 483-500.
circunstâncias ao mesmo tempo geográficas, políticas e religiosas que philos que é desenvolvido, em particular, por Pierre Chaussard, em seu &sai
70. O tema
não podiam voltar a manifestar-se. Simultaneamente, segundo parece, sur la dignité des arts, Paris: Impremerie des Sciences et des Arts, ano VI; assim
como pelo tradutor de Winckelmann, Hendrick Jansen (1742-1812), em seu Projet
tendam' à conserver les arts en France..., Paris, 1791.
68. Cf. Stéphane Riais, Révolution et contre-révolution au XI» siècle, Paris: Albatros, 1987. 71. Mathieu, presidente do Comitê das Artes, fevereiro de 1794.

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geográficas, históricas, políticas — em que tinha sido preponderante dar à posteridade uma ideia apropriada das maravilhas do século XVII?"
o papel desempenhado pela memória, pelos costumes e pela rotina - A esta crítica contra um fetichismo museográfico, acrescentava-se a
haviam reunido, sob o céu romano, o essencial do Belo.72 A demons- crítica conta a desnaturalização de monumentos "democratizados",
tração resumia-se à negação da eficácia, por si só, dos modelos formais que lhes forneceu, "sucessivamente, o caráter de diferentes facções que
que a educação de museu propunha de acordo com esta fórmula da VIe dominavam a opinião pública"." Desse modo, Deseine denunciava
Lettre à Miranda: "O infortúnio é que a virtude associada ao conjunto uma idolatria inédita em que a obra transportada era avaliada, daí em
de uma escola não se comunica, como é o caso de uma relíquia, a cada diante, como imagem do novo regime e não como legado da história;
uma de suas partes isoladamente." de maneira notável, ele enfatizava sobretudo a necessidade de despoli-
A reflexão histórica revolucionária culminava na construção pri- tizar a definição dos monumentos para fazer aparecer, precisamente, a
mordial do passado nacional como inimigo, sob as características do noção de patrimônio nacional. Enquanto a nação estiver identificada
Antigo Regime: nada, ou muito pouco dessa época parecia utilizável com a Revolução, em uma completa absorção, será impossível apa-
para a regeneração já empreendida, enquanto uma política da memória recer sua verdadeira caracterização cultural Com a campanha contra
visava manter a lembrança renovada de uma época inédita em todas o vandalismo do abbé Grégoire e dos Thermidoriens , com a despoli-
as suas encarnações e que deve ser perpetuamente renovada ou sobre- tização dos museus, a herança do passado pôde ser nacionalizada e
carregada de exemplaridade, sob pena de conhecer o estiolamento e o estetizada (François Guizot reconhecerá o mérito de Lenoir por ter
declínio. Nesse caso, as obras herdadas do passado eram submetidas ao sido o primeiro a considerar os monumentos franceses do ponto de
imperativo de manifestar a atualidade; daí em diante, debilitadas em vista da arte, e não mais somente como outras tantas antiguidades para
seus desígnios, elas davam testemunho do talento — outrora oprimido eruditos). Desde então, a nação pôde apropriar-se do passado como
— de seus criadores. Quatremère de Quincy defendia, inversamente, recurso e não mais como ameaça, além de pensar seu futuro em termos
a ineficácia das obras-primas do passado desde que fossem privadas de definição progressiva de uma identidade; assim, as peripécias do
de seus destinos e separadas de suas lembranças. Tais representações decênio legavam um fecundo repertório de conflitos aos séculos XIX
opostas do "patrimônio" — idolatria do passado ou, ao contrário, e XX. Entre herança revolucionária e mania nascente por estátuas,
alegoria contemporânea — não devem dissimular, porém, uma cliva- David d'Angers escreveu em uma carta de 1847: "É necessário que
gem mais profunda, que interferia na própria possibilidade de pensar [...] a França se torne um vasto panteão."74 Mas, a orientação geral
um patrimônio de um ponto de vista "cultural" e não de um modo está bem definida: a ênfase será colocada, daí em diante, no fato de
exclusivamente político. que, tendo sido patrimonializado, o passado da cultura representava
Em seu livro Opinion sur les musées, o escultor L.-P. Deseine criti-
cava o museu de Lenoir por configurar a vertente da hybris denunciada
73. Louis-Pierre Deseine, Opinion sur les mùsées, où se troùvent retenus tous les objets
por Quatremère, na transferência de "Roma". 'Alguém poderá ques- d'art qui sont la propriété des temples consacrés à la religion catholiqùe, Paris, 1801.
tionar-se", escreve ele, "como a demência chegou ao ponto de imaginar Louis-Pierre Deseine (1749-1822), escultor francês que participava, regularmente,
dos Salons, expondo os bustos de artistas ou de personalidades da época. Em 1780,
que um recinto com algumas polegadas, no qual existem oito túmulos, obteve o Prêmio de Roma de escultura. [N.T.]
algumas estátuas de diferentes épocas e alguns baixos-relevos, bastará para 74. ApùdViviane Huchard (org.), Aux Grands Hommes, David d'Angers, Fondation Cou-
bertin, 1990, p. 52 (Catálogo da exposição). [Pierre Jean David, chamado "David
d'Angers" (1788-1856)), escultor e estatuário francês. Entre a produção de grande
72. Pascal Griener, "Carlo Fea and the Defense of the Museum of Rome, 1783-1815", número de obras de diversos gêneros — monumentos, túmulos, bustos, medalhões,
in Georg-Bloch Jahrbuch, n. 7, 2000, p. 96-110. baixos-relevos —, destaca-se o célebre frontão do Panthéon, em Paris. (N.T.)]

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

de maneira ideal, segundo a fórmula de Étienne François, "os três 3


valores fundamentais, ou seja, a identidade (a nação é pensada e
apresentada como uma pessoa), a continuidade (no decorrer de toda A MEMÓRIA INSPIRADORA
a sua história, a nação permanece a mesma; além disso, os diferentes
momentos de seu passado só adquirem sentido ao serem relacionados Não existe homem iletrado, ignorante, innem dfert espírito
, insensível, qùe possa evitar ùma emoção de respeito
uns com os outros) e a unidade (a única garantia da existência da
— eu diria quase de terror — ao entrar nas salas de nosso
nação é a unidade de todos os seus membros)".75 O mesmo ocorreu museu de história natural [...]Façmosvtdeqù[.1,
relativamente aos seguintes aspectos: invenção dos antepassados fun- ao lado dos naturalistas ilustres, sejam colocadas as imagens
dos navegantes corajosos e dos viajantes perseverantes; todos
dadores; construção de uma história amplamente compartilhada e que eles, pelas pesqùisas empreendidas e pelos perigos enfrentados,
havia passado ao estado, por assim dizer, de conhecimento difuso no arriscando incessantemente suas vidas, trouxeram-nos estes
corpo social; afirmação de uma língua e de uma literatura comuns; tesouros. Apesar de serem valiosos em si mesmos, seu valor
é, talvez, ainda maior pelo heroísmo e destemor de quem os
e, por último, progressiva sensibilização em relação a uma paisagem obteve para nós. [...]Esaédùplgrneztu.
concebida como uma representação do território nacional [pays].76 Alguns heróis enviaram esses objetos qùe firam coletados,
classificados, harmonizados por homens importantes, para
qùem tùdo afluía como se tratasse de um centro legítimo;
além disso, tanto por sua posição como por seù gênio, eles cria-
ram as condições de operar, aqui, a centralização da natùre-
za. [ De modo que essas coleções, sùpostamente mortas,
estão vivas; animadas pelos ilustres espíritos qùe convocaram
todos esses seres como testemunhas de seu combate fecùndo,
elas guardam ainda a palpitação dessa luta.
Jules Michelet, L'Oiseaù, 1856.

A Revolução Francesa — escreveu, alhures, o mesmo Michelet -


abriu "dois imensos museus", na sequência da festa de 10 de agosto
de 1793, que legaram "uma impressão indelével" a seus visitantes':
um deles é o Louvre, "museu das nações", que reunia todas as escolas
artísticas nacionais e que, após disputas complexas com o programa
de um museu da École Française, em Versalhes, irá expor as melhores
obras dessa escola; observava-se nesse espaço, em uma perspectiva uni-
2
versal, cada povo "representado por sua arte e por imortais pinturas".
Entretanto, ele permanecia como que privado desse caráter intimamente
75. Étienne François, "Les Mythologies historiques des nations européennes", in Pùblics et
projets culturels: Un Enjeu des musées en Europe, Paris: L'Harmattan, 2000, p. 126-137.
nacional que, pelo contrário, caracterizou desde o início o espaço dos
76. Em uma imensa bibliografia, cf. Denis E. Cosgrove e Stephen Daniels (orgs.), The
Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation, Design and Use of
Past Environments, Cambridge: Cambridge University Press, 1988; Simon Schama, 1. J. Michelet, Histoire de la Révolùtion Française, II, livro XII, cap. VII. Paris: R. I affont,
Le Paysage et la mémoire, Paris: Le Seuil, 1999; François Walter, Les Figures paysagères 1979, p. 548-549.
de la nation: Paysage et territoire en Eùrope (XVIe-XXe siècle), Paris: EHESS, 2004. 2. Ibidem, p. 549.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA

Petits-Augustins, museu de monumentos — ou seja, de túmulos e até


mesmo, mais precisamente, como veremos, de corpos históricos. Neste
livro, vamos defender que os "monumentos" conservados pela França O culto dos homens ilustres
regenerada ilustram uma dimensão fundamental, ou seja, aquela que
o antropólogo Ernesto De Martino define como "o poder formal de Sob o Antigo Regime, a memória dos defuntos tinha a ver com um
transformar em valor o que, na natureza, nos conduz para a morte.3 conjunto de representações, ao mesmo tempo, religiosas e sociais. De acordo
Ao separar-se da França do Antigo Regime, a Revolução tornava pos- com a proposta de Reinhart Koselleck, elas foram identificadas com duas
sível uma apreensão sem precedentes do passado nacional; o que, porém, características principais: "Por um lado, o além da morte é plasticamente
não se efetuou de maneira evidente ou imediata. Como foi demonstrado representado; por outro, a morte é, em sua relação com o mundo, diferen-
por Lionel Gossman, somente o romantismo político e religioso da década ciada segundo cada ordem e cada estado. [ Verifica-se uma interferência
1830-1840 conduziu o labor dos antiquários, por exemplo, o de Lacurne recíproca entre a transcendência cristã da morte e a diferenciação, segundo
de Saint-Palaye, à narrativa nacional. Segundo parece — pelo menos a ordem, da morte empírica."
retrospectivamente —, tal desfecho correspondia a uma evolução lógica. Na sequência, o culto dos homens ilustres constituiu um ele-
O espanto manifestado pela geração da primeira metade do século XIX mento essencial da representação da sociedade das Luzes que, por seu
6
diante da indiferença de seus pais pela história nacional dava testemunho intermédio, "não cessa de narrar a si mesma seu próprio advento".
de uma sensibilidade inédita; aliás, ela constituiu uma das figuras da rup- Em particular, "por volta de 1760 e até a Revolução, a apologia do
tura moderna. Com efeito, entretempo, foi necessário apropriar-se dos letrado transformou-se uma verdadeira glorificação, associada em um
corpos desaparecidos: passar dos monumentos inacabados do século XVIII tom grandioso a uma doutrina geral de emancipação e de progresso".
e das ruínas fictícias para verdadeiros túmulos densos, por assim dizer, de Tal desígnio de forjar um corpus de homens importantes inscrevia-se
diversas presenças, tais como eles foram reconhecidos pelo século XIX. em uma transferência notória da sacralidade. Stendhal tornou-se sua
Assim, Michelet faz uma leitura retrospectiva, em forma de estética da testemunha militante quando evoca, em seu avô, "uma veneração e
nação, do museu de Alexandre Lenoir, e seu encantamento data de 1846. afeição pelos homens ilustres que haviam provocado um grande choque
"Na juventude de Michelet, não havia discurso apropriado para exprimir ao rev. pároco" e compreendiam "todos os homens ilustres da França,
7
uma relação viva e afetiva com as imagens do passado", o que será o caso, desde Clément Marot a Voltaire, Diderot e D'Alembert".
em seguida, com a geração do historiador e político barão de Barante e A anglomania mobilizou, na época, a imagem de Westminster
de Walter Scott — cuja epístola na dedicatória do romance Ivanhoé, em como monumento da nação, desde Voltaire em seu livro Lettres phi-
1819, propunha pela primeira vez a metáfora da ressurreição.' Essa era losophiques (1734), mesmo que alguns tivessem denunciado a incon-
uma leitura fantasmática do museu: a dos corpos do passado a ressuscitar. 5 gruência de uma comercialização do espaço para a grande satisfação

3. Ernesto De Martino, Morte e planto rituale nel mondo antico: Dal lamento pagano al corpos passados, é que Michelet conseguiu transformar a História em uma imensa
planto di Maria (Turim: Bollari Boringhieri, 3. ed., 2000), apud Roberto Harrison, antropologia" (Roland Barthes, La leçon, Paris: Le Seuil, 1978).
Les Morts, Paris: Le Pommier, 2003, p. 107.
6. Jean-Claude Bonnet, Naissance du Panthéon: Estai sur le culte des grands hommes,
4. Stephen Bann, "The Road to Roscommon", in Oxford Art Journal, vol. 17, n. 1, Paris: Fayard, 1998, completado por Michael Garval, "A Dream of Stone: Fame,
1994, p. 98-102. Vision and the Monument in Nineteenth-Century French Literary Culture", in
5. "A História é, afinal de contas, a história do lugar fantasmático por excelência, a saber, College Literatùre, vol. 30, 2003, p. 82-119.
o corpo humano; ao partir desse fantasma, associado nele à ressurreição lírica dos
7. Stendhal, Vie de Henry Brulard, Paris: Gallimard, p. 170.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA

de diversos novos-ricos que, no local, mandaram erigir extravagantes suscitam nossa admiração. [...] Gostamos de visitar suas moradias."
monumentos.8 Mas, para além dessas relações complexas entre riqueza Portanto, na França do século XVIII, o culto pelos homens ilustres
privada e devoção pública que marcaram amplamente o novo classi- implicava uma peregrinação a seus túmulos ou lugares de criação,
cismo fim de siècle, foi sem dúvida a literatura utópica — orientada reativando rituais reservados até então à categoria do sagrado. Em pri-
pelos ideais da razão e da moralidade, além de sua preocupação em pôr meiro lugar, aparece a visita ao escritor famoso' que, no século XIX,
termo à desordem de instituições ridículas ou funestas — que forneceu irá conhecer certo número de avatares até configurar uma espécie de
as imagens mais impressionantes do Panthéon. As origens da sociedade corpo a corpo que a simples leitura não permite alcançar, ou apenas
descrita por essa literatura são unicamente aquelas que o legislador lhe de maneira insuficiente. 10
atribui; ora, em seu funcionamento, elas desempenham um papel não A sanção da opinião pública tornava-se, assim, necessária para o
menos essencial que o da tradição para o regime absoluto. sucesso de uma homenagem, mesmo que fosse pronunciada em nome
A mais célebre dessas elaborações continua sendo a obra Paris en da república das letras; aliás, desde 1765, Marc Antoine Laugier -
l'an 2440, de Louis-Sébastien Mercier, em que o testamento tornou- no capítulo "Monumentos em homenagem aos homens ilustres" de
se o órgão exclusivo da memória coletiva; os cidadãos reconhecidos seu livro Observations sur l'architecture — recomendava que se fizesse
por seus méritos são os únicos a serem celebrados, em nome de uma apelo ao "voto do público" para selecionar os respectivos beneficiários.
mentalidade histórica discriminatória" (Bronislaw Baczko). "Esse Na tensão entre essa reverência devotada a personagens específicos
espaço" — observa o historiador —, "além dos monumentos e templos, e a homenagem geral prestada ao engenho humano é que se esboçou,
é mobiliado por uma verdadeira arquitetura ficcional": em particular, aos poucos, a figura do Pantheon francês. No início do reinado de Luís
por galerias dos estadistas ilustres, por uma verdadeira "fila de heróis, XVI, a França conheceu, na pessoa do conde d'Angiviller (1730-1809),
cujo semblante, silencioso sem deixar de ser imponente, proclama a nomeado diretor das Obras Públicas, uma nova política da posteridade:
todos que é útil e grandioso angariar a estima do público". As estátuas um de seus símbolos foi, em 1775, a nomeação de Thomas, autor de
de Voltaire, Rousseau e Buffon formam "um livro de moral" e todos célebres Éloges, para o posto de historiógrafo dessa repartição pública."
conjuntamente dão "uma lição pública tão vigorosa quanto eloquente". E, acima de tudo, o diretor anunciou, em dezembro de 1774 e em
O respeito pelo gênio levou, também, a homenagear os espaços
ocupados por ele. De acordo com a observação de Jean-Claude Bonnet, 9. Olivier Nora, "La Visite au grand écrivain", in Pierre Nora (org.), Les Deux de
mémoire, II: La Nation, vol. 3. Paris: Gallimard, 1986, p. 563-587.
a melhor descrição dessa nova moda deve-se a Diderot em Essai sur
10. Desse ponto de vista, Marc Augé descreve a visita aos castelos em termos reveladores:
les règnes de Claude et de Néron (1778): "Uma espécie de reconheci- "A percepção da casa como corpo efetua-se em dois planos: a casa é um corpo em
mento delicado acrescenta-se a uma curiosidade digna de elogios para si, tem sua própria personalidade, sua aparência, suas aberturas, sua intimidade, e
por ser um corpo é que ela pode ser assimilada ao corpo daquele ou daquela que o
despertar nosso interesse pela história privada dos autores, cujas obras ocupa, do ponto de vista seja do próprio ocupante, seja de uma testemunha exterior
que, impelida pela energia romanesca do ódio, amor ou lembrança, será levada a
8. Cf., nas perspectivas entrecruzadas aqui, os trabalhos bastante diferenciados em sua confundir uma pessoa ainda viva ou falecida com o invólucro de pedra em que se
inspiração de Philip Connell, "Death and the Author: Westminster Abbey and the Me- dissimula seu corpo ou sua sombra." (Domaines et châteaux, Paris: Hachette, 1992.)
anings of the Literary Monument", in Eighteenth-Centùry Studies, vol. 38, n. 4, 2005, 11. Sobre o contexto do sucesso considerável obtido por Éloges de Thomas no âmago do
p. 557-585; Matthew Craske, "Westminster Abbey 1720-1770: A Public Pantheon espaço acadêmico e do campo literário, cf. Georges Armstrong Kelly, "The History
Built upon Private Interest", in Richard Wrigley e Mattew Craske (orgs.), Pantheons: of the New Hero: Eulogy and Its Sources in Eighteenth-Century France", in The
Transformations of a Monumental Idea, Aldershot: Ashgate, 2004, p. 57-80; além de Eighteenth Centùry, vol. 21, 1980, p. 3-24; Volker Schröder, "Entre l'Oraison funèbre
David Bindman e Malcolm Baker, Roubiliac and the Eighteenth-Century Monument: et l'éloge historique: L'Hommage aux morts à l'Académie Française", in MLN, vol.
Sculpture as Theatre, New Haven: Yale University Press, 1995, cap. 2. 116, 2001, p. 666-688.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA

janeiro de 1775, a encomenda anual de "quadros de história e de es- A funcionalização dos mortos
15
tátuas, cujo tema será a figura dos homens ilustres da França". 12
Tal iniciativa ia alimentar o projeto de museu no Louvre, já evo- No início do século XIX, aparece o que Reinhart Koselleck designa
cado favoravelmente pela Encyclopédie, e que os dirigentes das Obras como "a funcionalização da representação da morte em benefício dos
Públicas pretendiam levar a bom termo, dedicando-o "à glória tanto sobreviventes". A venda dos bens da primeira ordem, no período inicial
dos Reis da França como dos Homens Ilustres da Nação". De forma da Revolução, parece ter proporcionado a oportunidade de uma política
mais geral, uma série de projetos arquiteturais acalentava a ideia de da memória, finalmente, moral e lógica. As intervenções sobre os restos
um campo santo em que houvesse uma mistura do culto pelos homens
mortais dos homens ilustres a fim de prestar-lhes uma homenagem
ilustres com a religião dinástica na mesma exaltação da moral pública.13 solene manifestam claramente que a Revolução entende como fundar,
Ao estudar os projetos da década de 1780, John Mac Manners de novo, o passado em seus próprios monumentos. Alguns mausoléus
evoca um "idílio, mediante o pagamento de somas consideráveis, de desapareceram com as cinzas que eles continham, enquanto outros
túmulos pitorescos no meio de árvores e de canteiros de flores, or- subsistiram na qualidade de monumentos históricos, e, finalmente,
nado de templos, colunatas e estátuas", assim como "uma espécie de outros acabaram por ser erguidos no lugar dos modestos túmulos ou-
Panthéon nacional", construído em decorrência de um "vandalismo trora dedicados ao gênio, às vezes longe do local da sepultura original.
patriótico" por antecipação. Aliás, frequentemente, a posição dos tú- A criação do Panthéon resultou do discurso do marquês de Vilette
mulos era ordenada segundo as famílias, assim como de acordo com ao clube dos jacobinos, em 10 de novembro de 1790: "De acordo com
o dever: os dois sistemas da raça e do mérito coabitavam no cerne de os decretos da Assembleia Nacional, a abadia de Sellières foi vendida e,
um patriotismo esclarecido. 4' nesse local, jaz o corpo de Voltaire; ora, ele pertence à Nação. Os senhores
consentirão que essa preciosa relíquia se torne a propriedade de um parti-
cular? Permitirão que ela seja vendida como bem nacional ou eclesiástico?
Se os ingleses chegaram a reunir seus homens ilustres em Westminster, por
que hesitaríamos em colocar a urna de Voltaire no mais belo de nossos
templos, na nova Sainte-Geneviève, em face do mausoléu de Descartes?
12. Andrew McClellan, "La Série des grands hommes de la France du comte d'Angiviller 1
6conAta." Desse modo, estou decidido a erguer-lhe um monumento por minha
[...]
et la politique des parlements", in Clodion et la sculpture française de la fin du
XVIII
siècle: Actes du colloque du musée du Louvre, 20-21 mar. 1992, Paris, 1993. invenção de relevantes exemplos apropriados para suscitar
13. Sobre o tema da arte que serve de ilustração para a virtude, c£ a tese sempre válida de
Jean Locquin, La Peinture d'histoire en France de Ie747 à 1785 (Paris,
1978.
1912), Arthena, 15. Adoto, nesse ponto, a posição de Mark K. Deming no catálogo da exposição dirigida
por Barry Bergdoll, Le Panthéon, symbole des révolùtions, Paris: CNMHS, Hôtel de
14. Cf. John Mac Manners, Death and Enlightenment Changing Attitudes Sully; e em "Le Panthéon révolutionnaire", Montreal: CCA/Picard, 1989, p. 97-150.
to Death among
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University Essa representação é, evidentemente, a herdeira de uma longa tradição; aliás, uma
Press, 1981. A publicação Nouvelles de la République des Lettres et des Arts de suas etapas notórias é a publicação de Titon du Tillet, Description du Rimasse
de 3 de
janeiro de 1787 observava que esse cemitério reúne, "em torno de nossos soberanos, françois exécuté en bronze à la gloire de la France et de Louis le Grande et à la mémoire
esse
até mesmo depois de seu óbito, aqueles que mantêm com eles vínculos de sangue, perpétuelle des illustres poètes et das fameux musiciens françois , Paris, 1760. Sobre
reconhecimento, amor, patriotismo, virtudes, ciências e talentos, a fim de que os projeto de 1708, cf. J. Colton, The Parnasse (rançaïs: Titon du Tillet and the Orïgins
sujeitos, cujos serviços ou conhecimentos haviam alicerçado a glória de nossos reis, of the Monùment to Genius, New Haven: Yale University Press, 1979.
sirvam ainda à sua imortalidade pela homenagem contínua e coletiva que lhes seria Paris: PUF, 1982;
16. Cf. Marie-Louise Biver, Le Panthéon à l'époque révolùtionnaire,
prestada pela posteridade nesses amplos monumentos" (apud Richard Etlin, Les Fites révolutionnaires à Paris, Paris: PUF, 1979, p. 37-38, que fornece
The assim como
Cemetery and the City: Paris, Ie744-1804, Ph.D. Princeton University, 1978).
uma coletânea de textos sobre as sucessivas panteonizações.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA

a emulação foi, particularmente, evidente no decorrer da Revolução"; filho para corrigir seus vícios; aí é que o aspecto desses bustos servirá de
além disso, a literatura contrarrevolucionária não se equivocou a esse veículo para a emulação e para o amor da Pátria; aí, finalmente, é que o
respeito, transformando o tema dos "homens ilustres" em material que viajante virá avaliar a glória da República e a felicidade do povo".21 Nessa
desencadeou uma profusão de sarcasmos. No livro Petit Almanach de nos perspectiva, o Panthéon transformou-se, de acordo com a expressão
grands hommes (1788), Rivarol descreveu o retrato coletivo das medio- forjada por Mona Ozouf, na "escola normal dos mortos".22
cridades literárias antes de esboçar sob a Revolução, durante seu exílio Entretanto, o advento dessa morte patriótica dependia da cons-
na Holanda, um contrarretrato do filósofo ( De la Philosophie moderne).18 trução de valores adequados, o que não aconteceu sem vicissitudes.
Do mesmo modo, as antiutopias floresceram no discurso dos anti-Luzes, As sucessivas transferências dos restos mortais do marechal da França
exacerbado no decorrer do primeiro ano da Revolução.19 Aliás, a questão Henri de La Tour d'Auvergne, visconde de Turenne (1611-1675),
da legitimidade de um Panthéon para garantir a imortalidade literária caracterizaram, nesse sentido, um percurso exemplar": a "múmia" des-
foi formulada no próprio campo revolucionário: Louis-Sébastien Mercier secada, removida da urna da abadia de Saint-Denis, foi mostrada, em
havia assumido uma postura semelhante a propósito de Descartes. primeiro lugar, aos amadores (durante uns oito meses), mediante uma
De qualquer modo, entre os revolucionários, subsistia uma contra- gorjeta ao guardião; em seguida, ela foi transportada para o Museu de
dição fundamental — como é sublinhado por Michel Vovelle — entre História Natural e "colocada entre o esqueleto de um rinoceronte e o
duas mortes, objeto da atenção dos doutos por ocasião do concurso de um elefante". Em 15 de thermidor do ano IV (2 de agosto de 1796),
promovido pelo Institut, em 1800, sobre os funerais: entre "a morte os Cinq-Cents24 deram-se conta de que os restos mortais de Turenne
ameaçadora, repugnante, perigosa, cuja gestão é assumida por eles, e haviam sido deslocados para esse local e o Diretório ordenou que eles
a outra morte, abstrata, útil, recuperável, a serviço da vida"." Desta fossem depositados no Museu dos Monumentos Franceses. Depois de
última, Arsenne Thiébaut esboçou as vantagens ao evocar em seu livro terem sido conservadas como curiosidade da física — por seu material
Réflexions sur les pompes funèbres, publicado em frimaire do ano VI —, as ossadas de Turenne voltaram então a seu túmulo, que, por isso
(1797), os "efeitos maravilhosos que o busto dos homens ilustres, e as mesmo, se tornou monumento histórico. Mais tarde, tendo sido infor-
honras que lhes são conferidas, terão sobre os costumes, as ciências e mado de um destino considerado, por sua vez, inconveniente, Napoleão
as artes. [...] Nesta escola é que o professor primário formará o aluno; decidiu instalar, solenemente, o mausoléu no Hôtel des Invalides, contra
daí é que o artista extrairá seus temas; para aí é que a mãe conduzirá o a opinião de Lenoir, que pretendia estabelecer a dissociação entre os
restos e o monumento — conservar o túmulo para a história, em seu es-
17. Léonard Bourdon, Recueïl des actïons héroïques et civiques des Républicains français, tabelecimento, e mandar erguer um novo mausoléu, adaptado à sua nova
ano II.
situação como ao gosto presente. Os restos mortais de Turenne haviam
18. Philippe Roger, "Les Grands Hommes de Rivarol", in Le Culte des grands hommes,
Actes des troisièmes entretiens de La Garenne-Lemot, Nantes: Université de Nantes,
1998, p. 43-52.
19. No livro L'Île des philosophes (1790), o obscuro abbé Balthazard descreve uma viagem 21. ApudRichard Etlin, op. cit., p. 327.
na ilha do acaso, na qual reinam as doutrinas de seus inimigos. Cf. Darrin M. Mc- 22. Mona Ozouf, "Le Panthéon, l'école normale des morts", in P. Nora (org.), Les Lieùx
Mahon, "Narratives of Dystopia in the French Revolution", in Yale French Studies, de mémoire: La Republique, Paris: Gallimard, 1984, p. 139-196.
n. 101, 2001, p. 103-118; e, de forma mais geral, Enemies of the Enlightenment: The 23. Cf. ainda Suzanne Clover Lindsay, "Mummies and Tombs: Turenne, Napoleon and
French Counter-Enlightenment and the Making of Modernity , Nova York: Oxford Death Ritual", in Art Bulletin, vol. 82-3, 2000, p. 476-489.
University Press, 2001. 24. Conseil des Cinq-Cents (Conselho dos Quinhentos). Sob o Diretório (1795-1799),
20. Pascal Hintermeyer, Politiques de la mort, Paris: Payot, 1979, p. 73; Michel Vovelle, essa assembleia constituía — com o Conseil des Anciens (Conselho dos Anciãos,
La mort et l'Occident, de 1300 à nos jours, Paris: Gallimard, 1983. formado por 250 deputados) — o poder legislativo. [N.T.]

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percorrido, de algum modo, o arco completo dos tipos e dos valores de Por toda parte, o reordenamento revolucionário pretendia supe-
conservação, tendo acabado por ilustrar um caso exemplar dessa política rar o que Mark K. Deming designa como "os conjuntos confusos e
das novas sepulturas, adotada nesse período no Panthéon e alhures." labirínticos da abadia de Saint-Denis e da Abadia de Westminster"
O caso ilustra perfeitamente a constatação feita por Robert Harrison, em nome de uma obrigação imperiosa de classificação. A pedagogia
segundo a qual "as leis culturais da mudança são históricas e, por- tomou o lugar do status diferenciado dos mortos por ordens e estados:
tanto, obedecem também à lei da mudança. Sem sua substituição o desígnio didático tornou-se, daí em diante, exclusivo de qualquer
por novas leis, não há transformação de valor, porque, precisamente, outra preocupação e exigiu um esforço de clareza e de eficácia até
estamos desprovidos de um saber do luto". 26 Nesse momento histó- então incongruente. Alexandre Lenoir, zelador ainda jovem de um
rico particular que foi a Revolução Francesa, o desafio consistia em depósito de monumentos, oriundos das igrejas parisienses, começou
que os túmulos herdados tivessem um lugar em uma esfera pública, apresentando um catálogo das obras de arte conservadas ao Comitê
exclusivamente regida pelo valor testamentário heroico — prelúdio à da Instrução Pública e à Comissão Temporária das Artes; nesse texto,
exigência comemorativa, tal como ela será concebida pelo romantismo.27 ele explicava ter "tido o cuidado, na medida do possível, de reunir
O Panthéon — que, de acordo com a sugestão de Quatremère de tudo o que pode fornecer ideias das indumentárias antigas, seja civis,
Quincy, deveria ser rodeado por uma cerca viva, à semelhança do masculinas e femininas, seja militares, segundo as patentes. Espero,
que havia sido adotado no recinto sagrado dos templos antigos 28 — e acrescentava ele, que essa reunião seja interessante também para os
em seguida o museu, sob suas diferentes formas, constituíam uma artistas que desejarem reconstituir indumentárias que seriam difíceis
possibilidade de outros tantos novos santuários. Na escala regional e de encontrar se, porventura, a vigilância e a solicitude da Convenção
local, os decretos ulteriores sobre as sepulturas davam testemunho do Nacional negassem a autorização para conservar tais obras." Em suma,
empreendimento descristianizador, além da continuidade do combate esta era sua conclusão: "Esses monumentos, apresentados deste modo,
higienista e dos modelos de "campos de repouso" que triunfarão no devem ser considerados apenas como uma reunião de figurinos, uti-
ano XII com o decreto do Conselho de Estado sobre as sepulturas." lizando indumentárias segundo as épocas a que pertencem e segundo
as posições ocupadas por aqueles que eles representam."" A fórmula
remetia, de maneira exemplar, tanto a uma tradição dos estudos de
25. Permito-me citar meu livro Surveiller et r'instruire: La Révolution Françaire et
l'intelligence de l'héritage historique, Oxford: Voltaire Foundation, 1996. Para um antiquários marcada pelo gênero da coletânea de modas31 como a uma
balanço da reflexão contemporânea dos especialistas sobre esse tema, cf. em particular dessacralização propriamente revolucionária do túmulo, considerado
Gary S. McGowan e Cheryl J. LaRoche, "The Ethical Dilemma Facing Conservation:
como simples figurino e representante de uma posição social e de uma
Cate and Trearment of Human Skeletal Remains and Mortuary Objects", in Journal
of the American Institute for Conrervation, vol. 35, n. 2, 1996, p. 109-121. época, em vez de um defunto específico. Assim, ao dar a impressão de
26. Robert Harrison, Les Mortr, Paris, Le Pommier, 2003, p. 107. metamorfosear a coleção dos reis em outros tantos artefatos de exposição,
27. Para as notas de rodapé, suprimidas na tradução francesa, cf. a edição original de Lenoir pretendia romper, de forma brutal e negociada, com qualquer
Robert Pogue Harrison, The Dominion of the Dead, Chicago: University of Chicago,
2003, p. 162-167.
evocação de figuras individualizadas, assim como concentrar a atenção
28. Mark K. Deming, in Barry Bergdoll, op. cit., p. 136-138. no dispositivo de representação dos antiquários. Tudo se passa como se
29. Ao lado dos famosos decretos de Fouché ou Chaumette, o de Étienne Maignet -
em Marselha, promulgado em 9 de germinal do ano II — pretende, assim, assumir 30. Cf. Archiver du Mude des Monuments Français, Paris: Inventaire Général des Richesses
toda a "economia da morte": cf. Régis Bertrand, "Maignet, Marseille et la mort: La d'Art de la France, 1883-1897, II, peça CXLII.
Noùvelles
Réorganisation des sépultures en I'an II", in Elizabeth Liris e Jean-Maurice Bizière 31. Laure Beaumont-Maillet, "Les Collectionneurs au cabinet des Estampes", in
(orgs.), La Révolution et la mort, Toulouse: Mirail, 1991, p. 61-73. de l'Estampe, n. 132, 1993, p. 5-27.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA

os iconoclastas revolucionários, ao observarem a imagem, ignorassem o Franceses, organizadas de acordo com a posição ocupada na sociedade
médium, enquanto uma percepção "profissional" — no caso concreto, de suas épocas e segundo as respectivas sensibilidades, sob a claridade
35
a do artista e conservador — limitava-se, pelo contrário, a considerar suave dos vitrais, elas tornavam-se expressivas [...J."
o médium, ou seja, o figurino.
A primeira sala do museu oferecia uma visão panorâmica de todos
Tal interesse vai subsistir: a revista Musée do ano IX compreendia os séculos, ordenados de forma cronológica. "O artista e o amador",
"uma dissertação sobre a indumentária", e a sexta edição do ano X sublinhava Lenoir, "hão de observar, em um piscar de olhos, a infân-
acrescentava "uma dissertação sobre a barba". Entretanto, sua museo- cia da arte entre os godos, seu avanço sob Luís XII e sua perfeição sob
grafia imaginava, em breve, associar os membros da mesma família Francisco P, além da origem de sua decadência no reinado de Luís XIV
ou do mesmo contexto histórico. Em março de 1803, Lenoir reivin- e sua restauração no final de nosso século." Resumo de todo o estabele-
dicava a urna do condestável Olivier de Clisson "para colocá-la, no cimento, a sala prefigurava as "colagens" arquiteturais do século XIX e,
Museu, ao lado do túmulo de Du Guesclin, seu êmulo; assim, esses especificamente, as de Duban, sucessor de Lenoir. Nas salas seguintes, a
dois monumentos, depositados perto do túmulo de Carlos V, suscita- distribuição das obras obedecia a uma classificação "por época e por ordem
rão mutuamente um novo interesse". 32 Como é resumido pelo barão cronológica, ou seja, em outras tantas peças separadas quanto o número
de Norvins, a propósito de um projeto concorrente para o jardim de períodos notáveis que a arte nos oferece". Uma sala "primitiva" — pre-
de Élysée, trata-se de agrupar "túmulos segundo a vida ou o caráter de vista em 1806 como "sala do século XI, época que nos apresenta poucos
seus antigos ocupantes". Para solicitar a transferência, para seu museu, monumentos de arte (e que) seria única na Europa" — permaneceu no
do túmulo do chanceler da França, Michel de l'Hôpital, erguido em estado de projeto. No final do percurso, Lenoir imaginou, por assim dizer,
uma aldeia perto de Étampes, Lenoir exprimia-se, em 13 de prairial uma sala da atualidade, cuja definição hesitava, de maneira característica,
%
do ano VIII, nos seguintes termos: "Quem poderá observar, insensi- entre um Panthéon napoleônico e um museu de arte contemporânea.
velmente, a estátua de l'Hôpital, ao lado dos túmulos dos príncipes Em 1809, surgiu a ideia de uma sala dos fatos heroicos de Napoleão, o
lorenos, dos Médicis e dos Valois que tiveram de enfrentar, em várias Grande, Imperador dos Franceses — composta "por modelos das estátuas
oportunidades, a coragem desse homem ilustre ao defender os interes- e dos baixos-relevos encomendados atualmente por ele" —, que "formaria
ses do povo de quem ele declarava ser o pai?"33 Michelet tornou-se o
intérprete fiel desses diálogos mortuários quando, em sua aula de 5 de cf. Mario Praz, Consersation Pieces: A Survey
35. Ibidem , p. 524. Sobre a conversatïon piece,
janeiro de 1843 no Collège de France, escreveu que os monumentos of the Informal Group Portrait ïn Europe and America, University Park: Pennsylvania
State UR 1971; e sua crítica por Francis Haskell, in Art Bulletin, vol. 56, n. 2, assim
"haviam tido uma felicidade, sem precedentes e jamais experimentada como Simon Schama, "The Domestication of Majesty: Royal Family Portraiture
depois, isolados nas igrejas, de se verem uns aos outros e conversarem 1500-1850", in Journal of Interdisciplinary Hïstory, vol. 17, n. 1,
1986, p. 155-183.
entre si".34 Em suma, ele desenvolvia, a posteriori,
a nostalgia da con- 36. "Uma grande e esplêndida entrada pelo cais deixaria ver um grande pátio que seria
versation Piece que teria sido encarnada pelo estabelecimento concebido decorado com estátuas erguidas a intervalos regulares. As salas do térreo seriam
utilizadas da seguinte forma:
por Lenoir: "Todas essas figuras, isoladas nas igrejas ou reunidas nos 1) uma coleção de retratos dos homens célebres da França;
museus, deixaram de se exprimir; mas aí, no Museu dos Monumentos 2) uma sequência cronológica de armaduras de todas as épocas;
3) uma coleção completa de medalhas francesas;
4) uma biblioteca cujo acervo seria formado unicamente por livros necessários para
32. Cf. Archives du Musée des Monuments Français, op. cit.,
peça CCXCV. o conhecimento dos monumentos existentes no museu.
33. Carta para Lucien Bonaparte, in Finalmente, todos os objetos relativos à instrução, seja da arte ou da história relati-
Archives dù Musée des Monuments Français, I, p. 174.
vamente à França. [...] Esse monumento, único por sua classificação, tornar-se-ia
34. J. Michelet, Cours du Collège de France, I, Ie838-Ie844, I, peça CLXXXII.)
Paris: Gallimard, 1995, p. 524. extraordinário." (Archïves du Musée des Monuments Frangis,

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A MEMÓRIA INSPIRADORA
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

naturalmente o século XIX".37 Mas, sob o título "Século XIX, viagem de Saint-Eustache, que data do decênio de 1770 e cuja celebridade é
ao Egito do imperador e rei Napoleão I", Lenoir projetava também enorme, ilustrava o percurso excepcional de um patriota de mérito,
uma sala egípcia. Por último, em 1811, outro plano esboçou uma sala cuja exemplaridade continuava sendo atual. Igualmente, a divisa de
de vitrais em que estes "seriam o ornamento principal e, ao mesmo Dominique Sanède de Vic d'Ermenonville, amigo de Henrique IV,
tempo, dariam a conhecer os primeiros passos da pintura e das artes que morreu de desgosto dois dias depois do rei, assumia um caráter
do desenho, cujos progressos seriam em breve constatados"38. emocionante. À semelhança do que se passava no jardim com fabri-
Esses diferentes projetos comprovavam como a especificidade do ques, o epitáfio desempenhava, então, o papel tanto de uma lição de
depósito dos Petits-Augustins empenhava-se no desígnio de conferir, moral como de um apelo à memória: semelhantes usos inscreviam-se
4
"
a cada uma das salas, o caráter, a fisionomia exata do século que ela deve no gênero dos "derradeiros escritos", para citar Armando Petrucci. 1
representar"39, mediante a reutilização de "detalhes". Com efeito, "em ma- Por último, essa predileção remetia, de forma mais abrangente, à
téria de antiguidade", eis a conclusão do conservador, "são as partes que, moda, por volta da década de 1770, de historietas benfazejas, de ações
essencialmente, constituem a arte, servindo habitualmente para reconhe- louváveis e de modelos éticos, associados, em particular, à difusão dos
42
cer o povo a que pertence o objeto que deve ser explicado ou descrito". temas filantróp icos .
De forma mais geral, Lenoir escolheu uma obra particular como espécime O preço a pagar por essa nova vida — a ressurreição dos mortos
da arte de um século e, à sua volta, organizou toda a decoração da sala. — constituía, para Michelet, o heroísmo de Lenoir; de fato, o histo-
Assim, alguns monumentos "matriciais" ordenavam, com um maior ou riador retomou a compilação de lendas que havia sido elaborada desde
menor grau de fidelidade, o conjunto do quadro da exposição. Tal foi o thermidor, transformando os monumentos em outros tantos feridos
princípio declarado da sala do século XV em que ele "compôs (seu) teto, que tivessem ressuscitado pelo sacrifício de seu conservador. O mu-
(suas) janelas e, em geral, toda a decoração de acordo com o tipo do túmulo seu tornou-se o espetáculo de vítimas de pedra, reunidas em torno
da ideia de nação. Graças a seu sacrifício, instrumento de qualquer
43
de Luís XII que, por sua vez, ocupa o centro". Esse tipo de organização
permite conferir como que um "ar de família" à coleção reunida nesse es- patrimonialização, Lenoir "havia curado os ferimentos dessas vítimas,
paço, desenhando a imagem de uma comunidade de personagens ilustres. ajustando seus frágeis membros que se encontravam dispersos [...] Por
Nesse quadro, o epitáfio continuava sendo uma fonte indispensável seu intermédio, esses monumentos receberam uma nova consagração
para a compreensão do monumento; mas sobretudo, com a divisa, ele por terem sido cobertos com seu nobre coração e tingidos com seu
permite definir a personagem por inteiro, fornecendo de forma mais sangue[...]" .44 O martirológio prosseguiu no decorrer de toda a aula
conveniente o ponto culminante de um retrato.40 Por exemplo, a de
Valentina de Milão, "a mulher inconsolável ao perder o marido": "Nada 41. Armando Petrucci, Le scritture ultime: Ideologia della morte e strategie dello scrivere
mais é importante para mim" ["Rien ne m'est plus, Plus rien ne m'est"]. nella cultura occidentale, Turim: Einaudi, 1995, p. 141-142.
Paris, Comité des Travaux Historiques
Por sua vez, a placa dedicada a François Chevert, na igreja parisiense 42. Catherine Duprat, Le Temps der philanthropes,
et Scientifiques, 1993, p. 52-53, 203. Sobre os catecismos revolucionários e outros
suportes de propaganda, cf. Colporter la Révolution, Montreuil, 1989 (Catálogo da
37. Ibidem, I, peça CCCC.
exposição).
38. Archives Louvre, Z 62-63.
43. Para Deborah Jenson, essa perspectiva anuncia a conferência de Renan sobre a nação
39. Cf. Musée, 1810, p. 6. Life o que parece ser algo de arriscado: Trauma and its Representations: The Social
(1882),
40. Cf. John Mac Manners, Death and Enlightenment:• Changing Attitudes to Death among of Mimesis in Post-Revolutionary France, Baltimore: Johns Hopkins University
Christians and Unbelievers in Eighteenth-Century France, Oxford: Oxford University Press, 2001, cap. 1.
Press, 1981, p. 328-330. 44. J. Michelet, Cours du Collège de France, op. cit., p. 521.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA 1NSPIRADORA

de Michelet, em 29 de dezembro de 1842: "O senhor Lenoir havia Enfim, quando faltava o monumento desejado, Lenoir recorria a
salvaguardado todos os túmulos da França, por um lado, ao propor à diversos expedientes, incluindo a encomenda aos artistas contemporâ-
Assembleia que eles fossem conservados e, por outro, ao cobri-los com neos. Sua primeira iniciativa data de 11 de agosto de 1796 e diz respeito
seu corpo. E acabou por ser vítima desses ferimentos." Desse modo, 48
a bustos de Sarrazin, Poussin e Le Sueur ; em relação ao século XVI,
ele retomava o discurso do próprio Lenoir, que, em diferentes edições Montaigne, Fabri de Peiresc e Goujon; enfim, para o século XVIII,
de seu catálogo, afirmava ter machucado a mão ao afastar as baionetas que Rousseau, Helvétius, Raynal, Chamfort e o incontornável Winckelmann
ameaçavam destruir o túmulo do cardeal de Richelieu, obra-prima de — aliás, uma escolha bastante significativa de uma opção "democrática".
Girardon. No lado oposto a esse patrimonializador, como homem O historiador abbé Guillaume Raynal, falecido recentemente (1796),
ferido que podia orgulhar-se de seu estigma, manifestou-se uma leitura representava, antes da Revolução, o arquétipo do filósofo vítima do
contrarrevolucionária que, pelo contrário, limitava-se a perceber, no despotismo, em decorrência de sua detenção em 1781. Apesar de ter
museu, o sparagmos, a dispersão dos corpos dos heróis, a derrota e a deixado de pertencer ao panteão republicano a partir de maio de 1791,
anarquia, em suma, o desmembramento da comunidade, em vez de ele continuou sendo uma ilustração do anticlericalismo — e, obvia-
sua reunião em uma nova coletividade." mente, o defensor das "Colônias", assumindo uma posição contra a
O colecionismo de Alexandre Lenoir correspondia, em sua busca e colonização." Por sua vez, Sébastien-Roch N. de Chamfort — que ga-
em suas modalidades, a figuras banais desde o Antigo Regime (ele não nhou notoriedade com o livro Caractères, publicado postumamente, em
perdia de vista os marchands nem os leilões, "mantendo-se incógnito" para 1795 — pôde simbolizar o talento como vítima dos tempos de Terror.
negociar as peças "a um preço moderado")." Entretanto, alguns episódios Por conseguinte, o museu demonstrava como o patrimônio voltava a
inauguravam as narrativas ulteriores, as do século XIX, com achados no reivindicar as genealogias, em termos de filiação invertida pela qual os
meio dos detritos da nova vida. Assim, em 14 de novembro de 1796, filhos engendram os próprios pais."
Lenoir identificou o túmulo de Diana de Poitiers, favorita de Henrique II,
em Anet — cidade em que ela possuía um magnífico castelo, cuja constru-
ção se deve a Philibert de l'Orme, por encomenda do rei: tendo sido "ven- A busca de um santuário do Estado
dido a um cidadão das redondezas, o túmulo era utilizado como cocho
para dar de beber aos porcos e às aves". 47 Às vezes, o proprietário exigia a O jardim de Lenoir herdou um imaginário de Élysée, cujas carac-
menção da dívida contraída a seu respeito: assim, o dr. Boysset, detentor terísticas principais já foram abordadas; no entanto, os primeiros anos
do túmulo do filósofo e teólogo Abelardo, em Chalon-sur-Saône, "não
pede de modo algum a restituição do valor despendido por esse bloco Nouveller Archives
48. Cf. Jules Guiffrey, "Bustes commandés à Michallon et Deseine", in
de pedra da antiguidade", mas "reivindica [...] que a inscrição histórica de l'Art Français, 1880-1881, II, p. 383.
(destinada) a esse túmulo faça menção e designe o nome daquele que o 49. O pintor Girodet-Trioson (1767-1824) expôs no Salon
de 1798 (n. 194) o "retrato
havia conservado e sem o qual ele não teria subsistido". de C. Belley, ex-representante das Colônias", diante de um busto de G. Raynal à
moda antiga (Versalhes, Museu Nacional do Castelo). Cf. Hans-Jurgen Lüsebrink
e Manfred Tietz (orgs.), Lectures de Raynal: L'Hirtoire des deux Meles en Europe et en
45. Retomo, aqui, a figura elaborada por Northrop Frye, Amérique auXVIIIe siècle, Oxford: Voltaire Foundation, 1991; e Muriel Brot, "Raynal
Anatomie de la critique, Paris: au printemps 1793", in Sacie, vol. 27, 1995, p. 317-322.
Gallimard, 1969.
romain", chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit
46. Musée, n. 446, p. 200. 50. Yann Thomas, "Res,
in Archives de la Philosophie du Droit, Paris, Sirey, 1980, p. 425; "Les or-
47. Musée, n. 91, p. 191; n. 443, p. 195.
nements, la cité, le patrimoine", in Images romaines, Paris: ENS, 1998.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A MEMÓRIA INSPIRADORA

da Revolução haviam tentado dar-lhe uma nova fisionomia. Uma boa expor outros quadros obscenos e, finalmente, o fabricante fará questão
representação dessa tentativa foi o Plan allégorique d'un jardin de la de fornecer mercadorias em bom estado; 7) o caminho da Humani-
Republique française et des vertus re'publicaines, proposto pelo cidadão dade, em que nada será poupado para inspirar sentimentos em relação
Verhelst ao Comitê de Salvação Pública, em 16 de prairial do ano II; ao que o rico deve aos pobres que são seus irmãos e semelhantes;
organizado à volta de falsas ruínas que estão em nítida oposição aos 8) o caminho do Amor pela Pátria. Todos esses caminhos conduzem
dispositivos anteriores, ele configura uma damnatio memorie didática. ao Templo do Ser Supremo e da Imortalidade. Se o Homem vier a
O programa detalhado é o seguinte: afastar-se desses caminhos, ele cairá em outros tortuosos — tais como
"Na Praça da Revolução, serão instaladas as ruínas de um Palácio Orgulho, Cupidez, Avareza, Devassidão, Infidelidade, etc. — que o
de Tirano e, sobre elas, será erguida uma plataforma. No centro dessa conduzirão à sua perda; essas estradas desembocam em cloacas, figuras
praça, será colocada a estátua da Liberdade, que fica observando de todos os vícios. Ao sair do Templo, entra-se nos Campos Elísios.
incessantemente seus Filhos. Por baixo dessas ruínas, haverá quatro Nesse local, usufruir-se-á de tudo o que pode encantar a vista; aí, ver-se-á
salas destinadas a demonstrar as causas da justa destruição dos Reis: um tanque de sessenta toesas de comprimento e vinte de largura. Mais
na primeira sala, serão inscritos os Vícios da Monarquia; na segunda, adiante, uma grande cascata, cujas águas servirão para regar os prados.
a Política e a Adulação dos Cortesãos; na terceira, a Injustiça e os Em um dos lados do tanque, o Homem da Natureza, Rousseau, colo-
Privilégios; enfim, na quarta, o Fanatismo e a Fraude. Neste aspecto é cado perto de uma cabana rodeada de córregos serpeantes e guarnecida
que todos os Estrangeiros, ao lerem as causas de nossa bem-sucedida com choupos bem altos. À esquerda da cascata, será erguido um Templo
Revolução, assim como da destruição do Tirano, impregnar-se-ão ao Gênio, no qual hão de figurar Voltaire e os Heróis da Liberdade.
do horror pela escravidão e proclamarão: Não haverá felicidade sem À direita, será construída uma coluna em que serão inscritos os nomes
a Liberdade e a Igualdade. No local reservado ao Jardim Nacional, de todos os Homens Ilustres da História." Semelhante programa tem a
à direita e à esquerda, serão erguidas duas colunas destinadas aos vantagem de reunir facilmente quase todas as representações forjadas pelo
mártires da Revolução. Da plataforma será possível descobrir vários decênio em relação aos elementos comemorativos, ao mesmo tempo nos
caminhos, dissimulados até então pelo Palácio do Tirano, dedicados às jardins com fabriques, nos cemitérios e nos panteões; esta configuração
Virtudes e às afeições puras de todas as épocas. Desse modo, veremos: topográfica e alegórica, heroicizada pelo amor da pátria, pretende ser
1) o caminho da Honra, da Verdade, da Liberdade, da Igualdade e da um recurso eficaz, em forma de propedêutica, para homenagear os dois
I mortalidade; 2) o caminho da Virtude, no qual serão encontrados heróis das Luzes, Voltaire e Rousseau. Aliás, o gótico em ruínas, como
vários objetos, tais como estátuas, escritos empolgantes ou, finalmente, metáfora para um regime desacreditado, tornar-se-á um lugar-comum da
informações capazes de inspirar sentimentos republicanos; 3) o caminho iconografia militante: após thermidor, uma alegoria complicada, dirigida
da Fraternidade, para alimentar a amizade e a boa harmonia entre Pai, contra Robespierre e intitulada Le Miroir du passe pour sauvegarde de
Mãe, Filhos(as), Irmãos, Irmãs, Amigos e Concidadãos; 4) o caminho l'avenir, mostrava um "tribunal terrorista" instalado em uma construção
5
da Probidade e da Fidelidade; 5) o caminho do Amor Conjugal - gótica — indício "realista" e, ao mesmo tempo, emblemático. 1
neste local, os Esposos virão prestar, mutuamente, o juramento de viver No início do século XIX, alguns jardins — tal como o de "Mousse-
em bom entendimento e de ficarem juntos para sempre; 6) o caminho aux", o território da ilusão, desenhado por L. de Carmontelle de 1773 a
do Gênio e das Artes, no qual o Homem assumirá o compromisso
de renunciar a fazer qualquer obra contrária aos bons costumes — o
51. Lauren M. O'Connell, "Redefining the Past: Revolutionary Architecture and the
Poeta deixará de escrever em um estilo indecente, o Artista não irá Conseil des Bâtiments Civils", in Art Bulletin, vol. 77, n. 2, 1995, p. 207-224.

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1778, e no qual Rousseau colhia suas plantas — conservaram sua antiga francês e criador dos liceus —, "quase todos esses monumentos têm um
celebridade, mesmo que tivessem sido degradados; entretanto, impunha- caráter grave e religioso. Teria sido bastante difícil harmonizar seu efeito
se atribuir-lhes uma nova serventia. A ideia de "converter os jardins de com o aspecto sorridente dos jardins de Mousseaux; aparentemente, eles
Mousseaux — sua situação em local recuado e em posição elevada, longe seriam mais adequados ao recinto de um antigo mosteiro que desperta
e acima dos ruídos da cidade, parecia destiná-los a tal objetivo — no sentimentos e pensamentos análogos a seu destino". De fato, "um templo
Élysée histórico francês" ocorreu ao barão de Norvins, secretário parti- ou um jardim moderno nunca chegarão a ser significativos para a alma
cular do administrador do departamento de Seine. Seu livro Mémoires e a imaginação como ocorre com essas antigas basílicas consagradas pela
evocava seu desígnio de instalar nesse lugar os monumentos franceses: veneração dos séculos; para ler os epitáfios dos heróis do tempo passado,
53
"Os hóspedes naturais desse Élysée expiatório da amnésia do tempo o ambiente mais apropriado é sob velhas abóbadas." Aliás, essa valori-
e das lembranças da Revolução deveriam ser todos os túmulos e mo- zação do gótico pela ancianidade inspirava-se na defesa apresentada por
numentos [...] do depósito dos Petits-Augustins. Eu tinha estudado seu amigo Chateaubriand, em Génie du christianisme.
meu projeto no próprio terreno e havia tirado partido do relevo tão Quanto ao parque de Monceau, Louis de Fontanes sugeria sua
diversificado do parque de Monceaux, de suas colinas, de suas aleias transformação em galeria dos artistas contemporâneos: "Uma espécie de
escavadas e solitárias, de suas águas e das sombras fornecidas pelas museu campestre, um lugar semelhante a essas 'villas' que embelezam os
folhagens de suas árvores, para colocar e abrigar túmulos, segundo a subúrbios de Nápoles e de Roma. Seria possível até mesmo reservar uma
vida ou o caráter de seus antigos ocupantes. Além disso, uma capela das salas de Mousseaux para receber todas as obras dos artistas vivos: em
sepulcral teria reavivado o interesse de um curso de história nacional, vez de dois meses, como ocorre em Paris, essas obras seriam expostas em
a céu aberto, ministrado a partir de peças irrecusáveis." Mousseaux durante todo o ano." Finalmente, na sequência da visita do
Segundo parece, Nicolas Frochot (1761-1828) — 1º administrador Primeiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, ao depósito dos Petits-Augustins,
do departamento de Seine, cuja capital era Paris — serviu-se amplamente em março de 1801, o Museu dos Monumentos Franceses acabou con-
desse projeto; com efeito, em 1800, ele solicitou que os monumentos, servando seu jardim Élysée, cuja arrumação foi concluída para a Festa da
até então reunidos no depósito dos Petits-Augustins, fossem instala- Paz Continental.
dos em Monceau, parque em que "essa lúgubre e majestosa coleção Sob o Império (1804-1814), o jardim organizou-se em dois pátios,
de arquivos da morte, colocada sob a abóbada do céu no meio de um cada qual guarnecido com vestígios arqueológicos. A fachada do castelo
Élysée guarnecido de flores, tornar-se-ia, subitamente, inspiradora para de Anet, reproduzida na capela do convento, servia de entrada princi-
o gênio, além de proclamar aos séculos futuros a religião dos túmulos pal do museu: simbolicamente, ela colocava o estabelecimento sob os
[grifo de Dominique Poulot], consagrada pelo testamento dos séculos auspícios do Renascimento, quando Philibert de l'Orme encarnava,
passados"." Eis uma forma de anunciar o programa do cemitério pari- segundo Lenoir, o primeiro arquiteto francês. Na extremidade do pátio
siense de Père-Lachaise, sob a Restauração (1814-1815), no qual Frochot oposto, o conservador dispôs três arcadas do castelo de Gaillon (que,
mandará colocar, finalmente, alguns desses mais célebres monumentos supostamente, era o representante do século XV). Mais adiante, outro
com o objetivo de "lançar" o novo cemitério. As opiniões divergiam, po- pátio deveria acolher peças do século XIII — da autoria do arquiteto
rém, relativamente à adequação desse jardim ao intuito pretendido. Para francês, construtor da Sainte-Chapelle, Pierre de Montereau —, mas
Louis de Fontanes (1757-1821) — reorganizador do sistema educacional essa obra nunca chegou a ser concluída. O objetivo do Élysée consistia

52. Sobre esse assunto, cf. Marie-Louise Biver, Le Paris de Napoléon, Paris: 53. Archives dù Musée des Monuments Français, I, peça CLXVIII.
Plon, 1963, p. 138.

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em fornecer "uma paisagem augusta" para os monumentos dedicados, De acordo com o guia, dois conjuntos se destacavam: "(Em primeiro
por "uma mão tímida, a homens célebres". Nesse aspecto, Lenoir reivin- lugar), na encosta de uma colina, ao lado de um canteiro de roseiras,
dicava a qualidade de arquiteto, mas para assimilá-lo, imediatamente, murta e ciprestes, vemos erguer-se majestosamente uma capela antiga,
à elaboração de um cenário: "Sem ser arquiteto, a arte é para mim algo cujas abóbadas em ogivas alongadas encobrem religiosamente as cinzas
57
de tão familiar quanto ela deve ser para um pintor que compõe pes- de Heloísa e de Abelardo. [...] Na parte alta do morro que serve de
soalmente o fundo de seus quadros." Sua primeira preocupação tinha base às urnas imortais de nossos poetas mais célebres, observa-se um
a ver com a organização da luz e, especialmente, com o olhar que, da monumento com quatro faces que se ergue acima dos outros túmulos:
entrada, se dirigia para o claustro ou para o próprio jardim. composto por quatro nichos, ele contém os bustos de Molière, Jean de
A composição dessa "paisagem" dependia amplamente do gênero do La Fontaine, Boileau e Racine." O caráter "falante" desse jardim era
jardim inglês: "Amores-perfeitos, flores de todas as espécies guarnecem duplicado pelas múltiplas inscrições, disseminadas no local.
esses túmulos; na sua proximidade, o próprio cipreste parece ter perdido Por esse espetáculo, o conservador entendia que, "à alma dos leitores
sua aparência lúgubre para tornar-se luminoso.."54 Em janeiro de 1807, e de todos aqueles que visitarão esse Élysée, fosse transmitido o santo
454 pés de árvores e arbustos foram solicitador por Lenoir a seu minis- respeito pelo qual, ao instalá-lo, ele havia sido impregnado através das
tro de tutela. Diante da rejeição de seu pedido, ele baixou sua exigência luzes, talentos e virtude". Nesse lugar da imortalidade poética, será
para 164 plantas, cuja lista foi conservada escrupulosamente, graças aos possível "supor que esses restos inanimados venham a receber uma nova
trâmites administrativos: "11 acácias, 6 alertes, 2 bordos de açúcar, 6 vida a fim de se observarem e se entenderem, além de usufruírem de
cítisos, 6 carpas, 4 anetos, 4 cerejeiras de flores duplas, 6 madressilvas, uma felicidade comum e inalterável"." A implicação política de tal
4 puás, 2 catleias, 6 epíceas, 8 lilases variados, 6 amoreiras da China, iniciativa era óbvia: o jardim pretendia fornecer o novo padrão das re-
4 bolas de neve, 6 roseiras bravas enxertadas, 3 titias, 4 espinheiras, 12 putações, ao reparar as injustiças cometidas no passado. De acordo com
roseiras vulgares, 6 cedros da Virgínia, 4 trifólios, 4 loureiros, 6 ciprestes, a afirmação de Lenoir, "as homenagens públicas e a veneração nacional
4 freixos, 6 sarças, 4 bétulas, 6 azevinhos com espinho, 2 olmos, 2 lariços, consolarão os manes desses homens ilustres pela injustiça que pesou
2 bordos com folhas de freixo, 4 olmos ainda novos."" sobre suas vidas e pelos ultrajes suportados após terem falecido"".
Em 1810, o catálogo da revista Musée repertoriava "mais de quarenta Contrariamente à acusação de pieguice aliciante, desencadeada por
estátuas; alguns túmulos, distribuídos ao acaso sobre a grama verde, seus adversários, o jardim Élysée colocava-se, portanto, sob o patrocínio
erguiam-se com dignidade no meio do silêncio e da tranquilidade".56 da razão. Mesmo que o conservador pretenda oferecer "os monumentos
erguidos com ternura e reconhecimento à atenção dos cientistas e às
54. Musée, edição do ano VII, n. 510.
lágrimas das almas sensíveis", prevalecia, finalmente, a preocupação de
55. AN F17 2410. Essa amoreira da China deu seu nome ao pátio, beneficiado por sua
adotar a perspectiva do panteão, nem que fosse para justificar o monu-
sombra, da École des Beaux-Arts. A introdução de espécies exóticas do Novo Mundo ou
do Extremo Oriente aumentou as possibilidades dos jardineiros: essa é uma das causas mento dedicado a Heloísa e Abelardo: "Basta abrir a história", escreve
do sucesso do arquiteto-paisagista, Louis-Martin Berthault — apelidado o "Le Nôtre
do século XIX" — em La Malmaison, que, em 1799, se tornou a residência do Pri-
meiro Cônsul, Napoleão Bonaparte, e de Josefina de Beauharnais, sua primeira esposa. 57. Sobre a posição do episódio na fortuna crítica, cf. Cécile A. Feilla, "From Sainted
Maid to Wife in all Her Grandeur: Translations of Heloise 1687-1817", in Eighteenth-
De acordo com o resumo apresentado por um dos mais famosos paisagistas da época,
Gabriel Thouin — em sua obra Plans raisonnés de toutes les espèces de jardins (1820) Century Lifè, vol. 28, n. 2, 2004, p. 1-16.
—, a nova arte das paisagens mescla as flores com os gramados. 58. Eis o que seria, diz ele, "a recompensa mais apreciada por nosso coração" ( Musée, ed.
56. Musée, ed. de 1800, p. 19. Cf. ainda Ch.-P. Landon, Annales dù Mùsée et de l'École de 1810, op. cit., p. 293).
Moderne des Beaux-Arts , Paris, ano IX, I, 12. 59. Archives du Musée der Monuments Français, I, peça CXXXIV.

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Lenoir, "para conhecer o mérito desse filósofo, mais notável ainda pela maneira dos antigos" — mesmo que a imprensa evocasse, de preferên-
força do gênio que ele desenvolveu, em um século mergulhado nas cia, a poética noturna de Young.62 Apesar de inscrever-se perfeitamente
trevas da superstição, que pelo interesse suscitado pela lembrança de na moda dos jardins de valores morais, tal como ela havia sido legada
seus infortúnios." Em 1806, no quinto volume de seu grande catálogo pela sensibilidade anterior à década de 1790, o jardim Élysée depende
do Musée, Lenoir citava o famoso trecho da obra de Condorcet, já também das "afeições privadas" que, de acordo com o testemunho de
citada, como o inspirador de sua "imagem de um verdadeiro Élysée": Benjamin Constant, tomavam o lugar, na época, da religião. De fato,
"O quadro da espécie humana, desvencilhada de todas as suas cor- o jardim reunia imagens, afinal de contas, heteróclitas — herói do dia
rentes, liberada do império do acaso, assim como do inimigo de seus e figuras célebres da história da França, testemunhas da inteligência
avanços, e percorrendo com um passo firme e confiante o caminho universal e simples pretextos para a expressão de uma sentimentalidade.
da verdade, da virtude e da felicidade, apresenta ao filósofo um espe- Aliás, na sua obra, o representante da tradição, L.-P. Deseine, apre-
táculo que o consola dos erros, crimes e injustiças com que a terra sentava uma descrição voluntariamente caótica da situação, a fim de
ainda continua conspurcada e de que ele é frequentemente vítima. condenar o caráter desconexo das referências, pagãs e cristãs, antigas e
[...] Aí é que ele existe verdadeiramente com seus semelhantes, em modernas: há quem tenha "levado a demência até o ponto de nos dizer
um Élysée que sua razão conseguiu criar para si mesma e que seu amor que essa reunião de monumentos apresenta o conjunto emocionante
pela humanidade embeleza com as mais puras fruições."60 O museu de um Élysée. [...] Já se viu, algum dia, estátuas de Diana, Júpiter,
ilustrava assim, amplamente, uma criminalidade histórica, não a que Mercúrio, de animais e quimeras de toda a espécie, em um lugar reser-
Chateaubriand havia reconhecido no princípio da Revolução, mas vado a sepulturas? [...] O caráter de um Élysée é determinado não por
63
aquela que os filósofos do segundo período das Luzes — a geração do arbustos, gramados e canteiros, mas certamente por seus monumentos".
abbé Grégoire — observaram em ação na cronologia universal. De qualquer modo, o Élysée forneceu uma das encarnações mais
Em seu guia de 1810, Lenoir justificava "o termo Élysée" neste tre- convincentes da sensibilidade pré-romântica, ao servir-se de um vocabu-
cho: "Mas por que — poderá alguém se questionar — servir-se de uma lário formal, reconhecido e apreciado, além de ser a ilustração de valores
palavra que se limita a designar uma quimera? [...] Somos incapazes amplamente compartilhados. Sem poder erigir-se em lugar da memória,
de dissimular que existe uma espécie de magia associada a esse termo esse "jardim de ilusões" influenciou, por sua vez, um grande número
que é da alçada da linguagem das artes e da qual nos servimos, todos os de empreendimentos associados à história nacional, desde o projeto
dias, para significar nossa ideia a respeito da felicidade: ele destina-se a de Saint-Morys até a reforma de La Malmaison, que foi orientada por
caracterizar, sobretudo, a felicidade que supomos ser compartilhada pelos Lenoir, J.-M. Morei — "o patriarca dos Jardins Ingleses" — e o arquiteto
homens virtuosos depois de terem deixado de viver neste mundo visível. P. Fontaine, antes da intervenção de L.-M. Berthault.64 Como tal, o
E por que motivo não poderíamos nos conformar, nesse aspecto, com
um uso que, graças ao conhecimento e à razão, nada tem de perigoso?"61 62. Journal des Débats [boletim oficial, criado em 1789, dos debates da Assembleia
Nacional], de 16 de ventôse do ano X (7 de março de 1802): "Uma visita ao Museu
Aliás, o modelo antigo havia inspirado inclusive a disposição das obras,
dos Monumentos Franceses vale uma noite passada com Young" (p. 36).
uma vez que "os monumentos são colocados à beira das alamedas, à 63. Louis-Pierre Deseine, Opinion sur les musées, oà se trouvent retenus tous les objets d'art
qui sont la propriété des temples consacrés à la religion catholique, Paris, 1801. O panfleto
teria uma nova edição em 1814.
60. Musée, vol. 5, 1806, p. 192-193.
64. Cf., em geral, Louis Courajod, "L'Influence du musée des monuments (rançais sur le
61. Ibidem., ed. de 1810, p. 285. [Em relação à palavra "Élysées", cf. Musée, éd. 1810, développement de l'art et des études historiques", in Revue Historique, vol. 30, n. 1,
p. 285. (N.T.)] 1886, p. 107-118. O projeto de um colecionador-antiquário, Saint-Morys, que

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Élysée constituía sem dúvida o único exemplo de um jardim, destinado em 1804 — justificava a dissolução anunciada do Museu dos Monu-
a receber construções, que conheceu, na França, certo sucesso; eis o que mentos Franceses em decorrência da preocupação em "restituir à
ocorreu, na contramão tanto da frieza frequentemente glacial das insti- religião os mausoléus que ela havia instituído, em restituir-lhes seu
tuições encarregadas de comemorar eventos oficiais como do desígnio caráter primitivo, em restabelecê-los na sua harmonia natural com
exclusivo de diversão que, no mesmo momento, animava os parques todas as lembranças que eles devem celebrar e sem retirá-los da admi-
do estilo de Tívoli e outros jardins de empresários do lazer parisiense. 65 ração pública, além de associar sua presença às cerimônias fúnebres e
Ao marcar a restauração do Estado em suas prerrogativas de memória, ao espetáculo do culto divino". Com efeito, "sofremos", prossegue ele,
o Império condenava esse empreendimento como uma excentricidade "ao observar que eles são depositados em um recinto em que tudo lhes
individual. O desígnio oficial consistiu, daí em diante, em fundar uma é estranho, em que parece estar extinto o pensamento que reconhece
nova memória dinástica e nacional, assim como em realizar a amálgama seu valor, em que nada os explica; ora, tendo-se tornado estéreis e
das ilustrações da França antiga com os homens célebres da nova. Por silenciosos, eles limitam-se a transmitir uma impressão incerta à alma
um decreto de 1806, a igreja de Sainte-Geneviève recebeu os túmulos do espectador"." Essa decisão foi saudada, imediatamente, por D.-V.
depositados no museu, destinando esse templo à "sepultura dos senadores, Denon, que condenava "o solo salgado e destrutivo do depósito dos
grandes oficiais da Legião de Honra e generais, além de outros funcionários Petits-Augustins".67 Apesar de ter sido adiado, em última instância,
públicos que tivessem prestado bons serviços ao Estado"; paralelamente, esse projeto de desmantelamento do museu dava testemunho de uma
previa-se instalar, na abadia de Saint-Denis, a sepultura dos imperadores. transformação das expectativas e das representações, relativamente à
No diário oficial Moniteur Universel de 22 de fevereiro do mesmo memória nacional.68
ano, J.-B. Champagny — nomeado ministro do Interior por Napoleão, Após os Cem Dias, foi decidida a dissolução do museu. Um decreto
real, promulgado em 24 de abril, restituía "os monumentos de toda a
espécie que adornavam a igreja de Saint-Denis [...] à igreja do rei para
entendia criar em Houdainville, no departamento de Oise, em torno de seu castelo,
"um museu que expõe, em um quadro romântico, a evolução dos monumentos retomarem seu lugar nesse recinto". Entretanto, no final de 1816, Lenoir
funerários na França" foi estudado por Françoise Arquié-Bruley, "Un Précurseur: dirigiu uma derradeira súplica ao rei, pela qual ele recomendava que fosse
Le Comte de Saint-Morys (1772-1817), collectionneur d'antiquités nationales",
in Gazette des Beaux-Arts, out. 1980, p. 109-118; fev. 1981, p. 61-77. O Élysée criado, "em Paris, um Museu de Arte Francesa de modo que os mo-
foi construído apenas depois do falecimento do conde, sob a orientação do genro, numentos, sem procedência determinada, permanecessem no depósito
Engelbert Schillings, oficial prussiano que dispôs as estátuas funerárias em torno
dos Petits-Augustins e se procedesse à fabricação de provas ou de moldes de
de rochedos e entre as árvores. No entanto, o exemplo mais nítido da influência de
Lenoir sobre o cenário de seus contemporâneos é, evidentemente, o de La Malmaison. todas as estátuas dos reis que voltariam à abadia de Saint-Denis, além
Redigido pelo próprio Lenoir, o verbete "Malmaison", da coletânea enciclopédica de outras peças destinadas a ser restituídas, sem deixarem de serem es-
Dictionnaire de la conversation, publicada em 1836, dá uma ideia bastante precisa de
seu papel nessa reforma; seus esforços incidiram sobretudo sobre o embelezamento senciais à cronologia tanto da história da França como de nossas artes".
das fachadas e sobre as fabriques do jardim à maneira inglesa, do qual ele pretendeu Assim, o desmantelamento levou Lenoir a formular o princípio de um
fornecer uma das peças mais importantes, ou seja, uma "capela" gótica transportada
de Metz (e que permanecerá na embalagem). Deve-se observar que o diário de P.
Fontaine, em sua narrativa espiritual dos arranjos do jardim, não menciona Lenoir; 66. Archives du Musée des Monuments Français, I, peça CCCCXXV.
se lhe dermos crédito, foi o famoso teórico J.-M. Morei — na época, septuagenário 67. Apud Marie-Louise Biver, Le Paris de Napoléon, op. cit., p. 260.
— quem lhe ditou a realização de tal projeto (Marie-Louise Biver, Pierre Fontaine,
68. Sobre esses panteões nacionais, cf. o catálogo da XXI Exposição do Conselho da
Premier architecte de l'Empereur, Paris: Plon, 1964, p. 34).
Europa, 1991, Emblèmes de la liberté: L'Image de la République dans l'art du XVIe
65. Gilles-Antoine Langlois, Folies, tivolis et attractions: Les Premiers pares de loisirs pari- au siècle, Berna: Staempfli, 1991, n. 444, "Projet pour un monument national
siens. Paris: Délégation à l'Action Artistique de la Ville de Paris, 1991. suisse", 1845-1846, por J. G. Müller.

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museu de moldes, anunciando, de certa maneira, a solução adotada pelo reanimar seus cadáveres, negando o trabalho precedente de ocultação,
Museu de Escultura Comparada de Viollet-le-Duc. além de restaurarem espetacularmente a evocação dos corpos defuntos
No entanto, esse recurso à cópia era, na verdade, uma solução no âmago de um espaço que acabava de ser (re)consagrado.
inevitável. Daí, a sugestão alternativa de "santificar" de certa maneira
o ex-museu revolucionário "no interior do qual havia sido estabelecida
uma capela com seu capelão que, cotidianamente, rezaria uma missa A encarnação dos antepassados
em memória das pessoas, cujos mausoléus se encontram no depósito
dos Petits-Augustins. O público teria a possibilidade de participar desse Para Michelet, o museu remetia à tradição bíblica que evoca o vale
ato. Todos os bustos, estátuas ou monumentos que fazem lembrar de Josafá, perto de Jerusalém, no vale à frente do Templo — o lugar
ideias, sem qualquer relação com as virtudes morais, seriam retirados e do Juízo Final — em que ricos e pobres estão à espera do juiz71: "Um
colocados em uma sala particular". "Essa instituição santa e religiosa", número respeitável de mortos históricos, removidos de suas capelas pelo
concluía Lenoir, "acalmaria as almas inquietas que, ao admirarem nosso vigoroso apelo da Revolução, tinha se dirigido a este vale de Josafá. [...]
Museu, não deixam de experimentar uma espécie de mal-estar ou des- A França deparava-se, finalmente, com ela mesma em sua evolução; de
contentamento pelo fato de ser composto por monumentos destinados século em século e de homem em homem, de túmulo em túmulo, ela
a homenagear nossos antepassados. Ao arriscar-me a fazer tal proposi- podia fazer, de algum modo, seu exame de consciência."72 Essa repre-
ção, tudo seria levado em consideração, incluindo a moral, a utilidade sentação de uma nação sob a ascendência da ressurreição dos mortos e,
e a economia; além disso, Paris disporia realmente de um Westminster sobretudo, pela "sentença" do historiador que assumia a função de juiz
mais rico, mais belo e mais completo que o da abadia de Londres.
[...] Assim, o Museu da Capela Real da Rainha Margot — ou seja,
71. Livro de Joel, 4, 1-13: "Vai acontecer naqueles dias, naquele tempo: vou mudar a
Margarida de Valois (1553-1615), que desposou, em 1572, Henrique
sorte de Judá e Jerusalém. Reunirei todos os povos do mundo para fazê-los descer ao
IV — seria substituída pelo Museu Real dos Monumentos Franceses."69 Vale de Josafá [nome do rei piedoso, significa também "o Senhor julga"; por isso, é
Era uma forma de tentar reunir o museu das personalidades ilustres com chamado no v. 14 "Vale da Decisão"]. Ali abrirei um processo contra eles, por causa
de Israel, meu povo e minha herança. [...] Por acaso quereis vingar-vos de mim?
a capela dinástica, aproveitando-se do gosto gótico e do culto prestado Se tirardes vingança contra mim, bem depressa farei recair a vingança sobre vossas
ao bon roi Henri (ou seja, Henrique IV, de quem a rainha Margot havia cabeças! Vós que roubastes minha prata e levastes meu ouro, vós que carregastes
para vossos templos o melhor dos meus tesouros. Vós que vendestes aos gregos a
sido a "primeira mulher"; de fato, ele é considerado o soberano mais
população de Judá e de Jerusalém, só para afastá-los de seu território. Pois bem, vou
promíscuo da história da França). No entanto, o caráter revolucionário chamá-los de volta do lugar para onde vós os vendestes e farei recair vossos atos sobre
do estabelecimento estava demasiado presente nos espíritos para permitir vossas cabeças! Venderei vossos filhos e filhas pelas mãos dos filhos de Judá que hão
de vendê-los aos sabeus, a uma nação longínqua, porque o Senhor falou! Proclamai
o sucesso de tal estratégia"; de qualquer modo, os cenotáfios pareciam isto entre as nações: Preparai uma guerra santa! Convocai os heróis! Que avancem,
subam todos os guerreiros! De vossos arados fazei espadas e de vossas podadeiras,
lanças. Que o covarde diga: Sou um herói!' Apressai-vos e vinde, todas as nações
69. Archives du Musée des Monuments Français, I, peça CCCCLXIII. dos arredores e reuni-vos lá! O Senhor faz descer teus guerreiros. 'Que venham
70. Com o decreto de 18 de dezembro de 1816, o lugar — daí em diante reservado à todas as nações e subam ao Vale de Josafá! Sim, ali eu me sentarei para julgar todas
École des Beaux-Arts — começou a receber uma nova coleção, desta vez de moldes as nações dos arredores. Lançai a foice porque a colheita está madura; vinde, pisai
de obras antigas. Cf. Ch. Pinarei, "Origines de la collection des moulages d'antiques as uvas porque o lagar está cheio; as tinas transbordam, pois grande é a sua malícia!'
de l'École nationale des beaux-arts de Paris, aujourd'hui à Versailles", in Annie-France Multidões e multidões no Vale da Decisão! Sim, está próximo o dia do Senhor, no
Laurens e Krzysztof Pomian (orgs.), L'Anticomanie: La Collection d'antiquités aux Vale da Decisão!" (Bíblia Sagrada, Tradução da CNBB, várias editoras, 2001.)
XVIII° XIX' siècles, Paris: EHEES, 1992, p. 307-325. 72. J. Michelet, Histoire de la Révolution Française, op. cit., p. 549.

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soberano, foi desenvolvida, particularmente, pela geração de 1830 ; ela mais seguros da memória e da coleção80; ele é a confirmação de uma
não tinha a ver expressamente com a experiência do Museu dos Monu- identidade e tem sua origem — feminina, como defendem os con-
mentos Franceses, tal como havia sido imaginada por seu conservador 74, temporâneos inspirados no mito de Dibutade — no desejo de com-
na perspectiva de uma leitura quase esotérica." Ocorre que alguns dos pensar a ausência do ser amado. Algumas observações incidentes do
quadros que na época tinham como tema esse Museu faziam aparecer catálogo de Lenoir esboçavam, de maneira espetacular, essa suposta
as personagens históricas na realidade presente do estabelecimento, presença. "O túmulo de Clóvis — rei dos francos (465-511) — [...]
em uma metalepse 76 que implicava a confusão dos tempos.77 Nesse mostra-nos esse rei deitado: em sua face, lê-se ainda a audácia e a
aspecto, Michelet — ao evocar em um Cours no Collège de France intriga. 1...] No túmulo de Fredegunda, a lista de seus crimes aparece
"esses mortos em seus túmulos, fazendo com que todos os tempos burilada em caracteres indeléveis; aliás, eles não foram desgastados
fossem contemporâneos"78 — continuava sendo o melhor intérprete pelo tempo. [...] O sorriso da sedução que se espelha nos lábios de
desse desaparecimento do tempo, concebido como modalidade da Catarina de Médicis disfarça as pulsões criminosas de sua alma." Ou,
historicidade revolucionária do museu. a propósito de Abelardo: "Na cabeça inclinada desse sábio doutor,
Os retratos constituíam seu primeiro instrumento, por conser- observa-se ainda a doçura amável que havia subjugado a alma de
varem as características "daqueles que já deixaram este mundo e Heloísa."81 Uma verdadeira leitura do invisível — grande produtora
cuja memória ainda gostamos de relembrar"." Antropologicamente, de imagens — desenvolveu-se desse modo, fazendo apelo a uma fi-
como é sublinhado por Susan Stewart, o retrato é um dos dispositivos siognomonia vulgarizada82 e, segundo parece, à retórica winckelman-
niana da imperceptível carne das estátuas da Antiguidade. Dessa
sensibilidade de época participaram outras museografias, tal como
73. Sobre esse tema em Michelet, cf. Olivier Renaud, Michelet, la magistrature de L'histoire, aquela, contemporânea, do Louvre, em que Morel d'Arleux utilizava
Paris: Michalon, 1998. a historiografia artística — o Traité des passions do pintor Charles
74. "[...] esse passado havia sido o presente; se vocês são incapazes de tal constatação, se Lebrun — para orientar a exposição de desenhos.83
esses mortos não estão ressuscitados, então vocês não os conhecem". (François Guizot,
Histoire de la civilisation en France, 1, Paris, 1856, p. 284). E, além dos célebres trechos Essa preocupação com o requinte das aparências e expressões re-
sobre a ressurreição dos mortos, a famosa narrativa da visita por Michelet: "Foi aí, e em metia, de forma mais geral, a uma antropologia física dos cadáveres,
nenhum outro lugar, que experimentei a vivida impressão, pela primeira vez, da histó-
cujas estátuas parecem dar uma imagem fiel. De acordo com Schlegel,
ria. Com minha imaginação, eu enchia esses túmulos, eu sentia esses mortos através dos
mármores e, certamente, com algum receio, eu penetrava na sala de abóbadas baixas "os Monumentos Franceses, cujo catálogo bastante detalhado foi
em que repousavam Dagoberto, Chilperico e Fredegunda." ("A. M. Edgar Quinet", in
P. Viallaneix (org.), Le Peuple, Paris, Garnier/Flammarion, 1974, p. 67-68).
75. J. Michelet, Cours au Collège de France, op. cit., p. 520-522. 80. Susan Stewart, "Death and Life, in that Order, in the Works of Charles Willson Peale",
in Lynne Cooke e Peter Wollen (org.), Visual Display: Culture beyond Appearances,
76. Gerard Genette, Métalepse: De la Figure à la fiction, Paris: Le Seuil, 2004.
Dia Center for the Arts, Seattle: Bay, 1995, p. 32.
77. Assim, o quadro de Charles-Marie Bouton — Vue de la salle du XVII siècle, ou La 81. Description..., edição do ano X, p. 9-10. Bárbara Maria Stafford, "Beauty of the
folie de Charles VI — exposto no Salon de 1817, Museu de Brou, Bourg-en-Bresse.
Invisible: Winckelmann and the Aesthetics of Imperceptibility", in Zeitschrifi fiir
Em 1821, Népomucène Lemercier escreve o livro La Démence de Charles VI. Kunstgeschichte, 43 Bd., H. 1, 1980, p. 65-78.
78. Sobre esse tema, cf. Jacques Rancière, Les Noms de L'histoire: Estai de poétique du 82. Cf. Melissa Percival, The Appearance of Character: Phyriognomy and Facial Expression
savoir, Paris: Le Seuil, 1992, p. 100 ss. — a respeito de Michelet, que revolucionou
in Eighteenth-Century France, Londres: Maney, 1999.
o tempo ao neutralizar a aparência do passado para criar uma comunidade entre
vivos e mortos. 83. L'an V Dessins des Grands Maîtres, 92" Exposition Cabinet des Dessins, Paris, Réunion
des Musées Nationaux, 1988; Pascal Grienes, L'Usage muséographique des passions
79. Musée, 1810, p. 79. sous le Directoire et l'Empire", in Revue d'Esthétique, vol. 40, 2001, p. 98-103.

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publicado por Lenoir, têm no mínimo a vantagem de mostrar, com do triângulo homem-corpo-imagem do qual Hans Belting propôs uma
toda a clareza possível, o que não deve ser, de modo algum, arte e, leitura antropológica e que, no caso concreto, vai da divisa e do retrato ao
em particular, escultura; e seria bastante difícil fazer uma ideia, sem cadáver esculpido, à "múmia" desenhada ou narrada de acordo com as exu-
dispor da prova à sua frente, das possibilidades da imaginação humana mações da abadia de Saint-Denis; aliás, Lenoir afirmou ter sido testemunha
— capaz, inclusive, de avançar tão longe no equívoco —, conduzindo dessa operação. Nesse museu, triunfavam, em suma, todas as formas de
um grande número de artistas franceses a esculpir cadáveres escru- representação que se inspiram da máscara em que a morte garante a imagem.
pulosamente imitados, vestidos ou até mesmo nus, estendidos em Os historiadores da geração seguinte demonstraram, em compen-
suas urnas, ou então as senhoras e os homens que podemos ver neste sação, como as imagens podem induzir em erro todo aquele que vier a
84
museu, com uma indumentária moderna, ajoelhados aqui ou ali.." depositar nelas uma confiança demasiado literal: a estátua não repre-
De fato, a abordagem do museu estava focalizada na semelhança senta fielmente o cadáver, objeta Michelet, porque ela é, por si só, uma
das efígies mortuárias e das estátuas que fazem o efeito de simulacros figura que deve ser entendida em conformidade com uma gramática
dos corpos defuntos." Eis o que é testemunhado pelas descrições de Lenoir das representaçóes.90 Contrariamente aos aprofundamentos dedicados
a respeito das personagens de acordo com suas estátuas: por exemplo, a por Lenoir à iconografia parisiense a respeito do primeiro bispo dessa
de Du Guesclin, "de pequena estatura, mas compacto; ombros amplos, cidade, são Dionísio [saint Denis], que o conduziam a "negar sua
braços repletos de nervuras; pequenos olhos, mas vivos e fogosos; nariz existência", arguindo da "semelhança que existe entre a alegoria antiga
curto e avantajado, além de lábios espessos"." Os desenhos de Saint- de Baco e a lenda de nosso são Dionísio" — "a tal ponto que, para a
Denis — que Lenoir não deixa de mostrar aos visitantes de prestígio - cabeça deste santo, há também um culto particular semelhante ao que
duplicavam o interesse, nunca desmentido, pelo corpo, cabelos, barba era praticado pelos antigos em relação à cabeça de Baco" —, Michelet
[...] das "múmias"." Tais dissertações aprofundadas tinham a ver com tirava a conclusão de que "Hilduíno apresenta, talvez, aqui uma his-
um gosto da época", testemunhado por um grande número de percursos tória popular sugerida, sem dúvida, pela observação das estátuas que
turísticos que, além do depósito dos Petits-Augustins, incluíam a visita representavam o martírio de são Dionísio: em todas elas, o santo car-
das Catacumbas, do Necrotério, da cripta do Panthéon, e até mesmo rega a cabeça nas mãos; ora, tal representação indicava simplesmente a
uma peregrinação aos lugares dos eventos ocorridos, em Paris, durante os degolação. É provável que a visão de semelhante estátua terá fornecido
períodos de Terror." Desse modo, o museu fornecia um excelente exemplo a Hilduíno o fundo de sua lenda e que, sem procurar a coisa significada
sob o signo, ele terá apresentado como um fato autêntico o que lhe
84. Friedrich Schlegel, Descriptions de tableaux, Paris: ENSBA, 2001, p. 182. era mostrado por essa representação figurada". Com a ruptura entre
85. Hans Belting, Pour une Anthropologie des images , Paris: Gallimard, 2004. o signo e o significado, abria-se a possibilidade de uma leitura crítica
86. A personagem de Du Guesclin é bastante popular: desde o Salon de 1777 (Brenet, das imagens, em sua profundidade histórica.
Durameau) até o de 1806 (Vafflard), o herói foi objeto de importantes telas, gravu-
ras, etc. Cf. Marc Sandoz, Nicolas-Guy Brenet (1728-1792), Paris: Éditart-Quatre
Chemins, 1979. os filhos. Além disso, na década de 1820, os restos do depósito dos Petits-Augustins
87. Cf. o testemunho de James Forbes, que, no decorrer de suas numerosas visitas ao serão associados aos do cemitério de Père-Lachaise e das Catacumbas; cf. Henry A.
museu, acabou por travar amizade com a família Lenoir (Letters from France Written Ogle (org.), Paris in 18Ie4 or a Tour in France, Tyne, New Castle-on-Tyne, 1909, p.
in the Years 1803 and 1804, Londres: J. White, 1806, 2 vols., I, p. 404). 60. Desde 1791, o arquiteto Vaudoyer previa que o Panthéon seria visitado somente
88. Sobre as escavações da época, cf. Annette Laming-Emperaire, Originer de l'archéologie pelos estrangeiros; cf. Marc K. Deming, "Le Panthéon révolutionnaire", in Le Panthéon
préhistorique en France, Paris: Picard, 1964, p. 91-122. Symbole des Révolutions, Paris: Picard, 1989, p. 147 (Catálogo da exposição).
89. William Roots representa os fantasmas entre os túmulos do Panthéon para divertir 90. J. Michelet, Cours au Collège de France, op. cit., p. 110.

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4

O TRABALHO DO LUTO

Em Ie830, os passantes ainda podiam vero Torniquete pin-


tado na tabuleta de um comércio de vinhos; no entanto,
mais tarde, a casa foi demolida. [ ...]construçõe Infelizmente! As
antigas de Paris desaparecem com urna rapi-
dez assustadora. Em diferentes trechos desta obra, algumas
ainda estão de pé: seja o tipo de moradia da Idade Média,
tal como a casa descrita no começo de Chat-qui-pelote e
da qual ainda subristem um ou dois modelor; seja a casa
habitada pelo juiz Popinot, na rue du Fouarre, espécime
da velha burguesia; aqui, os vestígios da casa de Fulbert;•
ali, toda a bacia do rio Sena, durante o reinado de Carlos
IX Como novo Old Mortality — romance em que o idoso
de Walter Scott reanimava os túmulor — por que motivo
o historiador da sociedade francesa não salvaguardaria
essas curioras expressões do passado?
Balzac, Scènes de la vie parisienne: Splendeurs et
misères des courtisanes, 4: Les Petits Bourgeois, cap. 1,
"Le Paris qui s'en va", 1843.

A narrativa de Augustin Thierry, que relatava sua descoberta, no


início de 1820, da grande coleção dos historiadores originais da França
e das Gálias (a de Dom Bouquet, 1738-1767), é emblemática do des-
pertar de uma vocação para a leitura de antigos trabalhos beneditinos
que, havia sessenta anos, tinham sido votados ao esquecimento. Mesmo
que ela tenha sido encenada, posteriormente, tal enxerto do historia-
dor no antiquário era marcado pela emoção de um desapossamento e
pela vontade de restituição: "À medida que eu avançava nessa leitura",
lê-se no prefácio de Dix Ans d'études historiques, "a viva impressão do
prazer que me causava a descrição contemporânea dos homens e das
coisas de nossa história antiga foi seguida por um surdo movimento
de cólera contra os escritores modernos que, longe de reproduzirem
fielmente esse espetáculo, haviam disfarçado os fatos, desnaturalizado
os caracteres..."
Se a constatação parece óbvia, a elaboração de uma nova relação de
fidelidade com o passado exige, todavia, relações inéditas entre visível

157
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO

e invisível.' O projeto de história nova tem dificuldade para desligar- paixão histórica, eu conseguia enxergar mais longe e de forma mais
se de um gênero retórico convencional, da influência de antiquários nítida."3 Ao olhar instruído, o monumento ou as ruínas oferecem
grudados aos detalhes, enfim, de uma exigência de pitoresco pronto o livro aberto da história. Uma espécie de imediatidade da leitura,
a aceitar citações em francês antigo para fornecer a "fisionomia do resultado de longos esforços preliminares, culminava em uma "his-
tempo" aos leitores. Daí em diante, o desafio do historiador consistia tória que se absorve pelos olhos'', segundo a esplêndida fórmula de
em "descrever os homens de outrora com a fisionomia do tempo em Michelet.
que eles tinham vivido, mas ele próprio falando a linguagem de (seu) Com efeito, Thierry adotou plenamente a convicção de que os mo-
tempo". E o depoimento de Thierry prossegue: "Nesta tentativa de numentos são os historiadores das respectivas nações. "Para o verdadeiro
conciliação entre métodos tão diversos, eu ficava incessantemente filósofo, as Artes são os historiadores populares de um grande número de
hesitante entre dois obstáculos. Eu caminhava entre dois perigos: o fatos, opiniões e tradições que compõem a existência moral das nações.
de atribuir demasiada importância à regularidade clássica, perdendo A influência dos monumentos sobre o espírito, a memória e o entendi-
assim a força da cor local e da verdade pitoresca; e o outro, ainda mento procede, frequentemente, não tanto de sua própria perfeição, mas
mais grave, de obstruir minha narração com uma infinidade de fatos de sua ancianidade, da autenticidade de seu uso e de sua publicidade.
insignificantes, talvez poéticos, mas incoerentes e desprovidos de se- Esses livros originais, sempre abertos à curiosidade pública, levam sua
riedade e até mesmo de significação para um leitor do século XIX."' instrução para fora, comunicando-a sem reservas ao sentimento que os
Após uma pesquisa obstinada, Thierry — um dos primeiros historia- consulta sem esforço."5
dores a trabalhar a partir de fontes originais — teve graves problemas Para adquirir seu pleno valor, essa afirmação deve superar, em primeiro
de vista. Entretanto, essa nova obscuridade ou, antes, essa cegueira lugar, a ruptura revolucionária. As polêmicas da década de 1830 sobre a
do historiador diante dos textos, deixou-lhe (somente durante um pertinência de uma conservação dos monumentos inscreviam-se neste
instante) a possibilidade de ler os monumentos graças a uma espécie contexto: preservar os castelos e as igrejas era reconhecer seus valores tradi-
de talento multiplicado. No decorrer de uma viagem na Provence, cionais, negando de facto aos compradores a plena capacidade para servir-se
em 1825 — na companhia do historiador, linguista, crítico e erudito ou usufruir desses monumentos. Eis o que era afirmado explicitamente
Ch.-Cl. Fauriel —, ele escreveu: "Eu dispunha de uma visão apenas por Victor Hugo: "Quaisquer que sejam os direitos da propriedade, a
suficiente para olhar à minha frente, mas na presença dos edifícios ou destruição de um edifício histórico e monumental não deve ser permitida
das ruínas, cuja época deveria ser reconhecida e cujo estilo deveria ser a esses ignóbeis especuladores [...], tão imbecis que eles nem compreen-
determinado, não sei que tipo de sentido interno vinha prestar ajuda dem que são bárbaros."6 Inversamente, o panfletário e erudito, Paul-Louis
aos meus olhos. Animado pelo que eu designaria, de bom grado, por Courier desejava o desmantelamento do parque de Chambord pela bande

1. Sobre o historiador, cf. Lionel Gossman, "Augustin Thierry and Liberal Historio-
graphy", in Between History and Literature, Cambridge: Harvard University, 1990, 3. Ibidem: "Cego, sofrendo sem esperança e quase sem tréguas, posso prestar este
testemunho que, feito por mim, não suscitará qualquer suspeita: neste mundo, a
p. 83-151.
dedicação à ciência é preferível às fruições materiais, à fortuna e à própria saúde."
2. Lembremos que a cegueira do cientista é, aqui, o equivalente do imposto do sangue,
4. De acordo com o título do artigo de Pierre Malandain, "L'histoire qui se prend par
porque, neste prefácio a seus "dez anos de estudos históricos", datado de 10 de novembro
les yeux...': Michelet et Rubens", in Annales ESC, n. 29, 1974, 2, p. 349 ss.
de 1834, Thierry afirmava o seguinte: "Se, como tenho prazer em acreditar, o interesse
pela ciência encontra-se entre os grandes interesses nacionais, dei ao meu país tudo o 5. Augustin Thierry, op. cit., p. 47.
que lhe dá o soldado mutilado no campo de batalha." (Augustin Thierry, Lettres sur 6. Victor Hugo, OEuvres complètes, I: Philosophie, 1819-1834; Eugène Renduel (org.),
l'histoire de France: Dix Ans d'études historiques, Paris: Garnier frères, 1866, p. 310.) Littérature et philosophie mêlées , mar. 1834, p. 73.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO

noire 7 para revender os terrenos aos camponeses. "Os monumentos


conservam-se nos lugares, tais como Balbek, Palmira e sob as cinzas do
Vesúvio, em que os homens pereceram; mas, alhures, ao renovar tudo, a Uma consciência literária
indústria declara-lhes uma guerra sem tréguas [...] . O que aconteceria
com o mundo se cada época respeitasse, reverenciasse e consagrasse, A eficácia da literatura na patrimonialização é bem conhecida. Desde
por critério de ancianidade, todas as obras dos tempos passados, sem a origem, a literatura artística identificou-se com a erudição religiosa e
ter a ousadia de tocar, destruir ou remover seja lá o que for? [...] Será cívica, associada à glória de sua localidade e preocupada em justificar sua
pelas lembranças que esses castelos e esses claustros góticos são res- preeminência em relação com a reputação de outras cidades e regiões.'
peitáveis? À nossa volta, que ideia pode ser feita de monumentos tais < Mais tarde, a literatura foi um "ator do surgimento da sensibilidade ao
como Chenonceau, Le Plessis-lês-Tours, Blois, Amboise, Marmoutiers? patrimônio", segundo a fórmula de Jacques le Goff:10 Desse ponto de
Evocação de vergonhosas devassidões, infamantes traições, assassinatos, vista, sua análise deveria considerar a evolução de alguns gêneros -
massacres, suplícios, torturas, execráveis crimes, luxo e luxúria, além da tais como o pitoresco — e, de forma mais abrangente, as vicissitudes
crassa ignorância de párocos e monges, para não falar do que ainda é da posição e do papel do escritor na sociedade. Constatação tanto
pior: a hipocrisia. Deus disse: 'Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei mais verdadeira que a emergência, no âmago da sociedade francesa, de
a terra', ou seja, cultivai a terra com esmero — com efeito, sem esse um depósito de valores específicos, tal como o "patrimônio", é con-
cuidado, como será possível povoá-la? E compartilhai a terra — mas temporânea da aparição de um novo poder espiritual laico, ou seja, o
sem essa partilha, como será possível cultivá-la? Ora, a bande noire do escritor. Assim, seria possível explicar que, na França, a história do
empenha-se, precisamente, a proceder a essa partilha de comum acordo, patrimônio tenha sido profundamente alimentada pela literatura, sem
amistosamente, sem disputas, o que é, afinal de contas, uma boa e santa que a eminência da sacralidade literária tenha sido, algum dia, ameaçada
obra. Esses destruidores de terras trazem um grande benefício para a pelo predomínio das belas-artes.
terra, dividem o trabalho, ajudam na produção e, na execução de tais Nessa elaboração complexa, os decênios de 1820-1840 são certa-
ações, sua contribuição para a indústria e para a agricultura é supe- mente centrais, ao construírem, por exemplo, a imagem de Victor Hugo
rior a tudo o que possa ter sido empreendido por qualquer ministro, como poeta dos monumentos históricos — uma reputação fielmente su-
administrador regional ou agência de fomento sob a proteção desse blinhada, em seguida, pela história da arte. Na importante obra Histoire
administrador."8 Nesse sentido, o verdadeiro romance do monumento de l'art depuis les premiers temps chrétiens jusqu'à nos jours, organizada
histórico desses anos era Les Paysans de Balzac, e não tanto Notre-Dame por André Michel, em 1925, Victor Hugo aparece no início do tomo
de Paris. Balzac e Victor Hugo vituperavam os novos compradores, VIII, dedicado à arquitetura na França: de acordo com o comentário,
burgueses usurários que revendiam as grandes propriedades em lotes Hugo — posicionado entre o barão Taylor", os historiadores, Augustin
aos camponeses, enquanto P.-L. Courier e o Michelet de Le Peuple Thierry e François Guizot, por um lado, e, por outro, Chateaubriand
defendiam a regeneração do mundo rural pela pequena propriedade
em decorrência da liquidação dos grandes domínios da aristocracia.
9. Cf. G. Previtali, Le Goût des primitifs, Paris: Gerard Monfort, 1994.
7. Literalmente, "bando negro". Na época, tais grupos obstinavam-se a pilhar as grandes 10. Jacques Le Goff, apud P. Nora, Science et conscience du patrimoine, Paris: Fayard,
propriedades. [N.T.] 1998, p. 121.
8. P.-L. Courier, V' lettre au rédacteur du Censeur, [enviada de] Véretz, em 12 de no- 11. Cf. Françoise Choay, A alegoria do patrimônio, 3." ed., São Paulo: Unesp/Estação
vembro de 1819, in Lettres au redacteur du Censeur, Paris: Comte, 1820. Liberdade, 2006, p. 146, nota 50. [N.T.]

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ou Montalembert 12 —, no prefácio de 1831 de Notre-Dame de Paris, nos resta dos admiráveis monumentos da Idade Média em que ficou
escreveu "um hino à arquitetura gótica". O poeta passava por ser o meio- impregnada a antiga glória nacional; eles associam a memória dos
termo, se é que podemos nos exprimir assim, entre o campo católico e reis à tradição do povo. [...] Em um edifício, existem dois aspectos:
legitimista e o campo liberal; entre os historiadores ou os arqueólogos seu uso e sua beleza; o primeiro pertence ao proprietário, enquanto
e os letrados. Assim, em suas obras, o escritor romântico sancionava sua beleza cabe de direito a todo o mundo; portanto, ao destruí-lo,
a emergência de novas curiosidades, vulgarizava os conhecimentos desconsidera-se tal direito.""
eruditos, exercia influência sobre os interesses de ordem científica e, O contraste entre Diderot e Victor Hugo é instrutivo em vários as-
finalmente, contribuía para o repertório das fontes da história." pectos: começando pela diferença dos objetos, já que se trata de quadro
Basta comparar a geração literária anterior a 1789 com aquela pos- de ruínas no primeiro caso, enquanto no segundo de ruínas bem reais.
terior a essa data para mostrar a novidade patrimonial do século XIX. Certamente, o circuito entre a fabrique representada em pintura e a
Eis um dos textos mais famosos que, no Salon de 1767, Diderot dedicou fabrique real, ou seja, aquela que é erguida pelos jardineiros, marcou
aos vestígios do passado: "Oh, as belas, as sublimes ruínas! [...] Quanto a segunda metade do século XVIII, como vimos mais acima; assim,
efeito! Quanta grandiosidade! Quanta nobreza! Digam-me quem é seu nesta transferência das ruínas, somos tentados a ver um processo no
proprietário a fim de que eu possa sutilizá-las, ou seja, o único recurso mínimo idêntico. Victor Hugo, porém, lançava um apelo para reparar
que resta a um indigente para se apropriar de algo. Infelizmente, talvez, essas ruínas e interromper essa degradação, em nome do respeito pelo
elas nem deem qualquer felicidade a seu rico e estúpido dono; eu, pelo monumento original; nada disso, com toda a evidência, em Diderot,
contrário, seria tão feliz em possuí-las! Proprietário indolente, esposo para quem o desmantelamento era respeitável por ser digno de interesse
obcecado! Será que te prejudico ao apropriar-me dos encantos que em si mesmo, além de pretexto a um desenvolvimento filosófico. Esse
ignoras ou menosprezas?" 14 é o sentido de outro trecho do Salon de 1767: "As ruínas despertam
Eis, por contraste, um dos trechos mais citados de Victor Hugo: em mim grandes ideias. Tudo se aniquila, tudo desaparece, tudo passa.
"Se esta situação se mantiver durante algum tempo, em breve, o único Apenas o mundo subsiste. Apenas o tempo perdura. Como este mundo
monumento nacional que vai sobrar à França será a obra Voyages pitto- é velho! Faço meu caminho entre duas eternidades. Ao observar, de
resques et romantiques dans l'ancienne France, em que o lápis de Taylor qualquer ponto, os objetos à minha volta, eles me anunciam um fim
e a pluma de Charles Nodier rivalizam em graciosidade, imaginação e e me resignam ao fim que me espera.16
poesia. [...] Chegou a hora de impedir que seja quem for se mantenha A diferença é, também, impressionante em relação à atenção pres-
em silêncio. Impõe-se que um grito universal convoque, finalmente, a tada à propriedade e aos proprietários: Diderot dava testemunho de um
nova França a prestar socorro à antiga. Todos os gêneros de profanação, tom de época naturalmente hostil à posse privada de objetos, seja por
degradação e estragos têm ameaçado, simultaneamente, o pouco que gosto ou por cultura. A equivalência entre propriedade e esterilidade

12. Charles Forbes, conde de Montalembert (1810-1870), escritor, político e polemista


francês. Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 134. [N.T.] 15. V. Hugo, Guerre aux démolisseurs, versão de 1825, nova edição de Patrice Béghain,
Guerre aux démolisseurs! Hugo, Proust, Barrès: Un Combat pour le patrimoine, Paris:
13. Jean Mallion, Victor Hugo et l'art architectural, Grenoble: Imprimerie Allier, 1962. Paroles d'Aube, 1997, p. 45-47.
De forma mais abrangente, cf. as reflexões de Jacques Le Goff, Histoire et mémoire,
Paris: Gallimard, 1977, e seu prefácio para o livro de Marc Bloch, Apologie pour 16. Salon de 1767, XI, op. cit., p. 170. Mais tarde, Alois Riegl (cf. cap. 5) designará por
valor de ancianidade o que o século XVIII havia qualificado, naturalmente, como
l'histoire ou Métier d'historien, Paris: A. Collin, 1997.
espetáculo sublime: eis porque ambos estão afastados, por razões diversas, da definição
14. Salon de 1767, XI, apud Diderot sur L'art, Paris: Hermann, 1978, p. 170. canônica do monumento histórico.

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ou, no mínimo, tédio, era comum em numerosas críticas das Luzes: O novo aspecto da situação traduzia-se, finalmente, pelo apelo
essa é, aliás, a lição de Candide quando, na companhia de Martin, o ao espaço público: enquanto Diderot dirigia-se à Europa das Luzes
herói chega a Veneza para visitar o grande senador Pococurante no por via da correspondência de Grimm, Victor Hugo tinha a intenção
palácio de La Brenta e usufruir das obras de Rafael, da música e de empreender uma verdadeira campanha de opinião, assim como
dos livros desse faustoso personagem. No entanto, esse bibliófilo que, é manifestado pelo título de seu artigo. Ele reivindicava, por isso
tendo lido todos os livros, os desdenhava, será verdadeiramente um mesmo, o status de porta-voz que, em caso de necessidade, podia ser
homem superior? Do mesmo modo, contra os proprietários enfarados requisitado por seu campo. "Oh Hugo! Empresta-me tua indignação
com suas posses, Rousseau defendia, em Émile, o despojamento do ama- inflamada", escreve, com humor, Mérimée a Ludovic Vitet ao narrar-
dor: "Eu teria renunciado a uma galeria e a uma biblioteca, sobretudo, -lhe as atrocidades cometidas na abadia de Saint-Savin — o mais im-
se eu apreciasse a leitura e tivesse um conhecimento aprofundado de portante conjunto de pinturas murais de estilo românico conservado
pintura." No final do século, o Dictionnaire des beaux-arts de Watelet- na França.'° O monumento histórico tornava-se um programa de
20
Levesque fornecia a vulgata dessa desconfiança em relação aos fazedores escrita e ao mesmo tempo um objeto de apropriação pelo escritor.
de gabinetes, deplorando a confiscação de sua fruição entre as mãos de Em segundo plano, surgiam as especulações filosóficas sobre as ruínas
ignorantes ou presunçosos, além de reclamar sua abertura ao público. marcadas pela temática do sublime, em primeiro lugar, e em seguida
Victor Hugo é tributário, de algum modo, das condenações banais pela literatura artística; a mutação do pitoresco era seu elemento es-
do filistinismo: mas o "roubo" evocado por Diderot havia deixado de sencial, que culminou em Ballades de 1826 e em Orientales de 1829,
ser atual porque, após 1789, desaparecera certa ingenuidade intelectual. livros que indicavam a introdução da cor exótica e, depois, medieval
A socialização reivindicada daí em diante foi marcada pela experiência na poesia francesa.
das reviravoltas introduzidas pelas novas noções de nacionalização e A glória de Victor Hugo devia-se ao fato de ter reconhecido ao novo
de vandalismo. Assim, Chateaubriand havia estabelecido a distinção patrimônio francês — ou seja, a arte da Idade Média, com a qual ele se
entre os estragos do tempo e a decadência dos homens para condenar, identificava inteiramente — uma modernidade e uma atualidade que,
de forma mais argumentada, "a criminalidade histórica", se undo a posteriormente, nenhum outro artista foi capaz de lhe conferir em tal
expressão de Francesco Orlando ao falar dos monumentos.18 O apelo grau, nem dessa forma.21 Com os versos sobre o Arco de Triunfo de
ao interesse geral para legitimar eventuais expropriações figurava, por 1837, as igrejas góticas deixaram de ser as únicas a confundir-se com
conseguinte, entre as novidades da intervenção hugoliana: "Quando, a natureza no âmago de civilizações soterradas. Por sua vez, o poema
cotidianamente, o interesse geral faz ouvir sua voz, a lei impõe o "Passé" de 1835, do livro Les Voix intérieures, é dedicado a determi-
silêncio aos uivos do interesse privado. A propriedade particular foi, nado "grande castelo do tempo de Luís XIII", o que correspondia a
frequentemente, e continua sendo, em todos os momentos, modificada uma moda da época de Luís Filipe (período da Monarquia de Julho,
no sentido da comunidade social. Compra-se, à força, um terreno para 1830-1848), ilustrada no mesmo momento pelos escritores, Théophile
transformá-lo em uma praça; uma casa, para se tornar um hospício.
Um dia, o monumento privado será comprado." 19. Poitiers, em 15 de julho de 1840, in Maurice Parturier (org.), Lemes de Mérimée à
Ludovic Vitet, Paris: Plon, 1934, p. 14.
20. Cf. Ségolène Le Men, La Cathédrale illustrée de Hugo à Monet, Paris: CNRS, 1998,
17. Rousseau, Émile , Livro IV, Paris: Garnier-Flammarion, 1990, p. 455. "La cathédrale et le sacre de l'auteur", p. 24-25.
18. Francesco Orlando, Gli oggetti desueti nelle immagini della letteratura, Turim: Einaudi, 21. Nicole Savy e Guy Rosa (orgs.), L'OEil de Victor Hugo, Paris: Cendres/Musée d'Orsay,
1993, p. 306. 2004 (Atas do Colóquio, 19 a 21 de setembro de 2002, Paris, Musée d'Orsay).

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Gauthier e Gérard de Nerval.22 Em compensação, o Renascimento um pequeno grupo pioneiro do qual ele não faz parte, assim como
continuava sendo estigmatizado; além disso, Montalembert, na carta de organismos instalados por sua iniciativa sem que ele tivesse assumido
enviada a Victor Hugo, publicada na Revue des Deux-Mondes de 1º de qualquer função direta. Assim, Antonin Proust evocaria, em 1887,
março de 1833, criticava essa primeira modernidade para enaltecer apenas cinco antecessores: Alexandre Lenoir, talvez, na época, no auge
ainda mais a arte religiosa da Idade Média." de sua reputação; os indispensáveis gênios da causa, Chateaubriand e
Victor Hugo inaugurou a figura do escritor que inventa o patrimô- Victor Hugo; por último, Augustin Thierry e Prosper Mérimée. Destes
nio, porta-voz dos monumentos, em relação com uma religião estética dois últimos personagens, o primeiro havia fornecido a legitimidade
que se erguia vigorosamente contra o prosaísmo burguês e contra todas científica do empreendimento: "Nestes livros (de pedra), encontra-se o
as formas de destruição da beleza. No entanto, a ideia de um patrimônio que Augustin de Thierry designa por alma da história: e aprendemos a
assumia, nesse contexto, a forma de uma moldura, de uma encaderna- lê-los por ele e pelos grandes fundadores da escola histórica do século
ção — ainda de acordo com a afirmação de Victor Hugo — destinada XIX." Por sua vez, o segundo foi considerado o fundador da adminis-
a valorizar a história. Ao participar da inauguração, em 10 de junho tração ao propor, após a Revolução de Fevereiro", "a reunião de todos
de 1837, do museu de todas as glórias da França, seu olhar dava a os serviços que têm a ver com as artes"26.
i mpressão de atravessar o castelo para considerar, de saída, os anais do Este eclipse de Guizot não foi o resultado exclusivo da condenação
país: "Ao livro magnífico, cujo título é a história da França, conferiu-se do político; sua reputação de "conservador" padecia de um descrédito
a magnificente encadernação que é designada por Versalhes"." Assim, associado à sua insuficiente "francidade", por ser visto, na época, como
Versalhes ilustrava como o patrimônio é "enquadramento" da história: discípulo do estadista prussiano Friedrich Ancillon e admirador do
nesse sentido, conservar os monumentos consiste não tanto em con- historiador britânico E. Gibbon. Ele não confessava o entusiasmo
servar a história — que será lida sempre pelos historiadores —, mas patriótico julgado apropriado — com o gosto romântico pela Idade
homenageá-la ao preservar sua moldura. Média — ao compromisso patrimonial. A altivez afetada de seu livro
Cours d'histoire moderne manifestava uma carência afetiva, assim como
aconteceu com um de seus projetos — abrir, em Versalhes, um museu
Os desafios a enfrentar por uma geração do "Ideólogo" —, que o senso político do soberano transformou em
espetáculo propício a influenciar a opinião pública, à semelhança — de
No âmago da genealogia oficial do "culto moderno aos monumentos", acordo com a expressão forjada pelo historiador norte-americano dos
27
Guizot parece ter sido vítima de um esquecimento, em benefício de usos da história Stanley Mellon — da "filosofia da magnanimidade".

22. V. Hugo, OEuvres poétiques, Paris: Gallimard/La Pléiade, I, p. 970-971. Cf. ainda 25. Segunda revolução francesa do século XIX, que se desenrolou em Paris de 23 a 25 de
"La Statue" (1837), in OEuvres poétiques — Les Rayons et les Ombres, p. 1105-1108. fevereiro de 1848. Ao imporem a abdicação do rei Luís Filipe, os revolucionários, apoia-
Sobre esse tema, cf. os comentários de Francesco Orlando, op. cit., p. 313. dos pelos liberais e republicanos, criaram a Segunda República (1848-1852). [N.T.]
23. Paul Bénichou, Les Mages romantiques, Paris: Gallimard, 1989, p. 194. 26. Antonin, Rapport fait au nom de la Commission chargée d'examiner le projet de loi...,
24. V. Hugo, Choses voes, 1830-Ie846, Paris: Gallimard, 1972, p. 153-154. Eis seu co- Paris, 1887, Chambre des Députés, n. 1501; e Recueil de Pièces relatives à la conser-
mentário: "Aprovo o que o rei Luís Filipe fez em Versalhes. A realização dessa obra vation der monuments (coletânea de obras diversas), Paris: Bibliothèque Nationale,
demonstra que ele foi grande como rei e imparcial como filósofo; que transformou 1849-1888, 18 peças, fol. L 212, 212, peça n. 13.
um monumento monárquico em um monumento nacional; que conferiu uma ideia 27. Um "grande museu etnográfico no qual seriam depositados os monumentos e os
imensa ao passado, tendo colocado 1789 diante de 1688, o imperador no lugar do vestígios dos costumes, usos, vida civil e na guerra, em primeiro lugar, da França e
rei, Napoleão no lugar de Luís XIV." também de todas as nações do mundo" (F. Guizot, Mémoires pour servir à l'histoire de

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO

A fórmula de Michelet — em sua dedicatória ao inspirador da república dos Deputados; de acordo com determinada tradição, tais medidas
laica, E. Quinet, que serve de prefácio ao livro Le Peuple — era, neste caso, eram consideradas como um plano maquiavélico para enfraquecer a
reveladora: a Guizot, ele atribuía a análise, enquanto Thierry encarnava a classe intelectual. Atualmente, para alguns pesquisadores, a questão do
narração, e ele próprio a ressurreição. do
patrimônio em Guizot tornou-se "a vertente oposta da farsa nacional
No entanto, ao refletir o descrédito generalizado que afetou o 'enriqueçam'"29; ela seria a "herança fictícia dos deserdados", o "álibi
ministro de forma duradoura, sua exclusão não deixava de dar tes- econômico à propriedade privada". A tal ponto que a denúncia dessa
temunho de um postulado de unanimidade nacional em matéria de particular "conivência entre o capitalismo e o patrimônio"" forneceu
patrimônio: parecia indecente que a iniciativa e a responsabilidade a derradeira condenação do regime. Para a ideologia oposta — que
pela proteção dos monumentos fossem atribuídas a um estadista. Em identificava o burguês conquistador com o precursor da decadência
compensação, a evocação de uma responsabilidade coletiva — o voto — Guizot passava por ser, ao contrário, o primeiro gestor do declínio
das Assembleias Revolucionárias ou a reivindicação dos espíritos cultos espiritual do Ocidente?'
sob a Restauração (1814-1830) — permitia sugerir uma tomada de Para além de tais processos peremptórios, as análises da obra
consciência, pela comunidade nacional, de seu passado. "patrimonial" de Guizot interessaram-se, sobretudo, pelo projeto
O discurso patrimonial empenhava-se, de maneira geral, a esboçar de 1833, que advogava uma "publicação geral de todos os materiais
as etapas de uma dedicação — desde a coragem demonstrada no com- i mportantes, e ainda inéditos, sobre a história da nossa pátria", assim
bate contra os vândalos até a abnegação do cientista — e limitava-se como pela fundação da Sociedade da História da França e pelo Comitê
a atribuir um interesse de erudição à criação de uma administração. dos Trabalhos Históricos. Aliás, ninguém contesta a importância desse
Neste caso, a evocação de Guizot servia apenas para negar-lhe, de legado; sobretudo, "essa instituição historiográfica é o aspecto que,
forma mais nítida, qualquer originalidade, até mesmo qualquer res- acima de qualquer outro, mostra a indissociabilidade dos vínculos
32
ponsabilidade efetiva: ele passava por ser o intérprete, com toda a entre o estadista e o historiador". Assim, a iniciativa arqueológica foi
certeza experiente, de um progresso da opinião pública associado ao relegada para uma quase obscuridade em relação ao trabalho arquivís-
novo espírito das artes e da história; seu grande mérito consistiu em ter tico; acertadamente, se levarmos em consideração que, nessa matéria,
conseguido aplicar-lhe a conveniente sanção governamental. Tal inter- o interesse de Guizot parece ser, em uma primeira abordagem, singu-
pretação adotava grandemente a filosofia dos próprios doutrinários.28 larmente menos notável. Todavia, o deslocamento da curiosidade para
Em compensação, a história política clássica da Monarquia de um episódio, mencionado superficialmente, da carreira política e da
Julho assimilava frequentemente sua ação patrimonial a um artifício reflexão sobre a história do "senhor Guizot" pode revelar-se fecundo:
destinado a desviar as energias da crítica e do combate contra a Câmara
29. Pierre-Marc de Biasi, "Système et déviances de la collection à l'époque romantique",
mon temps, 8 vols., Paris, 1858-1867, t. II, p. 69). Charles-Henri Pouthas havia subli- in Romantisme, n. 27, 1980, p. 77-93.
, Paris-Lyon: J. Vrin,
nhado bastante o vínculo entre os Ideõlogos e Guizot em Guizot pendant la révolution, 30. Bernard Deloche, Museologica: Contradictions et logique du musée
Paris: Plon, 1923; e em La jeunesse de Guizot, Paris: Alcan, 1936. Cf. ainda Stanley 1985.
Mellon, The Political Uses of History : A Study of Historians in the French Restoration, Les
31. De acordo com a afirmação do narrador de Jacques Laurent em seu romance
Stanford: Stanford University Press, 1958; e, neste caso, "The July Monarchy and the Sous-Ensembles flous , Paris: Grasset, 1981, p. 44.
Napoleonic Myth", in Yale French Studies, vol. 26, 1960, p. 70-78.
32. Charles-Olivier Carbonell, "Guizot, homme d'État, et le mouvement historiographi-
28. No original, Doctrinnaires, denominação atribuída, sob a Restauração, ao pequeno que français du XIX' siècle", in Actes du Colloque François Guizot, Paris: Société de
grupo de monarquistas franceses que esperavam reconciliar a monarquia com a I'Histoire du Protestantisme Français, 1976, p. 221 (Atas do colóquio, Paris, 22-25
Revolução, assim como a autoridade com a liberdade. [N.T.] de outubro de 1974).

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a contrapelo de uma comemoração do primeiro artesão do patrimô- arrasta atrás de si. Agora, a história é uma enciclopédia; tudo tem de
nio, trata-se de reconhecer, neste livro, a unidade de um projeto que ser incluído no seu domínio, desde a astronomia até a química; desde
inspirou as medidas adotadas e os discursos proferidos, sem reduzi-lo, a arte do financista até a arte do manufatureiro; desde o conhecimento
imediatamente, à preocupação política. do pintor, escultor e arquiteto até a ciência do economista; desde o
A Restauração foi, por excelência, o período em que, de acordo com estudo das leis eclesiásticas, civis e criminais, assim como políticas.
a constatação de Chateaubriand no prefácio de Études historiques de Na sua tentativa para descrever uma cena de costumes e de paixões,
1831, "tudo — polêmica, teatro, romance, poesia — assume a forma da o historiador moderno vai atribuir o maior destaque ao imposto do
história". Tendo chegado à mesma conclusão, Guizot tirou partido dessa sal; e já se reivindica outro imposto; aflui a guerra, a navegação e o
situação favorável para lançar a Collection de mémoires relatifs à l'histoire comércio. Como eram fabricadas, na época, as armas? De onde vinha a
de France (1823), cuja apresentação afirmava o seguinte: "Os monu- madeira para as construções? Quanto valia uma libra de pimenta? Tudo
mentos originais de nossa antiga história foram até aqui o patrimônio se perde se o autor não observou que o ano começava na Páscoa e que
exclusivo dos cientistas; tendo sido mantido a distância, o público só ele lhe havia atribuído a data do 1º de janeiro. A sociedade permane-
teve a oportunidade de conhecer a França e sua vida, dos séculos V ao cerá desconhecida se for ignorada a cor da parte superior dos calções
XIII, por intermédio das obras de escritores modernos." Essa moda do rei e o preço de oito onças de prata."34 Enquanto o medievalismo
estendeu-se à custa das outras encarnações do universal. Enquanto as do século XVIII se apoiava no direito público e no estudo das prerro-
publicações francesas de arqueologia nacional suscitavam a admiração gativas régias (através de decretos e leis, área dos feudistas e juristas),
da Europa erudita do século XIX, os estudos sobre a civilização romana o do século XIX enfatizava o Povo e a Nação (essencialmente através
e, em menor medida, sobre a civilização grega foram abandonados a das crônicas, narrativas, poesias e canções populares).
partir de 1815. Mais tarde, Camille Jullian poderá escrever que "a Res- As razões dessa postura foram perfeitamente resumidas em
tauração é uma das épocas em que, na França, a Antiguidade Romana "L'Enchanteur", prefácio de Études historiques (1831): "Atualmente, ao ler-
foi menos estudada e, aliás, nunca mais conseguimos recuperar o avanço mos nossa história do passado, ficamos mortificados pelo fato de nos sen-
que, então, deixamos escapar para nossos rivais"." tirmos perdidos [...1. Nada foi criado pelos historiadores do século XIX;
A partir da década de 1830, o historiador foi levado a enfatizar ocorre que, à sua frente, eles deparam-se com um novo mundo que lhes
a reunião confusa de conhecimentos que havia sido desdenhada por serve de escala-padrão para avaliar o mundo antigo. Antes da Revolução,
seus predecessores. Essa mutação decisiva inspirou a Chateaubriand os manuscritos eram questionados apenas em relação aos padres, nobres
— observador favorável, embora pouco preocupado em inscrever-se e reis. Pelo contrário, agora, nossa pesquisa interessa-se exclusivamente
nessa corrente — uma célebre constatação: "Nas suas narrativas, os pelo que diz respeito à vida dos povos e às transformações sociais: ora,
analistas da Antiguidade não introduziram, de modo algum, o quadro esse aspecto foi completamente desdenhado pelos documentos oficiais."
dos diferentes ramos da administração: as ciências, as artes, a educação No seu esforço para manter-se acima da corrente das histórias sucessi-
pública eram rejeitadas da área da história; Clio prosseguia com maior vas, Chateaubriand tirou a conclusão de que, "antes da época da Revo-
leveza seu caminho, aliviada do pesado fardo que, atualmente, ela lução, deve-se distinguir duas escolas históricas: a escola do século XVII
e a escola do século XVIII, em que uma é erudita e religiosa, enquanto
33. Camille Jullian, Notes sur l'histoire en France au XIX' siècle, Paris, 1896. Cf. ainda Les
Politiques de l'archéologie du milieu du XIX' siècle à l'orée du XXIe siècle, Atenas: École
française d'Athènes, 2000; e Mélanges de l'École française de Rome: Italie et Méditer- 34. Chateaubriand, Études historiques (1831), prefácio, p. 4-5. Cf. A. Dollinger, Les
ranée, 113/2, "Antiquité, archéologie et construction nationale au XIX siècle", 2001. Études historiques de Chateaubriand, Paris, 1932.

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a outra é crítica e filosófica; na primeira, os beneditinos reuniam os silêncio ao que é falso, culpável ou funesto. [...] O tempo não recebeu
fatos e Bossuet empenhava-se em divulgá-los; na segunda escola, a ímpia missão de sancionar o mal ou o erro; pelo contrário, além de
os Enciclopedistas criticavam os fatos e Voltaire dedicou-se a expô-los desvendá-los, serve-se deles". Desse imperativo absoluto, o século XIX
às disputas entre os letrados. Nossa escola moderna do século XIX manifesta uma consciência bem apurada: "É reduzido, talvez, o número
pode ser designada como a escola política; ela é também filosófica, de pessoas para quem o dever de todos os tempos é a imparcialidade,
mas diferente da escola do século XVIII." a qual, em meu entender, é a vocação de nossa época; mas", acrescenta
Por sua vez, desde o primeiro curso sobre Les Origines du gouverne- ele imediatamente, "em vez da imparcialidade insensível e estéril que
ment représentatif en Europe, Guizot afirmava que "o passado transforma- surge da indiferença, trata-se da imparcialidade enérgica e fecunda,
37
se com o presente": "Tudo se transforma no homem e à sua volta [...], inspirada pelo amor e pela visão da verdade."
o ponto de vista a partir do qual ele considera os fatos, assim como A probidade intelectual da nova história está associada intimamente
suas disposições para proceder a esse exame."" O professor analisava à sua eficácia social. Esse apogeu da inteligência do historiador é, si-
a atividade historiográfica em seu contexto: "Segundo o estado político e multaneamente, o de sua publicidade: ela "deixou de ser o patrimônio
o grau de civilização, os povos consideram a história sob determinado dos eruditos" quando os espíritos "tornaram-se capazes de compreender
aspecto, procurando determinado gênero de interesses nesse estudo."" o homem em todos os graus de civilização" e serviram-se desse saber.
A "primeira época das sociedades" conheceu uma história poética, "nar- Em suma, "sua utilidade deixou de ser, como outrora, uma ideia geral,
rações brilhantes e ingênuas que encantam uma curiosidade ávida e fácil uma espécie de dogma literário e moral, professado de preferência pelos
de satisfazer" — por exemplo, os textos de Heródoto. Em seguida, uma escritores, e não tanto adotado e aplicado pelo público. Agora, trata-se
história filosófica, "série de dissertações sobre a caminhada do gênero de uma necessidade para o cidadão que pretenda tomar parte nos ne-
humano" — de que E. Gibbon e D. Hume deixaram exemplos notáveis gócios de seu país ou somente ter um julgamento criterioso." A tarefa
— correspondeu perfeitamente "ao tempo dos conhecimentos, da riqueza do historiador é, ao mesmo tempo, política e ética.
e do lazer". Por último, uma história "prática", tal como em Tucídides O Cours d'histoire moderne é um Métier d'historien duplicado por
ou Lord Clarendon, forneceu "instruções análogas às necessidades um breviário político, cujo único programa resume-se deste modo:
experimentadas pelas pessoas em sua vida concreta"; ela correspondeu "Descobrir a verdade, realizá-la fora, nos fatos exteriores, em benefício
a "uma vida política animada e intensa". Atualmente, "por uma rara da sociedade; transformá-la, dentro de nós, em crenças capazes de nos
convergência de circunstâncias, todos esses gostos e todas essas necessi- inspirar o desprendimento e a energia moral que são a força e a digni-
38
dades parecem estar reunidas; a história é agora, entre nós, suscetível de dade do homem neste mundo.." Sob esses dois aspectos, o empreen-
todos esses gêneros de interesse". Com efeito, ela dá testemunho de um dimento de conservação assumia, em 1830, uma evidente atualidade;
respeito novo pelo princípio fundamental da civilização, "ideia pree- ele devia estar a serviço da sociedade, levando-a a respeitar a ordem
minente que toma a dianteira e é predominante em toda parte em que sublime da justiça, tanto quanto isso fosse humanamente possível.39
se manifesta o espírito humano: a justiça equitativa, aplicada em escala
universal". O respeito pelo passado, aqui, "não aprova nem impõe o 37. Ibidem, t. I, p. 13.
38. François Guizot, Histoire de la civilisation en France depuis la chute de l'Empire romain
jusqu'en Ie789, 11. ed. Paris, 1869, p. 30 (doravante HCF).
35. François Guizot, Histoire eles origines du gouvernement représentatif en Europe, Paris, 39. Cf. Philippe Raynaud, "Le Libéralisme français à l'épreuve du pouvoir", in Pascal
1855, t. I, 1a lição, p. 2 (doravante HOG). Ory (org.), Nouvelle Histoire des idées politiques, Paris: Hachette, 1987, p. 172, sobre
36. Ibidem, t. II, p. 6-10. a "antropologia pessimista".

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Na sequência dos tumultos do início do século, numerosos monu- forma absoluta".43 Ora, o século XIX francês conheceu, precisamente,
mentos trocaram de mãos; daí em diante, eles dependiam do direito a obsessão de viver os últimos momentos de uma tradição.
exclusivo de proprietários. De forma mais geral, a manutenção e a Aubin-Louis Millin, no verbete "Monumento" de seu Dictionnaire
transmissão dos patrimônios tradicionais estavam ameaçados pela si- des beaux-arts, observava o seguinte: "Nos cinco volumes de minha obra
tuação movimentada da época. Como reconhecer a legitimidade social Antiquités nationales, mandei gravar um grande número de monumentos
e o interesse da civilização sem fazer apelo ao Estado? Paralelamente, a da França setentrional; atualmente, na sua maioria, eles foram destruídos,
fisionomia da verdade histórica estava passando por uma completa mu- mutilados ou desnaturados." A abertura da famosa obra — a já citada
tação. Enquanto ator dessa revolução historiográfica, o próprio Guizot Voyages pittoresques et romantiques dans lAncienne France, de Nodier,
entendia associar a "verdade poética" à "história filosófica como estudo Taylor e Cailleux, cujos volumes foram publicados entre 1820 e 1854 -
da organização geral e progressiva dos fatos".40 Como pensar, de comum exprimia a emoção de uma época: "Os monumentos passam rapidamente
acordo, a história filosófica e o inventário estatístico, além da petição de [...] . A marca deixada pelo tempo nesses vestígios é de tal modo incisiva
princípio de "manter, ao mesmo tempo, o rigor do método científico e que, ao observá-los pela segunda vez, já hesitamos em reconhecê-los; além
o legítimo predomínio da inteligência"? Somente a unidade do ponto disso, nossos croquis, desfigurados pela precipitação dos demolidores,
de vista adotado — o da civilização — permite que o historiador "ensine não passam, atualmente, talvez, do retrato do que deixou de existir"
o passado não apenas à memória, mas à inteligência".42 A conservação (Ancienne Normandie, 1820). Mas, se numerosos autores deploravam o
dos monumentos recebia, assim, sua legitimidade tanto intelectual como declínio do interesse pelos monumentos antigos, tal como ele havia sido
política e social. garantido pela propriedade religiosa ou pela memória dinástica, Guizot
não denunciava os culpados do "vandalismo", nem preconizava, à guisa de
solução, a restauração das memórias extintas, mas pensava o patrimônio
Uma teoria do patrimônio em termos sociológicos de opinião pública. Com efeito, a importância
do passado para o presente é variável. Convém estabelecer uma distinção
Qualquer sociedade exige que sua memória seja bem cuidada. entre "acontecimentos consumados" e "porção imortal da história": se os
Contrariamente à tentação da tabula rasa — "a febre que às vezes atinge primeiros tornam-se rapidamente indiferentes para nós, "todas as gera-
os povos no âmago das mais úteis e mais gloriosas regenerações" —, ções têm necessidade de assistir [aos fatos gerais] para compreenderem
o herói da obra de Guizot, L'Histoire de la révolution d'Angleterre 4
o passado e para se compreenderem a si mesmas". 4 Em suma, a relação
(1854), Cromwell, fazia prevalecer o bom senso, ou seja, a conserva- com o passado deveria ser ponderada, em plano semelhante a todas as
ção. Com efeito, "sob o efeito de uma crise violenta, os povos podem atividades humanas para as quais a civilização contemporânea exige "a
45
momentaneamente negar seu passado, até mesmo abominá-lo; mas não legitimidade dos motivos e a utilidade dos resultados".
conseguiriam esquecê-lo, nem desligar-se dele por muito tempo e de O estiolamento da conservação tradicional, até mesmo seu desa-
parecimento, devia-se, segundo Guizot, a uma extenuação dos poderes

40. François Guizot, HCF, t. I, 1P lição, p. 313-315. 43. François Guizot, HOG, t. I, p. 10.
41. Ibidem, t. 1, 2a lição, p. 33-35. Cf. ainda 11a lição, p. 313-315. 44. Idem, HCE, p. 258-259.
42. Advertência do editor, in François Guizot, Histoire de la civilisation en Europe, org. 45. Idem, t. 1, P lição, p. 30. Sobre este tema, cf. Douglas Johnson, Guizot, Aspects of
Pierre Rosanvallon, Paris: Hachette, 1985, p. 41 (doravante HCE). French History, Ie787-Ie874, Londres: Routledge, 1963, p. 283-288, 330-332.

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sociais, associada às mutações da civilização. A conservação "arcaica" poderes" para a energia íntima da pessoa. Na sociedade contemporânea,
revestia uma dimensão religiosa, ou familiar, em suma, de "governo"; a manutenção dos monumentos abandonados, em razão principalmente
em seu entender, assistia-se a seu desmantelamento gradual em de- do desaparecimento de diversas corporações sociais — ou, mais exata-
corrência do declínio dos "poderes de toda a espécie existentes na mente, da remodelação do respectivo passado — exigia uma memória
sociedade, desde o poder doméstico, restrito à família, até o poder por assim dizer individual, eventualmente mobilizada no seio de novas
público situado na cúpula do EstadoN Responsáveis, há pouco, pelas sociabilidades. Uma conservação "espontânea" devia atenuar, de algum
"relações entre os homens sem que estes tivessem oportunidade de modo, a perda das conservações impostas. No entanto, o patrimônio daí
manifestar sua vontade", tais poderes acabaram sendo substituídos pela resultante não podia ser, logicamente, arbitrário, mas o da inteligência
"sociedade sem governo que subsiste pelo desenvolvimento espontâneo e da justiça. O documento Rapport en vue de créer un poste d'inspecteur
da inteligência e da vontade humana" e é chamada a tornar-se o "fundo général des monuments historiques, apresentado ao rei em 21 de outubro de
do estado social"." A figura da última testemunha encarnava em Cours 1830, esboçava a história das antiguidades nacionais nestes termos: "No
d'histoire moderne o esgotamento dessa relação com o passado. A perso- desfecho da Revolução Francesa, alguns artistas esclarecidos que tinham
nagem foi tomada de empréstimo à criação romanesca — aliás, esse não presenciado o desaparecimento de um grande número de monumentos
foi o único caso de intercâmbio entre história e ficção, profusamente preciosos sentiram a necessidade de preservar o que havia escapado à
praticado pelos historiadores de sua geração. Trata-se de um extrato da devastação: o museu dos Petits-Augustins, fundado pelo senhor Lenoir,
obra Les Puritains d'Écosse, de Walter Scott, dedicado ao "respeito e à preparou a retomada dos estudos históricos e criou as condições para
devoção" de que "os túmulos dos mártires puritanos" são "ainda objeto apreciar todas as riquezas da arte francesa. A dispersão fatal desse museu
por parte de seus partidários": "Há sessenta anos que alguém [...] , cha- levou os arqueólogos e artistas a se interessarem pelo estudo das localida-
mado Robert Patterson — descendente, segundo parece, de uma das des; assim, a ciência aumentou a amplitude de sua ação e ganhou maior
vítimas da perseguição —, deixou sua casa e sua pequena herança para dinamismo; bons escritores juntaram-se à elite de nossa escola de pintura
se dedicar à manutenção desses modestos túmulos [...1. As famílias dos para dar a conhecer os tesouros da França dos tempos passados. Esses
mártires e os zeladores da seita garantiram-lhe a hospitalidade [...1. trabalhos, que se multiplicaram durante os últimos anos, não tardaram
Por ignorar seu verdadeiro nome, o povo designava-o pela alcunha de a produzir excelentes resultados nas províncias: formaram-se centros de
Old Mortality (o homem dos mortos dos tempos antigos), de acordo estudo; monumentos foram preservados dá destruição; os conselhos re-
com o ofício ao qual ele havia consagrado sua vida."47 gionais e as municipalidades votaram recursos financeiros para esse fim; o
Nos dias de hoje, ao contrário, a força motriz da solicitude conserva- clero foi impedido de continuar as reformas deploráveis que haviam sido
dora parecia passar da "perpetuidade e da regularidade [...] impostas pelos i mpostas aos edifícios sagrados por um gosto equivocado a respeito da re-
novação. Tais esforços, porém, produziram apenas resultados incompletos:
46. François Guizot, HCF, t. III, 11ª lição, p. 271-272. Em particular, à semelhança de a ciência carecia de um centro de decisão para orientar as boas intenções
B. Constam, ele observa que "o poder abandonou as famílias". Cf. Benjamin Cons- manifestadas em quase todos os cantos da França; era necessário que o
tant, De la Liberté chez les modernes, org. Marcel Gauchet, Paris: Hachette, 1980, p.
181-183. i mpulso fosse desencadeado por uma autoridade de âmbito nacional.""
47. Ibidem, t. II, 17'lição, p. 28-29. O primeiro capítulo de Old Mortality (1816) — obra De 1815 a 1830 (e sobretudo após 1840), surgiu nas províncias
traduzida em francês sob o título Les Puritains d'Écosse — desenvolve o paralelo entre um grande número de associações e sociedades eruditas, aos poucos
a tarefa de limpeza dos túmulos e os interesses do romance histórico pelo passado.
Sabe-se que, de acordo com as lembranças de Paul Lafargue, tratava-se de um dos
romances preferidos de Karl Mau. 48. Cf. Françoise Choay, op. cit., p. 259. [N.T.]

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enredadas pela centralização parisiense. A propósito da reorganização situação natural e legítima do poder"?' Torna-se desnecessário legislar
da École des Chartes, Augustin Thierry já se referia à "aplicação da sobre essa matéria, porque o progresso da civilização acarreta a caduci-
centralidade administrativa às pesquisas históricas", "lei do século dade das "leis morais", "espécie de pregação, instrumento de ensino"
XIX" e, "com o desaparecimento da associação religiosa, a influência dos tempos arcaicos; o século XIX conhece apenas "leis respaldadas
crescente das antigas corporações científicas".49 A Sociedade da História na ciência que, além de depositarem a confiança na moralidade e na
da França foi fundada em 1833. Depois de ter iniciado um Cours sobre razão dos indivíduos, deixam tudo o que é puramente moral no do-
monumentos da Antiguidade, em Caen, em 1830 — sob os auspícios mínio da liberdade.
da Sociedade dos Antiquários da Normandia, da qual ele também tinha O inspetor tem, assim, a missão de "entrar em contato direto com
sido um dos fundadores —, Arcisse de Caumont fundou a Associação as autoridades e com as pessoas que se dedicam a pesquisas relativas à
Normanda, a Sociedade Francesa para a Conservação dos Monumentos, história de cada localidade, [de] esclarecer os proprietários e os deten-
o Instituto das Províncias e, por fim, organizou os Congressos Científi- tores sobre a importância dos edifícios, cuja conservação depende de seus
cos Regionais da França. No decorrer de todo o século XIX, o estudo das cuidados e, finalmente, [de] incentivar, orientando-o, o zelo de todos
antiguidades nacionais foi concebido como o cimento do patriotismo os conselhos de departamento e das municipalidades, de maneira que
francês, o instrumento privilegiado da reunião das localidades com a nenhum monumento de valor incontestável desapareça em razão da igno-
Nação. No alvorecer da nova história, que, aliás, havia despertado seu rância e da precipitação, e sem que as autoridades competentes tenham
interesse, Augustin Thierry fixou seu programa deste modo: "O primeiro tentado todos os esforços convenientes para garantir sua preservação e,
mérito de uma história nacional escrita para um grande povo consistiria também, de forma que a boa vontade das autoridades ou dos particulares
em evitar o esquecimento de alguém, promovendo, assim, a apresenta- não se esgote em objetos indignos de seus cuidados"52.
ção dos homens e dos fatos relacionados com cada parcela de território. Graças a essa incansável informação do corpo social, mediante a
A história do lugarejo, da província ou da cidade natal é a única capaz reunião de administradores e de proprietários, confere-se, "aos espíri-
de despertar em nós um interesse patriótico."" tos mais recalcitrantes, a consciência da necessidade de que o governo
se mantenha ativamente vigilante em relação aos interesses da arte e
da história". O inspetor "orienta as boas intenções manifestadas em
A administração do luto e da ressurreição quase todos os cantos da França", à imagem de um Estado que seja
um "centro de impulso e de coordenação de uma rede, bastante ampla,
A conservação moderna, à imagem daquela preconizada em Old de influências e de conhecimentos relativamente autônomos".53 Para
Mortality, exige um delegado para desempenhar o trabalho de memória. ser coroado de êxito, "lógico ou social", o empreendimento obedece
Além de sancionar as iniciativas das pessoas idôneas, o Estado confia-
lhe a missão de dirigi-las de maneira oportuna. Tal responsabilidade
la
51. François Guizot, Des Moyens de gouvernement et d'opposition dans l'état actuei de
incumbe, naturalmente, ao poder porque, "ao falar de maneira geral, France (1821); extratos apresentados por Pierre Manent, Les Libéraux, II, Paris:
o poder [pertence] ao espírito superior e, por conseguinte, este [é] a Hachette, 1980, p. 150.
52. O Rapport é publicado, por exemplo, como anexo da obra de E Guizot, Mémoires,
49. Augustin Thierry, Récits des temps mérovingiens, précédés de Considérations sur l'histoire op. cit.
de France. Cf. History and Theory, vol. 15, n. 4, Beiheft 15: Augustin Thierry and 53. Guizot descreve a "dupla histõria" da centralização civilizadora seguida por uma
Liberal Historiography, 1976. descentralização "distribuída de forma conveniente", em HOG, p. 59. Cf. o aprofun-
50. Auguste Theory, Lettres sur l'histoire de France, II, 1826. damento de Pierre Rosanvallon, Le Moment Guizot, Paris, Gallimard, 1985, p. 63.

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às exigências científicas (imparcialidade e exaustividade da recensão), privilégio". E ele tira a seguinte conclusão: "Aqui e por toda parte, a
assim como aos princípios de governo (liberdade de iniciativa, garantia impiedade provocou a superstição." "O passado tão desdenhado e tão
da propriedade, descentralização...). Portanto, a tarefa do inspetor abandonado por uns tornou-se para os outros o objeto de um culto
geral tem a ver, por excelência, com o talento político, cujo ideal é idólatra"; além disso, "utopias no passado" corresponderam às utopias
esboçado por Guizot em seu livro Cours d'histoire moderne: "Aliar a dos "mestres do futuro". Todos esses esforços são inúteis, porque "as
lucidez teórica e a consequência lógica do filósofo com a flexibilidade massas são governadas por ideias e paixões simples, exclusivas; por isso,
54
de espírito e de bom senso de quem possuiu experiência." não se deve recear que elas julguem de forma demasiado favorável a
Uma fórmula quase mercantil de Ludovic Vitet, a propósito das bi- Idade Média e seu estado social".57
bliotecas, resume perfeitamente este pragmatismo esclarecido: "Convém", Do mesmo modo que os doutrinários resistiram ao retorno ao
escreve ele, "voltar a introduzir a vida [...] nesses galpões de mercadorias Antigo Regime e, ao mesmo tempo, à "adesão, até mesmo especulativa,
obsoletas e sem consumidores."" O patrimônio de uma civilização é tam- aos princípios revolucionários" (Pierre Rosanvallon), assim também a
bém o do senso comum, da opinião geral e até mesmo dos preconceitos, Idade Média de Guizot evitou cuidadosamente as trevas voltairianas e
ou seja, da "força das coisas", conceito-chave do historicismo de Guizot. a lenda cor de rosa à maneira de Sainte-Palaye; aliás, Guizot rejeitou
Em poucas palavras, trata-se de "vivificar" um patrimônio "já pronto": vigorosamente conformar-se à moda que, além do mais, não chegou
a política dos doutrinários distingue-se absolutamente do princípio re- a atrair realmente seu gosto pessoal. Ele limitou-se a manifestar um
volucionário baseado na redescoberta das riquezas nacionais, até então interesse intelectual em relação a um período que se confunde com
desnaturadas ou espoliadas, como foi mostrado no capítulo precedente. "o berço das sociedades e dos costumes modernos. Daí datam, efe-
Desse ponto de vista, Guizot foi levado a comentar o franco sucesso tivamente: 1) as línguas modernas [...]; 2) as literaturas modernas
obtido pelo legado da Idade Média. Sua obra L'Histoire de la civilisation [...]; 3) a maior parte dos monumentos modernos nos quais, durante
en France constata que "seria impossível desconhecer o atrativo que suas séculos, se reuniram — e ainda hoje se reúnem — os povos, igrejas,
tradições, seus costumes, suas aventuras e seus monumentos suscitam no palácios, prefeituras, obras de arte e de utilidade pública de toda a es-
público. Pode-se questionar, neste aspecto, as letras e as artes; pode-se pécie; 4) quase todas as famílias históricas [...]; 5) um grande número
abrir as histórias, os romances e as poesias de nosso tempo; pode-se entrar de acontecimentos nacionais, importantes em si mesmos e durante
nas lojas de móveis e de curiosidades; por toda parte, encontrar-se-á a muito tempo populares [...], em poucas palavras, quase tudo o que
Idade Média analisada minuciosamente e reproduzida, suscitando a refle- preocupou e agitou, durante séculos, o imaginário do povo francês"."
xão e servindo de diversão ao gosto"." Essa vertente da opinião implica Se as Luzes ignoraram sua importância, incumbe à imparcialidade
tentativas de manipulação partidária que são condenadas formalmente presente posicionar essa época no lugar apropriado; inversamente ao
por Guizot. A hostilidade dos "amigos sinceros da ciência e do progresso século XVIII, o século XIX compreendeu, sobretudo, "o verdadeiro pa-
da humanidade" contra a época feudal conta com a admiração daqueles pel desempenhado pela imaginação na vida do homem e da sociedade.
que, nesse período, "procuram inspirações (para o) despotismo e (para o) O quadro da anarquia feudal e das lutas da burguesia, confrontado
com a evocação da civilização atual, permite associar as instituições
54. François Guizot, HCF, t. II, 28' lição, "Hincmar, sa vie, ses écrits", p. 351. "jovens", instauradas "em nome da razão e da filosofia", "aos princípios
55. Ludovic Vitet tinha visitado os departamentos de Oise, Aisne, Mame, Nord e Pas-
de-Calais. 57. Ibidem, p. 13.
56. François Guizot, HCF, t. III, 1' lição, p. 11-12. 58. Ibidem, p. 15.

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pressentidos e às garantias procuradas no mesmo sentido, através dos Uma história do ponto de vista da civilização
séculos". Em suma, a Idade Média pode servir de suporte a um governo
ainda privado do "poder das lembranças". Tal necessidade é tanto mais Ao servir-se das ciências naturais como referência, o ideal de Guizot
decisiva quanto maior foi a submissão das vontades, durante muito consistia em pintar a fisionomia exata do passado, graças à síntese da
tempo, a "terríveis acontecimentos" que haviam colocado em dúvida "anatomia ou a busca dos fatos", da fisiologia ou "o estudo de sua organi-
as respectivas potencialidades. A "reforma moral", sobretudo, da qual zação" e, finalmente, da "reprodução de sua forma e de seu movimento".61
procede a placidez da vida social ("a repressão das vontades individuais Sua obra L'Histoire de la civilisation en Europe fornece um repertório
nunca teve de recorrer à menor força pública") contentou-se com cuidadosamente hierarquizado de todos esses aspectos, desde os "fatos
o estiolamento dos caracteres. Portanto, Guizot regozijou-se com materiais, visíveis, tais como as batalhas, as guerras, os atos oficiais
o fato de que a representação da civilização medieval tivesse fornecido à dos governos", até os "fatos morais, ocultos, que nem por isso deixam
individualidade contemporânea — cuja "energia íntima (é) fraca e de ser reais". "Existem fatos individuais que têm um nome próprio;
tímida" — uma lição salutar, "mostrando-nos a capacidade de um quanto aos fatos gerais, é impossível atribuir-lhes uma data precisa,
homem ciente de suas crenças e de seus desejos"." circunscrevê-los em limites rigorosos, sem que por isso deixem de ser
A iniciativa de Guizot punha um termo à incerteza da primeira fatos semelhantes aos outros, ou seja, fatos históricos, que não po-
metade do século XIX, quando o programa de uma conservação do dem ser excluídos da história sem mutilá-la."62 Guizot preocupou-se,
passado era claramente concebido e exposto sem traduzir-se em atos, particularmente, com a história dos "fatos mais importantes, mais
por falta de uma concepção da nação que se conformasse aos valores sublimes em si mesmos, sublimes independentemente de qualquer
específicos dos tempos e dos lugares. "Sempre fez falta à França" - resultado externo e unicamente em suas relações com a alma do
lê-se no relatório da Académie des Inscriptions, redigido em 1818 por homem", como são "as crenças religiosas e as ideias filosóficas, as
iniciativa do conde de Laborde — "atribuir a devida importância a ciências, as letras e as artes".63 Mas, para além disso, o "ponto de
essa espécie de riqueza, de velar por sua conservação e de procurar, do vista da civilização" é o único que permite considerar historicamente
ponto de vista da instrução e da história nacional, tirar partido desse os "fatos individuais" no âmago "do progresso e do desenvolvimento
material."60 O conceito administrativo de "monumento histórico" baseia- da atividade tanto social como individual"; tanto mais que sua "im-
-se em uma arqueologia moderna, cujo esboço foi fornecido por alguns portância aumenta e [sua] sublimidade eleva-se por sua relação com
precursores, tais como Séroux d'Agincourt e Alexandre Lenoir. Dife- a civilização". "Existem, até mesmo, oportunidades", acrescentava
rentemente deles, Guizot conferiu um sentido à reunião dos catálogos e o professor, "em que os fatos mencionados [...] são frequentemente
da narrativa cronológica: o da história da civilização, moldura universal considerados e julgados do ponto de vista da sua influência sobre a
de uma representação cultural — portanto, particularizada — da nação. civilização; influência que se torna, até certo ponto e durante certo
tempo, a medida decisiva de seu mérito e de seu valor."64 Em poucas

61. François Guizot, HCF, t. I, 11' lição, p. 313-315.


62. Idem, HCE, p. 57-58.
63. Ibidem, p. 59.
59. Ibidem, p. 24. 64. Ibidem, p. 60, 64. "Reconhecer e pintar, sob os nomes próprios e os acontecimentos
60. Apud Laurent Theis, "Guizot et les institutions de mémoire", in Pierre Nora (org.), particulares, o destino e os trabalhos, as vitórias e os fracassos da sociedade e da alma
Les Lieux de mémoire, II, op. cit., p. 574. humana."

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palavras, a ideia de civilização é "o fato geral e definitivo: o de con- Em seu trabalho de historiador, Guizot empenhou-se também em
vergência de todos os outros, seu resumo". conjurar a ruptura entre a "condição exterior do homem" e seu estado mo-
Semelhante distinção entre parte caduca e parte decisiva da me- ral, sua "natureza íntima". Em relação ao fundo — saber se "a sociedade
mória é válida, de maneira mais ampla, entre os contemporâneos, é feita para servir o indivíduo ou o indivíduo para servir a sociedade" —,
como critério de julgamento estético: evocado pela filosofia estética a obra L'Histoire de la civilisation en Europe tirava a conclusão da impos-
de Victor Cousin, sua melhor ilustração deve ser procurada, talvez, sibilidade de dizer algo que não seja "conjetural" e se limita a copiar a
em Baudelaire. São bem conhecidas as fórmulas emblemáticas do profissão de fé do amigo Royer-Collard. Em compensação, compete ao
pintor da vida moderna: "O belo é feito por um elemento eterno, historiador repetir que "existe uma estreita ligação entre essas duas por-
invariável, cuja quantidade é excessivamente difícil de determinar, e ções da civilização". Na França, "a marcha e o crescimento do homem
por um elemento relativo, circunstancial, que será, se quisermos, alter- e da sociedade ocorreram sempre [...] a pouca distância. [...] Nada
nadamente ou em conjunto, a época, a moda, a moral, a paixão [...]. se passou no mundo real sem que tivesse sido imediatamente captado
A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade pela inteligência, que, por sua conta, extraiu daí uma nova riqueza; nada
da arte, em que a outra metade é o eterno imutável." Entretanto, no no domínio da inteligência sem ter tido no mundo real, e quase sempre
Salon de 1846, Baudelaire fornece uma leitura em termos de memória: bastante rapidamente, sua repercussão e seu resultado. Em geral, inclu-
nesse texto, Horace Vernet é ferozmente criticado por sua "memória sive as ideias na França precederam e provocaram os avanços da ordem
de almanaque" que "sabe o número de botões em cada uniforme". Em social: eles prepararam-se nas doutrinas antes de se tornarem realidade;
compensação, o desenvolvimento dedicado a "Do ideal e do modelo" além disso, o espírito tomou a dianteira no caminho da civilização". 67
afirma que "a lembrança (é) o grande critério da arte; a arte é uma Daí, a evidente consequência de método: "O estudo, a ciência, pro-
mnemotécnica do belo". Semelhante princípio redunda em conselhos cede e deve proceder de fora para dentro. É de fora que vem sua primeira
adaptados: por exemplo, "a imitação exata estraga a lembrança", ou investida, e ao observá-la é que ela avança, penetra e chega gradativamente
"particularizar ou generalizar demais impedem, igualmente, a lem- ao interior." Pelo contrário, "na realidade, os fatos desenvolvem-se, por
brança". Nesse apelo à memória, que acompanha uma recusa cate- assim dizer, de dentro para fora; as causas são internas e produzem efeitos
górica do ecletismo, Michael Fried reconhece uma reação à década externos". Portanto, o historiador há de começar "sempre pelo estudo
de 1830-1840, marcada pela multiplicação das alusões aos temas e do estado social", sabendo bem que este "deriva, entre muitas outras
aos estilos históricos nas artes." Uma dupla exigência orienta, então, causas, do estado moral dos povos [...]. As crenças, os sentimentos, as
a reflexão de Baudelaire: a arte contemporânea deve fazer referência a ideias e os costumes precedem a condição exterior, as relações sociais e
uma memória das obras anteriores, mas esses vestígios de uma longa as instituições políticas"."
cadeia de lembranças não devem anunciar-se como tais. Ou, dito em Nesse esforço de representação do passado, que revela a dinâmica
outras palavras, esse patrimônio artístico deve ser quase inconsciente, das condicionantes exteriores e da liberdade individual, da alma e da
embora deixe a marca de sua aura nas obras presentes, como a parcela sociedade, a história das artes, especialmente da arquitetura, usufrui
mais significativa da memória.66 de um privilégio particular. O capítulo de L'Histoire de la civilisation

65. Michael Fried, "Painting Memories: on the Containment of the Past in Baudelaire 67. François Guizot, HCF, t. I, 1' lição. Em seguida, vem a política: "Os progressos da
and Manet", in Critical Inquiry, vol. 10, n. 3, 1984, p. 510-542. igualdade social e os saberes da civilização precederam, na França, a liberdade política;
66. Essa construção acaba por evocar Winckelmann, cujo sistema articula, de maneira por seu intermédio, ela será mais completa e mais depurada."
paradigmática, parte eterna e parte contingente na leitura da história da arte. 68. Ibidem, t. I, 2' lição, p. 33-35, 69.

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en France dedicado ao castelo sob o regime feudal tem a ver, nesse saques e guerras, que caracteriza a Idade Média, foi em grande parte o
aspecto, com um exercício escolar: como escrever uma arqueologia efeito do gênero de habitação feudal, assim como da situação material
filosófica? Como passar — retomando a metáfora-chave da disciplina em que se encontravam seus donos; eles procuraram, por toda parte,
arqueológica — da superfície para a profundidade, de fora para dentro? o movimento social inexistente no seu interior." Daí as cruzadas, cuja
A "assustadora anarquia" dos séculos feudais, "sobretudo após a explicação se baseia nesta fórmula lapidar: "Eles foram mais longe e por
morte de Carlos Magno", explica o desígnio exclusivamente utilitário outras causas; essa é a grande diferença." No entanto, a demonstração
da construção dos castelos, assim como sua profusão. "Nessa época, a não se limita ao estado social; os "dois aspectos característicos" da
guerra grassava, por toda parte; os monumentos da guerra deveriam mentalidade feudal ("a selvagem e bizarra energia do desenvolvimento
estar, também, por toda parte. [...] Além da construção de numero- dos caracteres individuais" e "a obstinação dos costumes, sua longa
sas fortalezas, tudo era transformado em fortificação, esconderijo ou resistência à mudança, ao progresso") estão associados, igualmente,
habitação defensiva. [...] O território estava coberto por esse tipo de aos castelos. Com efeito, "as muralhas e os fossos dos castelos criaram
imóveis e todos possuíam o mesmo caráter." obstáculos tanto para as ideias quanto para os inimigos". No entanto,
Essa restituição do "estado material das habitações feudais" não "ao mesmo tempo, [...] eles eram de certa forma um princípio de civi-
é, por si só, suficiente, nem se limita a fornecer os prolegômenos da lização. [...] A vida doméstica, o espírito de família e, particularmente,
narrativa: ela alimenta a inteligência com as questões propriamente a condição das mulheres desenvolveram-se, na Europa moderna, muito
históricas. "0 que se passa no interior? Qual será o tipo de vida do mais completa e favoravelmente que alhures. [...] Nunca, em nenhuma
proprietário? Que influência seria exercida sobre ele e sobre os outros outra modalidade de sociedade, a família reduzida à sua mais simples
habitantes por essa moradia e as circunstâncias materiais resultantes expressão — marido, mulher e filhos — encontrava-se tão compacta:
daí? Como e em que direção deveria desenvolver-se a pequena socie- seus membros estavam comprimidos uns contra os outros, separados
dade que ocupava o castelo, e quem era o elemento constitutivo da de qualquer outra relação poderosa e rival."
sociedade feudal?" O caráter primordial dessa habitação, o isolamento, Em suma, "nos castelos é que surgiu e cresceu a cavalaria", ou seja,
que permite associar estado social e vida interior, nada tem de surpre- o estado moral que se encontra na origem da sociedade feudal. Por
endente para o ouvinte do Cours d'histoire moderne: em suas longas sua arquitetura, é possível ler uma civilização inteira. Tal concepção
digressões, Guizot mostrou a feudalidade sob todos os seus aspectos, da arqueologia exige a apreensão de um monumento social em sua
além de se servir de todas as suas variações. A essa característica funda- integralidade. De fato, por defeito, "a história envolve e abrange a his-
mental acrescenta-se "uma ociosidade singular": para resumir, "nunca tória da civilização" sob a abundância das obras e "cenas exteriores"69,
tinha sido observado tal lazer em tal isolamento [...]. A única ideia a tal ponto que torna impossível sua aparição. Essa leitura compartilha
do proprietário do castelo consistia em sair dessa situação. Fechado alguns dos pressupostos do uso do castelo como cronotopo, tal como
nesse recinto em ocasiões em que tal providência era absolutamente ele é concebido, em particular, pelo romance histórico: de fato, este
necessária para sua segurança ou sua independência, ele foi procurar o transforma em ponto de interseção de um universo humano, ao
fora, tão frequentemente quanto pôde, o que lhe fazia falta, ou seja, a mesmo tempo época e configuração espacial.70
sociedade e a atividade. A vida dos proprietários dos feudos passou-se
69. Ibidem, t. III, 9 lição, p. 112-135.
nos caminhos e em aventuras".
70. Segundo Bakhtin, "o cronotopo determina a unidade artística de uma obra literária
O habitat determinado até então pela insegurança geral aparece, nas suas relações com a realidade [...] Na arte e na literatura, todas as definições
por sua vez, como fonte de desordens. "Essa longa série de assaltos, espaço-temporais são inseparáveis e comportam sempre um valor emocional [...]

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além de estarem relacionados de perto com os fatos gerais, culminam


i mediatamente na história da civilização. A tentativa não reproduz, de
Uma arqueologia dos Modernos modo algum, [o passado] vivo e animado, à semelhança da narrativa;
mas ela garante, por assim dizer, seu arcabouço, impedindo que as ideias
72
O inventário geral, imaginado em 1834, entende do mesmo modo su- gerais flutuem na imprecisão e ao acaso". A estatística, cada vez mais
perar a utilidade de um panorama dos monumentos de todas as épocas e de utilizada "à medida que se avança no curso da civilização", torna-se a
todos os lugares. Tal recapitulação do passado nacional, em seu intuito ferramenta capaz de "fazer prevalecer, na ordem intelectual, o império
de compensar a amnésia e as ruínas, pretende sobretudo colocar em desta- dos fatos"73; além de poupar ao Cours a inclusão de minúcias prejudiciais
que o princípio de unidade, até então dissimulado ou mal compreendido: à exposição dos temas e de digressões demasiado dispersas, ela é a única a
o sentido da civilização. A classificação, em um fichário completo, de todas permitir a retomada e a integração da herança dos antiquários no âmago
as obras que nunca chegaram a ser edificadas deve fornecer "os vestígios da história filosófica. Com efeito, se a história das artes, "em relação à
do estado e do movimento geral dos espíritos", do mesmo modo que, no história geral, tem a vantagem de possuir e poder mostrar os próprios
Cours "cofre modelize, o conjunto dos livros de um Alcuíno descrevia a objetos que ela deseja dar a conhecer e submeter a um julgamento",
74
vida intelectual, no reinado de Carlos Magno. O Rapport au Roi sur l'état mesmo assim "é insuficiente limitar-se a ver, mas se deve compreender".
des travaux relatifs à la recherche et à la publication de documents inédits con- A riqueza do material prejudica, então, o historiador, ao prodigalizar-lhe
cernant l'histoire de France (2 de dezembro de 1835) observa: "Ao deixar as não tanto um testemunho apropriado, mas enigmas insolúveis.
ciências e as letras para considerar as artes, convém necessariamente trocar O conhecimento da época é necessário para o entendimento das
de método. Neste caso, está fora de questão descobrir e imprimir obras obras, como se verifica com a literatura: "Como compreender a his-
inéditas. Salvo algumas características especiais e em número reduzido, a tória literária sem conhecer os tempos e os homens no meio dos quais
história das artes não se encontra nos livros; ela está escrita nos próprios foram erguidos os monumentos mencionados por ela?" Ocorre que
monumentos, cujas formas, variáveis de acordo com os tempos e os lu- tal conhecimento é insuficiente, já que "essas características decisivas
gares, representam não só os princípios e as regras adotadas pelas diversas que servem para explicar o caráter e a conduta dos povos [...] não
escolas, mas sobretudo o espírito, as ideias e os próprios conhecimentos desvelam, de modo algum, o segredo das causas que determinaram o
que pertencem aos séculos evocados por elas."1 espírito das literaturas. [...] A ação dos acontecimentos importantes
Prevalece, então, a ideia de recorrer ao método moderno da investi- da história sobre os textos escritos ocorre unicamente através de re-
gação intelectual: se "as tabelas estatísticas [são] um dos melhores meios lações desconhecidas, distorcidas e quase imperceptíveis. [...] Assim,
de estudar, sob certos aspectos, o estado de uma sociedade, por que será reconhecida a influência dessas inumeráveis causas secundárias;
razão", pergunta Guizot, "não aplicá-las ao estudo do passado?" Trata-se
de "apresentar, sob forma [de tabelas], os fatos especiais da época que, 72. François Guizot, HCF, t. II, 20' lição, p. 120. Nessa época, a preocupação com a
estatística histórica assume uma grande importância, particularmente na Alemanha.
Cf. G. Iggers, "L'Université de Göttingen, 1760-1800: La Transformation des études
a arte e a literatura estão impregnadas de valores cronotópicos, em diversos graus e historiques", in Francia, vol. IX, 1981, p. 602-621. Cf., de maneira mais geral, J.-L.
dimensões. Qualquer motivo, qualquer elemento privilegiado de uma obra de arte Heilbron, "The Measure of Enlightenment", in Tore Frãngsmyr, J.-L. Heilbron e
apresenta-se como um de seus valores". (Mikhail Bakhtin, "Du Discours romanes- Robin E. Rider (orgs.), The Quantifying Spirit in the 18th Century, Berkeley: Uni-
que", Esthétique et théorie du roman, Paris: Gallimard, 1978, p. 85-233.) versity of California Press, 1990, p. 207-242.
71. Xavier Charmes, Le Comité des travaux historiques et scientifiques, Paris, 3 vols., 1886 73. François Guizot, HCF, t. I, 1ª lição, p. 21-25.
(t. II, p. 46-47). 74. Idem, Corneille et son temes: Études littéraires (1852), Paris, 1880, p. 1.

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entretanto, é impossível definir com precisão sua natureza ou sua privilegiada: esse é o sentido da afirmação repetida, em Guizot e seus
amplitude, e às vezes, até mesmo afirmar sua existência". sucessores, sobre a amplitude cronológica e a variedade estilística do
Em poucas palavras, "o historiador que pretenda descobrir as causas patrimônio francês. Por último, se a arqueologia faz "coincidir os
determinantes do caráter e da orientação das literaturas modernas [está] trechos dos Antigos com os monumentos" para "apoiar-se no duplo
reduzido a contentar-se com resumos raramente completos e com pes- conhecimento dos fatos e dos monumentos"", a criação de uma cátedra
quisas raramente bem coordenadas". Esse balanço refere-se não tanto à de história literária comparada da Europa moderna corresponde a essa
confissão de humildade do historiador, mas ao sentimento da complexi- exigência: ela permite, à semelhança do que ocorre com a disciplina
dade das artes modernas, que, em L'Histoire de la civilisation en Europe, são canônica, a "equiparação dos mais belos monumentos da arte com
julgadas "bastante inferiores, sob o ponto de vista da forma e da beleza", às os mais belos monumentos da literatura". De acordo com sua obra
artes da Antiguidade; mas, "do ponto de vista do fundo dos sentimentos Mémoires, Guizot atribuía um estatuto histórico, absolutamente pri-
e das ideias, [...] mais vigorosas e fecundas"." Tal imperfeição é o fruto vilegiado, à aparição simultânea dessas duas análises da modernidade.
paradoxal da "prodigiosa diversidade das ideias e dos sentimentos da civi- "O movimento intelectual que contribuiu para a glória da Restau-
lização europeia". No discurso preliminar de Musée royal (1816), Guizot ração" caracteriza-se, de fato, pelo "despertar do gosto pelos antigos
já escrevia o seguinte: "Na época [moderna] em que a escultura começava monumentos históricos da França e pelo estudo das literaturas estran-
a seguir os vestígios da escultura antiga e a pintura começava a produzir geiras". Apesar "da tentativa no sentido de tomar, desde então, algumas
obras-primas que, provavelmente, nunca haviam sido imaginadas pelos medidas para interromper a destruição das obras-primas da arte fran-
próprios Antigos, surgiu uma arte (nova), a gravura"." Ao lado de uma ar- cesa e para dar a conhecer as obras-primas das letras europeias à França
queologia antiga solidamente estabelecida a partir da "unidade simbólica" da época moderna", "faltava um centro fixo e a garantia de meios de
de seu material, a arqueologia moderna deve enfrentar os desafios de um ação""; neste caso, a solicitude ministerial vai incidir sobre "as nobres
corpus superabundante e disperso de monumentos desiguais ou, às vezes, aspirações da inteligência humana" a fim de "fornecer-lhes o apoio de
defeituosos, sem deixarem de ser reflexos de uma civilização mais rica. instituições permanentes". Enquanto Ludovic Vitet deve "prosseguir
Entretanto, a tentativa canônica da "ciência da Antiguidade" é dire- e popularizar a restauração dos antigos monumentos da França", Cl.
tamente transferida para o campo nacional; deste modo, é reconhecida Fauriel empenhar-se-á em "espalhar o conhecimento e o sentimento
a necessidade de "uma série de monumentos variados, de diferentes das grandes produções literárias do gênio europeu"80; a tomada
épocas, para criar uma escola de arte, (além de) uma sucessão de tempos
e de artistas para constituir uma história com esses elementos". Sabe-se 78. Cf. a carta de Millin para Champollion-Figeac, em 5 de messidor do ano X, apud
Charles-Olivier Carbonell, LAutre Champollion, Toulouse: IEP, 1982, p. 27. De forma
que "a arte e a história" na Antiguidade, "tal como esta nos foi legada mais abrangente, cf. Michel Dewachter e Alain Fouchard (orgs.), L'Égyptologie et les
greos".7
pelo tempo", encontram-se apenas entre os egípcios, os etruscos e os Champollion, Grenoble: Presses Universitaries Grenoble, 1994.
A época moderna conhece, do mesmo modo, uma nação 79. François Guizot, Mémoires, op. cit., t. II, p. 66-69. Mais longe, a propósito das atribui-
ções do ministério da Instrução Pública, Guizot retomava esse tema: "As artes mantêm,
com a literatura, vínculos naturais e necessários; é apenas através desse trato íntimo e
75. Idem, HCE, p. 77. habitual que elas garantem a conservação de seu prõprio e eminente caráter que é o
76. Idem, Essai sur les limites qui séparent et les liens qui unissent les Beaux-Arts (1816), culto do belo e sua manifestação diante dos homens. [...] Posicionadas longe da esfera
La Rochelle, Rumeur des Ages, 1995, p. 57. da literatura [...], as artes correm sério risco de voltar a cair sob o jugo de uma exclusiva
utilidade material ou das rudimentares fantasias do público" (t. III, p. 34-35)
77. Raoul Rochette, Cours d'archéologie, Paris, 1828, 2' lição, p. 39. Sobre a "disputa"
ulterior com Viollet-le-Duc, cf. Bruno Foucart, Viollet-le-Duc, Paris: Galeries Na- 80. Sobre o episódio, cf. Michel Espagne, "Claude Fauriel en quête d'une méthode ou
tionales du Grand Palais, 1980, p. 101. l'Idéologie à l'écoute de l'Allemagne", in Romantisme, n. 73, 1991, p. 7-18. Vamos

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de consciência do fato artístico moderno encontra-se, portanto, na em um longo processo; e, em seguida, ao reanimar uma individuali-
origem das duas iniciativas. Como é testemunhado pelo Rapport de dade sensata, até mesmo abatida pelas circunstâncias, em seu proveito.
1830, ninguém — até Lenoir, que "havia preparado" os espíritos - Ele contribui para a luta contra "os dois graves perigos [da civilização atual]:
"ainda havia percebido a importância" dos monumentos "do ponto o orgulho e a tibieza". A tarefa do Inspetor dos Monumentos Históricos,
de vista da arte". De fato, nos séculos precedentes, eles haviam sido seu estatuto institucional e a falta de uma legislação protetora ilustram
considerados apenas como "a fonte de relevantes ilustrações históricas". a imbricação sociológica entre poder e opinião pública. A administração
do patrimônio funde-se na atividade intelectual da própria sociedade; ela
traduz a "dupla generalização" do poder e da sociedade, conformando-se
A conservação para o futuro ao princípio da civilização contemporânea, ou seja, a "soberania da razão,
da justiça e do direito", e não a qualquer idolatria do passado.
A conservação dos monumentos é, para Guizot, um fato da civilização Ao mesmo tempo, sursum corda e lição de civismo, a conservação para
contemporânea, distinto das atitudes anteriores; ela remete ao projeto de os doutrinários é, além de uma ferramenta de governo, um adjuvante
uma arqueologia moderna, tanto imparcial como científica, que exige, da moralidade individual contra "a indiferença e a apatia" das "classes
em primeiro lugar, um inventário das fontes. No âmago desse sistema 81
favorecidas que se dedicam ao trabalho intelectual". Ela metamorfoseia
de inteligibilidade, decalcado no modelo canônico da ciência da Anti- a preocupação tradicional do proprietário ao criar, nas pessoas idôneas,
guidade, o monumento aparece como o intermediário privilegiado entre um novo imperativo nacional. À imagem do governo livre que tem
o social e o individual; mas, sobretudo, expressão "exterior", ele fornece
"o desígnio e o objetivo de esquadrinhar incessantemente a sociedade,
a compreensão do "interior" e permite a descoberta dos princípios de de valorizar os espíritos superiores de todo o gênero [...], de conduzi-los
uma civilização ao adotar o procedimento inverso de sua concepção e 82
ao poder e [...1 obrigá-los a merecê-lo" , o patrimônio é esse incansável
de sua construção, ou seja, do vestígio ao molde. De fato, ao dar crédito trabalho de atualização do passado no horizonte de um país cada vez
ao discurso ministerial de 1834, "o estudo que nos revela, de forma mais mais esclarecido e ético.
convincente, o estado social e o verdadeiro espírito das gerações passadas Assim, o princípio de conservação está associado à convicção de saber
é o de seus monumentos religiosos, civis, públicos e domésticos, das di- não só o que foi, mas o que deve ser e o que será a expressão arquitetural de
versas ideias e regras que presidiram sua construção, em poucas palavras, uma época. O relatório do senhor de Gasparin, presidente do Comitê das
o estudo de todas as obras e de todas as variações da arquitetura que é o
Artes e Monumentos, sobre "as instruções relativas à conservação dos mo-
começo e, ao mesmo tempo, o resumo de todas as artes". No entanto, numentos" (4 de maio de 1840) considera sete classes de monumentos:
o "Primeiro Ministro intelectual" de Luís Filipe — para aplicar-lhe a
a última é dedicada aos "monumentos que existem apenas em projeto.
fórmula que ele próprio havia forjado para Hincmar — enlaça de maneira Até o presente, escreve ele, foram abordados apenas os monumentos
exemplar essa evocação do passado à administração de um espírito pú- antigos, a arte do passado; mas a arte do futuro, os monumentos futuros
blico. O patrimônio convoca as energias cidadãs em favor de uma cultura deveriam constituir uma preocupação para o Comitê. Neste aspecto, ele
de governo: em primeiro lugar, ao mostrar que o poder atual inscreve-se
81. Em sua circular de 23 de julho de 1834, destinada aos membros das sociedades
limitar-nos a indicar, aqui, a importância da transformação da relação com a literatura científicas, apud X. Charmes, Le Comité des travaux historiques et scientifiques, op.
nacional, que se torna, igualmente, um "monumento histórico". Cf. Michel Charles, cit., t. 11, p. 309.
"La Lecture critique", in Poétique, n. 34, 1978, p. 129-151: "Descobre-se, assim, por
82. François Guizot, Des Moyens de gouvernement et d'opposition, op. cit., in Pierre Manent,
uma via pedagógica e mediante a história, que não se conhece a prõpria língua."
Les Libéraux, op. cit., p. 157.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE O TRABALHO DO LUTO

não se deve eximir de fornecer os numerosos pareceres que lhe têm sido representação revelou-se excelente para identificar a conservação dos
solicitados. Na construção, que estilo de arquitetura deve ser adotado, de monumentos, para além da perspectiva própria dos antiquários, com
preferência, pela França?"" Para outros, mais radicais, somente o artista a salvaguarda da civilização. A ideia, mais ou menos explícita, de uma
pode conceber e legar à posteridade a imagem — a lembrança — de seu verdadeira teleologia das heranças sucessivas veio rapidamente forta-
tempo. A esse respeito, um David d'Angers apresentava uma formulação lecer essa convicção sobre a necessidade do patrimônio para a nação.
límpida, em 1848, por ocasião de um pedido de socorro em favor dos A este propósito, o século XIX conheceu uma inflexão sensível que,
prêmios de Roma, referindo-se aos artistas como "arquivistas dos povos, de um sentimento "patriota", passou, no final do período, para o que
encarregados de legar ao futuro os gloriosos anais da humanidade"." Maurice Agulhon designa como "um sentimento mais conciliador e
De fato, a Segunda República (1848-1852) pretendeu abandonar, apaixonado, de estilo bem francês". Entretanto, mantém-se o princí-
aparentemente, a categoria de "monumento histórico" em benefício pio de que, para a conservação, deve ser suficiente a interação entre
de uma concepção sobretudo utilitária do monumento nacional, con- curiosidades, gostos e interesses, desde que a opinião pública tenha
servado por seu valor de uso. Como se tivesse assumido uma postura recebido o devido esclarecimento.
defensiva, o Rapportde 1850 afirmava que "os trabalhos como objetivo de O espírito geral da conservação sob a Terceira Republica (1871-1940)
restaurar nossos antigos edifícios são, hoje em dia, bastante apreciados", baseou-se, assim, no investimento livre das preferências e interesses
enquanto "há pouco, eram considerados apenas como objeto de estudo intelectuais na matéria; neste caso, o Estado desempenhou o papel de
ou, até mesmo, de diversão para os arqueólogos". Ele colocava em moderador ou serviu de última instância. Por ocasião do exame do
dúvida a pertinência da definição administrativa, herdada de Guizot: projeto de lei Bardoux de 1878, o conselheiro do Estado Courcelle-
"Esses edifícios, definidos imprecisamente pelo nome de monumentos Seneuil recomendou que a intervenção pública fosse requisitada ape-
históricos, têm uma afetação pública e uma utilidade cotidiana. Salvo nas em favor de "um reduzido número de monumentos ou objetos
algumas ruínas romanas, gigantescas lembranças de um povo, cuja suficientemente importantes para que sua conservação seja de interesse
história constitui a base de nosso sistema de educação, o que são esses nacional, e não [de] todos aqueles que possam ser úteis para a ciência
monumentos históricos além de igrejas, prefeituras, fóruns?"" Mas, da história e para a arqueologia. De acordo com o curso natural das
tendo passado esse breve eclipse, prevaleceu a filosofia da Monarquia coisas, devem ser conservados com todo o cuidado apenas os monu-
de Julho (1830-1848), em que Viollet-le-Duc passou por ser, sob certos mentos e objetos que apresentem uma utilidade atual, ou seja, que
aspectos, discípulo de Guizot." sirvam para satisfazer os gostos e as necessidades da geração presente;
Aliás, Guizot foi o primeiro a relacionar o respeito pela arte das ora, somente um interesse realmente superior poderá autorizar que
épocas passadas — o sentido da arqueologia moderna — com a sejam tomadas medidas de conservação artificial. A decisão relativa
utilidade científica — o fichário da documentação — e com o uso à conservação de monumentos e objetos de interesse secundário
cívico, ou seja, a mobilização das pessoas idôneas. O sucesso de tal deve contar com os estudos de pessoas e sociedades esclarecidas,
com a evolução do gosto e com a influência da opinião pública."
Acima de tudo, a ideia de que a conservação dos monumentos visa, para
83. X. Charmes, op. cit., III, p. 575.
além da perspectiva própria dos antiquários, salvaguardar a expressão
84. Proposição de M. David d'Angers, in L'Artiste, 5a série, vol. 1, ago. 1818, p. 224.
85. Rapport au ministre de l'Intérieur par Mérimée, apresentado à Commission, em 19 de
nacional, encarnação da civilização universal, tornou-se consubstancial
julho de 1850, in Recueil BN , op. cit. ao discurso patrimonial. Louis Tétreau resumiu, em 1896, a legitimidade
86. Cf. o parecer de B. Foucart, Viollet-le-Duc, op. cit., p. 369-374. da conservação nestes termos: "A história das origens de um país, de

194 195
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

sua civilização e de seu gênio está escrita em seus monumentos. A preo- 5


cupação em conservar as obras de arte, testemunhas dos tempos passados,
corresponde, portanto, a um sentimento nacional."" Ou, ainda melhor, a
A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE
virtude da percepção do patrimônio, para Pariset, é quase condillaciana:
"Espalhados em todo o território francês, esses monumentos suscitam, Alguns afirmavam que a arte de uma época marcada pela
por bem ou por mal, naqueles que os contemplam desde sua infância, os rapidez seria breve, do mesmo modo que houve quem pre-
dissesse, antes da guerra, que ela seria curta. A estrada de
mais elevados sentimentos [...1. Ao garantir a manutenção da integridade
ferro deveria, assim, matar a contemplação; então, era
dos monumentos antigos, trabalha-se para elevar o nível artístico e moral inútil lamentar o tempo das diligências, mas o automõvel
daqueles que, por seu intermédio, recebem uma iniciação ao belo ou à veio substitui-las e, de novo, os turistas detêm-se nas igre-
imagem de nossas grandezas patrióticas." A paisagem dos monumentos jas abandonadas.
Marcel Proust, À la Recherche du temps perdu.
torna-se desse modo uma lição propícia a instruir seus habitantes -
evocando uma convicção muito apreciada pelo patrimônio jacobino.88
No decorrer da Terceira República, a imagem do "patrimônio", sem No decorrer de sua viagem à Inglaterra com o amigo Chéruel, em
ter passado ainda por qualquer ampliação, participou de um projeto agosto de 1834, Michelet foi visitar o castelo de Warwick, acessível
democrático que era perfeitamente estranho à elaboração dos doutri- habitualmente aos "turistas". Ele confessa, então, ter sido "tocado pela
nários. O sucesso da aculturação republicana da França (especialmente liberalidade com que o lord abre a casa aos estrangeiros. A conservação
pela escola) ficou comprovado, antes de 1914, pelo fato de que, para de tal castelo custa somas enormes; ora, o proprietário usufrui dele
retomar uma vigorosa conclusão de Alphonse Dupront, "a pátria tor- menos que o público. Os viajantes sucedem-se sem interrupção. O filho
nou-se patrimônio"." De fato, cada um "pode encontrar nela aquilo de do lord estava ocupado a pintar a paisagem. Levaram-nos ao quarto
que tem necessidade. Terra, antepassados, história, ideal, promessa de dormir, ao toucador. Eu entrava com hesitação; parecia-me que era
de futuro ou de glória e justificativa para o sacrifício: eis o que, de uma uma forma de violar a santidade do lar doméstico. Cartas e jornais
forma desconexa ou confusa, concorre para a subsistência da pátria." estavam em cima da mesa da condessa; o retrato de Napoleão sobre
uma cadeira. [...] Tal uso da opulência e da grandeza é realmente um
sacerdócio da arte; prouvera que o fluxo nivelador, em fase ascendente,
venha a respeitar esta arca da arte e da Antiguidade".1
Semelhante liberalidade inscrevia-se na herança do século XVIII,
87. Sucessivamente, Rapport..., par M. Courcelle-Seneuil, Projet de loi pour la conservation
des monuments historiques, 1881, p. 2; e L. Tétreau, Législation relative aux monuments a de uma Inglaterra em que o patrimônio dos aristocratas, acessível a
et objets d'art, Paris, 1896, p. 3. um público mais ou menos distinto, era considerado como herança
2
88. "Apesar de serem bastante tributários de uma filosofia orleanista dos interesses, os da coletividade no âmbito de uma (falsa) consciência coletiva. Suas
integrantes da Terceira República conservam alguns aspectos dos antepassados ilustres
da rue Saint-Honoré, a saber: a precedência do cidadão em relação ao homem pri- formas permaneceram imutáveis de Jane Austen a 1914, tanto mais
vado e o papel pedagógico do Estado, portanto da escola, na formação do cidadão."
(François Furet, "Les Jacobins", in Lettre Internationale, vol. 15, 1987, p. 86.)
1. Éric Fauquet, Michelet ou la gloire du professeur d'histoire, Paris: Cerf, 1990, p. 194.
89. Alphonse Dupront, La France et les Français, Paris: Gallimard, "Encyclopédie de
2. Linda Colley, Britons: Forging the Nation (1707-Ie837), New Haven: Yale University
la Pléiade", 1972, p. 1433. Será possível comparar essa postura com a construção Press, 1992. Sobre o efeito de atualidade de tal leitura, cf. Francis Graham-Dixon,
italiana, graças a uma monografia recente: Simona Troilo, La Patria e la memoria: "The Albatross of the Past: Colley's Britons and Early Twenty-First Century Britain",
Tutela e patrimonio culturale nell'Italia unira, Milão: Electra, 2005.
in Journal of Contemporary History, vol. 9, 2005.

196 197
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÓNIO NO OCIDENTE A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

que "a persistência do Antigo Regime"3 revelou-se, nesse ponto, im- que evoca a concentração utópica dos parques temáticos.6 Por mais
pactante: no monumental Palácio de Blenheim, no final do século, caricatural que possa parecer, essa patrimonialização bem-sucedida de
Consuelo Vanderbilt — norte-americana, herdeira de considerável um castelo-museu não deixa de ser reveladora das rupturas sucessivas
fortuna que se tornou duquesa de Marlborough pela vontade materna pelas quais havia passado a herança histórica em suas relações com a
— descreveu os dias de visita do domínio de um modo semelhante ao propriedade e com a legitimidade.
utilizado cerca de cem anos antes pelo historiador francês.4 Entretanto,
Michelet era sensível, sobretudo, às ameaças que pairavam sobre os
monumentos da tradição — igrejas e castelos, através da Europa e, A nova urgência da transmissão
em primeiro lugar, na França — diante das medidas tomadas pelo
recém-iniciado século liberal-democrático. No Journal, ele evocava O patrimônio ocupa, atualmente, uma posição privilegiada nas con-
sua "devoção" por "essa grandeza moribunda" e acrescentava que "os figurações da legitimidade cultural, nas reflexões sobre a identidade e nas
corvos da demagogia planam e crocitam acima desse grande cadáver políticas do vínculo social.' Do ponto de vista da legitimidade, ele tem a
feudal; os ecos da imprensa contribuem para desmantelar e solapar ver com uma antropologia jurídica e política de longa duração, permitindo
essas poderosas torres". inscrever-se em uma filiação e reivindicar uma transmissão. Por sua vez, o
Um século e meio depois, esses temores tornaram-se inúteis, ape- segundo aspecto, o da identidade, coincidiu, desde a Revolução Francesa e
sar da profusão de crônicas sobre as destruições especulativas e, em a aparição do Estado-Nação no decorrer do século XIX, com a afirmação
particular, sobre as dispersões de um grande número de mobiliários. de uma coletividade ou de uma "comunidade imaginária", de acordo com a
Em compensação, o visitante do castelo do "fazedor de reis" assiste, designação forjada por Benedict Anderson. Desde o período posterior
atualmente, a um espetáculo totalmente diferente daquele presenciado à Segunda Guerra Mundial até os últimos decênios, as políticas, tanto
por Michelet: figurantes em traje de época, manequins de cera, música educativas e culturais do Estado-Providência como sociais e urbanas, fi-
de fundo, e até mesmo odores ad hoc fazem parte de uma diversão bem zeram com que o culto da herança deixasse de ser a preocupação de uma
organizada. Em relação aos parques de atração prestigiosos do grupo reduzida elite para se tornar um compromisso coletivo, nem que fosse por
Tussaud, uma encenação convencional do passado acompanha uma delegação. Além dos desafios tradicionais a enfrentar pelas instituições, o
comercialização bem rentável do lazer5; neste caso, o castelo apresenta fenômeno participa de uma mutação fundamental: verifica-se, a partir da
o resumo acessível a "outros mundos" que vão da Idade Média até o década de 1960, a mudança da definição da cultura, que, daí em diante,
século XIX vitoriano, justapostos a alguns metros de distância, no engloba os mais diversos aspectos das práticas sociais, misturando alta e
âmago de um espaço "sintético", de um hiper-realismo desconcertante, baixa cultura, de acordo com a afirmação dos sociólogos, no momento
em que a paisagem material e imaterial passava por alterações aceleradas.
Longe da definição canônica de uma herança cultural coerente a ser trans-
mitida à geração seguinte, assistiu-se à emergência da ideia de culturas
3. Amo Mayer, La Persistance de l'Ancien Régime: L'Europe de Ie848 à la grande guerre,
Paris: Flammarion, 1983. múltiplas, propícias a alimentar e a fortalecer a pluralidade de identidades.
4. Consuelo Vanderbilt Balsan, The Glitter and the Gold, Maidstone: George Mann,
1973. 6. Louis Marin, Utopiques, jeux d'espaces, Paris: Minuit, 1973.
5. David Lowenthal, "The Past as a Theme Park", in Terence Young e Robert Riley 7. Cf. Patrice Beghain, Le Patrimoine: Culture et lien social, Paris: Presses de Sciences
(orgs.), Theme Park Landscapes: Antecedente and Variations, Washington: Dumbarton Po, 1998. Sobre os casos franceses, Alban Bensa e Daniel Fabre (orgs.), Une Histoire
Oaks Research, 2002, p. 11-23. à soi, Mission du Patrimoine Ethnologique, cahier n. 18, Paris: MSH, 2001.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

2
Atualmente, nas nossas sociedades de consumo e de cultura de estragos colaterais de conflitos ou "domicídios" negociados)1 -além
massa, o uso do patrimônio, sua interpretação, até mesmo sua simu- outros tantos tipos de destruição, alguns inéditos, outros desapareci-
lação — daqui em diante, por dispositivos virtuais —, passam por ser dos na Europa desde o final da Segunda Guerra Mundial. Por outras
o instrumento de um desenvolvimento local ou nacional, em função palavras, do mesmo modo que a memória tornou-se uma ferramenta
13
do turismo e das práticas mercantis do saber e do lazer.8 Por todas essas bem eficaz para pensar a justiça e o acervo dos conhecimentos , assim
razões, o patrimônio tornou-se o objeto de uma "cruzada popular", também o patrimônio — inclusive no "ódio aos monumentos" que
de acordo com a expressão forjada por David Lowenthal. Na Grã- ele suscita nas guerras civis contemporâneas — participa de uma nova
-Bretanha, ao lado da abordagem científica do patrimônio arqueo- consciência política. A razão patrimonial pode fornecer uma moldura
lógico, determinados usos "neopagãos" (os de Stonehenge) ou outras para as iniciativas de restituição de bens culturais ou para as decisões de
práticas marginais (como a detecção de metais por arqueólogos anistia em relação a pilhagens do passado — por exemplo, nas relações
amadores) 9 são considerados, por exemplo, como uma modalidade de de uma metrópole com suas antigas colônias.
apropriação — um procedimento furtivo, teria dito Michel de Certeau10 Em todas as circunstâncias, o imperativo de conservação da herança
— que deve ser pensada em uma perspectiva patrimonial democrática. — material e, daqui em diante, imaterial — impõe-se de maneira ge-
Paralelamente, nos últimos vinte anos, as recomposições de heranças neralizada e obrigatória, como é testemunhado pelo aparato legislativo
materiais na Europa, associadas ao desaparecimento do bloco socialista, e por regulamentos que não cessam de estender sua área de aplicação.14
deram lugar a uma patrimonialização às vezes nostálgica. Se sua ilustra- Nos últimos dois séculos, numerosas nações têm elaborado e imple-
ção mais espetacular é fornecida pelo filme Adeus, Lênin, uma parte do mentado políticas de preservação e de conservação do patrimônio nos
fenômeno, sob a forma de um novo futuro da nostalgia, refere-se, inver- respectivos territórios. Na sequência dessas medidas, as organizações
samente, a uma antropologia política dos fantasmas precedentes (estão internacionais, em uma escala mais ou menos considerável, retomaram
de volta os reis defuntos e os príncipes desaparecidos)." Finalmente, o ou reivindicaram, por sua vez, esse tipo de preocupações. A Convenção
sentimento de urgência que tem sido o incentivo constante da consci- Cultural Europeia, promulgada em 19 de dezembro de 1954, definiu
ência patrimonial foi, recentemente, duplicado por determinados pro- uma herança comum do Continente em termos de um conjunto de
cessos de destruições (iconoclastias de ordem religiosa ou ideológica, línguas, de história e de civilização. Por último, a Unesco transformou
essa política em um de seus títulos de glória menos contestados; desse
modo, as ações em favor do patrimônio tornaram-se, frequentemente,
8. Cf. Xavier Greffe, La Valorisation économique du patrimoine, Paris: La Documentation
a vanguarda de uma democratização cultural.
Française, 2003.
9. Raphaël Samuel, Theatres of Memory: Past and Present in Contemporary Culture, I. Londres:
Verso, 1996. 12. John Douglas Porteous e Sandra E. Smith, Domicide: The Global Destruction of
10. Uma posição, aliás, ilustrada pela Escola de Birmingham. Home, Montreal: McGill-Queen's University Press, 2001; livro em que se encontra
11. Sobre a natureza da cultura material que suscita essa nostalgia, cf. Paul Betts, "The a geografia das tentativas deliberadas de destruição das casas e dos terrenos ocupados
Twilight of the Idols: East German Memory and Material Culture", in Journal of com construções.
Modera History, vol. 72, n. 3, 2000, p. 731-765. De forma mais geral, cf. Svetlana 13. Ian Hacking, L'Âme réécrite: Étude sur la personnalité multiple et les sciences de la
Boym, The Future of Nostalgia, Nova York: Basic Books, 2001; Katherine Verdery, mémoire, Le Plessis-Robinson: Éditions Institut Synthélabo, "Les Empêcheurs de
The Political Lives of Dead Bodies: Reburial and Postsocialist Change, Nova York: penser en rond", 1995.
Columbia University Press, 1999; Jan-Werner Müller (org.), Memory and Power in 14. Em 2003, a Unesco adotou uma Convenção para a Preservação do Patrimônio
Post-War Europe: Studies in the Presence of the Past, Cambridge: Cambridge University Cultural Imaterial. [Cf. Ra Abreu e Mário Chagas (orgs.), Memõria e patrimônio:
Press, Introdução. ensaios contemporâneos, 2. ed., Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. (N.T.)]

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

Esse triunfo não deixa de implicar riscos para a definição e para à análise de suas modalidades — jurídicas e científicas — de identificação
o uso reflexivo do termo, aos poucos debilitado e banalizado a ponto e de gestão, e, finalmente, à abordagem de suas práticas e de suas frui-
de abranger uma multiplicidade de noções e de objetos. De tal modo ções.' Com efeito, os "achados" atinentes ao patrimônio, em cada época,
que, na França, o interesse pelo patrimônio, nas pesquisas em história elaboram-se através de inventários, percursos e operações comerciais" que
e ciências humanas, tem sido limitado; diferentemente do arquivo, que mobilizam intrigas, tipos de inventores ou de patrimonializadores em
à primeira vista lhe é relativamente aparentado por seu objeto e, ao uma relação com a "ecologia" dos objetos e dos lugares, orientada pelos
mesmo tempo, por ser uma instituição de memória", mas que havia diferentes registros do acesso, da (re)apropriação e da emoção.
assumido o caráter de uma metáfora central — tanto na teoria cultural A noção de patrimônio implica um conjunto de posses que devem
após Michel Foucault e Jacques Derrida quanto na reflexão epistemo- ser identificadas como transmissíveis; ela mobiliza um grupo humano,
lógica dos historiadores e dos antropólogos, ou nas interpretações da uma sociedade, capaz de reconhecê-las como sua propriedade, além
paisagem, do corpo e da fotografia (Rosalind Kraus) —, bem antes de demonstrar sua coerência e organizar sua recepção; ela desenha,
de tornar-se objeto de uma (re)apropriação crítica pelos arquivistas. finalmente, um conjunto de valores que permitem articular o legado
A atualidade impactante da patrimonialização parece ter impedido do passado à espera, ou a configuração de um futuro, a fim de pro-
o questionamento a respeito da construção dessa forma de obrigação re- mover determinadas mutações e, ao mesmo tempo, de afirmar uma
lativamente à presença material do passado." A afirmação de um ponto continuidade. Esboçadas progressivamente por dispositivos de enqua-
de vista contrário — a eventual recusa da patrimonialização ou sua dramento de artefatos, lugares e práticas, as diversas configurações
contestação — é rapidamente estigmatizada, no debate público, com desdobram-se através das sociabilidades que as cultivam, das afinidades
o termo "vândalo". A emergência de críticas é, por isso mesmo, bastante que se estabelecem por seu intermédio, além das emoções e dos saberes
i mprovável fora da expressão de divergências sobre a maneira de reali- que se experimentam nesse contexto. Tal postura é contrária à ideia
zar, nas melhores condições, o tratamento dos monumentos, objetos de um galpão repleto de obras e monumentos, segundo o modelo do
e sítios. Ocorre, às vezes, que certas reivindicações, por parte de um depósito destinado a fatos, desqualificado por Lucien Febvre, em que
grupo social, conduzem a debater ou a suscitar polêmicas a propósito o conservador do patrimônio, à semelhança do historiador anterior aos
de determinada forma de patrimônio vista como exagerada ou ilegí- Annales, iria coletar as peças patrimoniais em nome de uma moldura
ti ma; mas, em uma visão de conjunto, essas situações que eventual- constantemente válida, marcada somente pelas vicissitudes do gosto.
mente poderiam levar a um discurso crítico permanecem marginais.
Para escapar a tal contingência, a história da invenção e da publici-
dade do patrimônio, pela exposição e pela escrita, deve ser tratada gra- A formação de um cânon
ças ao estudo dos recursos utilizados para seu (re)conhecimento, graças
O estudo do patrimônio corresponde, em sua generalidade, aos três
15. Para um balanço da situação, cf. Jean Boutier, Jean-Louis Fabiani e Jean-Pierre Olivier princípios — ou seja, perceptibilidade, especificidade e singularidade
de Sardan, Corpus , sources et archives, 1999, IRMC, 2001 (Atas das Jornadas de Tunis).
16. Sobre o caso dos museus, cf. Ludmilla Jordanova, "Objects of Knowlegde: A The
Historcal 17. Para um exemplo do ponto de vista metodolõgico, cf. Sharon Macdonald (org.),
Perspective on Museums", in Peter Vergo (org.), The New Museology, Londres: Politics of Display, Londres: Routledge, 1998.
Reaktion Books, 1989, p. 22-40; Daniel J. Sherman, Worthy Monuments: Art Mu- Cf. os resultados da pesquisa recente, histórica e antropológica, sobre a economia
18.
seums and the Polotics of Culture in Nineteenth-Century France, Cambridge: Harvard informal in Noël Barbe e Serge Latouche (orgs.), Économies choisies? Échanges, circu-
University Press, 1989.
lations et débrouille, Paris: MSH, 2004.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

— característicos da sociologia da recepção, tal como haviam sido expli- Os novos monumentos históricos inscrevem-se em um lugar -
citados por Jean-Claude Passeron.19 Seu corpus se fixa nos guias, relatos uma jazida — do qual eles são a ilustração e que, por sua vez, os im-
de viagem, cartas, jornais, catálogos, em função das reproduções em plica seja em uma reivindicação de autoctonia, seja em um culto da
circulação, da importância das evocações ou das citações a seu respeito transmissão nacional24: aliás, não há contradição entre os dois aspectos
ou de que ele é a origem. O discurso patrimonial foi, em primeiro quando o apego ao lugarejo [petite patrie] conduz a uma pedagogia
lugar, uma categoria de celebração própria da literatura artística, sob a da nação [grande patrie]. Visitar seu domínio — os objetos de sua
forma da "exaltação de uma cidade ou de uma nação, apreendidas em petite patrie — torna-se um ato político para o cidadão." Observa-se,
suas tradições e obras", de acordo com o resumo de André Chastel a então, a emergência progressiva de um academismo inédito a respeito
partir de Julius von Schlosser. Na época moderna, os textos escritos dos da conservação-restauração. A arqueologia, paralelamente, dá lugar a
antiquários multiplicaram as listas de obras e as coleções de histórias diversas enunciações dos valores do in situ, reinvestidas em múltiplas
26
relativas a cidades": o cavaleiro de Jaucourt tornou-se seu compilador demonstrações ao sabor dos tradicionalismos ou dos revivals.
nos verbetes da Encyclopédie dedicados à geografia. Em seguida, com Atualmente, as reflexões político-administrativas não cessam de
a Revolução Francesa e o consequente desaparecimento dos objetos afirmar que o patrimônio é "um presente do passado"27, o que implica
de memória e das civilidades do Antigo Regime, o século XIX assistiu tomar consciência das omissões e das falsas evidências. Assim, marcado
à reconfiguração de suas relações com a coletividade. Esse comércio por notórias controvérsias pós-coloniais, o patrimônio mundial abre-
particular com as "lembranças" delineou formas culturais que levam -se, com um relatório de Léon Pressouyre, para um retorno reflexivo
a uma reação mútua entre estética e política, do sublime à nostalgia, sobre sua composição e seus usos." Para além da crítica contra ficções
dando lugar a múltiplas interpretações de apropriação.21 Trata-se de um
elemento-chave das relações entre historiografia da arte e construções romain" Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit
24. Yann
, in Archives de la Philosophie du Droit, 1980, p. 425; "Les Ornements, la
patrimoniais. O vínculo da conservação com a nação parecia evidente
cité, le patrimoine", in Images romaines, Paris: ENS, 1998.
quando a maior parte desses objetos — "que contam"22 e cuja beleza
25. Assim, Jean-François Chanet, Les Félibres Cantaliens: Aux Sources du Régionalisme
pertence a todo o mundo, como escreve o primeiro Victor Hugo - auvergnat (1879-19Ie4), Clermont-Ferrand: Adosa, 1999; Philippe Martel, "Le Féli-
tornaram-se a encarnação da "comunidade imaginária".23 brige", in P. Nora, Les lieux de mémoire, III: Les France, 2: Traditions, Paris: Gallimard,
1992, p. 566-604.
26. Dois exemplos bastante significativos: John Hutchinson, "Archaeology and the Irish
19. J.-C. Passeron, Le Raisonnement sociologique (l'espace non poppérien du raisonnnement
Rediscovery of the Celtic Past", in Nations and Nationalism, vol. 7, n. 4, 2001, p.
naturel), Paris: Nathan, 1991, cap. IX e XII. 505-519; além de Catherine Bertho-Lavenir, L'Invention de la Bretagne: Genèse
20. Cf. Julius von Schlosser, La Littérature artistique, Paris: Flammarion, 1984. Essas sociale d'un stéréotype", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 35, nov. 1980,
áreas, raramente estudadas na França, são bem aprofundadas na Inglaterra. Cf. Rose- p. 45-62; e "La Géographie symbolique des Provinces: De la Monarchie de Juillet à
mary Sweet, The Writing of Urban Histories in Eighteenth-Century England, Oxford, l'entre-deux-guerres", in Ethnologie Française, n. 3, 1988.
Clarendon, 1997, cap. 1, em particular sobre o antiquariato. 27. Notre Patrimoine, un présent du passé, Proposition à Madame le ministre de la Culture
21. Suzanne Marchand, Down from Olympus, Archaeology and Philhellenism in Germany, sous la présidence de Roland Arpin, Groupe-conseil sur la politique du patrimoine
Ie750-1970, Princeton: Princeton University Press, 1996; e o clássico Eliza Marian culturel du Québec, Canadá, nov. 2000.
Butler, The Tyranny of Greece over Germany, Cambridge: Cambridge University Press,
28. Ao lado de disputas já antigas sobre as restituições de obras, Moira G. Simpson forne-
1935. ceu um quadro dos debates atuais sobre a devolução dos objetos sagrados e dos restos
22. Daniel Miller, "Why some Things Matter", in D. Miller (org.), Material Cultures, humanos em Making Representations: Museums in the Post-Colonial Era, Londres/Nova
Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 3-21. York: Routledge, 1996. Para uma análise exemplar, cf. Yves Le Fur, "Europe chasseuse
23. Benedict Anderson, "Census, Map, Museum", in Imagined Communities, Reflections on de têtes en Océanie, siècles", in La Mort n'en saura rien: Reliques d'Europe
the Origin and Spread of Nationalism, Nova York/Londres: Verso, 1991, p. 163-186. et d'Océanie, Paris: RMN, 1999, p. 59-67.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

sinceras ou invenções desonestas, trata-se de questionar a produção e entre cientistas, administradores, legisladores e opinião pública.32 Esse
o consumo da própria evidência patrimonial, ao mesmo tempo imagi- esforço documental fornece representações frequentemente concorren-
nária e instituição. O historiador deve justificar a formação complexa tes de um conjunto imperceptível como tal.33 No entanto, essas monta-
das inclusões e exclusões que constituem o cânon patrimonial. gens inibem, em geral, considerar o detalhe dos procedimentos que as
Os objetos patrimoniais têm sido protegidos por convenções discur- tornam possíveis, impedindo de pensar as incertezas das ofertas, esco-
sivas que, por sua vez, estão associadas, frequentemente, a exigências ma- lhas e recursos que marcaram, e até mesmo limitaram estreitamente, a
teriais ou técnicas. Os guias de pesquisa ou os compêndios pedagógicos, realização de tais inventários. As "coleções efêmeras" formadas assim,
os documentos ministeriais e os pareceres das sociedades científicas — e, para distorcer a expressão forjada por Francis Haskell, são outras tantas
de forma mais ampla, os romances familiares dos patrimonializadores e (re)produções — pela imagem34 e pelo texto escrito — de objetos em
toda a literatura favorável aos monumentos pertinentes — alimentam uma recontextualização ad hoc; elas empenham-se na identificação
especulações sobre as nomenclaturas, questionamentos sobre a história, de um Estado-Nação em determinado momento do saber e do gosto
afirmações moralizadoras e enunciações de hierarquias. Os detalhes a que corresponde à definição de sua identidade.
apreender correspondem a diversos gêneros de inscrição do que é notório e
apropriado no âmago de repertórios a construir." Em qualquer circunstân-
cia, as missões improvisadas ou planejadas, as visitas e as coletas, as compi- As civilidades do patrimônio
lações e as investigações, as intervenções de restauração e as aprendizagens
de savoir-faire elaboram e sancionam determinados procedimentos." Os "amigos" dos objetos patrimoniais, sejam eles amadores ou pro-
O jornalismo patrimonial, se é que se pode atribuir-lhe tal qualificativo, fissionais, polígrafos ou experts, militantes ou funcionários, e estejam
que anuncia periodicamente "invenções" e descobertas, continua empe- eles constituídos ou não em comunidades de interpretação, erigem-se
nhado em ajustar o sentido de um passado e a consciência do presente31 em porta-vozes ou em advogados das inovações, apropriações e atri-
— contribuindo tanto para normalizar as diferenças, como para colocar buições." Algumas dessas figuras — o antiquário e seus vestígios, o
em destaque a singularidade de um monumento ou de uma peça para o conservador e seu museu, o folclorista e seu material — passaram aos
entendimento da história e para suscitar o orgulho de uma coletividade. poucos para o estado de estereótipos quase antropológicos, para além
A documentação patrimonial, assimilada na origem por Guizot ao do registro dos clichês literários." Eles encarnam convenientemente
gênero da estatística descritiva alemã, cria cifras em condições particula-
32. Cf. Eric Brian, La Mesure de l'Êtat: Administrateurs et géomètres au XVIII' siècle, Paris:
res de produção — cifras comparadas, aos poucos, entre nações para Albin Michel, 1994.
avaliar o "peso" relativo de seus patrimônios, no cerne de intercâmbios 33. Thomas da Costa Kaufmann fornece um balanço historiográfico que, em certos
aspectos, responde à questão em Toward a Geography of Art, Chicago: University of
Chicago Press, 2004.
34. Cf., por exemplo, Anne de Mondenard, La Mission héliographique: Cinq Photographes
29. Cf. N. Leask, Curiosity and the Aesthetics of the Travei Writing, Ie770-1840. "From an parcourent la France en 185Ie, Paris: Monum/Éditions du Patrimoine, 2002.
Antique Land", Oxford: Oxford University Press, 2002. 35. Os estudos de microssociedades, assim como dos intercâmbios informais em seu seio,
30. Cf., a partir dos objetos de ciência, as perspectivas abertas por Éric Brian, "Calepin: multiplicam-se, atualmente, na história moderna e contemporânea. Nesse ponto, alguns
Repérage en vue d'une histoire réflexive de I'objectivation", in Enquête, vol. 2, 1996, bosquejos bastante sugestivos de Miguel Tamen, em Friends of lnterpretable Objects,
p. 193-222. Cambridge: Harvard University Press, 2001, podem servir de base metodológica.
31. Cf. a contribuição de Daniel Woolf em Brendan Dooley e Sabrina Baron, The Politics 36. No início do século XIX, a peça Les Antiquaires, de Sade , dá testemunho, entre
of Information in Early Modern Europe, Londres: Routledge, 2002. outros, desse registro.

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as identidades construídas pela reciclagem de imagens, objetos e prá- antiquários, dos colecionadores mais ou menos benfeitores ou dos
ticas sem herdeiros naturais e, simultaneamente, "dados" em herança; conservadores cultos, quando seus conhecimentos ou suas preferências
além disso, alimentam as intrigas de diferentes discursos ou roteiros, pessoais são pouco ou mal compartilhados ou, pelo contrário, de seu
científicos ou familiares, e fazem parte da encenação das redes de sucesso quando eles recebem, prestigiados por um concerto de elogios,
socialização erudita e artística, segundo diversos modelos — por um reconhecimento particular." As histórias de vidas ou os romances
exemplo, o do proselitismo patrimonial.37 Nesse aspecto, é elucidativo familiares — por exemplo, o dos Visconti, conservadores do Vaticano
o caso do escritor e desenhador Alexis Muston, homem-memória dos e, em seguida, do Louvre no final do século XVIII, que acompanharam
habitantes do cantão de Vaud, elogiado por Michelet. De fato, os prin- os objetos no meio de ocupações e revoluções — mostram como é
cípios morais no plano individual e as éticas coletivas elaboram-se ou possível articular a singularidade de compromissos particulares com a
reconfiguram-se a respeito de legados mais ou menos reivindicados e partilha de valores coletivos.
de invenções mais ou menos oportunas; assim, a emulação científica Neste aspecto, foi implementada uma considerável diversidade de
e a rivalidade pela fruição dos acervos exacerbam-se mutuamente, em maneiras de fazer: assim, as práticas da escrita habitual do patrimo-
benefício da identidade de uma população, de uma memória religiosa nializador, da qual participam seus eventuais cadernos de compras,
ou de uma cidade. relatórios de escavações ou notas de investigação; aliás, a sondagem das
Para além de uma geografia sempre essencial ao projeto patrimo- riquezas de todo esse acervo foi empreendida pela etnologia contem-
nial, as atividades dos amigos de objetos desenham uma economia porânea." Essa tentativa do homem do patrimônio, decidido a dotar
da intuição e do acaso, a da serendipity,38: ela se encontra na origem de o objeto com as respectivas referências — temporais, espaciais — para
achados bem preparados e, por seu intermédio, de uma hierarquia situá-lo, explicá-lo e interpretá-lo", segundo suas ambições, é sempre
dos "patrimonializadores" — colecionadores, arqueólogos, "acumu- mais ou menos uma autodidaxia, de acordo com o termo utilizado
ladores" de objetos "selvagens" ou, ainda, atores de folclorismos mais desde o século XVIII a propósito do connoisseurship, considerado como
ou menos associados a uma "performatividade" comemorativa, sob um saber aprendido "à força de correr", ou seja, no decorrer de viagens
os auspícios do presentismo.39 Daí, a constatação do fracasso dos
40. Roger Cardinal, "The Eloquente of Objects", in Anthony Shelton (org.), Collectors:
Expressions of Self and Other, Londres: Horniman Museum and Gardens/Museu
37. Conviria empreender a comparação com a ética da república das letras, abordada Antropológico da Universidade de Coimbra, 2001.
por Ann Goldgar em Impolite Learning, New Haven: )(ale University Press, 1995, e 41. Daniel Fabre (org.), Écritures ordinaires, Paris: Centre Georges-Pompidou/POL, 1993;
sua crítica por Christian Jouhaud. Martin de La Sourdière e Claudie Voisenat (orgs.), Par Écrit: Ethnologie des écritures
38. Sobre esse termo, inventado por Horace Walpole em 1754, e seus recursos para uma quotidiennes, Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1997. Em outro
sociologia e uma antropologia histõricas do trabalho científico, cf. Robert K. Merton plano, para exemplos de escritas pesquisadas em que algumas são patrimonializadas,
e Elinor G. Barber, The Traveis and Adventures of Serendipity: A Study in Historical cf. Armando Petrucci, Jeux de Lettres: Formes et usages de l'inscription en Italie, XIe-XXe
Semantics and the Sociology of Science, Princeton: Princeton University Press, 2004. siècle, Paris: EHESS, 1993; e Béatrice Fraenkel, Les Écrits de septembre: New York
39. Em 1962, Hans Moser faz surgir a questão do folclorismo nos estudos etnolõgicos 2001, Paris: Textuel, 2002.
sobre a tradição, distinguindo três tipos: a reprodução de práticas folclóricas fora de seu 42. Bonnie Smith, em The Gender of History: Men, Women and Historical Practice,
contexto, a imitação de um folclore popular por outras classes sociais e a invenção de Cambridge: Harvard University, 1998, examina a questão do gênero no estudo de
um folclore sem tradição anterior. Cf. Venetia J. Newall, "The Adaptation of Floklore arquivos — particularmente, a relação entre trabalho original e vulgarização, entre
and Tradition (Folklorismus)", in Folklore, vol. 98, n. II, 1987, p. 131-151. Cf. ainda amador e profissional — de uma forma que poderia ser útil aqui para pensar a posição
a análise de Barbara Kirshenblatt-Gimblett sobre o encontro do folclorismo com o do feminino na elaboração de um corpus patrimonial e sua validação. Cf., de forma
etnólogo, "Folldorists in Public: Reflections on Cultural Brokerage in the United mais abrangente, o dossiê reunido por Luisa Passerini e Polymeris Voglis, Gender in
States and Germany", in Journal of Folklore Research, vol. 37, n. 1, 2000, p. 1-19. the Production of History, EUI Working Paper HEC, n. 2, 1999.

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e de intercâmbios. Nesse caso, foi essencial elaborar um sentido visual de objetos e de imagens de baixo preço, cujo "bom gosto" é variável, nos
do passado, desde as paisagens formadas por monumentos urbanos às li mites do popular e do pitoresco." Por conseguinte, essas civilidades
ruínas na zona rural, em uma relação complexa com a historiografia e patrimoniais culminam em apropriações.
com as aprendizagens eruditas; na sequência, abriu-se o leque das curio- A fruição do patrimônio corresponde a convenções de ordem moral
47
sidades, exigindo uma verdadeira coleta de recursos complementares. e historiográfica que deram lugar a uma abundante literatura ; desde o
A tentativa de preparar uma história da patrimonialização da cultura período moderno, esta incrementou-se a partir de questionamentos sobre
material implica debruçar-se sobre a erudição e sobre o colecionismo com os estágios da história, assim como de especulações sobre as mitologias,
suas disposições tácitas e seus recursos mais insignificantes, em suma, além de afirmações sobre os modelos e os valores. Assim, o imaginário
com todos os gestos que organizam a percepção e a representação dos social da genealogia marcou profundamente, durante o Antigo Regime, a
objetos em função de saberes locais, tradicionais e populares, que estão ideia da transmissão." Na sequência, a apropriação de um patrimônio as-
relacionados, por um lado, com as afinidades específicas de eruditos ou de sumiu uma forma mais dinâmica, propícia a alimentar o senso cultural de
amadores e, por outro, com os conhecimentos gerais do homem de bons coletividades, cuja definição ocorreu progressivamente em uma interação
costumes.43 Esboça-se, assim, uma verdadeira economia da arqueologia, com os elementos estranhos e o respeito pela preocupação da perpetuação.
desde o Antigo Regime até as redes mais densas da poligrafia do século Essas formas de apropriação passam por diferentes graus de enten-
XIX, entre descobertas fortuitas por ocasião das lavouras campestres, "in- dimento social com o passado material, assim como por distribuições
venções" por antiquários locais e reconhecimentos no âmago da erudição desiguais de "grandezas" — por exemplo, entre coleções e museus."
nacional.44 Para além disso, os princípios de construção do corpus cor- Uma das questões centrais da história cultural do patrimônio na Europa
respondem, em geral, à estratégia do trabalho em comissão para resolver contemporânea parece ser a seguinte: se e como o Antigo Regime dos
crises ou problemas de definição, assim como aos modos da inspeção e objetos de memória e de suas civilidades desapareceu em benefício de
50
da inscrição em séries que pressupõem uma cadeia de categorias a pre- novas referências e de novas partilhas. De fato, no decorrer dos séculos
encher, de lugares a verificar, em suma, uma hierarquia a estabelecer." XVIII e XIX, numerosos amigos de objetos parecem desapossados, do
No afastamento ou na proximidade das peças, na permanência ou na
precariedade de sua exposição, na eventual sedução dos procedimentos
46. Rosemary Hill, "Cockney Connoisseurship: Keats and the Grecian Urn", in Things,
de sua reprodução, efetua-se, de qualquer modo, uma publicidade am- vol. 6, 1997; e, de forma geral, uma grande parte dos artigos dessa revista, tais como
pliada dos patrimônios que mantém vínculos complexos com o comércio os de Res no domínio antropológico.
47. Assim, Champfleury, L'Homme aux figures de cire, in Les Excentriques (1855), Paris: Le
Promeneur, 2004; e Brigitte Louichon, "Champfleury: Du Bric-à-brac à la collection",
43. Esse é o programa realizado por Keith Thomas com o livro Dans le Jardin de la in Jean-Louis Cabanès e Jean-Pierre Saïdah (orgs.), La Fantaisie post-romantique,
nature: La Mutation des sensibilités en Angleterre à l'époque moderne (1500-1800), Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2003, p. 293-314.
Paris: Gallimard, 1985. De maneira geral, cf. Peter Becker e William Clark (orgs.), 48. Renato Bizzocchi, em Genealogie incredibili: Scritti di storia nell'Europa moderna,
Little Tools of Knowledge: Historical Essays on Academic and Bureaucratic Practices, Bolonha: Il Mulino, 1995, fornece pistas relevantes sobre este tema.
Ann Arbor: Michigan University Press, 2001.
49. Entre raros artigos, cf. Gwendolyn Wright (org.), The Formation ofNational Collec-
44. Daniel Woolf, The Social Circulation of the Past: English Historical Culture, Ie500- tions of Art and Archaeology, Washington: National Gallery of Art, 1996, p. 29-39;
1730, Oxford: Oxford University Press, 2003. Annie Coombes, "Museums and the Formation ofNational and Cultural Identities",
45. Além dos estudos de Anne-Marie Thiesse (La Création des identités nationales. Paris: in The Oxford Art Journal, vol. 11, n. 2, 1988, p. 58-68.
Le Seuil, 2001), cf., sobre esse tipo de sociabilidade erudita a partir da Monarquia 50. Michael Herzfeld, Cultural Intimacy: Social Poetics in the Nation-State, Londres/
de Julho, Stéphane Gerson, The Pride of Place: Local Memories and Political Culture Nova York: Routledge, 1997, p. 27; do mesmo modo, A Place in History: Social and
in Nineteenth-Century France, Ithaca: Cornell University Press, 2003. Monumental Time in a Cretan Town, Princeton: Princeton University Press, 1991.

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ponto de vista material e simbólico, de suas disposições individuais tornam motivo de fruição e de disputa — ou não — suscita, de forma
à experiência histórica quando se elabora um movimento coletivo totalmente inovadora, a questão da adesão dos cidadãos a um depósito
dedicado ao "patrimônio". A propósito da Alemanha, Susan A. Crane de valores, a um interesse comum da imaginação e da arte. Tudo isso
defende a tese de uma perda das capacidades particulares de experiência forma o que poderia ser designado por "moralidade" do patrimônio nas
histórica quando da fusão dos interesses pessoais de colecionadores e representações coletivas. Ora, tal moralidade pode adotar o partido de
de amadores de história no âmago de um movimento coletivo em prol do um programa de emancipação, ou de um conformismo social e cultural.
"patrimônio" alemão.51 Em outro plano, H. Glenn Penny esboça um
quadro bastante semelhante dos efeitos da publicidade museal sobre a
natureza dos objetos colecionados e sobre os discursos que animam seus O ponto de vista da recepção
colecionadores individuais.52 Entretanto, diferentes modos de viver a
patrimonialidade chegaram a ser experimentados de maneira simultânea: A obra do historiador de arte Alois Riegl (1858-1905), Le Culte mo-
assim, tal objeto que é da alçada de uma intensa patrimonialização pú- derne des monuments, escrita em 1903, no momento em que ele havia sido
blica e tal outro que participa de uma idiossincrasia vieram a trocar suas incumbido de refletir sobre a conservação dos monumentos, constitui uma
posições em uma geração ou a um ritmo mais rápido ou, ainda, coexistir tentativa sem precedentes de pensar não a herança monumental, como tinha
em função de múltiplas identidades sociais. No decorrer do século XX, sido elaborada anteriormente nas histórias do vandalismo e da conservação,
os dispositivos da conservação articulam-se, de maneira mais ou menos mas a relação que a cultura ocidental havia mantido, até então — e pode
visível, às vicissitudes dos estereótipos nacionais, à construção das narra- manter no futuro —, com tal herança. Por conseguinte, ele inventa um
tivas identitárias e à massificação dos públicos, em particular, através das novo tema que tem ocupado, incessantemente, nossos interesses eruditos e
mutações da museografia internacional." Simultaneamente, a abertura de políticos: o fenômeno de patrimonialização em sua relação com a história
museus, cada vez mais diversificados, multiplica o número de potenciais da arte. Trata-se de um exercício para pensar as relações entre o tempo
objetos de afinidade, sejam eles nacionais ou exóticos, introduzindo, por inscrito nas obras de arte e o tempo percebido no seio das sociedades.
conseguinte, certa interação [jeu ] na contramão de uma instrumenta- De maneira mais precisa, Riegl procura analisar a democratização em ação
lização unívoca." A proliferação dos objetos patrimonializados que se no apego aos monumentos e na defesa de sua autenticidade.
Em seu ensaio, esse autor identifica a instantaneidade visual e, por
51. Susan A. Crane, Collecting and Historical Consciousness in Early Nineteenth-Century conseguinte, perfeitamente democrática, da relação com o monumento
Germany, Ithaca: Comell University Press, 2000. como a mola principal da próxima extensão do senso da herança: a
52. H. Glenn Penny, Objects of Culture: Ethnology and Ethnographic Museums in Imperial época das massas será, de fato, dominada pelo sentimento (stimmung)
Germany, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2001.
e não pela consciência erudita associada, até então, ao monumento
53. Carol Duncan, Civilizing Rituais: Inside Public Art Museums. Londres: Routledge,
1995. histórico. Do mesmo modo que Guizot havia dispensado as leituras
54. Alice von Plato, Prãsentierte Geschichte: Ausstellungskultur und Massenpublikum im maniqueístas do vandalismo revolucionário, assim também Riegl
Frankreich des 19. Jahrhunderts, Frankfurt/Nova York: Campus, 2001; Malcolm parece abandonar as leituras científicas sobre a proteção dos monu-
Baker e Brenda Richardson (orgs.), A Grand Design: The Art of the Victoria and Albert
Museum, Baltimore Museum of Art, 1997 (Catálogo da exposição); Stephen Conn, mentos." Ambos propõem uma leitura que supera as considerações
Museums and American Intellectual Life, 1876-Ie926, Chicago: University of Chicago
Press, 1998; Nicholas Thomas, Entangled Objects: Exchange, Material Culture, and
Colonialism in the Pacific, Cambridge: Harvard University Press, 1991, cap. 4, "The 55. Sobre o contexto vienense e as influências filosóficas, cf. Michael Gubser, "Time
European Appropriation of Indigenous Things", p. 125-185. and History in Alois Riegl's Theory of Perception", in Journal of the History of Ideas,

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circunstanciais para recorrer a uma perspectiva muito mais ampla. Em O primado da não intencionalidade na nova definição do monu-
Guizot, a modernidade identificava-se com o advento da imparcia- mento, além de testemunhar dessa inclusão do espectador no processo,
lidade na história, na memória e na herança; por sua vez, em Riegl, remete — para anulá-lo — à distinção, evocada nos primeiros capítulos
trata-se de uma modernidade do próprio presente.% deste livro, entre monumento e antiguidade. Ele tem a ver, sem dúvida,
Ao considerar a definição primeira do monumento, desde a mais com a situação singular da história da arte no círculo universitário de
recuada Antiguidade, ou seja, algo de intencional, Riegl sugere que ela Viena, intimamente associada ao mundo dos museus e inclinada a revi-
será totalmente irrelevante no futuro. O horizonte de uma extinção do sitar — assim, exemplarmente, em Julius von Schlosser — os domínios
monumento intencional corresponde a um esgotamento das mobilizações tradicionais do antiquário. Entretanto, ele dispõe de uma perfeita lógica
coletivas, em benefício de um individualismo generalizado. De início des- intelectual: a partir do momento em que é a passagem do tempo que
mentido amplamente pela primeira metade do século XX, o diagnóstico confere valor ao monumento, qualquer artefato, testemunha do passado,
de Riegl deu a impressão, em seguida, de responder à situação europeia é suscetível de assumir uma significação monumental, independente-
dos últimos decênios. A dominação tendencialmente esmagadora de mente de seu status de origem. No decorrer do século XX, a distinção
monumentos não intencionais implica uma mudança radical do olhar: entre grande arte e arte de massa, assim como entre obra e artefato,
seu objetivo é definido não mais por seus autores, sócios comanditários, devem desaparecer em benefício de um ponto de vista "indiciário",
responsáveis e curadores, mas por seus observadores. Em suma, depois capaz de valorizar qualquer vestígio. O interesse pelo monumento
de Riegl, o espectador deixou de ser algo de exterior ao monumento, intencional vai forçosamente diminuir, uma vez que o objetivo dessa
tornando-se participante de sua definição, em particular de sua patrimo- espécie de monumento consiste sempre em colocar o passado no
nialização: a posteridade dá o lugar ao imediatismo de uma recepção.57 presente, tornando-o, em cada instante, pertinente e atual. O distan-
ciamento, ao contrário, encontra-se no cerne do interesse moderno
2005, p. 451-474; e, sobretudo, Diana Reynolds, Alois Riegl and the Politics of Art pelo monumento não intencional que rejeita absolutamente participar
History: Intellectual Traditions and Austrian Identity in Fin-de-Siecle Vienna, tese mi- de um passado presente, servir de memorial e, portanto, suprimir
meografada, San Diego: University of California Press, 1997. A proposição de Max sua idade. Melhor ainda, se é que se pode falar assim, as ruínas de sua
Dvorak, no sentido de reformar a legislação protetora de 1850, para além de um
corpus limitado de monumentos, data de 1914, e seu Katechismus der Denkmalpflege aparência ou de seu presságio — no mínimo, a interação com a
é publicado em 1916. A lei, porém, foi revista apenas em 1923. Para um estudo ideia — estão na sua origem: trata-se do monumento de um passado
mais aprofundado sobre a evolução das proteções relativas a Salzburgo, a partir de
1860, cf. Lester B. Rowntree e Margaret W. Conkey, "Symbolism and the Cultural
concebido exclusivamente como duração. Sob esse aspecto, aliás, a
Landscape", in Annals of the Association of American Geographers, vol. 70, n. 4, 1980, atualidade do diagnóstico de Riegl é impressionante em matéria de
p. 459-474. artefatos etnológicos — a noção de "artes primeiras" sugere, de fato,
56. Para Hans-Georg Gadamer, essa consciência particular da historicidade aparece,
precisamente, no final do século XIX e no início do século XX: Le Problème de la
um tempo incerto, mas marcado a priori pela longa duração, ao passo
consciente historique, Paris: Le Seuil, 1996. que a maioria dessas peças datam apenas do século XIX.
57. A. Riegl, Der moderne Denkmalkultus: Sein Wesen und seine Entstehung, Wien-Leipzig, A invenção do monumento não intencional incumbe inteiramente
1903; Le Culte moderne des monuments, trad. de Jacques Boulet, Paris: L'Harmattan,
à modernidade: ela é o resultado da aparição, no século XIX, de uma
2003; Sandro Scarrochia, Alois Riegl: Teoria e prassi della conservazione dei monu-
menti: Antologia di scritti, discorsi, rapporti 1898-Ie905, con una scelta di saggi critici, disciplina científica permitindo que o historiador da arte inclua cada
Bolonha: Clueb, 1995. Não se pode desenvolver, aqui, tudo o que essa reviravolta obra em um conjunto, segundo referências específicas. Todavia, e
fica devendo aos trabalhos anteriores de Riegl, desde seu estudo sobre o retrato de
grupo flamengo, que integra a posição do espectador, ao ensaio sobre a arte romana,
pela primeira vez na história do patrimônio, Riegl recorre exclusiva-
considerada na perspectiva não mais dos predecessores, mas dos sucessores. mente aos valores que, eventualmente, tais monumentos evocam ou

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despertam em determinado público. A reflexão tanto do historiador da postura de seu contemporâneo Georg Simmel, ao afirmar — em
como do conselheiro da administração dos monumentos históricos 1907, no ensaio Les ruines — que "a atração das ruínas (consiste em)
incide, desde então, sobre os valores em jogo no sentido em que permitir que uma obra humana seja quase percebida como um produto
eles mobilizam a opinião pública e podem determinar as atitudes e da natureza".60 De fato, com as ruínas, em Simmel, "a matéria prevalece
as políticas de conservação. A complexidade das implicações deve-se aos em relação ao trabalho do homem. A oscilação entre a natureza e o
conflitos de alguns desses valores entre si, assim como às negociações espírito, cujo símbolo era o prédio, rompe-se em benefício da natureza.
consequentes a empreender. Em um monumento, Riegl distingue Esta ruptura torna-se uma tragédia cósmica." Nada parecido em Riegl,
três formas possíveis de valor memorial: a forma intencional inicial, que nesse ponto não faz qualquer evocação ao trágico.
comemorativa; em seguida, o valor histórico, que surgiu com o Renas- O contemporâneo, porém, não é indicado, nesse autor, exclusi-
cimento", tendo-se estabilizado no século XIX com um aparato de vamente por sua predileção pelas manifestações de ancianidade: pelo
conservação-restauração destinado à manutenção do estado de origem; contrário, ele conforma-se amplamente aos dois valores da atualidade,
por último, o valor de ancianidade, que, por ironia, pode ser desig- ou seja, o uso e a arte. O primeiro tem a ver com o uso prático do
nado também por valor do futuro, e cuja relação com a restauração é edifício, perfeitamente contraditório do valor de ancianidade, visto
eminentemente problemática. que tal uso exige uma eficácia continuada do prédio e, portanto, o
Em muitos aspectos, a prognosis de Riegl parece fazer eco à célebre respeito por sua intenção primeira; por sua vez, o segundo valor, mais
fórmula de Chateaubriand, inscrita um século antes, em Génie du complexo, remete à noção de kunstwollen, elaborada por Riegl como
christianisme, segundo a qual "todos os homens experimentam uma uma volição artística específica de cada época. Ora, diferentemente de
secreta atração para as ruínas".59 Entretanto, nesse autor, o espetáculo outras, algumas obras do passado correspondem à nossa sensibilidade
do escoar do tempo deve ser entendido de maneira perfeitamente es- e, portanto, apresentam uma familiaridade para o espectador, em nome
6
tranha a qualquer nostalgia: nesse aspecto, o discurso de Riegl difere dessa forma de estilo que é a "variável independente", o kunstwollen. 1
O valor relativo à arte postula uma integridade do monumento, ou sua
58. Sabine Forero-Mendoza, Le Temps des ruines: Le Goût des ruines et les formes de la
total reconstrução, que pode eventualmente conciliar-se com o valor
conscience historique à la Renaissance, Seyssel: Champ Vallon, 2002. histórico, mas contradiz, de qualquer modo, absolutamente o valor de
59. "Todos os homens experimentam uma secreta atração para as ruínas. Tal sentimento ancianidade. Por último, uma categoria particular do valor de arte, o
deve-se à fragilidade da nossa natureza, a uma secreta conformidade entre esses monu-
de novidade, é também típico da modernidade de massa, uma vez que
mentos destruídos e a brevidade da nossa existência. Além disso, acrescenta-se ainda
uma ideia que lisonjeia nossa pequenez ao observar que povos inteiros e homens, às cada um pode apreciá-la sem ter recebido uma educação particular,
vezes bastante famosos, não conseguiram sobreviver ao reduzido período atribuído considerando unicamente a coerência inédita do objeto novo. Nesse
à nossa obscuridade. Assim, as ruínas são escolas de verdadeira moralidade entre as
cenas da natureza: ao serem esboçadas em um quadro, procura-se inutilmente mo-
aspecto, a passagem do valor histórico para o valor de ancianidade
vimentar o olhar para outra parte; de fato, este retorna sempre para fixar-se nelas... significa o triunfo do ponto de vista do presente sobre o privilégio,
Existem duas espécies de ruínas: uma é obra do tempo, enquanto a outra é obra dos ainda há pouco atribuído a determinada época da história e, a fortiori,
homens. As primeiras são realmente agradáveis, porque a natureza trabalha ao lado
dos anos: se o tempo as transforma em escombros, ela vem semear flores. Se vier sobre o momento de criação do monumento, que coincidia com sua
entreabrir um túmulo, ela coloca aí o ninho de pomba: ocupada incessantemente
em reproduzir, ela rodeia a morte com as mais ternas ilusões da vida. Por sua vez, as 60. Georg Simmel, "Les Ruines: Un Essai d'esthétique", in La Parure et autres essais,
ruínas da segunda espécie são, de preferência, devastações: limitam-se a oferecer a Paris: MSH, 1998.
i magem do nada, sem qualquer dinâmica de reparação." (Chateaubriand, Génie du
61. Cf. Roland Recht, "Pour une Historie critique des styles", in Annuaire du Coute de
christianisme, III, v, 3.)
France, Paris, 2003, p. 993.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

intenção primeira. Além disso, a continuidade de tal processo pressu- incumbe ao historiador desempenhar um papel essencial. A oposição
poria uma "suspensão" do tempo em um presente eternamente eficaz categórica ao essencialismo, preconizada em Le Culte moderne des
da comemoração. monuments, enfatiza os valores de relação e de associação em matéria
Desse modo, o moderno é percorrido por um importante antago- de patrimônio: a ancianidade, a posição no seio de uma sequência
nismo entre dois valores opostos, em que o da ancianidade, suposta- temporal, a integração a um "ritmo" ou a um desenvolvimento, bem
mente, prevaleceria no futuro sobre o outro, focalizado na força do como a significação histórica, aparecem, assim, amplamente determi-
novo. Mas, atualmente, quando as ruínas, como noção e fenômeno nantes em uma história sempre aberta. Nesse aspecto, o discurso de
— de acordo com o ponto de vista de Marc Augé62 —, estão em via Riegl inaugura uma nova época da apreciação do monumento em sua
de desaparecer de nossas cidades ocidentais, que, em vez de vestígios, relação com o tempo do espectador."
estão votadas a deixar detritos em grande número de terrenos baldios,
Riegl parece ter assumido, em seu discurso, a figura de um profeta do
passado; sua convicção a respeito do desaparecimento dos monumentos O caso do território-patrimônio
intencionais foi, como já afirmamos, amplamente desmentida — uma
ilustração, em sua evidente performatividade, é o recente sucesso do Desde o final do século XIX, certa valorização do território tem
Memorial da Guerra do Vietnã, em Washington, mesmo que se trate, mantido uma estreita relação com as ideias de determinismo, muito
sem qualquer dúvida, de um contramonumento heroico em relação ao apreciadas pela Kultur alemã, ou seja, aquela que — se dermos crédito
que havia conhecido o século XIX." Em compensação, somos talvez a E. Renan — arvorava em 1870 "a bandeira da política etnográfica e
mais sensíveis à carga utópica de seu discurso no sentido em que ele arqueológica". Mais tarde, os temas relativos ao folclore, à província
esboça o ideal de um culto universal aos monumentos, desvencilhado e ao círculo restrito de relações foram associados sob diferentes reivin-
das fronteiras, comunidades e história, diretamente acessível pelo dicações, em particular no início do século XX: em 1901, o Manifesto
sentimento individual. da Fédération Régionaliste Française, redigido por Charles Brun, tinha
Para além de tais considerações, porém, a demonstração enfatiza a o objetivo, "por uma seleção inteligente das tradições, pelo ensino da
necessidade de vislumbrar diferentes temporalidades, a saber: a ancia- história local e do folclore", de "vincular a criança a seus antepassados
nidade "em si" inscrita no monumento, objetivamente, pela pátina; os e despertar-lhe o orgulho do torrão natal, criando, assim o patrimônio a
acidentes, até mesmo as ruínas parciais de sua estrutura; a historicidade, partir de realidades tangíveis". De acordo com essa visão, ou segundo
resultado de um modo de ver relativista sustentado por uma construção perspectivas semelhantes, assistiu-se à multiplicação de iniciativas,
intelectual; e a intencionalidade original, cuja lembrança pode manter- quase sempre isoladas.65 Assim, Edmond Hugues — organizador do
se na fidelidade de uma tradição. O espectador de um monumento é
remetido a um sentido antropológico da duração, mas concebido do 64. Em sentido contrário, cf., por exemplo, Robert Klein, La Forme et l'intelligible: Écrits
sur la Renaissance et l'art moderne, Paris: Gallimard, 1967, p. 410.
ponto de vista do presente. Essa tensão entre a obra passada — ou
65. Cf. Anne-Marie Thiesse, Écrire la France: Le Mouvement régionaliste de langue
seja, o passado concretizado em um objeto — e o julgamento (estético) française entre la Belle Époque et la libération, Paris: PUF, 1991; e Ils apprenaient la
presente emerge no âmago das leituras sucessivas da obra. Deste modo, France: L'Exaltation des régions dans le discours patriotique, Paris: MSH, 1997; Julian
Wright, The Regionalist movement en France 1890-1914, Oxford: Oxford University
Press, 2003. E, em relação ao devir ulterior, cf. Pierre Barral, "Idéal et pratique du
62. Marc Augé, Le Temps en ruins, Paris: Galilée, 2003. régionalisme dans le régime de Vichy", in Revue Française des Science: Politiques, n. 5,
63. Robert Harrison, Les Morts, Paris, Le Pommier, 2003, p. 203-210. 1974, p. 911-939.

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Musée du Désert66, inaugurado em 1911 — sublinhava em 1913 como André Chastel, historiador de arte, tem razão em evocar, através
"a França inteira, à semelhança da Alemanha, da Suíça e da Suécia, da adesão sentimental, a promoção de uma verdadeira "consagração do
havia fundado e funda, todos os dias, numerosos museus da tradição ser vivo".69 Será que, nessa proposição, se deve reconhecer um simples
regional, em que são conservados usos antigos, costumes locais [...] "corretivo lógico ao que havia de insuficiente no dispositivo que se
ora, a Provence havia mostrado o caminho com seu Muséon Arlaten".67 li mita a proteger os monumentos históricos" ou, por outras palavras,
Entretanto, a separação entre a Igreja e o Estado — promulgada pela o suplemento anímico a um projeto, até então exclusivamente erudito
lei de 1905 — acabou implicando a renegociação das clivagens an- e científico? De fato, essa nova construção intelectual inscrevia-se na
teriores, tendo evocado uma possível alternativa à patrimonialização tradição contrarrevolucionária, associada mais ou menos diretamente
republicana. ao romantismo político, que incentiva a representação do patrimônio a
Em 1912, a propósito das igrejas da França, Maurice Barrès — guia definir-se, antes de tudo, como uma emoção compartilhada. No entanto,
intelectual do movimento nacionalista — esboçava uma representa- depois da Segunda Guerra Mundial, como foi sublinhado por Raoul
ção do patrimônio profundamente estranha à tradição intelectual, Girardet, "a visão da nação, da terra e dos mortos, segundo Barrès, tende
oriunda das Luzes e da Revolução, ou seja, à ideologia política francesa. a esvaziar-se de seu conteúdo afetivo e moral, como ocorre também com a
Ele elogiava "as igrejas humildes, talvez sem estilo, mas repletas de i magem apresentada a seu respeito por Renan, ou seja, a de um pacto
encanto e de emocionantes lembranças que formam a fisionomia ar- permanente de cocidadania; além disso, desaparece ainda o sincretismo
quitetural, a figura física e moral do território francês". Ele defendia republicano que havia associado as ideias desses dois autores, isto é, a
as igrejas "que são feias, desdenhadas, que não são rentáveis para as concordância entre vontade política, participação cidadã e comunidade
estradas de ferro, nem fazem viver os proprietários de estalagens [...], de cultura"." Por conseguinte, são implementadas novas imagens do
tampouco merecem o seguinte comentário: 'Que excelente espaço para território-patrimônio.
um salão de baile ou para um museu!" Sua cruzada não só contra todas Uma das mais notáveis está diretamente relacionada a uma patri-
as formas do progressismo, mas também contra os cânones do gosto e monialização da paisagem natural no âmago de uma construção da
da crítica erudita, não isentava os "tipos" legados por Viollet-le-Duc, identidade territorial. Um ponto de vista científico tinha se difundido
ou seja, a ideia de exemplaridade com base científica que "se limita a nas narrativas de exploração das Luzes, nos relatórios de descobertas e
7
conservar alguns espécimes que permitem fazer uma ideia, grosso modo, nas ilustrações de viagens. 1 Nesses textos, o olhar do cientista desenhava
da nobre espécie desaparecida"68
bem particular em Beate Gödde-Baumanns, "La Prusse et les Allemands dans
66. Désert (Deserto) designa o período de 1685 a 1787, ou seja, entre a revogação do l'historiographie française des années 1871 à 1914: Une Image inversée de la France",
Edito de Nantes e o Edito da Tolerância; este museu, instalado em um vilarejo da in Revue Historique, vol. CCLXXIX, n. 1, p. 51-72.
região de Cévennes (vertente oriental do Maciço Central), faz reviver o passado dos 69. André Chastel, op. cit., 1981, p. 7-16.
protestantes calvinistas. [N.T.]
70. Raoul Girardet, op. cit., 1991, p. 2.
67. Apud Françoise Lautman, "Objets de religion objets de musée"; além de Isabelle
71. Cf. Robert Lenoble, Esquisse d'une histoire de l'idée de nature, Paris: Albin Michel, 1969;
Collet, "Les Premiers musées d'ethnographie en France" e "Le Monde rural aux ex- e, sobretudo, a suma de Clarence J. Glacken, Traces on the Rhodian Shore: Nature and
positions universelles", in Jean Cuisenier (org.), Muséologie et ethnologie, Paris: RMN, Culture in Western Thought from Ancient Times to the End of the Eighteenth Century,
1987; Jean-Noa Pelen, "Le Pays d'Arles: Sentiments d'appartenance et représentation Berkeley/Los Angeles, 1967 e Paris, CTHS, 2000. Uma nova historiografia é bem
de l'identité", in Terrain, n. 5, 1985. representada por Carolyn Merchant, The Death of Nature: Women, Ecology and the
68. Maurice Barrès, La Grande Pitié des églises de France, Paris, 1912, p. 82-83, 369. Scientific Revolution, San Francisco: Harper, 1980. Para a demonstração a propósito
Sobre o contexto geral, cf. Claude Digeon, La Crise allemande de la pensée française do século XVIII, cf. Barbara Maria Stafford, Voyage into Substance: Art, Science, Nature
(1870-Ie9Ie4), Paris: PUF, 1959, p. 384-450; e o balanço recente sobre um aspecto and the Illustrated travel Account, 1760-1840, Cambridge: MIT Press, 1984.

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um território-patrimônio inédito que, às vezes, recebia a colaboração conduz, daí em diante, por meio da investigação e do confronto de
do sentido do sublime. No século XIX, paralelamente à instalação de indícios condizentes, a uma consciência do território comprometida,
diferentes arqueologias nacionais, a partir do modelo da arqueologia se necessário for, com um regionalismo militante e, de qualquer modo,
clássica, empenhadas no estudo das artes e da literatura de cada país e marcada pela convicção de participar da modernidade.
apoiadas nas cátedras universitárias e nas instituições de conservação, a No decorrer do século XX, assiste-se ao desaparecimento de "um
Europa conheceu diversas iniciativas de museificação de uma paisagem modelo de leitura do espaço que era um modelo estético e, essencial-
natural.72 O território estético, ou seja, a coleção dos mirantes pitorescos mente, pictural"; em seu lugar, trata-se de aceitar "a diversidade das for-
e dos sítios turísticos, suscita a atenção dos guias e da literatura de via- mas de expressão e (de) enfatizar os modelos inspiradores das paisagens
gem"; no início do século XX, surgem associações que, em particular, se comuns", situando-as "em um plano semelhante às paisagens elitistas e
dedicam à proteção das paisagens a partir do modelo da sociabilidade, desvencilhando-as do peso dos mitos estéticos".75 No entanto, além do
há pouco mobilizada contra o vandalismo em relação aos monumentos. interesse manifestado, daí em diante, pelas paisagens "menores", que não
A invenção do curso sobre geografia e a evolução dos estudos deixam de ser verdadeiros territórios e, portanto, patrimônios", a tenta-
folclóricos permitem enunciar, na França, o território em espaços in- tiva entende apreender o território em sua invisibilidade, mostrando um
77
dividualizados: as regiões. O geógrafo P. Vidal de La Blache — aliás, reconhecimento inédito do espaço vivenciado e dos territórios culturais.
reivindicado pelo movimento regionalista — manifestava seu apoio aos
museus etnográficos nestes termos: "Do mesmo modo que o botânico ou
Vidal de La Blache: La Formation de l'école française de géographie, Paris: Éd. du CNRS,
o zoólogo conseguem discernir — pelo aspecto da folhagem e de ou- 1993, p. 123-129; Annie Bleton-Ruguet, "Les 'Pays" vidaliens: Aménagement du
tros componentes de uma planta, ou pela aparência da pelagem e dos territoire et espaces ruraux, entre démarches savantes et enjeux politiques", in Annie
Bleton-Ruguet, Pierre Bodineau e Jean-Pierre Sylvestre (orgs.), "Pays” et territories:
órgãos de locomoção de um animal — as influências gerais de clima
De Vidal de la Blache aux lois d'aménagement et le développement du territoire, Dijon:
e relevo em que viveram esses seres, é possível que o geógrafo consiga Éd. Universitaires de Dijon, 2002, p. 27-37; e Pierre Bourdieu, "L'Identité et la
descobrir, pela análise do material submetido a seu exame, as condições représentation: Éléments pour une réflexion critique sur l'idée de région", in Actes
de la Recherche en Sciences Sociales, n. 35, nov. 1980.
ambientais em que ele se formou. [...] E quanto às sociedades evoluídas,
75. Em uma abundante bibliografia, cf. Yves Luginbuhl, "Tableau chronologique des créa-
cujo acervo infinitamente abundante não poderia circunscrever-se às tions de procédures, organismes et institutions concernées par l'aménagement rural en
vitrines de um museu, ele vai conservar, pelo menos provisoriamente, France depuis les années 1950", in Strates, vol. 1, 1986, p. 125-140; "Paysage élitaire
et paysages ordinaires", in Ethnologie Française, t. 19, 1989, e "Crise du paysage?",
um número suficiente de vestígios de usos e de costumes locais bas-
p. 227-238; Paysages: Textes et représentations du siècle der Lumières à nos jours, Paris:
tante instrutivos a respeito dos espécimes".74 Um saber aprofundado La Manufacture, 1989. Sobre a tradição marxista anglo-saxônica relativamente ao
estudo da paisagem, cf. o clássico Raymond Williams, "Plaisantes perspectives: Inven-
tion du paysage et abolition du paysan", in Actes de la Recherche en Sciences Sociales,
72. Sobre o exemplo ímpar da Suíça, cf. os estudos de François Walter, desde "Attitudes
n. 17-18, 1977, p. 22-36.
Towards the Environment in Switzerland, 1880-1914", in Journal of Historical E, entre estes, paradoxalmente, os territõrios de uma catástrofe: Giorgio Botta (org.),
Geography, vol. 15, n. 3, 1989, p. 287-299, até "La Montagne alpine: Un Dispositif 76.
Prodigi, paure, ragione: Eventi naturali oggi, Milão: Guerini, 1991.
esthétique et idéologique à l'échelle de I'Europe", in Revue d'Histoire Moderne et
Contemporaine, vol. 52, n. 2, 2005, p. 64-87. 77. A preocupação atual com o meio ambiente foi interpretada pelos geõgrafos — e, no
73. Para uma visão panorâmica, cf. Judith Adler, "Travel as Performed Art", in American primeiro plano, por Pierre George, Fin de Siècle en Occident: déclin ou métamorphose?
Paris: PUF, 1982, p. 149-150 — como o reconhecimento de suas apreensões. E é
Journal of Sociology, vol. 94, n. 6, 1989, p. 1366-1391.
verdade que essa tradição intelectual reivindica seu aporte na evolução contemporânea
74. Paul Vidal de La Blache, Principes de géographie humaine (publiés par Emmanuel de das definições patrimoniais: para o balanço relativo à primeira metade do século XX,
Martonne), Paris, 1921, p. 119-121; Didier Gonzalez, "L'Idée de pays dans la géo- cf. Michael Williams, "The End of Modern History?", in Geographical Revim vol.
graphie et la culture française au tournant du siècle", in Paul Claval (org.), Autour de 88, n. 2, 1998, p. 275-300.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

acumulados não estará também e ainda mais no signo que nas cifras
monetárias, ou seja, no símbolo para além do volume de negócios?"
Os valores da apropriação Recusa da identificação com uma herança em estoque: o patrimônio
é "memória morta das raízes esquecidas que os museus reavivam,
Em matéria de restauração, para além do princípio de reversibilidade memória viva da cultura comprometida na polifonia das vozes do
relativamente a qualquer intervenção, o registro dos motivos perseguidos planeta". Jn fine, a amnésia "progressista" do acervo nacional culmina
e dos métodos adotados leva a traçar novamente as vicissitudes de cada na reivindicação de universalismo, sem que deixe de manifestar-se uma
interpretação do objeto e as leituras — mistura de preconceitos e de forma patrimonial bem francesa: "A justa avaliação do patrimônio
obcecações — que orientam sua apropriação. "A uma visão unívoca, e francês baseia-se nos bens que a França deixou de possuir de forma
às vezes redutora, seguiu-se uma concepção pluralista e, algumas vezes, exclusiva e que, atualmente, fazem parte da cultura e da civilização
confusa."78 Paralelamente, na história cultural, a ênfase é colocada, daí mundiais."80
em diante, na legibilidade das vidas sucessivas do monumento, nas A fórmula remete ao importante fenômeno da evolução atual do
escolhas voluntárias de interpretação e na complexidade das formas de patrimônio, ou seja, a substituição do patrimônio da civilização, no
transmissão. Por último, a atual democratização do coreus de objetos sentido das Luzes, por um patrimônio mundial das culturas. A crise
de patrimônio implica um redobrado trabalho de perícia a fim de cul- de uma representação da universalidade identificada com a história
minar em uma conveniente discriminação. Ao prevalecer o que Louis nacional, ou europeia, traduziu-se pela impossibilidade de manter a
Dumont designa por "universalismo individualista", torna-se árduo i magem tradicional de um patrimônio normativo. Portanto, em vez de
distinguir entre o que é da esfera do privado — objetos de família, li mitar-se a estender consideravelmente a noção de monumentos ou a
patrimônio de um colecionador — e o que é, legitimamente, da esfera promover um diálogo internacional, trata-se, realmente, de abandonar
pública e exige ser catalogado, preservado e acessível ao público. a imagem de um patrimônio confundido com a leitura ocidental da
O patrimônio, atualmente, está marcado pelo duplo abandono do história, em benefício de um inventário das variações dos artefatos
8
arrimo patriótico e da exclusividade da alta cultura. De fato, sua defi- da humanidade no espaço e no tempo. 1 "A vocação do Patrimônio
nição, por um lado, deixou de ser estreitamente nacional, tendendo a Mundial", escreve Michel Parent, "consiste em convencer os Estados
identificar-se com um espaço cultural amplamente fracionado — até a aceitar a noção de universalidade da cultura, através do respeito pe-
82
a terra inteira. Por outro lado, daqui em diante, ele engloba, para las culturas específicas." Assim, a perspectiva antropológica de um
além da herança monumental stricto sensu, um conjunto de figuras inventário das diferenças apareceria como a figura patrimonial plena-
e de atividades da civilização e da humanidade consideradas como mente democrática; considerando, porém, a sobreposição das fronteiras
significativas." Se dermos crédito a uma recente Géographie de la políticas e culturais, o confronto entre nacionalismos associados a
France, "a melhor avaliação do patrimônio francês" exprime-se por movimentos de reivindicação comunitária, étnica ou religiosa, e entre
várias rejeições. Recusa do volume de negócios por rejeitar submeter-se
exclusivamente à materialidade: "O valor real desses patrimônios 80. Denise Pumain e Thérèse Saint-Julien, "France", in Roger Brunet (org.), Géographie
universelle, France, Europe du Sud, Paris: Hachette, 1990, p. 22-23.
81. Mas o terno "patrimônio" tem subsistido, apesar da diversidade cultural da noção
78. Jean-Pierre Bady, "L'Évolution de la notion de patrimoine", in Monuments Historiques, de "propriedade". Cf. Norbert Rouland, Anthropologie juridique, Paris: PUF, 1988.
vol. 161, jan./fev. 1989, p. 3.
82. Michel Parent, "Le Patrimoine mondial et l'Icomos", in Icomos/Information, n. 4,
79. André Leroi-Gourhan, Les Racines du monde: Entretiens, Paris: Belfond, 1982. 1987, p. 1-7.

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patriotismos exacerbados, deixa pairar a incerteza relativamente à sua à posteridade, mas os materiais de uma ancianidade, frequentemente
adoção." Aliás, essa dificuldade é enfrentada também — apesar de não privada de datas ou de nomes, além de todos os recursos do imaterial."
ser o único ponto comum — pelo conceito jurídico de "patrimônio Existe, portanto, um vínculo estreito entre a representação de um
comum da humanidade" aplicado, nos últimos vinte anos, à natureza. patrimônio, o caráter mais ou menos extensivo de sua definição e a ne-
De fato, "balizas e cercas, resultantes de escolhas contratuais e de acasos cessidade de um trabalho de atualização, confundido com a intervenção
atinentes a direitos de sucessão, correspondem apenas excepcional- social. A dinâmica do patrimônio entende-se, daqui em diante, como to-
mente às fronteiras naturais. Às divisões efetuadas pelo ser humano mada de consciência da sociedade por si mesma, graças à revelação con-
88
sobrepõem-se outros esquemas: biótopos, áreas de distribuição, bacias tinuada (interminável) de suas "propriedades" . Tudo se passa como se
e declives constituem um verdadeiro cadastro da natureza; ora, levá-lo a patrimonialização, concebida como o trabalho da memória de um lu-
em consideração é uma condição prévia indispensável para qualquer gar e de um grupo, se tornasse o principal fenômeno, em detrimento de
proteção razoável"84. Na verdade, "a inadequação de qualquer quadro uma patrimonialidade postulada, certamente, como a reserva em ouro
territorial, independentemente de seu tamanho" é manifesta nesta servindo de garantia à circulação de papel-moeda, mas que, na maior
89
categoria de processos patrimoniais.85 parte das vezes, está presente apenas no segundo plano. Além disso,
Por último, esse patrimônio é amplamente invisível quando o mo- o avanço espetacular da construção social do patrimônio — graças
numento histórico era não só um indício visível, mas o signo por exce- a uma administração específica e à constituição progressiva de um
lência de uma vontade de transmissão. Sua manifestação é, portanto, coreus — coincide, às vezes, com um progressivo desprendimento dos
o resultado de uma política empenhada em configurar as culturas em cidadãos em relação a seus patrimônios históricos e naturais, transfe-
pauta, construindo sua representação por um trabalho de interpretação. ridos para o domínio turístico. Quando o patrimônio se "naturaliza"
Ainda neste aspecto, o paralelo é evidente com a elaboração jurídica como comemoração da vitalidade de qualquer cultura, o território
do "patrimônio comum", que revela uma abstração quase completa, apresenta-se, assim, o lugar-comum dessa afirmação.90 Ainda há pouco
"visto que desapareceu o suporte material da propriedade, seja ela tempo, a presença de monumentos de todas as ordens, de edifícios
privada ou pública".86 Em suas representações banais e, ao mesmo prestigiosos e de prédios "antigos" é que transformava o território em
tempo, científicas, o patrimônio já não evoca a inscrição vigorosa dos
87. Sobre o interesse manifestado pela arquitetura rural, cf. os artigos de Isac Chiva e
antepassados na memória coletiva, nem os monumentos a transmitir Françoise Dubost, "L'Architecture sans architectes: Une Esthétique involontaire?",
in Études Rurales, vol. 117, 1990, p. 9-38; além de Philippe Bonnin, "L'Utile et
l'agréable: La Question de l'esthétique dans l'enquête d'architecture rurale du Musée
83. Cf. Anthony D. Smith, The Ethnic Origins of Nations, Oxford: Blackwell, 1986, cap. 8, national des arts et traditions populaires (1943-1947)", p. 39-72. Sobre as impli-
"Legends and Landscapes", p. 174-208. Cf. ainda as observações dispersas sobre esse cações, cf. Florence Weber, "Le Folklore, I'histoire et l'État en France (1937-1945)",
ponto em Edward Shils, Tradition, Chicago: University of Chicago, 1981. in Revue de Synthèse, vol. 3-4, 2000, p. 453-467.
84. Martine Rèmond-Gouilloud, "Ressources naturelles et choses sans maître", p. 219- 88. Freddy Raphaël e Georges Herberich-Marx, "Le Musée, provocation de la mémoire",
237, in Bernard Edelman e Marie-Angêle Hermitte (orgs.), L'Homme, la nature et in Ethnologie Française, vol. 17, n. 1, 1987, p. 87-95.
le droit, Paris: Bourgois, 1988. Cf. ainda Martine Rèmond-Gouilloud, Du Droit de
89. Do mesmo modo que, na vulgata pós-moderna, a memória prevalece em relação ao
détruire: Essai sur le droit de l'environnement, Paris: PUF, 1989. objeto da lembrança: Frank Ankersmit, "Historiography and Postmodernism", in
85. Marie-Angèle Hermitte, "Les Concepts mous de la propriété industrielle: Passage History and Theory, vol. XXVIII, n.2, 1989, p. 137-153, e sua reflexão sobre a rup-
du modèle de la propriété foncière au modèle du marché", in B. Edelman e M.-A. tura e a maneira de superá-la na Revolução Francesa, entre experiência e linguagem:
Hermitte, op. cit., p. 85-99. Sublime Historical Experiente, Stanford: Stanford University Press, 2005.
86. Bernard Edelman, "Entre Personne humaine et matériau humain: Le Sujet de droit", 90. Robert M. Newcomb, "Monuments Three Millenia Old —The Persistente of Place",
in B. Edelman e M.-A. Hermitte, op. cit., p. 101-143. in Landscape, vol. 17, 1967, p. 24-26.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE

um patrimônio, ao passo que, atualmente, qualquer território pode evoca-se precisamente a utopia de uma comunhão e, sobretudo, a
ser declarado patrimônio91, de acordo com a nova perspectiva de uma esperança, para não dizer um "culto" democrático, pelo menos uma
ética que preconiza o reconhecimento mundial das culturas.92 atividade patrimonial acessível a todos. O Colóquio dedicado aos
Monuments historiques demain, em 1984, assumiu a opção de um pa-
trimônio em harmonia com os valores de uma sociedade, e não tanto
Um patrimônio da significação com os valores de uma história da arte, cuja definição está subordinada
a critérios externos."
Decorrido um século da reflexão de Riegl, a análise da situação Simultaneamente, desta vez no horizonte mundial, o Comitê Aus-
pode partir da virada do decênio de 1980, que será abordada em dois traliano de International Council on Monuments and Sites (Icomos)
níveis diferentes: através de um opúsculo circunstancial francês e redigiu, em 1979, a Carta de Burra, como reação às grandes convenções
através das novas convenções internacionais. internacionais ou europeias baseadas em concepções tradicionais a
Em seu relatório de 1982, Max Querrien resume, apropriadamente, respeito do monumento. Pela primeira vez, a carta australiana introduz
as características utópicas e, ao mesmo tempo, orientadoras da reflexão a noção de "significação cultural", a fim de levar em conta os patrimô-
promovida então na França; trata-se de "transmitir a nosso patrimônio o nios natural e autóctone. Ela pretende ser essencialmente pragmática,
sopro da vida, além de pôr termo a uma visão demasiado difundida se- em proveito dos encarregados da gestão dos bens patrimoniais e, por
gundo a qual o patrimônio seria apenas um acervo de objetos inertes"". conseguinte, enuncia os valores que podem ser atribuídos aos objetos
Por conseguinte, o discurso é singularmente semelhante ao de Ludovic do patrimônio. Mais tarde, as categorias esboçadas — históricas, esté-
Vitet ao retornar da inspeção das bibliotecas: o mesmo imperativo de ticas, comemorativas, etc. — serão repertoriadas com a preocupação
revitalização percorre, no período de dois séculos, a literatura adminis- de ampliar, ao mesmo tempo, o campo patrimonial e a população de
trativa do patrimônio. A novidade da década de 1980 deve-se à ideia atores — segundo os casos, aborígines ou primeiras nações. No âmago
de que "a familiaridade com o patrimônio pode ser legitimamente das instituições internacionais (Unesco, Icomos, Getty Conservation
incluída no número dos direitos humanos. [...] Cada cidadão tem o Institute), o imperativo de uma gestão do patrimônio pelos valores
direito de dedicar-se a uma pesquisa de paternidade cultural que lhe exige, então, que seja identificada precisamente a importância valo-
permitirá conhecer-se de um modo que não se restrinja ao deserto das rativa reconhecida a determinado patrimônio por suas comunidades
cidades-dormitórios, nem às tecnologias da evasão." A irrupção do povo de interpretação."
como ator de seu patrimônio, impelido a conhecer-se e a libertar-se, é Concretamente, em numerosos países do mundo, a gestão do patri-
acompanhada pela recusa, em diferentes planos, dos "falsos prestígios mônio tenta estabelecer uma lista exaustiva dos valores que diferentes
de um passado erigido como referência absoluta" (p. 10). Para além da populações poderão reivindicar para determinado sítio ou objeto. Esse
retomada de uma retórica que, dessa vez, parece reatar com 1789, nivelamento valorativo permite a proteção dos bens ao reconciliar, em
caso de necessidade, interesses divergentes, e ao manifestar a legitimi-
91. Isaac Joseph, "Le Musée, le territoire, la valeur", in Henri-Pierre Jeudy (org.), Patri- dade da intervenção pública. Tal visão é, atualmente, cada vez mais
moines en folie, Paris: MSH, 1990, p. 259-268.
92. Eugene C. Hargrove, Foundations of Environmental Ethics, Nova York: Prentice-Hall, 94. Maurice Agulhon, "Intervention", in Les Monuments historiques demain: Paris, Actes
1989. du coloque La Salpêtrière, Ie984, Paris, [19--], p. 268.
93. Max Querrien, Pour une Nouvelle Politique du patrimoine, Paris: La Documentations 95. Getty Conservation Institute, Values and Heritage Conservation, 2000; Assessing the
Française, 1982, p. 5-7. values of Cultural Heritage, 2002.

229
230

UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

holística ao integrar as exigências do desenvolvimento sustentável;


entretanto, em todas as circunstâncias — o Serviço dos Parques nos
Estados Unidos e no Canadá, a Comissão Australiana do Patrimônio, CONCLUSÃO
os experts do Getty Institute —, postula-se que o orgulho manifestado
por um grupo deva ser validado pela humanidade inteira. A época atual talvez seja, de preferência, a era do espaço.
Nesse aspecto, o patrimônio não deixa de ser — como havia sido Estamos na época da simultaneidade, da justaposição, na
época do perto e do longe, do lado a lado, do disperso.
desde sempre — o resultado de um processo consciente de seleção; Estamos em um momento em que nossa experiência do
mas, nessa perspectiva, é baseado em apreciações particulares. Para sua mundo, creio eu, é não tanto a de uma vida longa que
inclusão no patrimônio, monumentos ou sítios culturais devem ser se desenvolvesse através do tempo, mas a de uma rede
que liga pontos e procede a interseções em sua meada. Tal-
marcados, em primeiro lugar, com um sinal positivo por indivíduos vez fosse possível dizer que alguns conflitos ideolõgicos que
ou grupos, porque, de acordo com um recente relatório quebequense, animam a polêmica atual opõem os fiéis descendentes do
"além de proteger objetos, trata-se de permitir que determinada popu- tempo aos obstinados habitantes do espaço.
Michel Foucault, "Des Espaces autres" (Confe-
lação venha a interiorizar a riqueza cultural de que ela é depositária".96
rência pronunciada no Cercle d'Êtudes Architec-
De maneira acelerada, segundo os casos, pelas recomposições das fon- turales, em 14 de março de 1967), in Architecture,
tes e dos processos de financiamento da conservação, tal perspectiva Mouvement, Continuité, n. 5, out. 1984, p. 46-49.
conduz a uma estreita integração dos valores comunitários às ações
empreendidas. O desafio consiste, desde então, em saber quem, na
comunidade, decide o que deve ser protegido e como legitimar as
escolhas adotadas. Desse modo, voltam a ser formuladas as questões Uma definição orientada pelo futuro
clássicas da sociologia política em relação aos poderes de nomear ou
à capacidade de fabricar a coletividade, seja ela formada por famílias, No final do século XVIII, parece ter existido um acordo perfeito
grupos étnicos, regiões ou nações. É obvio que, contrariamente à entre o que poderia designar-se, respectivamente, memória do saber1
reflexão elaborada por Guizot, o acúmulo natural dos saberes e da e patrimônio. Winckelmann ou Caylus empenharam-se em criar uma
autoridade, atribuído à circunspeção do Estado, deixou de ser atual: arqueologia e uma história da arte a partir de coleções de objetos2: o
nesse caso, orgulho e solidariedade são os valores que devem prevalecer Museu de História Natural é um vasto laboratório, enquanto a an-
relativamente à avaliação externa da idoneidade. Assim, desconsidera-se tropologia nascente ou a etnologia encontram seu berço natural na
a confiança depositada na imparcialidade garantida pelo "estiolamento" Biblioteca Real e, em seguida, Nacional, no Museu dos Monumentos
inelutável das intenções atinentes aos monumentos. Franceses e nas investigações da Academia Céltica. Durante o período da
Revolução Francesa, a luta contra o vandalismo, promovida pelo abbé
Grégoire com o objetivo de conservar elementos materiais do Antigo
Regime, é legitimada pelo trabalho dos historiadores contemporâneos

1. Sobre essa expressão, cf. Paolo Rossi (org.), La memoria del sapere, Roma/Bari: Laterza,
1990.
96. Les Arts et la ville: La Création du patrimoine, mémoire déposé au Groupe-Conseil 2. Thomas Da Costa Kaufmann, "Antiquarianism, the History of Objects, and the History
sur la politique du patrimoine culturel au Québec, Canadá, 14 abr. 2000. of Art Before Winckelmann", in Journal of the History of Ideas, vol. 62, n. 3, 2001.

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CONCLUSÃO
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE

e, sobretudo, futuros. O apelo ao futuro é que serve de justificativa implicitamente ao mesmo diagnóstico, como já vimos, em nome
para a preservação desses materiais, a partir da convicção de que, daí da geografia cultural. A marginalização dos museus efetua-se à medida da
em diante, eles não terão a possibilidade de transmitir seu sentido, constituição da antropologia científica, tendo atingido seu apogeu
ou seja, serão incapazes de inspirar o ardor contrarrevolucionário dos provavelmente no decorrer da década de 1970. A análise das relações
sequazes do despotismo ou da superstição. Essa orientação para o entre museus e historiadores, por menos caricatural que seja, manifesta
trabalho da posteridade implica um projeto intelectual e político que também um lento desprendimento recíproco, a partir da proximidade
associa nova legitimidade, utilidade científica e conservação ponderada. laboriosa de um Michelet. Os museus e o patrimônio histórico em
Na sequência, a patrimonialização ocidental inscreveu-se continua- geral eram considerados instrumentos de vulgarização mais ou menos
mente nas mesmas premissas. O National Register of Historic Places, eficazes e bem concebidos, mas não certamente laboratórios no sentido
nos Estados Unidos, afirma reconhecer, atualmente, lugares associados pleno do termo. A constatação, no decorrer da década de 1960, do his-
seja "a acontecimentos que deram uma contribuição relevante para a toriador inglês J. H. Plumb, anunciando a morte do passado, explicita
história geral", seja "a vidas de personalidades significativas do pas- a dissolução da configuração clássica, que, até então, havia organizado
sado" ou "que encarnam características de um tipo, de um período ou as relações entre passado, presente e futuro no âmago do trabalho do
de um método de construção, ou representam a obra de um mestre, historiador.74 No mesmo espírito, David Lowenthal sugere um inven-
ou possuem um grande valor artístico" ou, finalmente, "que contêm tário das heranças em forma de topografia de "um outro país", sem
5
informações importantes para a história ou a pré-história". Ao ler essa qualquer interesse para nós ; desse modo, ele enuncia um repertório
enumeração, o apelo a uma investigação vindoura constitui a própria das atitudes em relação ao passado material de acordo com uma escala
definição do patrimônio; semelhante constatação poderá ser confirmada de juízos, sejam eles de ordem moral ou profissional, desde a isenção do
6
com a leitura de numerosas listas de bens a conservar em outras nações. cientista até o zelo partidário. O processo de patrimonialização parece
Sob uma forma, em parte, irrisória, a aparição dos time capsules — a suscitar as mais diversas — e às vezes estapafúrdias — reivindicações,
partir de 1879, nos Estados Unidos, associadas ao projeto de transmitir mas sempre de acordo com uma espécie de neutralização geral dos
um acervo de artefatos, lacrado por determinada duração, e que dão desafios culturais claramente identificados, há pouco, com o culto ao
testemunho, ao mesmo tempo, de um narcisismo, de uma angústia e de passado e com o respeito por suas testemunhas. Apesar de ser, com
uma expectativa utópica — confere uma espécie de patrimonialização toda a evidência, diferente, a situação da história da arte foi também
a coisas banais, com a condição de estarem projetadas para o futuro.3 marcada, de qualquer modo, por uma ruptura entre o que é designado,
De qualquer modo, a partir do século XX, essa configuração foi daqui em diante, como as duas histórias da arte: a pesquisa acadêmica
tumultuada. Segundo Alois Riegl, os valores eruditos e baseados na e os estudos associados à tarefa da conservação.
ciência a respeito do monumento histórico serão eliminados no futuro Existem múltiplas causas para a crise progressiva do binômio pa-
diante do triunfo da sensibilidade suscitada pelo monumento antigo, trimônio e pesquisa. A investigação do que é comum em determinada
simples indício da passagem do tempo. Nos Estados Unidos, ao deixar
o American Museum of Natural History, em 1905, Franz Boas estava 4. J. H. Plumb, The Death of the Past, Londres: Palgrave Macmillan, 2004; com um
prefácio de Simon Schama que situa a obra no contexto histórico.
convencido de que era impossível representar convenientemente uma
5. Em particular, David Lowenthal, The Past Is Another Country, Cambridge: Cambridge
cultura através dos objetos materiais; aliás, Vidal de La Blache procedia University Press, 1985.
6. O programa estava resumido in David Lowenthal e Marcus Binney, Our Past before
3. William E. Jarvis, Time Capsules: A Cultural History, Jefferson: McFarland, 2003. Us: Why do We Save It?, Londres: Temple Smith, 1981.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE CONCLUSÃO

época ou cultura, através de suas ferramentas e de suas mentalidades, operada pelo filósofo inglês — e historiador de formação — Michael
descartou um coreus patrimonial classicamente definido de maneira Oakeshott entre o passado histórico e o passado prático: de fato, este
normativa. A arqueologia orientou, aos poucos, seu interesse para os — aqui poderíamos designá-lo por patrimonial — é "composto por
vestígios e não mais para os monumentos, a história investiu-se no artefatos e por declarações que sobreviveram do passado e, para nós,
arquivo e no documento, a antropologia deu preferência ao terreno e são reconhecidos em termos de valor em nossos compromissos práti-
a suas práticas; sobretudo, a evolução recente da ciência social tende a cos presentes", enquanto o passado histórico é "composto por trechos
transformar o patrimônio em um indício historiográfico. de acontecimentos históricos que não sobreviveram, utilizados como
No texto "Éloge de la curiosité", Paul Veyne estabelece a distinção outras tantas respostas às questões históricas a propósito do passado".8
entre o "saber histórico", ou história científica, e "uma ampla realidade De acordo com semelhante perspectiva, o patrimônio inscreve-se
polimorfa, a memória coletiva de um passado nacional, a comemoração entre a história e a memória. De fato, ele evoca um conjunto de valores
— por narrativas, monumentos ou ritos — de grandes acontecimentos que, à semelhança da memória, dependem de um enraizamento mais
políticos ou religiosos, lendários ou autênticos, que são muito apreciados ou menos profundo na dimensão "sensível" das identidades pessoais e
por determinada sociedade". Esta é estranha ao passado como tal, vo- sociais, das afinidades religiosas, das culturas populares e até mesmo das
tado ao puro e simples esquecimento: "A memória coletiva não passa de mitologias. Nesse aspecto, ele distingue-se de uma história profissional,
uma metáfora; convém diferenciar lembranças nacionais e historici- cujos interesses são exclusivamente críticos, participando de uma espécie
dade radical dos homens. Essas lembranças são apenas representações, de de reencantamento do passado material e, ao mesmo tempo, deixando
preferência, institucionais e não espontâneas, mantidas no mínimo pela o trabalho da história controlar sua configuração e validar sua auten-
educação; em vez de serem lembranças autênticas, trata-se de lendas ticidade. De fato, o patrimônio não é, salvo exceção, antinômico da
ou, pelo menos, verdades tendenciosas. Diferentemente da memória história — como é, frequentemente, o caso da memória. Ao contrário
individual, as coletividades esquecem instantaneamente seu passado, desta, ele participa de fato de uma historicidade reconhecida e muitas
salvo se um voluntarismo ou uma instituição se empenham em con- vezes reivindicada, sendo incapaz de representar, portanto, o papel que
servar ou elaborar uma bíblia selecionada a seu respeito, destinada a o apelo à memória desempenha, aleatoriamente, em nome de uma
um uso específico." Portanto, na sequência de seu inventário, o autor contra-história da modernidade.9
repertoria a "historicidade radical", "a memorização individual", o "pas-
sado de uma sociedade (em geral, esquecido)", as "lembranças ou lendas
instituídas", o "saber histórico, finalmente [...] fenômeno minúsculo,
mas autônomo". Este último deve deixar de ser o que ele designa, em
uma fórmula bastante característica, como "a memória das nações ou o
8. Michael Oakeshott, "The Activity of Being an Historian", in Rationalism in Politics
museu das civilizações".7 Tal apresentação esboça o projeto de uma severa and Other Essays, Londres: Methuen, 1962, p. 137-167, reeditado in On History and
depuração da verdadeira história que descarta "a invocação dos antepas- Other Essays, Londres: Blackwell, 1983. Será possível compará-lo com a abordagem
sociológica de Pierre Bourdieu, "Le Mort saisit le vif: Les Relations entre l'histoire
sados, a exaltação das façanhas, a busca dos modelos e as pseudoteorias ou réifiée et l'histoire incorporée", in Acres de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 32-33,
filosofias" (Raymond Aron). Uma formulação semelhante é a distinção 1980, p. 3-14.
9. Mesmo que ocasionalmente determinados contrapatrimônios tenham assumido
simbolicamente a causa de grupos sociais minoritários, ou marginalizados, além de
7. Paul Veyne, "Éloge de la curiosité", in Christian Descamps (org.), Philosophie et formas de alteridade, eles permaneceram amplamente insignificantes em uma visão
histoire, Paris: Centre Pompidou, 1987, p. 15-36. de conjunto.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE CONCLUSÃO

Um conjunto de releituras testemunho de semelhante evolução, que vai da identificação estática


das peças até a organização em séries para diferentes usos e autores.
Um dos grandes historiadores e homens do patrimônio de nosso A atenção desloca-se, assim, dos próprios documentos para as volições
tempo, Henri-Jean Martin, descreveu sua iniciação nos acervos de e práticas de seus autores, ou para a dinâmica das múltiplas leituras que
bibliotecas nestes termos: "Por ter sido o conservador da Biblioteca se elaboram a partir dos mesmos, em busca de uma "profundidade"."
de Lyon, célebre por seus manuscritos de épocas recuadas, lembro-me A evolução recente dos museus de antropologia enfatiza, igualmente,
do verdadeiro choque que experimentei ao abrir o saltério do final do as significações de suas coleções para as comunidades, em relação com
século V, escrito em letras maiúsculas, à razão de 15 a 25 signos suas atividades e tradições, às vezes contra os valores científicos da
por linha, sem qualquer espaço entre as sílabas ou entre as palavras, patrimonialização coletiva.
nem pontuação; ou tal outro manuscrito com iluminuras que teria A mais convincente justificativa do patrimônio é, nesse caso, a multi-
pertencido a Carlos, o Calvo, e parecia ser oriundo de outro mundo, plicação de releituras, ou seja, leituras de leituras anteriores e, ao mesmo
rudimentar e requintado; ou ainda outro, carolíngio, dispondo já de tempo, novas elaborações. Por um lado, a atitude patrimonial confessa
pontuação, cujas sílabas aparecem frequentemente separadas, mas a tentação de ter acesso, graças ao vestígio material, a uma relação ori-
não as palavras. E, finalmente, ao folhear uma Suma de são Tomás do ginal e única — a tentação proustiana, de acordo com este trecho de
século XIV — cuja escrita compacta e repleta de abreviações era legível ÁFrançois la Recherche du temps perdu, a propósito do romance de Georges Sand,
para mim porque eu já havia aprendido a decifrá-la em fac-símiles —, le Champi, lido em Combray: "Para mim, a primeira edição
compreendi como os referenciais coloridos podiam ajudar a entender de um livro teria sido mais preciosa que as outras, mas eu a entenderia
a arquitetura do raciocínio escolástico. Graças a um dos mais antigos como a edição em que o li pela primeira vez. Eu haveria de procurar as
manuscritos de La Chanson de Roland, percebi igualmente que o edições originais, quero dizer, aquelas em que tive uma impressão origi-
livro constituía, no caso concreto, apenas o suporte de um discurso nal a respeito desse livro; com efeito, nas impressões seguintes, deixa de
declamado."10 existir tal característica."12 Por outro lado, ela depende amplamente da
Este incipit de uma obra de historiador — que se inscreve em uma história axiológica e, por conseguinte, não cessa de formular a questão
13
longa tradição, desde a cena primitiva de um Gibbon ao imaginar da "renovação das obras-primas".
seu estudo, Declínio e queda do Império Romano, diante das ruínas Um dos desafios da história do patrimônio é, portanto, o vínculo
romanas — revela algumas das características mais notáveis do ideal entre as patrimonialidades individuais ou comunitárias, em suas signifi-
contemporâneo da relação com o patrimônio. Essa página manifesta, cações e intensidades, e as intencionalidades da patrimonialização cole-
em primeiro lugar, a etnologização, se é que essa palavra existe, dos tiva. Eis um dos paradoxos de nosso tempo: sobrevalorizar a libertação
acervos de biblioteca que aparecem como diferentes e "rudimentares"
em relação aos dos museus de antropologia; além disso, remete à ideia de
que "atos de leitura" podem tornar-se outros tantos "lugares de memó- 11. Terry Cook, "What is Past is Prologue: A History of Archival Ideas since 1898,
and the Future Paradigm Shift", in Archivaria, vol. 43, 1997, p. 17-63, fornece um
ria" no mesmo plano de monumentos. A recente teoria do arquivo dá panorama bastante completo do tema.
12. Marcel Proust, À la Recherche du temps perdu, vol. 3. Paris: Gallimard, 1954, p. 887.
13. Paul Veyne, Comment on écrit l'Histoire, Paris: Le Seuil, p. 95 [ Como se escreve a
10. Henri-Jean Martin, Le Livre français sous l'Ancien Régime, Paris: Promodis, 1987, história, trad. Alda Baltar e Maria A. Kneipp, Brasília: UnB, 1982]. Para um apro-
p. 251-252. O livro de Armando Petrucci (Jeux de Lettres) constitui, de certa maneira, fundamento sobre esse tema, cf. Éric Méchoulan, Pour une Histoire esthétique de la
a vertente oposta dessa tentativa em prol da inscrição. littérature, Paris: PUF, 2004.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE CONCLUSÃO

dos indivíduos e, simultaneamente, a busca de identidade» Cada entre público e privado, desencadeiam, frequentemente — com o
um torna-se intérprete, à sua maneira, do legado que ele reivindica; objetivo de ilustrar uma legitimidade —, reivindicações de identida-
além disso, a decomposição das identificações coletivas e o eclipse das des, negociações com os poderes constituídos, além de confrontos de
grandes narrativas suscitam uma infinidade de hermeneutas singulares classes, gênero e culturas. Esboça-se, desse modo, o princípio de uma
que a publicidade dos acervos exime de qualquer restrição. A presente propriedade patrimonial que, mantendo-se sempre relacionada com
constatação refere-se, assim, a uma desvinculação da identidade e uma cultura, deve, daqui em diante, tanto — sobretudo? — afirmar-se
do patrimônio no sentido tradicional do termo, ou seja, "podemos "justa" quanto mostrar-se "verdadeira". De acordo com a demonstração
perfeitamente pertencer a tradições diferentes e ser responsáveis pelo de Elazar Barkan, três configurações históricas revelaram-se, nesse aspecto,
mesmo passado; podemos, também, deixar de nos reconhecer univo- estratégicas: a questão das pilhagens de objetos identificados com a alta
camente em uma tradição, sem termos a possibilidade de desligar-nos cultura, desencadeada no momento das guerras da Revolução e do Império
do passado".15 A relação de nosso patrimônio com tradições históricas e, desde essa época, sempre pendente; a das culturas indígenas, surgida
desvia-se, nesse aspecto, do modelo elaborado no século XIX para com a descolonização e os retornos eventuais de propriedade cultural; e,
fundir-se no panorama, como é resumido por Claude Lévi-Strauss, mais recentemente, a questão do direito de propriedade do patrimônio
dos "arquivos da variabilidade, diversidade e criatividade culturais".16 imaterial, desde as culturas populares até os saberes práticos, cujos aspectos
Outra questão refere-se à relação variável entre a aparência dos comerciais podem ser relevantes." Daqui em diante, a noção do justo -
monumentos, a amplitude dos indícios do passado e a profundidade para retomar a fórmula de Paul Ricceur a propósito da "memória justa"18
que ela revela. O interesse de uma história das metamorfoses patri- — está, portanto, amplamente presente na reflexão política, assim como
moniais consiste em chamar nossa atenção para o aspecto evolutivo na investigação do historiador ou do sociólogo, abrindo assim uma nova
da significação dos objetos. E, para além da consideração exclusiva era do patrimônio ético.
dessa "fortuna crítica", ela nos ensina, sobretudo, como nossos ante-
passados conferiram um sentido à sua herança: ou seja, que figuras da
memória cultural haviam sido privilegiadas por eles em relação àquelas
que, atualmente, são adotadas por nós. A experiência do patrimônio é
tributária de uma longa duração das práticas de admiração e de apro-
priação; desde o século XIX, ela encarnou-se em uma série de disposi-
tivos materiais, de rituais e, mais amplamente, de circunstâncias em
que as noções de limiar e de contato são particularmente importantes.
Seus usos simbólicos, em especial na relação entre sagrado e profano,

14. Marc Augé, Le Sens des autres: Actualité de l'anthropologie, Paris: Fayard, 1994, p.
163; Marc Augé, Non-lieux, Paris: Le Seuil, 1992, p. 148.
15. Jean-Michel Chaumont, "Introduction", in Hermès, vol. 10, 1991, p. 120-123; e 17. Elazar Balkan, The Guilt of Nations: Restitution and Negotiating Historical Injustices,
Jean-Michel Chaumont, La Concurrence des victimes: Génocide, identité, reconnais- Nova York: Norton, 2000. Um balanço da questão poderá ser encontrado no artigo
sance, Paris: La Découverte, 1997. de Valdimar Tr. Hafstein, "The Politics of Origins: Collective Creation Revisited",
16. Claude Lévi-Strauss, apud Marc Augé (org.), Territoires de la mémoire, Thonon-les- in Journal of American Folklore, vol. 117, 465, p. 300-315.
Bains: L'Albaron, 1992, p. 70-71. 18. Paul Ricceur, La Mémoire, l'histoire, l'oubli, Paris: Le Seuil, 2000.

238 239
DOMINIQUE POULOT é professor de história da art
na Sorbonne (Universidade Paris I) e vem desenvol
vendo importante pesquisa nas áreas de patrimônio
e museologia. É membro do Instituto Interdiscipli
nar de Antropologia do Contemporâneo, no Centr
Nacional de Pesquisa Científica francês/Escola Su
perior de Ciências Sociais (CNRS-EHESS). É autc
ESTE LIVRO FOI COMPOSTO EM ainda de Les lumières (2000) e Mudes en Europe: ur
ADOBE GARAMOND PRO CORPO 11,6 mutation inachevée (2004), além de dirigir a coleção
POR 15 E IMPRESSO SOBRE PAPEL
Logiques historiques e codirigir a coleção Patrimone
OFF-SET 75 gim' NAS OFICINAS DA
GRÁFICA ASSAHI, SÃO BERNARDO DO et sociétés nas edições L'Harmattan.
CAMPO-SP, EM OUTUBRO DE 2009
p

Se o conceito de "patrimônio" conhece, atualmente, uma po-


ularidade espetacular, associada aos investimentos de toda ordem
política, financeira) suscitados por ele, a investigação a seu respeito
Oscila entre a evocação de algo inefável — os valores da civilização
— e a atenção exclusiva prestada às instituições e aos profissionais
lo setor. Uma dificuldade particular refere-se ao fato de que o
próio patrimônio determina as condições concretas de sua aborda-
;em, comunicação e controle [...].

Tradução
Guilherme João de Freitas Teixeira

ISBN 978 85 7448 170 8

França.BR 2009
o
o 11
9 788574 481708

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