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Título original: Une histoire du patrimoine en Occident, XVIIIe-XXIe' siècle.

Du monument aux valeurs


C) Presses Universitaires de France, 2006
C) Editora Estação Liberdade, 2009, para esta tradução SUMÁRIO
Preparação Huendel Viana
Revisão Jonathan Busato
Assistência editorial Leandro Rodrigues
Composição Johannes C. Bergmann/Estação Liberdade
Imagem de capa Musée d'Orsay. O Daniel Thierry/Photononstop.
Editores Angel Bojadsen e Edilberto Fernando Vem Introdução
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO 9
Sindicato Nacional dos Editores dc Livros, RJ
Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações 15
P894h
Poulot, Dominique, 1956- Uma partilha das obras de cultura 19
Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do
monumento aos valores / Dominique Poulot ; tradução Guilherme Uma encarnação da construção nacional 25
João de Freitas Teixeira. — São Paulo : Estação Liberdade, 2009.
Um recurso comum 29
A caminho de uma antropologia histórica da
Tradução de: Une histoire du patrimoine en Occident
ISBN 978-85-7448-170-8

patrimonialização francesa 33
1. Património cultural — Europa — História. 2. Patrimônio
cultural —Avaliação — Europa. 3. Europa — Civilização. 4. Europa -
Política cultural. 1. Título.

09-4801.
1
CDD: 363.69
CDU: 351-852 UMA REPRESENTAÇÃO DO SABER E DA MEMÓRIA 39
A invenção identitária 40
A transferência da sacralidade 42
Esta obra, publicada no âmbito do Ano da França no Brasil e do programa de participação à publicação Carlos. A construção do valor 44
Drummond de Andrade, contou com o apoio do Ministério francês das Relaçóes Exteriores.
O monumento e a história 45
"França.Br 2009" Ano da França no Brasil/2009 é organizada no Brasil pelo Comissariado geral brasileiro, pelo
Ministério da Cultura c pelo Ministério das Relações Exteriores; na França, pelo Comissariado geral francês, pelo O território da Cidade 53
Ministério das Relações exteriores e européias, pelo Ministério da Cultura e da Comunicação e por Culturesfrance.
O jardim e suas fabriques: uma melancolia cívica 61
Cet ouvragc, publié dans le cadre de l'Année de la France au Brésil et du Programme d'Aide à la Publication Carlos As provas da história 71
Drummond de Andrade, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Etrangères.
França.Br 2009 l'Année de la France au Brésil est organisée :
En France : par le Commissariat général français, le Ministère des Affaires étrangères et européennes, le Ministère de
la Culture et de la Communication et Culturesfrance. 2
Au Brésil : par le Commissariat général brésilien, le Ministère de la Culture et le Ministère des Relations Extérieures.
UMA NOVA AUTENTICIDADE 85
Todos os direitos reservados à Uma nova história 89
Editora Estação Liberdade Ltda. O triunfo da alegoria 96
Rua Dona Elisa, 116 1 01155-030 | São Paulo-SP Distribuir o patrimônio em novos lugares 102
Tel.: (11) 3661 2881 |Fax: (11) 3825 4239
O museu regenerador 109
www.estacaoliberdade.com.br
O combate pela autenticidade 116

7
INTRODUÇÃO
3
A MEMÓRIA INSPIRADORA 123
O culto dos homens ilustres
HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO
125
A funcionalização dos mortos 129 Os monumentos constituem uma parte essencial da glória
A busca de um santuário do Estado 140 de qualquer sociedade humana: eles carregam a memória
A encarnação dos antepassados 152 de um povo para além de sua própria existência e acabam
por torná-lo contemporâneo das geraçóes que vêm se esta-
belecer em seus campos abandonados.
Chateaubriand, Mémoires d'outre-tombe.
4
O TRABALHO DO LUTO 157
Uma consciência literária 161 Na nossa vida cultural, raros são os termos que possuem um poder
Os desafios a enfrentar por uma geração 166 de evocação tão grande quanto "patrimônio". Ele parece acompanhar
Uma teoria do patrimônio 174 a multiplicação dos aniversários e das comemorações, característica de
A administração do luto e da ressurreição 178 nossa atual modernidade. O acúmulo de vestígios e restos revelados,
Uma história do ponto de vista da civilização 183 conservados e aclimatados segundo práticas diversas, parece respon-
Uma arqueologia dos Modernos 188 der ao fluxo da produção contemporânea de artefatos. Deste modo,
A conservação para o futuro 192 o patrimônio sanciona, a todo instante, a passagem acelerada que
atribui uma posição "de destaque" a objetos ou práticas, de acordo
com a análise de James Clifford sobre a evolução dos paradigmas da
5 conservação.'
A RAZÃO PATRIMONIAL NO OCIDENTE 197 No decorrer do século XX, o patrimônio assume, cada vez mais ex-
A nova urgência da transmissão 199 plicitamente, sua implementação positiva, segundo juízos de valor que
A formação de um cânon 203 afirmam uma verdadeira escolha. Os desafios ideológicos, econômicos e
As civilidades do patrimônio 207 sociais extrapolam amplamente as fronteiras disciplinares (entre história,
O ponto de vista da recepção 213 estética ou história da arte, folclore ou antropologia) —, como pode ser
O caso do território-patrimônio 219 notado, no decorrer das décadas de 1970-1980, pelo reconhecimento
Os valores da apropriação 224 de "novos patrimônios", que abrange uma profusão de esforços públicos
Um patrimônio da significação 228 e privados em favor de múltiplas comunidades. Progressivamente, o
entusiasmo pela promoção e valorização do patrimônio passa por uma
verdadeira "cruzada" no âmago do mundo ocidental
Conclusão
Uma definição orientada pelo futuro 231 1. James Clifford, Malaise dans la culture: L'Ethnographie, la littérature et l'art au XX'
Um conjunto de releituras siècle, Paris: Ensba, 1998.
236
2. David Lowenthal, The Heritage Crusade and the Spoils of History, Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1998.
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

Por conseguinte, não cansamos de evocar "patrimônios" a serem no decorrer dos últimos dois séculos, limita-se comumente ao elogio
conservados e transmitidos, relacionados com universos absolutamente de seus arautos mais notáveis, bons servidores e grandes estadistas;
heterogêneos: a apreciação estética do cotidiano, mesmo que apenas servindo-se da pátria como ilustração, ela enaltece o labor da ciência
de outrora; a indispensável manutenção do legado arquitetural; a pre- e os avanços da instrução pública. O historiador torna-se, então, um
servação de habilidades artesanais, até mesmo de personnes ressources expert em matéria de normas patrimoniais; neste caso, a tomada de
[especialistas em determinada área], segundo a expressão quebequense; consciência, de modo progressivo, em relação à herança passa por
a proteção de costumes locais, no mesmo plano de certos gêneros um imperativo moral universalmente compartilhado. Outra história
de vida ameaçados de extinção... Fala-se de um patrimônio não só do patrimônio, porém, pode acompanhar o combate militante travado
histórico, artístico ou arqueológico, mas ainda etnológico, biológico por associações ou movimentos envolvidos com a conservação. Oriunda
ou natural; não só material, mas imaterial; não só local, regional ou de um compromisso contra o vandalismo, ela é então, muitas vezes,
nacional, mas mundial. Às vezes, o ecletismo de tais considerações prisioneira das polêmicas próprias ao gênero, denunciando, natural-
redunda em contradições ou leva à incoerência. mente, as lacunas do patrimônio oficial e suas eventuais falências, bem
Se o conceito de "patrimônio" conhece, atualmente, uma popula- longe de celebrar a memória das instituições.
ridade espetacular, associada aos investimentos de toda a ordem (polí- Essas duas historiografias, construídas simetricamente, elaboram
tica, financeira) suscitados por ele, a investigação a seu respeito oscila a posteriori uma coerência ilusória — ao reunirem, sob o termo
entre a evocação de algo inefável — os valores da civilização — e a aten- "patrimônio", elementos que outrora não lhe diziam respeito; por
ção exclusiva prestada às instituições e aos profissionais do setor. Uma conseguinte, esboçam uma continuidade de doutrina e perdem-se,
dificuldade particular refere-se ao fato de que o próprio patrimônio mais ou menos, na ilusão teleológica. A defesa, desenvolvida frequen-
determina as condições concretas de sua abordagem, comunicação e temente nos dias de hoje, em favor de um patrimônio cada vez mais
controle; de fato, por seu intermédio, o pesquisador é conduzido ao completo, contra o elitismo ou em nome da exaustividade científica,
âmago de um quadro de valores que se afirma incontestável. No caso deixa escapar o fato de que o objetivo do patrimônio não consiste,
concreto, os pontos de vista reenviam aos sistemas de partilha obser- de modo algum, em duplicar a realidade à maneira do "mapa dilatado" de
vados em outros campos quando se trata de "discutir o indiscutível", Borges, coincidente• com o território que, supostamente, ele representa.4
segundo a fórmula do sociólogo Alain Desrosières.3 A oposição verifica- "Os colégios de cartógrafos", escreve o autor argentino, "lavraram um
se, de um lado, entre a descrição e a prescrição, e, de outro, na própria mapa do Império com seu formato e que coincidia com ele, ponto
ciência, entre "posição realista" que exprime "fiabilidade do cálculo" e por ponto. Menos apaixonadas pelo estudo da cartografia, as gerações
sociologia construtivista do conhecimento. seguintes decidiram que este mapa dilatado era inútil e, de forma
A história da proteção e da transmissão do patrimônio — atinente impiedosa, abandonaram-no à inclemência do sol e dos invernos.
às leis, a suas modalidades de aplicação e aos critérios das interven- Nos desertos do Oeste, subsistem vestígios bastante estragados do
ções — tem sido empreendida, frequentemente, no âmbito de tarefas mapa; eles são habitados por animais e mendigos." Esse mapa em pe-
profissionais e por ocasião de aniversários e de retrospectivas. Essa his- daços é uma excelente imagem de uma crise radical da mimesis, que cul-
tória-memória do patrimônio nacional, constituída progressivamente mina no desaparecimento das representações e no impasse da ciência.

3. Alain Desrosières, La Politique des grands nombres: Histoire de la raison statistique, 4. J. L. Borges, "De Ia Rigueur de Ia science", in Histoire universelle de l'infamie / Histoire
Paris: La Découverte, 1993, p. 395-413. de l'éternité, Paris: UGE, 1994, p. 107.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

De fato, é evidente que fracassaria o patrimônio que fosse um controle ela confunde-se com uma história administrativa ou, melhor ainda,
utópico do tempo, tentando reproduzi-lo de uma forma idêntica. socioadministrativa. Uma definição "restrita" do patrimônio marca,
O patrimônio não é o passado, já que sua finalidade consiste em muitas vezes, as perspectivas na matéria, orientadas pelos laudos de
certificar a identidade e em afirmar valores, além da celebração de experts. Tal é o caso da teleologia, que é manifesta, por exemplo, nas
sentimentos, se necessário, contra a verdade histórica. Nesse aspecto compilações retrospectivas de episódios considerados como "patrimo-
é que a história parece, com tamanha frequência, "morta", no sentido niais", tendo, supostamente, inspirado a legislação contemporânea/
corrente. Mas, ao contrário, o patrimônio é "vivo", graças às profissões Em outras investigações, trata-se sobretudo de analisar o modo de vida
de fé e aos usos comemorativos que o acompanham.' no patrimônio e como são utilizados os monumentos ou os museus.
Nos últimos anos, as ciências humanas e sociais têm multiplicado Semelhante história está em condições de saber como os príncipes
os estudos sobre o patrimônio, desenvolvidos mais amplamente, sem fizeram uso dos valores patrimoniais para desenvolver, ou não, es-
dúvida, na área da história e da antropologia, a partir de um domínio tratégias, ganhar prestígio e até mesmo consolidar alianças políticas.
que, na origem, é muito bem circunscrito, ou seja, o da história das A história do colecionismo é, particularmente, tributária desse tipo de
artes — e do livro, se considerarmos o patrimônio escrito como par- interesse. Para além dele, o desafio consiste em considerar a posição do
cela, bem cedo reconhecida, do conjunto patrimonial. No começo, patrimônio no desenvolvimento de uma coletividade: a aparição ou
tratava-se de abordar o corpus mais ou menos canônico, tal como havia o fracasso de um patrimônio comum assinala, sem dúvida, seu êxito
sido concebido por diferentes épocas — assim, Bernard Teyssèdre e seu ou sua falência.
projeto de dispor as histórias dos patrimônios artísticos em diversos O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de
círculos e em diferentes momentos da história; ou Francis Haskell seus objetos, pelo valor estético — e, na maioria das vezes, documental,
e seu desígnio de uma história das (re)descobertas do gosto.6 Nesse além de ilustrativo, inclusive de reconhecimento sentimental — que
sentido, a história do patrimônio não designa verdadeiramente um lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuto específico, legal
conteúdo de pesquisas específicas, nem alega uma instância explicativa ou administrativo. Ele depende da reflexão erudita e de uma vontade
particular para pensar a articulação entre cultural, social e político. política, ambos os aspectos sancionados pela opinião pública; essa
Logo em seguida, o campo da história do patrimônio se fragmentou dupla relação é que lhe serve de suporte para uma representação da
em outros tantos objetos de diferentes investigações, desde os museus civilização, no cerne da interação complexa das sensibilidades relati-
até os monumentos, passando pelo novo patrimônio imaterial. Esse identas.Pr
vamente ao passado, de suas diversas apropriações e da construção das
rápido desenvolvimento foi acompanhado por uma profusão semân- se impor, de acordo com a espécie de evidência que
tica que, finalmente, tornou bastante incerta, ao longo do tempo, a é a sua atualmente, a noção teve de passar por um processo complexo,
unidade de semelhantes estudos. de longa duração e profundamente cultural; ela é o resultado de uma
Tal como é praticada há uma geração, com êxito incontestável, dialética da conservação e da destruição no âmago da sucessão das
a história do patrimônio é amplamente a história da maneira como formas ou dos estilos de heranças históricas que haviam sido adotados
uma sociedade constrói seu patrimônio. Em particular no caso francês,
7. Assim, Andrea Emiliani (org.), Leggi, bandi e provvedimenti per la tutela dei beni
5. David Lowenthal, op. cit., p. 121-122; Hervé Glavarec e Guy Saez, Le Patrimoine
artistici e culturali negli antichi stati italiani, 1571-1860, Bolonha: Nuova Alfa,
saisi par les associations, Paris: La Documentation française, 2002.
1996. Sobre os usos do anacronismo, cf. Nicole Loraux, "Éloge de l'anachronisme en
6. Bernard Teyssèdre, L'Histoire de l'art vue du Grand Siècle, Paris: Julliard, 1964; Francis histoire", in Le Genre humain, n. 27, 1993; e G. Didi-Huberman, Devant le Temps:
Haskell, La Norme et le caprice, Paris: Flammarion, 1986. Histoire de l'art et anachronisme des images, Paris: Minuit, 2000.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

pelas sociedades ocidentais. Ela estabeleceu-se a partir do modelo do A "modelagem humana do histórico", segundo Alphonse Dupront,
"e
nquadramento" de algumas obras em determinado momento da res- ocupa uma posição eminente na invenção patrimonial, "quanto às la-
pectiva história — enquadramento utilizado, deformado, transmitido, tências laboriosas da memória coletiva, quanto à confissão de modelos
esquecido, de geração em geração. Nesse caso, cada um abrangia mais ou ou à proclamação de 'fontes' e, sobretudo, quanto às necessidades pro-
menos o outro, absorvendo-o e modificando-o enquanto, paralelamente, fundas de viver a duração, contínua ou descontínua, e de acordo com
9
alterava-se a definição e a significação do "vandalismo", suscitando, às a amplitude de sua influência". As diferenças no plano da recepção
vezes, acirrados conflitos a propósito dos respectivos contornos. Com (de seleção) dependem amplamente dessas condicionantes, quando
efeito, a escolha de um patrimônio, como aponta Judith Schlanger no determinados tipos de objetos ou de edifícios se tornam patrimoniais,
livro La Mémoire des wuvres, "além de um efeito e de um desafio de por oposição a um grande número de outros que são negligenciados ou
instituição, é uma instituição".8 destruídos. O detalhe das práticas eruditas — ou, em outras palavras, a
A atitude patrimonial compreende dois aspectos essenciais: a assi- maneira como foi concebido o "quadro" da coleta, classificação,
milação do passado, que é sempre transformação, metamorfose dos exposição e interpretação — determina o processo de ocorrência do
vestígios e dos restos, recreação anacrônica; e a relação de fundamental patrimonial.'° No entanto, a apropriação por um público — a maneira
estranheza estabelecida, simultaneamente, por qualquer presença de como o patrimônio é visitado, interpretado, e exerce influência — está
testemunhas do tempo remoto na atualidade. O primeiro aspecto sus- associada também às formas de sua apresentação, ao olhar, bem acolhido
tenta o esforço de pedagogia (de ordem cívica), enquanto o segundo ou importunado, aos catálogos ou aos itinerários. As diversas definições
leva a um reconhecimento do tesouro, "reconhecimento que constitui do patrimônio, através de testemunhos convergentes ou contraditórios,
a própria virtude do tesouro" (Alphonse Dupront). A época clássica e os efeitos de expectativa ou de saber que ele pode provocar ou mobili-
foi marcada pela busca da excelência da informação: nesse caso, a zar nos espectadores alimentam identidades e entretecem sociabilidades
publicidade dos acervos é sempre cerimônia a serviço do fausto da em diferentes escalas — locais, nacionais, globalizadas —, ou, às vezes,
pessoa do príncipe. Por sua vez, a época das revoluções liberais assiste sem qualquer atribuição territorial. O patrimônio elabora-se, em cada
ao triunfo do projeto de formar os cidadãos pela instrução e pelo instante, com base na soma de seus objetos, na configuração de suas
culto do Estado-Nação: o senso do patrimônio é dominado, assim, afinidades e na definição de seus horizontes.
pela pedagogia de sua divulgação. Por último, na virada do século XX
para o XXI, o patrimônio deve contribuir para revelar a identidade de
cada um, graças ao espelho que ele fornece de si mesmo e ao contato Uma expressão tradicional do encadeamento das gerações
que ele permite com o outro: o outro de um passado perdido e como
que tornado selvagem; o outro, se for o caso, do alhures etnográfico. O patrimônio contribui, tradicionalmente, para a legitimidade do
Lugar da pessoa pública, em particular da figura do rei, lugar da poder, que, muitas vezes, participa de uma mitologia das origens. Ele
história edificante, lugar da identidade cultural: assim poderiam ser
enunciados, de maneira bastante sumária, os imaginários do patri- 9. Alphonse Dupront, "L'Histoire après Freud", in Revue de l'Enseignement Supérieur,
mônio ocidental. 1968, p. 27-63 (aqui, p. 46).
10. Para Jacques Derrida ( Mal d'archive, Paris: Galilée, 1995), os arquivos implicam um
lugar e uma técnica que determinam a estrutura do arquivável, em sua ocorrência e
8. Judith Schlanger, "Le Passé pertinent", in La Mémoire des oeuvres, Paris: Nathan, em sua relação com o futuro: "O arquivo foi sempre uma garantia e, como qualquer
1992, p. 110 ss. penhor, uma garantia de futuro" (p. 37).

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

encarna o que, de acordo com Pierre Legendre, será designado por Assim, o patrimônio ilustra o quanto cultura e política, para citar
"g
enealogia", entendida como "ato de transmitir, ou seja, afinal de Hannah Arendt, "imbricam-se mutuamente porque não é o saber ou
contas, as montagens de ficção que tornam possível que tal ato seja a verdade que está em jogo, mas sobretudo o julgamento e a decisão, a
realizado e repetido através das gerações"." Para o direito romano, o troca criteriosa de opiniões incidindo sobre a esfera da vida pública
patrimônio era o conjunto dos bens familiares, vislumbrados não se- e sobre o mundo comum
gundo seu valor pecuniário, mas em sua condição de bens-a-transmitir. A recusa de "origens" — relativamente ao aspecto religioso ou
Tal característica acabava por distingui-los absolutamente dos outros mítico, em benefício de "começos" seculares que evocam a atividade
bens que "não estão inscritos em um estatuto [...], mas são conside- humana e não cessam de ser questionados — configura daqui em
rados separadamente em um mundo de objetos dotados de um valor diante o compromisso contemporâneo, tanto crítico quanto político.
próprio que lhes é atribuído, exclusivamente, pela troca e pela moeda". A meditação de Edward Said14 sobre a ideia de começos prefere referir-se,
De fato, na cultura do patrimonium, "a norma social exigia que os assim, a Mallarmé, a propósito do "demônio da analogia", para en-
bens de alguém fossem oriundos da herança paterna, que, por sua fatizar uma contemporaneidade marcada pelo impossível vínculo à
vez, deveria ser transmitida. [...] Era malvisto interromper a cadeia origem e à inspiração, e para afirmar o peso da intencionalidade em
de transmissão, da qual a instituição familiar havia sido publicamente um trabalho, daqui em diante, privado das musas /No sentido banal,
incumb ida". atualmente o patrimônio confunde-se com a herança, cuja presença
Desse modo, o termo "patrimônio" refere-se aos "bens de herança" pode ser verificada à nossa volta e que reivindicamos como nossa,
que, de acordo com o dicionarista Littré, por exemplo, "passam, se- tanto mais que estamos prontos a tomar providências para assegurar
gundo as leis, dos pais e das mães para sua filiação". Ele não evoca a sua preservação e inteligibilidade. Esses bens recebem, portanto, uma
priori o tesouro ou a obra-prima. — nem que ele tenha a ver stricto afetação particular; e estão submetidos a um modo específico de ges-
sensu com a categoria, reivindicada pelas ciências, do verdadeiro e do tão. O respeito a tais condições é garantido por leis ou regulamentos,
falso, mesmo que deva alegar a autenticidade. Assim, na retórica das até mesmo por uma militância empenhada, em que, nos fatos, seja
lutas identitárias, as evocações do passado não coincidem, conforme inscrito o princípio de transmissão ao futuro. De acordo com o re-
tem sido observado frequentemente, com as análises do historiador, sumo proposto, de maneira bastante pragmática, por André Chastel,
do etnólogo ou do arqueólogo. No entanto, apesar de desprovidas de "O patrimônio reconhece-se pelo fato de que sua perda constitui um
realidade, até mesmo de verossimilhança, elas revelam-se regularmente sacrifício e que sua conservação pressupõe sacrifícios".
eficazes: David Lowenthal conseguiu repertoriar inumeráveis avatares Na relação entre manifestação e princípio, superfície e funda-
de algo verossímil que, nesse aspecto, se tornou realmente verdadeiro. mentos, o patrimônio participa de uma metáfora central de nossa
modernidade, a dos modelos de "profundidade" — de acordo com
11. Pierre Legendre, L'Inestimable objet de la transmission: Étude sur le principe généalogique a palavra forjada por Frederic Jameson — ou ainda a do paradigma
en Occident, Paris: Fayard, 1985, p. 50.
indiciário, em conformidade com o qualificativo adotado por Carlo
12. Yann Thomas, "Res, chose et patrimoine; note sur le rapport sujet-objet en droit
romain", in Archives de la philosophie du droit, 1980, Sirey, p. 425; e "Pères, citoyens
et cité des pères", in Histoire de la famille,I , Paris: Le Seuil, I986, p. 206. Cf. ainda,
de outro ponto de vista, Claudia Moatti, "La Construction du patrimoine culturel à
Rome au Ier siècle avant et au Ier siècle après J.-C.", in Mario Citroni (org.), Memoria 13. Hannah Arendt, La Crise de la culture, Paris: Gallimard, 1972.
e identità: La cultura romana costruisce la sua immagine, Florença: Giorgio Pasquali, 14. Edward W. Said, Beginnings: Intention and Method (I975), Londres: Granta, I995,
2003, p. 81-98. novo prefácio, p. XIX, 67-68.

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5

UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

Ginzburg.1 A amplitude do patrimônio é sua característica mais que há de suceder-lhe: as eras futuras hão de mencionar tal aspecto,
evidente. O essencial da literatura patrimonial, no sentido corrente, evento que será célebre no mais longínquo futuro. Ao passo que o
empenha-se em descrever sua geografia — para gerenciá-la em melhores tempo e os pensamentos de nossos sucessores estarão voltados para "18 os
condições. Esta se confunde com uma oferta de documentos ou com acontecimentos do momento, como ocorre agora com os nossos [...I.
proposições turísticas, em poucas palavras, com um corpus, repertoriado Pelo contrário, o momento revolucionário abordará o tema da pos-
segundo modalidades mais ou menos sofisticadas. Em compensação, a teridade com um voluntarismo assumido: longe das figuras de estilo
profundidade do patrimônio evoca o que, em primeira análise, poderia da sobrevivência literária, a palavra define então um ato político, o de
ser designado por memória da qual ele depende e é a manifestação. A lite- instaurar uma memória duradoura e eficaz a partir das lições extraídas
ratura prescritiva ou documental não dá, de modo algum, testemunho de um passado infamante. Mais tarde, a relação do patrimônio com
dessa profundidade patrimonial, ao contrário de determinada meditação uma profundidade soterrada — a da autenticidade e até mesmo do
sobre a usura do tempo e sobre o lugar do passado no presente — nem inconsciente no século XX — passou por uma considerável mudança,
que fosse para negá-lo ou esnobar a seu respeito — ou desses diversos sob a influência de um sentido inédito das rupturas e, talvez, do mo-
paratextos, tais como prefácios, anotações, apologias e dedicatórias, que delo da arqueologia no âmago das "grandes narrativas"sucesivas.19
acompanham a literatura artística.
A relação geral com essa profundidade parece, de qualquer modo, ter
sofrido um deslocamento, do início da modernidade ao século XVIII, ao Uma partilha das obras de cultura
invocar a Posteridade em vez do Tempo. Mas, tal posteridade é cada vez
menos garantida: assim, Swift chega a imaginar, na profusão de elementos Para Jean-Claude Passeron, a definição antropológica da cultura,
que envolvem A Tale of a Tub, um jovem Príncipe Posteridade que carece tal como ela foi apresentada por Tylor em Primitive Culture (1871)
de sabedoria e de discernimento; além disso, sua imaturidade ameaça — ou seja, o conjunto da vida simbólica de um grupo ou de uma
a fé antiga na perpetuidade da transmissão.16 De maneira ainda mais sociedade —, supõe "a existência de uma entidade homogênea capaz
explícita, alguns autores e artistas inscrevem-se no momento presente, de operar homogeneamente em tudo o que ela manda fazer ou sentir
sem se comprometerem seja na reivindicação de um passado, seja na a seus integrantes: ela equivale a confundir uma estrutura com um
expectativa de um futuro: esse pensamento do instante é, particular- cafarnaum"." Pelo contrário, esse autor propõe identificar três sig-
mente, representado nas Luzes, na França Mas, desde o início do nificações distintas da cultura: a cultura-estilo, a cultura declarativa
século, Swift, para citá-lo de novo, observava que "é agradável observar e a cultura corpus. A primeira designa o conjunto dos modelos de
a facilidade com que a época presente aventa hipóteses sobre aquela representação e das práticas que orientam a organização das formas
da vida social. A segunda, a de uma cultura como comportamento
15. Frederic Jameson, Postmodernism, or, the Cultural Logic of Late Capitalism, Durham:
Duke UP, 1991, p. I2; Carlo Ginzburg, "Traces: racines d'un paradigme indiciaire", 18. Jonathan Swift, Pensées sur divers sujets moraux et divertissants: (Euvres , Paris, Pléiade,
in Mythes, emblèmes, traces: Morphologie et histoire, Paris: Flammarion , I989. 1965, p. 572. "It is pleasant to observe how free the present age is in laying taxes on
16. Jonathan Swift, "The Epistle Dedicatory to his Royal Highness Prince Posterity", the next. FUTURE AGES SHALL TALK OF THIS; THIS SHALL BE FAMOUS TO ALL POSTERITY.
in A Tale of a Tub; Aleida Assmann, "Texts, Traces, Trash: The Changing Media of Whereas their time and thoughts will be taken up about present things, as ours are now."
Cultural Memory", in Representations, vol. 56, 1996, p. 123-134. 19. Julian Thomas, Archaeology and Modernity, Londres: Routledge, 2004.
17. Thomas M. Kavanagh, Esthetics of the Moment: Literature and Art in the French 20. J.-C. Passeron, Le Raisonnement sociologique (l'espace non poppérien du raisonnnement
Enlightenment, Philadelphia: University of Pennsylvania Press, I996. naturel), Paris: Nathan, 1991, p. 323.

18 19
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

declarativo, corresponde à reivindicação de uma identidade de grupo: convertidos, ou por qualquer índice da estima manifestada). A terceira
é a "formulação autocentrada da cultura que uma cultura mostra de si configuração entende-se em termos de impacto sobre o campo de
mesma em sua definição falada ou escrita das relações entre os valores, referência cultural (a influência de um objeto cultural sobre a fisio-
o homem e o mundo". Por último, a cultura como corpus de obras va- nomia de objetos do mesmo gênero). A quarta equivale à canonização
lorizadas define o universo simbólico de um grupo social, ao privilegiar (a aceitação desse objeto pelo grupo de especialistas, capacitados para
um reduzido número de objetos culturais como outros tantos de seus conferir-lhe legitimidade). Enfim, o último elemento de recepção tem
símbolos favoritos. É, evidentemente esta última configuração que a ver com a duração (a persistência de um objeto cultural no tempo,
tradicionalmente coincide com a definição canônica do patrimônio. graças a um conhecimento ampliado ou não). Apesar de corresponder
O patrimônio institucionalizado não passa, em vários aspectos, a algumas dessas configurações, a definição patrimonial não se coaduna
de uma câmera de gravação dos movimentos aleatórios brownianos, forçosamente, de maneira positiva, com todos os critérios, pelo fato
cujo contorno é desenhado a partir de manifestações de admiração e de depender de uma história da mediação considerada "sob a óptica
reconhecimento, de compras e revendas, além de acúmulo de bens e de 22
dos conflitos de poderes e de personalidades".
rejeições. Pintado por Modigliani como Novo pilota [Novo piloto], o Em particular, ela ilustra o que Ernest Gombrich designa por
grande retrato de Paul Guillaume — figura de marchand, colecionador "clima social" de excelência e de admiração artísticas. "Seria possível
e mecenas a quem se deve o essencial do museu parisiense de Orangerie estudá-lo", escreve ele, "ao esboçar um verdadeiro programa, com base
— pode passar por emblemático dos atores contemporâneos da consti- nos arquivos dos preços alcançados nos leilões, na difusão das repro-
tuição de patrimônios reunidos em diferentes locais; aliás, às vezes, são duções e na organização de peregrinações preparadas pelas agências
apenas coleções de marchands. Os mecanismos de aquisição, conserva- de turismo [...], ao anotar o desenvolvimento de seitas exclusivas, até
ção e transmissão das obras, tratando-se da formação e da evolução do mesmo de heresias [...], ao identificar os heróis da cultura que con-
corpus de monumentos protegidos ou das coleções de museus, envolvem tinuam suscitando, como é costume dizer, o 'culto de uma minoria'
um horizonte de expectativa associado às representações de um grupo e ao colocar a emergência e o desaparecimento de tais reputações em
social, à sua sensibilidade e a suas experiências, próximas ou longínquas. correlação com outros movimentos sociais. Seria possível, também,
Para essa problemática, Hans Robert Jauss forneceu a definição clássica: fazer um grande número de comentários interessantes a propósito das
"O sistema de referências objetivamente formulável, para cada obra, no condições sociais que facilitam o respeito pelos velhos mestres e pelo
momento da história em que ela aparece, resulta de três fatores princi- clima que incentiva a considerar, com orgulho, as realizações da arte
pais: a experiência prévia do público relativamente ao gênero de que ela contemporânea."23 Essa configuração inscreve-se em uma longa tradi-
faz parte; a forma e a temática de obras anteriores cujo conhecimento se ção, a da literatura artística. Além disso, seu saber consiste sempre em
pressupõe; e a oposição entre mundo imaginário e realidade cotidiana."21 conhecer os lugares, sobretudo "lugares de passagem" das obras, como
De acordo com a socióloga norte-americana Wendy Griswold, lugares de propriedade e de transmissão. Com o desenvolvimento de
é possível compilar no mínimo cinco configurações relativamente à uma circulação associada ao mercado, tem aumentado a importância
recepção de objetos culturais. A primeira é a interpretação (conce- do connoisseurship e do atribuicionismo: o crítico de arte e arqueólogo
bida como elaboração da significação). A segunda identifica-se com
o sucesso (a popularidade, avaliada pelo número de adeptos ou
22. Wendy Griswold, Cultures and Societies in a Changing World, Thousand Oaks: Pine
Forge, 1994. Cf. ainda Francis Haskell, op. cit., p. 33-34.
21. Hans-Robert Jauss, Pour une Esthétique de la réception, Paris: Gallimard, 1978. 23. Ernst Hans Gombrich, L'Écologie des images, Paris: Flammarion, 1982.

20 2I
UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

Quatremè de Quincy (1755-1849) já constatara o peso do que ele baseava-se na busca de um diálogo entre fontes literárias e fontes
designava, com desdém, como uma "espécie de saber". figuradas, assim como no surgimento de uma história cultural; para
Por conseguinte, a patrimonialização coincide amplamente com a ser possível construir a definição do patrimônio, impunha-se esta-
tradição da cultura erudita. Como foi observado por Jacques Thuillier, belecer, previamente, a autenticidade e o valor dos monumentos de
em relação à finalidade da criação artística, "o texto escrito tem desem- qualquer espécie.
penhado, até aqui, um papel determinante, e pode-se dizer que, por A disputa, nesse caso entre partidários e adversários da patrimo-
seu intermédio, foi implantado o panorama [...] ao fixar as hierarquias: nialização, mobiliza incansavelmente discursos contraditórios sobre o
por consequência, ele estabelece, durante um prazo mais ou menos destino a ser dado às obras, ou seja, sobre as relações que elas podem
longo, a própria sobrevida da obra". Em poucas palavras, "considerando estabelecer no espaço público. Tal discussão é, em particular, acirrada
os períodos antigos, a distribuição das pinturas e das esculturas conserva- no que diz respeito à originalidade — democrática e cultural — do
das acabou por corresponder praticamente ao esquema dos artistas e das museu relativamente à coleção tradicional. As relações com a publi-
obras, constantes nas citações dos historiadores antigos — sem grande cidade das coleções — enaltecida ou considerada como ilusória — e
relação com a própria produção, tal como esta pode ser confirmada por com a destinação da obra exposta — reconhecida como autêntica,
documentos de arquivo. Salvo algumas exceções, a resistência das escolas desvalorizada ou negada — orientaram, assim, o essencial dos discursos
e das obras dependeu da presença dos livros, assim como da data de ulteriores ao esboçarem quatro figuras principais.
sua publicação; a realidade acabou por acomodar-se ao texto escrito". 24 A ortodoxia museal descreve os efeitos positivos dos museus no espí-
Os séculos XVIII e XIX constituem, nesse aspecto, momentos estratégi- rito das reivindicações de abertura da segunda metade do século XVIII.
cos que assistem à elaboração de cânones, repertórios e catálogos — seja Esses estabelecimentos permitiram, ao que tudo indica, a iniciação
do teatro à música, ou da pintura à literatura — e, especificamente, à dos visitantes à alta cultura, até então reservada ao privilégio ou à
instalação de museus, primeiros lugares da objetivação de "culturas". riqueza. Em poucas palavras, eles divulgavam a cultura em condições
A gênese do patrimônio evoca, assim, as leituras eruditas em- semelhantes às que usufruíam seus proprietários ou detentores, legi-
penhadas em interpretar as obras como outros tantos documentos timados pela tradição. A crítica, de inspiração ou de herança contrar-
sobre o passado, transformando, particularmente, a compreensão das revolucionária — pelo menos no caso francês —, sustentava por seu
antiguidades clássicas e, em seguida, nacionais em um desafio inte- turno a existência de uma desculturação: o museu alterava a cultura
lectual e político.25 A era da erudição, no século XVII, apoiava-se na em nome da utilidade social e modificava as condutas legítimas sem
preocupação com as fontes: "O método moderno de pesquisa histórica deixar de permanecer estranho ao povo convidado a frequentá-lo.
está inteiramente baseado na distinção entre fontes originais e fontes Seu encerramento, em última instância, a fim de restaurar o antigo
de segunda mão."26 O desenvolvimento da reflexão, no século XVIII, vínculo ou, melhor ainda, sua reapropriação pelos usuários legítimos,
colecionadores e amadores, seria o único meio de suprimir essa per-
24. J. Thuillier, Leçon inaugurale, Collège de France, Paris, I3 jan. 1978, p. 15. versão ideológica, possibilitando um renascimento cultural.
25. Francis Haskell, L'Historien et les images, Paris: Gallimard, I996. A escola progressista, ao contrário, denunciava a confiscação da
26. Arnaldo Momigliano, "Ancient History and the Antiquarian", in cultura legítima operada pelo museu em benefício dos privilegiados
Journal of the
Warburg and Courtauld Institutes, n. 13, 1950, p. 285-3I5; retomado em Problèmes
da sociedade, aliás os únicos que tinham condições de tirar um real
d'historiographie ancienne et moderne, Paris: Gallimard, 1983; e em Joseph M. Levine,
"The Antiquarian Enterprise, I500-1800", Humanism and History: Origins ofModern proveito da instituição: uma educação verdadeiramente democrática
English Historiography, Ithaca: Cornell University Press, I987, p. 73-106. deveria estender uma relação com a cultura, que havia permanecido

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

como o apanágio de um número reduzido de pessoas. Por fim, uma atributo da soberania e na constituição de um Estado-Nação moderno."
crítica radical negava este último projeto e qualquer esperança de futuro Essa concepção é hierárquica e baseia-se em uma administração com-
radioso para o estabelecimento. O museu seria destinado ao uso de uma plexa. Nesta perspectiva, qualquer implementação de um patrimônio
clientela de filisteus, no sentido de Hannah Arendt: por meio dessas serve-se de saberes eruditos, especializados, suscetíveis de legitimar tal
obras-primas, eles procuram "engrandecer-se". Bem longe de autorizar intervenção, tal restauração, tal inventário, ou de combatê-los — ca-
uma apropriação qualquer, coletiva ou elitista, ele era, por excelência, pazes também de acompanhar uma mobilização cívica ou ideológica.
o lugar de um desapossamento generalizado. O patrimônio, em outros termos, é um trabalho (por exemplo, o de
Não causará espanto que os partidários de uma virtualidade de- repertoriar e de fazer a revisão de corpus de monumentos); aliás, seu
mocrática desse estabelecimento se tornem os defensores convencidos estatuto e sua ambição dependeram concretamente da posição ocu-
da autenticidade da cultura conservada e exposta; ora, essa postura é pada, em cada período, por antiquários, arqueólogos, historiadores da
colocada em dúvida por seus adversários que privilegiam a hipótese de arte... no âmago da comunidade intelectual nacional — em particular
uma solução de continuidade, no caso concreto, uma perda do sentido. diante de seus pares linguistas, folcloristas ou arquivistas. O mesmo é
Contrariamente a uma legitimidade baseada na utilidade de um equipa- dizer quanto o patrimônio está ligado, mais amplamente, aos valores
mento coletivo, a crítica tradicional invocava uma gratuidade implícita da atribuídos a algumas atividades — da mão e da vista — na represen-
verdadeira cultura. Defender, por exemplo, que as condutas individuais tação de si de uma sociedade.
dos colecionadores seriam as únicas capazes de manter o nível de civi- As primeiras medidas conservadoras, iniciadas pelo papado e por
lização descartava a questão do museu, que passava por um dispositivo outros estados da Itália, culminaram no reconhecimento de um cânon
marginal, para não dizer parasita. Na melhor das hipóteses, a relação sus- dos mestres e no princípio de um corpus de objetos a definir e a pro-
citada por seu intermédio com o patrimônio limitava-se a uma utilidade teger. Uma das principais datas refere-se ao "decreto de 1601, pelo
secundária; e, na pior, dava testemunho do fracasso de uma transmissão qual o grande duque Ferdinando de Médicis enumerava dezoito céle-
legítima. De fato, a democratização da civilização só seria viável mediante bres pintores do passado cujas obras não deviam ser vendidas para o
sua alteração: essa é a dialética do pão e circo; as vicissitudes de sua longa exterior".29 Essa declaração solene visava afirmar e perpetuar a excelência
evolução podem ser encontradas no discurso intelectual contemporâneo.27 do príncipe e do país. Tal é também um dos desígnios das coleções régias
O espetáculo do museu alimentava então uma postura sobre a decadência que deram origem, por intermédio da Europa, aos museus nacionais.
ou o' exílio da cultura, além de nutrir a ampla literatura da melancolia pós- No decorrer do século XVIII, prestava-se uma atenção inédita à eficá-
-revolucionária, a propósito de um mundo fragmentado ou perdido. cia que orienta a ideia de herança: tal medida era considerada como o
meio de dissipar a ignorância, aperfeiçoar as artes, além de despertar
o espírito público e o amor pela pátria. A preocupação de utilidade rela-
Uma encarnação da construção nacional cionava, daí em diante, a conservação de um patrimônio com os efeitos
pretendidos tanto para a formação do público como para a prosperidade
O caso francês ilustra o que o sociólogo Luigi Bobbio designa por do país. O processo de legitimação patriótica — iniciado dessa forma —
concepção nacional-patrimonial, baseada na metáfora da herança, no
28. Luigi Bobbio, Le politiche dei beni culturali in Europa, Bolonha: Il Mulino, I992.
27. Patrick Brantlinger, Bread Circuses: Theories ofMass Culture as Social Decay, Ithaca: 29. Ernst Hans Gombrich, Réflexions sur l'histoire de l'art (1987), Nimes: Jacqueline
Cornell University Press, 1983. Chambon, 1992, p. 296.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

assumiu aos poucos uma fisionomia contemporânea com as confiscações menos, com a narrativa de uma socialização progressiva e generosa de
e as transferências sucessivas da Revolução Francesa. Nesse momento- coleções e de títulos de propriedade: ao servir-se da pátria como ilustra-
32
-li miar — para retomar a fórmula do antropólogo Victor Turner — em ção, ela enaltecia o labor da ciência e os avanços da instrução pública.
que ocorreu a desintegração da antiga comunidade e a emergência da Esta construção efetuou-se, de acordo com cada país, em datas
nova é que se tornou mais evidente a reivindicação de um patrimônio bastante diversas: mas, no final do século XIX, por toda a Europa a
ad hoc, baseado em novas justificativas, acompanhado eventualmente literatura do patrimônio confundia-se mais ou menos com a denúncia
pela proscrição dos antigos signos.30 O patrimônio inscreveu-se desde das perdas constatadas e com uma tipologia histórica das destruições,
então em uma vontade geral de criar conexões, vontade que marcou ou seja, pavor e denúncia. Essa mobilização forneceu-lhe seu princípio
os séculos XIX e XX, em relação com as representações hierárquicas e íntimo de engendramento, ao ritmo das perdas denunciadas na "caixa
regulamentares do período precedente. de poupança" do progresso da humanidade (a imagem encontra-se na
obra de Charles Péguy). Convém, aliás, observar que essa literatura pa-
33
O patrimônio no sentido "legal" surgiu com as legislações nacionais
do século XIX, legislações que lhe garantiram um destino específico no trimonial deu lugar, em breve, não tanto a uma história no sentido estrito
meio de todas as manifestações sociais dos objetos. Aliás, tal postura do termo, mas à evocação de um movimento de criação e de acúmulo
foi assumida em nome do povo, como destinatário eminente e, ao espontâneo, infelizmente interrompido em diferentes lugares. Ao presente
mesmo tempo, o derradeiro responsável por essa herança. A França da "congelado", resultado de uma percepção intelectualizada, historicizada,
primeira metade do século XIX foi, por excelência, o lugar da elabo- Péguy opunha os valores da liberdade do verdadeiro presente. Com
ração progressiva e muitas vezes conflitante dos valores patrimoniais Bergson, a relação da vida com a história tornou-se uma genuína constru-
— em oposição, especificamente, ao direito de propriedade?' Em toda ção filosófica que enfatiza o fluxo e a emergência, contrariamente a tudo
parte da Europa, os liberais descobriram e, em seguida, celebraram o que tende a fixar-se, oprimir e tiranizar. Desde então, o patrimônio
a preservação das antiguidades nacionais como um dever patriótico podia inscrever-se em uma relação com o tempo que não era o da história
— forma moderna de uma cultura declarativa, para falar como Jean- e que, às vezes, o rejeitava"; não se pode desenvolver aqui este aspecto,
Claude Passeron. As destruições de toda espécie foram paralelamente mas é quase certo que determinado anti-intelectualismo da defesa e da
qualificadas, de maneira genérica, como vandalismo. Na França, o ilustração do patrimônio alimentou-se com essa tradição da relação com
célebre colecionador de estampas Michel Hennin foi o primeiro a pro- o tempo e com esse pensamento da atualidade "viva".
mover uma história ponderada das destruições e das conservações: ele Neste ponto, pode esclarecer-nos o que Roland Barthes havia vislum-
35
demonstrou, por um lado, o recuo universal do vandalismo diante da brado sob a denominação de "teatralidade" ; assim, sugere-se o termo
tomada de consciência da herança (mesmo que os interesses pecuniários
e determinados delírios ideológicos ou patrióticos tivessem alterado, 32. Michel Hennin, Les Monuments de l'histoire de France: Catalogue des production de la
sculpture, de la peinture et de la gravure relatives à l'histoire de France et eles Français,
regularmente, o curso de seu progresso); por outro, a democratização
10 vols., Paris: J.-F. Delion, 1856-1863.
contínua das fruições A patrimonialização confundia-se, mais ou Charles Péguy, "Clio: Dialogue de l'histoire et de l'âme païenne", in Robert Burac
33.
(org.), Oeuvres en prose complètes, Paris: Gallimard, III, 1992, p. 1028 ss.
30. Victor Turner, Dramas, Fields, and Metaphors: Symbolic Action in Human Society, 34. Cf., a este propósito, os comentários de Georges Poulet, Études sur le temps humain,
Ithaca: Cornell University Press, 1974. Paris: Plon, 1950.
31. Cf. a apresentação clássica do tema, resumida por Joseph L. Sax, "Heritage Preserva- 35. "O que é a teatralidade? É o teatro sem o texto, é uma espessura de signos e sensações
tion as a Public Duty: The Abbé Grégoire and the Origins of an Idea", in Michigan que se edifica no palco a partir do argumento escrito; é essa espécie de percepção
Law Review, vol. 88, n. 5, I990, p. 1I42-1169. ecumênica dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

"patrimonialidade" para designar a modalidade sensível de uma A este modelo opõem-se outras construções que implicam mais
experiência do passado, articulada com uma organização do saber - precisamente a sociedade civil pelo viés de intelectuais e de associações.
identificação, atribuição — capaz de autentificá-lo. Uma primeira Miroslav Hroch, através de uma comparação dos grupos patrióticos em
patrimonialidade encontra-se na relação íntima ou secreta de um diferentes nações, na Europa Central, identificou três fases: .à primeira
proprietário ou de usufrutuários em diferentes níveis, de especialistas situa-se entre 1789 e 1815, quando uma intelligentsia restrita, a única
ou de iniciados, em nome de afinidades e convicções, assim como de envolvida pela emergência das ideias nacionais associadas à Revolução
racionalizações eruditas e de condutas políticas, com determinados Francesa, foi bem-sucedida na tentativa de conservar o patrimônio
objetos, lugares ou monumentos. Mais tarde, na sequência de um longo cultural (coletânea de canções e contos populares, codificação e divul-
processo de patrimonialização, a nação é que se tornou o objeto por gação da língua). Durante uma segunda época (1815-1848), essa ideia
excelência da patrimonialidade, fornecendo, por assim dizer, o quadro difundiu-se entre a burguesia, levando a uma transcrição política desse
de interpretação de qualquer objeto do passado. No caso francês, a empreendimento cultural. Enfim, o ano de 1848 inaugurava o último
patrimonialização oficial elaborou-se a partir da Revolução, segundo período, quando o nacionalismo recebeu um amplo apoio popular,
o modelo de uma negociação entre os valores da nação definida em ilustrado pela Primeira Guerra Mundial e pela queda do Império dos
novos termos pela forma contratual e os valores, desta vez, "culturais", Habsburgos.37 No caso concreto, é no mínimo delicado separar, no
que vão aparecendo aos poucos, além de estabilizarem no espaço e decorrer do processo, cultura e nacionalismo."
no tempo essa construção abstrata — de fato, com o desaparecimento
da Igreja e das corporações, a patrimonialidade tradicional tinha ficado
fora de circuito. Esse compromisso laborioso entre nacionalidade do Um recurso comum
contrato e nacionalidade de cultura é que permitiu o triunfo de uma
nação-patrimônio a que Camille Jullian, por exemplo, se referia em Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, os beligerantes mobi-
sua lição inaugural do Cours d'Histoire et d'Antiquités Nationales, lizaram amplamente a cultura no esforço de guerra, exacerbando os
39
no Collège de France, em 7 de dezembro de 1906: "As ruínas dos julgamentos mais xenófobos em relação aos patrimônios estrangeiros.
monumentos dão testemunho não apenas da mão de um operário ou No período entre as duas guerras, o surgimento de ideologias totalitárias,
da planta de um arquiteto, mas também dos sentimentos de um povo; decididas a transformar a exaltação da herança em um instrumento de
elas refletem, para uma pátria, o espírito de uma geração de homens."36 propaganda, teve consideráveis consequências sobre a própria imagem
Daí um historicismo mais ou menos explícito, até mesmo uma ver- da cultura, que se tornou objeto de críticas radicais ou de diagnósticos
dadeira teleologia das heranças sucessivas, assim como a convicção de
que o patrimônio, pela necessidade de sua preservação, deve receber 37. Miroslav Hroch, "De l'Ethnicité à la nation: Un Chemin oublié vers la modernité", in
o apoio do Estado. Anthropologie et Sociétés, vol. 19-3, I995, p. 71-86; e Social Preconditions ofNational
Revival in Europe: A Comparative Analysis ofthe Social Composition ofPatriotic Groups
Among the Smaller European Nations, Nova York: Columbia University Press, 2000.
submergem o texto sob a plenitude de sua linguagem exterior." (Roland Barthes, opposition entre nationa-
38. Alain Dieckoff, "La Déconstruction d'une illusion: L'Introuvable
"Le Théâtre de Baudelaire", in Essais critiques, 1954, p. 41.) lisme politique et nationalisme culturel", in L'Année Sociologique, vol. 46, n. 1, 1996.
36. Primeira lição proferida no Collège de France, em forma de exposição de método, d'art
39. Christina Kott, Protéger, confisquer, de'placer: Le Service de préservation des oeuvres
"La vie et l'étude des monuments (rançais" foi publicada em Revue Bleue, Paris, vol. en Belgique et en France occupées pendant la Première Guerre mondiale, 1914-1924, tese,
1, p. 3-4. Na sequência, os nove cursos de 1905 a 19I3 foram editados em Camille EHESS, 2002; Yann Harlaut, La Cathédrale de Reims du 4 septembre Ie914 au 10 juillet
Jullian, Au Seuil de notre histoire, Paris: Boivin, 1930. Ie938: Idéologies, controverses et pragmatisme, tese, Universidade de Reims, 2006.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

catastróficos. Em 1936, Élie Halévy escrevia que essa época das ti- providências para sua manutenção e transmissão, parece satisfazer uma
ranias caracteriza-se "do ponto de vista intelectual (pela) estatização das aspirações profundas das sociedades contemporâneas. Encarnação
do pensamento, que por sua vez assume duas formas: uma negativa, consensual dos valores cívicos, além de pretexto para articular atitudes
pela supressão de qualquer opinião julgada desfavorável ao interesse culturais e práticas de consumo, essa verdadeira explosão de iniciativas
nacional; e a outra positiva, por aquilo que designamos como a orga- patrimoniais corresponde certamente à nova condição — pelo menos
nização d.o entusiasmo"40. nesse plano — de obras ou de lugares que se encontravam sem uso no
Entretanto, as destruições da Segunda Guerra Mundial (bairros e espaço público. Mas, sobretudo, ela fornece recursos apropriados para
cidades inteiras) é que, sem dúvida, tiveram as mais relevantes consequên- alimentar um ideal de participação ativa no âmago de coletividades
cias sobre a consciência patrimonial europeia, assim como sobre suas inéditas (no museu ou in situ, .diante do monumento ou sobre um
modalidades de restauração e de uso. A conservação dos monumentos território). Sob o signo de uma "provocação da memória", o patrimônio
visava, daí em diante, algo que superava o horizonte do antiquário instala-se assim no centro da instituição da cultura e é acompanhado
ou histórico: o que Louis Grodecki designava por busca do "valor do por uma ética, ao mesmo tempo, da precaução e da fruição. Desse
efeito produzido"; a reforma do centro antigo de Varsóvia é um notável modo, esboça-se, em arqueologia ou em arquivística, uma exigência de
exemplo dessas novas representações. Para o professor Zachwatowicz, respeito pelo objeto, ao definir regras de tratamento de sua diferença»
artesão da reconstrução fidedigna do século XVIII e, às vezes, do século O conjunto dessas iniciativas revela a generalização de uma sen-
XVI, a justificativa do empreendimento tem a ver com "a vontade de sibilidade em relação a uma herança "cultural" cujo interesse parece,
fornecer ao país a consciência de um passado cultural que havia sido com ou sem razão, ter sido negado ou ignorado durante um período
ameaçado de negação e de aniquilamento".41 Nem o valor de monu- demasiado longo. Esse postulado alimenta, hoje em dia, uma consciência
mentalidade intencional, nem o de monumento histórico, nem o do aguda de que a definição e os contornos dos patrimônios estão profun-
monumento antigo — para retomar a tipologia do historiador da arte damente associados à atualidade de uma sociedade, a seus interesses
Alois Riegl —, constituem aqui a referência obrigatória. O mesmo se do momento e até mesmo a suas modas. De fato, tal restauração de
passa com as discussões a propósito da reconstrução do castelo na área monumentos históricos, tal museografia, tais conclusões dos folcloristas
central de Berlim, desencadeadas em meados da década de 1990, em nome do século passado são tão reveladoras de um momento da metamorfose
da reconquista da cidade perdida. Pode-se reconhecer aí uma das figuras patrimonial quanto da autenticidade dos objetos ou das práticas que,
características do patrimônio contemporâneo, tornado lugar-comum dos supostamente, elas deveriam conservar e valorizar; assim, sob a óptica
discursos sobre a identidade. moderna, o patrimônio revelaria leituras em vários planos.
O termo "patrimônio" conheceu desse modo um notável sucesso Essa nova consciência da patrimonialização acompanha a promoção
no mundo inteiro: o caso da França, país em que o rápido desenvol- de novas relíquias, em uma perspectiva relativamente restritiva. Com
vimento da fórmula apoiou-se na comemoração do Ano do Patrimônio, efeito, em numerosos países, o patrimônio tornou-se um dos desafios
no limiar da década de 1980, é uma de suas mais notáveis ilustra- do desenvolvimento cultural. Na França, segundo parece, tal ambição
ções. A representação de uma herança a ser conservada, tomando as data do decreto de nomeação de André Malraux como ministro de

40. Élie Halévy, L'Ère des tyrannies, Paris: Gallimard, 1938 [2. ed., 1990]. 42. Cf., entre as numerosas referências, Michael Shanks e Christopher Tilley, Re-cons-
41. Apud Louis Grodecki, "Tendances actuelles dans la restauration des monuments tructing Archaeology — Theory and Practice, Londres: Routledge, 1922, p. 138. Nesse
historiques", in Les Monuments historiques de la France, 1965, retomado in Le Moyen aspecto, a literatura sobre o arquivo é considerável: cf. Helen Freshwater, "The allure
Age retrouvé, II, Paris: Flammarion, 1991, p. 398. of the archive", in Poetics Today, vol. 24, n. 4, 2003, p. 729-758.

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Estado dos Assuntos Culturais (3 de fevereiro de 1959), que o incum- em torno da temática do patrimônio, e, se for o caso, exportáveis na
bia "de garantir a mais ampla audiência a nosso patrimônio cultural". área de influência de cada nação, esteve assim particularmente presente
Mais tarde, em 1975, o termo foi estendido à Comunidade Europeia, na Europa nos últimos anos.
enquanto os discursos oficiais davam testemunho, progressivamente, Hoje em dia, a patrimonialização parece confundir-se com a patri-
de um desígnio militante. O vocabulário administrativo carregou sua monialidade — no sentido em que a atribuição do qualificativo "pa-
marca, desde a promoção dos "novos patrimônios", em 1981, até o trimônio" a objetos no seio de determinada sociedade e sua preservação
colóquio Les Monuments Historiques Demain (1984), os Encontros legal identifica-se, aparentemente, com o lugar sensível e íntimo que
Nacionais dos Ecomuseus (En Avant la Mémoire!, 1986) ou o Fórum eles ocupam no âmago das consciências individuais ou dos grupos
do Patrimônio, realizado, de maneira aparentemente paradoxal, na Cité sociais, em decorrência do esforço despendido para viver em harmonia
des Sciences et de l'Industrie de la Villette (Paris, 1987). Na esteira de com a cultura material do passado. Entretanto, o patrimônio não está
todos esses eventos, uma abundante literatura profissional tem mos- indene, muito pelo contrário, de vontades predadoras: tanto os monu-
trado empenho em inventariar os patrimônios inéditos ou em adaptar mentos celebrados pela "tradição do novo" quanto os objetos da família
os patrimônios já identificados que exigem ser renovados e atualizados. que, cotidianamente, entram no museu têm a ver com modalidades de
Tais mutações passaram por ritmos diversificados, segundo as apropriação que, sem qualquer embasamento, são consideradas óbvias,
tradições culturais dos diferentes países; no entanto, o movimento de para não dizer "naturais". Esperamos que o retorno aos alicerces do
conjunto não deixa de ser impressionante. A partir do decênio 1980- patrimônio nacional — de acordo com nossa proposta neste livro -
1990, políticos e cidadãos compartilharam a "evidência" segundo a qual permita uma abordagem renovada do fenômeno.
tudo deveria ser considerado a priori como elemento do patrimônio
(a fórmula é utilizada, nos últimos quinze anos, por diferentes minis-
tros ou responsáveis europeus). Trata-se de encontrar, de novo, a figura A caminho de uma antropologia histórica da
já evocada da cultura-estilo: com a atribuição de estatuto de museu para patrimonialização francesa
o jardin ouvrier43, assim como para o galpão de ensaios de um grupo
de rock pesado, as culturas de todos os grupos sociais são suscetíveis de As inscrições da patrimonialidade e as formas de patrimonialização
passar por patrimônios, em um caleidoscópio de identidades. Enfim, passam, entre o final do século XVIII e a década de 1830, de uma repre-
a antecipação dos riscos de desaparecimento contribui para que o de- sentação "monumental" do saber e da memória para uma configuração
safio econômico se torne patente. Ao exigir uma redefinição científica que compreende todos os elementos da cultura material do passado, tal
e, ao mesmo tempo, um novo estatuto para os objetos visados, cada como ela era compreendida, na época, pela nova história." A partir da
reivindicação de um novo registro no patrimônio suscita também mer- Revolução, diferentes processos — da invenção do museu à invenção
cados especializados — o da restauração e o do tratamento. A ideia de do monumento histórico, desde a reconfiguração da arqueologia aos
um reservatório de empregos e de habilidades amplamente disponíveis sucessos do romance histórico — inventaram uma tradição patrimo-
nial que remete à nova coletividade nacional e, durante muito tempo,
43. Criados no final do século XIX, os jardins ouvriers — e, após a Segunda Guerra irá permanecer como a base das atitudes francesas diante da herança.
Mundial, designados por jardins familiaux ou hortas comunitárias — são parcelas
de terreno disponibilizadas pelas municipalidades, visando melhorar as condições de
vida dos operários ao proporcionar-lhes, além de uma autossubsistência alimentar, 44. Cf. Patrick H. Hutton, "The Role of Memory in the Historiography of the French
o contato com a natureza, afastando-os dos botequins. [N.T.] Revolution", in History and Theory, vol. 30, n. 1, 199I, p. 56-69.

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UMA HISTÓRIA DO PATRIMÔNIO NO OCIDENTE HISTÓRIA, MEMÓRIA, PATRIMÔNIO

A Revolução não é somente uma vontade de desligar-se do Antigo de arquivos e de monumentos entre imundícies ou depósitos negligen-
Regime que serve de suporte ao que François Furet designava por "uma ciados indicam o advento da modernidade. Ao longo do século XIX,
espécie de hipertrofia da consciência histórica" — entenda-se, a cons- uma infinidade de diversos monumentos, de tapeçarias a túmulos,
ciência exacerbada da ruptura, conjugada a uma atrofia do sentido da são "inventados" por diferentes patrimonializadores, de acordo com
profundidade da história" —, mas constitui também uma inflexão im- o espírito de um salvamento: eles passam por elementos privilegia-
portante da inscrição memorial. Na sequência desses decênios, a memória dos da memória cultural — ao lado das práticas costumeiras e das
cultural convoca de maneira privilegiada os vestígios materiais do passado, tradições orais, ou seja, as "vozes que vêm do passado", coletadas
por intermédio dos textos." O presente estudo gostaria de delinear, em e estudadas simultaneamente, assim como à procura das últimas
primeiro lugar, a reviravolta desse modo de inscrição da memória cultural testemunhas de um passado desaparecido." Na sequência, a manu-
que tem a ver, amplamente, com a emergência de uma representação da tenção de antiguidades no seio dos lares burgueses e a proliferação
história, cuja função, de acordo com a afirmação de Alphonse Dupront, dos arquivos familiares participaram do mesmo movimento pelo qual
consiste em "desdobrar o que foi endurecido elo tempo" em uma varie- a transmissão à posteridade, muito apreciada pelas Luzes e pela Revo-
dade cada vez mais considerável de objetos. lução, reconfigurou-se em um tratamento de objetos materiais, sempre
A consciência de viver em uma temporalidade comum, de perten- incompletos e ameaçados."
cer a uma contemporaneidade afastada do passado e distinta de um O primeiro capítulo deste livro é dedicado ao regime da curiosidade
futuro ilimitado e incerto, é provavelmente um dos resultados mais histórica, tal como é concebido pelas Luzes. Ele havia estabelecido
evidentes dos decênios revolucionário e imperial, transformando-os com os monumentos, as coleções históricas e as antiguidades uma
em uma experiência amplamente compartilhada.47 O Antigo Regime relação ambígua; de fato, aos testemunhos materiais autênticos são
havia desaparecido mediante a destruição de seus signos, vestígios e acrescentados monumentos imaginários, organizados e apresentados
símbolos; mais tarde, porém, sua nostalgia mobilizou suas relíquias ao público em espaços abertos, de diferentes status, desde os "países das
— assim como as lembranças orais consignadas com um maior ou ilusões" até os jardins públicos. Semelhantes dispositivos forneceram
menor grau de devoção. Mas esse conjunto de ruínas já não oferece aos espectadores não só elementos de conhecimento, mas também de
perspectiva contínua, nem permite uma leitura convincente: sua frag- fruição e de emoção; os supostos benefícios da paisagem constituída por
mentação sugere um trabalho de esquecimento e supressão que deverá monumentos antigos alimentaram, paralelamente, utopias arquiteturais
ser integrado, daí em diante, às representações do passado. Nesse e políticas. Aos poucos, a comparação entre objetos dos antiquários e
domínio, os textos limitaram-se a desempenhar um papel bastante textos dos historiadores esboçava a fisionomia inédita de uma auten-
precário, diferentemente dos períodos precedentes, em que a transmis- ticidade passada — figura de ruptura com o presente, o familiar e o
são à posteridade reivindicava, acima de tudo, o documento escrito. convencional.
Os múltiplos episódios de descobertas, no decorrer do século XIX, Dois episódios particularmente cruciais forneceram, em seguida,
matéria para os três capítulos centrais deste livro. O primeiro é o do
"
45. François Furet, Penser Ia Révolution Française, Paris: Gallimard, 1978, p. 15, 31-32, vandalismo" revolucionário. A nacionalização de bens patrimoniais, o
46-49.
46. Jan Assmann, "Collective Memory and Cultural Identity", in New German Critique,
vol. 65, 1995, p. 125-133. 48. Philippe Joutard, Ces Voix qui nous viennent du passé, Paris: Hachette, 1983.
47. Nesse aspecto, concordo com Peter Fritzsche, "Specters of History: On Nostalgia, 49. Para sua versão contemporânea, cf. Janet Hoskins, Biographical Objects, How Things
Exile and Modernity", in American Historical Review, vol. 106, n. 5, 2005. Tell the Stones of People's Live:, Londres: Routledge, 1998.

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inventário das riquezas da França, as medidas iconoclastas acabaram por instituição da educação." O esforço ulterior do político e historiador
suscitar uma consciência inédita dos vestígios do passado na paisagem François Guizot (1787-1874) é exemplar de uma vontade de superar,
presente, sem deixar de enfatizar uma opacidade sem precedentes, por uma colocação em perspectiva histórica, visões partidárias con-
ao mesmo tempo ameaçadora e crepuscular. Uma busca histérica denadas à falência, além de ter fundado, em uma imparcialidade sem
de utilidade marcou, em seguida, sua recensão e conservação. Entre precedentes, a conservação da civilização e de sua herança.
os vencidos da história, a preocupação em proteger determinado Finalmente, o primado dos vestígios materiais sobre as outras fon-
monumento do passado, sinal de uma diferença quase ontológica, tes torna-se banal nos escritos dos arqueólogos: "O menor vestígio que
incrementou um sentido do passado que, pelo contrário, se tornou tenha escapado das ruínas da Antiguidade fornece-nos a seu respeito
valor de resistência. mais ensinamentos", afirma Raoul-Rochette, "que todos os livros." Daí
Nesse aspecto, a questão dos mortos é fundamental, já que remete resulta uma nova poética do saber histórico, da qual Napoleão Bonaparte
à partilha entre comunidade e coletividade: a funcionalização dos mor- é testemunha ao garantir que foi "levado à Síria", segundo a afirmação
tos, reconhecida por Reinhart Koselleck como origem do novo regime, de Alexandre Lenoir 51 , depois de ter visitado o Museu dos Monumentos
traduz-se por uma nova economia relativa aos monumentos. Outrora, Franceses. Contrariamente ao modelo clássico da coleta de monumentos
os defuntos pertenciam à comunidade cristã ou a uma comunidade ou da compilação dos antiquários, o romance histórico, assim como a
da lembrança. Daí em diante, o processo de patrimonialização das viagem pitoresca, serve-se de monumentos e de lugares como se tratasse
personalidades importantes exige uma utilidade material e documen- de outros tantos cronotopos (M. Bakhtin, cf. cap. 4) propícios a instigar o
tal para a coletividade. Trata-se, nesse caso, de uma dessacralização leitor. Na sequência, a prosa de Walter Scott, assim como o colecionismo
dos monumentos, acompanhada por processos de desencarnação do de Alexandre du Sommerard no Hôtel de Cluny52, circunscrevem o es-
Estado, pela obsessão da idolatria e, de maneira geral, pelo temor paço da vida privada como o verdadeiro lugar de inscrição da diferença
do sensualismo em relação às imagens. Até hoje, tal clivagem per- histórica." Daí em diante, o passado torna-se o pretexto para investi-
corre a literatura patrimonial, produzida na França, entre a nostalgia mentos subjetivos e, ao mesmo tempo, para um uso crítico, capazes de
de uma herança comunitária (e religiosa) e o funcionalismo de um constituir um acervo a partir de uma diversidade inédita das referências
patrimônio que ilustra o universal (laico). Por um lado, a patrimo- — em vez dos estereótipos precedentes, o Antiquado ou Antigo Regime.
nialização justifica-se por preocupações práticas e pela eficácia dos
valores modernos; por outro, a exigência de vínculos e o protesto em
prol de uma identidade em partilha têm valor de reivindicação de uma
50. Cf. Frédérique Diodati-Remandet, "La Réflexion éducative de Hugo sous la monar-
patrimonialidade ameaçada. chie de Juillet", relatório da comunicação ao Groupe Hugo (Universidade de Paris
A geração de 1830 realizou um trabalho de luto, em relação tanto ao VII), em 20 de maio de 1995.
Antigo Regime, ao qual já não pode retornar, quanto à ilusão do futuro 51. Arqueólogo francês (1761-1839) que, durante a Revolução Francesa, coletou e pre-
servou um grande número de esculturas e monumentos funerários, tendo criado o
proposto em 1789. Diante do que parece ser uma insegurança moral Musée des Monuments Français no antigo convento dos Petits-Augustins, em Paris;
inédita — a responsabilidade de destruir ou perpetuar determinados atualmente, École Nationale Supérieure des Beaux-Arts (ENSBA). [N.T.]
edifícios, símbolos da beleza universal, é deixada a seus proprietários oca- 52. Edifício do século XV, localizado perto da Sorbonne, que serviu de residência ao
arqueólogo Alexandre Du Sommerard (1779-1842), colecionador de objetos de
sionais —, Victor Hugo (1802-1885) defende uma garantia irrevogável
arte da Idade Média e do Renascimento. Atualmente, museu que abriga a "Seção
da transmissão, delineando um horizonte de expectativa desligado, daí Medieval" do Departamento dos Objetos de Arte do Louvre. [N.T.]
em diante, do apelo às lembranças, integrado a uma reflexão sobre a 53. Stephen Bann, The Clothing of Clio, Cambridge: Cambridge University Press, 1984.

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