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GLADSTONE CHAVES DE MELO

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Nesta bela História da Cultura Brasi­
leira, é exemplar a colaboração do
Professor com o Escritor em que se
desdobra a personalidade do Doutor
Gladstone Chaves de Melo, adido cul­
tural cm Lisboa da Embaixada do Brasil
e professor do Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense, a
cujos alunos, como aos de Estudos
Brasileiros da Faculdade de Letras de
Coimbra, foi toda a matéria deste livro
dada em lições pelo notável mestre do
País irmão.
É do professor o denso conteúdo
erudito, e sua objectividade em matéria
e conceitos, por tal conteúdo autoriza­
dos; a disciplinada ordenação, a clássica
nitidez expositiva e certo calor de simpa­
tia humana implícita no interesse pelo
tema e na comovida compreensão com
que lhe abarca substância e acidentes,
matéria e forma. É do escritor o poder
aliciante da pena, pela qual flui o
pensamento que sobe, denso, do magma
do saber adquirido com demorada
reflexão e formulado em linguagem
translúcida, grata à sensibilidade estética,
ao pensamento lógico, à finalidade
humana do trabalho.
O A. reivindica a sua qualidade de
brasileiríssimo, que sempre lutou por uma
Pátria dignificada por sua autenticidader
acautelada contra os inimigos internos, que
poderiam destruí-la pela corrupção, pela
demagogia, pelas aventuras loucas e desna­
cionalizantes. Ama a sua terra, mas
sem brios de xenofobia; exalta a origina­
lidade da sua cultura, mas dando todo
o relevo à herança portuguesa e, através
desta, à herança ocidental, que Splenger
ensinou estar decadente. A cultura
e a civilização ocidentais trouxeram ao
mundo quanto deu ao Ocidente do
mundo culto a que lhe fundamentou
a sua duradoira hegemonia: O pensa­
mento grego, a organização romana e a
espiritualidade judaico-cristã. A cultura
portuguesa acrescentou, a tais valores
humanizadores, aquele traço lírico do
Lusíada — estudado por Gilberto Freire
e Jorge Dias — a simpatia humana
incompatível com o orgulho racista,
que permite a convivência no mundo
e é expressa nas relações entre euro­
peus cultos e primitivos na idade da
pedra o tratamento comandado por
actividade missionária realizada por
padres como Anchieta e Vieira, exem­
plificados no convívio interracial no
Brasil.
Se o rei e o capitão trouxeram para
a Europa o oiro e as pedras preciosas
das Minas Gerais, levaram-lhes valores
de ordem espiritual de preço muito
superior: a língua que por sua clareza
e beleza se tornou comum, o Cristia­
nismo franciscano que dá maior ampli­
tude e calor ao sentimento de simpatia
humana, que desborda do convívio entre
os seres da nossa espécie, para o conví­
vio com os próprios seres da natureza.
D e maneira que o livro deve ser fasci­
nante para Brasileiros, como para Por­
tugueses. Aos primeiros, porque nele a
si próprios se encontram, aos Portugue­
ses, porque somos seus antepassados.
E ’ apenas o seu pessimismo perante as
ameaças actuais contra a civilização oci­
dental que eu não perfilho deste livro
que me foi tão grato ler. Sente o Prof.
Gladstone o terrível paradoxo de, atingido
o planalto a que subimos, com tantos séculos
de depuração, estarmos fazendo «os mais
assíduos esforços para nos lançar no
despenhadeiro e abismar-nos no caos».
Creio que a crise será passageira,
creio que há, no nosso tempo, vivências
generosas, como a do sentimento de
justiça social, como o empenho de
conciliar a ordem com a liberdade, que
me pareceu melhor anunciar o futuro, do
que as ameaças de destruição. Assim,
pois, melhor do que a esperança de
que o Brasil e Portugal, possam eficaz­
mente unir suas forças para sustar o
despenhamento no caos, é a que nos
merecem as forças essenciais da vida
em permanente reacção contra a morte.
i
Hernâni Cidade
GLADSTONE CHAVES DE MELO
(Professor da Faculdade de Letras do Rio de Janeiro-UFRJ
e da Faculdade de Letras de Niterói-UFF)

B l BRASILEIRA

CENTRO DO L I V R O B R A S I L E I R O
LISBOA
‘ 1974
OBRAS DO MESMO AUTOR

Dicionários Portugueses, MES, Rio de Janeiro, 1947.


Iracema, de José de Alencar. Edição critica, com aparato, bio-biblio-
grafia e estudo crítico. INL, Rio de Janeiro, 1948.
Rui Barbosa (Estudo crítico, antologia e notas) Livraria Agir, Rio de
Janeiro, 1962.
Alphonsus de Guimaraens (Estudo crítico, antologia e notas), 2.a edi­
ção, Livraria Agir, Rio de Janeiro, 1963.
Novo Método de Análise Sintática, 4.a edição, atualizada, Livraria Aca­
démica, Rio de Janeiro, 1970.
Gramática Fundamental da Língua Portuguesa, 2.a edição, Livrairia Aca­
démica, Rio de Janeiro, 1970.
Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa, 4.a edição, melho­
rada e aumentada, Livraria Académica, Rio de Janeiro, 1971.
A Língua do Brasil, 2.a edição, melhorada, FGV, Rio de Janeiro, 1971.
Alencar e a «Língua Brasileira», 3.a edição, melhorada e ampliada,
Conselho Federal de Cultura, Rio de Janeiro, 1972.
Quincas Borba, de Machado de Assis. Edição crítica, com aparato e
registro filológico. Edições Melhoramentos, S. Paulo, 1973.
As Concepções Filosóficas e Religiosas de Camões, Imprensa Universi­
tária, Niterói, 1973.
PREFÁCIO

Este livrinho, pensado e escrito no Brasil, vem à luz em


Portugal, depois de m il peripécias que não interessam ao leitor.
Ê resultado de uma longa meditação sobre coisas brasilei­
ras e fruto, por assim dizer imediato, de cursos que dei em
Niterói, no Instituto de Letras da Universidade Federal Flumi­
nense, e na Faculdade de Letras de Coimbra.
Destinava-se ele a facilitar o «Estudo dos Problemas Brasi­
leiros», matéria tornada obrigatória em todos os currículos de
ensino superior no Brasil.
Disse «facilitar», e isto pode parecer jactância de minha parte.
Mas não é. Porque só se podem estudar bem os problemas
brasileiros — demográficos, económicos, políticos, sociais— se
eles forem colocados na pauta correcta, na clave certa, se eles
forem equacionados à base da nossa realidade histórico-cul-
turci.
Por estranho que pareça, m uitos dos que enchem a boca
com o sonoro nome do nosso país e colam frases patrióticas nos
vidros de seus automóveis realmente não sabem o que de facto
seja essa grande Nação, surgida nos trópicos como obra-prima
da expansão portuguesa no mundo.
Ê preciso amar o Brasil, diz-se. E é verdade. Não só para
brasileiros mas também para portugueses: uns amam a sua
pátria; outros amam o mais belo resultado do seu melhor
momento histórico.
M as não convém que o amor fique só terreno sentimental
ou emocional: cumpre pesquisar e explicar as razões da dilec-
8

ção. E elas existem, válidas tanto para os nacionais como para


os seus irmãos europeus, variando apenas a perspectiva.
O Brasil realizou uma cultura própria, intimamente ligada
à cultura lusitana e à cultura ocidental; conseguiu jazer surgir
aquilo a que chamo «humanismo vivo e vivido»; form ou uma
solidíssima unidade nacional, não extrínseca, não mantida pela
força das armas, senão intrínseca, decorrente de um mesmo
espirito e uma mesma língua; resolveu todas as suas pendências
de fronteira (que por aí fora têm gerado tantas guerras!) por
arbitramento, acatando sempre o laudo arbitrai, ainda quando
contrário às suas pretensões e alegações.
Por outro lado, é o único país do mundo que teve sua
Independência proclamada pelo colonizador, sem sangue, sem
ruptura, sem dilaceramento, por natural continuação, de modo
que a famosa «comunidade luso-brasileira» tem indiscutível
base histórica.
E não ficou nisso o resultado da transferência da Corte,
com D. João VI; da elevação do Brasil à categoria de Reino
Unido, no mesmo nível de Portugal; da resistência de D. Pedro
no «Fico»; do remate meio coreográfico do grito do Ipiranga:
criou-se um estilo. Daí por diante, todos os grandes problemas
do Brasil têm sido resolvidos «na conversa». O que, pelo resto
do mundo, produziu graves conflitos ou grandes convulsões
— no Brasil se distende e se dissolve. Sem guerra civil e sem
comoção interna foi a Abdicação, a Regência, a Maioridade
antecipada, a abolição da escravatura (que dividiu sangrenta­
mente os Estados Unidos), a proclamação da República, a
libertação do iminente Comunismo em 1964.
Isto são títulos de glória e m otivos de amor ao país natal.
Mas há outros: no domínio das artes plásticas, temos um
dos maiores escultores da humanidade, o Aleijadinho; temos
Ouro Preto, considerado pela UNESCO o melhor conjunto
9

arquitectónico barroco do mundo; temos um escritor de escol,


grande em qualquer literatura. Machado de Assis. O Brasil,
por sua fortíssima unidade nacional, possui extraordinário poder
de assimilação do imigrante, de tal modo que a segunda geração
de ádvenas já é inteiramente brasileira, e não raro nem sequer
fala a língua dos antepassados.
Por tudo isso, e mais ainda, podemos oferecer algo de
im portante à Civilização e especialmente à Cultura Ocidental.
E esse «algo de importante» é herança, ou desdobramento
da herança portuguesa. De Portugal, que nos legou uma vivên­
cia cristã, uma formosa e plástica língua románica (já perfei-
tamente unificada à época do Descobrimento) e uma generosa
predisposição à boa convivência inter-racial.
Se esses valores, aqui tumultuadamente recordados, têm
raiz na Weltanschauung lusitana, sobram m otivos aos portugue­
ses para amar o Brasil e para se alegrarem com sua grandeza
e seu progresso.
Este pequeno livro é de um brasileiro brasileiríssimo, que
não tem nas veias outro sangue senão o dos avoengos lusos,
estabelecidos na banda de lá desde os primordios do séc. X V lll.
De um brasileiro que sempre lutou por ver sua pátria dignifi­
cada, livre dos inimigos internos, que queriam destruí-la pela
corrupção, pela demagogia e pelo desligamento com o passado,
para aventuras loucas e desnacionalizantes. De um brasileiro
que ama estremecidamente a sua terra, mas não tem qualquer
laivo de xenofobia, vendo no estrangeiro que vem trabalhar
connosco um irmão e um colaborador. É que, sendo profunda­
mente patriota, é também cidadão do mundo, porque sabe que
as nações, agrupamentos naturais, devem trabalhar todas para
o engrandecimento da humanidade, para a progressiva e ver­
dadeira libertação do homem, reflexo, no temporal, da única e
10

definitiva Libertação conquistada por Cristo, Principio e Fim


da História.
Não trago aqui novidades materiais: trago pensamento,
crítica, elaboração de idéias sempre a partir de factos, preocupado
sempre em ver a Verdade, acima dos preconceitos, acima das
pressões massijicadoras.

* *

Habent sua fata libelli: a circunstância, quase fortuita, de


vir esta obra à luz em Portugal é para mim altamente significa­
tiva. E ouso dizer que o é em si mesma. Porque ela se publica
num momento em que muitos portugueses, do melhor quilate,
se abrem para um real e proveitoso colóquio com os brasileiros,
uns e outros libertos de «complexos» de colonizador e de colo­
nizado. Num momento em que, nos dois países, se aviva a
consciência de um destino comum e de uma responsabilidade
comum ante a nossa ameaçada Civilização Ocidental.
Estou certo de que tanto mais estreitos serão os laços que
nos unem quanto mais nos conhecermos uns aos outros. Este
livro foi escrito com a intenção de fazer o Brasil mais conhe­
cido aos brasileiros e já agora aos portugueses. Conhecido nas
linhas-mestras de sua formação e de sua realização.
Se o conseguir, terei cumprido um dever de patriotismo e
terei lavrado dois tentos no desempenho da grata missão que
me trouxe a esta encantadora terra.

G. C. M.

Lisboa, Natal de 1973.


NOÇÕES PROPEDÊUTICAS
CAPITULO I

CONCEITO DE CULTURA BRASILEIRA

1. CULTURA. ETIMOLOGIA DA PALAVRA: SENTIDO PRIMITIVO


E ALTERAÇÕES SEMANTICAS

A palavra cultura tem hoje uma área semântica muito


ampla> sugere-nos confusamente diversas coisas. Por isso, a
indagação etimológica poderá fornecer-nos elementos úteis às
indispensáveis distinções e conseqüente aclaramento.
Cultura nos veio, por via erudita, do latim cultura, à base
de colere, através do supino.
O verbo latino colo, colui, cultum, colere primeiramente
exprimia a ideia de «amanhar», «cuidar», aplicada à terra:
agrum colere (M . P o n c iu s C a t o , De Agricultura, 6, 1, ed.
K e il, 1882); agros colere (C íc e ro , Tusculanae Disputationes, 2,
13). Portanto, nesse sentido primitivo empregava-se colere,
para exprimir a operação de tratar a terra, enriquecê-la, fertili­
zá-la, para produzir mais e melhor (terra culta = terra cuidada,
preparada). A propósito, convém lembrar que o latim, nos seus
velhos tempos língua de rudes pastores e agricultores, tem a
maior parte de seu vocabulário constituído de palavras referen­
tes à vida do campo.
14

O verbo edlere, todavia, exactamente como tantos termos


agrários, veio a adquirir outros sentidos no próprio latim.
Exemplos de alguns que mais fazem ao nosso caso:

1) «habitar»: qui has nobiscum terras colunt, «os que


habitam a mesma terra que nós» (Cícero, De Natura Deorum,
2, 164); colunt circa utramque ripam Rhodani, «habitam às
margens ambas do Ródano» (Trro Lívio, 21, 26). Relação
entre o primeiro e o segundo sentido: o que trata a terra é o
que nela habita; terra habitada, terra cultivada.

2) «praticar», «entreter»: nec vitam illam cciere possum,


«e eu nem posso praticar tal género de vida» (Cícero, Epistulce
ad Atticum , 12, 28,2);

3) «honrar», «venerar»: deos colere, «honrar os deuses»


(Cicero, De Natura Deorum, 1, 115); [haec deus] religione
maxima colitur, «esse deus é objecto da maior veneração» (Id.,
In Verrem A dio, 4, 96); aliquem observare et colere, «rodear
alguém de olhares e atenções» (Id., De Officiis, 1, 149); amicos
colere, «cultivar, homar os amigos» (Id., De Amicitia, 85).

Reminiscência do sentido de «habitar» temos, em português,


no elemento de composição -cola, formador de palavras como
íncola, silvícola, etc.; e do sentido de «honrar», «venerar», na
palavra culto (culto religioso).
A palavra cultura (de cultum + sufixo abstractivo -ura)
foi a princípio usada para significar o «amanho» da terra: agri
cultura docuit usus, «a experiência ensinou o trato da terra»
(Lucrecio, De Natura Rerum, 5, 1447).
O sentido figurado de «trato, aprimoramento do espírito»
era raro em latim, em que se preferia dizer, para traduzir a
ideia, politior humanitas, eruditio, doctrina, disciplina (corres-
15

pondendo ao grego paideia, ideal da civilização grega). Em


C ícero, entretanto, se lê: cultura animi philosophia est, «a filo­
sofia é a cultura do espírito» (Tuse., 2, 5, 13); mas note-se: a
palavra traz um complemento (animi), a especificar-lhe e res­
tringir-lhe o sentido,, o que toma patente a metáfora literária.
No Renascimento, que é ao mesmo tempo um desaguar e
uma contradição da Idade Média, a expressão cultura animi
reaparece em autores como Bacon (De Dign. Scientice) e T omás
Morus (Utopia). Mas Bacon fixa à expressão um sentido
nítido e restrito: é a parte da Ética que estabelece regras de
aplicação dos princípios à conduta individual, pessoal (uma
espécie de casuística: aplicação das normas gerais a cada caso):
Partiemur igitur Ethicam in doctrinas principales duas, alteram
de exemplari sive imagine bom, alteram de regimine et cultura
animi, quam etiam partem geórgica anima appellare consuevi·
mus. Illa naturam boni describit, haec regulas de animo ad illas
confirmando prcescribit. (x). — «Dividiremos, pois, a Ética em
duas partes principais: uma, que trata do bem exemplar ou
ideal; outra, que trata do governo ou da cultura do espírito, a
que costumamos chamar geórgica. A primeira descreve a natu­
reza do bem; a segunda estabelece regras para conformar o
espírito às normas».
No francês, a palavra culture — segundo Bloch -Wart-
burg (2) — aparece em 1420, com o sentido figurado, e em
1509 com o sentido próprio. Quanto ao derivado culturel, os
mesmos dicionaristas datam-lhe de 1929 a entrada na língua,
como empréstimo do alemão kulturell.

(1) Bacon, Opera Omnia, Londres, 1730, c. 1, p. 196.


(2) Dictionnaire Etymólogique de la Langue Française, 2ème.
éd., PUF, Paris, 1950, s. v..
16

No que diz ao emprego da palavra cultura em português,


lembremos que o dicionarista C audas A ulete apresenta, para
o sentido figurado, três acepções: a) estudo, aplicação do espí­
rito a uma coisa: a cultura das ciências; b) desenvolvimento que
se dá por cuidados assíduos às faculdades naturais: as belas-
•artes elevam a alma, a cultura do espírito enobrece o coração;
c) apuro, esmero, elegância: a cultura do estilo, da linguagem.

2. CULTURA PESSOAL

A palavra, como vimos, tomou a acepção de «aprimora­


mento, enobrecimento, elevação do espirito acima da vulgari­
dade».
Atentemos desde logo para isto: um campo cultivado é sinal
do homem, da sua inteligência, que conhece, selecciona e ordena
materiais e actos. Um terreno selvagem ou inculto está entregue
só às forças da natureza. M as o homem nele aplica a inteli­
gência, prim eiro tomando conhecimento dessas forças, estu­
dando-as, para melhor dirigi-las e utilizá-las, neste ou naquele
sentido; depois, intervém, para obter um resultado mais rico.
Tal intervenção é que constitui a cultura.
Útil nos é relem brar o sentido prim eiro da palavra — «ama­
nho da terra»—, porque aí vemos nítidos os dois elementos
que sempre compõem a cultura, em todas as acepções que a
palavra veio a ter: 1 — a natureza, com suas forças e possibili­
dades; 2 — a inteligência, que observa, conhece e se aplica, para
tirar da natureza mais e melhor. Fazendo, por exemplo, a terra
multiplicar bons frutos; aumentando e aprim orando o rendi­
mentos das faculdades cognoscitivas humanas, a começar pelo
próprio sujeito.
17

Assim, pela cultura o homem guia a natureza; e guia tam­


bém a sua própria natureza.
Como diz L eclerc (*), «a cultura é um prolongamento da
natureza; é utilização da natureza, aperfeiçoamento, expansão,
nunca eversão. A ndar na ponta dos pés pode ser marca de
cultura, não, porém, andar de pernas para o ar.»
A cultura, portanto, supõe a pessoa, isto é, um ser inteli­
gente e livre, autónomo e subsistente em si mesmo. «A cultura
— afirm a o mesmo L eclerc — é fruto da pessoa... É aplica­
ção da inteligência à natureza a fim de obter dela mais beleza
e perfeição... Toda cultura tende a uma perfeição» (4).
Referido ao espírito, o conceito de cultura envolve a ideia
de um esforço de desenvolvimento e de aperfeiçoamento das
faculdades do homem — inteligência, imaginação, atenção, sen­
sibilidade.
No entanto, quando se fala em homem culto, não se pensa
necessariamente em perfeição moral. Por que a exclusão da
vontade no conceito de cultura?
Talvez seja por isto: se é verdade que a noção de cultura
implica a de um esforço da inteligência para o conhecimento
do bem, é verdade, por outro lado, que conhecer o bem não
significa praticá-lo. Errou Sócrates concluindo que, sendo o
vício fruto da ignorância, quem conhece o bem será fogosa­
mente virtuoso. Deste engano, porém, escaparam muitos dos
antigos, mesmo os pagãos. Daí a célebre sentença de O vídio,
posta na boca de M edéia (Metam., V II, 20): Video meliora,
proboque; deteriora sequor, «Vejo o bem e aprovo-o, mas sigo
o mal». Esta possibilidade de que nos fala o poeta, a liberdade

(3) Culture et Personne, 2ème. éd., Casterman, Toumai— Paris,


1945, p. 7.
(4) Ibidem, p. 8.
i
18

de escolher e querer o mal, é toda a tragédia humana. Em


resumo: o conhecimento da Ética, da M oral, é componente da
cultura, méliora videre; mas não a prática da virtude. Embora
cultura suponha um esforço de aperfeiçoamento, este aperfei­
çoamento, no que concerne à vontade, não será forçosamente
na linha moral, na busca eficaz do bonum honestum.
Cultura tende a restringir seu sentido ao aperfeiçoamento
da inteligência, porque cultura é primordialmente um sinal de
inteligência.
Porém, identificando-se no desenvolvimento e apuração da
inteligência o mais im portante elemento da cultura pessoal,
temos de levar em conta que o enriquecimento da sensibilidade,
a apuração do senso estético também não pode faltar ao homem.
Será tudo menos culta a pessoa que acha bonitas certas igrejas
desarmoniosas, sem estilo ou horrendas, a pessoa que, por
exemplo, se extasie diante da Candelária, imaginando-a excep­
cional realização da arquitectura religiosa.3

3. CULTURA E ERUDIÇÃO

Embora haja quem empregue como sinónimas ou quase


sinónimas as duas palavras cultura e erudição, deve-se cuida­
dosamente distinguir uma coisa da outra.
Erudição é ilustração, informação, riqueza de dados a
respeito de um tema, de um assunto; cultura já supõe uma
actuação crítica da inteligência sobre os dados que lhe são for­
necidos, o que leva a nítido discernimento entre o certo e o
errado, entre o bom e o mau, entre o falso e o genuíno. A
cultura assimila, a erudição acrescenta.
Por conseguinte, «são duas coisas bem diferentes e, de
certo modo, até incompatíveis. A cultura forma, a erudição
19

informa. A cultura se aprofunda, a erudição se espraia. A cul­


tura é vertical, enquanto a erudição é horizontal. A cultura pede
inteligência, a erudição a dispensa, por vezes a repele, ou afo­
ga-a, quando se vê a braços com d a. Frequentemente o erudito
é um homem que estuda com a vontade. Um homem tenaz e
persistente. Um ledor sem tréguas e sem norte. Um viciado na
ldtura. Além disso, é um homem que renuncia a ter opinião:
repete as opiniões alheias» (s).

4. CULTURA, EM SENTIDO SOCIOLÓGICO

Sendo a pessoa, por natureza, com unicativa e receptiva,


cada um vai difundindo o que descobre e o que elabora na
ordem da inteligência, dos misteres e das artes, e vai, ao mesmo
passo, apreendendo e aprendendo o que os outros descobrem e
elaboram. Por isso, em toda com unidade existe permanente
uma circulação dos bens da cultura, da qual todos se benefi­
ciam e que, em termos de média resultante, se traduz num
estado da comunidade. É um patrim ônio de idéias, de ideais,
de conceitos científicos ou de conhecimentos empíricos, de cos­
tumes, de criações ou concepções artísticas.
Esse patrim ônio social transmite-se, de uma geração para
outra, ao longo do tempo, com perdas e conquistas novas, com
empobrecimento e com enriquecimento. Aí está o sentido
sociológico de cultura, que traz como conotação necessária a
tradição, o tempo, a história. Cultura, assim entendida, é, pois.

(5) Permita-se-me remeter o leitor para o desenvolvimento destas


idéias em Gladstonb Chaves db Melo, «O testemunho cristão de
Ozanam em relação à cultura» (in Vários, Missão do Intelectual, Agir,
Rio, 1952, pp. 39-40).
20

um produto histórico-social. E, por isso, não se pode entendê-la,


compreendê-la, sem o passado. Cada estado cultural é um está­
gio, é um momento cultural, que emerge de um passado, em
que funda raízes, e se projecta para o futuro, braceja ramas
e estende folhas.
Mais adiante veremos que a cultura, em sentido sociológico,
é condicionada (não, porém, determinada) por factores que se
podem compendiar em três: meio físico, etnia e momento.

5. SENTIDO ANTROPOLOGICO DE «CULTURA»

O conceito antropológico ou etnológico de cultura entrou


como um vendaval no «momento» brasileiro, de tal modo que
muitos só entendem por cultura — o conjunto de estilos de vida,
quer materiais, quer espirituais (cultura carajá, cultura hoten-
tote, etc.). Novidade neste conceito é a predominância dos
elementos de ordem material, o que quase identifica a Etnologia
com uma espécie de objectologia — descrição dos objectos
expressivos da cultura de um grupo humano. Compreende-se
bem isto, porque um dos traços do nosso tempo — influência do
positivismo — é o relativismo filosófico e o cepticismo. Assim
sendo, descrever fisicamente é mais fácil do que optar, do
que comprometer-se, do que afirmar, do que reconhecer os
verdadeiros valores espirituais, do que hierarquizar.
Esse sentido antropológico de cultura parece que surgiu na
Alemanha, a partir de F. G r a e b n e r , assistente de W. F oy,
director do Museu de Etnografía de Colônia. No seu Methode
der Ethnologie (Heidelberg, 1910), fala repetidamente em
Kulturschichten (camadas de cultura) e Kulturkreise (áreas de
cultura). Incluindo, talvez como pioneiro, no conceito de cultura
os objectos, G r a e b n e r , ao falar em «camadas» e «áreas» de
21

cultura, caracteriza uma coisa e outra mais pelos elementos


materiais.
G r a e b n e r influi sobre K a r l W is s le r , o principal respon­
sável pela difusão e generalização do novo sentido da palavra
nos Estados Unidos e países tributários das concepções socio­
lógicas norte-americanas (·). W i s s l e r , figura destacada do
American Museum of Natural History, teve prestígio grande
no Brasil a partir de 1930.
Na França, contudo, esta acepção da palavra ainda encon­
tra resistência.
Sem discutir a validade de tal conceito, aceitando-o até,
entendemos que ele pertence à Antropologia Brasileira, cadeira
do Curso de Ciências Sociais, a qual estudará não a cultura,
mas as culturas brasileiras. Outro é o sentido em que tomare­
mos a palavra — e outra, é óbvio, a direcção que daremos aqui
à disciplina Cultura Brasileira. Por isso, não será uma duplica­
ção: será outra coisa, como logo veremos.

6. CULTURA E CIVILIZAÇÃO

Autores de categoria existem que usam estes dois termos


como sinónimos, ao passo que há outros que os tomam em
acepções diferentes e até exclusivas e contraditórias. São confu­
sas e inseguras as definições dos melhores dicionários.
Busquemos, então, fixar sentido para as referidas palavras.
Desde que nos definamos preliminarmente, seremos entendidos.
Consultando a história da palavra, vemos que o termo c/ví-
lização aparece pela primeira vez em francês em 1756, segundo

(®) Man and Culture In America, Harrap, New York— London,


1923.
22

Bloch-Wartburg, criado pelo C onde de M irabeau em


L ’Anú de l'Homme.
Antes de civilisation, a ideia era expressa pela palavra
police. Em português, aliás, também já se empregou na mesma
acepção a palavra polícia, como se patenteia nestas passagens
de Os Lusíadas, de L uís de C amões: «Vês Europa cristã mais
alta e clara / Que as outras em polícia e fortaleza» (X, 92);
«Fazei que tom e lá às silvestres covas / Dos cáspios montes e
da Q tia fria / A turca geração, que multiplica / Na polícia da
vossa Europa rica» (VII, 12).
Bloch e W artburg lembram que o enriquecimento das
idéias relativas ao progresso do homem em sociedade determi­
naram a busca de uma palavra nova, que veio a ser civilização.
Na Alemanha o neologismo foi adotado e largamente empre­
gado, entre outros por H erder, Kant ou F. A. Wolf . Na
Inglaterra, em 1772 ainda havia hesitação em aceitá-lo. Na Itália
houve e há relutância ao vocábulo, talvez devido à presença de
civilità, que já figura em Dante sob a forma civilitade, «boa e
nobre convivência em sociedade civil» (donde tira ele, e bem,
o fundamento da autoridade: «lo fondamento radícate de la
imperiale maiestate, secondo il vero, è la necessità de la umana
civilitade, che ad uno fine è ordinata, cioè, a la vita felice» (7)
— «o fundamento primeiro da majestade imperial, segundo o
verdadeiro, é a exigência da humana civilidade, que a um só
fim é ordenada, ou seja, à vida feliz».
Quanto ao português, a palavra ainda não se encontra no
dicionário de Bluteau , nem no de M orais (inclusive a 2.® edi­
ção, 1813), mas já é usada no começo do século XIX, como o
provam as seguintes passagens do V isconde de C airu : «A

(7) Il Convivio, IV, 4.


23

vinda do Senhor D. João VI à Bahia marca uma grande era nos


anais da Civilização»(**); «Doutrinas religiosas, económicas e
morais que se acham na Escritura Sagrada e que são as colu­
nas da civilização»(*).
Na 3.a edição do Dicionário de A ulete , encontra-se esta
definição para o termo: «Grande perfeição do estado social,
que se manifesta na sabedoria das leis, na brandura dos costu­
mes, na cultura da inteligência e no apuro das artes e indústrias».
No dicionário de B loch -Wartburg, s. v. civil, lê-se a
seguinte explicação: «Depois de 1800, em conseqüência dos
acontecimentos históricos e das viagens de descobrimento, civili­
zação adquiriu o sentido novo de «conjunto dos caracteres que
apresenta a vida colectiva de uma sociedade dada» (selva­
gem, etc.)». Portanto, um conceito muito próximo do de cultura
em sentido antropológico.
O Petit Larousse lllustrè, s. v. civilisation, registra as seguin­
tes acepções: «1 — Conjunto dos caracteres comuns às socie­
dades evoluídas: os benefícios da civilização; 2 — Conjunto dos
carácteres próprios de uma sociedade qualquer: civilização
grega,'» E, para culture: «Conjunto dos conhecimentos adquiri­
dos; instrução, saber: uma sólida cultura. Civilização: a cultura
greco-latina».
M irabeau criou e empregou a palavra civilização para
indicar o padrão europeu. Civilização é, pois, todo aquele con­
junto de idéias, valores espirituais, instituições, costumes, etc.,
caracterizadores da Europa. Assim sendo, os povos em que não
se notam esses mesmos traços são povos não civilizados — bár­
baros ou selvagens.

(*) Beneficios Politicos, 1818, p. 66.


(*) Escola Brasileira, 1827, pref., IV).
24

Mas a palavra ainda desdobrou o sentido primeiro, dei­


xando de lado a ideia de perfeição. Significa, pois: a) um ideal,
supostamente realizado pelos europeus; b) cultura, sociologica­
mente entendida: «civilização papua». No segundo caso, com­
porta plural: «civilizações primitivas».
Leonel F ranca, em A Crise do Mundo Moderno 0°),
analisando o conceito de civilização, escreve: «Desenvolvimento
das ciências, das letras e das artes, prudência equilibrada das
instituições políticas e sociais, mantenedoras da justiça e da
paz, requinte de ademanes e delicadeza de maneiras corteses e
refinadas, tudo isto entrava no conceito de civilização». Admi­
ravelmente fixada a acepção ideal.
Para Spengler (u ), os conceitos são outros: cultura e
civilização seriam como virilidade e decrepitude, verão e outono
(ou inverno). Em estado de cultura uma raça produz mais do
que consome, em estado de civilização consome mais do que
produz, cosmopolitiza-se, desagrega-se e caminha para a morte.
Aí estaria a explicação da decadência do Ocidente, a deterio-
rar-se numa «civilização»... [Mas a Europa, ressurgida da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945) com extraordinária vitali­
dade, é um argumento que põe abaixo a teoria de Spengler].
Seguido por vários autores, como, por exemplo, H enri de
M an (que, em Le Socialisme Constructif, diz que «a cultura
produz valores» e «a civilização goza os valores adquiridos»),
O swald Spengler faz afirmações como estas: «São as civili­
zações os estados mais exteriores e mais artificiais que possa
atingir uma espécie humana superior. Elas são o fim; sucedem
ao que-vai-vir como o que já passou, à vida como a morte, à

(10) José Olímpio Editora, Rio, 1941, pp. 14-15.


(u ) Cf. Der Untergang des Abendlandes, 2 vols., 1918-1922.
25

evolução como a cristalização, à paisagem e à infância da alma,


visíveis no dórico e no gótico, como a velhice espiritual e a
cidade cosmopolita petrificada e petrificante. Elas são um
termo irrevogável, a que se chega sempre, por força de profun­
díssima necessidade» (“ ).
Concluiremos, dizendo que distinguimos cultura e civiliza­
ção. Ambas as palavras indicam estado social, caracterizado
por um conjunto de ideais, idéias, usos e costumes, etc.. Mas
civilização conota sempre algo que se institucionaliza. As insti­
tuições são o que especifica uma civilização: o gosto da ciência
ou a busca da sabedoria são factos de cultura; a Universidade
é um facto de civilização.
Encontramos esta chave em J. T. D elos , que explica, por
exemplo, ser cada elemento da civilização «o fruto da instituição
de uma ideia ou de um sentimento humano»; e que arremata:
«a cultura está directamente na pessoa e refere-se a ela primeiro,
ao passo que a civilização reside antes nas instituições e não
se refere às pessoas senão como as próprias instituições»(13).
Diremos, por fim, que a cultura é, no nosso entender, a
alma da civilização.

7. CULTURA NACIONAL. CULTURA BRASILEIRA

O alemão K. W. H umbolt definiu cultura como o «estado


moral, intelectual e artístico, em que os homens souberam ele­
var-se acima das simples considerações de utilidade social, com-

(ll) V. Le Déclin de ΓOccident, trad, de M. Tazbrout, Gallimard,


Paris, p. 12.
(ls) La Nación, trad, de S. C. Mantbrola, DEBEC, Buenos
Aires, I, s/d, p. 18.
26

preendendo o estudo desinteressado [grifo nosso] das ciências e


das artes»(14).
Na vida social, existem necessidades materiais (economia)
e necessidades de defesa da própria existência e da dos grupos
(política, sob certo aspecto). M as não basta. Com isso estamos
ainda no terra-a-terra, na vida e na conservação da vida. Para
assegurar o progresso, a sociedade tem de satisfazer às necessi­
dades espirituais «por uma elite incessantemente renovada, de
indivíduos sábios, pensadores e artistas, que continuem uma
certa formação social, acima das classes e fora delas»(ls). Isto
é tarefa da cultura, isto é a cultura, tomada a palavra sociologi­
camente, se considerarmos o resultado, a circulação, como já
vimos.
Trata-se de um estado de espírito da comunidade, caracte­
rizado pela valorização e estima de bens superiores, não utili­
tários, representativos de conquistas da inteligência, em seu
esforço próprio de buscar a verdade e contemplá-la. Daí tradu-
zir-se em sabedoria, ciência e obras de arte.
O traço de desinteresse, essencial ao conceito de cultura,
tem sido bem ressaltado por autores como F ernando de Az e ­
vedo, A rbousse Bastide e outros.
Neste sentido comunitário e alto, a ideia de cultura está
sempre ligada a uma nação, sendo até um dos mais importantes
e prezados elementos dela. Considerada tesouro nacional,
assume alguns caracteres próprios e transmite-se pela tradição.
A comunidade a cria, conserva-a, enriquece-a e apura-a pela
crítica incessante e lúcida. Chegamos agora ao conceito de
cultura nacional.

(M) Apud Fernando de Azevedo, A Cultura Brasileira, S. Paulo,


1958, I, p. 27.
(«) Id., ibid., p. 28.
27

Esta cultura, embora seja nacional, tende ao universal.


Acertado andou A rbousse Bastide, quando viu na cultura o
«esforço de inteligência e de vontade para dominá-las e dirigi-las
[a vida material, a técnica e a economia], e elevar-se até os
valores impessoais e eternos que se encontram acima dos
homens, e podem vir a uni-los um dia» (w).
Os valores e as conquistas da cultura são comunicáveis e
transcendem as fronteiras. As maiores realizações da cultura
se desnacionalizam, passam a constituir patrimônio comum da
humanidade: Bach deixou de ser alemão, M iguel Ângelo
deixou de ser italiano, Sócrates ou A ristóteles são cida­
dãos do mundo, como E l G reco ou Santo A gostinho .
Para concluir, diremos que entendemos por cultura, em
perspectiva nacional, o conjunto de atitudes espirituais (religião,
filosofia de vida), de conhecimentos, de tradições, de técnicas e
de criações artísticas, peculiares a um povo. Adoptando, assim,
nas grandes linhas, um conceito de G oethe , definiremos então
C ultura B rasileira como o conjunto de atitudes espirituais,
conhecimentos (científicos ou empíricos), técnicas, tradições e
criações artísticas próprias do povo brasileiro.
Esta conceituação é claro que se nos afigura exacta. Con­
tudo, para ordenar melhor as idéias, é necessário fazer aí uma
distinção. Podemos e devemos considerar dois aspectos na
cultura: o subjectivo e o objectivo, ou interno e externo, óu
formal e material.
Se olharmos o referido «conjunto» na inteligência e na
sensibilidade espiritual das pessoas, dos componentes de um
grupo ou comunidade, temos cultura formal; se considerarmos
as manifestações externas, tangíveis, palpáveis, por assim dizer.

(w) «Cultura e Matéria», in «Estado de São Paulo», 21-7-1935.


28

e sociais, temos cultura m aterial M elhor: aspecto form al e


aspecto material da cultura (” )· Este segundo aspecto só tem
sentido, só tem significado, só vale, quando é expressão do pri­
meiro, quando o exterioriza.

* *

Explicitando, entendemos que o estudo da Cultura Brasi­


leira compreende a religião (ou religiões), como atitude espiri­
tual; a maneira de encarar a vida, de julgar-lhe os valores;
o tipo de convivência e trato com o semelhante; a actividade
científica nos três graus de abstracção — ciências naturais, mate­
máticas, filosofia; os conhecimentos empíricos; as actividades
fabricadoras, com as respectivas técnicas, requintadas ou rudi­
mentares; as tradições que atingem nível nacional; as criações
de beleza— literatura, artes plásticas, música, teatro, cinema;
artes populares; o grande e quotidiano instrumento de comuni­
cação, a língua, com suas peculiaridades brasileiras. Tudo isto
considerado em perspectiva nacional e em visão diacrónica.
Salientando-se o que, nessas diversas manifestações, é próprio
do Brasil, ao menos estilisticamente, digamos assim, e pro­
curando-se sempre m ostrar a elaboração, a preparação, as raízes,
o processo, o crescimento.
Só assim poderemos conhecer correctamente a cultura bra­
sileira. Vendo nela, com amplitude, o resultado do esforço de
muitos, que continuam no presente o que receberam do passado,
onde muitos mais trabalharam , sondaram, sonharam.

(1T) Preferimos «aspecto material da cultura», porque a expressão


«cultura material» já vem sendo usada como «estudo dos objectos
documentadores de cultura»: instrumentos, vasos, utensilios, móveis,
casas, monumentos tumulares, etc.
CAPÍTULO Π
FACTORES CONDICIONANTES DA CULTURA

1. FACTORES DINAMICOS E FACTORES ESTÁTICOS

Estabelecida a noção sociológico-nacional de cultura, cabe


indagar, ainda em capítulo propedêutico, dos factores que limi­
tam e dão feição própria à cultura A ou B, factores que lhe
retraçam a fisionom ia.
Damos a tais elementos o nome de condicionantes ou, tam ­
bém, estáticos. Condicionantes, porque, sem a produzirem, dão
colorido local, características peculiares, conformação singular
a esta ou àquela cultura concreta; estáticos, porque são mais
ou menos perm anentes, porque enquadram , porque actuam de
fora para dentro, porque a pessoa está neles e lhes sofre a
influência mais ou menos profunda.
Ao compendiarmos os elementos condicionantes ou está-
ticos em meio físico, herança étnica e momento histórico, inspi-
ramo-nos evidentemente em T a in e (1828-1893), que estuda a
sociedade sob a luz da «lei dos factores prim ordiais», por ele
descoberta, sintetizados tais factores em «raça, meio e momento».
Afastamo-nos, porém, do filósofo francês em mais de um
ponto. Assim, enquanto para T a in e no m ilieu se com preende o
meio físico e o estado social, com as ocupações cotidianas, nós
aqui consideraremos só o meio físico. Por outro lado, — e esta
é a divergência fundam ental—, enquanto para T a in e esses
30

factores, essas «grandes pressions environnantes», produzem


fatalmente um tipo de cultura, para nós a actuação dos três
elementos apenas, como o diz o nome, condiciona a cultura,
que, em última análise, é fruto do esforço inteligente e livre
do homem, de sua capacidade criadora.
Justamente nesse esforço inteligente e livre, nessa capaci­
dade criadora vemos os factores dinámicos da cultura, razão
por que chamamos aos outros estáticos.
Observe-se ainda, desde logo, que preferimos falar em
herança étnica em vez de raça, porque o elemento em causa
é muito mais de natureza espiritual do que biológica. Aceita­
mos, pois, apenas um esquema feliz, inserindo-lhe outra filoso­
fia, outro entendimento.2

2. MEIO FÍSICO

No meio físico se considera a configuração e o relevo do


solo, o clima, o regime de águas, a composição do solo e do
subsolo, o revestimento florístico, enfim, tudo que signifique
natureza exterior.
Desde sempre se levou em conta a acção do meio físico
sobre o homem, as sociedades, as nações. Não faltou, por exem­
plo, quem ligasse ao clima da Grécia, ao recorte de seu litoral,
ao calor do sol e à beleza do céu a harmonia e a graça da
«paideia» grega; tomou-se proverbial dizer-se que o Egipto foi
e é uma dádiva do Nilo; sempre se pôs em destaque o papel do
mar e dos rios no destino das civilizações (v.g. civilizações
mesopotâmicas).
O meio físico actúa constantemente sobre o homem, faci­
lita-lhe o caminho ou embarga-lhe o passo, obriga a um tipo de
actividade económica (lembre-se que se classificam as civiliza-
31

ções ou culturas primitivas à base da actividade económica:


povos caçadores, pastores, agricultores, nómades ou sedentá­
rios). M as também o homem reage ao meio, submete-o, domes-
tica-o. No prim eiro momento, sofre-o em cheio; depois,
domina-o.
Só na segunda metade do século passado se entrou a estu­
dar de maneira sistemática o assunto, isso com o advento da
Geografia Humana de R atzel (Karlsruhe, Alem., 1844-1904),
cuja Aníhropogeographie, oder Grundzüge der Anwendung der
Erdkunde auf die Geschichte, em 2 vols., é de 1882-91. Daí
parte toda uma linhagem de deterministas do meio físico (deter­
minismo geográfico), onde se incluirão os nomes de Buckle ,
T aine , H untington , C hunchill Semple («man is the pro­
duct of the earth’s surface»), que vêem na natureza o elemento
decisivo das culturas e das civilizações, T aine , por exemplo,
em Voyage aux Pyrenées *, ps. 130-131, diz: «A raça modela
o indivíduo, a região modela a raça. Um grau de calor na
atmosfera e um grau de inclinação no solo é a causa primeira
— grifamos — das nossas faculdades e das nossas paixões».
R enan explica pelo deserto o monoteísmo dos semitas,
porque «le désert est monothéiste»: «Pode-se afirm ar que [os
semitas] jamais teriam conquistado o dogma da unidade divina,
se não o tivessem encontrado nos mais imperiosos instintos de
seu espírito e de seu coração... Por um lado... o deserto é
monoteísta. Sublime em sua imensa uniformidade, desde logo
ele revelou ao homem a ideia do infinito... Eis porque a A rá­
bia sempre foi a larga avenida do mais exaltado monoteismo»(1)·
(l) Histoire Générale et Système Comparé des Langues Sémi-
tiques2, Paris, 1855, ps. 5-6.— É bonito, mas falso. Hoje se sabe, com
segurança, que eram politeístas as tribos que habitavam a região do
deserto, antes da pregação de Maomé. O r. M. J. Lagrange, Etudes sur
ies religions sémitiques2, 1905, Paris, p. 438.
32

Ao determinismo de R a t z e l contrapôs-se — e contrapo­


mos — o possibilismo de V i d a l d e l a B l a c h e (Pézenas, F r., f.
em 1918). O meio físico oferece mil possibilidades, que o homem
aproveita livre e habilmente; ou m ostra-se avaro e hostil,
levando o homem a engendrar meios e criar técnicas para
submetê-lo e pô-lo a seu serviço. «O que constitui um a civili­
zação, diz D e lo s , é a conjunção das possibilidades do homem
com as da natureza. Tais possibilidades são certas, mas seu
encontro ou conjunção é indeterminado» (2).
Portanto, o meio físico influi larga e constantem ente no
homem e condiciona uma cultura, que é sempre, sob certo
aspecto, o resultado de interacção imprevisível, mas perceptível
e analisável. N a cultura espanhola, na poesia, por exemplo, na
pintura, entra em larga escala a paisagem da M eseta, a terra
adusta e angustiada, os olivais sem fim, ásperos e sedentos, os
megalitos de G uadalajara ou de M ontserrat, o duro e contras­
tante relevo de Guadarram a. N a cultura occitânica tem parte
incontestável a doçura do clima, a m atizada luz das tardes, o
colorido da paisagem, o harmonioso perfil das árvores, a sua­
vidade dos vales.
No mesmo meio físico, porém, florescem civilizações diver­
sas, formam-se culturas diferentes e divergentes, brilha uma
civilização, que depois fenece sem deixar vestígios, como é o
caso, clássico, da Grécia. L á está o m ar e o céu, lá está a fonte
de Castália, lá está o mel do Himeto, mas onde o esplendor da
Paideia? Onde os poetas, os trágicos, os líricos? onde P l a t ã o
e A r i s t ó t e l e s ? onde S o l o n e P é r i c l e s ? onde, enfim, o
«povo eleito da razão», de M a r i t a i n ? (*)

(*) La Nación, I, p. 13.


33

3. HERANÇA ÉTNICA

O segundo factor do esquem a tainiano seria a raça, que


A ulete defíne com o «variedade da espécie hum ana e em geral
de qualquer espécie de anim ais que se conserva perpétua pela
geração». T al definição corresponde ao entendim ento geral.
Com um pouco m ais de rigor, podem os dizer, com L eonel
F rança , que a raça é «um tipo biológico que se conserva e se
transm ite em grandes grupos hum anos, caracterizados p o r tra ­
ços físicos comuns» (*). N a caracterização da raça en tra em
conta a cor da pele, o form ato do rosto e dos olhos, a cor e a
textura dos cabelos, o ângulo facial, o índice cefálico. O s traços
raciais passam através d a hereditariedade, de m aneira que não
resultam de opção. Pode-se m udar de terra, m as não se pode
conseguir outro índice cefálico; um japonês pode naturalizar-se
brasileiro, m as não pode deixar de te r olhos am endoados e tez
am arela.
Sobre a raça, ao longo do tem po, actúa o m eio físico, sobre­
tudo o clim a, que a vai m odificando.
Desde sem pre houve tentativas, m ais ou menos vagas, de
relacionar raça e cultura. D isso são exem plo os historiadores
rom anos.
M as só em m eados do século passado foi que se estabe­
leceu relação necessária entre raça e civilização. Um francês.
G obineau , e um austríaco G um plow izc , fabricaram o m ito
da superioridade racial, de que se serviu o revanchism o alem ão,
conduzido por H itler , p ara fazer explodir o m undo, entre
1939 e 1945. O conde J o s e p h -A rthur de G obineau (1816-
-1882) jam ais poderia im aginar que seu Essai sur Vinégalité des

(*) A Crise do Múñelo Moderno, Rio 1941, p. 21.


a
34

races humcànes poderia vir a servir de estím ulo para o aniquila­


mento de seu país pelos por ele detestados alemães, em 1940.
Fizeram escola os racistas, de modo que pegou e resistiu
(ainda perdura em não poucos espíritos) a ideia da supremacia
racial, a ideia de raças intrínsecam ente superiores e raças intrín­
secamente inferiores. É claro que, modestamente, cada teorista
ou cada partidário entende que superior é a sua raça.
Não vemos nós hoje, depois da rendição incondicional de
Metz, depois do julgamento de Nüremberg, surgir um outro
racismo na Africa Negra, igualmente furioso, igualmente homi­
cida, apenas com técnica rudim entar, sem câmaras de gás?
A raça ariana, superior, deu péssima nota de si, fazendo o
mundo civilizado assistir ao mais selvagem espectáculo de selva-
geria jamais concebido, o genocídio.
V acher de L apouge , no fim do século passado, insistia
nas idéias de G obineau em dois livros que já se definem pelos
títulos. Les sélections sociales (Paris, 1896) e L ’Aryen et son
rôle social (Paris, 1899), fazia da raça o principal factor da
história, e comparava dois países de idêntica situação geográ­
fica e com dois destinos tão diversos, a Inglaterra, im peratriz
dos mares, e o Japão, insignificante unidade política (60 anos
de história bastaram a m ostrar o valor da dedução!).
Ensina Santo A gostinho que Deus só perm ite o mal em
vista de um bem m aior que dele tira. Aplicando, podemos dizer
que o erro traz a vantagem de cham ar a atenção para um pro­
blema e fazer, por fim, jorrar abundante luz de verdade
sobre de.
Assim é que o racismo de G obineau e G umplowizc pro­
vocou toda uma série de estudos, que chegaram a conclusões
positivas muito diferentes. Que chegaram a pôr em cheque a
própria noção de raça. Veja-se o que diz um antropólogo
como J. Ranke , a propósito de medidas cranianas como
35

critério de classificação racial: «O que nos oferece o género


humano, tom ado em seu conjunto, em m atéria de form as
cranianas diversas encontra-se dentro de cada tribo, e até dentro
de cada comunidade considerável: aí podemos encontrar todas
as diversas form as cranianas, dos extremos mais afastados às
formas intermédias, de pequeníssima diferença (**).
Considerem-se estas palavras do grande F ranz Boas , o
m aior am ericanista e um dos mais respeitados antropólogos do
mundo: «Postos na mesa os dados e as considerações, tom a-se
manifesto que, apesar de todas as tentativas, não se descobri­
ram para as raças caracteres distintos de que se possa tirar
algum partido. Podemos concluir que, se tão insignificante são
as diferenças entre as raças, bem podem os deixá-las de lado ao
tratar de povos europeus, de parentesco tão relativam ente pró­
ximo» (5).
Vale, pois, trazer à colação esta «boutade» do já citado
S p e n g l e r : «é impossível um a classificação fixa das raças, essa
aspiração da E tnografía... A raça é anti-sistem ática e, afinal,
cada indivíduo constitui sua própria raça» (e).
Aos princípios racistas, de que o género humano é for­
mado de raças típicas, de que há raças superiores e raças infe­
riores, de que quanto mais pura um a raça tanto mais forte, ou,
na fórmula de C h a m b e r l a i n , em Fundamentos do Século X X :
«Pureza de raças significa força da raça; m istura de raças
significa seu debilitamento» — opomos o exemplo da própria
Inglaterra, país líder do m undo em certo período, e resultante
de uma longa e complexa m istura de raças; a Espanha de
Filipe Π, e o Portugal de João Π, de D. M anuel e D. João ΙΠ .

(*) Der Mensh, 1912, II, p. 205.


(*) Kultur und Rasse, Leipzig, 1922, p. 94.
(e) Der Untergang, II, p. 115.
36

A verdade é que existe uma homogeneidade fundamental


das raças: «As particularidades da vida intelectual dos povos
pobres em cultura têm sido bastante exageradas: as qualidades
intelectuais da humanidade são, em todo os povos, muito mais
homogéneas do que geralmente se crê... Por toda a parte nos
defrontamos com as mesmas leis que regem o pensamento e
com uma vida intelectual comum»(7). Vale a pena acrescentar
esta afirmação de M eillet a propósito das línguas: «A pari·
dade das condições anatómicas, fisiológicas e psíquicas nos
diversas tipos humanos é tal que os traços essenciais de estru­
tura são sensivelmente os mesmos por toda a parte: todos os
homens se servem de processos fónicos semelhantes grosso
modo, todos falam por meio de palavras grupadas de diver­
sas maneiras. Varia o detalhe; o fundo dos processos lingüís­
ticos é o mesmo em toda a humanidade»(8).
Concluímos com Boule , Les hommes fossiles, Masson,
Paris, 1923, p. 320: «A Raça, enquanto representa continuidade
de um tipo físico, equivale a um grupo natural, que pode nada
ter de comum, e em geral nada tem, com o povo, a nacionali­
dade, a lingua ou os costumes, correspondentes a grupos
puramente artificiais, sem vínculos antropológicos, e unicamente
devidos à história, de que são os produtos. Assim, não há raça
bretã, mas povo bretão; não há raça francesa, mas nação fran­
cesa; não há raça ariana, mas línguas arianas; não há raça
latina, mas civilização latina»(e).
Sem negar que haja raças (quase sempre muito misturadas,
aliás), chegamos a um conceito muito mais rico, mais espiritual

(7) Franz Boas, ibid., p. 115.


(®) In Les langues du monde, Champion, Paris, 1924, p. 12.
(®) Les hommes fosales, Masson, Paris, 1923, p. 320 [Esta e outras
citas relativas ao determinismo do meio e à raça respiguei-as no exce­
lente livro, mencionado, de Leonel Franca, A Crise do Mundo Moderno].
37

e, principalmente, mais verdadeiro e mais fecundo, — a herança


étnica: patrimônio de um grupo natural, formado e conformado
num território, a receber e caldear influências circulantes. Tal
grupo é antes uma grande família, unida por afinidades e
vínculos espirituais, uma família que guarda tradições e valores,
ideais de vida, atitudes e gestos, inclusive atitudes fisionômicas
e gestos corporais. Daí surge uma segunda semelhança física,
nascida da simpatia e do mimetismo inconsciente. Essa segunda
comunidade, cultural e histórica, minimiza ou anula a comuni­
dade de sangue, a raça no sentido biológico. Ilustra bem o que
se vem de afirmar um episódio ocorrido com o negro José do
Patrocínio F ilho . Discursando d e em certa solenidade, falou
em «nós, latinos», o que foi objecto de amigável «cobrança»,
por parte, creio, de Bilac. Mas toda a razão tinha o filho do
grande abolicionista. Latino era ele pela cultura, pela civilização
em que estava integrado, pela raça espiritual a que pertencia,
pela herança étnica de que era portador.
Essa herança étnica, que configura um tipo nacional, como
o alemão, o francês ou o brasileiro, é que constitui o segundo
elemento estático e condicionador de uma cultura.

4. O MOMENTO HISTÓRICO

O terceiro elemento é constituído pelo «momento histórico»,


ou, como costumo também chamar, o «clima espiritual» de uma
dada época.
Em cada período, ou época, ou momento da história de um
povo existem certas idéias, certos preconceitos, certos comporta­
mentos, certa sensibilidade, certos ideais dominantes. Não esta­
mos longe, pelo contrário, da «idée regnante» de T aine . É a
maneira de pensar, de sentir e de julgar, é, principalmente, a
38

escala de valores estabelecida. Ninguém desconhece, por exem­


plo, ou ao menos ninguém poderia negar que os ideais da Idade
Média europeia (10) são m uito outros que não os de agora; que
o belo feito de Eg a s M oniz, decantado por C amões (Lus., ΙΠ ,
35-39), está ajustado ao tempo, e que seria agora insólito e
espantoso. Do mesmo modo, era diferente do medieval e dife­
rente do nosso o clima espiritual do Renascimento florentino.
O «fin de siècle» se traduz por uma m entalidade que já nos
é estranha. O período entre-guerras aceitou valores que já são
hoje caducos, passada a segunda guerra.
Tal espírito do tempo, ou «clima espiritual», nas grandes
correntes, é o mesmo, por exemplo, em todo o Ocidente, mas
tem particularidades mais ou menos marcadas, em cada país,
em cada nação.
É o «theatrum mundi» dos filósofos, e mais especialmente
os «idola theatri» de Bacon , ou seja, os preconceitos decorren­
tes das idéias em curso, das idéias prestigiadas e normativas das
inteligências e das condutas.
Forma-se um pouco misteriosamente esse «clima espiri­
tual». Resulta, sem dúvida, da elaboração filosófica e cientí­
fica da geração anterior, resulta da acção de algum poderoso
espírito pouco antes desaparecido, ou de um líder vivo e muito
influente, ou de tal outro, acaso redescoberto (ou ressuscitado).
No clima espiritual do nosso tempo têm trabalhado inten­
samente, mas de maneira difusa, assistemática, os neopositivis-
tas, como D ürkheim , os existencialistas, e mais remotamente
D escartes . M as tudo isso em quinta ou décima dinamização.

(10) Cf. de V. Vedel, Ideales de la Edad Media, 2 vols., Colección


Labor; e de Gbnevièvb D’Hauoourt, La vie au Mayen Age, vol. 132 da
col. «Que sais-jeP», PUF, Paris, 1961.
39

dosado com m uitos outros pensadores de prim eira ou de ínfima


classe, ensaístas, jornalistas, radialistas, oradores, políticos.
H á um espírito da época, que procura m oldar os espíritos,
os quais, por sua vez, querem ser moldados, para ficarem em
dia, «à la page», para serem como os outros.
Um dos característicos mais salientes deste nosso tempo é
o enquadram ento, a «enturm ação», como já se diz, a necessidade
de «estar inserido», o colectivismo, ou «massificação», numa
palavra. Sob análise espectral, esse colectivismo, essa neces­
sidade de «engajamento» parece ser um a defesa contra a angús­
tia metafísica, ou angústia existencial, que é o nosso actual
Weltschmerz.
Por outro lado, m as conseqüência das mesmas premissas,
vige um universal relativism o m etafísico e m oral. P rotagoras
volta a ser o grande m estre do nosso tem po, com o seu pánton
chremâton m êtron ânthropos, «o homem é a m edida de todas
as coisas». Cada qual tem a sua verdade, cada qual fabrica
os seus valores éticos, tem a sua m oral.
Esse espírito da época, esses idola theatri assumem cor local
em cada cultura, influenciados m ais ou menos pelo meio físico
e pela herança étnica.
E o indivíduo, e os indivíduos nascidos nesse país, nessa
época, sofrem em cheio o influxo do tempo, ajeitados que já
foram ao meio físico e im buídos que já estão da herança étnica.
Chamo a tudo isso envolvim ento cultural, que tende a
m oldar a pessoa, fazer dela um ser passivo, e condiciona, m ais
ou menos, sua reacção ou sua criação, no dom ínio da inteli­
gência, da sensibilidade ou da vontade. Em síntese, os elemen­
tos estáticos, que produzem o «envolvimento cultural», condi­
cionam o elemento dinâmico da cultura de um a nação.
FORMAÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA
II

CAPITULO ΙΠ

O M EIO FISICO BRASILEIRO COM O CONDICIONANTE


DA CULTURA

Depois de termos estabelecido os diversos sentidos de


cultura e de term os fixado a inteligência de «cultura brasileira»,
discorremos sobre os elementos ou factores «estáticos» da cul­
tura, compendiados no meio, na herança étnica e no momento
histórico. Focalizando o assunto em teoria, nas idéias gerais,
concluímos que tais factores são condicionantes e não determ i­
nantes da cultura.
Agora, concretizando, passaremos a estudar o meio físico
brasileiro, como habitáculo da cultura que aí veio a desenvol-
ver-se e como elemento influenciador dela, condicionador de
diversas resultantes específicas.
Como observa m uito bem J orge Dias , é menos perceptí­
vel e mais indirecta a acção do meio físico sobre a cultura
nacional, fazendo-se ela sentir em cheio sobre as culturas regio­
nais: «Enquanto a cultura local tem carácter quase ecológico
e resulta do conflito entre a vontade do homem, o am biente e a
tradição, a cultura superior transpõe esse conflito para o plano
espiritual, porque o elemento ambiente é substituído pela his-
44

tória. Os (actores mesológicos continuam a actuar, m as de


maneira menos visível e indirecta, porque estão já contidos nas
culturas regionais que dão o seu contributo p ara a cultura
nacional» 0).

1. O BRASIL: EXTENSÃO E RELEVO

O que desde logo cham a a atenção no caso brasileiro é a


enorme extensão territorial, são as dimensões continentais do
país, que obriga, por exemplo, a um a escala diferente no equa-
cionam ento e na solução de todos os problem as nacionais.
O Brasil faz parte da A m érica do Sul, de cuja área ocupa
quase a m etade, com seus 8 511 965 km*. Fica situado quase
todo no hem isfério sul, tendo apenas 598656 km3 acim a da
linha equinocial. A travessa-o o trópico do Capricórnio, na
altura da cidade de S. Paulo, do que resulta estar já a parte
m eridional na zona tem perada. Fica o país entre 5° 16' 19"
de latitude N e 33° 4 5 ' 9" de lat. S, e entre 34e 4 5 ' 54" e
73° 5 9 ' 32" de longitude W (Greenwich), onde esbarra nos pri­
meiros contrafortes dos Andes. É um dos maiores países do
mundo, e o m aior dos que abrigam um só povo com a mesma
língua. Tem território contínuo, de form a triangular, litoral
recortado, que se estende por 7.408 km2 e apresenta distâncias
máximas N-S e E-W equivalentes 4.320 e 4.480 km. D entro
destas coordenadas e sobre esse solo, desenvolveu-se a m aior
civilização dos trópicos.
Do ponto-de-vista geológico, apresenta o território um
imenso maciço de base cristalina, bastante acidentado, em

(x) Ensaios Etnológicos, Lisboa, 1961, p. 77.


45

grande parte coberto por um a cam ada sedim entar mais recente,
isenta, porém , de movimentos de crosta. Além das rochas cris­
talinas, dom inantes, é rico o planalto em granitos e gneiss, ao
passo que nos terrenos sedim entares abundam arenitos e xistos.
Circundam o m aciço planícies, tam bém sedim entares, da era
terciária e quaternária, ricas em argilas e areias. A imensa
planura do vale am azónico separa o maciço brasileiro do Sistema
das Guianas. O grande m aciço cai abrupto sobre a costa leste,
form ando a cham ada Serra do M ar e a Serra G eral, que se lan­
çam do R io G rande do Sul à Bahia.
O Brasil não se distigue por m ontanhoso: é m odesta a
altitude m édia, bastando assinalar que apenas 3 % do território
ultrapassam os 900 m, enquanto m ais de 4 0 % da área são
terras com menos de 200 m acim a do m ar. O ponto culm inante
— enquanto não se resolve se o Pico d a N eblina é nosso ou da
Venezuela — continua a ser o Pico da Bandeira, entre M inas
G erais e E spírito Santo, com 2.890 m..

2. HIDROGRAFIA

A rede hidrográfica do Brasil é das m ais extensas e entrete-


cidas. N ela destacam -se as bacias do A m azonas (com área
de 4778 374 km2, cerca de 5 6 % da superfície do país), do
Paraná (889 941km 2), do S. Francisco (631 666 km2), do P ara­
guai (353 994 km2) e do U ruguai (223 452 km2). Os rios que
não se incluem nestas constituem três bacias suplem entares:
a do N ordeste (rios Pam aíba, Jaguaribe, Capibaribe, Beberibe),
a do Leste (rios Paraíba do Sul, Doce, Jequitinhonha, das C on­
tas) e a do Sudeste (R ibeira do Iguape, Itajaí).
A m aioria dos rios brasileiros são de planalto, encanchoei-
rados, de curso rápido e navegação difícil. P or isso, possui o
46

país belas quedas d’água (Sete Q uedas, Iguaçu, P aulo Afonso)


e extraordinário potencial hidroeléctrico. Os mais im portantes
rios da planície são o Amazonas e o Paraguai.
As lagoas situam-se principalm ente na região costeira,
apresentando-se mais num erosas em Alagoas, no Estado do Rio
e no R io G rande do Sul, onde se acham as duas m aiores, dos
Patos (10144 km2) e M irim (2.966 km2). N a bacia am azónica
encontram-se m uitas lagoas de várzea, ligadas aos rios por furos,
que é como lá se cham am os canais. N a planície do Paraguai
também se m ultiplicam lagoas. Como via de comunicação,
prim a em im portância a Lagoa dos Patos, que liga Porto Alegre
ao A tlântico, através do rio G uaíba.

3. CLIMA

Em país tão vasto, de grande extensão N-S, com tão larga


costa e balizado a W pela monumental Cordilheira dos Andes,
necessariamente vário há de ser o clima. Em todo caso, preva­
lece o quente e húmido, verificando-se pelas isotérm icas que
a máxima parte do território apresenta tem peratura m édia anual
acima de 22° G . Tem peratura inferior registra-se no sul, abaixo
do Trópico do Capricórnio e nas regiões m ontanhosas dos E sta­
dos de M inas e do Rio. O litoral, do Ceará ao Cabo Frio,
recebe, em boa parte do ano, o refrigério dos ventos alísios.
Não se sofre no país nem frio excessivo nem calor intenso,
sendo amena a tem peratura média. A conjugação de vários
factores, latitude e altitude, pode produzir m icroclim as excep­
cionais, como em Campos do Jordão (S. Paulo), estação de
repouso e cura, que oferece condições sem elhantes a Davos-
•Platz, na Suíça. Nos sítios m ais altos do sul (Paraná, Santa
47

C atarina, R io G rande) freqüentem ente neva no inverno, neve


rápida e escassa; m as a geada é comum e intensa, não apenas
aí m as tam bém na serra da M antiqueira, em M inas, S. Paulo
e Estado do Rio.

4. REVESTIMENTO FLORÍSTICO

Em relevo e clim a tão variados, diversificada tem de ser


a flora. A tentando-se apenas nos grandes tipos de vegetação,
pode-se assinalar a floresta tropical, o babaçual, a caatinga, o
campo, o cerrado, o coqueiral, o pinheiral e o pantanal.
A floresta apresenta dois adensam entos — na A m azônia e
nas vertentes da longa serra atlântica. A floresta am azónica é a
mais vasta do m undo no seu tipo. É conseqüência de um clima
quente com precipitações de 2.000 a 3.000 mm anuais. V ista do
alto, ostenta im pressionante continuidade; vista de perto, reve­
la-se com três andares, que são resultado não apenas das condi­
ções de relevo mas, sobretudo, do regim e das inundações.
O mais alto, floresta de terra firm e, encerra espécimes de
30 m a 70 m de altura, entre os quais se aponta o castanheiro
(Bertholetia excelsa), o caucho, o acapu, a tatajuba, o louro,
a itaúba am arela, a m aacúba, a andiroba e a sapucaia.
O segundo andar, floresta da várzea, abriga espécimes menores,
entre os quais a seringueira (Hevea brasiliensis), o pau-m ulato
e espécies várias dos generös Sapium , Viróla, Rheedia, etc..
O terceiro, floresta de igapó, sem pre alagada, reúne espécimes
de pouca altura (até 20 m), onde se mesclam palm eiras e
plantas rasteiras e trançadas. A í é que mais fechada é a vege­
tação am azônica. C ontrastando, no meio da grande m ata ponti-
lham abertas de campo.
48

A floresta atlântica ocupava o litoral desde o Rio Grande


do Norte até o Rio Grande do Sul. Foi, porém, muito devas­
tada, para plantio de cana e de café e fornecimento de lenha
e carvão. Por isso, já não se apresenta contínua. É espessa, de
verde intenso e perene, tem árvores de 30 m, e é rica em epífitas
e trepadeiras. Abundam madeiras de lei.
O babaçual cobre larga extensão dos Estados do Maranhão
e Piauí, ocupando terras planas entre o litoral e o planalto.
O babaçu ali convive com a carnaúba e o açaí.
A caatinga espraia-se por toda a grande região do Nordeste
árido, nos Estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia (vale do S. Francisco)
e certas regiões do Piauí. Tem aspecto vário, distinguível em
subtipos. Nela dominam as cactáceas e bromeliáceas, inclusive
o caroá. Reverdesce a caatinga na estação chuvosa, e mostra-se
branquicenta e desolada na seca. erguendo ao céu os cactos
espinhudos. Aí resistem a carnaúba e a oiticica. Chama a aten­
ção na caatinga sua capacidade de recuperação. Assim, gre-
tada e ressequida, agradece a bênção da chuva deitando novi­
dades nos caules e ramos, e acelerando estranhamente um ciclo
vegetal reprodutivo.
O campo, nome genérico da vegetação rasteira e herbácea,
aparece um pouco por toda a parte, mas abre extensas clareiras
no Rio Grande do Sul ou no Planalto Meridional (Paraná e
Mato Grosso). Forma gordas pastagens.
O cerrado é a vegetação do Centro-Oeste, a cobrir quase
todo o imenso Planalto Central e os tabuleiros de outras regiões.
Tem primazia em M ato Grosso e Goiás, estende-se a Minas
Gerais, oeste de S. Paulo e interior do Paraná, e reaparece na
Bahia, em alguns Estados nordestinos e no Território do Rio
Branco. Como a caatinga, varia de aspecto, mas uma de suas
constantes é a presença de árvores espaçadas, de pequeno porte
49

e retorcidas. Aqui e ali se divisa um «buriti perdido», um dos


quais terá inspirado a página imortal de A f o n s o A rin o s em
Pelo Sertão.
O coqueiral estende-se pela costa, do Ceará ao Espírito
Santo, predominando nele a palmeira vulgarmente chamada
coco-da-Baía. Enriquece e caracteriza a paisagem litorânea nor­
destina, onde se mistura com os cajueiros.
Entre a floresta atlântica e a do vale do Paraná, alarga-se
o pinheiral imenso, mata aberta em que domina o pinheiro do
Paraná (Araucaria brasiliensis), alto de 15 a 20 m, abrigando
no sub-bosque, entre os arbustos, a erva-mate. Estão presentes
ainda o cedro, o ipê e a imbuía.
O pantanal corresponde à depressão do Centro-Oeste, na
bacia do Paraguai. A vegetação é mescla de campo, mata e
pastagem, que ficam alagadas boa parte do ano. Daí o
nome (2).

5. SOLO ARÄVEL

É relativamente pequena a área de solos ricos e bons para


a agricultura. Ainda assim, está longe de ser aproveitada, e mais
longe ainda de ser bem aproveitada. Predomina a cultura exten­
siva, e ainda se vêem práticas de lavoura contemporânea dos
faraós.
São estas as porcentagens de cobertura do solo: floresta,
60,8% ; savanas, 25,9% ; pastagens, 11% ; o restante, culturas.

(2) O erudito de boa memória, que identificar o que até aqui foi
dito com o que se lê na correspondente parte do artigo Brasil da
enciclopédia portuguesa Focus (Livraria Sá da Costa, Lisboa, fase. 11,
pp. 512 ss.) não deve concluir por plágio: o autor lá e aqui é o mesmo.
Por isso, pôde agora modificar e adaptar seu texto.
4
50

Nada temos comparável ao vale do Mississipi, à Beauce fran­


cesa, à planicie danubiana da Hungría ou às Terras Negras da
Ucrânia.
Nosso melhor e mais fecundo solo é constituido pela terra
roxa, de origem vulcânica, particularmente rica em fósforos.
É mais frequente no oeste de S. Paulo e no norte do Paraná,
onde recentemente se deu um impressionante surto de progresso,
com deslocação e fixação de migrantes e rápido crescimento de
cidades pioneiras, como Londrina ou Maringá.
Como sempre acontece, o florescimento agrícola arrastou o
desenvolvimento industrial. Apareceu então nessas regiões,
primeiro em S. Paulo, depois no Paraná, uma sociedade nova,
feita inicialmente de adventicios, sem raízes, com todas as
características de tais agrupamentos humanos. E com isso assi­
nalamos uma influência do meio físico sobre a cultura.
Teremos assinalado outra, se lembrarmos que a existência
de boas e extensas pastagens nos diversos «campos gerais», que
pontilham o revestimento vegetal do Brasil, sugeriram e susci­
taram a criação de gado, com o conseqüente tipo de sociedade
que daí resulta. O Mediterrâneo Pastoril do Nordeste, que
propiciou a criação extensiva e nómade, é um exemplo.

6. SUBSOLO

Particularmente rico é o subsolo brasileiro. O ouro encon­


trado nas Minas Gerais, que abundou nos sertões do Tripuí, foi
motivação das Bandeiras. Ele povoou a região da Mantiqueira,
iniciou um novo ciclo na economia do país e condicionou uma
civilização característica, a «civilização do ouro», que teve seu
apogeu na segunda metade do século XVIII, inclusive com um
movimento artístico sem par, assinalado pelas igrejas mineiras.
51

pelas obras do Aleijadinho, pela música barroca dos mulatos


ouropretanos e diamantinenses e pela poesia arcádica da mal
chamada «Escola Mineira» (*).
Depois do ouro, o diamante, com o esplendor do antigo
Arraial do Tijuco e a aventura de Chica da Silva, a mulata·
•rainha.
Depois, o ferro, o manganês, o alumínio, os minerais ató­
micos.
O Brasil tem uma riqueza infinita em minério de ferro,
embora esteja ainda em início a exploração. Em Minas Gerais
se acha um minério de alto teor férrico, sem igual no mundo.
Calcula-se o total do Estado em 38 milhões de toneladas, com
teor de Fe acima de 30 %. Inexploradas, encontram-se jazidas
em Mato Grosso, no Morro do Urumum, calculadas em
1.300.000. 000 toneladas de minério, com teor médio de 50%
de Fe. Próximo daí, existe material ferruginoso de cerca de
50.000. 000 de toneladas, sem amostragem sistemática.
Iríamos longe se quiséssemos descer a detalhes, nem este
é o fim do presente capítulo, que pretende apenas chamar a
atenção para esse aspecto do meio físico brasileiro e para as
repercussões que teve ou pode vir a ter nas sociedades organi­
zadas ou por organizar.

7. INFLUÊNCIAS DO MEIO FÍSICO

Já vimos, subscrevendo tuna feliz observação de J orge


D ias , que a acção do meio físico se faz sentir antes nas cul-

(*) V. o cap. «Vinte anos de Ouro Preto e a crise actual da cul­


tura brasileira».
52

turas regionais que na cultura nacional. Melhor: atinge a cultura


nacional por refração. O caso do Brasil não foge à regra.
No entanto, certas particularidades de nossa formação cul­
tural, certos defeitos do nosso desenvolvimento, o atraso em
que jazem vastas áreas do Brasil se devem à extensão do terri­
tório e à conseqüente dificuldade de comunicações. Foi
C a p i s t r a n o quem disse e descobriu que não se podia estudar
a história do Brasil sem se estudarem os caminhos de povoa­
mento (4). E, na realidade, a formação do país foi segregada:
fundaram-se vários núcleos, que só muito mais tarde se puse­
ram em contacto. Primeiro desses encontros foi o que se deu
entre os Bandeirantes que desciam e os criadores de gado do
Nordeste que subiam o Rio São Francisco.
[Desde já e a propósito vale observar que, apesar da for­
mação segregada, o resultado foi uma incontestável e miste­
riosa unidade nacional].
A chamada «civilização mineira» em boa parte se explica
pelo isolamento da região e dos próprios núcleos interiores,
determinado pelo relevo montanhoso e áspero. A Mantiqueira
e a floresta atlântica (do lado do Espírito Santo) fizeram com
que Minas vivesse a sua vida e sofresse a busca aventurosa do
ouro, o fastigio e a decadência rápida, colhendo com isso uma
experiência moral e espiritual que se retrata na psicologia dos
seus filhos, desconfiados, céticos, avaros de entusiasmos fáceis,
amantes da liberdade, tardos em se empenharem, aferrados ao
que se apegam, esse homem que «dá um boi para não entrar na
briga e uma boiada para não sair dela».(*)

(*) Cf. Capistrano db Abreu, Caminhos Antigos e Povoamento


do Brasil, Bk>, 1930.
53

M anuel Diegues J únior, um dos nossos melhores soció­


logos-historiadores, pôde dividir o Brasil em nove «regiões cul­
turais», tomando por base o meio físico e o processo de ocupação
humana. Caracteriza sumariamente tais regiões em Etnias e
Culturas do Brasil (3.® ed.. Rio, 1963, pp. 33-40), para desen­
volver longamente o estudo delas em Regiões Culturais do
Brasil (Centro Bras. de Pesq. Educac., INEP, MEC, Rio, 1960,
pp. 3-476).
Ao caso de Minas Gerais poderíamos acrescentar, como
exemplo, o do Rio Grande do Sul, que também ilustra a influên­
cia do meio físico, o pampa, na chamada «civilização do
cavalo». Lembraríamos então que o meio ai sugeriu e facili­
tou o desenvolvimento de uma cultura local, fixadora e assimi-
ladora de heranças que se prendem aos índios Guaicuru e prin­
cipalmente aos beduinos (via ocupação árabe no sul de Portu­
gal), como tão bem o demonstrou M a n u e l i t o d e O r n e l l a s . ( s)
Através das culturas regionais, como se disse, chega filtrada
e já remota a influência do meio físico na cultura nacional, mas
não há negar que ele esteve e está presente, e deve ser invocado
para ajudar a explicar vários fatos, desde a indumentária até
à literatura ou as artes plásticas

(s) Cf. Gaúchos e Beduinos, 2.a ed., José Olímpio Edit., Bio 1957.
•h !:τ )γ.·μ ti l - γΑ ι
' Κ . )
\
o ■.

CAPITULO IV

A HERANÇA INDIGENA

Não era desabitada a nova terra que os portugueses des­


cobriram do outro lado do Atlântico. L á se achavam povos,
denominados índios a partir do equívoco de Colombo ao
aportar às ilhas de além-mar, que cuidou pertencerem à sonhada
e desejada índia. Os índios brasileiros ocupavam toda a costa e
foram, de par com a natureza tropical, o primeiro objecto de
curiosidade do colonizador. Igualmente, foi com eles que se
estabeleceram os primeiros contactos culturais, de que deviam
nascer influências recíprocas.
Sabemos que foi longa mas precária a convivência dos
europeus lusos com os selvagens da costa atlântica, e que logo
foi necessário apelar para a mão-de-obra africana a fim de
atender à demanda da lavoura de cana e da criação de gado.
Os indígenas adaptaram-se mal às tarefas a eles impostas, e
pouco a pouco se foram internando os que não apreciaram o
encontro com a gente branca vinda do m ar indevassado e até
então seguro. Fora, é claro, os que tombaram em luta ou
simples extermínio.
Do ponto de vista que nos interessa, o problema que se põe
é a transculturação e as impregnações da cultura local na
56

cultura transplantada. Mas não podemos fugir a outra indaga­


ção, que acode ao espirito de qualquer pessoa não desprovida
de senso histórico e de curiosidade etnológica. Referimo-nos à
questão do povoamento da América pré-colombiana.

1. ORIGEM DO HOMEM AMERICANO

A origem do homem americano tem dado matéria a longas


controvérsias, que até hoje não serenaram de todo. Foram
levantadas diversas hipóteses, inclusive, como se sabe, do autoc-
tonismo do homem nessas bandas, de acordo com as idéias
poligenistas relativas à nossa espécie. Já ninguém hoje sustenta
a sério tal posição, sobretudo depois do tiro de misericórdia
dado por P a d b e r g - D r e n k p o l na conclusão de seus estudos e
pesquisas sobre o «homem de Lagoa Santa».
Teoricamente se situam em duas posições os especialis­
tas: para uns, todos os índios americanos provêm de uma
mesma corrente povoadora; para outros, foram várias as entra­
das, em lugares diferentes e épocas diversas. Dois grandes
nomes, A l e s H r d l i c k a e P a u l R i v e t , respectivamente, lide­
ram as duas posições.
Sustenta H r d l i c k a (*) que os indígenas, de raça mongo-
lóide, vieram da Ásia e penetraram no continente pelo atual
Estreito de Bhering, outrora ura istmo a ligar o extremo norte-
•oriental da Ásia ao extremo norte-ocidental da América.
O grupo primitivo se espalharia pela vastíssima terra e, ao
cabo de muitos séculos, ter-se-ia diversificado intensamente,
a ponto de produzir em alguns pontos, do México ao Chile, ao

(*) «The genesis of the American Indians», in Proceedings of the


Nineteenth International Congress of Americanists, Washington, 1917.
57

longo da costa pacífica, alguns momentos altos e soberbos de


cultura e civilização.
P a u l R i v e t , sábio da melhor categoria, diretor do Musée
de 1’Homme de Paris e ainda em vida considerado o maior
sul-americanista, aceita a hipótese anterior, mas acrescenta que
outras ondas de imigrantes golfaram na América em tempos
pré-históricos, sempre pelo lado ocidental, já que o «Pacífico
foi um traço de união entre o mundo asiático, a Oceania e o
Novo Mundo». Observa que o destino da América nos tempos
históricos repetiu seu destino na época pré-histórica, já que foi
sempre ponto de convergência de povos e raças variadas, que,
caldeados, criaram aqui culturas e civilizações independentes.
Vale a pena ler o livro-síntese de R i v e t , traduzido por um de
seus assistentes, P a u l o D u a r t e : A s Origens do Homem Ame­
ricano, Editora Anhembi, São Paulo, 1958.
Ensina R i v e t que, além dos mongolóides entrados pelo
Alasca, vieram australianos e malaio-polinésios de tipo mela-
nésio, sem falar nos esquimós, de origem uraliana, que utili­
zaram o caminho do Oceano Artico. Estas conclusões se fun­
dam em bases antropológicas, culturais e lingüísticas.
Mais recentemente, S a l v a d o r C a n a l s F r a u , valendo-se
de dados paleogeográficos, antropológicos, etnográficos e lin­
güísticos, entende que se filiam a quatro grupos os habitadores
da América pré-histórica: dolicóides primitivos de cultura infe­
rior, canoeiros mesolíticos, braquióides de cultura média e
polinésios de alta cultura. É o que se acha justificado em
Prehistoria de América (2).(*)

(*) Edit. Sudamericana, Buenos Aires, 1950. — A primeira edição


do livro de Rivet é de 1943.
58

Pode-se, pois, ter como seguro que o povoamento da Amé­


rica se deu originariamente por migração, vindo o homem pré-
-colombiano de pontos diferentes, com predomínio dos mongo-
lóides através do Estreito de Bhering. De qualquer modo, só
no fim do século XV é que lá se fixaram europeus.
Quanto às datas prováveis de imigrações pré-colombianas,
desentendem-se os entendidos. Alguns recuam a milênios a
primeira leva, outros a colocam relativamente próxima, 8 a 10
milênios.
Recentemente, com algum alarido (3), se iniciaram explo­
rações na Gruta do Virador, no vale do Rio Caí, Rio Grande
do Sul. Aí se acham riscos e desenhos, alguns dos quais pode­
riam ser sinais de escrita, litóglifos (análogos aos inúmeros
já encontrados na índia. China, Austrália, em pontos da Oceânia
e em toda a América). Datariam de 1.000 anos, segundo
alguns, 8.000, segundo outros mais afoitos, talvez desconhece­
dores de que M a l l e r y , S t e w a r d e M a r t í n e z d e l R io têm
longamente estudado os litóglifos americanos, na melhor das
hipóteses tradutores de idéias e suscitadores de palavras e frases,
nunca alfabeto, no sentido técnico da palavra, conforme salienta
a maior autoridade no assunto J a m e s G. F é v r i e r (4), esclare­
cendo, ainda, que ditos sinais tanto aparecem na infância da
humanidade como entre os primitivos contemporâneos.
Por outro lado, os especialistas situam entre os séculos XII
e XV o esplendor das civilizações pré-colombianas.

(*) V. «Jornal do Brasil», Rio, 11-9-69, 2.° cad., p. 8.


(*) Histoire de VEcriture, Payot, Paris, 1948, ps. 37 e 38.
59

2. OS INDÍGENAS BRASILEIROS

Quando se fala em índio brasileiro e sua influência na


nossa cultura, a tendência é pensar que se trata de um só
grupo, homogêneo, que se tenha posto em contacto com o civi-
zador, oferecendo, em conseqüência, alguns elementos de seu
estilo de vida.
Isto não está muito longe da verdade, mas também não é
certo. Não está m uito longe da verdade, porque só com um
povo mantiveram os portugueses contactos prolongados iniciais,
e talvez, por isso, só desse povo tenham ficado remanescentes
na cultura nacional. E não é certo, porque de facto pertencem
a muitos grupos étnicos os indígenas brasileiros, e seus traços
culturais, diversos, mesclam-se diversamente nas culturas regio­
nais.
A primeira classificação dos nossos índios foi elaborada
pelos missionários jesuítas, que a receberam de seus próprios
catecúmenos. É a divisão bipartida em tupis e tapuias.
Apesar de não ter qualquer valor, pois enquadra muitas
e diferentes famílias sob o rótulo genérico de tapida, «bárbaro»,
continua a ser repetida até hoje por muita gente essa classi­
ficação simplista.
Na primeira metade do século XIX, M a r t i u s apresentou
nova distribuição dos índios, agora resultado de observações
mais sérias. Encontrou então nove grupos.
Já no fim do século, K a r l v o n d e n S te in , estudando
melhor as línguas indígenas, critica e reforma a classificação de
M a r t i u s , falando na existência de oito grupos: Tupi, Jê, Caribe,
Nu-Aruaque, Goitacá, Pano, Miranda, Guaicuru. Mais tarde,
P a u l E h r e n r e i c h , companheiro de K a r l v o n d e n S te in na
segunda viagem deste ao Brasil, sugeriu nova classificação, que
tem servido de base a todas as que se lhe seguiram. Fala em
60

quatro grupos fundamentais: Tupi-Guarani, Aruaque, Caribe


e Jê, este mal caracterizado, porque engloba povos diferentes.
R o d o l f o G a r c i a (*) acrescenta aos quatro grupos diversos
outros: Cariri, Pano, Goitacá, Guaicuru, Bororó, Carajá, Nham-
biquara. Tucano, Tacana, Peba, Cahuapana, Catuquina e Macu.
R i v e t reconhece quase todas estas famílias, e admite ainda
outras: Huari, Mura e Xavante.
Os índios Caingangue, do oeste de S. Paulo, Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul (em alguns pontos chamados
Coroado e Bugre), estão de novo capitulados entre os Jê, e sua
língua vem, desde Abril de 1967, sendo objecto de estudo cien­
tífico, no Museu Nacional.
A propósito, diga-se que estas classificações, ainda não
definitivas, a não ser para três famílias, Aruaque, Caribe e Tupi-
-Guarani, se têm baseado quase exclusivamente na língua dos
respectivos povos, o que constitui critério unilateral, mas, por
enquanto, único, à falta de outros suficientemente seguros.
Os índios com que os portugueses tiveram contacto na
costa todos sabem serem os Tupi, que falavam uma língua, de
igual nome, a qual veio a tomar-se <díngua geral», não só
porque foi o instrumento da catequese, mas também porque
foi usada por vários outros povos não tupis, que ora se torna­
ram bilingües, ora esqueceram de todo a própria língua.
Entre parênteses, cumpre observar que é inadequada a
expressão «clíngua tupi-guarani», a rigor só explicável pela rima,
como no poema de C a r l o s D r u m m o n d d e A n d r a d e . Tupi
é uma língua, e guarani outra, falada no Paraguai e adjacências,
inclusive por uma tribo do sudoeste de Mato Grosso. Estão
uma para a outra mais ou menos como o português c o

(») «Etnografía Indígena», in Dicionário Histórico, Geográfico e


Etnográfico do Brasil, vol. I, Rio, 1922.
61

espanhol. O que há é uma família tupi-guarani, representada


por índios que se encontram hoje na Amazônia e no vale do
Paraguai e do médio Paraná.
Temos, pois, três famílias e um grupo fundamentais: Tupi-
-Guarani, Aruaque, Caribe e Jê.
Os mais adiantados eram os Aruaque: praticavam agricul­
tura sedentária e variada, cultivando mandioca, milho, batata e
tabaco; vestiam saiote de algodão tinto («initi») e adornado;
produziram uma cerâmica e uma cestaria de notável valor artís­
tico. Hoje se costuma atribuir à tribo dos Aruã, pertencente à
família, os esplêndidos exemplares que nos chegaram da famosa
«cerâmica marajoara», assim como a tribos consanguíneas per­
tence o que de melhor figura nos museus arqueológicos nacionais
e estrangeiros relativos às coisas brasileiras.
Foram os Aruaque batidos pelos Caribe, que os reduziram
a pequenas áreas e lhes ficaram com as mulheres, do que resul­
tou um curioso fenómeno lingüístico nas Antilhas: os homens
falavam uma língua caribe e as mulheres e crianças uma língua
aruaque, situação que talvez ainda se possa encontrar em
S. Domingos e em Honduras (meus informes têm 45 anos).
Os Caribe, habitantes outrora de vasta região ao norte
do Rio Amazonas, eram temidos guerreiros, construíam aldeias
em forma circular, com folhas de palmeira a cobrir as casas,
depilavam-se completamente, andavam nus, tinham família
matrilinear e davam ao tio materno autoridade de pai; fabri­
cavam máscaras, de madeira ou de palha, para danças e festas
rituais; cultivavam mandioca, milho e feijão, usando na lavoura
a enxada de pau. Navegadores, construíam boas canoas e
empregavam remos.
Os Jê eram e são os mais atrasados: quase não praticavam
a agricutura, só conhecendo escassamente o milho; alimenta­
vam-se de caça e pesca, mel e frutos selvagens, quando não de
62

coisas apresadas a outras tribos depois de seus ataques, aliás


frequentes e habituais; muitas tribos resumiam num anteparo
a casa; não conheciam a tatuagem, e só usavam anzol as tribos
que tiveram contacto com os Tupi.

3. TRAÇOS CULTURAIS DOS TUPI

Os índios tupis ocupavam toda a costa, da Ilha de Marajó


à Lagoa Mirim, e espalhavam-se pelo sul do Rio Amazonas,
pontilhando também os vales do Madeira, Tocantins, Xingu,
Tapajós, até as nascentes do Arinos, no centro de Mato Grosso.
Sua atividade econômica cingia-se quase que só à caça,
pesca e coleta, praticando agricultura rudimentar apenas algu­
mas tribos, que plantavam mandioca. Fumavam tabaco e conhe­
ciam bebidas excitantes, entre as quais o guaraná, no Amazonas.
Como actividades artesanais, praticavam a cestaria, com fibras
vegetais, e a tecelagem, com algodão silvestre.
Suas aldeias eram constituídas de tabas ou malocas, grupo
de quatro e sete casas em torno de um terreiro quadrangular,
a ocara. Construíam com troncos de árvores, amarrando as
traves com cipó e cobrindo com folhas de palmeira. O inte­
rior não tinha divisões, e nele só se viam toscos recipientes de
barro, assentos rústicos e redes de algodão.
Cortavam o cabelo em coroa-de-frade, usando para tanto
cristal de rocha ou conchas. Tatuavam-se e pintavam-se, com
urucu e jenipapo. Armavam-se de arco e flecha e tacape, a
que se acrescentará, em algumas tribos, a lança rústica e a
zarabatana.
Tinham ideia de um Ser superior, Manã, e de divindades
inferiores, entre as quais o Tupã, ou Tupá. Guardavam a tra­
dição do dilúvio e tinham rudimentos de astrolatria, venerando
63

o sol, Guaraci, e a lua, Jaci. Conheciam ou cultuavam, além


disso, génios ou duendes locais, como o Jurupari, o Anhangá, a
Iara, o Curupira ou a Caapora.
De seguro pouco se sabe de sua organização social: o pajé
era a autoridade máxima, reunindo funções de sacerdote, adivi­
nho e curandeiro; o morubixaba, cercado pelo conselho de
anciãos, dirigia politicamente a tribo.
Tinham uma língua complexa e rica, do tipo polissintético
e incorporante, que foi logo estudada pelos jesuítas, sendo até
hoje a melhor gramática a que elaborou A n c h ie ta , homem
muito bem aparelhado para o mister. O vocabulário era bas­
tante rico, e foi engrossado, como era natural, por consideráveis
achegas lusitanas. Do mesmo modo que aportuguesamos vozes
indígenas, eles tupinizaram palavras portuguesas, como cruz,
que se tomou curuçu ou curuçá.
Escusado será dizer que esses traços culturais dos diversos
grupos se vão atenuando à medida que recebem influência,
directa ou indirecta, dos brancos.

4. O QUE OS ÍNDIOS NOS LEGARAM

Relativamente pequena foi a herança indígena na cultura


resultante nacional brasileira. A razão se acha não apenas na
precariedade dos contactos, embora longos, mas também no
estado de atraso de sua cultura.
Sabemos que floresceram verdadeiras (e importantíssimas)
civilizações entre os índios americanos. Porém isso se deu do
lado do Pacífico. Do lado de cá, expressão de cultura mais alta
só a cerâmica de Marajó, tardíamente encontrada, como sinal
de um povo desaparecido e até agora não identificado com
certeza. Claro que os espécimes de tal cerâmica (a que se ajunta
64

a original Tapajó, por exemplo) não influíram na formação


da cultura brasileira: serviram, recentissimamente, de sugestão,
modelo ou tema de artes decorativas actuais.
Os índios que não fugiram, ou que não morreram vítimas
de perseguição ou de doenças novas, civilizadas, foram absor*
vidos quase todos pela cultura portuguesa. A maior parte dos
vestígios e das influências se fazem notar e sentir, como disse­
mos, nas culturas regionais, a da Amazônia, por exemplo, onde
os aborígenes trabalharam eficazmente para a implantação da
lusitanidade, por eles assimilada.
Não tinham os índios tupis força para resistirem à cultura
portuguesa; os Jê muito menos; os Aruaque estavam batidos
e em declínio; os Caribe, já poucos e só recentemente desco­
bertos, não se achavam em melhores condições do que os Tupi.
Natural é, portanto, que pouca coisa tenha, por fim, restado
dos índios na cultura nacional. O mais importante contributo
vamos encontrá-lo na língua.
Com efeito, enriqueceu-se o português com um grande
número de palavras advindas do tupi (das outras línguas foram
pouquíssimos os empréstimos, e ainda assim muito dificilmente
identificáveis, quanto à origem de cada palavra). São «nomes
de coisas», situam-se naquela área do vocabulário que chama­
mos «cultural», por oposição à «fundamental». Forçoso era
que, ante espécimes diferentes, da flora e da fauna, diante de
acidentes geográficos desconhecidos, aceitassem os portugueses
e luso-descendentes os nomes que lhes davam os familiarizados
com tais coisas.
Principalmente em quatro sectores do léxico se fez sentir
a influência tupi: zoonímia, fitonímia, toponimia e antroponímia.
Exemplificando: capivara, jacaré, cuati, curió, gambá, jaburu,
jararaca, lambari, saúva, tanajura, tamanduá, tatu, urubu, sabiá;
capim, buriti, jabuticaba, peroba, jacarandá, aipim, caju.
65

taquara, maracujá, pitanga, mandioca; Andaraí, Brocoió,


Catumbi, Guanabara, Carioca (rio), Irajá, Ipanema, e, saindo
do Rio, Niterói, Bagé, Butantã, Aracati, Borborema, Taubaté,
Paranapiacaba; A rad, Cotegipe, Jurad, Jurema, Graciema, Jucá,
Piragibe.
Note-se que muitos antropónimos e topónimos representam
influência indireta através da literatura: Iracema, Moacir, Peri,
Tabajara. Acrescente-se que, nestes casos, não raro a palavra
foi cunhada por Alencar, nada tendo, pois, com o índio. E mais,
que há centenas de topónimos puramente artificiais, como é
o caso de Ibicui (perto de Mangaratiba), até 40 anos chamado
Praia Mansa.
Fora da língua, ficaram-nos impregnações indígenas em
diversos hábitos e usos, sobretudo do interior. O mais impor­
tante deles é o chamado «complexo da mandioca» na alimen­
tação, a que se deve acrescentar o milho: curau, pamonha, etc.
Tem origem indígena muita coisa da cestaria nacional,
diversos utensílios de barro, o coco de beber água, a cabaça.
Igualmente, o banho de rio, o descansar de cócoras, o pé des­
calço, e a rede, tão importante e de tão largo uso.
Há uma outra influência indígena muito visível e muito
actuante, não só em todo o interior mas também nas cidades,
grandes e pequenas, a qual, no entanto, não tem sido identi­
ficada. Refiro-me ao total descaso pela habitação, reduzida
a mero e precário abrigo contra intempéries. Comparada a casa
de nossa gente pobre com a da gente pobre portuguesa, por
exemplo, ressaltam diferenças abismáis: a nossa é feia, tosquís-
sima, despojada, simplicíssima e absolutamente desconfortável;
a outra tem trato, adornos, equipamento, arte. Aliás, creio que,
no caso, a impregnação índia se juntou com a africana para um
resultado comum.

s
CAPÍTULO V
A HERANÇA AFRICANA

Depois do balanço sumário das culturas indígenas e de


sua influência na cultura nacional, cabe fazer o mesmo com
relação às culturas negro-africanas.
Hoje em dia entraram em grande moda os estudos africanos.
Tanto no Brasil como fora. Mas nem sempre foi assim.
De negligência e descaso é que se queixavam, há sessenta e
oito ànos, dois notáveis brasilistas, S ílv io R o m e r o e J o ã o
R ib e ir o : «Entre nós, alguns espíritos inteligentes, honestos e
desabusados têm já estudado os nossos índios sob vários aspec­
tos. Dos negros é que ninguém se quis jamais ocupar, cometen­
do-se, assim, a mais censurável ingratidão de toda a nossa his­
tória» 0).
De então para cá muito mudou a situação. Na esteira de
N in a R o d r i g u e s e A r t u r R a m o s numerosos pesquisadores
e ensaístas se entregaram à tarefa de descobrir que espécies de
negros vieram para o Brasil, onde se fixaram, como viveram e
como actuaram no complexo cultural resultante da colonização
dessa parte do Novo Mundo pelos portugueses.(*)

(*) Compêndio de História da Literatura Brasileira, Alves, Rio,


1906, p. XLI.
68

Tais estudos sempre foram dificultados pela escassez de


dados relativos à escravidão. A o certo não se sabe quantos
pretos transmigraran^ ao longo de três séculos de tráfico, assim
como não se pode sair do terreno das probabilidades no que diz
à origem dos negros escravos.

1. POVOS AFRICANOS

São de raças e etnias diversas os povos que habitam o


grande continente posto entre o Mediterrâneo, o Atlântico e o
Indico. Desde logo se estabelece uma distinção importante entre
África Branca, ao norte do Saara, e África Negra, ao sul. Mas
temos que acrescentar os «pigmeus», das regiões desérticas do
Kalahari e da floresta virgem do Centro, os mongolóides
hotentotes, de singular morfología, e os bosquímanos, habitantes
do nordeste da África do Sul. Isto sem falar dos numerosos
europeus deste último país e da África Portuguesa.
Aqui adoptamos a classificação de H o m b u r g e r (*), geral­
mente aceita, que distingue, ademais, na África Negra vários
povos, com sua respectiva língua, sendo de destacar os bantos,
pela extensão territorial e pelo parentesco idiomático.
Especificando mais, D e n i s e P a u l m e (Les Civilisations
Africaines, 5 ème. ed., PUF, Paris, 1969, ps. 18-21) encontra
as seguintes etnias na África Negra: mélano-africanos (sudane­
ses, guinéus, congoleses, nilóticos, sul-africanos), etíopes (abissí-
nios, amaras, tigrais) negritos, bosquímanos e hotentotes.
Esses diversos povos encontram-se hoje, como se encon-

(a) Les langues négro-afrtcaines et les peoples qui lea patient,


Payot, Paris, 1941, ps. 9-14.
69

travam há dois, três ou quatro séculos, em graus muito vários


de cultura, desde coletores de frutos, sem habitação e sem
cozinha, até tribos com agricultura sedentária e múltipla, habi­
tação, metalurgia e cerâmica útil e ornamental.
Muito diferenciadas também são as línguas, exclusive a
grande família banta (de falares muito aparentados), embora o
citado H o m b u r g e r pretenda provar que as centenas de idiomas
e falares da Africa Negra são, historicamente, formas tardias
do egípcio antigo (Op. cit., pp. 302-337).
Convém igualmente assinalar que muitos monumentos
demonstram que em regiões atrasadas da Africa moderna flores­
ceram outrora civilizações importantes e altas, como o atestam,
por exemplo, os terraços e canais de irrigação encontrados na
Nigéria Oriental ou, na mesma região, a ponte de granito sem
cimento, que os actuais habitantes não saberiam construir.
As pinturas rupestres que, com encantamento, se contemplam
nos rochedos do Sul argeliano bem como na África Austral
atestam uma mesma cultura apurada, anterior, todavia, à intro­
dução da escrita no Norte africano.
Como se vê, mais conjecturas do que certezas, mais caminhos
do que praças, mais incitamentos à actívidade pesquisadora que
conclusões seguras. Depois de tantas investigações, a Africa
ainda é um mistério e uma interrogação.

2. A ESCRAVATURA

Desde o alvorecer dos tempos modernos e como conse­


qüência da expansão marítima portuguesa, foram os africanos
aprisionados ou comprados, para atender às necessidades de
mão-de-obra da Metrópole e das colônias. No século X VI já
havia tal quantidade de escravos negros em Portugal, que
70

G a r c i a d e R e s e n d e temia que eles viessem a ultrapassar em


número os brancos. Supõe-se que, desde a fundação da Capita­
nia de Angola (1571), saíram de 9.000 a 12.000 escravos mensal­
mente, para abastecer o mercado europeu, norte-americano e
brasileiro.
Ninguém pensa, é claro, que a escravidão seja exclusiva
de Portugal ou de povos colonizadores. Todos sabem que ela
amplamente existiu no mundo antigo, oriental e greco-latino,
assim como foi praticada e é praticada na África, em tribos mais
fortes ou vencedoras ou consideradas superiores.
O certo é que houve larga escravidão negra no Brasil (já
que a índia foi mal sucedida e combatida pelos jesuítas), a par­
tir de 1550 até oficialmente 1850, quando «cessou» o tráfico.
Nestes três séculos teriam entrado no Brasil 3 500 000 escravos,
o que mostra, desde logo, a importância que viriam a ter no
complexo cultural posterior.
Releva notar que os negros eram buscados na África a
pontos de comércio certo, empórios, situados em Angola e
depois, também, em Moçambique, a «Contra-Costa». Nesses
empórios, os pretos se misturavam, naturalmente, e devido à
depressão em que viviam tinham enfraquecidos seus traços cul­
turais, que amalgavam com outros, igualmente enfraquecidos.
Resultou daí que os negros desembarcados no Brasil já não
representavam culturas puras, sendo que alguns até já falavam
um português «cassanje», parecido com o daqueles pretos das
peças de G i l V i c e n t e . Acrescente-se que não raro os merca­
dores portugueses da África compravam escravos a chefes
guerreiros, que os tinham como condenados à morte, o que
agrava aquele estado de depressão e de miscigenação cultural a
que nos referimos.
Por mais difícil que seja apurar os factos (os documentos
estão esparsos, e nem sempre catalogados, no Arquivo Ultra-
71

marino de Lisboa e nos muitos arquivos e repositorios pelo


Brasil fora), é certo dizer-se que predominaram os bantos,
provindos de Angola e do Congo, em quase toda a costa e ñas
regiões de mineração, ao passo que se concentraram na Baía os
sudaneses, muito mais vários, culturalmente mais adiantados e
até irrequietos, como os aussá, de religião islâmica, capitães da
rebelião baiana de 1835.
A r t u r R a m o s , ainda autoridade maior no assunto, distri­
bui em três grupos as culturas negras importadas no Brasil:
sudanesas (iorubás, daomés, fanti-achanti), guineano-sudanesas
islamizadas, ou negro-maometanas (peul, mandinga, aussá, tapa,
borém, gurunsi) e bantas (angolo-congolesas e Contra-Costa).
Segundo o mesmo autor, seriam os iorubá os representantes
da mais adiantada cultura negra relativamente pura introduzida
no Brasil.3

3. TRANSCÜLTURAÇÃO

Durante os três séculos de tráfico se foi estabelecendo, e


cada vez mais, íntima convivência entre negros e afro-descen­
dentes e brancos e luso-descendentes. Nas lavouras, na minera­
ção, na criação de gado, no interior das casas, no recesso dos
lares. As cozinheiras, lavadeiras, engomadeiras e mucamas, a
mãe-preta e os moleques conviveram dia por dia com «sinhôs»
e «sinhás». A mãe-preta criou os filhos dos brancos, ensinou-
lhes a cantar e a rezar, contou-lhes histórias, do bicho-papão ou
da moura-torta. Estabeleceram-se milhares e milhares de
uniões livres, desde aquelas celebradas por J o r g e d e L im a em
«Essa Nega Fulô», ou aquelas do tipo Xica da Silva, em Diaman­
tina, até as inúmeras, sem nome nem tribo, que justificam o
adágio «Deus fez o homem e o português o mulato».
72

Nessa longa e intima convivência, o negro se lusitanizou


e se abrasileirou, mas também contribuiu muito para a cultura
mestiça.
Misturou grandes doses de suas crendices, de seus feitiços,
de suas concepções religiosas, de seus temores, maus-olhados
e amuletos ao catolicismo tradicional. Identificou em certos
santos católicos deuses seus africanos. Na Baía primeiro, no
Rio e em outros lugares depois, reviveu cultos e sua liturgia,
encampando conceitos, nomes, atitudes e ritos do catolicismo
romano, produzindo, num caso e noutro, multiplicados fenóme­
nos de sincretismo religioso, tão bem estudado por alguns,
entre os quais destaco, pela seriedade da pesquisa e pela segu­
rança das conclusões, B o a v e n t u r a K l o p p e n b u r g (3).
Aliás, diga-se entre parênteses, é lamentável o incremento,
inclusive oficial, que se tem dado a tal sincretismo religioso e à
reviviscencia de cultos pagãos, e que permitiu até o asserto
ousado de que «a Umbanda é a religião do Brasil». Em outros
tempos isto era mal visto. Hoje, mercê dessa sistemática acção
de certos ensaístas, jornalistas, nacionalistas e demagogos, apos­
tados em riscar o passado e desenraizar a nação, para tomá-la
disponível, têm-se olhos de benevolência e dão-se foros de
cidade a tais formas primárias de religiosidade animista e feti­
chista.
Fechando o parêntese, notável foi também a influência
exercida pelos negros na música popular brasileira. Se difícil
de apreciar é a herança indígena, patente se mostra o influxo
africano, através principalmente do ritmo muito marcado e sin­
copado e da importância dos instrumentos de percussão nos con-(*)

(*) V., por ex., A Umbanda no Brasil, Editora Vozes, Petrópolis,


1961.
73

juntos musicais. O samba-de-morro, uma das mais típicas mani­


festações da música brasileira, é grandemente africano. E a pró­
pria música erudita, a partir do Modernismo sobretudo, inspi­
rou-se bastante nos ritmos e modos trazidos e conservados pelos
escravos e descendentes, do que sejam exemplos os Batuques,
de C amargo G uarnieri, ou a Congada, de F rancisco
M ignone .
A nossa culinária, mormente a mais característica, a baiana,
herdou muita coisa dos pretos, seja nos temperos, seja nos pra­
tos: vatapá, acaçá. bobó, acarajé, abará, azeite-de-dendê, o
complexo do inhame. Aí predomina o nagô.
A indumentária revela não poucas influências, como os
panos vistosos, as cores berrantes, os chales da Costa, os brace­
letes e argolões, sem falar (por ser regional) na «veste à baiana»,
misto de iorubá e maometano (aussá), com turbante, chinelas,
saia comprida, ampla e rendada, colares, blusa de chita estam­
pada.
No folclore, ao lado de contribuições mais ou menos claras,
como as danças bantas cdco, caxambu, sorongo, jongo, sarambu,
há para referir curiosos fenómenos de miscigenação, como o
congado ou congada (em vias de desaparecimento), que é dança
africana e auto peninsular, com «Nau Catrineta», Carlos Magno,
combate ao turcos.
A nossa casa popular, quando não é palhoça, tem muito
ou quase tudo da casa portuguesa africanizada em Angola ou
Moçambique. A figa, de uso generalizado, é de origem banta
(fazem-se até de ouro, para proteger as criancinhas de mau-
-olhado!).
A bateia (e outros instrumentos), com que se tirou tanto
ouro para el-rei, nosso senhor, para as esplêndidas igrejas
barrocas e para empoar a carapinha das negras catitas de Vila
Rica, de São João ou do Arraial do Tijuco, é importação banta.
74

Na psicologia do brasileiro e no seu comportamento social


também deixaram resíduos os africanos: a disposição à bene­
volência, o bom-mocismo, a descontração, a indolência:

«Hora de comer — comer!


Hora de dormir — dormir!
Hora de vadiar — vadiar!

Hora de trabalhar?
— Pernas pro ar que ninguém é de ferro!» (4)

Guardamos, como patrimônio nacional dos mais caros, a


bondade e a dedicação daquelas santas pretas velhas, essas
muitas «Irenes», que M a n u e l B a n d e i r a pôs no céu, com livre
passaporte de S. Pedro: «Entra, Irene, você não precisa pedir
licença».

4. O QUE FICOU NA LÍNGUA

Na língua, embora apreciável e grande, foi diversa da


indígena a influência africana. Aquela foi mais horizontal, esta
foi mais vertical. Explico-me: o tupi deu considerável quanti­
dade de palavras ao português do Brasil, ao passo que os pretos,
sudaneses ou bantos, deixaram poucos vestígios no nosso voca­
bulário. Mas tenho para mim que foi muito maior a acção dos
negros e afro-descendentes do que a dos índios e caboclos no
simplificar o mecanismo gramatical da língua, em sua feição(*)

(*) É o poema «Filosofia», de Ascenço Ferreira, in Catimbó e


Outros Poemas, José Olimpio, Rio, 1963, p. 122.
75

popular. Terão sido as mães-pretas, as mucamas, os moleques


e os escravos do eito os principais artífices da redução do
sistema verbal e désse «horror ao plural», que caracterizam a
conjugação e a flexão nominal do português plebeu brasileiro:
«os homi chego»; «saiu treis minina»; «nóis tudo cai no samba
inté amanhecé».
A aversão ao plural e a tendência à discordância atingem
as camadas urbanas, até boa altura. «Chegou muitos homens»
pode-se ouvir nas melhores rodas e lê-se em jornais tidos por
cuidadosos. «O óculos» é de toda hora, isto sem falar em
«comprar um sapato», «escolher a meia», e outras assim.
As poucas palavras africanas (bantas em sua maioria) têm
mais curso do que as muitas indígenas, principalmente porque
são mais íntimas e cotidianas: moleque, mólambo, cachimbo,
cdom bo, m uxoxo, caçula, macambúzio, dengo, banzar, cochl·
lar, xingar, etc..5

5. MESTIÇAMENTO

Há ainda um tipo de influência indirecta e talvez mais subtil


que o elemento africano veio a exercer em nossa cultura. Refi­
ro-me ao mestiçamento, entendido não como cruzamento racial,
mas como resíduo temperamental ou herança sentimental ou
afectiva. Trata-se de um impulso interior, observável sobretudo
no mulato, que leva a uma constante busca de ascensão social.
A cor tom funcionado como estigma, menos por razões bioló­
gicas e somáticas do que como sinal de pertinência a uma
classe inferior, a da escravaria.
Daí, no mulato, uma atitude de afirmação autêntica, baseada
no esforço de auto-realização, de intenso aproveitamento das
próprias possibilidades, sem contar com o apoio, inexistente,
76

do clã já estabelecido e usufruidor. São casos que se multi·


plicam, cm todos os domínios, de self-made man, na política,
na produção, nas finanças, nas técnicas, nas artes, na ciência.
Dada a ausência de racismo, no sentido próprio da pala­
vra, o mulato ascendente é mais que bem aceito, é aplaudido.
O fenómeno parece ser muito antigo, tanto é verdade que
D o m F r a n c i s c o M a n u e l d e M e l o , que esteve exilado no
Brasil de 1655 a 1658, escreveu um livro, infelizmente perdido,
chamado Brasil, Inferno dos Pretos, Purgatório dos Brancos
e Paraíso dos Mulatos. Isto, sem falar nas conhecidas sátiras
de G r e g o r i o d e M a t o s (1633-1696), exemplificadas nesta
amostra:
«Não sei para que é nascer
Neste Brasil empestado
Um homem branco e honrado.
Sem outra raça.

Terra tão grosseira e crassa,


Que a ninguém se tem respeito.
Salvo se mostra algum jeito
De ser mulato.»

Para exemplificar, vai uma lista de mulatos ilustres, sem


atender à cronologia nem às especialidades: Natividade Salda­
nha, Justiniano José da Rocha, Ferreira de Meneses, Guedes
Cabral, Silva Alvarenga, José Maurício, Caldas Barbosa, Henri­
que de Mesquita, Gonçalves Dias (talvez cafuzo), Teixeira e
Sousa, Tobias Barreto, Gonçalves Crespo, Martins Júnior, Lau-
rindo Rabelo, Torres Homem, Zacarias de Góis, Ferreira de
Araújo, Deodoro da Fonseca, Nilo Pessanha, Tito Lívio de
Castro, José do Patrocínio, Antônio e André Rebouças e tantos
outros.
77

Destaco duas grandes figuras, pinaculares, que, além de


serem tesouros preciosos da nossa cultura, são altos modelos
de força de vontade, de fidelidade à vocação, de capacidade
de vencer todos os obstáculos, inclusive doenças graves, para
realizarem e enriquecerem a nação com seu valor sem par.
Refiro-me a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, como tal
decantado por V i a n a M o o g em Bandeirantes e Pioneiros (*),
e a M a c h a d o d e A s s i s , que já propus como Defensor do
Homem (·).
E para concluir, voltando já agora a considerações ante­
riores. diria, com S ílv io R o m e r o e J o ã o R ib e ir o , que «aos mes­
tiços devemos, na esfera literária, mais do que aos outros
elementos da nossa população, as cores vivas e ardentes de
nosso lirismo, de nossa pintura, de nossa música, de nossa
arte em geral» (T).


* *

Antes de dar o balanço final, gostaria de fazer duas obser­


vações, impertinentes ao tema, porém ligadas ao assunto.
Primeiro, lembrar que não foi incontestada, como se tem
dito, a escravidão negra: combateu-a o grande tribuno jesuíta
Antônio Vieira, assim como a condenaram padres e bispos.
Segundo: foi terrível, desumano e criminoso o cativeiro, mas
não há negar que a sorte do preto no Brasil veio a ser melhor.

(®) 2.· ed.. Globo, Porto Alegre, 1935, ps. 391-403.


(®) Machado de Assis, Defensor do Homem, Coimbra, 1964.
(T) Compêndio de História da Literatura Brasileira, Alves, Rio,
1906, p. LII.
78

Na África, esperava-o a morte ou a estagnação cultural; aquí,


ele a pouco e pouco ascendeu, e entrou a participar, em menor
ou maior grau, dos benefícios da civilização.
Reconhece e proclama uma coisa e outra o insuspeito e
inteligente e honesto J o ã o R ib e ir o .
«Força é confessar que de toda essa jornada de horrores
a escravidão no Brasil é o epílogo desejado para os escravos.
Daqui em diante, a vida dos negros regulariza-se, a saúde refaz-se
e com ela a alegria da vida e a gratidão pelos novos senhores,...
melhores que os da África e os do mar. Sem dúvida alguma,
ainda muitos dos horrores e crimes ressurgem no cativeiro
novo, e aqui e ali não falham, entre senhores cruéis, rigores
monstruosos.
«A escravidão, porém, sempre era corrigida entre nós pela
humanidade e pela filantropia. Se os negros não tiveram, como
os índios, em favor deles, a voz omnipotente da igreja, tiveram
ao menos o espírito cristão e caridade própria da nossa raça.
Não foram entretanto raras as vozes dos bispos e dos padres
jesuítas em favor da raça maldita. Já no século XVII Vieira
condena a escravidão dos negros e repara do púlpito que em
outras terras o homem comercia, semeia e colhe, as mulheres
fiam, e aqui o comércio é o da carne, que os homens geram
e as mulheres amamentam... O Padre Manuel Ribeiro Rocha
escrevia em 1758 que — todo o comércio da Angola, Guiné
e Cafraria era ilegal e deveria ser condenado como pecado
mortal contra a caridade e a justiça universal.»
E adiante:
«Não é nosso intento fazer a apologia da escravidão, cujos
horrores principalmente macularam o homem branco e sobre ele
recaíram. Mas a escravidão no Brasil foi para os negros a
reabilitação deles próprios e trouxe para a descendência deles
79

uma pátria, a paz e a liberdade e outros bens que pais e filhos


jamais lograriam gozar, ou sequer entrever no seio bárbaro
da Africa.» (®).

*
* *

Tomando ao tema: desigual foi, na cultura nacional, a


contribuição indígena e a africana. Esta foi mais profunda, mais
vertical, aquela foi mais superficial, o que se explica pela dife­
rença de adiantamento global das duas etnias e pelo tipo de
convivência, mais íntima e mais longa com o negro, no período
de formação da nacionalidade, de criação do tipo brasileiro.
No entanto, uma e outra forneceram matéria para a forma
portuguesa, que foi o que prevaleceu. Sem querer fazer tro­
cadilho, direi que índio e negro deram colorido diferendador à
cultura transplantada, mas foram por ela absorvidos e assimi­
lados.
Assim surgiu esta «civilização mestiça», a maior civiliza­
ção dos trópicos, que nos integrou perfeitamente na cultura
ibérica, na mediterrânea, na latina, que fez de nós parte saliente
desse «mundo que o português criou».

(®) História do Brasil, 13.« ed., Alves, Rio, 1935, ps. 249 e 251-252.
CAPITULO VI

A HERANÇA PORTUGUESA

Esta é a mais importante das heranças étnicas presentes


na cultura brasileira. Não só do ponto-de-vista histórico, mas
também do, por assim dizer, ontológico. Sim, porque os portu­
gueses deram à nossa cultura a jorm a, que assimilou e unificou
a matéria trazida por eles mesmos, ou aproveitada dos elemen­
tos exóticos. O produto final, autônom o e perfeitamente defi­
nível, nos integra, em variante ibérica e mediterrânea, na grande
civilização ocidental.
Quando falo em matéria e form a, uso linguagem do Esta-
girita, transportando, para a caracterização das ciências ou a
análise de disciplinas, o hilemorfismo da Cosmología aristoté­
lica: forma, principio que determina o ser; matéria, aquilo de
que é feita a coisa.
Noutros termos, direi que a colonização portuguesa deu
o tom, os padrões, o estilo da cultura brasileira, que ficou, assim,
marcada com vários traços comuns fundamentais, embora, é
claro, se tenha matizado de colorido próprio, nascido da ocupa­
ção da terra, da adaptação ao meio, dos influxos desse meio, da
assimilação dos materiais carregados pelas heranças indígenas
e africanas, além do crescimento próprio e a tomada-de-cons-
ciência, rica e fecunda.
e
82

Brasil e Portugal constituem, pois, aquilo que os etnólogos


chamam área cultural, assim definida e explicitada por E mílio
W illem s : «região em que predominam determinados padrões
culturais, relativamente homogéneos, que a tipificam em face
de outras áreas. Em cada área há um centro cultural em que
seus padrões característicos tiveram origem e por isso néle se
conservaram em sua forma mais genuína e original, e, igual­
mente, daí se difundiram ou se difundem para outras
regiões.»(*).
Tempo houve (e hoje existe quem queira ressuscitá-lo,
paradoxalmente em nome do «progresso» e do «avanço histó­
rico»), tempo houve, faz um século, em que se considerava
supra-sumo da brasilidade o índio. Era comum empavonar-se
um sujeito dizendo-se mais brasileiro do que os outros porque
sua avó ou bisavó era índia. Ora, esta e semelhantes afirmações
devem ser creditadas ao alto somatório da estultice humana.
É um puro e autêntico vanilóquio.
Na verdade, isto que veio a ser «Brasil» é uma realidade
histórico-cultural, que não se deve confundir com a geografia.
O terreno, a imensa área tropical foi suporte físico de um pro­
cesso humano e espiritual, condição mais ou menos favorável
para a construção do mais rico e promissor componente daquele
«mundo que o português criou», de que fala G ilberto F reire,
seu mais abalizado estudioso e analista.
Firmadas estas noções, que nenhum espírito sensato con­
testa, descabido não seria lembrar as linhas fundamentais da
formação histórica portuguesa, não só para sentir melhor a ver­
dade daquilo de M endes Correia , que chama de luso-cristã a
cultura portuguesa, lusa pelo elemento étnico que aglutinou as

0) Dicionário de Sociologia, Editora Globo, Porto Alegre, [1950],


s. v., p. 6.
83

populações, cristã, pelo elemento espiritual básico que a unifi­


cou e lhe deu força de propulsão (2), mas também para fazer
uma ideia mais viva e mais concreta de quanta coisa palpita
ou poderá palpitar num coração de brasileiro.

1. SITUAÇÃO E DESTINO DE PORTUGAL

Portugal acha-se no extremo ocidental da Europa, consti­


tuindo a faixa oeste da Hispânia. Deste facto já resulta um
primeiro destino. Porque «a situação geográfica da Península
Ibérica, como ponto entre a Europa e o Norte da África, fez
que a Espanha tivesse sido repetidas vezes o ponto de contacto
de duas civilizações fundamentalmente distintas, entremésela-
das nesse beco-sem-saída da Europa. Aqui se encontraram
povos pré-históricos africanos, do sul, e os celtas, do norte,
aqui coincidiram fenicios e gregos, Cartago e Roma, árabes
e visigodos, o Islã e o Cristianismo», como bem salienta K urt
Baldinger (s).
O português é mistura de todas essas raças e etnias histó­
ricas e pré-históricas, acrescentadas de negros e judeus, afluxo
mais recente, compulsório um, voluntário outro.
O primeiro elemento unificador foi a romanização, ocorrida
antes da era cristã, e em termos que já prenunciavam clara­
mente a futura e teimosa resistência portuguesa ante o federa­
lismo espanhol, absorvente e imperial.
A Hispânia, ou seja, toda a península aquém-pirenaica, tor­
nou-se província romana em resultado das guerras púnicas, três

(2) Cfr. Raça e Nacionalidade, Renascença. Portuguesa, Porto, s/d.


(a) La formación de los dominios lingüísticos en la Península
Ibérica, trad. esp. de Emilio Lledó e Montserrat Macau, Edit. Credos,
Madrid, 1963, p. 11.
84

vezes desencadeada pela rivalidade entre as rainhas do Mediter­


râneo — Cartago e Roma. Em 197 A. C. a Península foi inteira­
mente incorporada à expansiva Roma. Logo os dominadores, com
fundamento não apenas geográfico, a dividiram em Hispama
Citerior e Hispama Ulterior, divisão que mais tarde se especi­
ficou em Tarraconense, Cartaginense e Galécia (Citerior),
Bética e Lusitânia.
É de notar, entre parênteses, que o latim da periferia veio
a ser mais conservador que o do centro, donde se infere a exis­
tência de uma dialectação intrapeninsular, que já pode ser a
primeira explicação para a discrepância luso-castelhana.
Obscura e nebulosa é a pré-história e a história pré-romana
da Península. Com os dados arqueológicos, etnológicos e lin­
güísticos de que se dispõe tem-se chegado à conclusão de que
desde o paleolítico dois povos tinham morada na região: o
mediterrâneo, ligado à cultura capsense do norte da África, e o
cantabro-pirenaico, mais antigo no solo hispânico.
Destes dois tomariam descendência respectivamente os
iberos e os bascos, ao lado de outros povos remotos. Aos pri­
meiros já se pretendeu ligar, sem que disso fosse possível fazer
prova, a civilização tartéssia ou turdetana, que floresceu no sul
do Portugal de hoje e na baixa Andaluzia.
Os turdetanos aparecem na história referidos por Heródoto
e talvez pela Bíblia, que fala das naus que Salomão enviava a
Társis, donde regressavam pejadas de ouro, prata e marfim
(Cfr. II Paralip., IX, 21)(4). As riquezas de Tartessos excitaram
a cobiça dos navegantes gregos e fenicios, que aí estabeleceram (*)

(*) Alguns comentadores preferem identificar esse Társis como


uma cidade da Ásia Menor (V. P irot-Clamer, La Sainte Bible, IV,
Paris, 1949 — Les Paralipomènes, traduits et commentés por L. Marchai.
— pág. 155).
85

colonias. Por volta de 1 100 A. C. festes fundaram Gadir (Gades,


para os romanos, Qadis, para os árabes), Cádiz atual. As
feitorias gregas do sul foram abandonadas ante a invasão
semita. M uito depois houve nova incursão fenicia, agora par­
tida de Cartago, incursão e dominação mais funda e mais
extensa, tendo sido Cartagena a capital da colônia púnica.
Entrementes os gregos se firmaram em alguns pontos da faixa
leste, do que é memória a moderna cidade de Alicante.
O centro e o noroeste. Leão, Astúrias, Galiza e norte de
Portugal, teriam sido invadidos por outras gentes, entre os quais
os ambro-iltrios, lígures talvez, segundo uma velha hipótese
hoje retomada com mais segurança.
Pelo século oitavo antes de nossa era, vindos do sul da
Alemana e imediatamente das Gálias, os celtas, exímios fun­
didores e ferreiros, peritos na arte militar, transpuseram os
Pirineus e espraiaram-se pelo território ibérico, estabelecendo-se
na Galiza, no sul de Portugal, nas terras altas do Centro e na
Serra Morena. Parece que houve segunda invasão céltica no
século terceiro. Como quer que seja, este povo árico de língua
indo-européia se misturou à população preexistente, e da misce-
genação resultaram as gentes a que os antigos chamavam celti­
beros. Parece não ter sido tranquila a dominação céltica, já que
frequentemente viviam em castros os novos invasores e já que
muitos topónimos dessa origem contêm o elemento -briga,
«fortaleza», ou seu sinónimo -dunum , ou sego, segi, «vitória»:
Conimbriga, Segovia, Navardun.
Quando, pois, os romanos tom aram pé na Hispânia, encon­
tram um conglomerado de povos que eles dom inaram a prin ­
cípio militarmente e depois culturalmente. A partir de Augusto
se deu a romanização da Península, que foi larga e profunda,
depois de quebrada a tenaz resistência lusitana, chefiada por
Viriato.
86

No século V despejaram-se sobre a Peninsula as hordas


bárbaras, que desde muito rondavam o Império e últimamente
tinham transposto as fronteiras pacificamente, recebendo terras
para cultivar. Vieram os danos, exterminados em pouco tempo;
os vânddos, que atravessaram, fizeram parada na Bética (daí
por diante Vandaluzia, Andaluzia), e passaram com seu vanda­
lismo à Áfrirca em 429, onde fundaram um reino de alguma
importância; os suevos e os visigodos.
Os suevos, originários da actual Baviera, se fixaram na
Galiza e em parte da Lusitânia, tendo fundado um reino cuja
capital foi Braga, reino esse mais tarde absorvido pelos visi­
godos.
Os visigodos foram os últimos que golfaram na Península,
já em princípios do século VI, batidos que tinham sido pelos
francos, destruidores de seu reino tolosano. Eram eles mais
civilizados que os outros bárbaros, tanto é verdade que por
quase dois séculos e meio vinham tendo contacto com os
romanos. Nas Espanhas tiveram longo pouso, submetendo todo
o território e fundando um duradouro reino com Toledo por
capital.
Arianos a princípio, esquivaram-se de conviver com a popu­
lação romanizada. Mas ao cabo de algum tempo, seguindo a
Recaredo (589 A. D.), converteram-se ao catolicismo, irmana­
ram-se com os vencidos e acabaram por aceitar deles a cul­
tura e a fala románica.
Nos primeiros anos do século VIII, os árabes — que já se
tinham estendido sobre o norte da África com ímpeto imperia­
lista — comandados por Tárique e Musa, transpuseram as
colunas de Hércules (depois gebel Tarik, «montanha de Tári­
que», «Gilbraltar») e lançaram-se sobre o reino visigótico. Em
711, na batalha de Xeres, travada às margens do Críssus (depois
Guadalete), tombou vencido o derradeiro chefe godo, Ruderico
87

(Rodrigo). Em três anos os invasores tinham submetido o solo


hispânico.
Quase oito séculos durou a dominação sarracena em Espa­
nha, que só foi de todo varrida em 1492, quando Fernando
e Isabel recuperaram Granada, último bastião da resistência
moura (*).
Não foi nem podia ser rectilínea ou tranquila a dominação
dos árabes. A convivência foi ora hostil, ora difícil, ora amis­
tosa, com guerras sempre, seja partida dos patriotas inconfor­
mados e pugnazes, seja desencadeada pelos bérberes, que acom­
panharam os mosselemanos no assalto às Espanhas, seja trazida
pelos terríveis invasores almorávides (séc. X I) e almóadas
(séc. XII).
Houve, porém, um grupo de bravos que nunca se rende­
ram e, acantonados nas montanhas das Astúrias, ali iniciaram
sob o comando do nobre Pelágio o movimento da Reconquista.
Era uma cruzada, guerra santa, com preparo psicológico e mili­
tar semelhante ao das cruzadas do Oriente, como estas aben­
çoadas e beneficiadas pelos papas. Assim se formaram os
primeiros reinos, assim se formou o reino de Leão, o de Castela,
o de Aragão. E assim conheceu seu termo um dia o longo
senhorio sarraceno na Península.
Às cruzadas contra os mouros vinham juntar seu esforço
cavaleiros estrangeiros, um dos quais foi D. Henrique, conde
de Borgonha, que tão bem se houve na empresa, tão dedicado
se mostrou, que recebeu do rei de Leão e Castela, D. Afonso VI,
a mão de sua filha bastarda D. Tareja. e um feudo, o Condado

(5) Dissemos que durou quase oito séculos a dominação dos árabes
na Espanha. Sua presença, no entanto, foi mais longa, beirou os nove
séculos, estendeu-se até 1609, quando um decreto de Felipe III fez
expulsar do pais mais de um milhão de mouros.
88

Portucalense. Este condado se estendia entre o Minho e o Tejo


e D. Henrique devia administrá-lo sob a tutela de D. Raimundo,
seu primo, senhor da Galiza e casado com D. Urraca, filha legí­
tima de Afonso VI. Dois anos depois, D. Henrique se liberta da
tutela e passa a obedecer directamente ao rei de Leão. Por
morte dele, assume o governo do Condado D. Tareja, que se
conduziu com habilidade, alargou seus domínios, mas acabou
criando um partido de descontentes, por causa dos amores com
o Conde de Trava, da Galiza. Seu filho, D. Afonso Henriques,
ficou do lado dos descontentes e tomou as rédeas do governo
depois de vencidos o Conde de Trava e D. Tareja no campo de
S. Mamede (1128). Em 1139 bateu os infiéis em Ourique e
fez-se proclamar rei de Portugal. Na convenção de Zamora, em
1143, Afonso VII, rei de Leão, lhe reconhece a realeza, que
foi ractificada solenemente em 1179 pelo papa Alexandre ΠΙ.
Está Portugal independente. D. Afonso Henriques e seus
sucessores prosseguem na luta contra os mouros, até que em
1250 D. Afonso III conclui a conquista do Algarve, fixando
assim os limites do Portugal de hoje.
No século XV, caldeados já os elementos das diversas
etnias, a nação estava madura para, atendendo ao velho con­
vite do mar, entregar-se à mais extraordinária aventura que a
História registra: a expansão ultramarina, que deu novos mundos
ao mundo. E fê-lo escudado num humanismo de base e origem
indiscutivelmente cristã (e).
Se considerarmos que à época dos descobrimentos Portugal
tinha pouco mais de um milhão de habitantes e que, apesar(·)

(·) V. a bela síntese de Antônio Albbrto de Andrade, Muitos


Ragas, uma só Nação (Esboço da Teoria do Humanismo Português),
nova ed., remodelada, Lisboa, 1968.
89

disso, no alvorecer do século X VII já tinha tocado a Groenlândia


e atravessado o Estreito de Magalhães, perlustrado a Costa Pací­
fica da América, posto o pé no Japão e na China, ocupado ilhas
atlânticas e do Índico, feito incursões no oeste e no leste da
África, conquistado o Pegu, tomado assentos na India, na actual
Malásia e na Indonésia, fica-se em situação de não poder expli­
car racionalmente o feito. Realmente, como pôde aquele povo
construir um Império sem ocaso?
Os marxistas, que explicam todos os factos históricos com
o mesmo esquema — luta pela propriedade da terra e dos meios
de produção e exploração económica do homem pelo homem —,
aplicam ao caso português o chavão monocórdico. Portugal se
tomou senhor do mundo, porque no século XV a burguesia
metropolitana estava em má situação e precisava melhorar o
orçamento...
Os poetas, no entanto, que vêem as coisas com mais aguda
vista, riem dessa estreiteza e apelam para causas proporcionais
ao efeito. Camões, na dedicatória ao rei, assim se expressa:

«E vós, ó bem nascida segurança


Da lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aum ento da pequena cristandade:
Vós, novo temor da manra lança.
M aravilha fatal da nossa idade.
Dada ao m undo por Deus, que todo o mande.
Pera do m undo a Deus dar parte grande:»

{Lus., I, 6)
90

Quer dizer: Deus deu ao mundo o rei de Portugal, a fim


de que ele, dominando o orbe, desse à fé cristã grande parte da
terra, para aumentar a área do cristianismo católico, reduzida
com a recente heresia protestante.
Mas o Poeta não esquece que, ao lado do ideal missioná­
rio, houve ambição política, desejo de riqueza, amor próprio,
vaidade, busca de glória pessoal. Basta ler o esplêndido episó­
dio do Velho do Restelo, o mais eloquente e caloroso de
Os Lusíadas (IV, 94-104).
Homem inteligente, perspicaz, isento de preconceitos defor­
madores e falsamente simplificadores, sabe que um facto histó­
rico é complexíssimo e participa de tudo do homem, grandeza
e miséria. Mas sabe que só a pequenez e a ambição jamais
poderiam explicar o «aumento da pequena cristandade».
Dir-se-á: Cam ões era católico e acreditou no engodo da
vocação missionária de Portugal, como a burguesia disfarçou sua
rapina. Mas outro grande poeta, agnóstico, céptico, pessimista,
desses que se convencionou chamar «livre-pensador», F ernando
P essoa, diz na Mensagem, entre outros primores, isto, referente
a D. Sebastião:

«Louco, sim, louco, porque quis grandeza


Qual a Sorte a não dá.
Não soube em mim minha certeza;
Por isso onde o areai está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura, que é o homem
Mais que a besta sadia.
Cadáver adiado que procria?»
91

E sobre «O Infante»:

«Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.


Deus quis que a terra fòsse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente.


Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente.
Surgir redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.


Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o M ar, e o Im pério se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal/»(7).

*
* *

A obra foi feita com miséria e com grandeza, como tudo


que é do homem, mas principalmente com grandeza, porque só
esta constrói e fica. E o que ficou ai está: é «o mundo que o
português criou», de que somos concidadãos, mundo feito de
transportes e de intercâmbios culturais, feito de adaptação aos
trópicos, feito de doação e aceitação, de mescla de etnias, de
cruzamentos raciais, de incorporação e permuta de elementos
europeus, americanos, africanos e asiáticos.

(T) F ernando P bssoa, Obra Poética, Rio, Aguilar, 1960, ps. 12-13
e 15.
92

2. POVOAMENTO E COLONIZAÇÃO

Como se sabe, no primeiro momento Portugal se desinte­


ressou do Brasil, fascinado que estava com a Índia. Mas
D. João III iniciou de modo sistemático o processo de coloniza­
ção. Aplicou, desenvolveu e aperfeiçoou lá o que já vinha
dando bom resultado em outras partes e já ia constituindo
o estilo do trato com as novas terras e novas gentes.
Não falta quem diga ser mal do Brasil a origem portuguesa,
acrescentando que mais bem aquinhoados estaríamos se, por
exemplo, tivesse logrado vencer a incursão holandesa. Seriamos
mais ricos, mais desenvolvidos, mais adiantados. Seriamos tal­
vez como os Estados Unidos, ex-colónia de povo germânico.
Recuso a tese. Contesto-a, em nome da História, em nome
da espiritualidade, em nome do humanismo. Claro que não
argumento como aquele meu ex-colega da Câmara de Verea­
dores, que se afligia com a hipótese, porque, no caso, ninguém
entenderia ninguém, dada a notória dificuldade da língua holan­
desa...
Prefiro a colonização portuguesa porque a considero indis­
cutivelmente melhor do ponto-de-vista humanista e cristão.
Portugal não fez exploração predatória, não se tomou riquís­
simo à custa das colônias. Funcionou aquele traço lírico, sonha­
dor, do lusíada. E funcionou uma virtude, assinalada e bem
analisada por J orge D ias .
Todos os povos e nações padecem, mais ou menos, de
etnocentrismos, ou seja, a atitude de quem se acha melhor do
que os outros, superior aos estranhos, de quem julga hábitos,
valores e costumes alheios por comparação aos próprios, consi­
derando o diferente pior, e o muito diferente desprezível ou
detestável. Daí a tendência à supremacia, daí o racismo (que
93

existe também, por exempo, nos pretos em relação aos brancos),


daí os conflitos, superficiais ou profundos e explosivos.
Pois bem: diz J o r g e D ia s que o bom resultado histórico da
colonização portuguesa tem causa principalmente num tipo
peculiar de etnocentrismo, que, aliás, acrescento eu, se passou
aos brasileiros. Diz o famoso etnólogo:
«Eu creio que o grande êxito das relações que os Portu­
gueses estabeleceram com populações de todos os continentes,
algumas das quais ainda perduram com o mesmo equilíbrio
e vigor e outras deram lugar a sociedades novas e completa­
mente originais na história da humanidade, como o Brasil, é a
conseqüência de uma forma de etnocentrismo sui generis. De
fato, o Português não tem necessidade de se afirmar negando,
antes, pelo contrário, movido por um ideal de fraternidade,
afirma-se amando.
«...O Português, ao contrário de tantos povos, gosta dos
estrangeiros, preocupa-se com a sua opinião, tem prazer em
falar outras línguas e é capaz de se desfazer tanto em amabili­
dades que chega, por vezes, a dar a impressão de ter um com­
plexo de inferioridade perante os estranhos. É evidente que esta
atitude é a prova mais cabal da falta de um etnocentrismo vigo-
roso.»(8).
No Brasil, pois, se aplicou esse sistema de colonização, que
foi, na realidade, transculturação, com assimilação do exótico,
enriquecimento intrínseco e, por fim, surto de uma nação nova,
não disforme, mas conforme.
A partir de 1532 se iniciou o processo. Estabeleceu-se a
administração, e foram mandados os missionários, «para do
mundo a Deus dar parte grande». O marxista diz que o padre
veio como instrumento de imperialismo então português, para

(®) Jorgb D ias, Ensaios Etnológicos, Lisboa, 1961, ps. 147-148.


94

aplainar os caminhos da dominação e exploração económica.


O homem de pensamento livre, não alienado, que olha para a
realidade, esse sabe que o ideal missionário foi inseparável da
conquista portuguesa, foi o que lhe deu força sobrehumana,
foi o que ficou. Fazer do Padre Anchieta, por exemplo, ou de
Antônio Vieira, acérrimo defensor de nossos índios, agentes
do imperialismo e das classes exploradoras é supor que todo
o mundo é néscio.
O primeiro superior da Missão Jesuística, o grande Manuel
da Nóbrega, em lá chegando (1549), teve uma frase profé­
tica: «Esta terra é nossa empresa». E realmente o foi. Até 1759,
quando os expulsou o Marquês de Pombal, dedicaram-se os
inacianos, de corpo e alma, à obra da catequese e da civili­
zação. Mais tarde vieram outros padres, franciscanos, carme­
litas, beneditinos, que se associaram à ingente e gloriosa tarefa
de fazer daquela terra um país cristão.
Vieram colonos, vieram degredados, vieram fidalgos, e
principalmente vieram os «miúdos», a gente sem nome e sem
história, o artesão, o lavrador, o pequeno comerciante, homens
de diversas profissões e misteres, que se tomaram, por fim, ao
lado do missionário, o mais importante agente da transcul-
turação. Só no século X V III, descobertas as riquezas minerais,
terão chegado ao Brasil 800 000 portugueses.
Frequentemente se estuda mal a formação brasileira. Con­
funde-se história da civilização com história política e militar.
Dá-se ênfase aos actos da Coroa, aos decretos reais, às medidas
administrativas, às proibições legais, à atitude oficial e governa­
mental de supostamente tirar o máximo da Colônia, e deixa-se
de lado esse longo, minucioso, discreto e apagado processo de
transculturação, levado a cabo em toda a parte, dia por dia,
pelo pequeno emigrante, pelo homem desconhecido, que ia
ensinando como se planta e se colhe, como se constroem casas
95

e igrejas, como se calçam ruas, com o se fazem móveis, com o se


cozinha, como se cose, com o se borda, com o se pesca, com o se
trabalha o couro, a p rata e o ouro, com o se extrai o sal d o m ar,
como se salga a carne e o peixe, com o se varam ínvios sertões,
como e onde se edificam cidades.
Esse «miúdo» foi lá p ara ficar, levou suas técnicas, suas
crenças, sua filosofia de vida, ensinou e aprendeu, sem deixar
de ser o que era e de pautar-se pelos antigos valores, ad ap ­
tou-se à terra em tudo que convinha, t€ z dela a sua pátria,
deixou descendência e lá foi sepultado.
Permita-se-me reproduzir um a página cintilante de G il ­
berto F reire , adm irável síntese, já p o r mim alhures utilizada:
«O cristão português no Brasil, ao contrário [do cristão puritano
da Nova Inglaterra], não tardou em fazer da m andioca dos
índios o seu segundo p ão — às vezes o único; d a m ulher índia
ou africana — sua mulher, às vezes sua esposa; d a m ãe-d’água
um alongamento de sua m oura encantada, às vezes um a defor­
mação de sua Nossa Senhora dos Navegantes; d o suco d o caju,
seu dentifrício; do tatu, seu segundo porco; d a tartaruga, m até­
ria de uma série de experiências gastronóm icas dentro das tra ­
dições da cozinha portuguesa; da folha de caraobuçu queim ada
e reduzida a pó como de carvão, rem édio para secar as boubas
— mal de que o português do século X V I parece ter sofrido
tanto ou quase tanto quanto o indígena; do leite do coco, um
substituto do leite de vaca; do vinho de caju, um substituto do
vinho do Porto — em bora substituto ainda hoje m uito distante
do original.
«Aventura de dissolução e rotina de conservação. C onfra­
ternização com o exótico e ao mesmo tem po perpetuação do
tradicional. Franciscanismo. Naturalism o. Lirismo. U niversa­
lismo combinado com regionalismo — com binação que se ap re­
senta, cada vez mais, como a solução dos problem as de ajusta-
%

mentó dos homens entre si e de todos os recursos regionais da


natureza: recursos vegetais, animais, minerais.
«A mandioca e o milho, o caju e o jenipapo, o maracujá
e o araçá, foram adaptados pelos portugueses, no Brasil, a velhas
receitas portuguesas, orientais e africanas de preparar pão, cus-
cus, bolo, licor e vinho; o caju feito doce à maneira dos antigos
doces reinóis de figo; a mulher índia ou negra arrancada aos
poucos do trabalho mais duro no campo para o serviço princi­
palmente doméstico, conforme os estilos tradicionais da Europa
crista; os filhos mestiços — mulatos ou caboclos — em colégios
de padres, junto com os brancos, com os filhos de casais euro­
peus, com os órfãos vindos de Lisboa» (®).

3. ELEMENTOS PRIMORDIAIS DA HERANÇA PORTUGUESA

Seria realmente impossível enumerar tudo o que, na cul­


tura brasileira, representa incorporação e assimilação de elemen­
tos lusitanos.
Queremos, no entanto, aqui assinalar três continuações, que
constituem bens valiosíssimos, de natureza espiritual, estabeleci­
dos e frutificados desde os primeiros tempos. Refiro-me ao
cristianismo católico, à língua románica e à predisposição ao
multirracialismo.

1. «Esta terra é nossa empresa», disse-o Nóbrega. E ela


foi envangelizada. O catolicismo deitou ali raízes e conformou
o modo de pensar e de sentir da gente brasileira.

(9) Uma Cultura Ameaçada: a Luso-Brasileira, 2.a ed., CEB, Rio,


1942, ps. 34-36.
97

Não se trata, é claro, daquilo que se poderia chamar de


«catolicismo dogmático», porque esse decorre sempre da atitude
de cada um. Quero dizer: a fé explícita e íntegra, a vida moral
tendencialmente irrepreensível, a prática dos sacramentos, a
aceitação da disciplina da Igreja, a formação de uma mentali­
dade em tudo consoante com a doutrina ortodoxa. Trata-se, isso
sim, de fenómeno cultural. Diria que está em jogo um cato­
licismo afectivo e não, necessariamente, um catolicismo efectivo.
Ninguém ignora que os 93,7 % da população, que se decla­
ram católicos no censo, não correspondem, nem de longe, ao
número dos que ao menos vão à missa aos domingos. São cató­
licos por tradição, por certas práticas, por sentimento, católicos
«brasileiros», como se tem dito jocosamente. Mas são homens
e mulheres que se casam na igreja, que baptizam os filhos,
recebem alguma catequese, guardam a Sexta-Feira Santa, invo­
cam Nossa Senhora e Santo Antônio, fazem-lhes promessas,
acompanham procissões, respeitam o padre, mandam celebrar
missas de sétimo dia e a elas comparecem.
Insisto nesse catolicismo cultural, que inspirou uma atitude
diante da vida, que adoçou os costumes, que clara ou confu­
samente aceita a sobrevida, que se refrange na vida social e
política.
Prova torrencial desse catolicismo, se de provas necessitásse­
mos, constituem os milhares e milhares de nomes de santos a
servir de epónimo a ddades, vilas e povoados, a rios, serras,
ilhas, cabos e demais acidentes geográficos. Agora e no passado.
No passado mais do que agora, tanto é verdade que a braquio-
logia apagou o carimbo religioso de cidades como Campos, Ouro
Preto, Belém ou Rio de Janeiro, outrora chamados São Salvador
dos Campos dos Goitacás, Vila Rica de Nossa Senhora do
Pilar do Ouro Preto, Porto de Santa M aria de Belém do Grão
Pará, São Sebastião do R io de Janeiro.
7
98

2. Pela colonização, consigo levaram os portugueses sua


lingua románica. Já estava ela unificada e já tinha tradição
literária, quando lá aportaram os descobridores. Logo depois,
ia aparecer Camões, o definitivo plasmador da língua culta.
Os primeiros colonos falariam um português de aspecto
arcaico, mais ou menos o que se documenta nas obras de Fer-
não Lopes, porque ao povo ainda não podia ter chegado o
sopro renovador do Renascimento.
Posta em contacto com o tupi e com as línguas africanas,
a língua románica se alterou, talvez muito a princípio, mas
depois reagiu e adquiriu uma unidade maior do que a que apre­
senta no continente europeu. Da convivência com os alqglotas
resultou para a língua románica no Brasil um sensível enrique­
cimento de vocabulário e, na feição popular, a simplificação do
sistema morfológico. Nossa pronúncia é mais próxima da antiga,
da camoniana, do que a actual pronúncia de Portugal. Fomos
mais conservadores, nisto como na manutenção de vários arcaís­
mos, de forma e de sentido, ou na preservação do gerúndio pro­
gressivo (estou fazendo, está trabalhando).
Mas o que chama a atenção, no fenómeno lingüístico
brasileiro é a extraordinária unidade relativa. Espalhou-se
a língua por todo o imenso território, e a rigor só se encontram
dois dialectos, o caipira, obsolescente e difuso, e o nordestino.
Pode-se caminhar mil quilómetros em território brasileiro sem
se notar diferença maior na fala coloquial, coisa evidentemente
impossível de acontecer na terra onde se formou o idioma.
Com a língua románica, o português, recebemos um modo
de sentir, de interpretar c de expressar, uma semântica especí­
fica, tomada a palavra no seu mais lato sentido.
Tivemos aberta para nós uma literatura pautada pelos
valöres cristãos e ocidentais; formamos uma literatura própria,
mas com o mesmo espírito.
99

A unidade de língua é imagem e instrumento da impressio­


nante e quase milagrosa unidade nacional, tão contrastante com
a pulverização da América Espanhola.

3. Do português recebemos também a boa predisposição


de convivência racial. Brancos, pretos e indígenas lá têm
convívio, lá se têm misturado amplamente, o que faz que o
Brasil seja o maior laboratório de caldeamente étnico do mundo
e da história. Ê uma população policrómica, a viver descon­
traída, sem conflitos, sem preconceitos de cor.
O que ainda existe em relação ao negro e ao mulato é
antes segregação social, com obscuras raízes na escravidão. Não
existe racismo, no sentido próprio. Ogerizas e preconceitos
serão pessoais não sociais. Todos os matizes epidérmicos se
sentem bem lá: basta observar um veículo de transporte
colectivo.
A imigração estrangeira, do século passado e deste século,
de europeus e asiáticos, não alterou o quadro . Recebemos todos
bem, e eles trabalham, vivem tranquilos, deixam descendência
absolutamente assimilada, que entra no grande caldeirão racial.
Não falta quem maldiga os reis e capitães-mores portu­
gueses, que nos levaram ouro e diamantes das Gerais. Nem,
como atrás disse, quem estenda a maldição à própria coloniza­
ção portuguesa. Mas é atitude materialista, de um materialismo
rasteiro. Muito mais que as arrobas de ouro e os quilates de
diamante vale a palavra do Evangelho ali pregada e pegada,
vale a bela e plástica língua románica, vale esse ecumenismo
étnico que tanto nos honra. Se os reis levaram riquezas mate­
riais, eles mesmos e, principalmente, os missionários e os
«miúdos», sempre os portugueses, nos legaram riquezas que não
têm preço, porque são de outra natureza, são espirituais.
100

4. IMPREGNAÇÕES NA CULTURA MATERIAL

M uito numerosas e profundas são as impregnações portu­


guesas nos aspectos visíveis e materiais da cultura. Talvez neste
sector sejam até mais avassaladoras do que nos outros. Pelo
menos é a conclusão de uma respeitável autoridade, A fonso
A rinos de M elo F ranco :
«O desenvolvimento da nossa civilização material é de
base portuguesa, entendida no seu complexo luso-afro-asiático.
A contribuição negra e índia, muito notável na elaboração do
nosso psiquismo nacional, é pouco importante na nossa civili­
zação material, não somente por ter sido absorvida no cho­
que com um meio muito mais evoluído, mas também
porque as condições de sujeição em que viviam as raças negra
e vermelha não permitiam a expansão plena das suas respectivas
formas de cultura. Por isso mesmo, os elementos negros e
índios, presentes na nossa civilização material, salvo um ou
outro mais notáveis, são de difícil identificação». (10).
Está tudo expresso aí nesta síntese de um livro notável e
fundamental, mas convém exemplificar com alguns casos, para
que se tenham elementos pessoais de convicção.
Gostaríamos, pois, de lembrar que a presença portuguesa
se faz sentir muito nítida na igreja, na casa e no tipo de agióme-
ramento urbano.
As nossas velhas cidades, de Minas, de Goiás, da Bahia,
do Estado do Rio, de todo o Nordeste têm a mesma fisionomia
das aldeias, vilas e cidades, sobretudo do norte de Portugal.
São ruas sinuosas e apertadas, trepando pela colina e conver­
gindo no largo, onde se acha a matriz e o edifício da Câmara,

(10) Desenvolvimento ela Civilização Material no Brasil, Publica­


ções do SPHAN, Rio, 1944, p. 24.
101

hoje Prefeitura. Quando a ladeira é íngreme, as casas


se escoram umas nas outras. A trás um terreno, com a horta,
plantada de legumes e árvores frutíferas. Se for plano o ter­
reno, as casas se distanciam com graciosa dissimetria.
Agrava a sensação o estilo da igreja, bonita ou feia, rica
ou pobre. Torres acrescentadas a uma casa senhorial ou apa-
laçada, janelas de residência civil, com vidraças de guilhotina
e vidros emuldurados em pequenos rectángulos, no interior tri­
bunas a dar para a nave ou para a capela-mor, à maneira de
sacada, mesmo retábulo, degraus empilhados a servir de supe­
dáneo para o santo-orago...
Acrescentaremos um a palavra sobre a casa. Em Portugal
e no Brasil, do mesmo feitio: pesadamente assentada no chão,
pé-direito alto (ou baixo, se é pobre), beirai simples ou com
cimalha, telha de canal (chamada também «telha portuguesa»),
sacadas, se há sobrado, cobertura de duas ou de quatro águas,
conforme a categoria, puxado... por fora, e por dentro substan­
cialmente a mesma coisa, inclusive com idêntico material.
Refiro-me, é claro, à casa antiga, àquela que nos ficou na
memória da infância, e que faz terem tanta aceitação as telas
de José Paulo M oreira da Fonseca. E lembro o renascente e
crescente gosto pelo azulejo, que amplamente ornamentou o
Brasil colonial, como se patenteia no exaustivo livro de Santos
Simões , A Azulejaría Portuguesa no Brasil.
Em suma, a herança portuguesa é fundamental e foi exem­
plar, modeladora.
*
* *

Já é truismo proclamar a decadência do Ocidente. N ão no


sentido do livro famoso de S pengler , cujo título é precisa-
102

mente este. Der Untergang des Abendlandes, mas como desin­


tegração e negação dos valores herdados, elaborados e prezados.
Vivemos urna das grandes encruzilhadas da História. Tai-
vez a maior, ressalvado o erro de perspectiva e de apreciação
que consiste em considerar indiscutivelmente mais forte a dor
do momento.
Esta nossa civilização ocidental, nascida da fusão Mtima
e dinâmica de três elementos básicos — o pensamento grego,
a organização romana e a espiritualidade judaico-cristã — esta
esplêndida cultura ameaça ruína iminente.
Estamos sob a acção de forças destruidoras, altamente
potencializadas pelos modernos meios de comunicação de
massa, e desgraçadamente actuantes, p d a aceitação alegre dos
atingidos.
H á uma campanha sistemática de desmoralização da famí­
lia, de meretrização da mulher, de «compreensão» e até exalta­
ção de anomalias sexuais, de negação do princípio de autori­
dade, de derrisão do respeito, de amoralismo recomendado, de
ateísmo militante.
É um terrível paradoxo, só explicável pelo mistério do
Pecado Original. O homem do Ocidente levou séculos e séculos
a decantar, a depurar uma cultura, a policiar-se, a elevar-se,
para, atingido um planalto, empregar seus mais assíduos esfor­
ços em atirar-se pelo despenhadeiro e abismar-se no caos.
Ê o que se observa nos países ditos líderes. Nos Estados
Unidos tranquilamente se instala uma filosofia do conforto como
suprema ratio da vida, e, recentemente, foi absolvido o aborto.
Na França, como se viu em maio de 68, a juventude das esco­
las superiores veio para as ruas da capital pretendendo aniquilar
o seu país, porque lhe foi negada licença para fornicar ampla­
mente, oficialmente, universitariamente. E quase soçobrou a
grande nação, sob o camartelo dos vociferantes do «é proibido
103

proibir». Na Holanda, em Amsterdão, reúnem-se os «hippies»


da Europa, ostentando uma soltura de costumes, que os asseme­
lha a cães e cadelas em época de cio, com a diferença que ésses
sub-produtos do pior burguesismo não estão sujeitos aos ciclos
biológicos dos canídeos. Na Inglaterra, segundo nos deu a
conhecer, em conferência o P.· Bastos de Á vila, quatro
milhões de jovens se estiolam com psicotrópicos, são consumi­
dores de «bolinhas». Em Copenhagen conseguiram levar a efeito,
com grande afluência de fregueses e com a presença de jornais
e televisão dos países «adiantados», uma até então impensável
Feira da Pornografia, talvez já realizada, nas priscas eras, em
Sodoma e Gomorra.
Pela América e pela Europa ecoa um brado: Abaixo o pai!
M orra o Governo! Abaixo o Papa! Deus está morto!
Ora, não há sociedade, não há nação, não há Estado que
assim possa subsistir! Não valem tanques, nem exércitos, nem
marinhas, nem aviões, nem arsenais atómicos.
A destruição vem de dentro, é endógena, parte da alma.
Contemplando esse triste espectáculo, assalta-nos uma
angústia semelhante àquela que invadiu a alma do grande Santo
Agostinho, quando os vândalos lhe sitiavam a sede episcopal.
Pareceu-lhe finda a civilização, supôs para sempre perdidas as
conquistas de Roma, a herança grega e os primeiros efeitos do
recente cristianismo nos costumes dos povos. E chorou de ver
desmoronar o belo edifício, que, sem o saber, ajudara a cons­
truir.
Mil e quinhentos anos depois nos vemos também quase
afogados. Apenas, temos maior experiência histórica... e temos
Santo Agostinho, que ele não tinha.
Neste soçobrar de tudo, sinceramente só vejo uma espe­
rança temporal, só diviso um ponto de apoio para a recuperação
104

e salvação do Ocidente: as reservas espirituais da área cultural


lüso-brasileira.
Nela se guardaram alguns antídotos capazes de evitar a
morte. Um inegável desdém pela riqueza material, certo asee·
tismo como que inato, um forte sentimento de família, que trans­
borda do grupo natural, para a família extensa, para a ampla
família multifuncional, patriarcal, espécie de clã, temperado de
discreta influência feminina e cimentado pelo culto das tradi­
ções do grupo — mores patrum. Acrescente-se a permanente
disponibilidade, o gosto de servir, a natural solidariedade, ó
respeito pela personalidade do outro, a preferência pelas solu­
ções de harmonia e entendimento, a cordialidade, a hospitali­
dade, numa palavra, isso que tenho chamado de humanismo vivo
e vivido.
Sem qualquer ufanismo — de que me considero vacinado —
digo que o Brasil realmente tem dado lições ao mundo. Fê-lo,
quando as mulheres do povo em Belo Horizonte, terço na mão
esquerda e sombrinha na direita, impediram lá um comício
subversivo de Leonel Brizóla, o que foi indiscutível prelúdio
e estímulo da Revolução de 64. Fê-lo repetidas vezes no pas­
sado, quando preferiu resolver pela arbitragem suas pendências
de fronteira, à diferença de outros povos, que as têm resolvido
pela guerra ou pela ocupação.
Portugal era odiado declaradamente pelo seu «colonia­
lismo», mas, não raro, com flagrante incoerência, porque os
estrangeiros que o condenavam eram, quase sempre, partidários
ou simpatizantes do neo-colonialismo soviético, incorpofador
de dezenove oprimidas nações a seu império tzarista, hoje
estendido da linha Oder-Neisse ao Oceano Pacífico.
Em Portugal também se conserva actuante uma velha vir­
tude, banida, chasqueada e vilipendiada pelos «contestadores»,
105

o respeito. Respeito pelas pessoas, respeito pelas coisas, res­


peito pelas hierarquias, respeito por certos valores absolutos.
Eu iria longe, se quisesse analisar e minudenciar. Conti­
nue cada qual por conta própria, com ânimo desapaixonado
e espírito objectivo.
*
* *

Aceita a tese, urge partir para uma tomada-de-cons-


ciência nacional. Urge mobilizar recursos e técnicas da
chamada «comunicação social», para que esses dois povos de
mesma língua e traços culturais comuns descubram que guar­
daram valores altos, sintam que devem prezá-los encarecida­
mente e jamais deles envergonhar-se como se fora atraso, ou
empecilho ao progresso, ou sinal de subdesenvolvimento.
É minha convicção: assim como foram os povos de lín­
gua inglfesa, com seus valores de democracia, que, no conflito
de 1939, salvaram da barbárie nazista o mundo, serão agora
brasileiros e portugueses os que poderão evitar a catástrofe
final nesta guerra multifária e sem quartel desencadeada pelos
novos e piores vândalos contra a verdadeira civilização ocidental.
Ouso afirmar, com a força de quem interiormente não
hesita nem duvida, que a História propõe esse desafio aos
homens responsáveis de Portugal e do Brasil.
Não serão as superpotências, não serão as nações outrora
líderes e agora traidoras do espírito quem poderá impedir a
eversão, mas os povos que não adoraram o bezerro de ouro
e que teimaram em acreditar na perenidade de certas pequenas
coisas, como aquele tênue fio de C hesterton , que liga as
colinas do ontem às invisíveis montanhas do amanhã.
CAPITULO VII
O ELEMENTO DINAMICO DA CULTURA NACIONAL

Depois de termos caraterizado «cultura», nos seus diversos


sentidos, depois de lhe termos apontado e examinado os ele­
mentos «estáticos», bem é que nos ocupemos agora do ele­
mento «dinámico» da cultura nacional. Está claro que, estabe­
lecendo a dicotomía, marcamos com ela oposição entre os dois
elementos da elaboração cultural. Já vimos que os elementos
estáticos, compreendidos no meio, herança étnica e momento,
conformam, condicionam, limitam a cultura, mas não a deter­
minam. Quem a determina é a pessoa.

1. O FACTOR PRIMORDIAL E DECISIVO

A cultura nasce da inteligência. Resulta sempre, e por


natureza, do trabalho da inteligência, que disciplinadamente põe
em acção as forças do espírito, para tirar delas o máximo e
melhor proveito.
O homem observa, reflecte, estuda, compara, e elabora
conhecimentos, penetra melhor a realidade, constrói um instru-
108

mentó mais perfeito, fabrica objectos novos, cria um poema,


um quadro, uma casa ou yma estátua. A causa eficiente desse
resultado (Filosofia, Ciência, Técnica, Arte) é sempre a pessoa,
o ser inteligente, livre e autónomo. Qualquer fenómeno cultu­
ral, qualquer aspecto da cultura, qualquer progresso, inovação
ou variação, repousa sempre numa inteligência individual. Sem­
pre numa pessoa. Dai por que a cultura pessoal precede onto-
lógica e cronologicamente a cultura social ou a nacional. Mais.
Se nos aplicarmos a fundo ao problema, descobriremos que,
ainda considerando a cultura nacional, analisando-a, buscando
caracterizá-la e defini-la, só vamos encontrá-la de facto nas
pessoas.
Realmente, a cultura nacional, vista por dentro, subjec­
tivamente, é um estado de determinada sociedade, constituído
por conceitos, julgamentos, sentimentos, concepção geral da
vida, eficiente capacidade de fazer objectos úteis ou belos. Ora,
tal estado é uma abstracção, só nas pessoas, componentes de
um grupo homogéneo, é que podemos encontrá-lo concreta­
mente realizado. Razão, pois, assiste e plena a J. T. D elos ,
quando diz que «a cultura está directamente na pessoa e a
ela se refere primeiro, enquanto a civilização se acha antes
nas instituições... Toda cultura é cultura do espírito... é vida
interioraO).
Por sua própria natureza, a pessoa é comunicativa, recebe
e transmite, é influenciada e influi, aprende e ensina, reelabora,
descobre, cria e faz os outros participantes de suas novidades.
Nesse poder de compreensão, elaboração e criação é que,
precisamente, se encontra o dinamismo da cultura; nesse poder
de comunicação se acha a origem do estado cultural, da cultura
social ou nacional.(*)

(*) La Nación, j¿ eit, p. 28.


109

2. ENVOLVIMENTO: RIQUEZA E LIMITAÇÃO

O meio físico e o meio social actuam sobre cada homem,


que, por sua vez, recebeu uma herança étnica, portadora de
vários conceitos, atitudes, soluções, juízos de valor, costumes,
técnicas, gestos, etc. Tais factores condicionam a cultura. Faci-
litam-na, mas limitam-na.
Se cada homem tivesse de descobrir o mundo, aprender
a defender-se e fabricar os objectos essenciais, a vida seria difi­
cílima e paupérrima, e o progresso absolutamente impossível.
O patrimônio que cada um de nós dia por dia recebe quase
sem o sentir representa a acumulação de mil experiências, racio­
cínios, indagações, conhecimentos anteriores. Alguns até de
milênios. Ê a constatação melancólica feita pelo Gog de Papini
ao dar um balanço no Eu para descobrir que nada lhe per­
tence, «nada é meu»: «Pertenço a uma classe, a um povo,
a uma raça; não consigo nunca evadir-me, faça o que fizer, de
certos limites que não foram traçados por mim. Cada ideia é
um eco; cada acto um plágio. Posso tirar os homens da minha
presença, mas uma grande parte deles continuará vivendo, invi­
sível, na minha solidão»(2).
Tirado o exagero, só é nossa a elaboração interior, pela qual
incorporamos à personalidade profunda, como uma conquista,
aquilo que de graça nos foi oferecido, e aquelas poucas coisas
que descobrimos à base do que aprendemos. O ter nascido no
Brasil, por exemplo, em 1950, significa ser tributário e benefi­
ciário de mil valores culturais, vindos alguns dos sumérios,
outros da Palestina, outros de Roma, tais outros dos recentes
achados e formulações da geração imediatamente anterior.

(*) Gog, trad, de Sousa Júnior, 2.* ed.. Globo, Porto Alegre,
I960, p. 71.
no
Trata-se, pois, de uma imensa riqueza, entregue sem paga.
Mas também se trata de uma limitação. Essa herança cultural
enforma-nos o espírito e aperfeiçoa-nos a sensibilidade, de modo
que ficamos com certas antenas ligadas e outras desligadas,
com uns sentidos abertos e outros apagados. Adquirimos assim
uma fisionomia espiritual ou afectiva, que praticamente nos
impede de sentir as diversas coisas como um alemão, um italiano
ou um chinês.

3. NAÇÃO E CONSCIÊNCIA NACIONAL

Seria muito longo discutir aqui o que seja nação, buscar os


elementos constitutivos dela, indagar quais dentre eles serão
essenciais, querer saber se pode haver nação sem território
(como é o caso dos judeus), nação sem língua própria, nação
sem governo autónomo, etc. Principalmente, seria inadequado.
Temos de partir de uma conclusão segura. De um conceito
correcto.
Para bem entender o que seja nação, mister se faz distinguir
primeiramente, nos grupos humanos, comunidade de sociedade.
Comunidade é um grupo social de formação espontânea,
nascido de um fácto ou condicionamento preexistente. A socie­
dade é um grupo natural, mas de formação consciente, orientado
para um objectivo concreto, previsto e querido. Os homens
que desde muito tempo trabalham na mesma fábrica vêm a
constituir uma comunidade, criada pela própria fábrica, pelos
problemas, interesses, reivindicações de todos. O local de tra­
balho, antecedente, gerou ligações diversas entre as pessoas,
que, a pouco e pouco, se vão sentindo solidárias, portadoras
de uma sensibilidade e de uma mentalidade específica. Coisa
que veio de fora para dentro.
I ll

Os trabalhadores dessa fábrica, tomando consciência de


alguns de seus problemas, e querendo resolver este ou aquele,
fundam, por exemplo, um clube. Então, resultante de um
encontro consciente de vontades, nasce esse objecto, congrega­
d o s secundum quid, das mesmas vontades, das pessoas que
se empenharam no programa. Aí está uma sociedade.
Ora, a nação é a mais importante das comunidades.
É mesmo a comunidade das comunidades. A acção de todo um
conjunto de factores — meio físico, meio social, heranças étnicas,
história, sofrimentos, lutas, esperanças comuns — agrupa os
homens, quase sempre de um território definido, ajusta-os, con­
forma-os, gera-lhes um tipo de sensibilidade, cria-lhes determi­
nados gestos, faz-lhes nascer certos hábitos, dá-lhes uma fisio­
nomia.
Está constituída a nação.
A partir dai os diversos homens e mulheres que compõem
a nova comunidade tomam consciência do facto. Descobre cada
um que é solidário com cada um. Descobre cada um que cons­
titui com os outros um grupo à parte na humanidade. Vê cada
um nos outros um parente, não de sangue, mas de espírito. Dai
a conotação afectiva da nacionalidade.
Posso ser amigo íntimo de um francês ou de um italiano e
nem sequer conhecer um amazonenese. Mas vejo no amazo­
nense abstracto um co-nacional, um irmão espiritual, um sujeito
que terá muitas reacções iguais às minhas, ao passo que, no
francês ou no italiano concreto, descubro manifestações de
sensibilidade e afectividade a mim estranhas e inacessíveis.
Napoleão não é para mim o que é para o francês, e a banal
expressão «mort pour la France» desperta neste ressonâncias
que em mim continuam dormindo, ainda que ache admirável
qualquer homem morrer pelo bem de sua pátria.
112

Não estou estou longe de ver nessa consciênáa nacional o


próprio da nação. Os outros elementos, unidade de território,
de língua, de religião, seriam o elemento material, ao passo que
essa certeza de pertencer a um grupo diferente na humanidade
é que seria o elemento formal da nação.
De qualquer modo, é um elemento, também ele, dinâmico.
Que se soma ao dinâmico essencial, ou seja, à inteligência inda­
gadora, desbravadora, criadora.

4. NAÇÃO E ESTADO

Não se confundem as duas coisas. Já dissemos que a nação


é uma comunidade, a maior e mais importante delas. Se é
comunidade, é de formação natural e espontânea, que se impõe
à consciência e à sensibilidade de cada um de seus membros.
Ê o resultado de um way of Ufe, adoptado, repetido, prolongado.
É um produto histórico, é obra do tempo, cria laços afectivos.
O Estado é a sociedade politicamente organizada. Se é
sociedade, já se distingue da nação. Resulta da actividade reflec-
tida, de um encontro de vontades. Daí ser moral o laço que une
os cidadãos. Daí haver uma lei que lhes disciplina a actividade.
Há Estados a que não corresponde nenhuma nação; há
nações que não constituem Estados; Estados existem que
englobam e submetem diversas nações.
As nações tendem a organizar-se em sociedade política,
isto é, tendem a autogovemar-se. Mas, quando tal acontece,
passa-se de uma situação a outra. O Estado não é a Nação, como
entendia e ensinava o fascismo, acrescentando que não há
«espaço» entre uma e outro.
113

A Nação que se organiza em Estado acrescenta uma nota:


seus nacionais consideram-na Corpo Político. Isto sem falar nos
Estados que vieram a suscitar nações, como é o caso da
Inglaterra.
De H ovre estabelece uma série de oposições entre nação
e Estado, que vale a pena referir porque to n muita finura e
ajudará a compreender definitivamente que as duas coisas não
se confundem. Observa ele que o Estado se funda na autoridade,
enquanto a nação se apoio nas tradições; um actúa no espaço, a
outra existe no tempo; um regula a vida por fora, a outra dá
colorido interior a essa mesma vida; um busca sua força na
unidade, a outra na liberdade; um é regulador, a outra é potên­
cia criadora da vida intelectual; um é mecânico, estático, centra­
lizador, a outra é dinâmica, orgânica, federal; um realiza a união
pela força, a outra pela inspiração; um é organismo político, a
outra organismo psicológico e social; um é o dem ento paternal,
a outra o dem ento maternal; o Estado vive da lealdade, a nação
vive do amor (s).

5. NAÇÃO E CULTURA NACIONAL

íntima, já o temos visto, é a relação entre nação e cultura.


Pode-se até dizer que a nação é uma comunidade cultural. Os
homens trabalham, aplicam a inteligência, procuram domesticar
o meio físico, e o resultado da intercomunicação de suas vivên­
cias vai-se tomando aquele estado de espírito que caracteriza a
cultura nacional.

(®) Cf. Essai de Philosophie Pédagogique, Bruxelles, 1927,


ps. 270-271.
»
114

Mas na hora mesma em que existe esse estado de espírito


existe a nação, e vice-versa.
A existência da nação postula a existência de uma cultura
nacional. Mas aqui também cumpre distinguir entre o passivo
e o activo, entre o estático e o dinâmico, entre rotina e tradição.
O nacional de uma nação lhe absorve a cultura: atitude pas­
siva. As gerações sucessivas mantêm a cultura estacionária e
fechada: rotina. Ocorrendo a tomada-de-consciência da nação,
diversos nacionais entendem que é preciso progredir, aprofun­
dar, alargar, desenvolver, criar, para enriquecer o patrimônio
que eles receberam e assimilaram sem o sentir. Passar adiante,
aumentando sem desfigurar; explorando a fundo, para tornar as
virtualidades realidades, as potências actos, em linguagem filosó­
fica. Isto é tradição, no sentido próprio e dinâmico, tanto é
verdade que a palavra repete o latim traditionem, que está à
base de tradere, «entregar».
Tradição é, pois, entrega. Entrega, que cada geração faz
à outra, do patrimônio preservado e aumentado; entrega, que é
condição de autêntico progresso.
Aí vemos, agora mais claramente, como a consciência
nacional é elemento dinâmico acidental da cultura, que se
soma ao essencial, isto é, ao esforço da inteligência pessoal.6

6. CULTURA NACIONAL BRASILEIRA

Só poderia existir uma cultura brasileira a partir da exis­


tência de uma nação brasileira. E a Nação é obra do tempo,
que vai caldeando, fundindo, combinando os diversos elemen­
tos formadores.
Assim, no século XVI nada existe que se pareça com
nação. No século XVII, já começam a surgir certos elementos
115

que, modificados, futuramente serão constitutivos da nacionali­


dade. Os portugueses já vêm para ficar, já existe gente nascida
no Brasil, para quem a nova terra é mais íntima («principal­
mente nasci em Itabira», como lá diz Carlos D rummond de
A ndrade), é sua. Já vai aparecer um primeiro sinal: tentativa
de Historia, realizada por F reí Vicente do Salvador. A cons­
ciência do passado marca, para o homem, a transição da infân­
cia à adolescência. Analógicamente, o mesmo para as nações.
Depois, um factor catalítico: a invasão holandesa. O fla­
mengo constituiu corpo estranho. Era protestante, urbano, fa­
lava língua germânica, distinguindo-se, pois, vivamente do colo­
nizador e plasmador: católico rural, románico. Urgia expelir o
invasor. E uniram-se as três etnias nessa empresa. O resultado
foi a descoberta de que havia algo de comum, de profundo,
entre aqueles que arriscaram ou perderam a vida para combater
um mesmo inimigo. Termina, pois, o século com um progresso
em direcção à nação.
Na centúria seguinte, desvenda-se o interior. Vareja-se o
«hinterland», toma-se posse de uma terra imensa, extrai-se ouro
e pedras, desloca-se o centro, da Bahia para Vila Rica. Aqui,
adensa-se a população, afervora-se um espírito comum, apura-se
uma sensibilidade já diferente, decantada num passado já consi­
derável, sugerida por uma paisagem característica, nostálgica
e fechada. Tal sensibilidade já se manifesta em arte dijeren-
ciada: poesia, música, artes plásticas. Surge um barroco mineiro,
assim chamado por R obert Smith . Aparece um gênio, visio­
nário e trabalhador infatigável, Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho.
Existe já uma nação incoativa, que sonha a independência,
com outros visionários, como Cláudio Manuel da Costa ou Tira-
dentes.
116

Fracassou o movimento político, mas a consciência nacio­


nal se aprofundou. Mais alguns anos, e vem o Ipiranga, a pro­
clamação da Independência, levada a cabo por um português.
Aliás, este facto político, a Independência, foi previsto que­
rido e facilitado por D. João VI, que veio a ser um dos melho­
res governos que o Brasil tem tido. Abriu os portos, permitiu o
comércio, de coisas e de idéias, criou a Impressão Régia, fun­
dou diversos estabelecimentos de ensino, que foram a origem
dos estudos superiores no Brasil (Medicina, Farmácia, Química,
Engenharia, etc.), fundou a Biblioteca Nacional, o Jardim Botâ­
nico, o Museu Real (hoje Nacional). E, pensando em Bolívar,
aconselhou o filho D. Pedro a pôr a coroa na cabeça antes
que algum aventureiro lançasse mão dela. Essa visão política
preservou a unidade da América Portuguesa, em contraste com
a pulverização da América Espanhola.
A Independência consolidou e vivificou a consciência nacio­
nal. Logo, homens de pensamento e de letras começaram a
bradar por uma literatura que fosse autenticamente brasileira,
nos temas, na expressão, no tratamento da matéria.
E veio o Romantismo, que foi o Ipiranga das letras.
Ao longo do Segundo Império, graças principalmente ao
denodado e esplêndido trabalho de V arnhagen, funda-se a his­
toriografia nacional, patenteia-se um esforço claro para explicar
o Brasil aos brasileiros. Capistrano de A breu, Sílvio R omero,
J oão R ibeiro, E uclides da C unha , já na República, tomam
o facho e prosseguem na caminhada, enquanto os artistas,
nem sempre bem orientados, tentam interpretar e exprimir as
peculiaridades da nação.
Depois, a Semana de Arte Moderna em 1922 (centenário
da Independência) e, principalmente, a Revolução de 1930, que
veio trazer um caudal de estudos sobre o Brasil, um aprofun­
damento da consciência nacional, a clara busca de uma arte
117

própria, com um romance novo, sociológico, e uma poesia mais


séria e mais autêntica.
Alinharemos, exemplificativamente, entre os descobridores
do Brasil em profundidade, Pandiá Calógeras, J osé V erís­
simo, A lberto T orres, O liveira V iana, G ilberto
F reire. Lembraremos duas importantes colecções, lançadas por
editoras novas e corajosas: Brasiliana, da Companhia Editora
Nacional, e Documentos Brasileiros, da José Olímpio.
Assim, a acção de inteligências poderosas e conscientes da
nacionalidade criou, aprofundou e alargou uma cultura bra­
sileira.

*
* *

Paralelamente se formou em todo o povo, -de norte a sul,


de leste a oeste, um forte sentimento nacional, que, sem des­
truir ou sequer atenuar o espírito regionalista, sustenta vigoroso
a unidade da pátria. Poucos países no mundo terão tão viva
e sólida unidade como o Brasil. O amazonense ou o gaúcho
se sente, acima de tudo, brasileiro. Lembra-me que, passando
certa vez pela Catalunha, via escrito por toda a parte «Cataluña
es España». Disse então aos acompanhantes, no caso, familiares
meus: «É sinal de que não é Espanha! Vocês imaginariam
cartazes desses na Baía, em Pernambuco, em Minas, no Rio
ou em S. Paulo?».
Essa pujante unidade nacional brasileira é o principal factor
da assimilação rapidíssima do alienígena, isto que faz o filho do
estrangeiro imigrado já ser inteiramente brasileiro.
CAPÍTULO VIH

O BRASIL E A AMÉRICA

Depois de termos analisado a actuação dos factores culturais


«estáticos» (compreendidos no meio físico e nas heranças étni­
cas) e do dinámico, tem cabida um exame da posição que o
Brasil veio a assumir, ao longo de sua história, em relação aos
países da América, tanto a espanhola com a anglo-saxónica.

1. A EUROPEIZAÇÃO DO BRASIL

Olhando com olhos de ver, a primeira coisa que descobri­


mos é que o Brasil tem vivido segregado do resto da América
Latina. É uma nação sensivelmente mais europeia do que as
outras daquele subcontinente.
O ensaísta A lceu A moroso L ima fala há muitos anos
numa «lei da repercussão», que explica muitos fenómenos de
nossa história cultural. Todas ou quase todas as idéias, novi­
dades e movimentos surgidos na Europa «repercutem» no Brasil,
geralmente trinta anos depois, e descrevem lá um ciclo seme­
lhante ao que descreveram no Velho Continente.
Observando a mesma coisa, de outra maneira e com outro
espírito, dizem irritados os nacionalistas que vivemos a maca­
quear a Europa, em vez de procurarmos ser brasileiros.
Discordando ou concordando, não podemos deixar de con­
cluir que a história cultural do Brasil tem sido um reflexo da
história cultural da Europa: mesmas idéias e movimentos polí­
ticos, literários, artísticos, filosóficos.
120

Esse europeismo brasileiro e esse nosso afastamento e des­


conhecimento da América Espanhola tem suas razões geográ­
ficas, históricas e culturais.
De há muito vêm os governos tentando aproximar-nos das
outras nações latinas do continente. Fazem-se tratados e mais
tratados, uniões, acordos comerciais e culturais, protestos de
amizade e ajuda mútua, propõem-se blocos e «operações», e
tudo continua como dantes: a opinião pública interessa-se muito
menos pelo que se passa na América Espanhola do que pelo
que acontece na Europa.
Isto ocorre, porque a acção dos governos normalmente não
pode contrariar as tendências mais profundas dos povos. É ver
o que se passa no Portugal de hoje: o governo se esforça por
estreitar laços com a Espanha, multiplica actos nesse sentido,
mas o português da rua, o homem comum, o homem típico
do país não gosta dos espanhóis. Por trás dessa antipatia
estão séculos de luta heróica contra repetidas tentativas de
dominação, de submissão de toda a Península Ibérica ao jugo
castelhano. Estão séculos de afirmação e reafirmação da dife­
rença portuguesa, da personalidade da nação portuguesa, emer­
gente desde os primórdios.
Diriamos que nossa segregação da América Espanhola tem
razões geográficas, históricas e culturais. Uma das razões his­
tóricas, embora extrínseca, talvez seja esta: a afirmação anti-
•espanhola do português.

2. A FUNDAMENTAÇÃO GEOGRÁFICA

No rápido e panorâmico estudo que fizemos do meio físico


brasileiro, procuramos deixar manifesta a unidade geográfica do
nosso país: uma espinha dorsal, o Grande Maciço, a descer para
121

o oceano e para as planicies circundantes, do norte e do sul;


duas pesadas fronteiras naturais a leste e a oeste, o Atlántico
e os Andes; outras duas a norte e a sul, o Sistema das Guianas
e o estuário do Prata.
Essa indiscutível unidade geográfica foi teatro da epopeia
das Bandeiras. Os varejadores do sertão pararam nos primeiros
contrafortes andinos e balizaram, grosso modo, o Brasil de hoje.
De tal arte e com tal nitidez, que a Espanha não teve senão
como aceitar o Tratado de Madrid (1750), substituindo Torde-
silhas (que deixava a maior parte do actual Brasil em mãos
espanholas) pelo uti possidetis, que reconhecia como direito o
facto da ocupação do território, geograficamente uno, desbravado
e revelado.
Não nos escape também a observação de que o Atlântico
é uma rua. Larga, mas rua. Do outro lado da rua, está a
Europa. E, excluída a Argentina, os demais países do conti­
nente estão voltados para o Pacífico. Ora, ninguém, mediana­
mente informado em História, desconhece a importância do
mar na vida dos povos. Pelo acesso a ele se fizeram muitas
guerras e correu muito sangue.
Temos, portanto, inapelavelmente, nações voltadas para o
Pacífico e nações voltadas para o Atlântico (sendo de lembrar
que uma delas, o Uruguai, já foi Brasil), separadas por uma
cordilheira quase intransponível.
Essa unidade geográfica favoreceu a solução imperial para
o problema político posto na hora da Independência. Surgiu
uma decisão histórica contrastante: Brasil uno e monárquico,
América Espanhola múltipla e republicana.
122

3. RAZÕES HISTÓRICAS E CULTURAIS

Desde logo, o Brasil foi descoberto e colonizado por portu­


gueses, ao passo que os demais países sul-americanos o foram
pelos espanhóis. Então, herança étnica diferente, língua dife­
rente, processos de povoamento e colonização diferentes.
Junte-se a isso o problema das comunicações, dado impor­
tantíssimo. Temos tido, como é natural, permanente contacto
com a Argentina, mas poucos e difíceis contactos com os países
do Pacífico. Só agora, recentemente, é que se inaugurou uma
linha marítima regular entre os portos dos dois oceanos. Os
jornais de 4 de Novembro de 1966 noticiaram como novidade
o «Brasil ligado ao Pacífico», ao ensejo da viagem inaugural
do barco Santa Ana (nome espanhol), de uma frota de seis, que
iriam fazer circuitos regulares entre as duas costas.
Das Antilhas, América Central e México sempre tivemos
vaga notícia, com escasso interesse. Muito poucos brasileiros
serão capazes de enumerar os países centro-americanos e as
nações do Caribe. Antes de se instalar o regime comunista em
Cuba, praticamente nada se sabia acerca do país. E hoje
pouco mais se sabe além disso: é comunista e tem a governá-lo
um ditador barbado. Estiveram tropas do Brasil em São Domin­
gos, e quase ninguém sabia onde ficava o país. Desconhecemos
redondamente a história das nações hispano-americanas, igno­
ramos o nome de seus presidentes, não lemos seus poetas, roman­
cistas ou ensaístas. Têm sido dois mundos à parte o que
resultou da colonização portuguèsa e o que nasceu da coloni­
zação espanhola.
A América Espanhola é indiscutivelmente menos europeia
do que o Brasil. E isso tem causas e razões também histórico-
•culturais. Existiu lá uma influência de subtracto que aqui
praticamente não se fez sentir.
123

Já tivemos oportunidade de assinalar que poucos foram


no Brasil os remanescentes indígenas na cultura nacional, exacta­
mente porque inexpressivas eram as culturas aborígines brasilei­
ras. Já na Hispano-América foi muito diferente. Em diversos
países encontraram os espanhóis a força resistente de culturas
significativas e outrora muito poderosas, de modo que aí actua-
ram fortes algumas heranças étnicas, que necessariamente mar­
caram fundo as resultantes nacionais.
A adaptação da cultura europeia aqui foi muito mais fácil
e tranquila do que lá nas nações voltadas para o outro mar.
Por isso tudo que vamos alinhando, antes que discutindo,
as nações hispano-americanas são diversas do Brasil e seme­
lhantes entre si.
Nossa história, por exemplo, tem-se caracterizado pela solu­
ção pacífica dos conflitos e das crises, ao passo que nas outras
nações do continente, herdeiras do sangue espanhol, têm sido
constantes as revoluções e os conflitos violentos e cruentos.
Aqui se resolvem os casos «na conversa»; lá, nas ruas e a
poder de tiros, com morte de homem.
A fim de surpreender fácil esse nosso desligamento do Con­
tinente, eu proporia um teste curioso e revelador: quase todos
nós falamos em «América Latina» como algo alheio a nós.
A expressão nos faz pensar nos países hispano-americanos,
nunca em nossa própria terra, quando é evidente que somos
latino-americanos. É que nos sentimos diferentes dos outros:
geografia, história, língua, cultura, substractos nos separam.
Escusado dizer que não estou advogando o isolamento do
Brasil em relação aos países hispano-americanos. Longe disso!
Não sou isolacionista. Defendo até, ardorosamente, o entendi­
mento amplo e profundo entre os povos, insisto na valorização
de um bem-comum universal, supranacional, que deve coibir os
124

nacionalismos, limitar as chamadas soberanías e condenar qual­


quer isolacionismo, por definição egoísta e injusto.
Estou apenas chamando a atenção para um facto, e bus­
cando explicações para ele. Esse facto é a maior europeização
do Brasil, com a conseqüente segregação nossa da América
Espanhola, menos europeias do que nós.

4. BRASIL E ESTADOS UNIDOS

Desde o último quartel do século passado começou a exer­


cer-se no Brasil influência norte-americana. Inicialmente no
pensamento político e na decorrente acção política. Nossa
República foi modelada sobre a americana. Os estadistas bra­
sileiros andaram lendo The Federalist e pretenderam instalar
aí um regime em tudo semelhante ao dos Estados Unidos.
Não o conseguiram, exactamente porque somos um país
latino e tínhamos tradição monárquica.
Apenas implantado, o nõvo regime descambou para o cau·
dilhismo, que é um traço comum que temos com a Hispano-
-América. Floriano, Pinheiro Machado, Getúlio Vargas são
indiscutíveis manifestações de sul-americanismo em nossa his­
tória política. Por outro lado, jamais a Federação se tomou
efectiva no Brasil. O Poder Central enfraquece ou anula o Poder
Federado, entre outras razões porque ele nunca foi federado.
Este primeiro surto de influência americana foi vivamente
combatido por Eduardo P rado, num livro famoso, A Ilusão
Americana, cuja primeira edição (1893) foi confiscada pelo
governo.
Igualmente foi interpretado como acção americana, e com­
batido, o desenvolvimento de escolas e colégios protestantes
na Primeira República.
125

O cinema foi e continua sendo veículo de urna constante


influência, que tem trazido ao país diversos reflexos e imita­
ções do chamado american way of life. Nos nossos dias, prin­
cipalmente nas cidades maiores, observa-se larga imitação de
estilos de vida dos Estados Unidos: no comércio, no modo de
vestir, nos gostos, nas atitudes, nas concepções, na música, nas
apresentações de espectáculos, na publicidade.
Naturalmente a influência é digerida e atenuada pelo espí­
rito nacional. Mas é inegável, e faz-se sentir em amplos sectores.

5. O ANTI-AMERICANISMO E O NACIONALISMO

Paralelamente ao crescimento da influência do american


way of life cresceu a oposição, em ocasiões diferentes e por
motivos diferentes. Já falámos em Eduardo Prado, que reagiu
principalmente em função de seu catolicismo, de seu monar­
quismo e de seu europeísmo. Depois, deixando de lado vozes
isoladas e esporádicas, organiza-se uma reacção sistemática, no
Movimento Integralista.
Ninguém ignora que o movimento teve importância na
década de 30, sobretudo nos dias que precederam o Golpe de 37.
O Integralismo conseguira muitos adeptos, na juventude e nos
homens maduros (não poucos depois se tomaram esquerdistas).
E era dele uma constante o ataque à influência americana no
Brasil.
A razão agora é política. O movimento é nacionalista, e
considera espúrio o influxo exercido «pelo país que nem nome
tem». Os Estados Unidos acabariam destruindo o Brasil, sua
formação, sua tradição, seu espírito, e até sua economia.
Esta perspectiva económica foi retomada em nossos dias
pelos comunistas, que apresentam os Estados Unidos como
126

únicos culpados do nosso atraso e subdesenvolvimento, com


todas as suas conseqüências.
A nova pregação tem eco, como teve a pregação integralista,
principalmente nos meios estudantis, que se encarregam, agora
como então, de difundir as ideias em formas de slogans.

6. O NACIONALISMO ACTUAL E O ROMANTICO

Cumpre distinguir cuidadosamente nacionalismo de patrio­


tismo. Este é uma virtude, tem indisfarçável conotação ética.
É o amor da pátria, amor eficaz, com o conseqüente desejo e
empenho de fazer-lhe o que lhe é bom. Virtude anexa da
justiça, é o patriotismo, em sã doutrina, análogo da piedade
filial. Do mesmo modo que os filhos devem amar, respeitar e
reverenciar os pais, ainda reconhecendo-lhes os defeitos, o
patriota ama sua pátria, reconhecendo-lhe embora defeitos,
eventualmente graves, que ele se dispõe a minorar ou corrigir,
começando por revigorar em si um autêntico espírito de bem-
-comum.
O nacionalismo é diferente. É uma ideia. Ideia de superio­
ridade intrínseca e indiscutida da própria nação, entendida como
um valor absoluto. É ideia típica do século XVIII e começo
do XIX, que já se vê consagrada no Congresso de Viena
(1815) e se desdobra no chamado «princípio das nacionalida­
des», segundo o qual cada nacionalidade tem direito de consti­
tuir-se em Estado.
Um dos grandes teóricos do nacionalismo foi F ichte ,
sobretudo com seus Discursos à Nação Alemã, no inverno de
1807-1808.
Mais tarde, outro alemão veio eclipsar éste e lançar as
bases de novo nacionalismo, metafísico, idealista e estatal.
É Hegel, filósofo da divinização do Estado, de quem procedem
127

os totalitarismos do século X X , com seu fundamento nacio­


nalista.
Há, pois, para falar em grosso, dois nacionalismos: um
romântico, de exaltação nadonal, de hegemonia do nacional;
e um idealista, que personifica a nação, que lhe dá direitos
absolutos e faz dela base do Estado omnipotente, divino e
infalível. Nesta doutrina se fundamentaram o Estado Fascista,
o Estado Nazista e o Estado Soviético, com colorações diversas,
que não vêm ao caso explicitar.
Daí já se pode ver que, por força mesma da «lei da reper­
cussão», o nacionalismo brasileiro actual é diferente do nacio­
nalismo romântico que se seguiu à Independência.
Então o nacionalismo representava uma afirmação do
homem nacional e dos valõres nacionais contra e sobre o homem
e os valores portugueses. O indianismo é disto sinal (e prova
para o nosso caso). O índio era o homem brasileiro, sem mescla
de sangue ou de cultura portuguesa, e homem superior em tudo
e por tudo ao português. Aí estão os heróis de Iracema: a «vir­
gem dos lábios de mel» e Poti são física e moralmente superio­
res a Martini. Aí está Peri, espécie de Galaaz, homem perfeito
e de inexcedível (e impossível) força física.
O índio foi nosso herói romântico, e datam do indianismo
muitas trocas de sobrenomes portugueses por antropónimos
tupis. A nascente nação brasileira se afirmava ante o coloniza­
dor. E eram os valores humanos e espirituais que se punham
em cotejo.
O nacionalismo integralista foi mais ortodoxo hegeliano.
Apresentava a nação como valor absoluto, como princípio da
moralidade política, como fundamento do Estado, como pedra-
-de-toque do valor brasileiro do homem brasileiro.
Já o nacionalismo actual, de inspiração marxista, põe a
tónica no económico. Ele conclama não à defesa de nossas tra-
128

dições, de nossa filosofia de vida, de nossa religião, de nossos


valores espirituais, de nossas grandes realizações no passado,
a arte barroca ou Machado de Assis, por exemplo, mas à defesa
de nossas jazidas de ferro, de nossas areias monazíticas, de
nosso urânio, de nossa indústria.
«Dai-me o económico e eu vos darei o resto». Libertan­
do-se o Brasil dos trustes internacionais (entenda-se «america-
-nos»), todos os problemas se solucionarão por si mesmos.
Quando se fala em «Brasil para os brasileiros» quer-se signi­
ficar que as riquezas materiais do Brasil devem ser só dos bra­
sileiros e manipuladas pelos brasileiros. O resto não tem impor­
tância, porque decorre disto.
O actual nacionalismo é furiosamente anti-americano e
reage a um «colonialismo» diferente do da época romântica,
porque lido e entendido na cartilha de M arx e L enine .

I
ASPECTOS
LINGUA — LITERATURA — ARTES PLASTICAS — MÚSICA
— PENSAMENTO FILOSÓFICO — RELIGIÃO
CAPITULO IX

A LINGUA PORTUGUESA NO BRASIL

Estreitas e múltiplas são as relações entre a lingua e a


cultura. Desde logo, a língua é a primeira manifestação da cul­
tura de um grupo, tanto é verdade que, a seu modo, lhe reflecte
o nivel mental, as ocupações dominantes, o espirito, as caracte­
rísticas psicológicas, os hábitos, o temperamento. Produtos
histórico-culturais, as línguas documentam as vicissitudes da
formação de um povo, principalmente no que diz à Semântica.
Em segundo lugar, o idioma é condição da cultura, isto é,
de circulação dos bens culturais. Por isso se pode dizer que
quanto mais una é uma língua tanto mais sólida é a unidade do
povo que déla se serve. Todo povo bilingüe é povo cultural­
mente dividido: tem, por assim dizer, duas sensibilidades, pre­
valecendo aquela que se exterioriza na língua mais familiar, mais
espontânea, mais íntima.
Em terceiro lugar, o idioma espelha, mas também causa:
a unidade, o apuro, ou o desleixo, o entendimento profundo ou
os germes de desinteligência e desintegração.
Não insistimos, porque tememos estar dissertando sobre o
óbvio. No entanto, gostaríamos de lem brar aqui que o am or
da língua é sinal de cultura elevada, que o cuidado na boa arti­
culação das palavras é índice de aprimoramento, m uito m ais do
que o requinte no vestuário ou o zelo da casa de morada. Im i­
ta-se o trajar, macaqueiam-se os estilos e adornos domésticos,
mas não se improvisa o bom e adequado uso da língua-padrão,
nem se finge, ocasionalmente, rigor e exacção no articular os
vocábulos.
132

*
* *

Postos estes preliminares, entremos a examinar, por alto,


a historia e o estado actual da lingua portuguesa no Brasil,
considerando as coisas, como sempre, em perspectiva cultural.
Os portugueses, que nos descobriram e nos colonizaram,
trouxeram-nos, de par com os outros elementos de sua cultura,
a língua románica formada nas velhas terras da Lusitânia.
Falavam os primeiros colonizadores, segundo todas as pro­
babilidades, uma língua de aspecto ainda arcaico-tardio, seme­
lhante à que nos ficou documentada nos textos do século XV.
É claro que o povo se manteve alheio à extraordinária renova­
ção que se processou na língua literária por influência do Renas­
cimento e principalmente pelo toque mágico do gênio camo­
niano.
Transplantada para cá, sofreu a língua forte concorrência
de uma importante rival, o tupi, que se falava em quase toda
a costa e que, com o tempo e por circunstâncias várias, se tomou
em língua geral do Brasil-Colónia. Nos primeiros tempos, e até
o século XVIII em alguns lugares, falou-se mais tupi que
português, sendo esta a língua oficial, a das cidades maiores,
a língua da administração ou do comércio, e o tupi a língua
caseira, transmitida principalmente de mães a filhos, instrumento
de comunicação do cotidiano (*).

0) Sobre a convivência da «língua geral» com o português, os


pontos do território em que ela foi mais prolongada, e sua profundidade,
vejam-se os testemunhos coligidos e criticados por Sbrafim Silva N eto
na Introdução ao Estudo da IAngua Portuguesa no Brasil, 2.a ed., INL,
Rio, 1963, ps. 52-67.
133

No entanto, língua mais culta, instrum ento de um a civili·


zação superior, transplantada e agora implantada, o português
foi ganhando terreno à língua geral e foi em purrando-a para o
interior cada vez mais profundo, até que a ilhou em pequenas
regiões da Amazônia, onde até hoje se usa, bastante modificada,
num dialecto conhecido por nheengatu, cuja m elhor expressão é a
linguagem dos índios parintintim , no Alto-M achado, afluente do
rio Madeira.
Evidente que nesse processo histórico houve um momento
em que os índios e tupi-descendentes, as populações rurais e as
urbanas de pouca cultura abandonaram o uso da língua tupi
e adoptaram a língua románica dos descobridores. Evidente tam ­
bém que os indivíduos que deixaram de usar um a língua sem
flexão, de vocabulário relativamente pobre e de sistema sonoro
completamente outro, falaram mal, muito mal a nova língua,
trazendo para ela os seus antigos hábitos de pronúncia, a sua
maneira de construir a frase, ao mesmo passo que lhe simplifi­
cavam extremamente as flexões. Formou-se, assim, seguramente,
um dialecto crioulo de tipo tupi.
Acrescente-se a isso o trabalho idêntico das populações
negras escravizadas, que, adoptando o português, o deformaram
em dialectos crioulos, aqui de tipo banto, ali de tipo ioruba.
Temos então que, nas baixas camadas da população, a
língua románica se alterou profundamente, predominando num
ponto a influência tupi, noutro ponto a influência negra, em
tal outro influências de línguas e dialectos brasileiros não tupis e,
finalmente, em outros mais, influxos cruzados e conjugados das
várias línguas ditas bárbaras.
Estamos então em plena fase da diferenciação, a vitória das
forças centrífugas, da forte actuação dos substratos.
Agora, por outra parte foram trabalhando desde o primeiro
momento forças centrípetas, factores de unificação, — tais como
134

a lingua escrita, as escolas, o prestígio e a acção da dasse senho·


rial, as tendências de imitação e de selecção, vivas nas classes
inferiores da população e, finalmente, como mais importante,
as levas sucessivas de emigrantes lusos que aportavam à Colônia
e por aqui se espalhavam, ensinando no trato diário as formas
autênticas da língua portuguesa.
Então, por isso, as gerações que se seguiram àquela que
deixou o uso da língua materna para falar o português foram
dominando progressivamente melhor o sistema sonoro e o meca·
nismo da língua románica, até que desapareceu a maior parte
dos defeitos iniciais de aquisição.
Paralelamente, a língua literária ia sendo cultivada com
amor e requinte, de tal modo que, ao fim do século X V m , os
escritores brasileiros trabalharam a feição culta do idioma talvez
com maior mestria que os seus coevos portugueses, o que se
pode exemplificar num C láudio M anuel da Costa.

Pela época das Bandeiras ter-se-á formado no planalto


piratiningano um dialecto crioulo ou quase-crioulo, cujo fundo
seria o português arcaico-tardio, dialecto que os bandeirantes se
encarregaram de disseminar pelos sertões de Minas, Goiás, Mato
Grosso, São Paulo, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande e,
através do rio São Francisco, até pelo Nordeste, — e que ficou
sendo demento comum da linguagem popular interiorana bra­
sileira.
Ficaram as populações sertanejas isoladas, e menor influên­
cia receberam dos factores de unificação: por isso conservaram
os traços principais daquele dialecto dos bandeirantes (2).

(2) Claro que simplificamos aqui um problema complexo. Enten­


demos que as Bandeiras foram a causa principal da unidade da fala
popular do interior, mas nio se pode esquecer a penetração dos cria-
135

Assim se explicaria a relativa unidade de aspecto da fala


plebeia brasileira, unidade que contrasta com a variedade das
linguagens populares portuguesas, tanto mais que lá se encon­
tra uma língua espalhada por imenso território, e aqui um idioma
apertado em estreita faixa de terra.
O estudo objectivo dos aspectos regionais da fala popular
brasileira mostra-nos uma impressionante coincidência de for­
mas com diversos falares lusitanos. Quer dizer: na fala do
povo, no mesmo lugar, na mesma região do Brasil, encon­
tram-se formas dialectais de várias regiões portuguesas, donde
se conclui que, além de ter um lastro de português arcaico, a
língua popular do Brasil representa um sincretismo de dialectos
portugueses. Já tivemos ocasião de mostrar documentadamente
o que acabamos de dizer, fazendo um longo cotejo de formas
populares brasileiras das nossas principais regiões lingüísticas
com dezenas de formas do dialecto interamnense (s).
As populações urbanas da classe média e da classe culta
falam um português bastante bom e bastante uno, denuncian­
do-se o brasileiro das diversas regiões apenas por um acento
particular e local e um vocabulário preferencial característico (4).*()

dores de gado pelo S. Francisco, rio acima, para o povoamento do sertão


baiano e mineiro e do nordeste; a penetração da Amazônia a partir do
Marannhão, e outros íactos históricos conhecidos. V., at propósito, os
Ensaios d& Geografia Lingüistica, de E ugênio db Castro, Cia. Editora
Nacional, S. Paulo, vol. 201 da «Brasiliana».
(*) V. Chaves db Medo, A Lingua do Brasil, Agir, 1946, págs. 89-95.
(4) Cabe notar que, últimamente, se tem acentuado e alargado
certo desleixo no falar, de modo que já se observam ’com frequência
erros de concordância, de regência e de construção na conversa e até
em discursos de pessoas «formadas»; «Chegou muitas pessoas», «para
mim fazer», «não lhe via há muito tempo»...
136

No segundo quartel do século passado, por efeito da inde­


pendência política, o povo brasileiro toma consciência de sua
existência como um todo nacional, já acentuadamente diverso
do português. Nasce daí um anseio por literatura própria,
anseio que se realiza integralmente quando surge, na língua lite­
rária, um estilo brasileiro, ou seja, uma expressão lingüística
reflexo da sensibilidade, do modo de ser e de viver brasileiro,
por um lado, e eco, espelho, ressonância da paisagem, da terra
e das vicissitudes históricas, das condições sociais, dos aciden­
tes da nossa formação religiosa, humanística, política, econó­
mica, etc., por outro.
A existência desse estilo brasileiro, já nítido em autores
como A lencar ou A fonso A rinos, e mais ainda, num G ra-
ciliano R amos ou num D rummond de A ndrade, levou
muito observador apressado, alguns doutrinadores improvisados
e muito ensaísta apaixonado a falar numa língua brasileira,
coisa desprovida de sentido para o linguista e o filólogo, que
observam os factos e tiram suas conclusões serenamente e com
espírito científico, livre de subjetivismos deformantes (5).
Depois da pronúncia, a diferença mais notável que se
observa no português do Brasil, em relação ao de Portugal,
reside no vocabulário. O idioma ali se enriqueceu de milha­
res de vozes novas, na sua máxima parte, como já vimos,
oriundas da língua tupi, e quase sempre nomes de coisas ou
nomes de lugar. Por outro lado, muitas palavras tiveram
ampliado seu campo semântico, com adquirirem da outra banda (*)

(*) V., a respeito do suposto brasileirismo lingüístico de Alencar,


G. Chaves db Melo, Alencar e a Língua Brasileira, 3.a edição. Conselho
Federal de Cultura, Rio, 1972.
137

do Atlântico significados novos, brasileiros, sem perderem, no


entanto, os sentidos que já tinham até então.
Tal enriquecimento no léxico da língua é o reflexo mais
significativo do novo meio físico e social e, por isso, sua pre­
sença nos escritos de autores nacionais é um dos elementos
concretos e palpáveis daquele estilo bradleiro.
A língua do Brasil, pois, é substancialmente a mesma de
Portugal, mas enriquecida e ajeitada ao temperamento e à sen­
sibilidade brasileira.
A língua popular ostenta, por efeito da influência tupi e da
africana, sensível redução das flexões nominais e verbais. Sir­
vam de exemplificação e amostra as seguintes frases:
«Os menino bem educado num joga casca no chão»;
«As muié chegô tudo atrasado na missa»;
«Num devia de sê ansim, mais os homi trabaiadô às vêis
ganha menos que os vadio, que são prosa e engana os ôto»;
«Ques moleque endiabradu esses que andaro por aqui
fazeno essa lambança, mais pió que a d’estrudia!»
Ou esta estrofe, estilizada, de C atulo da P aixão C ea­
rense (·):

«Drumia todas as noite,


dexando a jinela aberta,
pra iscutá todo o rumô,
e às veis, inté artas hora,
ficava, ali, na jinda,
uvindo o sonho das fró!»

(e) Meu Sertão, nova ed., aumentada e corrigida pelo autor,


Rio, 1932.
138

Ou esta conjugação do verbo «louvar», no presente e no


perfeito do indicativo:

Eu lôvo Eu lovei
tu lôva tu lovô
ele lôva ele lovô
nóis lôva, ou lovemo nóis lovô, ou lovemo
eis lôva eis lovô, ou lovaro

Mas este fenómeno representa um desvio e não uma evolu­


ção, por assim dizer orgânica, do que são provas os frequentes
casos de ultra-correcção, tais como melhas (por «meias»), cafér
(por «café»), bangalores (por «bangalôs») paletór (por «paletó»),
observáveis em falantes ignaros, quando se dirigem a pessoa
mais culta.
Por isso mesmo, tal simplificação flexionai vai desapare­
cendo ou atenuando-se à medida que penetra a civilização e a
alfabetização, e à medida que se vão elevando socialmente os
indivíduos das camadas economicamente inferiores e cultural­
mente mais atrasadas.
Quanto à língua literária, ninguém ignora que ela sempre
foi cultivada com apuro e carinho, desde o começo da trans­
plantação. A Prosopopeia (1601), de Bento T eixeira, é vazada
em língua renascentista, de sabor camoniano. O P.® A ntônio
Vieira largos anos viveu no Brasil, e pontificou na Baía, onde
formou escola de oratória, com discípulos como A ntônio d e
Sá. M anuel Botelho d e O liveira, primeiro poeta nascido
no Brasil, manejava com segurança o idioma na sua feição culta.
Os árcades, no século XVIII, não desmereceram a C láudio
Manuel da Costa: Basílio da G ama, Sántã RrrÀ D urão,
Tomás A ntônio de G onzaga. N o século XIX, tanto o
Romantismo, como o Naturalismo, o Parnasianismo ou o Sim-
139

bolismo deram escritores modelares: D omingos J o sé G o n ­


çalves de M agalhães , A raú jo Porto A legre , G onçalves
D ias , J osé de A lencar , M achado de A s s is , O lavo B ilac ,
A lberto de O liveira, Raimundo Correia , A l ph o n su s de
G uimaraens , Coelho N eto , R ui Barbosa . O próprio M oder­
nismo apresenta autores que são padrões de vemaculidade:
C iro dos A n jo s , G raciliano R amos , G uilhermino C ésar ,
A ugusto M eyer , G ustavo C orção, L ia C orreia D utra ,
M anuel Bandeira , e outros.
Portanto, a língua portuguesa apenas adquiriu ali estilo
brasileiro, o que significa enriquecimento, mas continua idêntica
e bem tratada, por vezes com esmero maior do que na terra
de origem.
CAPÍTULO X

A LITERATURA NO BRASIL

Por literatura entendemos aquí o conjunto de obras escri­


ta s— de urna época, de um povo, de uma nação — relaciona­
das, directa ou indirectamente, com o Belo. Que o procurem
como fim ou como meio. Ela sem dúvida constitui uma das
mais importantes manifestações culturais da vida de um povo,
tanto é verdade que lhe reflecte directamente a história, os ansdos,
as crises, as depressões e os momentos de plenitude. Por isso
mesmo, através do estudo sério e inteligente da literatura se
pode conhecer a história espiritual do povo de que ela é voz.
Porque os artistas da palavra sempre se mostram sensíveis à
problemática do seu tempo: são criadores, sim, mas sofrem
influência do ambiente cultural, a acção ou sugestão do meio
físico, a força das heranças étnicas, a actuante presença do
«momento», ou seja, as idéias, ideais e idiossincrasias de cada
época. O escritor por elas se pauta, ou a elas reage e, even­
tualmente, muda o curso dos acontecimentos culturais. Machado
de Assis, por exemplo, ao mesmo passo que foi o melhor e
mais miúdo cronista do Rio de seu tempo, sagrou-se vigoroso
analista e contestatário da filosofia burguesa da vida, dominante
e ovante.
A Literatura Brasileira começa no século XVI e traz, como
toda manifestação cultural nossa mais alta, a marca ou «pecado»
original: é transplantada e, portanto, imitadora. Não existe
ainda uma nação brasileira, nem sequer um povo brasileiro, de
modo que as obras aqui então surgidas repetem o que se fazia
142

em Portugal. Λ rigor, nos primeiros séculos da nossa história,


o XVI e o XVII, temos literatura portuguesa feita no Brasil.
Assim, as obras descritivas da terra e do homem americanos,
em tudo semelhantes às que em Portugal se escreveram de
Ásia e de África, perfeitamente se incluem no «ciclo dos des­
cobrimentos», de que fala o arguto Fidelino de Figueiredo 0).
No séc. XVI destacam-se as cartas jesuíticas, relatórios que
os padres da Companhia de Jesus remetiam à Metrópole, dando
conta das coisas e das gentes da nova terra, importantíssimo
material histórico e etnográfico, porém de escasso valor lite­
rário: as Cartas do grande Manuel da Nóbrega e de outros; as
Informações e Fragmentos Históricos, de Anchieta; os chama­
dos Tratados da Terra e Gente do Brasil, de Femão Cardim.
A estes, e na mesma pauta, se acrescentará o Tratado Descritivo
do Brasil em 1587, muito copioso em informes de vário género.
De qualquer modo, literatura em sentido próprio são as
obras oratórias, poéticas e dramáticas de Anchieta, escritas com
finalidade catequética ou lírico-espiritual.
O conhecido poema de Bento Teixeira, Prosopopeia, de
1601, é totalmente vazado em termos camonianos; portanto,
renascentista, europeu.
O séc. X V n apresenta novidade, ainda quando trata da
terra: é o sentimento nativista. Os autores, aqui nascidos, já não
são hóspedes: por isso, transcendem da atitude descritiva e
entram decididamente no louvor. Típico é, por exemplo, o
Diálogo das Grandezas do Brasil (1618), supostamente de Ambró-
sio Fernandes Brandão, um dos dialogantes, o Brandónio, que
defende a terra contra as invectivas de Alvirano. Proclaman­
do-se primeiro poeta nascido no Brasil, Manuel Botelho de

(*) Características da Literatura Portuguesa, 3.* ed., revista, Lis­


boa, 1923, ps. 13-16.
143

Oliveira (1636-1711) publicou a Música do Parnaso (1705),


onde se acha a «Silva Descritiva da Uha da Maré», exemplo
clássico do nativismo.
Importante é também a História do Brasil, de Frei Vicente
do Salvador (1564-1636), primeira tentativa de ordenar os factos
(1500-1627), embora careça de rigor científico. Mas já é um
vagido de memória histórica, de consciência de passado.
Está presente a oratória sagrada, onde domina a excepcio­
nal figura de Antônio Vieira (1608-1697), lisboeta, mas levado
para a Baía com 6 anos. Dos quase 90 que viveu, 50 passou-os
no Brasil, onde, inclusive, ardorosa e corajosamente se bateu.
Fez escola em Salvador, de tal modo que se podem considerar
discípulos seus um Antônio de Sá (1620-1678) ou um Eusébio
de Matos (1629-1692).
A mais importante figura literária do tempo é Gregório
de Matos (1633-1696), poeta lírico, religioso e satírico, — for­
mado em Coimbra, juiz em Lisboa, tornado ao Brasil já aos
47 anos. Viveu na Baía, depois em Recife, onde encontrou, na
confusa e agitada sociedade colonial matéria para seus remo­
ques, e censuras violentas. Talentoso e bem equipado, produ­
ziu obra larga, de qualidade, pautada pelos grandes modelos
portugueses e espanhóis. A sátira, de acentuada cor local,
já documenta alguns brasileirismos vocabulares, e retrata o
lado feio das comunidades brasileiras em que andou.
O séc. XVIII traz literatura muito mais copiosa e impor­
tante. Nos primeiros 60 anos continua o barroquismo, cultista
ou conceptista. As Academias reúnem os homens de letras,
boas e más, e incentivam-lhes os exercícios de verbosidade ou
«agudeza»... e obras de elogio mútuo.
O livro mais lido no período colonial de nossa história foi
o Compêndio "Narrativo do Peregrino da América (1728), de
Nuno Marques Pereira (1652-1728), chamado por Capistrano «o
144

Casimiro de Abreu do século X VIII». É uma espécie de ro«


manee alegórico, cheio de reflexões morais e filosóficas e rico
de informes etnográficos.
Em 1768 se funda em Ouro Preto (então V ila R ica) a A rcá-
dia Ultramarina, que representa, na literatura brasileira, sanea­
mento da poesia, despojada já de excessos gongóricos. D irecta
ou indirectamente ligados à Arcádia estão os líricos e épicos
do chamado «Grupo Mineiro», naturais quase todos da região
e participantes da vida intelectual e artística de V ila Rica.
A figura central e irradiadora é Cláudio M anuel da Costa
(1729-1789), poeta de raça, um dos melhores sonetistas da lín­
gua e escritor de execepcional pureza vernácula. Destacam-se
ainda Basilio da Gama (1741-1795), autor do poema Uraguai,
pombalino e anti-jesuítico; Santa R ita Durão (1722-1784), épico
de Caramuru, poema abrangente de toda a história do Brasil
até a época do autor; Alvarenga Peixoto (1743-1792), este
carioca de nascimento. Silva Alvarenga (1749-1814), líricos, e
Tomás Antônio de Gonzaga (1744-1810), portuense, autor da
famosa Marília de Dirceu (1792 e 1799). Gonzaga escreveu tam ­
bém (segundo todas as probabilidades) im portante obra satírica,
as Cartas Chilenas, em que, sob pseudónimo de Crítilo, denuncia
os desmandos do Governador Cunha Meneses, chamado no livro
Fanfarrão Minésio.
Vencido o primeiro quartel do séc. XIX, proclamada a inde­
pendência política, surgiu um estado de espírito ordenado à
criação de literatura que correspondesse à autonomia con­
quistada.
O Romantismo veio fornecer a fórmula de libertação, e ele
oficialmente iniciou-se no Brasil em 1836 com Suspiros Poéticos
e Saudades, de Gonçalves de Magalhães.
À exclusiva influência portuguesa acrescentou-se a francesa
e a inglesa. Agora, novos metros e novos ritmos na poesia, pre-
145

dominantem ente lírica; o verso é mais livre; a língua se enri­


quece; surge o romance, que tem ponto alto em José de A lencar
(1829-1877); reaparece o teatro; a oratória sagrada reveste novas
form as; nasce a oratória política; disciplina-se e aprofunda-se
a historiografia, com o grande Francisco A dolfo de Varnhagen,
(1816-1878), prim eiro antologista e historiador da nossa litera­
tura.
Reflectindo em bora, como não podia deixar de ser, os
momentos, as técnicas e os ideais do movimento na Europa,
sobretudo França e Portugal, o Romantismo veio a ter grande
im portância, pelo que significou de expressão brasileira, de
puro lirismo, até de desequilíbrio e exaltação, tão próprios de
tropicais acalentados por mediterrâneos.
Com o Rom antism o, desloca-se para o R io o centro da
vida literária, que teve, não obstante, repercussão nas provín­
cias. O núm ero de autores e livros, já agora editados no Bra­
sil, é m uito m aior do que em qualquer equivalente época ante­
rior.
Consideramos ainda a m elhor a distribuição dos autores
feita por José Veríssimo (1857-1916), que vê três gerações
românticas, com tem ática e interesses diversos. D a prim eira é
figura máxima Gonçalves Dias (1823-1864), um dos maiores
poetas do Brasil e da língua portuguesa, vem aculista exímio,
com obra numerosa e prim orosa. Acrescente-se, pelo tempo em
que viveu, M artins Pena (1815-1848), o verdadeiro restaurador
do teatro no Brasil, pioneiro da comédia de costumes, pintor
da sociedade flum inense da época.
A segunda geração rom ântica é feita de poetas líricos, m ar­
cados quase todos pela ideia da m orte e pelo «satanismo» de
Byron e M usset, e de rom ancistas que, por prim eiro, exploraram
e desenvolveram o género entre nós. Os poetas, de vida breve,
entregaram-se a um lirism o m uito espontâneo, já seu tanto
10
146

descosido na forma e não raro acentuadamente erótico. São


dignos de menção Alvares de Azevedo (1831-1852), que morreu
antes de completar 21 anos! Junqueira Freire (1832-1855), poeta
triste e revoltado; Casimiro de Abreu (1839-1860), o mais
popular dos poetas brasileiros, lírico suave, amado cantor da
saudade, tão portuguesa e tão brasileira.
A prosa da segunda geração está documentada nos roman­
ces de Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), Bernardo de
Guimarães (1825-1884), José de Alencar (1829-1877) e Manuel
Antônio de Almeida (1831-1861).
Macedo popularizou-se com seu A Moreninha (1845),
iniciador do bem sucedido género «romance de costumes»;
Alencar, o mais fecundo dos escritores brasileiros, é a maior
figura da nossa ficção romântica, senhor de um estilo vivo e
musical, ainda hoje muito lido e apreciado; Manuel Antônio de
Almeida, precursor do romance urbano e realista, deixou um
livro admirável, nada romântico, a retratar o Rio do vice-reinado.
Memórias de um Sargento de Milícias (1854-55).
A terceira geração romântica apresenta ficcionistas bem
menos sentimentais e transfiguradores, e poetas sem vínculo
comum, a não ser o interesse social e político, influência de
Victor Hugo. Dos primeiros, merecem referência o Visconde de
Taunay (1843-1899), autor de uma obra-prima, Inocência (1872),
traduzida para várias línguas; Franklin Távora (1843-1888), que
tentou criar uma «Literatura do Norte»; e o M achado de Assis
(1839-1908) da primeira fase, autor de romances ainda român­
ticos, como Ressurreição (1872), ou laid Garcia (1878), e de
contos já excelentes, reunidos em Contos Fluminenses (1870).
Entre os poetas, são de lembrar o próprio M achado de
Crisálidas (1864); Fagundes Varela (1841-1875), curiosa figura
de transição dos segundos românticos para os parnasianos e até
simbolistas; e Castro Alves (1847-1871), o m aior desta fase.
147

lírico e épico, dono de uma linguagem forte e altisonante (que


muito valeu à campanha abolicionista), autor de obra numerosa
e quase madura (apesar de ter m orrido com 23 anos).
Não termina este segundo período sem que o Romantismo
se exaura e sem que apareça uma nova estética, fruto da filoso­
fia materialista da época, o Naturalismo. De acordo com seus
padrões, surgiram romancistas mais observadores de certos
aspectos da realidade, porém menos imaginativos e nem sem­
pre cuidosos da língua. O prim eiro em cham ar a atenção foi
Aluísio de Azevedo (1857-1913), com O M ulato (1881). Seguiram
a nova moda Júlio Ribeiro (1845-1890), Domingos Olímpio
(1850-1906), Inglês de Sousa (1853-1918), e Adolfo Caminha
(1867-1897).
Entre os contistas, é de mencionar A rtur de Azevedo (1855-
-1908), superficial e anedótico, mas gracioso. Distinguiu-se
como teatrólogo, género leve.
Nesse período naturalista, desenvolve-se a crítica e a his­
tória literária, com três destacados nomes, A raripe Júnior (1848-
-1911), Sílvio Romero (1851-1914) e José Veríssimo (1857-1916).
Romero desbravou a produção literária brasileira, um pouco
sem critério mas exaustivamente, classificou-a e teve olhos para
toda a nossa realidade cultural, embora padecesse do estrabismo
das escolas filosóficas a que se filiou e pagasse tributo a um
temperamento apaixonado e arrebatado.
A poesia desta fase realizou-se no Parnasianismo, para
onde se encaminharam os poetas, por sugestão de M achado.
Arte escultural, perfeição de forma, lingüística e m étrica, acurado
estudo, sentimento sem sentimentalismo, tais foram o norte
dos poetas na década de 80. A escola agradou, tiveram prestí­
gio na opinião seus afiliados, principalm ente Olavo Bilac (1865-
-1918), «Príncipe dos Poetas Brasileiros». Sobressaíram ainda
Alberto de Oliveira (1857-1937), Raim undo Correia (1860-
148

•1911), e Vicente de Carvalho (1866-1924), N a oratória ou no


jornalismo, brilham Joaquim Nabuco (1849-1910), R ui Barbosa
(1849-1923) e Carlos de Laet (1847-1927),
Floresce aí a figura pinacular de nossas letras. M achado de
Assis, poeta, contista, romancista, cronista, crítico e dram aturgo.
De origem humilde, mulato, gago e epiléptico, galgou, por esforço
próprio, todos os degraus, e morreu (1908) cercado de geral res­
peito e coberto de glória. Começou romântico, para assumir
depois posição pessoal e isenta de preconceitos naturalistas.
A obra poética, discreta e contida, reuniu-a em Poesias Com­
pletas (1901), os contos, magistrais e insuperados, seleccionou-os
em várias colectâneas (1873, 1884, 1899, 1906) e os romances
da segunda fase, excelentes, publicou-os a partir de 1881, data
de Memórias Póstumas de Brás Cubas, a que se seguiram Quín­
eos Borba (1891), D. Casmurro (1899) Esaú e Jacó (1904), e
Memorial de Aires (1908).
O terceiro período vive dos remanescentes do anterior e vê
inaugurar-se uma nova estética, o Simbolismo, que influi muitos
poetas semi-pamasianos e conquista definitiva e totalm ente dois.
Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). O pri­
meiro, negro e filho de escravos, aparece com Broquéis e
Missais (1893) e pratica uma poesia ascensional, contrastante,
cheia de expressividade fónica, espiritual na última fase; o
segundo, Alphonsus, mineiro de velhas cidades, é um dos maio­
res poetas do Brasil, pela excelência da forma, pela incom pará­
vel musicalidade do verso, pela riqueza das imagens, pela finura
da sensibilidade, tudo patente em Septenário das Dores de Nossa
Senhora (que faz dele o maior poeta da Virgem em nossa lín­
gua) e em várias obras líricas.
Neste periodo surge um livro forte e de difícil leitura, que,
no entanto, produziu impacto e de certo modo veio a m udar
a temática do conto, do romance e do ensaio. Os Sertões (1902),
149

de Euclides da Cunha (1866-1909). Denunciou o crim e de


Canudos e vivamente chamou a atenção p ara o «outro Brasil»,
o do esquecido interior.
Justam ente no centenário da Independência, com a Sem ana
de A rte M oderna (S. Paulo, 1922), tem nascim ento um a revo­
lução estética, conhecida pelo inexpressivo nome de M oder­
nismo. C a ro que a literatura não poderia ficar alheia a tão
nítida mudança de rumos, que veio a dom inar nossas letras até
ao fim da Segunda G uerra M undial.
Podem-se-lhe distiguir nítidas duas fases: uma, escandalosa
e iconoclata (1922-1930); outra, equilibrada, conciliadora e
fecunda. N a prim eira quase que só ocorre poesia, renegadora
do passado, distribuível em várias «correntes», com o a verde-
-amarela, a antropofágica ou a dinâm ica. A figura dom inante é
M ário de A ndrade (1893-1945), poeta, contista, rom ancista e
critico, mas principalm ente descobridor de cam inhos e anim a­
dor de actividades. Pretendeu, sem êxito, criar um a «língua bra­
sileira», pot-pourri de modismos regionais e de elaborações
pessoais.
Em bora o M odernismo haja com eçado em S. Paulo, na
verdade teve diversos centros de irradiação, com esta ou aquela
tonalidade própria: R io, Recife, Belo H orizonte, Cataguazes,
Curitiba, Porto-Alegre. Sob este aspecto, representa a federali-
zação da literatura.
São de lem brar M enotti dei Pichia (1892); Tasso da Sil­
veira (1895-1968); A ndrade M urici (1898); R onald de Carvalho
(1883-1935); M anuel Bandeira (1886-1968), que, precursor em
Cinza das Horas (1917) e Carnaval (1919), veio a ser um dos
maiores poetas brasileiros; ou Carlos Drummond de A ndrade
(1902), dono de uma obra profunda e extensa, desde Alguma
Poesia (1930) até Lição de Coisas (1962). Ciro dos A njos (1906),
um dos melhores rom ancistas do M odernismo (O Amanuense
150

Belmiro, 1937; Abdias, 1945). Recife com andou a literatura


regionalista do Nordeste, sob orientação de G ilberto Freire
(1900), aparecendo desde logo A Bagaceira (1928), de José Amé­
rico de Almeida. No sul, destaca-se Augusto M eyer (1902-1970),
que veio a ser uma das mais completas figuras de homem de
letras no Brasil, marcado pela erudição, finura e boa língua.
Na segunda fase do Modernismo, a poesia se firm a e surge
avassalador o romance. Além dos poetas atrás mencionados,
lembrem-se Cassiano Ricardo (1895-1974), grande artífice de uma
poesia nacionalista; Ribeiro Couto, poeta do cotidiano, delicado,
discreto; Murilo Mendes (1901), Jorge de Lima (1895-1953),
Augusto Frederico Schmidt(1906-1965), difuso, iterativo e român­
tico, que lembra Peguy, ou Cecília Meireles (1901-1964), no
princípio simbolista, depois muito pessoal, com um puro lirismo
e uma cosmovisão desalentada e triste.
Nunca houvera antes um período tão fecundo em romances
como esta segunda fase do Modernismo. Na farta produção,
pode-se distinguir um «romance do Norte», sociológico, e um
«romance do Sul», psicológico. Impossível é tentar um balanço.
Será suficiente apontar alguns nomes e alguns títulos.
No romance nortista, o primeiro grande impacto é O Quinze
(1930), de Raquel de Queirós, sobre a tragédia da seca no Ceará.
José Lins do Rego (1901-1957) é autor de um ciclo do engenho,
em que se situa entre memorialista e romancista; Graciliano
Ramos (1892-1953), tardíamente revelado (aos 40 anos) como
escritor de primeira plana, cuidoso da língua, é seguro analista
do interior nordestino; Jorge Amado (1912) logrou fama, nacio­
nal e internacional, com um romance social e ideológico, de
ingredientes e soluções marxistas, passado na Bahia, cujos meios
pobres põe em relevo.
No romance do sul, sem constância temática, lembre-se, por
exemplo, além do machadiano Ciro dos Anjos, Com élio Pena
151

(1896-1958), Lúcio Cardoso (1912-1968), ou Érico Veríssimo


(1905), com vasta obra, a retratar principalm ente o Rio Grande
do Sul, presente e passado.
No conto, a que se dedicaram diversos romancistas, distin-
guem-se A lcântara M achado (1901-1935), Aníbal M achado
(1894-1964), com a obra clássica «A M orte do Porta-Estandarte»
(1931), João Alphonsus (1901-1944) ou Guimarães R osa (1908-
-1968), este já do neomodemismo, senhor de uma linguagem
muito pessoal, verdadeiro idiolecto, autor que conheceu a glória,
sobretudo com o rom ance Grande Sertão: Veredas (1956).
O teatro, como em todos os outros períodos, continuou
escasso, poucos nomes apresentando dignos de nota, como Gui­
lherme de Figueiredo (1915), classicizante, ou A riano Suassuna
(1927), m oralizante e religioso, com o grande sucesso de A uto
da Compadecida (1959). A literatura dram ática actual aumentou
de produção, mas não prim ou pela qualidade. Antes, frequen­
temente é «engajada», posta a serviço da agitação ou da decom­
posição social, o que faz que deixe de ser arte. A baixa porno­
grafia, a que não raro se entrega, desonra a cultura nacional.
Acabada a G uerra, surge um grupo de poetas e romancistas
com novas preocupações estéticas e novas atitudes: é a «Gera­
ção de 45». A o movimento se tem cham ado Neomodemismo.
Não se trata, dizem os corifeus, de negação do que se fizera
antes, nem sequer de oposição: será aprim oram ento das tendên­
cias finais do M odernismo, que continua sendo, como movi­
mento, o que de mais im portante se fez no Brasil.
Os poetas m odernistas da prim eira hora, assim como alguns
romancistas, para reagirem aos exageros parnasianos, desdenha­
ram da forma, caindo no prosaísm o e na oralidade: os novos
trabalham sua obra, fogem ao regional, buscam o universal, e
acuradam ente estudam Poética e M étrica. Provam-no o Pequeno
Dicionário de A rte Poética (1960), de G eir Campos (1924), ou
152

os excelentes comentários de Péricles Eugênio da Silva Ram os


(1919) nos seis volumes de antologia poética, realizados, com
segura mão de filólogo, para a Editora M elhoram entos. No
entanto, bastas vezes são herméticos os neom odem istas, como
João Cabral de Melo Neto (1920), ou Domingos C arvalho da
Silva (1915).
Quanto à ficção, impossível dar noficia mais detalhada,
tantos são os nomes e as obras, algumas ainda recentes demais
para uma apreciação menos arbitrária. Falando em geral,
pode-se dizer que o exaltado nacionalismo de nossos dias não
encontrou repercussão na novelística, que, no entanto, fre­
quentemente se voltou para temas crus, ousadias verbais, explo­
ração do sexo, já sem nexo e talvez sem sucesso. Algumas
estreias causaram impacto, como Vila dos Confins (1956), de
Mário Palmério, ou O Coronel e o Lobisomem (1964), de José
Cândido de Carvalho. Clarice Lispector, ucraniana de nasci­
mento, aparece a muitos como mestra de «nouveau román», de
narrativa em diversos planos e diversas claves, adequadas a cada
personagem, com inteira isenção do autor, que, de resto, cria
ambiente lingüístico também na composição das situações.
Tem-se destacado, sobretudo como romancista do M aranhão,
Josué Montello.
Aí está um balanço, sumário e defeituoso, do que tem sido
a literatura brasileira como expressão da cultura. O capítulo
ficou fastidioso, com sensação de longo: é que nos pareceu ser
impossível dar, em menor espaço, uma visão panorâm ica e
diacrónica de um facto tão importante culturalm ente como o
literário. Essa preocupação diacrónica explica o cuidado que
tivemos de situar os autores no tempo.
Poderíamos (e talvez deveríamos) deter-nos na apreciação
de certos movimentos e no juízo sobre certas obras mais signi­
ficativas ou de maior repercussão e influência: mas isto fugiria
153

ao plano da obra. Em todo caso, perm itido nos seja dizer que
apresentamos do fenóm eno literário em nosso pais uma visão
mais m inudente, no capítulo escrito para o Atlas Cultural do
Brasil, editado pelo Conselho Federal de Cultura. Para ele
remetemos o rijo leitor, interessado em inform ações rápidas
mas, tanto quanto possível, com pletas sobre o assunto.
CA PÍTULO X I

AS ARTES PLASTICAS

Tom ou-se clássico dividir as artes do Belo em rítmicas e


plásticas. As prim eiras utilizam o m ovimento e situam -se no
tempo; as segundas são estáticas e situam -se no espaço. Grosso
modo as plásticas são antes para os olhos, enquanto as rítm icas
são mais para os ouvidos, ressalvado o caso da dança ou do
cinema (este, mais complexo, dram ático), que se dirigem tam ­
bém à vista.
São artes plásticas ditas maiores a pintura, a escultura e a
arquitectura.
As artes, rítm icas ou plásticas, a p ar de produzirem ou
serem um objecto belo, definitivo, que vale por si, exprimem
também algo, exprim em um a visão de beleza e exprimem o
íntimo do artista. P or outro lado, em bora sejam, de si, criação
individual, sofrem , mais ou menos fundam ente, a influência do
meio e do m om ento, pelo que inquestionavelm ente, constituem
factos de cultura, no m ais am plo sentido, interno e externo.
N o Brasil, as artes plásticas de m aior significado surgiram
a p artir da influência e da transculturação portuguesa, que a
princípio forneceram tem ática, estilos e técnicas.
A qui farem os considerações gerais, procurando m ostrar
as linhas de evolução e desenvolvim ento e a im portância, maior
156

ou menor, de certos momentos ou certas personalidades. Nossa


visão forçosamente tem de ser panorâm ica e genera l i z a, não
nos cabendo sequer tentar uma história das artes plásticas
no Brasil.
*

Φ *

Postos estes preliminares, comecemos pela p i n t u r a e pela


ESCULTURA.
No período colonial, uma e outra estiveram a serviço da
arquitectura religiosa, em situação de artes ornamentais, sem
embargo do valor intrínseco das obras, por vezes de primeira
qualidade.
Constitui excepção, e novidade sem seguimento, a rápida
passagem de M aurício de Nassau pelo Recife holandês (1637-
•1644), o qual trouxe uma missão artística, de que faziam parte
três pintores — Frans Post, Zaccaria Wagener e A lbert Eckout.
Estes, por primeiro, fixaram tipos e paisagens do Brasil nordes­
tino seiscentista, em quadros, de grande ou medíocre valor, espa­
lhados pelos museus da Europa e documentadores de impor­
tantes aspectos nossos, sociais e naturais. Foram como que
ilustradores artísticos de Barleus, Piso e Marcgrave.
A princípio os portugueses utilizaram nas construções a
mesma m atéria vegetal dos índios e os mesmos processos prim i­
tivos. Depois foram surgindo as casas de pedra e cal e, por
fim, os grandes solares e, principalmente, os sumptuosos tem­
plos, que deram azo e margem à pintura e escultura decorativas
e complementares.
Um dos maiores nomes da pintura na época colonial foi
Frei Ricardo do Pilar, natural de Colônia e que esteve trinta
anos no Rio, até 1700, quando faleceu. Deixou obra vasta,
157

painéis e quadros, no Mosteiro de S. Bento do Rio, onde se


destaca, na sacristía, a tela Nosso Senhor dos Martírios, autên­
tica obra-prima.
Destacam-se ainda João de Deus Sepúlveda, o maior pintor
pernambucano do seu tempo (segunda metade do século XVIII),
com o famoso tecto, em perspectiva, da igreja de S. Pedro dos
Gérigos em Recife, além de outras obras. José Joaquim da
Rocha (1737-1807) trabalhou na Baía, embora de lá prova­
velmente não fosse natural. Teria viajado à Itália, para aper-
feiçoar-se, e é considerado criador da pintura baiana. Até fun­
dou escola, contando-se entre seus discípulos José Teófilo de
Jesus e Antônio Joaquim Franco Velasco. José de Oliveira
(1690-1770) pintou o tecto da Capela-Mor da Catedral do Rio.
Caetano da Costa Coelho actuou no Rio na primeira metade do
século XVIII, contando-se entre os seus trabalhos o tecto da
nave de S. Francisco da Penitência e o douramento da Igreja
do Mosteiro de S. Bento. Seria longa e fastidiosa a enumera­
ção. Mas não se pode deixar de abrir espaço ao maior de
todos, Manuel da Costa Ataíde, mineiro de M ariana (1762-
-1830), cuja grande obra, e notabilíssima, é o tecto da nave da
Igreja de S. Francisco de Assis de Ouro Preto, uma Assunção
da Virgem. Mas não lhe ficam a dever as capelas-mores das
Igrejas de Santo Antônio de Itaverava e de Santa Bárbara. Pre­
tendeu criar, na terra natal, «uma aula de desenho e arquitectura
civil e militar, e de pintura».
Em S. Paulo, destacou-se o Padre Jesuíno do Monte Car­
melo (1764-1819), que se sagrou nas pinturas da Igreja do
Carmo de Itu, e o Miguelzinho, por nome todo, Miguel Arcanjo
Benício de Assunção Dutra (1810-1875), escultor, arquitecto
c decorador de igrejas paulistas, tendo-se, no entanto, notabili­
zado como aquarelista. Traz novidade: fixou tipos populares
da época.
158

Essa velha e tão rica tradição baroco-rococó sofre nesta


altura o impacto da M issão A rtística Francesa, m andada vir
por D. João V I, a conselho do Conde da B arca (1816), com
vistas à fundação de uma Escola de Belas-A rtes, que realmente
só seria criada em 1827. Como conseqüência, entra em declí­
nio a pintura religiosa, que tão boas coisas dera ao Brasil.

*
* *

Quanto à escultura, extraordinário foi seu desenvolvimento


no Brasil colonial, quando atingiu momentos de esplendor.
Numerosas são as obras de prim eira classe figurantes nas velhas
igrejas, nos museus e nas colecções particulares do Brasil e do
estrangeiro. A maior parte das peças são aquiropoietas, como
é o caso das que se devem a padres e índios das missões jesuí­
ticas do sul. Dir-se-ia que o mister não chamava atenção, tão
numerosos seriam os «santeiros», que trabalhavam matérias
diversas, com destreza e arte, m aior ou menor. Os tempos eram
de religiosidade ou de esclarecida fé e então o sacro, nos seus
vários aspectos, atraía e solicitava a inclinação e actividade dos
muitos artífices sem nome, que se sentiam realizados e atendiam
a uma demanda constante.
Os trabalhos de pacientes pesquisadores vão, porém, identi­
ficando muitas das peças que enriqueceram nosso patrimônio
histórico. Assim é que se conhece um Frei Agostinho da Pie­
dade, talvez nascido em Portugal, mas professo do Mosteiro
de S. Bento da Bahia, onde morreu em 1661. Trabalhou muito,
mas dele só se podem identificar trinta peças, manipuladas todas
em barro cozido. É o prim eiro artista erudito conhecido em
terras brasileiras e que empregou terra brasileira, para falar
como Clarival Valadares. Francisco das Chagas, cognominado
159

o Cabra, trabalhou em Salvador na segunda metade do


século X VIII, conhecendo-se dele, com certeza, diversas ima­
gens da Igreja da Ordem Terceira do Carmo em Salvador.
Manuel Inácio da Costa (1763-1857) é considerado o maior
escultor baiano, inclusive porque a ele se atribuem duas autên­
ticas obras-primas: o S. Pedro de A lcântara, da Igreja do Con­
vento de S. Francisco (de Salvador), e o Senhor M orto, da
Igreja da Ordem Terceira do Carmo, da mesma cidade.
O S. Pedro pode, sem favor, figurar numa exposição mundial.
Frei Domingos da Conceição da Silva (1643-1718) veio de
Portugal, Matosinhos, e estabeleceu-se no M osteiro de S. Bento
do Rio, onde professou como irm ão leigo. Aí trabalhou durante
48 anos como entalhador e escultor, sendo o principal artista
da majestosa Igreja, que figura na prim eira plana da nossa
arquitectura religiosa. Sem dúvida é uma das melhores figuras
das artes plásticas brasileiras.
Muito justamente famoso é também o M estre Valentim
(1750-1813), nome corrente de Valentim da Fonseca e Silva,
escultor, entalhador e fundidor, que trabalhou largamente, em
igrejas c em praças, deixando obras de prim eira qualidade, como
os dois grandes lampadários da Igreja de S. Bento, vários
retábulos, planejamento e obras do Passeio Público ou o cha­
fariz da Praça Quinze de Novembro.
Mas o maior artista plástico brasileiro, ainda longe de ser
superado, é o Aleijadinho (Ouro Preto, 1730-1814), alcunha de
Antônio Francisco Lisboa, arquitecto, escultor e entalhador, com
extraordinária actividade em Minas, não só na cidade natal, mas
em M ariana e largas redondezas, incluindo-se o projecto da
Igreja de S. Francisco de Assis de São-João-del-Rei. Trabalhou
incansavelmente, «riscando» igrejas, fazendo portadas, retá­
bulos, púlpitos, altares, imagens numerosas e várias, de pedra
e de madeira, lavabos, atlantes, grades e, obra-m estra e insupe-
160

rável, o conjunto dos doze profetas do adro da Igreja de Congo­


nhas do Campo. Nesta cidade modelou também, em m adeira,
algumas das figuras dos Passos da Paixão. Descobriu, por assim
dizer, a pedra-sabão, na qual deixou esculpidas muitas de suas
obras imortais. Muito se tem escrito sobre ele, sendo de desta­
car, pela seriedade e pela autoridade, a obra de Germain Bazin,
zelador do Museu do Louvre em Paris, Aleijadinho et la
Sculpture Baroque au Brésil (1963). Hoje é considerado um dos
madores escultores do mundo, apesar de não ter tido escola e da
origem humilde, mulato que era, filho de um arquitecto portu­
gués e de sua escrava Isabel.
Novo período inicia ñas artes plásticas, como dito ficou,
a Missão Artística Francesa, aqui chegada em 1816, chefiada
por Joachim Lebreton, que consigo trouxe o pintor Nicolas
Antoine Taunay, o escultor Auguste Taunay, o pintor e dese­
nhista Jean Baptiste Debret, o gravador Pradier e o arquitecto
Grandjean de Montigny. Vinham eles para a futura Academia
de Belas-Artes, criada em 12 de Agosto de 1816 mas só efectiva­
mente funcionante em 1827, já sob a direcção do pintor portu­
gués Henrique José da Silva.
São muitas as vicissitudes da Missão, mas indiscutivelmente
dela decorre o ensino académico das artes plásticas no Brasil,
que forçou um neo-classicismo extemporâneo e conflituoso com
a tradição portuguesa, já fortemente temperada de jovem brasi-
lidade.
Entendem alguns convictos do Modernismo que a Missão
e a Academia durante um século atrasaram a pintura brasileira.
Porém, não há negar que muita coisa boa ficou. Além das
técnicas e temas novos de pintura, ficou-nos o mais im portante
documento da vida brasileira na prim eira metade do século
passado, que são os desenhos, aquarelas e quadros de Debret,
muitos dos quais (cerca de 150) recolhidos no livro Voyage
161

Pittoresque et Historique au Brésil (1839). A Fundação Castro


Maia, do Rio, possui 350 trabalhos do artista, que fixou tipos,
cenas, aspectos, folclore, paisagens, festas, ocupações e até
exemplares da flora e fauna brasileiras. É uma crónica minu­
ciosa e viva do Brasil centro-sul, que nenhum repórter de hoje
faria melhor, apesar dos progressos da técnica, fotografia
inclusive.
A Missão e a Academia desenvolveram ainda a pintura
histórica, representada sobretudo pelo catarinense V ictor M eire­
les (1832-1903), autor de A Primeira M issa no Brasil, Combate
Naval de Riachuelo, Passagem de Humcàtá, Batalha dos Gua·
rarapes, e o paraibano Pedro Américo (1843-1905), autor de
Batalha de A vai, Combate de Campo Grande, Proclamação da
República.
Aluno e discípulo de V ictor M eireles foi Almeida Júnior
(1850-1899), de muito talento, e interessado inclusive por cenas
e tipos sertanejos, que retratou admiravelmente, como, por
exemplo, no Caipira picando jum o. D ada a sua tem ática nacio­
nalista, local e rural, alguns o consideram «o prim eiro clássico
da nossa pintura».
Esquecidos não podem ficar, porque aí estão nas pinaco­
tecas e colecções particulares, um Rodolfo Amoedo (1857-1941),
com O últim o tamoio, ou Jesus em Cafarnaum, ou M ulher no
Atelier; um Henrique Bernardelli (1857-1936), chileno naturali­
zado e abrasileirado, com- bons retratos e excelentes paisagens;
um Oscar Pereira da Silva (1867-1939), com obra vária, inclusive
de pintura religiosa decorativa (Natividade, Apresentação do
Senhor, Visita de Santa Isabel: Igreja de Nossa Senhora da
Conceição, S. Paulo).

N a escultura, o prim eiro e principal fruto da M issão foi


Chaves Pinheiro (1822-1884), que esculpiu em bronze a estátua
u
162

pedestre de D . P edro I I e a do acto r Jo ão C aetano (à frente do


teatro que lh e leva o nom e, n o R io), e que teve com o alunos e
discípulos a C aetano de A lm eida R eis (1838-1889) e R odolfo
B em ardelli (1852-1931), irm ão de H enrique, com obra num e­
rosa e valiosa, com o C risto e a A dúltera, o m onum ento a José
de A lencar (na praça que o tem p o r epónim o no Rio), o m onu­
m ento ao G eneral O sório n a P raça Q uinze de Novembro,
no R io.
T om ando à pintura, é de salientar que no fim do século
surge um m ovim ento de certo m odo independente da Academia,
representado por nom es em inentes, com o Castagneto (1862-
-1900), italiano de nascim ento. P arreiras (1860-1937), que revi­
veu a pintura histórica, B aptista da C osta (1865-1926), grande
paisagista, Eliseu V isconti (1866-1944), decorador do Teatro
M unicipal do R io. Nesses já se podem ver influências do
Im pressionism o, m ais claras em D écio Vilares (1851-1931),
N avarro da Costa (1883-1931), justam ente fam oso pelas suas
m arinhas, em que não tem rival, ou em Lucílio de A lbuquerque
(1877-1939), projectado intem acionalm ente com o Despertar de
ícaro.
Todos esses andaram pela Escola de Belas-A rtes ou dela
foram professores, m as certam ente não podem ser considerados
«acadêmicos», ao menos no sentido algo pejorativo que se deu
ao term o. N ão nos parece heresia dizer que, a seu modo, eles
foram no Brasil, discretam ente, o que foram espalhafatosam ente
em França os im pressionistas: m arcaram época, inovaram técni­
cas, variaram a inspiração e buscaram novos efeitos de luz.
N o centenário da Independência, em 1922, ocorreu um facto,
escandaloso, que m arcou o surto de novas idéias, atitudes, nova
tem ática, verdadeira revolução. Foi a Semana de A rte M oderna
de S. Paulo, com conferências e m ostra, no T eatro M unicipal,
de 13 a 17 de fevereiro.
163

Vinha de antes a preparação do «acontecimento». Além


do cansaço estético, da liquidação da «belle époque», dos novos
anseios trazidos pelo fim da Grande Guerra, não se pode
esquecer a exposição dos expressionistas Lasar Segall, em 1913,
e Anita M alfatti, em 1917 (ambas em S. Paulo). A presença
dessa arte nova, somada à agitação de idéias, às discussões de
livrarias e cafés, ao apostolado de Oswald de Andrade ou às
tertúlias em casa de Paulo Prado, possibilitaram a semana deci­
siva, em que poetas, escritores, músicos e artistas plásticos
assumiram atitude iconoclasta e se propuseram criar algo de
inteiramente novo.
Para dizer toda a verdade, a rigor foi uma troca de Paris
por Paris, dos «académicos» pelos novos poetas e pintores que
a capital da França exportava. Temática brasileira, assuntos
sociais, visão subjectiva, linguagem cifrada, não raro herme­
tismo marcaram a revolução, que, na realidade, nunca foi
popular. Até hoje, pacificado o ambiente, o grande público
prefere nitidamente a arte barroca, a arte académica e a de tran­
sição. Noutras palavras, a arte clássica.
As deformações, a visão pessoal, as desproporções, as dis­
torções, os contrastes não tiveram aceitação por parte daqueles
que, sem o saberem, entendem aristotélicamente que a arte é
imitação da natureza.
No primeiro momento destacaram-se Tarsila do Amaral
(1890), que recebeu formação académica, depois impressionista,
mas finalmente se fixou, em Paris, nas novas técnicas; Di Caval­
canti (1897), pintor, desenhista e caricaturista, muito versátil
e fecundo; Víctor Brecheret (1894-1955), escultor, com o famoso
e gigantesco Monumento às Bandeiras (40 figuras, algumas
de 6 metros), na cidade de S. Paulo; e Osvaldo Goeldi (1895-
-1961), desenhista e gravador de grande talento e fecundidade.
164

Depois de 1930, passada a fase iconoclasta e polémica,


surgem as grandes figuras de Portinari (1903*1962) e Alfredo
Volpi (1896), por alguns considerado o mais brasileiro dos
pintores. Cándido Portinari teve renome e ressonância universal.
Além de pintor, foi desenhista e gravador. M uitas de suas telas
e painéis, como Retirantes, Café, Primeira Missa no Brasil,
Descobrimento do Brasil, Menino Morto, Enterro na Rede,
ou o S. Francisco da Igreja da Pampulha em Belo Horizonte,
contam-se entre os maiores momentos da pintura moderna
brasileira.
Dai por diante multiplicam-se os pintores, que seguem
rumos diferentes e não raro passam, cada um, por fases diversas,
em consonância com as novas idéias estéticas e o rápido cansaço
das anteriores soluções. Tudo, no entanto, dentro das linhas
mestras do Modernismo, ou seja, o repúdio ao «académico»
(que pôde ir até o abstracto geométrico, por exemplo) e a total
liberdade do artista plástico, mais entregue ao seu mundo inte­
rior do que à realidade circundante, a rigor só fornecedora de
referências.
Entre tantos nomes, destacam-se Guignard, Djanira, Valde-
mar da Costa, Santa Rosa, Pancetti, Milton Dacosta, Iberê
Camargo, Maria Leontina, Emeric M arcier, Inimá de Paula,
Manabu Mabe, Antônio Bandeira, Shiró Tanaka, e alguns
outros. Grande repercussão logrou o pernambucano Cícero
Dias (1908), ainda da primeira geração, que começou com o
Nordeste, para depois tomar-se não-figurativo.
A gravura, partida de Goeldi e Lívio Abramo, teve muitos
cultores e conquistou ressonância e apreço mundial.
Não podemos aqui dar um balanço, sequer sumário, da
pintura brasileira moderna, porque isto transbordaria dos limites
do capítulo e aberraría do plano do livro, que prefere pôr o
acento tónico na diacronia, a mostrar o presente emergindo do
165

passado, o que, no caso, não é nada fácil, tão violenta foi a


ruptura de 22. Por isso mesmo, talvez valha a pena aventar que
a aceitação de um José Paulo Moreira da Fonseca, menos
citado, se deva à circunstância de ele ter insistido nas portas,
janelas e frontarias de casas coloniais. Dir-se-ia um pintor
saudosista a falar uma linguagem compreendida por quem traz
dentro de si o velho Brasil.
A escultura, lançada por Brecheret, tem tido menos expres­
são. De Fiore (1884-1945), italiano de nascimento, alemão natu­
ralizado, veio para S. Paulo em 1936 e teve grande papel na
actividade dos jovens escultores dos dez anos seguintes. Entre
os que se dedicaram à arte, muitos nomes se podem lembrar,
entre os quais a surrealista M aria Martins, ou os figurativos
Bruno Giorgi (1905), autor de muitos e apreciados trabalhos,
ou Ceschiatti (1918), autor de A s Três Fòrças Armadas, que
ornam o chamado «Monumento dos Pracinhas» no Rio. Outros
nomes vêm fácil à referência, alguns deles só correntes no
círculo dos eruditos e Connaisseurs, sem ressonância no
público, que não lhes entende a mensagem: Pola Resende, Zélia
Salgado, Felicia Leiner, José Pedrosa, M ário Cravo Júnior,
Edgard Duvivier, Weissmann, Ligia Clark, Sérgio de Camargo
ou Jackson Ribeiro.
Não será errado dizer que os novos artistas, pintores e
escultores, por terem freqüentado escolas europeias, por terem
seguido preconceitos estéticos, às vezes sem sentido, outras
vezes meramente inquiritórios, se desligaram da realidade
ambiente e deixaram de ser expressão da cultura brasileira, para
o serem antes de um tempo angustiado, marcado muito mais
pela procura do que pelo encontro.
166

ARQUITECTURA

Nos primeiros tempos, os colonizadores portugueses adopta-


ram, na construção de casas, abrigos e até pequenos fortes, as
soluções achadas pela gente da terra. Adaptaram-se, empre­
gando matéria vegetal, copiosa, fácil, adequada. É mais rara
a obra de alvenaria, ainda assim com aparecimento significativo
só na segunda metade do século X VI.
Deste tempo se guarda importante relíquia, a Casa da
Törre, de Garcia d’Ávila, em Tatuapara, próximo da costa, a
norte de Salvador. São ruínas, exceptuada a capela hexagonal,
que revelam uma construção quase toda de pedra (peredes divi­
sórias de tijolos), grandiosa, com uma torre quadrangular,
imponente e visível do oceano.
Conforme salienta Robert Smith, «o castelo de Garcia
d’Ávila, por suas proporções e pelo uso feudal para o qual
sem dúvida foi destinado, é digno deste nome e constitui a resi­
dência particular mais monumental do seu tempo de que se
tenha memória nas Américas O ».
Olinda terá sido o melhor conjunto arquitectónico do Brasil
quinhentista, mas, tomada pelos holandeses em 1630 e quase
totalmente destruída, perdeu a feição prim itiva (e inclusive a
importância). A reconstrução, empreendida a partir de 1654,
deu nascimento a outro aspecto, já barroco, fundamentalmente
conservado até hoje, com os acréscimos e retoques do séc. X V III.
Típico do século X VII é a casa grande, com oficinas,
capela, engenho, senzala, verdadeiro núcleo urbano-rural, centro
da vida social e política do Nordeste de então, como bem
mostrou Gilberto Freire.(*)

(*) «Arquitectura civil do período colonial», em «Revista do Patri­


mônio Histórico e Artístico Nacional», n.0 17, Rio, 1969, p. 41.
167

Em todas essas construções predom ina, absolutam ente, o


estilo português, apenas adaptado ao trópico. Baste lem brar,
a título de informação e curiosidade, que os solares do M inho
também se chamavam «casa da torre».
A impregnação já era tão forte nos meados do século X V II,
que os holandeses aceitaram as soluções luso-brasileiras, quase
que só modificando o telhado, de queda mais forte. É o que
deixa ver claramente uma «Cena de rua no Recife», de Zacha-
ria Wagener, conservada na Staatsbibliothek de Berlim. Cons­
truções tipicamente flamengas só se encontrarão na «M au-
ritsstad», M auriceia, erguida por Nassau n a Ilha de A ntônio
Vaz, com dois sumptuosos palácios, a prim eira cidade planejada
do continente americano. M as disto nada ficou, senão talvez
um que outro resto de telhado holandês. O flam engo foi corpo
estranho na nascente cultura luso-brasileira. P or isso, expeli­
ram-no os representantes das três etnias form adoras da nacio­
nalidade.
Não há dúvida, pois, que a arte da civilização e d a cultura
luso-brasileira no período colonial foi inspirada no barroco,
principalmente a variante rococó. M ais significativa, m ais num e­
rosa e mais valiosa que a arquitectura civil e a m ilitar foi a das
igrejas e conventos.
Em todo caso, convém lem brar que rem ontam a tempos
antigos os fortes de Santa M aria, em Salvador, e dos T rês R eis
Magos, em N atal.
Barrocas, propriam ente, temos a Igreja de São Francisco
da Baía e de S. Bento, no R io, com o respectivo M osteiro.
N a prim eira, é possível enxergar influência espanhola, pela
sobrecarga de ornato; na segunda, já prepondera o m odelo
português, menos luxuriante. São magníficos espécimes, am bos
com um característico brasileiro: o contraste entre a simpleza
do exterior e a riqueza do interior.
168

Não só por isto, mas também pela presença do arco semi­


circular, pela tone quadrangular pesada e pelo tipo de abóbada
adoptado, por tudo isso, talvez. Lúcio Costa cham a ao banoco
brasileiro neo-românico.
E há razão histórica para isso. O gótico nunca pegou a
fundo em Portugal; o Renascimento se manifestou em m am e-
lino, que começa já a restabelecer as linhas do románico, afinal
reinstaladas no barroco. Herdamos, pois, o gosto pela constru­
ção pesadamente assentada, sóbria, mais horizontal que vertical.
Os grandes centros de arquitectura do Brasil-Colónia foram
Olinda, Recife, Salvador e anedores, e as velhas cidades minei­
ras, onde se destaca, primorosa e importantíssima. Vila Rica,
hoje Ouro Preto. O Rio não destoa, com S. Bento, Santo
Antônio, a Capela de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, e
outras, contemporâneas ou posteriores, mas de importância
menor.
Não caberia nos limites deste capítulo uma simples relação
das igrejas barocas e rococó do Brasil, que, aliás, se encontram
pelo país todo, tanto é verdade que, criado o tipo, fixado o
modelo, se foram repetindo, com variantes que só interessam
aos especialistas. Os inúmeros templos e conventos que se ergue­
ram um pouco por toda a parte, da segunda metade do
século XVTII aos fins do século XIX, obedecem à linha barroca,
que se vai enfraquecendo e descaracterizando, seja pelo cansaço,
seja pela inferior qualidade dos arquitectos e artesãos, seja pelo
impacto da Missão Artística Francesa.
Nos grandes exemplares, pernambucanos, baianos, mineiros,
o mais importante elemento ornamental é a talha dourada, não
raro de primeira classe. Mas os púlpitos, altares, retábulos,
colunas torsais, atlantes, supedáneos, molduras, tribunas contri­
buem para a harmonia do conjunto, isto sem falar na pin­
tura e na escultura, de que já tratámos na prim eira parte.
169

A arquitectura civil apresenta belas e grandiosas realiza­


ções (sobretudo em M inas Gerais), como a Casa da Câm ara e
Cadeia (hoje M useu da Inconfidência), o Palácio dos Governa­
dores (hoje Escola de M inas), a Casa dos Contos, em Ouro
Preto; o Paço da Cidade (hoje Edifício dos Telégrafos) no Rio;
o Palácio do Arcebispado, em Salvador; a antiga Casa Capitu­
lar, em M ariana. M as o estilo é o mesmo, português, pratica­
mente sem novidades, ao contrário do que se passou com os
templos.
Diga-o a talvez m aior autoridade no assunto, já por nós
aqui citada. R obert Smith:
«Jamais a fabulosa riqueza das minas ou da terra encon­
trou reflexo, por pequeno que fosse, nas casas ou edifícios públi­
cos da era colonial. M ais do que isto, é significativo que
nenhuma dessas construções possua carácter próprio e distinto
dos da metrópole. Os construtores civis brasileiros não conse­
guiram imprimir à sua obra um sentido nacional de modo
algum comparável ao que foi atingido pelos construtores de
igrejas, este mesmo bastante limitado. D ai a dificuldade, a
não ser que se leve em conta a m aior sim plicidade na ornam en­
tação, em se distinguir as casas setecentistas brasileiras das
portuguesas. Tão pouco se pode apontar algum a tendência
acentuada para expressões de carácter regional na arquitectura
civil do Brasil-Colónia. Por todo o pais as casas 'e edifícios
públicos são quase idênticos. Quanto a plantas, sistemas cons­
trutivos e ornamentação, as fórm ulas reinantes são essencial­
mente as mesmas, de Belém no norte, a Santos no sul O ».
Em todo caso, não se pode deixar de dizer que O uro Preto
é hoje considerado um dos mais im portantes, belos e m ajestosos
conjuntos arquitectónicos barrocos do mundo. E não há dúvida (*)

(*) Op. cit., ps. 124-125.


170

também que, considerando-se as artes plásticas, M inas sobreleva


ao resto do Brasil.
Não é opinião pessoal, nem atitude im pressionista, menos
ainda bairrismo, sem cabimento no caso. Diga-o alguém que
se impôs à admiração e ao respeito do Brasil inteiro, seja pela
incontestada competência, seja pelo trabalho teim oso e ciclópico
realizado em prol da preservação do nosso tesouro artístico
— Rodrigo Melo Franco de Andrade:
«A maior concentração dos monumentos que integram o
patrimônio histórico e artístico nacional está localizada em
Minas Gerais. A despeito de só ter o povoamento do território
mineiro principiado depois de decorridos dois séculos desde o
descobrimento do Brasil, poucas décadas bastaram para que
esta área fosse enriquecida de bens culturais em número m aior
e com feição mais expressiva do que as demais regiões do
país (*)».
Está claro que nesse esplendor actuou a força de um gênio,
o mulato Antônio Francisco Lisboa, cognominado o Aleija-
dinho.
Importantes conjuntos arquitectónicos são também S. Luís
do Maranhão, com belos azulejos; Alcântara, no mesmo Estado;
Cachoeira, na Baía; ou Parati, no Estado do Rio, em fase de
ressurgimento.
Transferida a Corte para o Rio, no começo do século X IX ,
grande e rápida transformação se processou na cidade, que
deixa de ser a aldeia que era e adquire aspecto europeu, sobre­
tudo devido à actividade do M estre Valentim, que m elhora e
adorna templos, desenha e funde lam padários, constrói chafa-

(*) Palestra proferida em 1-7-68, publicada no citado número da


«Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional», p. 11.
171

rizes, projecta logradouros e os embeleza, com o é o caso do


Passeio Público. Pouco m ais tarde, vai-se fazer sentir a p re­
sença do arquitecto G randjean de M ontigny (1776-1850), da
M issão A rtística Francesa.
Realm ente, a novidade que ele trouxe foram as linhas neo-
•clássicas, dos edifícios públicos e das residências senhoriais, a
contrastar com a poderosa tradição baroco-rococó. Típico dessa
fase é o edifício da A lfândega V elha, onde hoje funciona o
Π Tribunal do Júri. O neo-classicism o influiu n a Igreja d a
Candelária, que resultou num a com binação de elem entos dís­
pares, fortem ente perturbadores da beleza e d a harm onia da
obra, sem razão por m uitos considerada de prim eira grandeza.
O utros edifícios construiu M ontigny, com o a A cadem ia
Im perial de Belas A rtes, o Edifício do Com ércio, casas p arti­
culares, entre as quais o solar que tem seu nom e, n a G ávea.
M as principalm ente ele fez escola, e m uito contribuiu p ara ace­
lerar o ocaso da solução residencial (ou de edifícios públicos)
anterior, conhecida como estilo colonial, que já vim os te r sido
quase invariante.
Precedeu M ontigny, em Belém do P ará, o arquitecto italiano
Antônio José Landi (1708-1790), vindo p ara o B rasil em 1753,
com a incumbência de dem arcar lim ites entre a A m érica P ortu­
guesa e a Espanhola. N a capital paraense projectou as igrejas
de Nossa Senhora Santana, S. João B aptista e Carm o, além do
Palácio do Governo. M isturou elem entos barrocos no neo-
-clássico, e teve im itadores.
Não obstante, o colonial persistiu, em estado de diluição,
até o fim do século, tendo sido mais resistentes as igrejas, que
conservaram as linhas, as form as, o equilíbrio de m assas, a
dupla ordem de telhados, as janelas de guilhotina (da arquitectura
civil), mas foram perdendo o brilho, o gosto, a beleza da deco­
ração e a nobreza do m aterial.
172

No primeiro quartel deste século a arquitectura descaíu


muito, tomou-se banal, inexpressiva, destituída de qualidade
artística. Nos supostamente melhores espécimes surgiram extra­
vagâncias e pedanterías, como os «estilos» mourisco, asteca,
toscano, gótico e até um «marajoara», inspirado nos motivos
da famosa cerâmica indígena atribuída aos Aruã.
Em 1912, um grupo liderado por Lúcio Costa e José
Mariano tenta salvar do naufrágio a arquitectura, lançando o
estilo neo-colonial (do Museu Histórico, do Rio, por exemplo),
mas o movimento não teve maior força, principalmente porque
Lúcio Costa aderiu ao Modernismo de Gregory Warchavchick,
que em 1925 lançara manifesto em favor de uma «arquitectura
funcional». Lúcio acrescentou a presença de materiais e tradi­
ções brasileiras.
No entanto, a nova arquitectura só mais tarde aparecerá.
Não coincide com o surto de 1922. Outros factores contribuíram
para lhe darem ambiente e propulsão, tais como a visita de Le
Corbusier ao Brasil (1929) e a Revolução de 30. Primeira e
notável obra da moderna arquitectura foi o edifício do M inistério
da Educação, no Rio, iniciado em 1937 e concluído em 1943.
Nele trabalharam Lúcio Costa, Carlos Leão, Jorge M oreira,
Afonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer e Em âni Vasconcelos,
em consulta com Le Corbusier. Se a estes nomes acrescentar­
mos os irmãos Roberto, teremos os fundadores da A rquitectura
Moderna brasileira, que logrou fama internacional, colocan­
do-se entre as primeiras do mundo.
São monumentos-marcos da fase im positiva o Pavilhão
Brasileiro da Feira Internacional de Nova Iorque (1938), de
Niemeyer, o Cassino e Igreja de S. Francisco de Assis, da Pam-
pulha (Belo Horizonte), com painéis de Portinari (1940,
Niemeyer). Vinte anos depois se inaugurava Brasília, em que
trabalharam Lúcio Costa e Niemeyer. O conjunto é singular,
173

e chamou a atenção do mundo inteiro, pela novidade e pelo


arrojo. A dúvida, que poderá persistir, é se se trata de cidade
real ou de cidade cinematográfica. Faltam-lhe elementos urba­
nísticos importantíssimos, como pontos de encontro e de forma­
ção de tradições e de opinião pública: praças, esquinas, cafés
populares ou de classe média, ruas.
De qualquer modo, há beleza arquitectónica, coroada pelo
recente edifício do Itam arati, esplêndido, em cuja decoração
harmoniosamente se casam o antigo e o moderno, o novo e o
velho, como que a reatar o fio da tradição.
Outros arquitectos se distinguiram, além dos fundadores,
sendo de mencionar um Sérgio Bemardes e principalmente um
Henrique Mindlin, cujo Edifício Avenida Central, no Rio,
apresenta beleza, leveza e graça, apesar de seus trinta e três
andares.
M uitos conjuntos residenciais e casas particulares, no Rio
e arredores, S. Paulo e Campos do Jordão, Belo Horizonte e
outras cidades grandes, atestam a força e a importância da
nova arquitectura brasileira, sem dúvida a mais bem sucedida
das artes plásticas no Brasil moderno, inclusive com aceitação
e aplauso do «homem comum», até hoje avesso à pintura e à
escultura.
É pena que o aparecimento e a multiplicação dos altos
edifícios, outrora chamados «arranha-céus», vão desfigurando as
principais cidades brasileiras, hoje tão americanizadas. As
metrópoles e capitais regionais lembram Nova Iorque, Los
Angeles e Chicago, ao passo que as pequenas comunas do
interior, tomadas de febre imitativa, vão perdendo a antiga
fisionomia, e apresentam aspecto totalm ente incaracterístico
(além de feio), que as poderia situar em qualquer parte do
mundo, de onde tivesse sido banida a tradição.
174

Restam as cidades históricas, defendidas e preservadas pelo


benemérito Instituto do Patrim ônio H istórico e A rtístico
Nacional, que tem salvado do vandalismo destruidor muitos
preciosos exemplares da passada arquitectura, tanto do
século X VIII como do X IX.
CA PITU LO Χ Π

NOTAS SOBRE A MÚSICA NO BRASIL

Damos a este capitulo um título discreto, porque pensam os


que não pode ser de outra m aneira. N ão poderíam os tra ta r
tecnicamente do assunto, não só p o r nos faltar com petência,
mas também por ser insuportável aos supostos leitores, que
buscam neste livro visões panorâm icas, colocações de proble­
mas, notícias gerais.
Teria cabida ilustração (se possível fosse), com o enrique­
cido ficaria o capítulo anterior, se pudéssem os tê-lo com ple­
mentado com reproduções de quadros, esculturas e obras arqui­
tectónicas. M as isto, além de encarecer o volum e, talvez tro u ­
xesse decepção, porque em geral são fracas as cópias, ficando no
leitor imaginoso, na m elhor hipótese, vontade de ver os
originais.
Queremos aqui d ar ideia de com o se form ou e se desen­
volveu a música no Brasil, especialm ente a erudita, porque a
popular é antes m anifestação folclórica, m elhor, é de inspiração
folclórica e, com o tal, m ais cabim ento tem ser estudada em
Etnografía.
Como acontece com as outras m anifestações culturais, a
nossa m úsica 6 resultado da transculturação e do am álgam a
dos elementos form adores da nacionalidade. Predom inou, é
176

claro, a linguagem europeia, trazida pelos portugueses. A música


brasileira é ocidental, na técnica, na tem ática, no processo de
transcrição, em quase todos os instrum entos.
Conforme relatam os cronistas, tais como Léry, Cardim,
Soares de Sousa, praticavam música e dança os nossos índios,
principalmente, talvez, os tupinambás da Bahia. M as nada se
sabe, com segurança, a respeito de tal música. Certamente não
se ombrearia com a de Gabrieli (Andrea, ou o sobrinho G io­
vanni), nem teria riqueza melódica, menos ainda harmónica e
instrumental.
Na Carta de Pero Vaz de Caminha figura curiosa notícia
de um como confronto, bem sucedido, entre a música (suposta,
pela dança que faziam) indígena e a portuguesa:
«Então tomou-se o capitão para baixo, para a boca do rio,
onde desembarcamos; e além do rio andavam muitos deles,
dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem
pelas mãos, e faziam-no bem.
«Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que
foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer, e levou
consigo um gaiteiro nosso, com sua gaita, e meteu-se com eles
a dançar, tomando-os pelas mãos, e eles folgavam e riam, e
andavam com ele mui bem, ao som da gaita.
«Depois de dançarem, fez-lhe ali, andando no chão, m uitas
voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam ,
e folgavam muito; e conquanto os com aquilo m uito segurou e
afagou, tomavam logo uma esquiveza, como monteses, e foram-se
para cima.» (73-75).
Justamente nas danças populares é que se pode reconhe­
cer presença indígena, como no cateretê ou catira, que ainda
se leva a cabo em Minas e em S. Paulo. É de supor que algo
da música com que se ponteia a dança seja herdado aos prim ei­
ros povoadores da terra.
177

Também não se pode deixar de conjecturar que os missio­


nários jesuítas hajam utilizado modos da música local, vertidos
em linguagem europeia, a fim de mais facilm ente captarem
seus desejados discípulos. Isto porque certam ente o fizeram
empregando melodias populares portuguesas e até o gregoriano.
M ário de Andrade nos conta a surpresa que teve em Fonte Boa,
no Amazonas, quando, ouvindo à distância uma índia acalen­
tando o filho, acabou descobrindo, pela aproxim ação à cena,
de que se tratava de um Tantum ergo cantado em latim e em
cantochão (**).
E já que falamos no nacionalista anim ador da Semana de
A rte M oderna, citemos-lhe as palavras referentes à herança
lusa na música brasileira:
«A influência portuguesa foi a mais vasta de todas. Os
portugueses fixaram o nosso tonalism o harm ónico; nos deram
a quadratura estrófica; provavelmente a síncopa que nos encarre­
gamos de desenvolver ao contacto da pererequice rítm ica do
africano; os instrum entos europeus, a guitarra (violão), a viola,
o cavaquinho, a flauta, o oficleide, o piano, o grupo dos arcos;
um dilúvio de textos; form as poético-líricas, que-nem a M oda,
o Acalanto, o Fado (inicialmente dançado); danças que-nem a
Roda, infantil; danças iberas que-nem o Fandango; danças
dramáticas que-nem os Reisados, os Pastoris, a M anijada, a
Chegança, que às vezes são verdadeiros autos. Também de
Portugal nos veio a origem prim itiva da dança-dram ática mais
nacional, o Bumba-meu-Boi (2).
Se são difíceis de identificar os remanescentes indígenas,
já não se pode dizer o mesmo dos africanos. Contribuíram os

(*) Pequena História da Música^ Livraria Martins Editora,


[1944], p 184.
(*) Ibid., p. 185.
12
178

pretos com muita coisa para a nossa música popular e depois


para a erudita: ritmo nervoso e marcado, instrumentos de
percussão, numerosos e amplamente utilizados. O samba do
morro, carioca e autêntico, é uma das mais felizes e nítidas com­
binações do elemento africano com o português.
Já agora utilizando dados históricos, é de lembrar que
em 1SS2, portanto três anos depois de sua chegada e vinte anos
depois de iniciada a Colonização, fundaram os jesuítas o pri­
meiro curso de música. Igualmente, o teatro anchietano, de
tipo medieval, não dispensava o canto. Por outro lado, tem-se
como certo que foi Frei Eusébio de M atos (1628-1692), irmão
de Gregório, o introdutor no Brasil da escala tonal diatónica
de sete graus (portanto, ocidental). Compôs música sacra e
profana, já tendo ensaiado o Lundu, uma das primeiras mani­
festações de influência negra directa.
Na música popular também surgiu a Modinha, de fundo
português mas de elaboração brasileira, que veio a fazer sucesso
em Lisboa no século XVIII. Isto, sem falar no Fado, naturali­
zado lisboeta e especialidade de Alfama, porém trazido do Brasil
por volta de 1820. Lá teria sido elaborado à base de ele­
mentos africanos, traduzidos em linguagem europeia.
No século XVII já são numerosos os conjuntos musicais,
organizados e actuantes um pouco por toda a parte, e curiosa­
mente compostos de elementos negros e mulatos.
Em 1717 surge em São João dei Rei, M inas, a talvez pri­
meira banda de música do Brasil. Ficou a marca, de tal modo
que a cidade manteve ininterrupta uma tradição musical, com
bons compositores e apurados conjuntos, que até hoje se fazem
ouvir, com geral agrado, na famosa Semana Santa local.
Aliás, a chamada «civilização do ouro» trouxe grande incre­
mento à música erudita. Formaram-se, nas principais cidades,
conjuntos camerísticos, que executavam os mestres do barroco
179

europeu e, depois, passaram a criar boa música. Com uma


nota muito singular: os compositores são quase todos mulatos.
Devemos ao alemão Curt Lange, figura discutida mas
musicólogo de valor, a descoberta e revelação da «música bar­
roca mineira», que começa a ser conhecida no mundo, graças à
publicação das partituras na Alemanha.
Francisco Curt Lange pesquisou m uito nas velhas cidades
mineiras, e reuniu vasto material, com o qual se sentiu autori­
zado a dizer que se trata de «um fenómeno artístico de ra rís i­
mas características, único na história da Cultura no mundo e o
primeiro e mais apaixonante capítulo da história da M úsica no
Brasil. Ainda pouco conhecido pelos próprios brasileiros e insu­
ficientemente divulgado, pela ausência de recursos para tal
finalidade, merece sob todo o ponto de vista ingressar na sensi­
bilidade dos que amam a música e ser avaliado como um dos
mais preciosos patrimônios da Nação. Refiro-m e à existência
de inúmeros profissionais da música e de compositores de
altíssimo nível criador durante a época da mineração do ouro
e dos diamantes (*)».
Destacam-se então Joaquim Emérico Lobo de M esquita,
Marcos Coelho Neto, Inácio Pereira Nunes e Francisco Gomes
da Rocha.
Mais para o fim do século praticava-se boa música no
Rio e em S. Paulo, avultando então a figura do m ulato, filho
de mineira. Padre José M aurício Nunes Garcia, nascido no R io
em 1767 e aí falecido em 1830.
Foi M estre de Capela de D. João V I e considerado pelo
musicólogo austríaco Sigismundo Neukomm, vindo com o
Monarca, «o maior improvisador do mundo».

(a) In V&rios (sob a coordenação de Guilhermino César), Minas


Gerais — Terra e Povo, Editora Globo, Porto Alegre, 1970, ps. 252-253.
180

Deixou mais dc 400 composições, pacientemente estudadas


por Cleofe Persson de M atos, que sobre o autor publicou um
livro excepcional, inclusive pela originalidade do arranjo da
matéria, Temário do Padre José Maurício Nunes Garcia (Con­
selho Federal de Cultura, Rio, 1971).
Paralelamente ganhavam tam a as Modinhas e Chulas de
Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), também padre, mulato
e carioca, e as Canções do Judeu (Antônio José da Silva:
1705-1739). Ambos viveram em Portugal, para onde levaram a
nascente música popular brasileira.
José Maurício contou entre seus discípulos D. Pedro I,
músico e compositor (autor do Hino da Independência) e
Francisco Manuel da Silva, que fundou no Rio o Conserva­
tório Nacional.
Ultimamente a Universidade de Pernambuco está-se entre­
gando à pesquisa de música erudita do século X V III em Recife
e arredores, tendo já descoberto coisas de valor.
Tem-se dito que a música barroca brasileira pode ser boa,
mas não é brasileira, é europeia, é antes traço de subserviência
colonial. Parece-me literalmente infundada a observação,
ressentida, «ideológica» e reveladora, ela sim, de mentalidade
colonial no inconsciente dos que tal afirmam. Porque a música
barroca não é francesa, inglesa, alemã, italiana, austríaca, portu­
guesa ou do Liechtenstein: é europeia. E o extraordinário é
que no longínquo Brasil do século X V III se conhecesse a
melhor música, se executasse e, inclusive, se compusesse. Tra-
ta-se de um importantíssimo fenómeno cultural, exaltado por
um estrangeiro como Lange e minimizado por certos «naciona­
listas», que parecem amar mais as próprias idéias do que o
Brasil.
Em 1857 surge a Imperial Academia de M úsica, do Rio de
Janeiro, que veio a ter entre seus alunos um, distintíssimo. É o
181

campineiro Carlos Gomes (1836*1896), o mais conhecido e


popular criador de música brasileira erudita. Autor de muitas
óperas, no estilo italiano do tempo, teria ouvido de Verdi que
iniciara por onde d e acabou. De qualquer maneira, foi talvez
o primeiro americano a colher aplausos entusiásticos em platéias
da Europa. E certamente o primeiro, dentre os nascidos no
Brasil, a conhecer em vida tal glória.
Outro autor de merecimento, embora menos conhecido,
é Henrique Oswald, que constitui, com Carlos Gomes, o melhor
do Romantismo musical brasileiro.
No Segundo Império foi intensa a actividade artística, com
Artur Napoleão no Rio e Luís Chiaffarelli em S. Paulo, ambos
pianistas e pianizantes. Surgem diversas sociedades dedicadas
ao cultivo da música, tais como a Filarmónica (1841) e o Clube
Beethoven (1882), no Rio, ou o Clube Haydn (1883), em
S. Paulo.
É ler o melhor cronista do Rio imperial. Machado de
Assis, para ver como a música, sobretudo a lírica, despertava
grandíssimo interesse nas classes cultas.
A música popular parece continuar em mãos de negros
e mulatos, que recebem inclusive influência espanhola, através,
segundo alguns, das danças ibero-africanas, a H abanera e o
Tango. Dominaram ainda a Polca e o Maxixe. Segundo M ário
de Andrade, o maior modinheiro do século X IX foi o mulato
Xisto Baía. E, dando um balanço em nossa melódica popular,
diz o conhecido pesquisador e animador:
«Na realidade, foi de uma complexa mistura de elementos
estranhos que se formou a nossa música popular. E não dei
todos [falara da influência africana e da espanhola]. A modi­
nha, ao contacto da valsa europeia, modificou-se profun­
damente. Hoje em dia bom número das modinhas popula­
res são em três-por-quatro e valsas legítimas. A polca, a
182

mazurca, o schottish se tom aram manifestação norm al da dança


brasileira (4).
Tomando à música em dita: a geração que se seguiu à de
Carlos Gomes dedicou-se mais à sinfonia e eventualm ente à
cameristica. É o caso do citado H enrique Oswald (1852·
-1931) e de Leopoldo Miguez (1850-1902).
No ano de 1864 nascem dois futuros músicos que vão dar
rumos novos à arte no Brasil, incutindo-lhe cunho mais nacio­
nal, com inspirarem-se na música popular. Foram o paulista
Alexandre Levy e o cearense Alberto Nepomuceno.
Esse novo rumo já transparece nítido na Suite Brasileira
de Levy, enquanto Nepomuceno reuniu, com êxito e amplitude,
o nosso primeiro Cancioneiro.
Um ano antes, 1863, nascia uma das maiores figuras da
nossa música, compositor fecundo, de grande riqueza meló­
dica, profundamente brasileiro, e que ficou na fronteira entre
a música popular e a erudita, Ernesto Nazaré (f. em 1934). Além
de grande criador, estilizou ele, admiravelmente, modos e
temas nacionais, nos seus «tangos», valsas, choros, polcas e
mazurcas. Influiu em Vila-Lobos e Francisco Mignone, cujas
valsas-de-esquina e valsas-choros são claras ressonâncias naza-
retianas.
Logo depois da primeira Guerra M undial manifestou-se um
vivo anseio pela nacionalização da música erudita, o que, mais
ou menos, aconteceu em todos os países civilizados. A figura
central e liderante desse movimento (iniciado com Levy e Nepo­
muceno) foi Vila-Lobos (1887-1959), incansável animador, que
viajou todo o Brasil, não só em pesquisas, mas principalmente
para contactos e estímulo. Fez surgir corais por toda a parte.
Utilizou largamente o folclore infantil, nas suas esplêndidas

(4) Mário de Andrade, op. cit., p. 189.


183

«cirandas», e foi criador genial, notadamente com suas Baquia­


nas Brasileiras, em número de nove, seus dezessete Quartetos,
suas doze Sinfonias, seus quatorze Choros e os vários Poemas
Sinfônicos, atingindo sua produção cerca de duas mil peças. Foi
indiscutivelmente o nosso maior músico, que começou a reve­
lar-se a partir de 1917, e projectou a nossa arte no cenário
internacional, onde figura em primeira plana.
São-lhe companheiros de jornada e de renovação Oscar
Lorenzo Fernández (1897-1948), Francisco Mignone (1897), Bra-
sílio Itiberê (1896), Frutuoso Viana (1896), Jaime Ovalle (1894-
-1955), Hekel Tavares (1896), com dois notáveis concertos, um
para violino, outro para piano, ou Carmargo Guamieri (1907-
•1966), autor, principalmente, de cinqüenta Ponteios, brasilei­
ríssimos e de alta virtuosidade pianística, em que atinge a mais
apurada expressão musical moderna.
Dentre os contemporâneos, que exploram o atonalismo e a
dodecafonia, são de lembrar Cláudio Santoro, Edino Krieger e,
sobretudo Marios Nobre, considerado o mais significativo da
nova moda.
A música popular, depois de uma extraordinária vitalidade,
entre 1920 e 1945, em que brilharam nomes como Nazaré, Chi-
quinha Gonzaga, Marcelo Tupinambá, Donga, Sinhô, Noel Rosa,
Ari Barroso, Almirante, Ataúlfo Alves, Benedito Lacerda e
outros — depois desse fulgor, muito autêntico e de grande res­
sonância, descambou para um internacionalismo am orfo e inca­
racterístico, fortemente influenciado pelos Estados Unidos. Por
maior que seja o empenho de críticos, jornalistas, entidades e
governos (patrocinando festivais diversos), o povo não se reco­
nhece nas assonâncias, infinitas repetições e ruídos ensurdecedo­
res, que fizeram Carlos Drummond de Andrade dizer que «a
moderna música popular brasileira não é moderna, nem música,
nem popular, nem brasileira».
184

Do espectacular naufrágio salva-se talvez só um Chico


Buarque de Holanda, que, apesar do aparente esforço em con­
trário, tem indiscutível talento e afinação com a alm a popular.
«A Banda» foi um sucesso retumbante, exactamente porque o
homem da rua nela se reencontra e nela redescobriu sua
infância.
CA PITULO X III

O PENSAMENTO FILOSÓFICO NO BRASIL

É incontestável que jamais o pensamento filosófico teve no


Brasil consideração ou prestigio igual ao de outras actividades
do espírito. A Filosofia sempre foi relegada a segundo ou
terceiro plano, entendida como coisa de somenos, ou extra­
vagância de lunáticos ou ociosos. A opinião pública parece
que sempre formou da Filosofia conceito pejorativo, entenden­
do-a, talvez, como o teria feito certo americano céptico, para
quem «a Filosofia é uma coisa com a qual ou sem a qual o
mundo continua tal e qual».
N a obra de M achado de Assis aparece um filósofo louco,
Quincas Borba, que teria legado a um seu enfermeiro e herdeiro
universal, Rubião, os resultados de suas desvairadas especula­
ções. Assim o entendiam os amigos de Rubião, rico desocu­
pado, perdulário e generoso, cuja vida e espírito eram interpre­
tados como fruto da sabedoria elaborada pelo falecido benfeitor.
Já disse eu que vejo na Filosofia de Quincas Borba a
discreta e mordaz crítica de M achado ao evolucionismo spence-
riano. Porém, o que agora eu quis salientar foi o julgamento
186

que da vida incompreensível de Rubião fizeram seus explora­


dores e comensais.
O filósofo tem sido olhado no Brasil como um ser estra­
nho e meio marginal. Algo como um louco manso que, falto
de trabalho sério, se entrega a ocupações vadias como colec­
cionar selos ou borboletas.
Esse menosprezo da especulação teria origem, segundo
alguns, na espécie de gente que veio colonizar o Novo Mundo:
homens rudes ou pragmáticos, para quem a única coisa impor­
tante era ganhar a vida e, se possível, enriquecer. Outros acham
que nossa pobreza em matéria de Filosofia se deve à pouca
idade do país, lembrando que, nos Estados Unidos, país desen-
volvidíssimo, a situação não seria melhor do que a nossa. Tais
outros põem o desdém pela Filosofia à conta de uma incapaci­
dade radical do homem brasileiro para a especulação. É o
caso de Tobias Barreto, que, depois de observar que «não há
domínio algum de actividade intelectual em que o espírito bra­
sileiro se mostre tão acanhado, tão frívolo e infecundo, como
no domínio filosófico», acrescenta que «o Brasil não tem cabeça
filosófica» 0).
Menos severo é o juízo dos contemporâneos que têm
cuidado do assunto. Ultimamente já se fala a sério do pensa­
mento filosófico brasileiro, observando-se que, se não temos tido
filósofos, no sentido próprio, isto é, elaboradores de sistemas
originais, não nos escassearam filosofantes, ou seja, estudiosos
da especialidade, que procuraram digerir o que lá fora vai
sendo elaborado, digestão essa que inclui notas pessoais de
alteração, desdobramento ou de aplicação à nossa realidade.(*)

(*) Questões Vigentes de Filosofia e de Direito, Recife, 1888,


ps. 237, 240.
187

Alceu Amoroso Lima, num ensaio já antigo, apontou como


uma das constantes da cultura brasileira o que ele chamou «lei
da repercussão». Todos os movimentos de idéias no Brasil têm
sido repercussão de similares europeus, com distância de trinta
anos no tempo. Isso, em todos os domínios da actividade inte­
lectual ou artística.
Na mesma linha se situa Luís Washington Vita, quando
escreve:
«De facto, cumprindo seu destino e sua vocação, o pensa­
mento brasileiro, mais que criativo, é assimilativo das idéias
alheias, e, ao invés de abrir rumos novos, limita-se a assimilar
e a incorporar o que vem de fora. Daí a história da Filosofia
no Brasil ser, em geral, uma história da penetração do pensa­
mento alheio nos recessos de nossa vida especulativa, ser, em
suma, a narrativa do grau de compreensão, da nossa capacidade
de assimilação nas diferentes épocas e do nosso quociente de
sensibilidade espiritual (*)».
Não penso que seja a falta de originalidade a maior carên­
cia nossa no que diz ao filosofar. A originalidade por si nada
significa. Principalmente em Filosofia. Aqui, como nas outras
coisas, e mais que nas outras coisas, só interessa a verdade.
Tactearam os gregos, andando por caminhos e descaminhos,
até que Aristóteles acertou o trilho. Daí por diante só se poderia
aperfeiçoar e aprofundar. Os desvios foram funestos e não raro
funestíssimos.
Por outro lado, dada a complexidade da matéria e sua
universalidade, a Filosofia tem de ser obra de muitos ao longo
do tempo. É estultice desprezar o pensamento alheio só porque
é alheio. Vaidade tola supor que se vai edificar desde as

(s) Escòrço da Filosofia no Brasil, Coimbra, 1964, p. 9.


188

bases, como pretenderam tantos. O bserva M aritain que o pro­


gresso na Filosofia é m uito diferente do progresso nas ciências
experimentais. Aqui às vezes tem de haver substituição; lá,
aprofundamento. A Física, ou a Q uím ica, ou a Biologia não
raro progridem realmente quando substituem um a concepção
ou teoria por outra; a Filosofia m uitas vezes regride grave­
mente quando inova.
A menos que por ela se entenda um a especulação vã, um
mero exercício da inteligência auto-suficiente, alim entando-se de
si mesma, ou simples jogos florais, em que interesse o brilho
e a graça, ou a nebulosa abstrusidade. Para muitas pessoas, a
Filosofia nada tem com a realidade. Esta é exclusivo objecto
do que chamam ciência, entendendo-se como tal só as matemá­
ticas e as ciências experimentais. O real seria opaco à indagação
filosófica, do que resulta o completo descompromisso do filoso­
far com a coisa-em-si.
Não é esta a nossa posição. Atribuímos grandíssima im por­
tância à Filosofia. De facto é ela, e só ela, que pode desvendar
a face oculta do que nos rodeia e fornecer uma explicação cabal
do homem, do universo, de Deus.
Embora só trabalhe com a razão, ela tudo investiga e vai
até onde possa alcançar a inteligência hum ana, disciplinada e
perscrutadora. Nenhum domínio lhe é estranho: ocupa-se m ate­
rialmente de tudo, porém na perspectiva que lhe é própria, ou
seja, os primeiros princípios e os últimos fins. E la não se detém
na periferia nem sequer nas boas razões explicativas dos fenó­
menos: vai mais além, vai até o último porquê, até o últim o
como, até o último para quê. Scientia rerum per altíssimas cau­
sas: «ciência de todas as coisas, vistas nas suas últim as causas».
Grave e tragicamente enganados andam os que desdenham
da Filosofia, supondo-a uma espécie de «hobby». M uito m ais
sério e danoso é um erro filosófico do que um erro de cálculo
189

de m ateriais. Este produzirá o desm oronam ento de um edifício;


aquele faz ruir im périos e civilizações. P or outro lado. a F iloso­
fia é inelutável, inseparável do espírito hum ano. D e ta l m odo,
que qualquer afirm ação ou negação, qualquer conceito ou ju lg a­
mento, qualquer posição ou regra de vida assenta num a M eta­
física. Boa ou má, certa ou errada. P or isso, diz A ristóteles:
«Se a Filosofia é necessária, filosofem os; se é desnecessária, filo­
sofemos, p ara prová-lo».
Logo, sem pre se filosofou no B rasil, em bora com filosofia
difusa nas letras, nos ensaios, nos com pêndios e tratad o s de
D ireito, nas reflexões m orais, de um M atías A ires ou de um
M arquês de M aricá, nas discussões políticas, em to d a form a de
doutrinação ou de debate de idéias.
Agora, é certo que actividade filosófica sistem ática e conti­
nuada, ex-professo, quase nunca se praticou no B rasil. A té bem
pouco tem po só nos sem inários se estudava, p ara servir de
esteio aos estudos teológicos. D epois que se fundaram as F acul­
dades de Filosofia, a p artir de 1934 (se exceptuarm os o esforço
isolado dos beneditinos paulistas), a disciplina, além de pouco
procurada, tem sido posta m ais na pau ta da erudição, da histó­
ria dos diversos sistem as e da doutrina dos grandes nom es
do que na da elaboração e rigor do pensam ento.
E quando há form ação, não raro se trata de deform ação,
porque ou se inocula ceptícism o e relativism o, ou algum profes­
sor mais prestigioso e m ais «na m oda» inculca hegelianism o,
sobretudo na versão m arxista.
V erdade é que nessas Faculdades têm leccionado professo
res de boa orientação, mas às vézes seu ensino vai de p ar com
o de outros docentes contrastantes, do que resulta, p ara os alu­
nos, confusão, insegurança ou m ero eruditism o periférico.
190


* *

Isto posto, vejamos por alto as diversas correntes que têm


influído no pensamento brasileiro ao longo da nossa existência
histórica.
Nos dois primeiros séculos predominou o ensino jesuítico,
dado nos colégios, notadamente o da Bahia, onde se m inistrava
iniciação filosófica. Um homem como o Padre A ntônio V ieira,
por exemplo, lá recebeu as prim eiras noções de Filosofía, lá
fez os primeiros exercícios de dialéctica, lá começou, enfim, a
disciplinar seu pensamento.
A orientação era a da Escolástica, conforme preceituavam
as Constitutiones Societaíis Iesus, no capítulo X IV da quarta
parte: «In Theologia legetur Vetus et Novum Testamentum et
doctrina scholastica divi Thom ae... In lógica et philosophia
naturali et morali, et metaphysica doctrina A ristotelis sequenda
est» Não seria tomismo puro, nem aristotelismo puro, porque
outras idéias já tinham invadido o am biente cultural europeu,
especialmente o Humanismo, enquanto, paralelam ente, a Esco­
lástica entrava em decadência, tendendo para disputas mais
verbais que doutrinárias e indagativas das essências, o que no
Brasil talvez se agravasse, dada a conhecida facúndia tropical.
Supresso o ensino jesuítico pelo decreto pom balino de 1759,
foi dada outra organização e orientação às escolas, de acordo
com a reforma então levada a cabo.
Vinte anos antes, em 1739, começara a funcionar no Rio
o Seminário de São José, «em benefício da m ocidade e do
Estado e com isenção da jurisdição paroquial». A í se leccionou
Latim, Filosofia, Teologia, Liturgia e Cantochão. N ão tenho
notícia das directrizes de tal ensino.
191

Neste século X V III terá tido repercussão no Brasil o


Iluminismo, claram ente esposado, segundo W ashington V ita, por
M atías Aires, no seu Problema de Arquitectura Civil, que não
conheço. M atías A ires teve form ação toda europeia, já que
com 11 anos veio para Portugal, onde cursou o Colégio de Santo
An tão e recebeu mais tarde grau de M estre em A rtes na U niver­
sidade de Coimbra. Daí foi para Bayonne, onde estudou D ireito,
Física e M atem ática.
Como observa Cabral de M oneada, o Ilum inism o português
foi «essencialmente Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito
era, não revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso, como
o francês, mas essencialmente progressista, reform ista, naciona­
lista e humanista» (*).
De M atías A ires é conhecido e clássico o livro Reflexões
sobre a Vaidade dos Homens, cujas licenças de publicação são
de 1752. Alguns aproxim am de La R ochefoucauld nosso autor,
porque enxerga vaidade em todos os actos hum anos, enquanto
o francês neles encontrava am or-próprio e interesse. N ota-se em
M atías um certo pessimismo, talvez jansenista, mas sua visão
da vida é religiosa, com o se evidencia deste passo (que, aliás,
documenta também seu pessimismo):
«A falta de religião e de bons costum es faz cair o homem
no estado total de perversidade. A falta de religião consiste em
se não tem er a Deus; a falta de costum es resulta de se não tem er
os homens. E verdadeiram ente quem não tem er a lei de Deus
nem as leis dos homens, que princípio lhe fica por onde haja de
obrar bem? A nossa natureza propende p ara o mal: por isso foi
preciso preservar-lhe um certo m odo de viver. Vivem os por
regras. N o exercício do mal acham os um a espécie de doçura
e de naturalidade; as virtudes praticam -se por ensino. O vício

(*) Apud Vita, Escorço, p. 81.


192

sabe-se, a virtude aprende-se. M iserável condição do homem!


O que devia saber ignora, e o que devia ignorar sabe; para o
que nos é útil necessitamos de estudo, e para o que nos é per­
nicioso não; para o bem necessitamos de lem brança, e para o
mal, de esquecimento» (4). Como quer que seja, M atías Aires
não teve influência notável nos homens de seu tempo, nem nos
pósteros, mais preocupados com as riquezas da terra ou com os
ideais libertários do que com o moralismo pessimista das Refle­
xões.
Nos primeiros tempos do Brasil independente e m onár­
quico dominou, como Filosofía, o Eclectismo de V ictor Cousin
(1792-1867), aqui adoptado e divulgado por Frei Francisco de
Mont’Alverne (1784-1858).
Como se sabe. Cousin reduziu a quatro todos os siste­
mas filosóficos anteriores — sensualismo, idealismo, cepticismo e
misticismo—, acrescentando ser cada um verdadeiro no que
afirma e falso no que nega. Daí porque nenhum pode ser
tomado integralmente; antes, cumpre seleccionar neles o que
contenham de verdade e fundir num todo o resultado da triagem,
suposto, mais, que o erro é uma verdade incom pleta. Deu pres­
tígio a Cousin, além de sua reacção contra o sensualism o de
Condillac e o materialismo dos enciclopedistas, a eloqüência
de que era dotado.
O mesmo aconteceu com o descípulo da outra banda do
Atlântico. Mont’Alveme foi o mais fam oso orador sacro de seu
tempo e, embora na prim eira fase tivesse tentado conciliar
Locke, Descartes, Condillac e Leibniz, aderiu entusiasm ado ao
Eclectismo. De Cousin disse: «Um destes gênios, nascidos para

(4) Reflexões sobre a Vaidade dos Homens ou Discursos Morais


sobre os Efeitos da Vaidade, Lisboa, 1752, ps. 97-98.
193

revelar os prodígios da razão hum ana, se levantou como um


Deus, no meio do caos, em que se cruzavam e com batiam todos
os elementos filosóficos; em pregando a extensão de sua vasta e
sublime compreensão, reconstruiu a Filosofia, apresentando as
verdades de que o espírito hum ano esteve sem pre de posse (*)».
M ont’Alverne ensinou Filosofia em S. Paulo e no Rio, no
Seminário de S. José, onde teve como adm irado discípulo a
Domingos José Gonçalves de M agalhães (1811-1882), mais
conhecido como introdutor do R om antism o no Brasil.
Este últim o foi professor de Filosofia no Colégio Pedro Π ,
de onde saiu para a carreira diplom ática. N ão ficou no Eclec-
tism o de Cousin: deixou-se levar tam bém pelo O ntologism o e o
Idealismo. D aí as incoerências de seu pensam ento. Leonel
Franca estranha, com razão, a atitude idealista num brasileiro;
mas alega textos que não deixam lugar à dúvida, com o este:
«Só existe realm ente o que é espírito... tudo o m ais existe feno­
menalmente, não em si, não para si, mas p ara quem o pensou e
o faz aparecer a quem pode ver os seus pensam entos (·)».
Este idealism o ainda por cim a se transfunde em ontolo-
logismo quando, páginas adiante, explica o au to r que a reali­
dade extram ental é nada mais que pensam entos divinos: «Todo
este imenso universo sensível que nos parece substancial­
mente existir entre nós e D eus só existe intelectualm ente em
Deus, como pensam entos seus, sem outra existência fo ra da
inteligência mesmo de Deus que o pensou; nada tem existência
m aterial fora de Deus (T)».

(*) Compêndio de Filosofia, Rio, 1859, p. 104.


(e) Factos do Espirito Humano, Paris, 1858, p. 325, ap. Leonel
Franca, Noções de História da Filosofia, 5.“ ed.. Rio, s/d , p. 241.
(T) Factos, p. 351, ap. Id., ibid., p. 242.
13
194

Estes dois, e Eduardo Ferreira França (1809-1857), médico


baiano, despertaram o gosto pela Filosofía e, mais ou menos
influídos pelo Eclectismo, fizeram que este se tomasse, no dizer
de Clóvis Beviláqua, a doutrina mais simpática à alma brasileira.

Na segunda metade do século X IX ganha terreno na


Europa vigorosa reacção contra o idealismo, que no fundo é a
filosofia do movimento romântico. Ao apriorismo e às espe­
culações de Fichte e Hegel se contrapõe o valor da experiência
como único critério de certeza, ao mesmo passo que, enfati-
zando-se as ciências particulares, se levanta a barreira da des­
confiança e do agnosticismo contra toda indagação que trans­
cende o sensorial, pejorativamente chamada metafísica.
É a atitude positivista, que, além de método e modo-de-
•pensar, se tomou filosofia sistemática com Augusto Comte
(1798-1857).
Na França mesmo o comtismo se bifurcou entre ortodoxos
e dissidentes, aceitando os primeiros toda a obra do mestre,
recusando os segundos o aspecto político-religioso, consubstan­
ciado na Política Positiva, na Síntese Subjectiva e no Catecismo
Positivista. Lafitte, por um lado, Littré e Taine, por outro,
chefiam as duas posições.
De acordo com a referida <dei da repercussão», também
no Brasil ecoaram as novidades e as dissidências, formando-se
duas correntes comtistas.
Porém, prevaleceu, e muito, como movimento, a ortodoxa,
chefiada por Miguel Lemos e Teixeira Mendes.
Datam da década de 60 as primeiras notícias e adesões.
Mas só em 1876 é que Benjamim Constant fundou a Sociedade
Positivista. Sua condição de militar e professor da Escola Poli­
técnica e da Escola de Guerra facilitou-lhe o proselitismo entre
as classes armadas e os matemáticos. Além disso, foi ele pr°*
195

pugnador da ideia republicana, o que ajuda a explicar a influên­


cia que teve o Positivismo na instalação do novo regime.
Como atitude espiritual e como método restrito e restritivo
de trabalho intelectual, teve o Positivismo enorme influência no
pensamento brasileiro, sobretudo no domínio jurídico e nas
concepções científicas. Porém, como movimento organizado
e «ortodoxo», cingiu-se a um grupo extremamente activo e faná­
tico, reunido em torno de Miguel Lemos (1854-1916) e Teixeira
Mendes (1855-1927). Fundaram eles a Igreja Positivista e o
Apostolado Positivista, que editou muitos livros, dos indicados
por Comte para formar o saber universal, inclusive (por mais
estranho que pareça) os Comentários sobre o Sermão da Mon­
tanha, de Santo Agostinho, e o Tratado do Amor de Deus, de
São Bernardo.
No Templo da Humanidade, Rua Benjamim Constant, 30,
Rio, se celebraram (e ainda se celebram) os actos litúrgicos dessa
estranha religião sem Deus, que, não obstante, logrou regular
número de fiéis, divididos entre positivistas completos e prosé­
litos.
Sobre os dois chefes escreveu Washington Vita interessante
perfil, de que destacamos este trecho:
«Miguel Lemos, iniciado, numa solenidade impressionante,
no Positivismo por Lafitte, vigário visível de Comte e papa
da Religião da Humanidade, jurou sobre o túmulo do Mestre
fidelidade eterna, e cumpriu o compromisso com ânimo admirá­
vel. Quando se retirou da vida activa, entregou o facho da fé
positivista a Teixeira Mendes, que, aos quinze anos de idade,
recusou-se altivamente a receber o título de bacharel, para não
se ver obrigado a jurar fidelidade ao imperador e à religião
oficial do Estado. Expulso juntamente com Miguel Lemos da
Escola Politécnica do Rio de Janeiro, matricula-se na Facul­
dade de Medicina, não para exercer a profissão, mas com o
196

único propósito de adquirir a instrução enciclopédica reco­


mendada por Comte.
«Assim sendo não se exagerou quando Teixeira Mendes
foi apontado como o único indivíduo, no mundo, que realizou
plenamente, em todos os actos, de sua vida pública ou privada,
o complicado e austero códico ético-jurídico do Positivismo,
encamando perfeitamente o tipo ideal do homem sonhado por
Comte. Até seu casamento foi celebrado segundo o ritual posi­
tivista, talvez o primeiro sacramento da Religião da H um ani­
dade levado a efeito no continente americano. Em sua casa não
havia escravos, e muito menos empregadas domésticas, e quando
algum convidado trazia «babás», estas estavam obrigadas a
tomar assento à mesa do anfitrião. Nada de café, nem bebidas
alcoólicas, nem cigarros (*)».
Na mesma linha ideológica e metodológica do Positivismo,
mas com coloração diferente, repercutiu também no Brasil o
monismo materialista e o evolucionismo. Seu principal arauto
foi Tobias Barreto (1839-1889), que veio a ter grande influência
a partir de sua ascenção à cátedra da Faculdade de D ireito de
Recife.
Além da Filosofia, dedicou-se ao Direito, à crítica e à poesia.
Estudou alemão, coisa raríssima naquele tempo, o que contri­
buiu, nele para fartar-se de adm irar a Alemanha, nos outros
para o admirarem sob mais este aspecto.
Sílvio Romero (1851-1914), seu companheiro, sequaz e
apologista caloroso, elevou-o às culminâncias, compondo ou
regendo um coro que encheu o país durante algum tempo.
Tobias foi chefe da chamada «Escola do Recife», que m ar­
cou época, e fez discípulos. Lia pela cartilha de H aeckel, e por

(®) Escorço, ps. 60-61.


197

aí explicou todas as coisas: Deus, o homem, o universo, o


Direito.
De temperamento era um agitado, um complexado, explo­
sivo, de convivência difícil.
Não obstante sua pregação m aterialista, doente e à beira
da morte, reconciliou-se com a Igreja, assistido que foi por um
padre católico.
«Esquisitão de algum talento» cham ou-lhe Lafaiete R odri­
gues Pereira no livro que escreveu contra Sílvio Romero, em
defesa do Machado de Assis (1Vindiciae, R io, 1899). Leonel
Franca julga-o com severidade, mas com justeza, tendo antes
salientado que «Nenhum dos trabalhos filosóficos de Tobias
é um livro, no sentido rigoroso da palavra; falta-lhes unidade
de plano e concatenação de idéias. São críticas avulsas, artigos,
teses, opúsculos coleccionados em volumes. Ânimo im pulsivo e
batalhador, polemista arrebatado, Tobias não era homem para
escolher um assunto, estudá-lo com serenidade e desenvolvê-lo
larga e profundamente. Deixava-se dom inar e arrastar p d as
circunstâncias e ia produzindo o que elas lhe pareciam exigir.
Ê nesta obra fragmentária que im porta respigar as idéias capi­
tais do filósofo (*)».
Quem não conhecesse a probidade do grande e saudoso
jesuíta poderia increpá-lo de sectário. M as outros, ideologica­
mente distantes de Franca, apontam essas e outras deficiências
no chefe da «escola teuto-sergipana», como dizia, com chiste,
Carlos de Laet. Hermes Lima, no livro que lhe dedicou (Tobias
Barreto, S. Paulo, 1939), chama a atenção para as más conse­
qüências de seu complexo de inferioridade, de sua vaidade de
autodidacta e de sua falta de ordem na vida.
Cruz Costa, homem desligado de qualquer sistem a ou

(·) Noções, p. 271.


198

escola, mas simpático ao Positivismo, não acom panha o antigo


coro de louvaminheiros. Para eie, «Tobias Barreto não foi um
pensador. Foi, como outros letrados que temos tido, um comen­
tador do pensamento europeu e, especialmente, do pensamento
alemão. Sua acção foi renovadora no seu tempo, mas ficou redu­
zida apenas ao seu tempo e não ultrapassou a existência daque­
les que com ele conviveram (“ )».
Na fase final de suas lucubrações, Tobias inclina-se já
para o esplritualismo, como se vê desta passagem:
«O pendor materialístico do tempo, a que corresponde o
gosto pelas explicações mecânicas, tem levado muitos espíritos
ao extremo das afirmações e negações categóricas, porém sem
base nos factos. Felizmente, já há mais de um exemplo de
sobriedade científica por parte de naturalistas, outrora inebria­
dos de seu próprio vinho, mas hoje convencidos de que a
ciência tem limites, além dos quais ainda existe alguma coisa,
que ela não pode sujeitar aos seus processos de observação e
esclarecimento. O primeiro, o mais valioso sinal desta mudança,
foi dado por Du Bois Raymond (“ ).»
Sílvio Romero, amigo e entusiasta de Tobias Barreto, em
Filosofia descreveu uma trajectória que vai do eclectismo de Jouf-
froy ao evolucionismo spenceriano, passando por Comte. R eal­
mente nunca se fixou: exaltava e depois criticava quem exaltara,
e ao próprio Spencer adere, por fim, com cautela. «Se tivesse
de tomar um chefe entre os modernos, disse ele, elegeria H.
Spencer, nas linhas gerais do seu pensar (12).

(10) Contribuição à História das Idéias no Brasil, 2.a ed., Civiliza­


ção Brasileira, 1967, ps. 293-294.
(u) Obras Completas, ed. do Estado de Sergipe, vol. IX, Ques­
tões Vigentes, ps. 44-45.
(12) Ensaios de Filosofia do Direito, 1895, prefácio, p. IX.
199

Foi um incansável pesquisador de coisas brasileiras, mas em


m atéria de idéias gerais distinguiu-se por extrema versatilidade.
Talvez a constante de seu cam biante pensamento tenha sido
a aversão àquilo que os positivistas chamam de «metafísica»,
ou seja, as especulações transcendentes aos dados da experiên­
cia e da verificação externa.
Seu espírito irrequieto e apaixonado, sua fome de pesquisa
horizontal, leitor que foi de toda a literatura brasileira disponí­
vel e, ainda, coleccionador de folclore, — não lhe perm itiram o
repouso para a meditação, necessária ao filósofo e até ao
filosofante. Gostava de novidades, e talvez tivesse sofrido, em
Filosofia, daquela posição que ele mesmo se atribui nas letras:
«Eu não sou clássico e nem rom ântico e nem parnasiano; não
estou com a velha nem com a nova geração... quero estar com
a novíssima, com aquela que ainda há de vir (13)».
Olhando-o com simpatia, mas reconhecendo-lhe a contra­
ditória agitação interior, vê nele Cruz Costa um como retrato
do Brasil: «Acabamos sempre confundindo-o com o Brasil.
É que ele se parece muito com as coisas brasileiras — é um
tum ultuar de contrastes, de esperanças e de desilusões, um
misto de simplicidade e de complicação, de erros trem endos e
de boa vontade de acertar. Sílvio Rom ero reflecte, ao nosso
ver, a ingenuidade, um tanto complicada das nossas elites inte­
lectuais. O que lhe dá grandeza é o seu infatigável esforço
de compreensão do Brasil; não é a sua filosofia (w)».

Deter-nos-emos um pouco mais num pensador que tem sido


considerado o mais original do Brasil, embora sua filosofia
muito deva a antecessores, principalmente Spinoza e Schopen-

(ls) História da Literatura Brasileira, 2.· ed.. Rio, 1902, II, p. 809.
(M) Op. cit., p. 299.
200

hauer. Trata-se de Farias Brito, nascido no Ceará em 1862,


e falecido no Rio, catedrático de Lógica no Colégio Pedro II,
em 1917. Apesar da vida agitada e itinerante, foi exem plar­
mente fiel à vocação de seu espírito, dedicando-se toda a vida
à Filosofia. Leu e criticou os principais filósofos dos últim os
séculos, combateu vigorosamente o m aterialism o dom inante e
tentou uma síntese sua, em que, infelizmente, não se forrou de
incongruências intrínsecas e de erros.
Foi também o mais fecundo dos filósofos brasileiros, tendo
ele mesmo dividido a sua obra em dois grupos: 1. Finalidade do
Mundo, em que se incluem A Filosofia como Acíividade Perma­
nente do Espírito (Fortaleza, 1895), A Filosofia Moderna (For­
taleza, 1899) e Evolução e Relatividade (Belém, 1905);
2. Ensaios sobre a Filosofia do Espírito, que compreende
A Verdade como Regra das Acções (também do Pará, 1905),
A Base Física do Espírito (Rio, 1912) e O M undo Interior (Rio,
1914). ,
Além de denunciar e combater o Positivismo e o evolucio­
nismo materialista, clamou pela urgente necessidade de uma
conversão geral dos espíritos. Form ado em D ireito em Pernam ­
buco, terá recebido influências da chamada «Escola do Recife»,
mas a das reagiu, e descreveu uma longa trajectória, crítica e
construtiva, de que talvez não tenha chegado a term o, como
aconteceu com Bergson, nos últimos tempos de sua vida e, prin­
cipalmente, na morte.
Aliás, considerando-se a presença e a acção de Farias
Brito na vida intelectual brasileira, não se pode fugir a uma
aproximação com o filósofo de Deux Sources de la Morale et
de la Religion: ele foi o Bergson brasileiro, por ter ser­
vido a muitos de ponte, por ter conduzido mais de um,
entre os quais Jackson de Figueiredo, à concepção espiritua­
lista e católica do mundo, que não era a sua.
201

Para Farias Brito, cabe àiFilosofia, como «actividade per­


m anente do espírito humano», regenerar o mundo pela inces­
sante procura da verdade e pela aceitação da «verdade como
regra das acções». D aí já se vê que é moral a finalidade suprema
do filosofar: «a m oral é o fim da Filosofia», «o ideal que me
im pulsionou é a ordem m oral» (A Base Física, p. 72).
H á nele um sopro heraclítico, uma angustiosa aflição com
o espectáculo do mundo, em contínuo vir-a-ser, que para nós
melancólicam ente se resolve na morte. Urge então buscar na
Filosofia solução para essa angústia: «Tudo passa, tudo se
aniquila. Pois bem: eu quero saber se do que passa e se
aniquila algum a coisa fica, que não há de passar nem aniqui­
lar-se: quero estudar essa ciência incomparável de que falava
Sócrates; quero ensinar aos que padecem como é que se pode
esperar com serenidade o desenlace da m orte; quero dirigir,
aos pequenos e humildes, palavras de conforto; quero levantar
contra os tiranos a espada da justiça; quero, em um a palavra,
m ostrar para todos que antes e acim a de tudo existe a lei m oral,
e que é somente para quem se põe fora desta mesma lei que a
vida term ina.» (A Filosofia como Actividade, ps. 21-22).
Farias distingue a filosofia pré-científica, que é a própria
actividade do espirito a elaborar o conhecimento; a ciência, que
é o conhecimento sistem atizado e especializado; e a filosofia
supercientífica, «interpretação do sentido real e racional da exis­
tência; interpretação pelas prim eiras causas e pelos prim eiros
princípios; o que, em últim a análise, se resolve num a totaliza-
ção da experiência, ou mais precisamente, num a solução do
problem a do universo; concepção que corresponde, exactam ente
e com o máximo rigor, ao que se cham a metafísica.» (A Base
Física, p. 64).
A existência universal tem, para Farias, dois aspectos: um,
objectivo, que é a realidade exterior, «o m undo da natureza e
202

dos corpos», e outro subjectivo, que é a consciência, o espírito.


A realidade objectiva é contínuo vir-a-ser; a realidade subjectiva
é sentir e pensar: «coisa que não entre em nenhuma destas duas
categorias fundamentais não existe, nem pode ser conhecida».
(Mundo Interior, p. 479).
Prosseguindo em suas especulações, busca Farias, para
além dos fenómenos, a «coisa-em-si», que descobre ser o espírito.
E acaba por identificar a matéria com o espírito: «tudo isto que
se chama matéria não é senão a aparência externa, a manifes­
tação e o desenvolvimento, ou a eterna fenomenalidade do
espírito, uma como sombra que o espírito projecta no vácuo.»
(Ibid., p. 415).
Farias tem uma Teodiceia à primeira vista lúcida e segura,
pois vê em Deus espírito criador, inteligência suprema, princípio
de todas as coisas, a tudo presente, ser pleno, conhecimento
perfeito. «Negar a Deus é negar a razão no mundo.» (Filosofia
Moderna, p. 16). Com tal entusiasmo fala de Deus, que se diria
um platónico ou um aristotélico-tomista. M as é engano. Farias
Brito é panteista: «Há, pois, a luz, há a natureza e há a cons­
ciência. São os três momentos da natureza divina. A luz é
Deus em sua essência; a natureza é Deus representado; a cons­
ciência é Deus percebido.» (Ibid., p. 267).
Tem, portanto, toda a razão Leonel Franca ao capitular a
filosofia do pensador cearense como «pampsiquismo panteista».
Na ordem prática, entende Farias que «as duas manifesta­
ções fundamentais do espírito humano na m archa geral da
sociedade são a Política e a Filosofia. A Política dá em resul­
tado o Direito; a Filosofia dá em resultado a M oral.» (A Filoso­
fia conto actividade, p. 33).
A regra da moral é a verdade, ou, mais concretamente, a
convicção, porque, ao fim e ao cabo. Farias cai no relativismo
moral: «O homem tem sobre todos os outros seres este privilégio
203

excepcional: que é éle próprio quem formula as leis a que deve


obedecer». (A Verdade como Regra, p. 9) Ou: «forma subjec­
tiva: procede sempre e tem todas as relações da vida de con­
form idade com o que pensas que é verdade, isto é, de conformi­
dade com as tuas convicções.» {Ibid., p. 25).
O Direito é a norm a de conduta estabelecida e coactivamente
exigida pelo poder público, já que a tendência do homem é
para o mal.
As religiões actuais, segundo Farias, estão mortas. Urge,
pois, criar outra, nova, que não será senão a própria moral
organizada. «E isto quer dizer: é a sociedade organizada pela
lei moral, é a sociedade governada pela razão». {Mundo Interior,
p. 102).
N ão sendo, pois, espiritualista ortodoxo, menos ainda cris­
tão, serviu, no entanto. Farias Brito a muitos de caminho para
o encontro do Cristianismo.

Justam ente neste ponto é a hora de falar num a corrente de


pensamento, que já tem mais de cem anos de continuidade, que
reatou, em muito melhores termos, um a tradição interrompida,
mas que nem sempre tem merecido a devida atenção dos histo­
riadores do pensamento brasileiro, — apesar das boas ou exce­
lentes coisas já produzidas.
Refiro-me ao renascimento da Filosofia Tomista, geral-
mente conhecido por neotomismo, uma vez que os seus fautores
e continuadores actualizaram, fiéis ao sistema, as indagações e
conclusões provocadas pelos problemas das modernas ciências
experimentais e matemáticas.
O movimento começou na Itália, com Liberatore (1810-1892),
que em 1850 deu à estampa um curso completo de Filosofia.
Acompanharam-no Taparelli d’Azeglio, Sanseverino, Cornoldi,
Zigliara, na Itália: Kleutgen (1811-1883), na Alemanha; De
204

Broglie, D’Hulst, Domet de Vorges e Farges, na França; menos


rigoroso, Balmes, na Espanha. M as foi a encíclica Aeterrú Patris,
de Leão X III (1879), que deu o grande impulso à restauração
tomista, insistindo no verdadeiro progresso da Filosofia, que se
faz por aprofundamento e não por substituição: «Vetera novis
augere et perficere», como diz, no documento, o famoso pon­
tífice.
No Brasil, antes da encíclica, já em 1866 o paraibano José
Soriano de Sousa (1833-1895) publicava em Recife os Princípios
Sociais e Políticos de Santo Tomás de Aquino. Além de outros
trabalhos de menor tomo, deu à estampa em 1871, editado em
Paris e distribuído pela Livraria Académica de Pernambuco,
um alentado compêndio de 544 recheadas páginas — Lições de
Filosofia Elementar, Racional e Moral.
Não se lhe vá buscar originalidade; mas ninguém pode
negar que o jurista paraibano assimilou bem as aulas que rece­
beu na Universidade de Lovaina, na Bélgica, e as m uitas leituras
que fez nos melhores tratadistas e divulgadores, dando-nos um
compêndio claro, metódico e, sobretudo, bem escrito, em boa
língua. Apesar de passado um século, ainda se lê com gosto e
proveito o livro de Soriano, hoje raríssimo.
Algum tempo depois, o Visconde de Saboia, Vicente Cân­
dido Figueira de Sabóia (1835-1909), professor da Faculdade
de Medicina do Rio, publica A Vida Psíquica do Homem (Rio,
1903), em que refuta o materialismo corrente, e afirm a que só
uma concepção integral e correcta do homem pode explicar devi­
damente os fenómenos mentais, em todos os seus aspectos e
extensão.
Em 1908, pioneira, é fundada a Faculdade de Filosofia de
S. Bento, em S. Paulo. Mandou-se vir da Bélgica o doutor por
Lovaina Carlos Sentroul, que já se distinguirá por uma tese
sobre o objecto da Metafísica, segundo K ant e segundo A ristó-
205

teles. Foi ela traduzida para o alemão e premiada, em 1906,


pela Kantgesellschaft.
Sentroul ensinou muitos anos no Brasil, e publicou, em
português, um Tratado de Lógica.
Interrom pidos os cursos em 1917, retom am em 1922, agora
já com outro belga, que se radicou no Brasil, Leonardo van
Acker. Este ainda vive e actúa, sendo autor do melhor trabalho
sobre Lógica escrito em nossa língua: Introdução à Filosofia.
Lógica (S. Paulo, 1932).
Em 1921 ocorre um facto, que veio a ter importantes con­
seqüências e larga repercussão: Jackson de Figueiredo, recém
convertido ao catolicismo, funda no Rio o Centro D. Vital,
destinado a ser foco de irradiação do tomismo e da doutrina
católica.
Funcionou regularmente durante mais de quarenta anos,
publicando um a revista, «A Ordem», e ministrando cursos diver­
sos, além de conferências semanais. Surgiram réplicas em
S. Paulo e em M inas, de m odo que por todo o período de sua
vida activa, directa ou indirectamente teve o Centro papel nos
estudos e nos escritos filosóficos aristotélico-tomistas.
Na direcção, a Jakson sucedeu Alceu Am oroso Lima, con­
vertido em 1928, e a este, em seus impedimentos, Gustavo
Corção.
Muitos têm sido os cultores da Filosofia neotomista, alguns
dos quais se destacaram, seja pela profundidade na assimilação
do sistema, seja pela aplicação dos princípios e dos métodos a
novos aspectos da realidade. Um recente e isento historiador
do pensamento brasileiro, Antônio Paim, reconhece e proclam a
a importância do movimento. Veja-se-lhe este tópico:
«O esplritualismo de Farias Brito conduziu à estruturação
da corrente neo-tomista, provavelmente a que abriga em seu seio
maior número de pensadores. Partidários de Jacques M aritain
206

e divulgadores de sua obra ocupam a maioria das cadeiras nos


cursos de Filosofia, tanto das Universidades Católicas como das
federais. Alimentam significativo movimento editorial e, embora
pareçam divididos no plano político, formam uma corrente
filosófica única. A persistência do positivismo e a hegemonia
neotomista sobre o ensino da disciplina constituem a nota domi­
nante de nosso acanhado universo filosófico (15)».
Para lembrar alguns nomes, no passado e no presente,
mencionaríamos: Ludgero Jaspers, Castro Nery, A. B. Alves
da Silva, Alexandre Correia, Antônio Alves de Siqueira, Leonel
Franca, Saboia de Medeiros, Nélson Romero, Francisco Xavier
Roser, Pedro Cerruti, Sebastião Tauzin, Armando Cámara, Aldo
Obino, Geraldo Pinheiro Machado, Orlando Vilela, Lúcio dos
Santos, Peixoto Fortuna, João Camilo de Oliveira Torres,
Eduardo Prado de Mendonça, Ubaldo Puppi, Luís Castagnola,
José van den Besselaar, Irineu Pena, Gustavo Corção, Alfredo
Lage, Maurílio Teixeira Leite Penido.
Quero, desta lista feita ao acaso da memória e inclusiva de
vários centros nacionais (Rio, S. Paulo, Belo Horizonte, Curitiba,
Porto Alegre), destacar algumas figuras.
Leonel Franca aliou a erudição à profundidade e à pureza
da linguagem. Foi, depois do bosquejo de Sílvio Romero, o
primeiro sistematizador da história da Filosofia no Brasil, e
deixou dois trabalhos com muita contribuição pessoal — A Crise
do Mundo Moderno, em que argutamente analisa as conse­
qüências, nos nossos dias, da grande ruptura do século X VIII,
e O Problema de Deus, obra póstuma.

(ls) História das Idéias Filosóficas no Brasil, S. Paulo, 1967,


ps. 252-3.
207

Antônio Alves de Siqueira é autor do melhor tratado


sobre Filosofia da Educação, baseada nos princípios de Aristó­
teles, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.
Ludgero Jaspers tem um bom compêndio de Filosofia e tra­
duziu toda a Summa contra Gentiles, do Doutor Angélico.
Ubaldo Puppi, do Paraná, com Itinerário para a Verdade
(1955), Prius Natura (1960) e A Intuição Intelectual e a Exis­
tência (1966) sagrou-se pensador seguro, arejado e rigoroso.
Gustavo Corção, depois que trocou a Física e a Matemática
pelas especulações filosóficas e teológicas, tem-nos dado impor­
tantes trabalhos, de que talvez se deva sublinhar As Fronteiras
da Técnica, onde situa no verdadeiro lugar a Técnica e a Polí­
tica, sobretudo a partir da distinção aristotélica entre agir e
fazer; e Dois Amores, Duas Cidades, longa, segura e percuciente
análise da civilização moderna, onde mostra a decadência do
pensamento límpido e voltado para o ser, desde o século XIV
aos nossos dias, com as sucessivamente trágicas conseqüências
que vem acarretando.
Alfredo Lage, uma das nossas melhores cabeças filosóficas,
deu-nos um excelente ensaio estético, A Revolução da Arte
Moderna (1969), em que, à luz dos princípios tomistas, analisa
as diversas experiências e realizações artísticas do Romantismo
para cá; e recentemente publicou um suculento estudo sobre
a falência do pensamento liberal, sob o título de A Recusa de
Ser (1971), que deveria ser lido por quantos pretendem chegar
às raízes da actual crise de cultura.
Maurílio Teixeira Leite Penido é um pensador universal­
mente conhecido. Formado na Europa e por muito tempo pro­
fessor na Universidade de Friburgo, na Suíça, dedicou-se prin­
cipalmente à Teologia, mas granjeou a primeira linha dos Filó­
sofos tomistas com o arcabouço filosófico de Le rôle de Vanalogie
en Théologie Dogmatique, com La méthode intuitive de M.
208

Bergson e com Dieu dans le bergsonisme. Logo depois da


Guerra de 39 foi para o Brasil, onde ensinou vinte e cinco
anos, na Faculdade Nacional de Filosofía e no Seminário de
São José, no Rio.
*
* *

Como já se viu pela citação de Antônio Paim, com a qual


estou de acordo, o pensamento actual brasileiro está dominado
pelo neotomismo, pela mentalidade positivista e, acrescento eu,
por um marxismo difuso, que tem suas origens mais remotas,
parece, no ensino de Leónidas Resende (1889-1950) na Facul­
dade de Direito do Rio (então integrada na Universidade do
Brasil). Leónidas transitou do positivismo ao marxismo, ou
melhor, incluiu teses marxistas num esquema e estilo de pensa­
mento comtista.
Outros depois estudaram e adoptaram sobretudo a visão
marxista da História — aliás fácil de assimilar e supostamente
aplicável a todas as culturas — com seu componente hegeliano
do «processo». Mas pouquíssimos são os que realmente conhe­
cem o pensamento de Marx, na sua variada e complexa totali­
dade.
Outra não é a opinião de Antônio Paim: «No Brasil, o
estudioso do fenómeno depara-se com uma situação deveras
curiosa: o marxismo jamais despertou qualquer movimento
teórico de envergadura, nem antes nem depois da form ação do
partido político que pretende encarná-lo. Nunca houve uma
difusão sistemática dessa doutrina, não havendo sequer uma
tradução portuguesa de O Capitai Observa-se, na verdade,
um grande desinteresse pela teoria, entre aqueles que se dizem
marxistas, a par de uma defesa intransigente das posições poli-
209

ticas trazidas à luz sob esse rótulo. A maioria dos chamados


engajados não sabe nem mesmo precisar o conteúdo de certos
conceitos que emprega (10)».
Fora dessas dominantes — positivismo, marxismo, neoto-
mismo — existem pensadores singulares, que ou não se filiam a
escolas, ou adoptam isolados posições desta ou daquela corrente.
É o caso de Euríalo Canabrava (1903), que parece ter-se última­
mente inclinado para o empirismo lógico, depois de muita irre-
quietude erudita. É o caso do exietencialismo de Vicente Fer­
reira da Silva (1916-1963) e, outrora, de Roland Corbisier.
Miguel Reale poderia ser considerado partidário da «Filosofia do
Valor», que tom a como eixo o homem e como fundamento da
Ética a relação de «um eu» com «outro eu». Renato Cirell
Czema, ligado a Reale, pode ser classificado como idealista.
Outros seriam de difícil classificação, porque têm sido histo­
riadores e críticos do pensamento brasileiro. Tal é o caso de
Luís Washington Vita, talvez fenomenologista, mas que, em todo
caso, diz que, «em última instância, o que im porta na Filo­
sofia é a verdade (17)». Poderíamos também dizê-lo culturalista,
posição em que, acrescentando, humanista, eu enquadraria um
Djacir Meneses, sublinhanho ainda o nítido suporte hegeliano
de seu inquieto pensamento, creio que próxim o de um grande
desaguadouro, descoberto e definido por Santo Agostinho, logo
no começo das Confissões: «fecisti nos ad te [Domine], et
inquietum est cor nostrum, donee requiescat in te (l8)».

(10) Ibid., p. 222.


(” ) Escorço, p. 14.
(«) Conf., 1, 1.
14
210
*
♦ *

Aí está, creio, um balanço, sumário e maçudo, de nosso


pensamento filosófico, que, se por um lado, am plamente
documenta e ilustra a chamada «dei da repercussão», form ulada
por Alceu Amoroso Lima, demonstra, por outro, nos melhores
casos, um fácil poder de assimilação da inteligência brasileira.
Acompanhamos o velho mundo no bom e no mau, demons·
trando assim estarmos integrados na civilização ocidental, no
que ela tem de positivo e de negativo, nas suas palpitações
de vida e nos seus sinais de agonia ou de esperança.
CA PÍTULO X IV

RELIGIÃO

Seria quase ocioso assinalar que não vam os tratar aqui do


assunto em perspectiva teológica, nem sequer filosófica. P or­
tanto, não falaremos em religião natural e religião positiva, em
religião criada e religião revelada. T ão pouco apreciarem os a
sinceridade e autenticidade dos crentes, m atéria inacessível aos
olhos humanos, segredo entre a alm a e Deus.
M as também não nos colocarem os em posição de «soció­
logo», considerando quaisquer m anifestações religiosas com o do
mesmo nível, igualando, portanto, cristianism o e feticihism o,
catolicismo e bruxaria, missa dom inical e m acum ba. T e D eum
e flores para Iem anjá. Se alguns pensam que com isso se m os­
tram «adiantados» e «compreensivos», entendem os, ao contrário,
que m isturar coisas díspares ou equiparar o pensam ento filosó­
fico de A ristóteles ao palanfrório abstruso do Prof. José N in­
guém, que refutou Hegel e Carlos das Pedras, é renunciar volun­
tariam ente à inteligência e preferir passar por estúpido.
Já disse eu aqui ser o Catolicism o a religião dom inante no
Brasil, mas logo esclareci que m e situei n a pauta afectiva e não
efectiva.
A inda uma ressalva: neste capítulo considerarem os «reli­
gião» como «atitude espiritual», isto é, aceitação de realidades
supra-terrenas, norm as intrínsecas de acção m oral, critérios hie-
212

rárquicos de valor. Não só, mas principalm ente (dada nossa


perspectiva), a exteriorização social de tais atitudes, — que nos
situará no campo da Cultura.
Assim, quando salientamos que o censo revela que noventa
e três por cento dos brasileiros se declaram católicos, não que·
remos dizer (nem pensamos) que essa imensa parcela da popula­
ção aceita integralmente os dogmas da Igreja, lhe seguem a
rígida moral, freqüentam os sacramentos e cumprem os preceitos
canónicos. Isto significa apenas que a m aioria dos brasileiros
cresceu e vive num ambiente culturalm ente católico: casa na
igreja, baptiza os filhos, promove ou concorda com a prim eira
comunhão, vai a missas de sétimo dia, manda-as celebrar, põe
nomes de santos às propriedades rurais, invoca Santa Bárbara e
São Jerónimo (supostamente marido e mulher) por medo aos
raios e trovões, faz promessas à Virgem e a certos santos, para
obter favores temporais, vai às procissões, aí segura, circuns­
pecta, a vara do pálio, mais raram ente comunga uma vez por
ano, a «desobriga», e, havendo tempo e ocasião, manda chamar
o padre quando a figura deste mundo começa a passar, isto é,
quando a morte já se mostra muito próxima, de unhas roxas
e olhos vidrados. Afinal, pensa-se, o que vem depois é desco­
nhecido e melhor será, por via de dúvidas, acertar as contas
com Deus, através de seu ministro.
Há outra parte, mais próxima de um catolicismo coerente:
cumpre as obrigações estritas, como ir à missa aos domingos
e dias santos, confessar-se uma vez por ano, comungar pela
Páscoa, jejuar na quarta-feira de cinzas e na sexta-feira da
Paixão, mandar os filhos ao catecismo.
Mas, fora um número reduzido de fiéis esclarecidos e rigo­
rosamente praticantes, não raro a doutrina católica se m istura
a crendices e superstições, quando não à frequência a sessões
espíritas e terreiros de macumba.
213

Considerando com rigor, temos de concluir que predomina


o sincretismo religioso, católico, protestante, espirita, umban-
dista, supersticioso, com uma moral de costume e de conveniên­
cia, tudo quase sempre rotulado de catolicismo (afectivo e cul­
tural).
Colonizado pelos portugueses, foi o Brasil objecto daquilo
que se chamou a «vocação missionária de Portugal». Desde
1549 para lá foram os jesuítas, recém-fundados, que, de corpo
e alma, se entregaram à catequese do gentio. Duas figuras então
se salientam: Manuel da Nóbrega, que disse, ao chegar, «Esta
terra é nossa empresa», e José de Anchieta, cognominado o
Apóstolo do Brasil.
Espalharam-se as missões, para as quais vieram depois
franciscanos, carmelitas, oratorianos, beneditinos e outros, além
de ir-se organizando o clero secular, que actuava nas normais
tarefas de cura das almas.
A princípio eram muito poucas as dioceses, que quase não
se multiplicaram. Basta dizer que no começo do século XDC
só existia um arcebispado, o da Baía, seis bispados (Rio de
Janeiro, Olinda, M aranhão, Belém, S. Paulo e M ariana) e duas
prelazias, Goiás e Cuiabá.
Compare-se isto com o estado actual, em que há mais de
trinta arquidioceses, quase duzentas dioceses e uma trintena de
prelazias, — e fica patente o crescimento da organização cató­
lica no Brasil.
Durante o Império esteve a Igreja unida, ou melhor, enfeu­
dada ao Estado, que tentava sobrepor-se à autoridade do Sumo
Pontífice. Por outro lado, não poucos padres se esqueceram
de seus deveres espirituais e se engolfaram na política, entrando
até alguns para a M açonaria, que abraçara a causa da Indepen­
dência e, com tal, se tornara simpática. A s famosas «irman-
214

dades» se encheram de maçons, e de um m odo geral os bispos


faziam vista grossa.
Finalmente, em 1873 explodiu a Q uestão Religiosa, de que
foram protagonistas D. V ital de O liveira, Bispo de O linda,
e D. Antônio de Macedo Costa, Bispo do Pará. D epois de
tentarem todos os meios suasórios, usaram de seus poderes
canónicos para separar os campos, para excluir das irm andades
os maçons.
Contra ties se levantou trem enda cam panha, que envolveu
o Governo e lhes custou condenação e cadeia. N a verdade, eles
defendiam a autonomia do poder espiritual e as suas prerroga·
tivas de bispos, obedientes só à autoridade do Papa. Seu gesto
despertou os espíritos adormecidos ou acomodados, e contribuiu
muito para uma tomada-de-consciência da integridade do C ato­
licismo. Por isso, foi saudada como libertação, inclusive por um
pregador, Júlio M aria, e por bispos a separação da Igreja e do
Estado, proclamada pela República. Entenderam eles que a
«hipótese» concreta era melhor do que a «tese», mal entendida,
deformada e utilizada como discreta e efectiva opressão da
Igreja.
No tempo do Império todos eram «católicos», o que signi­
ficava quase o mesmo que «brasileiros», e seria um pouco como
hoje alguns são «flamengo» ou «fluminense». Nos últim os
anos havia, é claro, os espíritos «emancipados», positivistas,
evolucionistas, materialistas. Nem é de estranhar que, entre
aqueles tais «católicos», se encontrassem alguns ou m uitos ateus,
ao menos práticos.
Já Vieira dizia que no seu tempo muitos eram católicos no
Credo e hereges nos mandamentos. N ão terá m elhorado a
situação; antes piorado, porque não raro o Credo era feito m ais
de costume, de sentimento, de opiniões, de im pressões, de
«incognoscível», de adesões afectivas e vagas do que de convicção.
215

H avia ainda catequese sistem ática, conforme se vê em M achado


de Assis, por que todos passavam. M as a religião ficava em
nível infantil, enquanto a cultura profana se am pliava e se
aprofundava. Daí o aforism o: «Religião não se discute», que
escondia ignorância injustificável e medo de derrota fácil, ante
sofismas baratos.
Com a República deu-se grande florescim ento do catoli­
cismo, mas não m elhorou o grau geral de instrução religiosa.
Um Carlos de L aet é excepção.
Em 1921, Jackson de Figueiredo converteu-se, e fundou
o Centro D. V ital, que m uito contribuiu, durante largos anos,
para a difusão da doutrina católica em nível superior. M anteve
cursos, conferências e um a revista, «A Ordem», que conheceu
momentos de m uita altitude intelectual. O cham ado «M ovi­
mento Litúrgico», dirigido pelos monges beneditinos, sobretudo
do Rio, conseguiu numerosas conversões e atraiu m uita gente
à vida católica autêntica, sacram ental, centrada em C risto e
alim entada na Liturgia.
M as o grosso da população continuou naquele «catolicism o
cultural», de que já falei em capítulo anterior, entregue a p rá­
ticas externas, pomposas, traduzidas às vezes em movimentos
de massa.
Hoje, com a crise do catolicismo, com a debandada de
padres e freiras, com a invasão do Neo-M odemismo, está o
povo carente de orientação e de liderança, abandonando o cato­
licismo pelo protestantism o, mal assim ilado, ou ingressando
no espiritism o e na um banda, onde encontra os apoios visíveis
para sua natural religiosidade.
Escasseiam as procissões, rareiam as novenas e triduos,
dissolvem-se as irm andades e associações religiosas... e a gente
simples vai buscar espiritualidade em form as degradadas de
religião.
216

Isto ocorre principalmente nos grandes centros, onde, de


resto, como em todo o mundo ocidental, se observa sensível
queda do sentimento religioso e progressivo paganismo, facili*
tado e estimulado pela «filosofia do conforto».
Mas, como o homem é o «animal religioso» de Aristóteles,
foge de Deus e busca a magia, a astrolatria e todas as formas
de superstição, pensando que dias propícios e aziagos dependem
de horóscopos, chinelos virados, encontro com certas pessoas
«pé-frio», colibris, borboletas desta ou daquela cor, pios de
coruja e outras coisas assim, que complicam terrivelm ente a
vida, agravam os medos e depõem severamente contra a lucidez
dos observantes.
No interior as coisas continuam, mais ou menos, como
sempre foram. O povo tem suas devoções, suas festas religiosas
predilectas (em que por vezes há um componente de folclore),
faz suas romarias, cumpre suas «premessas», reza seu terço e
sempre manda buscar o padre na hora da morte.
Dos vários lugares de peregrinação, o mais im portante (pela
afluência o ano todo) é Aparecida, no Estado de S. Paulo, para
onde convergem romeiros de todo o sul, M inas para baixo.
E ali não se pode negar que haja religião católica tradicional,
porque os peregrinos se confessam, comungam, rezam o terço,
assistem à bênção e cumprem «premessas» normais, como acen­
der velas diante do altar, caminhar de joelhos, da porta da
igreja à capela-mor, exactamente como em Portugal, Fátim a,
por exemplo.
Além da grande devoção a Nossa Senhora, comum a todo
o Brasil interiorano, são mais venerados os santos que os por*
tugueses cultuam, destacando-se, como é natural. Santo Antônio.
Todo esse quadro, esboçado nas grandes linhas e visto de
fora, culturalmente, mostra-nos, ainda uma vez, a resistente
torça da presença lusa.
217

*
* *

As diversas formas de protestantismo tiveram entrada tar­


dia no Brasil por motivos óbvios.
Houve uma prim eira tentativa, frustrada, ainda no
século XVI (1557), com os huguenotes calvinistas, que, como
missionários, para cá vieram, a mandado de Calvino. O cro­
nista Jean de Léry fazia parte do grupo. Cá se desavieram,
4 foram executados, por ordem de Villegaignon, e os mais
retom aram a Genebra. Segunda tentativa se deu nas invasões
holandesas, que com elas se esvaneceu. Em todo caso, diz o
jesuíta André de Resende, contemporâneo, que «estavam muitos
índios tão calvinistas e luteranos como se nasceram na Ingla­
terra e na Alemanha.»
Como a missão protestante era apoiada pela Companhia
das índias Ocidentais, Fernandes Vieira recebeu do Papa Ino-
cêncio X o título de Restaurador do Catolicismo na América
Portuguesa.
Assim sendo, o começo efectivo e duradouro do proselitismo
e do culto protestante no Brasil, em suas diversas confissões,
decorreu da Constituição de 1824, que permitiu uma coisa
e outra, desde que as casas de oração não tivessem aspecto
de templos. Já antes, em 1819, se fundara um culto anglicano
no Rio, por força de acordo celebrado em 1810 com a Inglaterra
e para atender aos súbditos britânicos.
Depois se foram estabelecendo as diversas igrejas. Vieram
os metodistas em 1836, os luteranos em 1845, os congregaciona-
listas em 1858, os presbiterianos em 1862, os episcopalianos em
1890, todos inicialmente no Rio. Só os baptistas é que começaram
pela Baía, em 1882. E , como sempre, o caminhar se deu do
litoral para o interior.
218

Hoje por tdda a parte existem cultos e missões protestan­


tes, das diversas confissões, sendo talvez a m ais num erosa em
adeptos a baptísta. Têm tido m uita voga também, últim am ente,
as Testemunhas de Jeová e o Exército da Salvação.
Além do proselitismo, entregaram-se os protestantes à fun­
dação de escolas. Primeiro, de nível prim ário, cham adas «domi­
nicais»; depois, secundárias. Surgiu o Colégio M ackenzie em
S. Paulo (hoje Universidade e creio que aconfessional), o Instituto
Granbery, de Juiz de Fora, o Colégio Isabela H endrix, de B do
Horizonte, os Ginásios Evangélicos, da Bahia e da Paraíba, os
colégios Batista e Bennett, do Rio.
Também na literatura didáctica se fizeram notar Júlio
Ribeiro e Eduardo Carlos Pereira, com as respectivas Gramá­
ticas, Otoniel M ota, já no campo da Filologia, A ntônio Tra-
jano, com sua Aritmética e sua Álgebra, sem falar nos livros
de leitura de Erasmo Braga, que tiveram voga.
Hoje muitos dos ex-católicos convertidos ao protestantism o
vão lá buscar uma espiritualidade que lhes foi, por assim dizer,
escondida por vigários ronceiros, que quase só pediam dinheiro
para construir a igreja ou se limitavam burocráticam ente a
administrar sacramentos, e promover as festas folclórico-reli-
giosas dos oragos e dos santos predilectos locais.
Não se lhes inculcou noção singela, sim, mas essencial e
autêntica do cristianismo, como aceitação total da Palavra,
como entrega a Deus, como Esperança actuante, como participa­
ção, desde agora, da vida divina pela Graça, como amizade
pessoal a Jesus Cristo, enfim, como elevação integral e como
solução real para todos os problemas.
219

*
* *

Um tipo de religião largamente aceito e praticado no Bra­


sil neste século tem sido o Espiritismo, fundado, como tal, por
Léon H ippolyte Denizar Rivail, muito mais conhecido por
Allan Kardec (1804-1869).
A prim eira sessão espirita do Brasil realizou-se a 17 de
setembro de 1865 em Salvador, sob a direcção de Luis Olímpio
Teles de Meneses. No Rio o movimento começou em 1873,
2 de agosto, data da fundação da Sociedade de Estudos Espirí-
ticos do G rupo Confúcio, sob a batuta de A ntônio da Silva
Neto. Tal grupo se encarregou de promover a tradução das
principais obras do fundador.
Daí por diante inicia-se a expansão da nova crença, consi­
derada por alguns «ciência». Em 1889 já D. Silvério Gomes
Pimenta, Bispo de M ariana, M inas Gerais, prevenia seus fiéis
contra o Espiritismo, que ia conseguindo adeptos na diocese.
Em 1884 Elias da Silva funda a Federação Espírita Bra­
sileira, que ainda existe, embora o Espiritismo esteja dividido
em muitos grupos e seitas, como kardecistas, rustenistas (de Jean
Baptiste Roustaing, de Bordéus), ubaldistas (de Pietro Ubaldi,
de Foligno), emanuelistas (de Emanuel, o espírito-guia de Chico
Xavier), racionalistas (fundados pelo flaviense Luís de Matos,
em 1910) e os umbandistas, de que adiante falaremos com mais
pausa.
A nova religião, iniciada pelas irmãs Fox (que depois se
retrataram e revelaram os seus truques) 0) e codificada por Allan
Kardec, veio a ter imensa difusão no Brasil. Tanto, que o

(l) V., para Margarida Fox, «New York Herold» de 24-9-1888,


e para Katy Fox, ibid., n.° de 10-10-1888.
220

número de setembro-outubro de 1954 da <nRevue Spirite», de


Paris, apresenta-nos como «o m aior país espírita do Planeta».
É fácil explicar a larguíssima expansão das seitas no Brasil.
O Espiritismo supostamente m ostra aos olhos e aos ouvidos
o sobrenatural, e portanto dispensa a Fé, ou seja, a aceitação
da Palavra e a firme adesão intelectual ao mistério, ao supra-
-racional; traz o espiritual para o domínio do sensível; aparen­
temente resolve a dilaceração da morte, porque pretende pôr
os vivos em contacto com os mortos, chamados e solícitos em
atender; a rigor nada exige em m atéria de moral, a não ser
uma vaga «caridade», entendida como complacência, indulgên­
cia, bondade, compreensão, ausência de censura; por fim, asse­
vera que os pecados cometidos são pagos por outros, em nova
encarnação.
Portanto é uma doutrina que dá tudo e nada pede. Satis­
faz o instinto religioso do homem e não exige a penitência da
inteligência, a Fé, nem a mortificação da concupiscência ou a
luta contra o amor-próprio e a vaidade.
Por outro lado, a fraca instrução, religiosa e geral, tom a o
homem presa fácil de engodos. Já o proclamara um antigo pro-
lóquio: Vulgus vult decipi— «o povo quer ser enganado» (di­
gam-no os demagogos de todos os tempos e matizes).
Então, os que procuram no Espiritismo solução para o pro­
blema religioso e cura para males físicos e psíquicos não ana­
lisam as fraudes, as sugestões, os fenómenos naturais ainda
inexplicados: afrouxam as molas da alma, e vêem e aceitam
tudo. E também misturam tudo. Porque há milhares de
espíritas que se dizem católicos. Isto, sem falar nas centenas
de «tendas» Santa Teresinha, Santo Antônio, S. Francisco de
Assis, Santo Agostinho e tantas outras.
221

*
* *

Resta-nos dizer duas palavras sobre certas práticas mágico*


-religiosas que se têm espalhado intensamente nos últimos tem­
pos. Refiro-me à Umbanda, cujo culto se realiza em terreiros
de «macumba», «candomblé», «batuque», «xangô» ou «vodu»
(nomes, respectivamente, do Rio, da Baía, do Sul, de Pernam­
buco e do M aranhão).
Muito difícil, senão impossível, é dar ideia segura dos prin­
cípios e concepções da religião. Alguns estabelecem diferença
entre Umbanda e Quimbanda, informando que a primeira é
magia branca e a segunda, magia negra. No entanto, isto é
negado por um autor que se apresenta como autoridade no
assunto, «sacerdote dos diversos cultos de Umbanda», o
sr. Aluísio Fontenelle. Diz ele:
«Na sua essência íntima, a Quimbanda é em quase tudo
idêntica ao que se cultua na Umbanda, uma vez que daquela
surgiu esta última. Digo que a Umbanda é uma parte da
Quimbanda, pelo facto de que a sua composição, suas actividades,
suas divindades, suas lendas, seu ritual (em grande parte), seu
protocolo, enfim, as suas crenças estão perfeitamente irmanadas
dentro do mesmo sentido, divergindo apenas no que diz respeito
à indumentária e certas práticas na comunhão dos seus trabalhos
espirituais. A Quimbanda continua no firme propósito de manter
as antigas tradições dos seus ascendentes africanos, ao passo que
a Umbanda procura, pelo contrário, afastar completamente esse
sentido incivilizado das suas práticas, devendo-se à influência do
homem branco, cujo grau de instrução já não as admite (*)».

(*) O Espiritismo no Conceito das Religiões e a Lei de Umbanda,


Rio, p. 81.
222

A Umbanda é mais culto mágico, de origem africana e


incorporador de eventuais elementos indígenas, europeus bru-
xeiros e espíritas. Aliás, por certas coincidências, como o
reencamacionismo e a evocação de seres incorpóreos, a
Umbanda está fortemente impregnada de elementos karde-
cistas.
Não gostam que se diga isto certos espíritas da classe média,
que propõem então diferença entre «baixo» e «alto» Espiritismo.
Mas quando alguém se dispõe a penetrar no em aranhado das
doutrinas e práticas, chega à conclusão acima enunciada: sincre­
tismo religioso, de base cultuai africana, de doutrina acentuada­
mente espiritista, com transes locais e magia por toda a parte.
É só dar uma volta pela cidade do Rio de Janeiro sexta-feira
à noite, para ver o sem-número de «despachos» nas encruzilha­
das e esquinas, com o charuto, a garrafa de cachaça, a farofa
amarela, a galinha preta morta, tudo iluminado com a luz bru-
xuleante de pelo menos uma vela.
Uma noite vi eu, na Gávea, por volta de uma hora da
madrugada, um rapaz de boa aparência (aliás, os terreiros são
freqüentados também por gente da alta roda), que acabava de
acender no chão seis velas e fazia gestos de chamamento olhando
para o céu e acenando as mãos de encontro ao peito. E sei de
um professor universitário que me disse levar perfumes fran­
ceses a Iemanjá no último dia do ano. Provavelmente para
tomá-la mais propícia.
Isto nos leva à conclusão, já mais de uma vez enunciada:
existe no Brasil, por toda a parte, um catolicismo afectivo, cultu­
ral, ambiental, frequentemente deturpado e dessorado pela mis­
cigenação de elementos absolutamente inconciliáveis, o que se
toma possível pelo temperamento sentimental do nosso povo,
seu carácter conservador e sua enciclopédica ignorância religiosa.
CAPITULO XV

UM CONTRASTE: A ACTUAL CRISE DA CULTURA


BRASILEIRA E «VINTE ANOS DE OURO PRETO»

Neste capítulo estabelecemos um confronto e uma contra­


posição. Marcamos um contraste, a nosso ver muito elucida­
tivo, — entre a crise que actualmente ameaça desintegrar a cul­
tura brasileira, e um período de intensa vida espiritual, ocorrido
em Vila Rica, ainda na fase colonial de nossa História, mas
certamente decisivo para a maturação da Independência, pro­
clamada quarenta anos depois.
Agora observa-se um generalizado espírito pragmático, pre-
sentista, utilitário; então se conseguiu grande densidade de vida
interior, desinteressada, contemplativa, propícia à floração das
artes e ao requinte da cultura. Aliás, condição desta, no sen­
tido rigoroso da palavra, é precisamente o desinteresse, como já
o observara Sócrates. Ou bem o homem quer só engordar,
gozar e defender-se, ou busca ascensões espirituais, contem­
plando e criando o Belo, buscando a Verdade e amando-a por
si mesma.
A cultura, no sentido alto do termo, não é feita de rotina,
de hábitos maquinais, de repetições inconscientes e massificantes.
Antes, exige trabalho consciente, sobre si e sõbre os outros,
pede uma atmosfera intensamente oxigenada e estimulante, que
224

alimenta e desperta ideias, revela vocações e convida os homens


a darem o melhor de si.
O pragmatismo e o imediatismo de hoje são altam ente
desfavoráveis à verdadeira cultura, que então fica entregue às
revistas ilustradas, quando não aos program as de rádio e TV,
onde pontificam os Chacrinhas, os Flávios Cavalcantis, os Silvios
Santos e os noveleiros de baixo romantismo, a promover saltim ­
bancos de vária sorte e sentimentalismo barato, tudo glorificador
da cafagestagem, da mistificação, da m ediocridade e do total
afrouxamento das molas da alma.
Sei que é antipático dizer isto, mas o silêncio é como­
dismo e o aplauso, ainda discreto, é cumplicidade.
Posto isto, vamos, agora sem mais, aos nossos dois pontos
contrastantes.

Como sobejamente procurámos demonstrar, existe uma cul­


tura brasileira, cujos elementos materiais são luso-afro-indígenas,
mas cujo elemento formal é português. Essa cultura se elaborou
ao longo dos três primeiros séculos e desabrochou, para se ir
clarificando e crescendo, a partir da Independência, ou, mais
propriamente, a partir da tomada-de-consciência da Nação.
O sentimento da formação histórica comum, a intuição do
destino comum, a sujeição aos mesmos factores mesológicos,
étnicos, ideológicos, a constante circulação de m oeda espiritual
não apenas solidificam esse todo, essa cultura nacional, mas
levam os mais preparados, atilados e diligentes a um a sorte
de introspecção, à análise do produto histórico, p ara descobri­
rem as linhas-mestras, as características, os elem entos perm anen­
tes e definitórios. É o aprofundamento da cultura nacional, que,
225

no Brasil, se tem dado sob forma de acessos, justamente a partir


da Independência. Os epígonos do Romantismo, por exemplo,
ou um Vamhagen, um Sílvio Romero, um Capistrano de Abreu,
um Euclides da Cunha, um João Ribeiro, um Pandiá Calógeras,
um Oliveira Viana, um Gilberto Freire, a torrente de ensaístas
e pesquisadores que, depois de 1930, tomaram possível, neces­
sária e tantas vezes fecunda a «Colecção Brasiliana» da Compa­
nhia Editora Nacional, ou a colecção «Documentos Brasileiros»,
da Livraria José Olímpio Editora, todos estes — e alguns
outros— contribuíram para que o Brasil, realidade histórico-
-cultural, fosse mais bem conhecido, como um complexo, ou em
algum de seus aspectos sincrónicos ou diacrónicos (para usar
uma dicotomía saussuriana, utilizável no caso).
Acontece na história das nações o que ocorre na vida das
pessoas: a infância é a idade do presente, a adolescência a da
identidade do «eu», a maturidade a da responsabilidade e do
débito para com ó passado. O passado enriquece e prende o
homem maduro; enriquece e defende as nações maduras. É
aquilo que Chesterton tão bem chamou de «democracia dos
mortos», e que De Houvre resumiu numa frase lapidar: «nous
sommes les autobus de nos ancêtres».
Outro símile, agora com a vida vegetal: a árvore só pros­
pera, viça, deita flores e amadurece frutos, se tem raízes, se a
elas está ligada pelo tronco e delas se alimenta pela seiva. Assim,
condição de verdadeiro progresso das nações, de expansão em
vergônteas, folhas, flores e frutos autênticos, belos e nutrientes
é estarem vitalmente ligadas com o passado.
Um povo desenraizado é um povo disponível para qualquer
aventura, inclusive suicida, exactamente como um homem sem
tradição de família, sem um sobrenome a zelar, é presa fácil de
convite ou solicitação ao crime. «Nada tenho a perder», dirá
ele à própria consciência moral, no diálogo íntimo.
15
226

Prosseguirei dizendo que um aspecto grave, quase diria


gravíssimo, da crise da cultura brasileira é o esquecimento e o
repúdio do passado. O nosso «momento histórico» (que já vimos
ser um dos factores culturais) se caracteriza por esse duplo
esforço sistemático e seriado: olvido e execração do pretérito.
Há tempos lançou-se um «slogan», que fez carreira e des­
pertou entusiasmos: «Brasil, país do futuro». Isto foi tomado
por muitos como definição e elogio da nossa terra! Não perce­
beram os entusiasmados que isto é condenação do presente
e aniquilação do passado. Analisado o conteúdo do pregão,
patenteia-se o que há nele de pessimismo radical. Significa que
no presente não existem valores e que o passado é nulo. Só
resta apelar para o futuro, que ainda não existe realmente, que
só está na previsão e na imaginação e que, quando vier, poderá
desmentir e decepcionar a previsão e a imaginação.
Preparado o ambiente com o sucesso do «slogan», entraram
os empreiteiros da demolição a desvalorizar, esquecer, ou dene­
grir o passado, conforme o caso ou os ouvintes.
Insere-se neste contexto a lusofobia que por toda a parte
se respira, pulverizada que foi na atmosfera cultural dos dias
actuais. Maldiz-se o agente da transculturação, afirma-se que
melhor teria sido outro, ou, o que é risível, que o processo em
si é execrando, porque os índios não pediram missionários
que lhes viessem encher a cabeça de conceitos alheios e alie­
nantes. Não fora a sede de pimenta e ouro dos portugueses
e cá estariam os salvagens ainda hoje, felizes, brasileiros (?), inte­
grados, caçando capivaras a flecha à beira dos grandes e peque­
nos rios.
Foi profunda, dissemos, a marca portuguesa em nossa
cultura; está vivíssima em nosso passado: urge, pois, apagá-la,
renegando e condenando o tempo pretérito, as coisas pretéritas.
Atentai para este precioso texto de Eduardo Portela, destacada
227

figura da nossa intelligenzia, desse grupo de mentores do Brasil


Novo, apostados em mudar o «momento histórico» da Nação:
«Agarrados ao presente, empenhados todos na construção de um
pais novo, o passado, o passado que não fizemos, o passado que
se articulou à nossa revelia, e muitas vezes contra a nossa
vontade, adquire diante de nós o sentido de uma luxuosa fan­
tasia, sem utilidade, sem função (l)».
Por ai se vê que eles só aceitariam um passado feito com
sua colaboração e a seu conselho, o que positivamente não é
fácil. Portanto, esponja na «luxuosa fantasia, sem utilidade,
sem função»!
Está claro que eles se propõem uma luta inglória, porque o
passado é presente, é tesouro acumulado, é força actuante, com­
põe o hodierno, matiza a sensibilidade, é irreversível. Só ten­
tando um processo de amnésia colectiva, que só poderia atingir
as camadas urbanas sofisticadas, os intelectuais de botequim,
os profetas do vento. Mas esses personagens e esses grupos
podem confundir muito as novas gerações, e realmente o estão
fazendo. Principalmente os universitários, que amanhã serão
chamados a dirigir a Nação.
Não é lícito, pois, negar que haja uma grave crise de cul­
tura. Crise capaz de abalar seriamente e — quem sabe — pertur­
bar a continuidade. De qualquer modo, uma crise de empobre­
cimento, de estupidificação, de inópia mental, traduzível em
trágico ridículo à face do mundo. Já imaginaram toda tuna
progénie que alegremente se proclamasse fruto da concepção
de mulher de vida airada?!
Éste um aspecto da crise, resultante de envenenamento,
espécie de maconha cultural.

(*) «Tempo Brasileiro», Rio, ano II, n.° 3, Março de 1963, p. 277.

1
228

Mas há outro, mais profundo, que facilita a acção deletéria


da amnesiação e, poderá, se persistir e com o tem po, levar a
zero a cultura intelectual brasileira. Refiro-m e ao pragmatismo,
que tomou conta da nova geração de estudantes.
Estes (falando em geral, estatisticamente) só se interessam
pelo que dá resultado imediato. Só querem estudar (ou melhor,
«adestrar-se») o que «cai» ou pode «cair» no vestibular. Só o
que possa facilitar emprego ou produzir dinheiro rápido. M uitas
vezes são os professores de matérias hum anísticas interrom pidos,
abalados e desalentados por esta pergunta: «Para que serve
isso?» E se o professor honesta e altivam ente responder— «Para
nada!»—, só verá as costas dos alunos, ficará pregando às mos­
cas, dará aulas no meio do alarido da conversa desligada.
Ora, o próprio da cultura intelectual, repetim o-lo, é a gra­
tuidade, o desinteresse, o «para nada», — nitidam ente subli­
nhado, nos tempos modernos, por Wilhelm H um boldt e na anti­
guidade, há vinte e cinco séculos, por Sócrates: «dos que vão
ao estádio, fez ele um de seus discípulos descobrir, uns buscam
a glória, os lutadores; outros buscam o lucro, os vendedores de
bebidas e guloseimas; outros, enfim, têm a m elhor parte, a parte
nobre, porque lá vão para contemplar».
Se não se organizar uma sadia e sistem ática reacção contra
a mentalidade imediatista e o repúdio ao passado, então mesmo
é que não seremos o «país do futuro». Acabaremos transform a­
dos em «cidadezinha qualquer» (do grande poeta m ineiro Drum­
mond), que fará exclamar os pósteros alienígenas, melhor
avisados e desde já mais bem conduzidos por seus líderes: «Êta
vida besta, meu Deus!» Seremos uma civilização e um a cultura
de «inocentes do Leblon», para, mais uma vez, lem brar o poeta.
Antes de terminar e desafogar os leitores, seja-me perm i­
tido chamar a atenção para o que estão fazendo com duas
figuras pinaculares da cultura brasileira, os talvez dois únicos
229

nomes dignos de figurar no firmamento da cultura universal,


o Aleijadinho e M achado de Assis. E note-se, para agravante,
que são dois autênticos brasileiros, enriquecidos com qualida­
des e situações saudadas como positivas: são ambos mulatos,
pobres, sem escolaridade, autodidactas, no polo oposto aos
«bacharéis de Coimbra».
Pois bem: do primeiro não se fala, talvez porque não com­
pareceu a nenhuma Bienal, não estava «comprometido», subli­
mou-se e alienou-se em profetas, anjos, santos e Cristos e, além
do mais, esteve a serviço da classe dominante. Sobre o segundo
se fez cair a cortina do silêncio, para usar m etáfora sediça. Não
se tratou dele durante muito tempo. Era um ausente, das
crónicas, dos ensaios, das alusões, dos elogios da intelligenzia.
Ultimamente começou, timidamente, a condenação: M achado de
Assis não se comprometeu, foi um alienado.
Quando eu soube disto, não pude conter uma gargalhada,
porque, realmente, nenhum autor retratou melhor, com mais
riqueza de detalhes, o meio em que viveu e produziu. É, sem
favor e sem contestação decente, o mais perfeito cronista do
Rio: toda a vida da cidade está nos seus contos, nos seus roman­
ces, nas suas crónicas — os costumes, os usos, as festas, as pre­
ferências das diversas classes, os espectáculos, as brigas-de-galo,
os pregões, as tabuletas, o tipo de comércio, os vestuários, os
meios de locomoção, as reuniões de familia, a política, a poli­
ticagem e a politicalha, os ídolos ocasionais, enfim, tudo. M as
caridosamente me explicaram: foi alienado e desengajado, porque»
não se interessou pela escravidão!
Nem isto é verdade: lá está «O caso da vara», e lá ficou o
discurso — único no género para ele, de pé, num carro, em
comício — em que louvou e agradeceu à Princesa Isabel o
decreto redentor.
230

*
Ψ *

Estamos, pois, muito mal postos: cham ados à disponibili­


dade total, pelo desenraizamento, e à im becilidade total, pelo
imediatismo. Urge tom ar consciência da crise, e tra ta r de debe­
lá-la. Com lucidez e coragem. É esta uma tarefa que com pete a
quem ainda pode exercer alguma influência e a quem am a o
Brasil brasileiro. Tarefa que está a pedir um a cruzada de sal­
vação nacional, tarefa que, sem dúvida, convoca os homens
cultos e conscientes de sua responsabilidade.

O título que atribuímos a esta segunda p arte é m ais sim­


bólico do que real. Porque, de facto, a vida intelectual e artística
em Ouro Preto encheu o século X V III. N asceu, deu os pri­
meiros passos a medo, depois tomou consciência de si e alçou
vôo arrojado, que atravessa a barreira do ano de 800. M as é
claro que essa vida do espírito, essa tensão, esse esforço ascen­
sional têm um período de esplendor, concom itante e intenso,
que situamos entre os anos de 1768 e 1788. Nestes vinte anos
está, nos diversos domínios, bem servida a inteligência criadora.
Se formos estabelecer a história de cada um a das m anifes­
tações artísticas, veiemos que são destoantes os ciclos: umas
nascem e florescem antes; outras surgem quando já em declínio
se acham as que madrugaram. M as no últim o trinténio do
século estão todas em maré alta, acreditando eu que se possa
dizer que o vinténio 68-88 seja o da plenitude com um, do
estuar de vida, nas letras, na arquitectura, n a pintura, n a música,
na escultura.
231

1768 é o ano da fundação daquilo que teria sido a A rcádia


U ltram arina, inicio oficial do neo-classicismo no Brasil: C láudio
M anuel da Costa inaugura, a 4 de setem bro, no Palácio do
Governador, um a Academ ia, e a 5 de dezembro faz aí represen­
tar seu dram a musicado O Parnaso Obsequioso. O ra, o edificio
(onde hoje funciona a Escola de M inas) é um dos m ais belos
senão o mais belo espécime da arquitectura civil barroca; poetas
e músicos ali estiveram presentes e actuantes, de m odo que
legítimo é considerar a data como m arco inicial da tal ple­
nitude.
Temos, pois, no viüténio 68-88 a ocorrência da liderança
intelectual de Cláudio M anuel; a m aturidade e a autonom ia de
Antônio Francisco Lisboa, o genial A leijadinho; os convincen­
tes prim órdios de M anuel da Costa A taíde, o m aior dos pinto­
res mineiros; a riqueza da música, não só executada m as tam ­
bém composta e orquestrada por m ulatos extrem am ente talen­
tosos.

*
* *

Focalizando esse vinténio exem plar, querem os cham ar a


atenção para o facto de cultura alta c solicitante que ele repre­
senta e que não coincide com o m áximo da opulência, com o
fastigio do ouro. As minas e lavras já estão em declínio, e não
tarda que se exauram . A febre já passou; o desregram ento dos
costumes já não é gritante; o C araça começa a povoar-se de
irm ãos do Irm ão Lourenço; a V ila de há m uito conhece e reco­
nhece lei e rei; M ariana, ali perto, tem bispo desde 1746.
N este período áureo deu-se sensível apuram ento de espirito,
concentração das energias do espírito, que foi paradigm ática,
exigente, aliciante e irradiante.
232

Então, fortemente electrizada ficou a atm osfera cultural,


o que constitui vantagem extraordinária. Quando tal acontece,
estimula-se a criação artística, revelam-se vocações, que seguem
rectilíneo seu cam inho aplainado e iluminado, enquanto a
mediocridade e, mais ainda, a impostura desistem de forçar
passagem. Assim se explicam essas florações de talentos, gênios
e grandes obras em determinados períodos, curtos, e em deter­
minados lugares: o primeiro e o segundo Renascimento italiano,
a música barroca e rococó na Itália, Á ustria e Alem anha do
século XVIII, o gótico na Ile de France nos séculos X II e X III.
É exactamente o contrário do que hoje sucede. Vivemos a
epifanía da charlatanice, da insensatez, do falso valor. É a
hora do idiota, como bem disse Nelson Rodrigues, hora tão
forte, tão envolvente, tão imponente, que quem não é apoucado
não raro simula e disfarça, para sobreviver e colher aplausos.
Aqueles vinte anos de Ouro Preto m arcaram a história da
nossa vida espiritual, da nossa civilização. Daí saíram obras
imortais, que hoje nos redimem e consolam: e daí surgiu acção
à distância, seja por força da boa imitação, seja pelas viagens
de interessados e curiosos à Meca, seja pelo aprendizado directo
e pelo transplante, como é o caso do pintor baiano José Joa­
quim da Rocha, que para sua terra levou os conhecimentos
hauridos em Minas, enformadores da pintura de Salvador e do
Recôncavo.
Em última análise, o que aconteceu no O uro Preto setecen-
tista, na Florença quinhentista, na Espanha seiscentista, ou na
Weimar de Carlos-Augusto, foi a acção de grandes personali­
dades, acatadas e ouvidas. Cláudio Manuel da Costa, notável
poeta e exímio humanista, reuniu em tóm o de si os homens de
letras, incentivou-os, criticou-os; Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho, teve oficina, orientou e fez artistas plásticos, acei­
tou encomendas fora, e marcou Caeté, Catas A ltas, Congonhas,
233

M ariana, M orro Grande, Nova Lima, Sabará, São João del Rei,
Tiradentes; Manuel da Costa Ataíde formou discípulos, e chegou
a pedir licença, negada, para abrir escola de pintura e arqui­
tectura em M ariana, antecipando-se de muito a D. João VI.
Insistiremos um pouco em duas destas figuras. Gáudio
Manuel e Aleijadinho.
Cláudio, formado em Coimbra, veio a tomar-se senhor
de sólida e espraiada cultura intelectual. Profunda e largamente
lido nos clássicos, sagrou-se escritor de primeira água, não só
pela beleza dos versos mas também, e principalmente, pda
excepcional qualidade do vernáculo. É sonetista de alto nívd,
dos maiores que já teve a literatura de língua portuguesa.
Quando os organizadores do Dicionário da Real Academia de
Ciências planejaram seu monumento lexicográfico, seleccionaran!
uns poucos de autores moddares, que legitimariam qualquer
construção ou uso vocabular do portugués de lei. Pois bem:
um desses raros protótipos foi o nosso Cláudio M anud da
Costa, brasileiro ali da Vargem do Itacolomi, pertinho da Vila
do Ribeirão do Carmo, hoje cidade arquiepiscopal de Mariana.
Realmente, manejou perfeitamente o difícil instrumento e
absorveu intimamente o «jeito» camoniano quem escreveu isto:

«Se os poucos dias que vivi contente


Foram bastantes para o meu cuidado,
Que pode vir a um pobre desgraçado,
Que a ideia de seu mal não acrescente?

Aquele mesmo bem, que me consente.


Talvez propício, meu tirano fado,
Esse mesmo me diz que o meu estado
Se há de mudar em outro diferente.
234

Leve, pois, a fortuna os seus favores;


Eu os desprezo já: porque é loucura
Comprar a tanto preço as minhas dores.

Se quer que me não queixe a sorte escura.


Ou saiba ser mais firme nos rigores.
Ou saiba ser constante na brandura.»

{Obras, Coimbra, 1768, son. XXXII: modernizei


a pontuação)

Gáudio não influiu só nos contemporâneos, com seus conse­


lhos, seu estímulo, nas suas tertúlias, mas teve nítida e poderosa
acção nos parnasianos brasileiros, especialmente A lberto de Oli­
vara, e no grande simbolista, mineiro também, de O uro Preto,
Alphonsus de Guimaraens.
O Aleijadinho, filho de pai português e de m ãe escrava,
não teve mais instrução que a prim ária, e aprendeu o ofício e
a arte na escola prática do pai, dos entalhadores José Coelho de
Noronha e Xavier de Brito e do abridor de cunhos da Casa de
Fundição de Vila Rica, o lisboeta João Gomes Baptista.
O que lhe faltou de aprendizado sistem ático e teórico
sobrou-lhe de talento e indomável vontade de trabalhar bem.
Viveu oitenta e quatro anos e ainda pôde, na velhice, projectar e
acabar sua obra-prima, os profetas e as figuras dos Passos
da Paixão de Congonhas. Foi arquitecto, projectista, escultor de
madeira e de pedra. Modelou toros de cedro, e im prim iu for­
mas imortais numa rocha pouco antes descoberta como boa
para o efeito, conhecida por pedra-sabão. Quando pôde alçar
vôo, atingiu grandes alturas, tornando-se não só o m aior artista
plástico brasileiro, mas um dos maiores escultores da hum a­
nidade, segundo o consenso dos mestres europeus actuais.
235

Inovou muito, e teve um estilo pessoal inconfundível. Para


que eu não incorra na censura de Apeles, cedo a palavra a
um entendido, Sílvio de Vasconcelos:
«Esplende o gênio de Antônio Francisco na Capela de
S. Francisco de Assis de Vila Rica. O projecto é inteiramente
seu. N de, cria as torres cilíndricas, inexistentes na tradição
cristã; introduz a coluna no frontispicio; faz avançar as naves
diante das torres; ornamenta a superfície da frontaria com figu­
ras e cartelas; transforma o óculo central em medalhão; movi­
menta a moldura da porta em contracções nervosas; substitui
por largas seteiras as janelas das sineiras; cobre com terraços os
corredores das sacristías, depois cobertos com arcadas. A arqui­
tectura floresce em novidade.»
(Vários autores, Minas Gerais, a Terra e o Povo,
Editora Globo, Porto Alegre, 1970, p. 207)

«As mais belas imagens esculpidas na região são, ainda,


as de Antônio Francisco Lisboa. Nenhum outro toreuta o
excede no trato da figura humana, onde mais visível se revela
sua inconfundível caligrafia. Os olhos são amendoados, repinta­
dos para cima e com acentuados lacrimáis: são largas as
arcadas superciliares; as pupilas configuram-se por cortes pla­
nos; os lábios, quase sempre entreabertos, são nitidamente dese­
nhados; os cabelos são estilizados em tufos e estrías sinuosas;
as dobras do panejamento se fazem angulares.»
(Id., ibidem, p. 214).

Na pintura, continuando e aperfeiçoando uma tradição, de


estranho sabor asiático, exede a figura de M anuel da Costa
Ataíde (1762-1830).
Dourou talhas a valer, encarnou muitas imagens, como as
dos Passos da Paixão de Congonhas e, principalmente, pintou
236

ricos painéis, de que se destaca a Assunção da Virgem, a encher


o tecto da Igreja de S. Francisco de Assis, em O uro Preto, obra-
-prima inclusive de perspectiva. Referência especial merecem
ainda o Baptismo de Cristo, da M atriz de M ariana, duas cruci-
fixões na Igreja do Bom Jesus de Ouro Preto, e a Sagrada Ceia
do refeitório do Eremitério do Caraça, única obra assinada,
magnífica tela de cinco metros de largura por dois de altura.
Das letras não é necessário falar. Além do patriarca, outros
grandes nomes ficaram, como Tomás A ntônio de Gonzaga, autor
das famosíssims líricas à sua noiva M aria D oroteia Joaquina de
Seixas, a imortalizada Marília de Dirceu, Alvarenga Peixoto,
espécie de núncio do Romantismo, ao lado de outro de mesmo
sobrenome, Silva Alvarenga. Isto sem falar nos épicos Basilio
da Gama e Santa R ita Durão, este realm ente apenas nascido
nas cercanias de Ouro Preto. De qualquer modo, esse grupo
de poetas, a que se deu o inadequado nome de «Escola M ineira»,
constitui o que de mais im portante houve nas letras pátrias antes
da plena emancipação, e, cotejado com os congéneres portugue­
ses, leva-lhes nítida vantagem, literária e lingüística, exceptuado
Bocage.
*
* *

Depois de tanta grandeza, de tanta beleza, veio o cansaço,


a exaustão. Não logo, mas aos poucos, a p artir da entrada na
nova centúria Ouro Preto foi-se apagando. Veio o silêncio:

«Aqui outrora retumbaram hinos;


Muito coche real nestas calçadas,
E nestas praças, hoje abandonadas.
Rodou por entre os ouropéis m ais finos...»
(Raimundo Correia, Poesias, 2.* ed., Lisboa, 1906,
p. 116).
237

Chegou-se ao ponto de cobrir-se a pintura ornamental de


algumas igrejas com tinta grossa e monocrómica; os dnzela-
dores não tiveram descendentes; os magistrais arquitectos, anó­
nimos tantos deles, cederam passo a uns destruidores de formas
e desequilibradores de massas, que de seu apenas conseguiram
construir abrigos sem plano, sem proporção, sem originalidade,
sem arte. A grande música, singular e esplêndida, só reaparecia
a medo nas semanas santas das velhas cidades mineiras, até que a
curiosidade, a paciência e o engenho de Curt Lange a pôs de
manifesto, re-escrita e até gravada já. De modo que podemos
agora ouvir ou executar José Joaquim Emérico Lobo de Mes­
quita, Marcos Coelho Neto, Francisco Gomes da Rocha ou
Inácio Parreira Neves, como testemunhos daquele facto único
na história da música, um grupo de executantes e compositores,
em pleno sertão brasileiro, em dia com as técnicas e as inova­
ções de um período esplêndido do Velho Mundo.
Veio a decadência, sim, a exaustão, o silêncio. Mas fica­
ram as obras, ficou o beneficio, ficou a elevação da alma, o
requinte de cultura, ficaram esses vinte anos simbólicos, como o
mais puro e sadio clima espiritual que o Brasil já teve.
Depois disso, muito progrediram as técnicas e muito se
desenvolveu a economia. Mas aquilo ficou intocado e insupe­
rado. Valerá sempre!
APÊNDICE
)

CAPÍTULO XVI

ORIGENS E FORMAÇÃO DA CULTURA OCIDENTAL

Num livro saído há vinte anos. Culture — A critical review


of concepts and definitions (Cambridge, Mass., 1952), Kroeber
e Kluckholn alinham 160 definições da palavra cultura. Diante
de tal emaranhado, diante de tanta erudição, pareceria mais
prudente o silêncio a respeito do assunto.
Mas, para quem se recusa a pensar pela cabeça alheia,
não intimida tal peso de «ciência» e informação. No caso,
basta que nos entendamos inicialmente sobre o sentido, ou os
sentidos atribuídos à palavra.
Está claro que nos achamos diante de um termo equívoco,
ou melhor, de um termo que comporta mais de um significado,
ainda que modestamente fiquemos pelos quatro ou cinco, e não
nos aventemos e nos percamos pelos cento e sessenta!
A palavra é muito antiga na língua e repete uma formação
latina, tomada ao supino do verbo colere, mediante o sufixo
abstractivo -ura. Em latim, cultura pertencia ao vocabulário
rural, e significava o trato, o amanho da terra. Só muito mais
tarde, na época clássica, é que Cícero vai, ampliando-lhe a área
semântica e ainda assim especificando, aplicar o vocábulo à vida
do espírito: «Cultura animi philosophia est» (Tuse., 2, 5, 13).
16
242

Como quem diz: a Filosofia é para o espírito o que a cultura


é para a terra.
Curioso é que, nas línguas modernas, este sentido translato
prevaleceu, passando o sentido próprio, material, para segundo
plano e com entrada bem mais tardia no uso geral. É o que
se nota hoje: falando alguém, por exemplo, em «problemas de
cultura», nenhuma pessoa pensará em terras aráveis ou sáfaras,
mas em actividades espirituais.
Vale a pena, no entanto, lembrar o sentido primeiro do
vocábulo, porque, analisando-lhe o conteúdo semântico, desco­
brimos aí dois elementos que estão sempre presentes nos diver­
sos significados que enriqueceram o termo, ainda que distante
fiquemos da erudita colecção das 160 definições.
E quais são esses elementos, que eu diria fundamentais e
permanentes? A natureza, com suas forças e virtualidades; e o
trabalho inteligente do homem, que procura daí tirar o mais e o
melhor.
Se o homem pode fazer sobre a natureza exterior esse
fecundo esforço, pode também fazê-lo sobre si mesmo, suas
faculdades cognostivas, procurando tirar delas o máximo. E isto
também é cultura. Isto é o que geralmente se chama cultura
pessoal.
Através da linguagem, ou comunicação, como está na moda
dizer, os homens de um mesmo grupo, de uma mesma comuni­
dade, ou até intergrupalmente, fazem circular os bens de cultura,
que se tomam, assim, sociais, patrimônio colectivo, possuído,
em grau maior ou menor por cada um dos indivíduos. É um
estado, que se forma e se estrutura com o tempo, vindo a ser,
paradoxalmente, uma riqueza e uma limitação. Riqueza, porque
investe cada membro da comunidade nas conquistas anteriores,
num grande número de idéias, técnicas, concepções, soluções,
— sem que ele em nada tenha contribuído para isso. Limitação,
243

porque cada estado cultural representa uma visão-do-mundo,


certa neste ponto, errada naquele outro, acanhada em tal outro.
Falávamos a princípio nas 160 definições de cultura arrola­
das pelos pacientes eruditos. Realmente isto interessa pouco.
O que interessa é explicar, inicialmente, a conceituação que
damos à palavra.
Sem desconhecer que, numa mesma linha de pensamento
filosófico, podemos atribuir ao termo 4 ou 5 significados, deixa­
mos claro que aqui vamos emprestar à palavra a seguinte inte­
ligência: conjunto de atitudes espirituais (religião e filosofia de
vida, escala de valores), conhecimentos, técnicas, usos, costumes,
tradições e criações artísticas próprias de um povo, de uma nação,
de um grande conjunto supra-nacional. Quando falamos em
«conhecimentos», «técnicas» e «criações artísticas», incluímos
não apenas a matéria bem elaborada e apurada, sistematizada
e racionalizada, mas também os conhecimentos empíricos, os
«dogmas culturais» e as operações, úteis ou belas, rudimentares.
Mas ainda necessária se toma uma complementação: pode­
mos ver a cultura (assim entendida) exteriormente e interior­
mente. Quer dizer, como manifestação e como estado de espí­
rito. Sentido, pois, objectivo e subjectivo. Sociologicamente e
historicamente, claro está que interessa mais o primeiro sentido,
inclusive porque ele revela o primeiro, o subjectivo, aquilo a que
metaforicamente se tem chamado «alma colectiva», «espirito
nacional», «mentalidade grupai».
Fica, portanto, estabelecido que, por cultura ocidental,
entendemos o conjunto de atitudes espirituais, técnicas, obras de
arte, usos, costumes e tradições próprias de certa parte da
Europa e da América (nesta, em virtude do processo de trans-
culturação, também chamado colonização).
244

*
* *

Poderá alguém estranhar que eu não fale em civilização


ocidental, como é muito mais comum. Tenho, pois, de dar
breve explicação da minha preferência.
A palavra civilização é muito mais recente do que cultura.
Foi cunhada em 1756 pelo Conde de Mirabeau, em L ’A m i de
1’Homme. O autor, com ela, pretendia significar o adiantado
estado da Europa na segunda metade do século X V III, algo
como um ideal atingido, ou quase, um estado social adiantado,
a que se contrapunha a barbárie e a selvageria.
Leonel Franca excelentemente exprimiu o significado pri­
meiro da palavra, quando assim lhe analisou o conteúdo:
«Desenvolvimento das ciências, das letras e das artes, prudência
equilibrada das instituições políticas e sociais, mantenedoras da
justiça e da paz, requinte de ademanes e delicadeza de maneiras
corteses e refinadas, tudo isto entrava no conceito de civiliza­
ção O».
Depois, a este se acrescentaram outros sentidos, inclusive
de acordo com as posições pessoais dos autores. Assim, há
quem sinonimize cultura e civilização, até quando a primeira
está empregada em sentido antropológico, a significar «conjunto
de estilos de vida, quer materiais, quer espirituais», independente
do grau de adiantamento. Por outro lado, um autor famoso, de
leitura obrigatória da década de 20, Spengler, opôs uma palavra
à outra, valorizando a primeira, minimizando a segunda. Em
Der Untergang des Abendlandes, defende Spengler a tese de que
a civilização representa um estado de esclerose, de inverno, de
velhice, uma fase consumidora, enquanto cultura significa juven­
tude, criação, primavera, produção de valores espirituais.

0) A Crise do Mundo Moderno, Agir, Rio, 1941, ps. 14-15.


245

J. T. Delos distingue uma coisa da outra, aproveitando assim


duas palavras diferentes, mas, no consenso, semánticamente pró­
ximas. Para ele, a civilização é «fruto da instituição de uma
idéia ou de um sentimento humano», acrescentando que «a cul­
tura está directamente na pessoa e refere-se a ela primeiro, ao
passo que a civilização reside antes nas instituições e não se
refere às pessoas senão como as próprias instituições (2)».
Aceitando a distinção de Delos, entendo e concluo que a
cultura é a alma da civilização. Podem transformar-se ou pere­
cer as instituições, mas fica, teimoso, ao longo do tempo, o
esforço ascensional do homem, a mira posta num ideal, o desejo
de ser mais homem e menos animal, de edificar uma cidade
fraterna onde o homem possa ver no outro um semelhante, um
próximo, e não um inimigo, um concorrente desleal, um lobo
faminto, pronto para tragar e estragar.
Até aqui repetimos e glosámos coisas já vistas.
Apesar de todas as vicissitudes, apesar de todas as quedas,
de todos os regressos à barbárie e à selvageria, creio que desde
épocas remotas os seres humanos, ao menos os melhores e os
simples, não contaminados pela paixão de ser, de ter ou de
mandar, esses tiveram, mais ou menos confusamente, mais ou
menos claramente, o ideal de bom convivio, o ideal de grandeza
verdadeira, de escalada aos altiplanos, onde pudessem construir
uma civitas, uma pólis adequada à sua dignidade transcendente
do universo físico, transcendente do puro animal.
Parece-me que os primeiros anseios disto que se chegou a
fazer no Ocidente dos nossos tempos (e que hoje muitos se
esforçam por deitar pela janela), tenho para mim, digo, que
o balbució disto se anuncia já nos sumérios, que chegaram a
conseguir muita coisa na linha do verdadeiro progresso. Passa-(*)

(*) La Nación, DEBEC, Buenos Aires, I, s/d, p. 18.


246

ram eles, passou a civilização suineriana, mas a ideia ficou e


cam inhou através das civilizações mesopotânucas.
Transparece, por exemplo, nítida no Código de Hamurábi,
que, apesar de sua dureza, apresenta como fim «aniquilar o mal
e o ímpio, para que o forte não prejudique o fraco».
Deixo de lado, por ora, os judeus, por constituírem um caso
à parte, mas trago à baila outros semitas, e os árias, detentores
estes de impressionante força expansiva, que os levou a remotas
terras, a influenciar e submeter povos os mais diversos, n a Ásia
e na Europa. Surge uma civilização mediterrânea, em que eles
tiveram larga parte, surgem os gregos, surgem os romanos.
E assim, vamos vendo os progressos e as quedas, o caminhar do
ideal de unidade, e as crises de diversidade e desintegração,
ícaro elevando-se, perdendo as asas e caindo: mas, sempre, a
teimosa mantença do ideal, uma como saudade do Paraíso Ter­
restre, um como suspirar pela Redenção libertadora e divini­
zante, embora refractada na ordem temporal.
Sintetizou bem este penoso caminhar, entre pedras e alga-
res, com montanhas e depressões, com altos e baixos, mas
sempre caminhar, Aldo Fabrino:
«De idade em idade, até ao presente, ressoou a afirmação
do primado do homem sobre as coisas, do espírito sobre
a matéria, da inteligência sobre a força, da concórdia sobre a
guerra. Foi assim conservado, perpetuado e divulgado o teste­
munho do espírito, que eleva a natureza acima de si mesma,
auxiliando a impotência humana e moderando a violência (3)»·
É a ansiosa e sinuosa busca de uma trilogia: verdade, bem
e beleza, que o homem vê ou entrevê, ama ou por éla suspira,
contempla ou produz.

(s) «As civilizações e o espírito», in Heresias do Nosso Tempo,


trad, port.. Livraria Tavares Martins, Porto, 1956, p. 359.
247

Assim tem sido a história da civilização ou da cultura oci­


dental, a que estamos ligados, através de círculos concêntricos:
cultura luso-brasileira, cultura ibérica, cultura latina, cultura
mediterrânea.
*
* *

Donde surgiu e como se formou esta civilização? Quais


foram suas linhas-de-força, quais os elementos que nela entra­
ram, mais ou menos puros, mais ou menos deturpados?
É inegável que foram três: o pensamento e a arte grega,
a organização e o ius romano; e a espiritualidade judaico-cristã.
Tudo isso, longamente caldeado na Idade-Média. Está claro
que falamos aqui nos factores preponderantes, tanto é verdade
que outros terão trazido sua pequena cota-parte: os árabes, prin­
cipalmente na área do mediterrâneo ocidental, os antigos ger­
manos, os velhos celtas...
Comecemos, pois, pela herança grega. Vejamos por alto,
panorámicamente, que marca deixaram eles nesta nossa cultura,
hoje ameaçada de colapso e destruição. Já disse eu alhures
e aqui o repito, porque faz ao caso: «A Grécia, apesar da
pequenez de seu território, ainda assim fraccionado em centenas
de ilhas, é a pátria da Filosofia. Foi lá que nasceu o pensamento
racional e organizado, a busca séria de sedução para os grandes
problemas e enigmas do universo, do mundo, do homem, de
Deus. Por mais de dez séculos entregaram-se os gregos à espe­
culação filosófica, deixando-nos uma preciosa herança, e um
exemplo de fidelidade à vocação do espírito (4)».
Mas não foi só no terreno do pensamento racional, na dis­
ciplina do labor da inteligência que os gregos chegaram até nós

(■*) «Filosofia», in A Cultura Grega Através da Moeda, Rio, 1969,


p. 54.
248

e ajudaram a conformar nosso espírito. Sem dúvida é este o


maior contributo. De tal valor e importância, que Maritain
lhes chama a eles o «povo eleito da razão», pensando nos anti­
gos judeus, povo eleito da Revelação.
Legaram-nos também os gregos as regras das artes, e grandes
realizações artísticas. A arquitectura e a estatuária ficaram a
dever-lhes um serviço sem preço, porque eles não só descobri­
ram e fizeram muito, mas racionalizaram e ensinaram. O mesmo
se diga da literatura. A Retórica e a Poética de Aristóteles,
apesar dos desmentidos, apesar da Estilística moderna e do
New Criticism, continuam inspirando o que presta, o que é
válido, como agora se diz, nestas nascentes disciplinas, por vezes
perdidas em desvairadas lucubrações e técnicas de operar no
vazio.
A tragédia nunca pôde libertar-se da fórmula grega, da
solução grega. Ou então, não é tragédia. Reconheceu-o Victor
Hugo, já no fim da vida, desiludido já da revolução romântica,
que pretendera enterrar os mortos vivos: «Qui nous délivrera
des Grecs et des Romains?»
O ideal da Paideia foi o equilíbrio, a harmonia, a proporção.
Exactamente o contrário do que se vê tentar hoje, com evidentes
sinais de desespero e total cepticismo. Mas o ideal persiste subja­
cente nuns, claro noutros, confuso em tais outros, antitética­
mente em muitos. Lá está no alto da colina ateniense, no areó-
pago, lá está o Partenon. Quase destruído pela fúria da guerra
entre turcos e venezianos, ostenta ainda hoje a perfeição das
linhas, o equilíbrio das massas, a sobriedade e a elegância
medida e pesada. É bem um símbolo do que ficou da boa
Grécia em nossa melhor cultura.
Mas também nos desatinos influíram os gregos, ou anteci­
param os que lhes sucederam no tempo. A queixa ou confissão
de Victor Hugo se aplica, em cheio, ao domínio do pensamento.
249

Não houve erro filosófico posterior, não há erro filosófico dos


nossos dias que já não tenha sido cometido por algum pensa­
dor grego, pre-socrático ou pós-aristolélico. E a grande crise
espiritual da hora presente se me afigura uma reedição da crise
que abalou Atenas no V século antes de Cristo, a crise dos
sofistas. Protágoras, Górgias, Trasímaco, Pólus e Cálleles conti­
nuam com novos nomes, com pseudónimos a pontificar à nossa
juventude e à velhice transviada: «o homem é a medida de
todas as coisas»; «a lei é o tirano dos homens»; «justo é o que
é útil ao mais forte»; «se alguma coisa conhecêssemos, não a
poderíamos comunicar a ninguém». Os cépticos, cínicos e demo-
lidores dos nossos dias não são filhos sem pai, nem têm origi­
nalidade.
Muito também recebeu a cultura ocidental— e recebemos
nós — da obra que os romanos realizaram. Ninguém ignora
que Roma só foi a grande Roma depois que herdou a cultura
helénica, conforme, aliás, testemunha o famoso dito de Horácio:

Graecia capta ferum victorem cepit, et artes


Intulit agresti Lacio.
Mas, além de digerir e modificar coisas vindas da Hélade,
criou outras, ainda no domínio das artes. Aliás, cumpre notar,
entre parênteses, que a confissão horaciana é a verificação de
que a superioridade na ordem do espírito pode anular, por
assim dizer, o resultado favorável das armas. Roma venceu a
Grécia, mas por ela foi vencida no espírito, do mesmo modo
que, mais tarde, os bárbaros destruíram o Império Romano, mas
passaram a falar latim e adoptaram muitos costumes e institui­
ções do abatido inimigo.
Os romanos tiveram o senso do prático. Não souberam
filosofar, mas organizaram a cidade, a província, o mundo que
fizeram seu, dando-lhes sólida e duradoura estrutura, que passou
250

aos sucessores e, em parte, chegou até nós. Foram grandes


colonizadores, que souberam transformar em cidadãos romanos
os subjugados, assimilando muito e impondo com arte e jeito.
Na remota Síria, um cidadão de fracas letras, mas orgu-
lhoso da sua pátria adoptiva, escreveu num muro uma frase,
que documenta um facto lingüístico (a passagem do neutro caput,
da terceira para masculino da segunda declinação), mas revela o
poder de assimilação da gente do Lácio:

Roma, capus mundi.

E o poeta gaulês Rutílio Namaciano, nos começos do


século V, quando o Império já começava a ruir, resumiu em dois
versos a gigantesca obra política de Roma:

Fecisti patriam diversis gentibus unam;


Urbem fecisti quae prius orbis erat. (Itiner., V. 63)
[De diversas gentes fizeste uma pátria una; fizeste uma cidade
que antes era o mundo.]
Isto teve consagração jurídica, no edito de Caracala, que
tornou cidadãos romanos todos os nascidos dentro das lindes do
imenso Império: In orbe romano qui sunt ex constitutione Im pe*
ratoris Antonini eives romani effecti sunt. (Ulpiano, Dig., I.
V, 17).
O senso jurídico, a redacção das leis e sua codificação foi
a obra imortal dos romanos. Esse gênio do povo amanheceu
nele, de tal arte que a Lei das Doze Tábuas, ao mesmo passo
que constitui um dos mais antigos documentos da língua, encerra
já fórmulas e soluções que se perpetuaram. O Direito Romano
é resultado de uma longa elaboração, foi-se aperfeiçoando, foi
incorporando e assimilando conceitos e instituições jurídicas
dos povos vencidos, e por fim tomou-se um código completo
251

e bem proporcionado, com definições lapidares, com vocabulá­


rio técnico rigoroso e preciso, o Corpus Iuris Civilis.
Dele disse, com justeza, um lúcido especialista:
«Estudado em toda a Europa, a partir do século ΧΠ, e
recebido oficialmente na Alemanha no fim do século XV, teve
preponderante influência na formação do Direito e na redacção
dos códigos modernos, sobretudo no Código Civil Francês de
1804 e no Código Civil Alemão (1900). O estudo do Direito
Romano encontra-se, pois, na base dos estudos desses códigos,
e no Direito Comparado (’)».
Quanto a nós, podemos à enumeração de Giffard acres­
centar as velhas Ordenações do Reino e o nosso Código Civil
de 1916, modelo de sistematização e de vemaculidade.
Está claro que o Direito e a organização política são duas
importantes heranças. Mas não são as únicas. Muito ficou nas
artes. Na arquitectura, por exemplo, se os romanos absorveram
muito dos gregos, receberam também e aperfeiçoaram o arco
dos etruscos, e então combinaram as rectas com as curvas e com­
puseram grandes coisas. Esse mesmo arco continuou no romá­
nico e reapareceu no barroco, de modo que até hoje os nossos
monumentos trazem essa marca de origem: igrejas, abóbadas,
pontes. Sem falar em capiteis e colunas, onde os latinos também
acrescentaram aos gregos, e chegaram até nós.
Nas letras, grande foi o influxo. O Renascimento se abebe-
rou mais em Roma do que em Atenas. O Poeta Maior da nossa
língua foi buscar a Virgflio suas fórmulas, seus esquemas, seus
recursos. Cícero foi o grande mestre de oratória do Ocidente.
Isto sem falar na inclinação dos neolatinos p d a eloqüência, o
gosto pela palavra rica, sonorosa e numerosa, mantença talvez

(») Giffard, Précis de Droit Romain, 4.· ed., Dalloz, Paris, 1951,
I, P. 2.
252

daquele ideal explicitado por Quintiliano: Vir bonus, loquendi


peritus. (Institutiones, XII, 1).
E a língua latina! Sobreviveu ela, pura, à derrocada do
Império; foi o idioma dos sábios, eruditos e filósofos da Idade
Média; nela se redigiram até bem pouco as teses universitárias
na Europa; tem sido a língua da Igreja Católica... e continua
viva, embora multitransformada, em nossas línguas e falares
románicos, cujo número passa de quarenta, muito mais, pois,
do que as de todos conhecidas: português, espanhol, francês,
italiano e romeno.
Será para alguns novidade dizer que os dois maiores e
melhores centros de estudos latinos, na. linha da pesquisa lin­
güística e da edição de excelentes textos críticos, estão em paí­
ses germânicos: Leipzig, na Alemanha, e Oxford, na Inglaterra.
Também poucos sabem que na Hungria o latim é largamente
cultivado, o que começa a acontecer na Rússia de hoje... Isto
não deixa de ser um tanto vergonhoso para o Brasil, país de
língua latina, onde o estudo do latim foi abolido e sepultado.
Não fique sem menção, também, o grande número de pala­
vras latinas que figuram no vocabulário inglês (cerca de cin­
qüenta por cento do total), e que aparecem até no alemão.
Razão, pois, tinha e larga Vítor Hugo: «Qui nous délivrera
des Grecs et des Romains?»
Do mesmo modo que, para mim, o Partenon é o símbolo
da herança grega, o Coliseu é o símbolo do legado romano.
Lá está ele, em ruinas, mas erguido, circunscrevendo uma grande
área circular, tendo vizinhos o Arco de Constantino e o que
restou do Forum. Lembra-me bem — e permita-se-me aquí esta
confidência — lembra-me bem a emoção de que fui tomado a
primeira vez em que, numa noite de lua-cheia, sentado sobre
um fuste caído de coluna marmórea, contemplei de ao pé do
Arco a majestade do Coliseu, meditando no efémero e na
253

perenidade das coisas, e vendo no colosso, no ex-Circo Flávio,


a imagem da permanência de Roma na Europa, na América,
no Brasil, em mim!
Claro que muita miséria houve nestes milênios de histó­
ria, muita intriga, muita injustiça, muito orgulho, muito ódio.
Mas estas coisas são negativas, não têm ser, esvaneceram-se.
Ficou a grandeza, o resultado dos aspectos positivos, os frutos
do esforço ascensional.
*
* *

Cabe agora falar algo do terceiro elemento formador da


nossa cultura ocidental: a espiritualidade judaico-cristã.
Ficou-nos, embora hoje muitos se apliquem tenazmente em
apagá-la, a crença no Deus Uno, pessoal, transcendente, criador
e remunerador. A voz dos Profetas ainda ressoa em tantas das
nossas coisas, e no fundo de nós. Os Livros Sapienciais deixa­
ram rastos. Os Salmos inspiraram poetas e prosadores, e ali­
mentam muitas almas, ainda as que não têm fé explicita no
Deus três vezes Santo. O Antigo Testamento está presente e
actuante nas literaturas modernas, sobretudo a inglesa.
E o Cristianismo, e o Sermão da Montanha, e a grande
mensagem evangélica! A essência dele é sobrenatural, ele repre­
senta o eterno no tempo, e traz o começo da eternidade na vida
dos que o aceitam e abraçam. Mas, além disso, ele refrangeu
na história, transformou os costumes, conformou novas socie­
dades; ensinou a igualdade de natureza em todos os homens,
a suprema dignidade da pessoa humana; trouxe a ascensão da
mulher, antes tratada como ser inferior e sem direitos; aboliu a
escravatura. Foi imenso e sem preço o resultado daquilo a que
Maritain chama «o fermento evangélico depositado na história»,
quer dizer, as repercussões e os frutos que a nova mentalidade
254

intensamente vivida por alguns homens, e menos intensamente


por muitos outros, produziu no convívio, n a organização social,
no abrandamento das leis, no reconhecimento dos direitos dos
fracos, na resistência à tirania, na hospitalidade, na assistência
aos pobres, desamparados e carentes, ou na melhoria dos cos­
tumes.
Prefiro que o diga um homem insuspeito de partidarismo,
distante da Igreja, positivista destacado que foi, além de histo­
riador minucioso e largo de sua pátria. Refiro-me a Taine,
autor, como se sabe, de um livro em doze volumes, escrito a
partir de 1870, sobre as origens da França contemporânea. Eis
o que diz o historiador, sociólogo e filósofo comtista-dissidente
acerca do papel civilizador do Cristianismo:
«O cristianismo é o grande par de asas indispensável para
elevar o homem acima de si próprio... Sempre e por toda a parte,
há 1800 anos, todas as vezes que essas asas perdem vigor ou são
quebradas, degradam-se os costumes privados e públicos. Na
Itália renascentista, na Inglaterra da Restauração, na França da
Convenção e do Directório, viu-se repaganizar-se o homem, como
no primeiro século, voltar a ser o que era nos tempos de
Augusto e de Tibério, voluptuoso e duro, abusador dos outros
e de si mesmo: retomava o antigo predomínio o egoísmo brutal;
estadeavam-se a crueldade e a sensualidade, transformando a
sociedade em açougue e em bordel. Quem de perto contemplou
esse espectáculo pode bem avaliar o que trouxe o cristianismo às
sociedades modernas, o que nelas inseriu de pudor, de doçura
e de humanidade, o que nelas conserva de honestidade, boa fé e
justiça. Nem a razão filosófica, nem a cultura artística e literá­
ria, nem mesmo a honra feudal, militar e cavalheiresca, nenhum
código, nenhuma administração, nenhum govémo poderão subs­
tituí-lo nesse serviço. Só ele é capaz de deter-nos no declive
fatal, e frear o movimento insensível com que a nossa raça.
255

continuamente puxada pelo seu peso original, recua para os


abismos. Qualquer que seja seu envoltório presente, o antigo
Evangelho ainda é o melhor auxiliar do instinto social (*)».
Diante de tal louvor, modestas e discretas se nos afiguram
as palavras do grande Papa Leão ΧΠΊ, introdutórias da encí­
clica Im m ortde Dei, de 1885, nas quais se refere ao papel,
refrangente, mas civilizador da Igreja, na ordem puramente
terrena:
«Obra imortal do Deus de miserircórdia, a Igreja, se bem
que em si e por sua natureza tenha por fim a salvação das
almas e a felicidade eterna, é entretanto, na própria esfera das
coisas humanas, fonte de tantas e tais vantagens, que as não
poderia proporcionar mais numerosas e maiores, mesmo quando
tivesse sido fundada sobretudo e directamente para assegurar
a felicidade desta vida. Com efeito, onde quer que a Igreja tenha
penetrado, imediatamente tem mudado a face das coisas e
impregnado os costumes públicos, não somente de virtudes até
então desconhecidas, mas ainda de uma civilização toda nova.
Todos os povos que a têm acolhido se distinguiram pela doçura,
pela equidade e pela glória dos empreendimentos.»
*
* *

A grande forja da civilização ou cultura ocidental foi a


Idade Média.
Invadido e desintegrado o Império Romano pelos bárbaros,
seguiu-se uma época de grande agitação e por vezes de caos.
Registraram-se os maiores movimentos de grupos humanos de
que dá notícia a história. Povos inteiros, de estrutura quase tribal.

(e) Les Origines de la France Contemporaine, 25 ème. ed., Paris,


1907, t. XI, p. 147.
256

se deslocavam de um para outro ponto. O ra levando a guerra,


ora buscando meios de subsistência e fixação, mas sempre
num como sentimento de inferioridade relativamente ao vencido.
Algo semelhante, porém mais patético, do que o que se dera com
Roma diante de Atenas.
Assim, apesar de vitoriosos, foram os germanos embeben-
do-se dos remanescentes da boa cultura latina, que, de resto, se
mantinha nos mosteiros, à espera de oportunidade de voltar a
actuar, como admiravelmente o mostrou Ozanam.
Depois de pacificado o ambiente, de estabelecidos os pri­
meiros reinos bárbaros, começa o caldeamente e a fusão dos
ingredientes da nossa cultura ocidental, — pela referida conti­
nuação da cultura romana, já portadora de forte contributo
grego; pela incorporação directa de elementos gregos, como o
platonismo, primeiro, o aristotelismo, depois; por um vigoroso
teocentrismo de base judaico-cristã, resultado do incansável
esforço dos Santos Padres, à testa dos quais cumpre situar Santo
Agostinho, uma das maiores inteligências que a humanidade já
produziu, um sábio, que, sob a luz cristã, pensou todos os pro­
blemas humanos individuais e sociais, antecipando-se assim,
longamente, a muitas das supostas descobertas revolucionárias
dos nossos dias.
A partir do século X começam os frutos do silencioso tra­
balho. A inteligência volta a ter lugar de honra, as artes ensaiam
novos e altos vôos, até que surge a grande instituição medieval
da Universidade — Universitas M agistrorum atque Scholarium —
comunidade de língua e de pensamento disciplinado e aprofun­
dado, e onde tantos brilharam, sobretudo A lberto Magno,
Tomás de Aquino e Boaventura, que aliaram o saber à virtude
heróica, pelo que foram canonizados e receberam, inclusive nesta
terra, glória imorredoura, eles que nunca a procuraram , mas,
antes, o cotidiano, humilde e perfeito serviço de Deus.
257

A Universidade primitiva, invenção medieval, era algo de


muito diferente do que hoje recebe o mesmo nome, mera reunião
burocrática de Faculdades autónomas, multifárias e profissio­
nais. Permita-se-me trazer para aqui as calorosas palavras de
um protestante inteligente e muito enfronhado no assunto «his­
tória e evolução da Universidade», Georges Gusdorf:
«Todavia a instituição universitária ocupa na cristandade do
Ocidente uma posição central, que jamais recuperará: elabora
a doutrina, define as significações-mestras da cultura; é o pen­
samento do pensamento, a forma das formas. Sem a rede das
praças-fortes da inteligência, sem a cadeia dessas Montanhas
Mágicas, em que se juntam e reúnem os devotos do conheci­
mento, jamais teria sido possível essa Europa dos espíritos, que,
apesar de todos os desmentidos, continua a ser uma das melho­
res esperanças de hoje (7)».
Protestantes, iluministas, maçons, livre-pensadores, agnósti­
cos, marxistas têm deformado, minimizado ou vilipendiando a
Idade Média, movidos por preconceitos ideológicos, — mas os
verdadeiros historiadores, sobretudo os historiadores do pensa­
mento, da cultura e da civilização, têm reconhecido e posto de
manifesto o que devemos a esse longo e meticuloso laboratório,
de onde surgiram as nações modernas e onde se afeiçoou e
temperou o que melhor existiu e existe na época moderna e
contemporânea.
Não resisto à tentação de, durante algum tempo, passar a
palavra a um grande especialista em Idade-Média, professor da
Sorbonne e autor de trabalhos da maior seriedade e erudição
sobre aspectos diversos do assunto a que dedicou sua vida. O

(T) L’Université en question, Payot, Paris, 1964, p. 22.


Í7
258

trecho, estirado, que aqui vou tresladar em sofrível vernáculo,


mostra bem o quanto devemos ao caluniado Médio-Evo, que,
queiramos ou não, marcou fundamente nossa vida, nosso pensa­
mento, nosso gosto estético, nosso envolvimento cultural, enfim.
Ouçamos, pois, a lição de Gustave Cohen, tirada a seu
livro-síntese La grande clarté du M oyen Age:
«Catedral arquitetural. Catedral literária. Catedral musical,
não sois ainda toda a Idade-Média, porque ao lado da Catedral
existe o Claustro — tal como o de Notre-Dame — e a Escola
Capitular, onde se ensina o saber antigo e donde nasceu a Uni­
versidade (Universitas magistrorum et scholarium — a união dos
mestres e dos estudantes), outra criação imensa e sempre pre­
sente e actuante de nossa inesgotável Idade-Média francesa. Lá
está o tabernáculo das tábuas da Lei, o conservatório do pensa­
mento antigo, cuja herança nos foi guardada por essa época,
mais clarividente do que em geral se diz e crê.
«Não raro se fala da estreiteza de vistas e do obscuran­
tismo da Idade-Média, mas que dizer de uma época que, cen­
trada na fé cristã, absorve, conserva e transmite todo o patri­
mônio do pensamento antigo: Ciência, Filosofia e Letras; que,
fundada na Revelação, aceita por mestres e guias os que dela
foram privados e que são reconhecidos como os maiores: Aris­
tóteles, Virgílio e Ovidio. Se ela ignorou muitos nomes e aspec­
tos da filosofia e da literatura gregas, foi porque seus mestres
árabes foram negligentes em lhos revelar: ignorância, pois, o
nunca obstinação ou desdém. Não é digno de nota também
isto? Essa boa-vontade em aceitar a lição dos árabes infiéis
e hostis, mas cultos, lição traduzida do árabe ao latim por judeus
perseguidos por não terem reconhecido o Messias, mas quantas
e quantas vezes respeitados e protegidos pelos próprios papas,
como testemunhas do Antigo Testamento. Assim, onde quer
que, apesar da dificuldade das comunicações e das transferências
259

de manuscritos, apareça uma luz, que, dirigida sob a Fé e sob o


Espírito, possa esclarecer, a Idade-Média nela consente, pro­
cura-a ou a solicita.
«Por outro lado, cumpre notar que em plena Idade-Média
é que se prepara a ciência moderna, por suas invenções técnicas:
moinho de água e de vento, bússola, lentes, timão, comportas,
forja de fole, pólvora, armas de fogo, carrinho-de-mão, relógio,
imprensa.
«Nem são despisciendos os progressos que essa época
trouxe à Alquimia, à Astrologia, à Medicina, que a Escola de
Salerno e a de Montpellier aprenderam dos árabes. Nicolau
Oresmo, muito antes de Copémico e Galileu, é quem ensina o
movimento da terra em tomo do sol. Nem fique esquecido, no
fim do século XIII, Rogério Bacon e seu discípulo Pedro de
Maricourt, chamado Magister experimentorum.
«No domínio das artes, não basta louvar nos arquitectos,
pintores, escultores e músicos a invenção das formas novas, o que
não é pouca coisa, mas tem-se de pôr em destaque a ousadia e a
novidade de suas técnicas. A construção das catedrais exigiu
um esforço de cálculo, de que não conhecemos todo o segredo,
mas que tem algo de prodigioso, já que, exceptuado o acidente
de Beauvais, nenhuma ruiu, estão todas como foram feitas, com
as majestosas naves, as altas torres e, mais ainda, puderam
suportar acréscimos, verticais ou horizontais, sem que tenha sido
necessário reforçá-las ou escorá-las.
«Que seria da nossa pintura moderna sem a invenção da
pintura a óleo, da qual ela é inteiramente tributária? E todas
as pesquisas dos técnicos e dos químicos de hoje não foram
capazes ainda de descobrir e incorporar às nossas técnicas
modernas os segredos dos mestres vitralistas do século ΧΠΙ, nas
suas obras-primas, como os vitrais da Sainte Chapelle, de Char­
tres e de Bourges. O mesmo se diga da arte da esmaltagem.
260

«Teria sido possível a música moderna sem a notação sobre


pauta e a barra de medida, que tornaram praticável primeiro
a escrita vertical e a polifonia vocal, depois a instrumental?
«Assim, quando se pergunta: de quando data a pintura
moderna? — deve-se responder: da Idade Média; e quando vem
estoutra indagação: de quando data a música moderna? — a res­
posta, ainda uma vez, será: da Idade Média.
«E agora cumpre de novo cantar-lhe laus, entoar-lhe lou­
vores por ter inventado a imprensa. Só porque desde a primeira
metade do século XV se talharam, invertidos, caracteres na
madeira, para os singelos desenhos das primeiras xilografías ou
para simples legendas, só por isso é que, pouco a pouco, se foi
caminhando para os caracteres móveis, cuja liga e fórmula se
devem a Gutenberg em Francforte, ao anónimo de Mogúncia
e a Thierry Martens em Alost. Daí saíram os primeiros impres-
sores, desde 1450 (?), data da Bíblia de 36 linhas, mas só
por volta de 1472 é que se fundaram as primeiras impressoras
na Sorbonne, juntamente com outras que iam surgindo em Lião,
Toulouse, Ruão e alhures (*)».
Por isso, depois de dar seguro balanço da civilização e da
cultura medievais, pôde o mestre assim concluir seu belo livro:
«As trevas da Idade Média são exactamente as do nosso
conhecimento. Uma claridade de aurora banha os longínquos
dias da nossa gênese, para quem sabe levar o facho do conhe­
cimento, do amor e da confiança nos destinos da pátria (9)».
Fala aí um francês. Ampliemo-lo e corrijamo-lo, dizendo
«nos destinos da nossa civilização».

(®) La Grande clarté du Moyen Age, Gallimard, 1967, ps. 177-180.


(») Ibid., p. 187.
261

Peço desculpa de ter citado tão longamente, coisa contrária


ao meu feitio. Mas, se o fiz, é porque me queria escudar em
autoridade incontestável.
Foi moda durante muito tempo— e volta a ser de bom
tom — acusar a Idade-Média, condená-la como parada do pro­
gresso, como época de estagnação, como era de obscurantismo.
Tanto assim, que ficou sendo um período histórico sem nome:
houve a Idade Antiga, houve a Idade Moderna, e no meio um
hiato, de barbárie primeiro, de trevas depois.
O processo de reabilitação do Médio-Evo (que Cohen
propõe se chame Idade Primeira) começou com Frederico Oza-
nam há cerca de 150 anos. Muitos lhe seguiram as pisadas, apro­
fundaram e dilataram as pesquisas, de modo que, em nossos
tempos, puderam aparecer sínteses robustas como, por exemplo,
a de Gustavo Schnürer, de Friburgo, Suíça, Kirche und Kultur
im Mittelalter, onde, aliás, se põe de manifesto a importantíssima
contribuição pioneira de Ozanam.
O Renascimento desprezou a idade histórica anterior, por­
que nela se deixou de escrever latim ciceroniano e porque não
se imitaram os modelos plásticos de Roma e Grécia. Baste lem­
brar que o termo gótico foi usado em arte a primeira vez pelo
grande pintor Rafael, numa carta a Inocencio X, tendo a palavra
sentido pejorativo, sinónimo de «bárbaro».
Depois, certos protestantes acusaram a Idade-Média de
ter deturpado e corrompido a doutrina cristã. Por fim vieram
os emancipados e iluminados, que entraram a falar na «noite
dos mil anos». E eles foram repetidos, até que homens sérios
e dispostos a pensar pela própria cabeça resolveram ver a
coisa de perto e a fundo. Daí resultou uma colecção de estudos
da maior importância, que fez ver exactamente isto que lembrei
citando Cohen: a Idade-Média foi a grande forja da nossa
cultura. Nela está a elaboração ou a assimilação ou a digestão
262

de quase tudo o que nos enche de contentamento intectual, moral


e estético. Inclusive, se conhecemos Grécia e Roma, em grande
parte devemo-lo à Idade-Média, que delas nos conservou os
monumentos. Por exemplo: os mais antigos manuscritos que se
têm de Cícero remontam ao século X. Santo Isidoro de Sevilha,
São Beda ou Alcuíno escreveram verdadeiras enciclopédias, em
que se mostram a par de muita coisa que os antigos fizeram ou
compuseram.
Eu, desde que vim à Europa pela primeira vez, fiquei com
um problema nunca resolvido. Jamais pude entender que um
europeu fosse desprezador da Idade-Média. Um homem que
contempla as catedrais, que tem à mão Chartres, com suas
linhas arquitectónicas e seus vitrais, Amiens, Notre Dame,
Reims, Laon, Bourges, e tantas outras catedrais, inclusive fora
de França, na Alemanha, na Bélgica, na Inglaterra, na Espanha
e em Portugal, — um homem desses como pode acreditar na
balela da «noite dos mil anos»? Deixasse-o para um americano
do sul ou do norte, que nunca tivesse contemplado tais maravi­
lhas de técnica e de arte, obras supremas do espírito humano,
como dizia o saudoso Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Mais. Chamar de trevoso o período que cantou a Divina
Commedia e a Vita Nuova, que pensou a Sum ma Theologica ou a
Summa contra Gentiles é arriscar-se gravemente a passar por
tolo, estúpido ou imbecil.
Só mesmo a paixão desvairada ou o preconceito bloquea-
dor poderiam permitir semelhante aberração.
Mas... pior do que isso vemos surgir em nossos dias. Muito
pior. Porque atacavam a Idade-Média os que queriam atacar
a Igreja e seu papel civilizador. Sabendo, clara ou vagamente,
que o Médio-Evo foi teocêntrico e dócil à mensagem cristã guar­
dada e explicitada pela Igreja, condenaram o efeito para atingi­
ram a causa. A condenação era oblíqua. Hoje, porém, vemos
263

padres, freiras e católicos ditos «progressistas» a usar o termo


«medieval» com desprezo, sarcasmo ou mal disfarçado ódio,
ignorando inclusive que as fontes dos seus actuáis desvíos e da
sua declarada ou velada apostasia... também se encontram na
Idade-Média. Lá estão os joaquinistas, lá estão os Fraticelli,
lá está Guilherme de Occam.
Fala-se, por vezes, nas torturas e na intolerância medieval.
Mas têm direito de fazê-lo os que fingem ignorar o que se
passou e se passa na Rússia e seus satélites, e na China? Pode
encher a boca de «progresso» e «libertação do homem» o século
que assistiu ao exterminio de seis milhões de judeus? À morte,
por fome ou perseguição política, de oitenta milhões de vítimas
do comunismo? Ao esmagamento da Revolução Húngara, ou
ao estupro da Tchecoslováquia? À clamorosa extinção de Biafra,
sem protesto, que não do Papa e da Cruz Vermelha Interna­
cional?
Se fôssemos seguir pelo caminho agora aberto, longe iríamos
e perderíamos o fio das nossas considerações, que se referem
às origens e formação da cultura ocidental.
Creio que aí ficaram os lineamentos. Creio que pude
deixar ao menos balizado o roteiro da nossa herança espiritual.
Creio que ficou patente sermos nós, homens do século XX, lega-
tários e beneficiários de um imenso e longo esforço de ascensão
humana, iniciado um dia nas planícies férteis da Mesopotâmia,
e continuado pela Grécia, por Roma, pelos semitas judeus e
semitas cristãos, — tudo isso caldeado na grande forja da Idade-
-Média. Sem dúvida, construiu-se uma forte civilização e amon­
toou-se um imenso acervo cultural, que muitos contemporâneos
nossos afanosamente se empenham em destruir.
Façamos-lhes frente, nós, que, graças a Deus, não ficamos
nem estamos loucos. Saibamos ser dignos da gloriosa herança.
Saibamos ser gratos aos nossos grandes antepassados. Lembre-
264

mos, com De Hovre, de que «nous sommes les autobus de nos


ancêtres». Não cuspamos no prato em que comemos e que nos
foi oferecido, sem participação ou mérito nosso.

*
* *

Realmente, está em grave crise a cultura e a civilização


ocidental. E tal crise é vista por dois ângulos opostos pelo vér­
tice. Alguns, descobrindo os defeitos e as misérias que o pecado
original e os pecados e os erros dos homens sobre ele acumula­
ram, põem a tônica nesses erros, agravam-nos, e tudo englobam
neles, advogando então a destruição total... Sem sequer darem
sinal de pensar numa instauratio magna ab intis fundam eníis.
Ao que tudo indica, são niilistas. Outros, de semelhante estirpe,
querem substituir a precária ordem actual por uma «nova», de
presidiários do Estado Omnipotente e Omnisciente.
Tais outros, reconhecendo as excelências da longa elabora­
ção, salientando os momentos altos do grande legado, denunciam
também a crise, analisando e apontando as primeiras fissuras,
os rombos e depois as rupturas.
É o trabalho de um Maritain, em Trois Réform ateurs, de
um Etienne Gilson, em Les M étamorphoses de la C ité de Dieu,
de um Leonel Franca, em A Crise do M undo M oderno, de
Gustavo Corção, em Dois Amores, Duas Cidades. Esses não
querem negar nem renegar. Querem salvar o patrimônio amea­
çado. Esses sabem que a cultura ocidental tem coisas de altís­
simo valor, no domínio do pensamento, das ciências matemá­
ticas e naturais, puras ou aplicadas, no domínio do Belo, letras,
música, artes plásticas. Chamaram atenção para os erros acumu­
lados, as suas conseqüências, os venenos instilados, e mostram
que isso pode levar à morte, que eles não desejam. Querem,
265

sim, salvar ou restaurar o que é bom, espancar as trevas,


corrigir os desvios, sonhando assim, anelando assim por uma
cidade terrena que não ponha pesados obstáculos ao caminho
para a cidade celeste. Eles acreditam na grandeza do homem,
acreditam na verdade e no bem. Mas sabem que esse frágil
«espírito em condição carnal» sofre a acção da gravidade, recebe
e aceita convites do abismo, e não raro cede à acção e ao con­
vite. Não são ingênuos optimistas, nem amargos pessimistas.
Acreditam no homem, repito, batem calorosas palmas ao que
a humanidade tem feito de bom, sobretudo neste Ocidente, mas
clamam, mas apontam os demolidores, mas anatematizan! os
enviados ou inspirados ou sequazes do Pai da Mentira.

*
* *

Num ensaio recentemente publicado, sobre o sentido pro­


fundo da obra de Machado de Assis, insisti nos erros da
civilização individualista-burguesa, que ele, pioneiro, descobriu
e pôs a nu. Agora é outro meu intento: pedir olhos para o que
há de nobre, de belo e verdadeiro na nossa cultura ocidental.
Porque tudo que vem do homem participa de sua grandeza e de
sua miséria; como ele, é «être avec néant». Hoje, quando tantos
fazem carga no «néant» e alguns, paradoxalmente, o desejam,
eu quis e quero ressaltar o que ainda existe de «être». Por isso,
concluindo, proponho uma atitude de alegria e de humildade.
Reconheçamos nossa imensa dívida com o passado, reco­
nheçamos a importância do envolvimento cultural, que faz que,
nascendo, já tenhamos encontrado à nossa disposição os frutos
de diutumo e pertinaz esforço de ascensão humana, começado
há cinco mil anos, esforço tantas vezes desperdiçado e tantas
vezes retomado, — de viver à busca da verdade, do belo e do
266

bem, de contemplar, felizes, as conquistas dos altiplanos. Reco­


nheçamos, não com a amargura do personagem de iPapini, o
Gog, mas, antes, jubilosos e agradecidos:
«Pertenço a uma classe, a um povo, a uma raça; não con­
sigo nunca evadir-me, faça o que fizer, de certos limites, que
não foram traçados por mim. Cada ideia é um eco; cada ato,
um plágio. Posso tirar os homens da minha presença, mas grande
parte deles continuará vivendo, invisível, na minha solidão (10)».

(w) Giovani Papini, Gog, 2.» ed., trad, de Sousa Júnior, Edit.
Globo, Porto Alegre, 1960, p. 71.
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA
BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA

[Aqui se arrolam alguns livros, não relacionados ao longo do


texto, que podem ser úteis ao desenvolvimento das idéias expostas
ou discutidas na presente obra.]
Acquarone, Francisco. História da Arte no Brasil, Rio, 1939.
Almeida, Renato. História da Música Brasileira, 2.a ed., Rio, 1942.
Amora, Antônio Soares. Historia da Literatura Brasileira (Séculos XVI-
-XX), 2.a ed., S. Paulo, 1958.
Andrade, Mário de. O Movimento Modernista, Rio, 1942.
Andrade, Rodrigo Melo Franco de (coordenação). As Artes Plásticas no
Brasil [especialmente o capítulo «Arqueologia», de Frederico
Barata, ps. 13-71], Rio, 1952.
Bandeira, Manuel. Apresentação da Poesia Brasileira, Rio, 1946.
Bazin, Germain. Architecture Religieuse Baroque au Brésil, Paris, 1956.
Brito, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro, I vol.,
S. Paulo, Saraiva, 1958.
Calógeras, J. Pandiá. Formação Histórica do Brasil, 4.a ed.. Cia. Edi­
tora Nacional, S. Paulo, 1945.
Camargo, Paulo Florêncio da Silveira. História Eclesiástica do Brasil,
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Ciamicchiaro, Vicenzo. Storia delia Musica nel Brasile dai Tempi Colo·
niali finno aí Nostri Giorni, (1549-1925), Milano, 1926.
270

Diegues Júnior, Manuel. Etnias e Culturas do Brasil, 3.a ed., Rio, 1963,
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—Regiões Culturais do Brasil, Rio, 1960.
Elia, Silvio. O Problema da Lingua Brasileira, 2.a ed., Rio, 1961.
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leira, Rio, 1972.
Franca, Leonel. Noções de História da Filosofia [A parte relativa à
«Filosofía no Brasil»], 8.a ed., Agir, Rio.
Freyre, Gilberto. Interpretação do Brasil, José Olímpio Edit., Rio 1947.
—Le Portugals et les Tropiques [Traduit du portugais, par Jean
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—O Mundo que o Português Criou. José Olímpio Edit., Rio, 1940.
Galante de Sousa, J. O Teatro no Brasil, Rio, 1960.
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1952.
Grabmann, Martin. A Filosofia da Cultura de Santo Tomás de Aquino,
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ÍNDICE ANALÍTICO
ÍNDICE ANALÍTICO

Pág.
Prefacio 7

NOÇÕES PROPEDÊUTICAS

Capítulo I — Conceito de Cultura B rasileira.......................... 13


Cultura. Etimologia da palavra: sentido pri­
mitivo e alterações semânticas: 13. — Cultura
pessoal: 16. — Cultura e erudição: 18. — Cul­
tura, em sentido sociológico: 19. — Sentido
antropológico de «cultura»: 20. — Cultura e
civilização: 21. — Cultura nacional. Cultura
Brasileira: 25.

Capítulo II — Factores condicionantes da c u ltu ra .................. 29


Factores dinâmicos e factores estáticos: 29
— Meio físico: 30— Herança étnica: 33: — 0
momento histórico: 37.

FORMAÇÃO DA CULTURA BRASILEIRA

Capítulo III — 0 meio físico brasileiro como condicionante


da cultura.............................................................. 43
O Brasil: extensão e relevo: 44. — Hidrografia:
45. — Clima: 46. — Revestimento florístico: 47.
— Solo arável: 49. — Subsolo: 50. — Influências
do meio físico: 51.
276

P ig .
Capitulo IV — Herança indígena................................................. 55
Origem do homem americano: 56. — Os indí­
genas brasileiros: 59. — Traços culturais dos
tupi: 62. — O que os índios nos legaram: 63.

Capítulo V — Herança african a. 67


Povos africanos: 68. — A escravatura: 69.—
Transculturação: 71. — O que ficou na língua
74. — Mestiçamento: 75.

Capítulo VI — Herança portuguesa .......................................... 81


Situação e destino de Portugal: 83. — Povoa­
mento e colonização: 92. — Elementos primor­
diais da herança portuguesa: 96. — Impregna­
ções na cultura material: 100.

Capitulo VII — O elemento dinâmico da cultura nacional ... 107


O factor primordial e decisivo: 107. — Envol­
vimento: riqueza e limitação: 109. — Nação e
consciência nacional: 110 — Nação e Estado:
112. — Nação e cultura nacional: 113. — Cul­
tura nacional brasileira: 114.

Capítulo VIII — O Brasil e a América......................................... 119


A europeização do Brasil: 119. — A fundamen­
tação geográfica: 120. — Brasil e Estados Uni­
dos: 124. — O anti-americanismo e o naciona­
lismo: 125. — O nacionalismo actual e o
romântico: 126.

ASPECTOS: LÍNGUA, LITERATURA, ARTES PLASTICAS, MÚSICA,


PENSAMENTO FILOSÓFICO, RELIGIÃO

Capítulo IX — A língua portuguesa no Brasil ... 131

Capítulo X — A literatura do B rasil.......................... 141


277

Pag.
Capítulo XI — As artes plásticas.............................................. 155
Pintura e escultura: 156. — Arquitectura: 166.

Capítulo XII — Notas sobre a música no Brasil ... 175

Capítulo XIII — O pensamento filosófico no Brasil................. 185


Período colonial: 190.— O Eclectismo e seus
sequazes: 192. — O Positivismo e sua longa
influência: 194. — O Evolucionismo: 196. —
Farias Brito: 199. — O neo-tomismo: 203.—
Outras correntes actuals: 208.

Capítulo XIV — Religião ............................................................ 211


Catolicismo: 213. — Protestantismo: 217. — Es­
piritismo: 219. — Umbanda e variantes: 221.

Capítulo XV — Um contraste: a actual crise da cultura bra­


sileira e «Vinte anos de Ouro Preto» ... 223

APÊNDICE

Capítulo XVI — Origens e formação da cultura ocidental.......... 241


Os primórdios: 245. — A herança grega: 247.
— O legado romano: 249. — A espiritualidade
judaico-cristã: 253. — A contribuição medie­
val: 255.
Bibliografia sumária ... 26 9
Composto e impresso nas oficinas da
GRÁFICA DE C O I M B R A
Bairro de S. José, 2 — C o i m b r a

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