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Prof.

Sérgio Henrique
Aula 02 - Teoria da História

SUMÁRIO

00. Bate Papo Inicial. ......................................................................................................... 2


1. Introdução: Princípios e Conceitos fundamentais da Teoria da História ...................... 3
2. A História Antes da História .......................................................................................... 6
3. Constituição do Campo Disciplinar ................................................................................ 9
4. Teoria: O que é isso? ................................................................................................... 14
5. O Paradigma Historiográfico ....................................................................................... 21
6. Dois paradigmas em contraposição: Positivismo e Historicismo ................................ 26
7. Materialismo Histórico ................................................................................................ 30
8. A Moderna Matriz Disciplinar da História ................................................................... 36
9. Escola dos Annales ...................................................................................................... 39
10. Escola Inglesa do Marxismo ...................................................................................... 48
11. Escola de Frankfurt .................................................................................................... 51
12. Micro-História............................................................................................................ 57
13. Historiografia sobre o Tempo: Reinhart Koselleck .................................................... 61
14. O Ensino de História .................................................................................................. 66
14.1. Concepções teórico-metodológicas para o ensino da História na Educação Infantil e no
Ensino Fundamental ............................................................................................................... 66
14.2. O Ensino de História na Educação Infantil e Fundamental .............................................. 69
14.2.1 O Ensino Infantil .............................................................................................................................................. 70
14.2.2. O Ensino Fundamental ................................................................................................................................... 71
14.2.3. Conteúdos ...................................................................................................................................................... 73

14.3. A BNCC e o Ensino de História ........................................................................................ 75


14.4. O Livro didático: Possibilidades e Limites para o Ensino de História ................................ 80
14.4.1. O Livro didático de História............................................................................................................................ 81

15. Exercícios ................................................................................................................... 83


16. Referências Bibliográficas........................................................................................ 155
16.1. Indicações Bibliográficas para estudo .......................................................................... 158
17. Considerações Finais. .............................................................................................. 160

História. 1
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00. BATE PAPO INICIAL.


Olá, amigo concurseiro. É com muita alegria que o recebo novamente. Estudar as aulas
anteriores é fundamental para que você possa compreender muitas das coisas que vamos tratar
aqui. Leia com atenção seu texto de apoio, releia e pratique exercícios. Aos poucos, o conteúdo
básico vai ficar retido na sua memória. Claro que, para isso, é muito importante você fazer suas
próprias anotações, ou em forma de resumo ou anotações nos exercícios, não importa, você
escolhe. O importante é estudarmos bastante e nos concentrarmos nos estudos. Estimule sua
disciplina e procure motivação pensando em seus sonhos. Bons estudos.

História. 2
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1. INTRODUÇÃO: PRINCÍPIOS E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DA


HISTÓRIA
A teoria da história é uma subdisciplina da História que procura compreender as diversas
formulações do conhecimento histórico e da escrita da História ou historiografia. Por não existir
uma concepção única e consensual para a análise do passado, se fala em teorias da história, no
plural, uma vez que as diversas teorias da história alimentam debates constantes entre os
defensores de diversas concepções. Porém, não se tratam de concepções historiográficas
aleatórias e subjetivas, ao passo que a História busca certa objetividade na lida com o passado.
Portanto, é necessário o método historiográfico, que define as correntes historiográficas, as
quais podemos citar: Positivismo, Historicismo, Escola dos Annales, Nova História, Micro-
história, entre outras.
A teoria da história constitui um campo de estudos fundamental para a formação do
historiador. Não é possível desenvolver uma adequada consciência historiográfica, nos atuais
quadros de expectativas relacionadas ao seu ofício, sem saber se utilizar de conceitos e
hipóteses, sem compreender as relações da História com o Tempo, com a Memória ou com o
Espaço, ou sem conhecer as grandes correntes e paradigmas teóricos disponibilizados aos
historiadores através da própria história da historiografia. Essa consciência histórica inseparável
de uma adequada reflexão sobre o tipo de conhecimento que se produz com a História, sobre as
relações possíveis desse conhecimento com alguma base concreta de realidade, sobre as
singularidades da História como um "campo disciplinar" muito específico que se situa ou se
desloca no quadro geral das outras formas de conhecimento e que com elas trava disputas e
diálogos interdisciplinares1.
Como entender a História sem reconhecer a sua complexidade, sem vislumbrar o
labirinto das suas modalidades internas, sem compreender como – na interconexão entre essas
várias modalidades – trabalham os historiadores como uma comunidade profissional bastante
específica? Como apreender, por fim, essa enigmática relação entre a História e a história –
entre uma forma de conhecimento bem singular que é essa que é produzida pelos historiadores,
e o seu próprio objeto de estudos, que corresponde à "história vivida" que lhes chega através de
vestígios trazidos pelas chamadas "fontes históricas"? Todas essas inúmeras questões –
''teóricas'' por excelência – fazem parte dos aspectos disciplinares que podem ser referidos
como uma teoria da história2.

1
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, p.11.
2
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, p.12.

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Conforme destaca o historiador Jörn Rüsen, em sua obra Razão histórica (2001, p.14), a
Teoria da História se refere ao "pensamento histórico em sua versão científica". De acordo com
essa perspectiva, pode-se estabelecer uma distinção mais clara entre as "filosofias da história"
ou outras formas de concepção histórica como as ''teologias da história", e as ''teorias da
história'' propriamente ditas, considerando que estas se vinculam ao novo momento em que a
historiografia passa a reivindicar um estatuto de cientificidade3.
Mas vale dizer que a proposta de pensar a História com um viés cientificista é inaugurado
na passagem do século XVIII para o XIX, movido pelas propostas iluministas e a racionalização.
Em todo caso, já existiam formas de conhecimento histórico bem antes da passagem do século
XVIII ao XIX, que é esse momento particular em que se passa a tomar com parâmetro para a
historiografia a cientificidade e no qual, portanto, já se pode falar em ''teorias da história''.
Contudo, naqueles momentos anteriores – como a Antiga Grécia, o mundo romano, a Idade
Média, o Renascimento, ou o Moderno Absolutismo– apresentavam-se para a historiografia
referências muito diversas, como ''a anamnese grega, o patriotismo romano, o providencialismo
medieval, ou o oficialismo absolutista'' 4. O próprio século XVIII, na antessala para o surgimento
das ''teorias da história'' que passarão a vigorar no século XIX, também já oferece, com as
"filosofias da história'' ao modo de Herder ou de Kant, uma outra maneira de pensar sobre a
História que não é bem exemplificadas no século seguinte pelos paradigmas do Positivismo, do
Historicismo, ou do Materialismo Histórico, todos inarredavelmente alicerçados por uma
metodologia documental que já estará na base do surgimento da figura do historiador
profissional e da inserção da História como disciplina universitária 5.
As "filosofias da história", que se alastram no século XVIII e se estendem até as
realizações de Hegel no século XIX, constituem um gênero filosófico-historiográfico à parte, e
devem ser bem distinguidas das "teorias da história'' propriamente ditas. Tanto as ''filosofias da
história'' como as ''teorias da história'' já são enunciadas em uma nova era historiográfica,
distinta de tudo o que até então se tinha feito nas tradicionais ''histórias'' representadas pelos
inúmeros gêneros historiográficos que precederam o trabalho dos historiadores modernos.
Existe entre as ''filosofias da história'' e as ''teorias da história'' tanto uma certa cumplicidade,
como também uma diferença radical que será preciso considerar.
Ora, vale a pena dizer que é, senão em um contexto no qual a cientificidade se apresenta
como um referencial para a historiografia, aspecto que se afirma consistentemente na
passagem do século XVIII para o século XIX, que se pode falar da emergência de ''teorias da
história'' como grandes sistemas de compreensão sobre a História e a Historiografia. Nesse

3
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, p.85.
4
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, p.86.
5
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, p.86.

História. 4
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período, começaram a surgir tanto uma ''matriz disciplinar'' mais definida para História, como os
primeiros grandes paradigmas historiográficos.
Uma teoria constitui certa visão de mundo relacionada a um ou outro dos diversos
campos científicos, uma Teoria da História, ou um Paradigma Historiográfico, corresponderá a
uma certa visão histórica do mundo, ou mesmo a determinada visão sobre o que vem a ser a
própria História e seus registros. Qualquer Teoria da História pressupõe, simultaneamente, uma
determinada concepção sobre o que é a História e sobre o que deve ser a historiografia, isto é, o
campo processual.6
Em termos de teorias da história, podemos nos remeter tanto àquelas que se referem a
objetos historiográficos específicos (eventos ou processos como a Revolução Francesa, o
Nazismo, as crises específicas do Capitalismo), ou às teorias mais amplas, mais generalizadoras,
que se referem a séries de eventos (não uma teoria sobre a Revolução Inglesa ou a Revolução
Francesa, mas uma teoria sobre as ''revoluções''; não uma teoria sobre o nazismo alemão ou
sobre o fascismo italiano, mas uma teoria sobre o ''totalitarismo''). Há, portanto, tipos diversos
de teorias: umas mais particularistas e outras mais genéricas. Os historiadores podem fornecer
uma teoria que diga respeito a determinado evento, a uma série de eventos, a um período, ao
desenvolvimento de instituições segundo um entrecruzamento cultural e assim por diante.
No limite máximo de generalização, os historiadores podem oferecer teorias acerca do
que seja a própria Historiografia. O que é a História, como ela se constrói, quais as tarefas do
historiador diante da produção desse tipo de conhecimento? Para que serve a História? Que
tipo de conhecimento é a Historiografia? É possível, ou desejável, que o historiador faça
previsões do futuro a partir de suas observações do passado? Que tipo de envolvimento –
contemplativo, distanciado, comprometido, militante – deve ter o historiador em relação à
História de sua própria época? Deve a Historiografia ser colocada a serviço de alguma causa, ou
deve conservar o ideal de constituir um tipo de conhecimento desinteressado? Essas são
perguntas fundamentais que movem o ofício do historiador e conduzem a escrita da História. 7

6
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp.87-88.
7
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp.88-89.

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2. A HISTÓRIA ANTES DA HISTÓRIA


A ideia de que "a História tem uma história'' é uma proposição instigante, aliás,
igualmente instigante é lidar com este contraste entre a “História”, com “H” maiúsculo,
enquanto campo de conhecimento ou disciplina universitária (ou mesmo enquanto "discurso"
que se estabelece sobre os processos históricos), e a “história”, com “h” minúsculo, enquanto
devir que a tudo arrasta em seu interminável jogo de processos e acontecimentos.
A História é a única disciplina ou campo de saber que traz como sua própria designação
um nome que coincide diretamente com o seu objeto de estudo. História (historiografia) é, de
um lado, o discurso e o tipo de conhecimento que um historiador elabora; mas é também o
nome do seu próprio objeto de estudo: o campo processual dos acontecimentos. 8
Há a emblemática frase que diz: "Heródoto é o pai da História". Mas pode-se dizer que,
na verdade, a História – enquanto discurso que se organiza sobre acontecimentos – já existia
muito antes de Heródoto, e que, de acordo com o historiador François Hartog, remonta à
monarquia de Akkad (2.270-2.083 a.C.), na Mesopotâmia. Já naqueles ainda mais remotos
tempos, uma vez que motivados pelo interesse de unificar o país sob uma autoridade única, os
monarcas akkadianos já haviam começado a utilizar os seus escribas para escrever a sua própria
história9. Mas se Heródoto não pode ser rigorosamente considerado o "pai da História", pois
não foi o primeiro a deixar registrado algum tipo de discurso que pode ser definido como um
gênero historiográfico, por outro lado pode-se dizer que Heródoto foi certamente o ''pai dos
historiadores". Ainda acompanhando as reflexões de François Hartog, é com Heródoto que
surge, pela primeira vez, a figura do “historiador profissional” – não um escriba historiográfico e
anônimo instituído diretamente pelo poder político, mas um indivíduo – uma "figura subjetiva"
dotada de autonomia e poder de escolha, que elege para si um campo de discurso e reflexão
sobre a história. Com Heródoto, a figura do historiador se institui a partir de uma prática
escolhida pelo indivíduo pensante, de maneira similar ao que já ocorria com o filósofo ou com o
poeta lírico na Grécia Antiga. 10
Seja a História uma filosofia que desce à Terra e se volta para o vivido, ou seja ela uma
Poesia que se deixa aprisionar pela necessidade e pelo compromisso de relatar rigorosamente o
já acontecido, podemos extrair importantes implicações do fato de que a História, entre os
gregos, deixa de ser uma imposição ou uma tarefa que vinha sendo atribuída de fora, por vezes

8
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, pp. 29-30.
9
HARTOG,2003:13apud D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, p. 31.
10
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, p. 32.

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posta a cargo de escribas subalternos e de talentosos escravos, para, a partir daí, passar a ser
uma escolha exercida criativamente pro um homem livre.
O que o praticante da História fará desta sua escolha – a de se tornar um historiador e de
construir um discurso historiográfico – é já uma outra coisa. Mas o fato é que, ainda que um
historiador possa ter decidido dar um sentido eminentemente político ao seu discurso, e ainda
que decida servir à Política, a verdade é que desde Heródoto o seu trabalho já não é instituído
primordialmente pelos poderes públicos no âmbito mais íntimo de suas práticas. Ser historiador
constitui uma decisão pessoal e implica no ato de se entregar a uma prática que se estabelece a
partir de um sujeito, tal como ocorre com a decisão de alguém se tornar filósofo, poeta ou
músico. Desde Heródoto, e parodiando um famoso dito de Jean-Paul Sartre, “o historiador está
condenado a ser livre”.
A menção a Heródoto pode ainda nos ajudar a adentrar noutro conjunto de reflexões, já
relacionadas às tentativas de identificar aquilo que a História teria de mais singular, ou, por
assim dizer, a sua "identidade mínima" (identidade esta que, em última instância, estará sempre
igualmente sujeita a transformação no decurso do próprio devir). Na época dos antigos gregos –
muito antes de se relacionar a uma investigação específica sobre o passado vivido, ou de trazer
para a centralidade de suas operações a noção de temporalidade –, a História esteve
simultaneamente associada às três noções de: (1) “investigação”, (2) “relato” e (3) “testemunho
ocular”. Essa tríade de sentidos, intimamente imbricados no termo grego istorie (ἱστορία),
antecipa surpreendentemente a complexidade futura da palavra História, uma vez que desde
então a nova prática parecia querer se referir simultaneamente a um tipo de pesquisa, a um
modo de escrita e às fontes deste tipo de conhecimento. A “pesquisa”, para Heródoto, deveria
se dar em forma de um “inquérito”, com “intenção de verdade”; a escrita assumiria o gênero
narrativo, e as fontes, para os historiadores gregos, ainda deveriam ser preferencialmente
oriundas de testemunhas oculares dos próprios acontecimentos.
Ora, o objeto da História é o mundo humano, o que para a antiguidade grega já foi uma
originalidade, uma vez que neste ponto a História começou a se destacar muito claramente da
Filosofia – esta nobre prática intelectual que tinha por objeto o mundo supralunar
(especialmente depois de Platão), muito acima da transitoriedade humana e das singularidades
do vivido – da mesma forma que aquela mesma História também começou a se destacar muito
visceralmente da Mitologia, que se referia apenas aos deuses e àquilo que estava além ou acima
do homem. A História, portanto, já desde a Antiguidade Clássica, coloca-se como uma
investigação sobre a realidade humana, ou ao menos sobre a realidade das ações humanas no
tempo.11

11
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, pp. 34-35.

História. 7
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Mas o tipo de conhecimento verdadeiro que era buscado pelos historiadores gregos, que
imediatamente seguiram o modelo inaugurado por Heródoto – opondo-se ao filósofo que
buscava regularidades e verdades eternas em uma realidade atemporal – o que poderia se
tornar factível de ser apreendido e conhecido pelos seres humanos será precisamente esse
mundo de ações humanas em permanente mudança. Essa postura, diga-se de passagem, seria
retomada de maneira ainda mais sofisticada por Vico no século XVIII, que em sua Ciência Nova
chama atenção para o fato de que só podemos conhecer verdadeiramente aquilo do qual
efetivamente participamos. Isso implica que o homem só pode compreender aquilo que é
humano.
A Historiografia teve muitos desenvolvimentos posteriores aos seus primórdios na época
de Heródoto, e conheceu uma ampla variedade de gêneros que, com alguma liberdade,
poderíamos categorizar como “gêneros historiográficos”. A Historiografia Pré-moderna, por
exemplo, apresentava ou apresentou muitos objetivos e funções nas suas várias formas e
contextos sociais. “Evitar o esquecimento” (como entre os gregos), “ensinar à vida” (historia
vitae magistra), tal como propunham os teóricos renascentistas da política, "glorificar povos e
nações", à maneira dos historiadores que se puseram a serviço das monarquias absolutista da
primeira modernidade – estes eram alguns de seus nortes refundadores.
Na história da historiografia que precede a Modernidade, apesar da existência de
métodos os mais diferenciados para assegurar a “verdade”, e ao lado dos diversos usos para
esta verdade histórica que era perseguida pelos historiadores gregos, romanos, medievais,
renascentistas, podemos dizer que entre todas estas formas históricas pré-historiográficas
aintenção de “verdade” ocupava um lugar central na produção deste tipo de conhecimento,
como ainda hoje. Todavia, se a intenção de verdade já era condição sinequa non para a História
(historiografia), e isto praticamente já em todas as suas variações pré-modernas, no que passou
após a modernidade a busca pela verdade histórica, ou o seu registro, eram vistos acima de
tudo como uma atitude moral, como um princípio retórico da própria historiografia. É a partir
desse princípio que surge o campo disciplinar específico da História. 12

12
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, pp. 38-42.

História. 8
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3. CONSTITUIÇÃO DO CAMPO DISCIPLINAR


Toda disciplina é constituída, antes de mais nada, por um certo "campo de interesses", o
que inclui desde um interesse mais amplo que define esse campo como um todo, até um
conjunto mais privilegiado de objetos de estudo e de temáticas a serem percorridas pelos seus
praticantes (ou de desafios a serem enfrentados, para o caso dos campos disciplinares que, tal
como a Medicina, envolvem uma prática, mais ainda do que uma reflexão teórica e uma
pesquisa). A História, que tem em comum com a Antropologia, com a Sociologia ou com a
Psicologia o estudo do Homem – e que, portanto, partilha com essas ciências alguns de seus
objetos de estudo – a certa altura deverá ser definida como a ciência que coloca no centro de
seu campo de interesses "o estudo das ações do homem no tempo". Os objetos da História –
isto é, o seu "campo de interesses" – em que pese que pareçam coincidir em um primeiro
momento com os objetos possíveis das demais ciências sociais e humanas, serão sempre
objetos "historicizados'', "temporalizados", marcados por uma atenção à mudança em alguns de
seus níveis. O conjunto de interesses temáticos de uma disciplina, particularmente no que se
refere aos seus desdobramentos e possibilidades de objetos de estudo, também está sujeito a
transformações no decorrer de sua própria história disciplinar. 13
Cada disciplina possui a sua singularidade, aqui entendida como o conjunto dos seus
parâmetros definidores, ou como aquilo que a torna realmente única, específica, e que justifica
a sua existência – em poucas palavras: aquilo que define a disciplina em questão por oposição
ou contraste em relação a outros campos disciplinares. Polarizando, será preciso entender o
fenômeno inverso: embora cada campo de saber apresente certamente uma singularidade que
o faz único e lhe dá identidade, não existe, na verdade, um só campo disciplinar que não seja
construído e constantemente reconstruído por diálogos (e oposições) interdisciplinares.
Queiram ou não os seus praticantes, toda disciplina está mergulhada na Interdisciplinaridade.
Ora, para se constituir no seio de uma rede já existente de saberes, todo novo campo de saber
deve enfrentar duras lutas com campos já estabelecidos, nas quais frequentemente se verá
inserido em uma verdadeira disputa territorial, ou pelo menos em uma partilha interdisciplinar,
além de enfrentar o desafio de mostrar a capacidade e potencialidade para se posicionar com
eficácia diante de antigos e novos problemas que as disciplinas mais tradicionais já vêm
enfrentando com seus próprios métodos e aportes teóricos. Não é raro, aliás, que um novo
campo de saber surja a partir de certos desdobramentos de um campo disciplinar já existente,
ou que se desprenda desse campo original adquirindo identidade própria, ou mesmo que o

13
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 19-22.

História. 9
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novo campo disciplinar se forme a partir de elementos dispersos oriundos de vários outros
campos.14
A dinâmica de transformações no vasto universo que abarca os campos disciplinares
produz um eterno movimento: novos campos podem surgir, e outros desaparecer; uns podem
se desprender de outros, e alguns podem se formar do casamento entre duas ou mais
perspectivas disciplinares. Há também o caso das "refundações", e essa ideia parece ser bem
adequada para entender a história da escrita da História, uma vez que esta correspondia a um
campo de práticas e expressões já milenar quando, a partir de fins do XVIII e início do XIX, será
como que "refundada" para se constituir como ''historiografia científica". A partir dessa
refundação, e da consolidação do estatuto do "historiador profissional", pode-se dizer que a
História passa de um conjunto de práticas muito diversificadas – da história dos cronistas à dos
antiquários, dos filósofos da história e dos teólogos – para a formação de uma "matriz
disciplinar'' mais bem definida.15
Essas tendências se apresentam como uma característica de praticamente todos os
"campos disciplinares" no período contemporâneo, especialmente com a crescente
especialização. Na verdade, isso tem sido um aspecto inerente à história do conhecimento na
civilização ocidental, sobretudo a partir da Modernidade, o que não impede que os efeitos mais
criticáveis da hiper-especialização sejam constantemente compensados pelos movimentos
interdisciplinares e transdisciplinares, voltados para uma "religação dos saberes" em um mundo
no qual os campos de produção de conhecimento vivem a constante ameaça do isolamento.
Neste sentido, há três aspectos fundamentais a serem considerados quando se fala na
constituição de um "campo disciplinar" – eles se relacionam ao fato de que nenhuma disciplina
adquire sentido sem que desenvolvam ou ponham em movimento certas teorias, metodologias
e práticas discursivas. Mesmo que tome emprestados conceitos e aportes teóricos originários de
outros campos de saber, que incorpore métodos e práticas já desenvolvidas por outras
disciplinas, ou que se utilize de vocabulário já existente para dar forma ao seu discurso, não
existe disciplina que não combine de alguma maneira Teoria, Método e Discurso.
Por outro lado, um campo disciplinar não se desenvolve no sentido de possuir apenas
uma única orientação teórica ou metodológica, mas sim de apresentar um certorepertório
teórico-metodológico que é preciso considerar, e que se torna conhecido pelos seus praticantes,
gerando adesões e críticas variadas.
O desenvolvimento de um campo disciplinar acaba gerando uma linguagem comum
através da qual poderão se comunicar os seus expoentes, teóricos, praticantes e leitores. Há até

14
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 23-24.
15
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, p. 26.

História. 10
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campos disciplinares que acabam gerando certo repertório de jargões, facilmente reconhecidos,
mesmo externamente. De todo modo, qualquer campo se inscrevendo em certa modalidade de
Discurso, por vezes com dialetos internos. É por isso que não é possível a ninguém se
transformar em legítimo praticante de determinado campo disciplinar se o iniciante no novo
campo de estudos não se avizinhar de todo um vocabulário que já existe previamente naquela
Disciplina, e através do qual os seus pares se intercomunicam.16
À questão da Interdisciplinaridade, ao se colocarem em contato dois campos disciplinares
(seja de forma interdisciplinar ou transdisciplinar) podem enriquecer sensivelmente um ao
outro nos seus próprios modos de ver as coisas e a si mesmos. Particularmente a História, no
decorrer do século XX e além, foi beneficiada por uma longa história de contribuições
interdisciplinares às concepções e abordagens dos historiadores. A Geografia, a Antropologia, a
Psicologia, a Linguística, etc., estiveram fornecendo frequentemente conceitos e metodologias
aos historiadores, e certos desenvolvimentos em campos como História Cultural ou a História
das Mentalidades não teriam sido possíveis, certamente, sem os respectivos diálogos
interdisciplinares com a Antropologia e com a Psicologia.
Obviamente, não é possível pensar uma disciplina sem admitir o seu lado de fora, uma
zona de interditos ou aquilo que se coloca como proibido aos seus praticantes. O exterior de um
campo de saber é tão importante para uma disciplina como aquilo que ela inclui, como as
teorias e métodos que ela franqueia aos seus praticantes, como o discurso que ela torna
possível, como as escolhas interdisciplinares estimuladas ou permitidas. O que se interdita em
uma disciplina, como tudo mais, também é histórico, sujeito a transformações, e as temáticas e
ações possíveis que um dia estiveram dentro de certo campo disciplinar podem ser
processualmente deslocadas para fora, como também algo do que estava fora também pode vir
para dentro, para um espaço de inclusão legitimado pela rede de praticantes da disciplina.
Existe de fato uma densa e complexa rede humana, constituída por todos aqueles que já
praticaram ou praticam a disciplina considerada e pelas suas realizações – obras, vivências,
práticas realizadas – e também isto é certamente tão inseparável da constituição de um campo
disciplinar que poderíamos propor a hipótese de que a entrada de cada novo elemento humano
em certo campo disciplinar já o modifica em alguma medida, da mesma maneira que cada obra
produzida sobre um campo de saber ou no interior desse mesmo campo de saber já o modifica
em menor ou maior grau, às vezes indelevelmente, às vezes tão enfaticamente a ponto de se
tornar visível o surgimento de novas direções no interior desse campo disciplinar.
Ao se falar em uma "rede humana" para cada campo disciplinar, também temos de ter
em vista, é claro, que essas redes encontram-se frequentemente interferidas por uma "rede
institucional" (universidades, institutos de pesquisa, circuitos editoriais de revistas científicas,

16
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 28-29.

História. 11
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etc.), e também por uma constelação de grupos de pesquisa e outras formas de parcerias e
associações dentro da qual essa vasta rede humana também se acomoda de uma maneira ou de
outra. A rede humana do campo disciplinar, dessa forma, assume aqui a forma de uma
"comunidade científica".17
Conforme Michel Foucault já fez notar com especial nitidez em seu ensaio A ordem do
discurso18, nem todos podem dizer tudo o tempo todo, o que nos remete mais uma vez à
questão dos ditos e interditos permitidos e hierarquizados por um campo disciplinar. A rede de
discursos que constitui uma das dimensões integrantes do campo disciplinar é também, ela
mesma, uma rede de textos e realizações, em dinâmica de interconexão.
Também Michel de Certeau, que examinou os desdobramentos deste campo disciplinar
que é a História, em seu clássico texto A operação historiográfica 19, procura mostrar como cada
realização empreendida por cada historiador coparticipante da rede historiográfica enunciativa
termina por fazer emergir "uma operação que se situa em um conjunto de práticas".
A certa altura de seu amadurecimento como campo disciplinar, começam a ser
produzidos, cada vez mais frequentemente no seio do próprio campo de saber em constituição,
os "olhares sobre si". Começam a surgir, elaboradas pelos próprios praticantes da disciplina, as
"histórias do campo'', aqui entendidas no sentido de narrativas e análises elaboradas pelos
praticantes do campo disciplinar acerca da própria rede de homens e saberes em que estão
inseridos. Compreender-se historicamente é o resultado mais visível desse "olhar sobre si".
Temos, então, dez dimensões importantes nesta caminhada para tentar compreender
uma disciplina, qualquer que ela seja: o seu campo de interesses (1), a sua singularidade (2), os
seus campos intradisciplinares (3), o seu padrão discursivo (4), as suas metodologias (5), os seus
aportes teóricos (6), as suas Interdisciplinaridades (7), os seus interditos (8), bem como a
extensa "rede humana" (9) que, através de suas realizações, empresta uma forma e dá
concretização ao campo disciplinar, sem contar o "olhar sobre si" que essa mesma rede
estabelece a certa altura de seu próprio amadurecimento (10).
Torna-se importante, portanto, compreender adicionalmente que cada uma das dez
dimensões atrás citadas, além de interligada às demais, está mergulhada ela mesma, por inteiro,
na própria história. Os padrões interdisciplinares se alteram, os desdobramentos
intradisciplinares se multiplicam ou se restringem, as teorias se redefinem, as metodologias se
recriam, o padrão discursivo se renova, os interditos são rediscutidos, e mesmo algo da
singularidade que permite definir uma "matriz disciplinar" no interior da rede de saberes pode

17
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 30-33.
18
Cf.FOUCAULT, 1996.
19
Cf. DE CERTEAU, 1982.

História. 12
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sofrer variações mais ou menos significativas à medida que surgem novos paradigmas e
contribuições teórico-metodológicas. Cada campo de saber está constantemente produzindo
novos “olhares sobre si mesmo” de acordo com as transformações que se dão dentro e fora do
campo – do contexto histórico-social às transformações teóricas e tecnológicas. Tudo é
histórico, enfim, e essa máxima é também válida para todo o conjunto de elementos daquilo
que vem a constituir um determinado campo disciplinar.
Uma vez tornado visível e reconhecido como novo espaço cientifico ou forma de
expressão, cada campo disciplinar (ou cada campo de saber, dito de outra maneira), passa a se
constituir em patrimônio de todos os que podem ou pretendem praticá-lo. Esse imenso
universo ou sistema que constitui um campo disciplinar, de todo modo, é anônimo, não
pertence especificamente a ninguém, embora dele nem todos possam se apossar.20
Conforme ressalta Foucault, um campo disciplinar depende de desencadear expansões
para existir, isto é, para que haja disciplina é preciso, pois, que haja possibilidade de formular e
de formular indefinidamente, proposições novas.21
Portanto, a História (campo de conhecimento) jamais será constituída por tudo o que se
pode dizer de verdadeiro sobre a história (campo dos acontecimentos). Para que uma
proposição pertença à disciplina História em certa época é preciso que essa proposição
responda às condições desta disciplina tal como a definem ou definiram os seus praticantes de
então. A História, como qualquer outra disciplina, estará sempre atraindo para dentro de si ou
repelindo para fora de suas margens determinado conjunto de saberes, proposições e domínios
que em momento anterior poderiam ter estado ali, e que em um momento subsequente da
história dos saberes e dos discursos já não estão.22

20
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 35-38.
21
FOUCAULT, 1996, p. 30.
22
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 39-40.

História. 13
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4. TEORIA: O QUE É ISSO?


Qualquer campo disciplinar, seja qual ele for, apresenta uma escrita, uma linguagem
própria, uma organização interna que tende a se consolidar sob a forma de "espaços
intradisciplinares", uma tendência a estabelecer no seu exterior certos diálogos
interdisciplinares com outros campos de saber, um conjunto de procedimentos e alternativas
metodológicas, um "olhar sobre si" que passa progressivamente a refletir uma maior tomada de
consciência dos integrantes do campo disciplinar acerca de suas próprias realizações, e, por fim,
um certo repertório de possibilidades relacionadas à teoria.
Quando dizemos que a Teoria é uma "visão de mundo", podemos discutir esta afirmação
em três níveis, a saber:
1) Um "modo de apreender o mundo";
2) Um "campo de estudos";
3) E cada um dos "modelos" ou "sistemas" explicativos criados para compreender um
determinado fenômeno, aspecto da realidade ou objeto de estudos.
Uma teoria é uma visão de mundo. É através de teorias que os cientistas e os estudiosos
de qualquer área de saber conseguem enxergar a realidade, “apreender o mundo” ou os seus
objetos de estudo, de formas específicas, seja qual for o seu campo de conhecimento de
atuação. É particularmente interessante constatar que a noção de "teoria" sempre esteve ligada
à ideia de "ver" – ou de "conceber" –, isso desde a Antiguidade: para a maior parte dos filósofos
gregos da Antiguidade, theoria significativa "contemplação". Isso prossegue sendo válido até os
dias de hoje, como “modo de apreender o mundo” – ou mesmo como maneira de agir diante da
realidade ou do mundo imaginário – a Teoria se contrapõe ao agir intuitivo, ao comportamento
emotivo, ao impulso instintivo, à recepção mística da ''palavra revelada", e a outros tantos
modos de conhecer ou de se movimentar no mundo.
A teoria pode ser abordada, em um segundo nível, como um "campo de estudos", ou
como uma espécie de território constituído por todas as realizações teóricas proporcionadas
pelos praticantes de determinado campo de saber. São nesses territórios teóricos, definidos por
cada uma das diversas ciências, que encontraremos, em graus vários de amadurecimento e de
interação, as linguagens conceituais específicas de cada campo de saber, os seus modos de
enxergar a realidade, os paradigmas disponíveis aos praticantes do campo, ou as próprias
perguntas que são possíveis de se levantar, naquele momento, com relação aos objetos de
estudo típicos do campo de saber em questão.
Em terceiro lugar, podemos falar de "teorias" quando nos referimos a cada um dos
modelos ou sistemas explicativos de que os cientistas se utilizam apara compreender os
fenômenos, aspectos e objetos que se relacionam às suas especialidades. Há teorias sobre

História. 14
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objetos ou processos muito singulares. Mas há também teorias sobre questões muito mais
amplas.23
A teoria é filha da Razão e irmã da Metodologia Científica. Não é uma forma melhor nem
pior de apreender o mundo ou de nele se movimentar é apenas uma forma específica. A teoria
corresponde a certa maneira de "ver" e de pensar sobre as coisas. A expressão ''teoria" deve
estar associada a um modo de ver que se estabelece processualmente através da razão
discursiva (isto é, de uma verbalização que se impõe passo a passo) bem como através de
mediações várias entre o sujeito e o objeto "contemplado". É importante se ter em vista que o
processo de elaboração teórica é contínuo e circular, de modo que nele estarão sempre
reaparecendo estes diversos mediadores – os conceitos e a linguagem de observação que darão
certa consistência à leitura da realidade trazida pelo sujeito que produz o conhecimento, as
hipóteses que serão formuladas, os procedimentos argumentativos e comprovações empíricas,
as análises encaminhadas através da demonstração, e a verbalização dos resultados através de
uma forma específica de discurso, racionalizada.
Para deixar mais claro, podemos enumerar esses “mediadores teóricos”: a) Hipóteses; b)
Procedimentos argumentativos; c) Demonstrações (por exemplo, através de procedimentos
analíticos); d) Verbalização dos resultados; e) Linguagem de observação; e f) Conceitos.
O fato é que a Ciência opera essencialmente no "modo teórico", e é por essa via que
tendemos a seguir quando praticamos uma disciplina que se pauta por algum padrão de
cientificidade. A Teoria, associada ao Método, é a principal forma de obter conhecimento aceito
pela Ciência. 24
Desde o início do século XX, e incluindo as próprias ciências exatas e da natureza,
cientistas como Albert Einstein e filósofos como Karl Popper, começaram cada vez mais a
chamar atenção para o fato de que é a “nossa” Teoria que decide o que podemos observar, ou
como observar. A teoria transforma a realidade observada, ou ao menos revela certos aspectos
de uma realidade observada e não outros, conforme essa teoria seja construída de uma maneira
ou de outra, ou a parir de certos pontos de vista e parâmetros. O que se pode perceber da
realidade acha-se francamente interferido pelo ponto de vista do sujeito que produz o
conhecimento.25
Paul Veyne, em seu livro Como se escreve a História26, já chamava a atenção para o fato
de que "a formação de novos conceitos é a operação mediante a qual se produz o

23
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 40-48.
24
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 53-55.
25
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 60-63.
26
Cf. VEYNE, 1998.

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enriquecimento da visão". A essa formulação, o historiador francês seguia argumentando que


Tucídides, Eginhard, ou Santo Tomás de Aquino não teriam podido enxergar, nas sociedades de
seu tempo, aquilo que hoje nelas procuramos: "classes sociais", "mentalidades", "mobilidade
social", ''atitudes econômicos", ou tantos outros aspectos que aprendemos a ver nas diversas
sociedades históricas através de conceitos que nós mesmos formulamos ou que herdamos, para
modificá-los ou não, de nossos predecessores na análise historiográfica.
É uma determinada teoria e seus instrumentos fundamentais, os conceitos, o que nos
possibilita formular uma determinada leitura da realidade histórica e social, enxergar alguns
aspectos e não outros, estabelecer conexões que não poderiam ser estabelecidas sem os
mesmos instrumentos teóricos de que nos valemos. A teoria pode ser considerada como fator
de importância fundamental para a constituição de qualquer campo de conhecimento, o que
inclui a História. Por outro lado, a teoria remete ainda aos conceitos e categorias que serão
empregados para encaminhar uma determinada leitura da realidade, à rede de elaborações
mentais já fixadas por outros autores (e com as quais o pesquisador irá dialogar para elaborar o
seu próprio quadro teórico). Do mesmo modo, a teoria remete frequentemente a
generalizações, ainda que essas generalizações se destinem a serem aplicadas em um objeto
específico ou a um estudo de caso delimitado pela pesquisa. Ao lado disto, a teoria também
implica uma visão sobre o próprio campo de conhecimento que se está produzindo. Enfim, a
Teoria tanto remete à maneira como se concebe certo objeto de conhecimento ou uma
determinada realidade examinada, a partir de dispositivos específicos que são os conceitos e
fundamentos teóricos de diversos tipos, como também se refere ao modo como o pesquisador
ou cientista enxerga sua própria disciplina ou seu próprio ofício.
Enquanto a teoria refere-se a um "modo de pensar" (ou de ver), a "metodologia " refere-
se a claramente um "modo de fazer''. Esses dois verbos – "ver" e "fazer" – constituem os gestos
fundamentais que definem, respectivamente, Teoria e Método. A "Metodologia" remete
sempre a uma determinada maneira de trabalhar algo, de eleger ou constituir materiais, de
extrair algo específico desses materiais, de se movimentar sistematicamente em torno do tema
e dos materiais concretamente definidos pelo pesquisador. A metodologia vincula-se a ações
concretas, dirigidas à resolução de um problema; mais do que ao pensamento, remete à ação e
a prática. Por exemplo, a "análise de discurso'' (exame minucioso, crítica, estudo) de que um
historiador lança mão para compreender as suas fontes históricas, são relacionados ao âmbito
dos procedimentos técnicos e das metodologias. Quando o historiador situa um conjunto de
documentos em série, e procura incidir sobre ela um determinado questionário ou uma
tabulação de tópicos e critérios, estará certamente empregando uma "metodologia''. 27

27
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 64-67.

História. 16
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Faz parte da Metodologia tudo aquilo que é pertinente ao "fazer da história" – às


situações concretas e práticas com as quais deve o historiador se defrontar em seu processo de
pesquisa, de análise de fontes, ou mesmo de exposição de resultados. Elementos de
importância máxima, que perpassam toda a Metodologia da História e que correspondem de
certo modo ao seu centro, são precisamente as Fontes Históricas.
São elementos pertinentes à Teoria todos aqueles aspectos, fatores e artifícios que se
relacionam às "maneiras de ver" e às concepções historiográficas. Os "conceitos", por exemplo,
são importantes instrumentos da Teoria. Quando formulamos um conceito como o de "Classe
Social" estamos nos proporcionando uma certa maneira de enxergar a sociedade, pois
imediatamente passamos a concebê-la como dividida de uma forma específica, do mesmo
modo que começamos a enxergar a partir dessa divisão hierarquizações e antagonismos
específicos entre os vários grupos sociais resultantes dessa concepção da sociedade.
A Historiografia também estabelece "diálogos interdisciplinares" importantes – muitos
dos quais de cunho teórico, e outros relacionados ao âmbito metodológico – com outros
campos do conhecimento como a Antropologia, a Geografia, a Economia, a Sociologia, a
Psicologia, e tantos outros. Por isso, os "diálogos interdisciplinares" atravessam tanto a teoria
como a metodologia da História.
Quando atinge certo nível de complexidade, muito habitualmente um campo de saber
começa a produzir "espaços intradisciplinares", e a permitir, obviamente, conexões as mais
diversas entre esses espaços intradisciplinares de acordo com cada objeto de estudo. Olhar que
um campo de estudos estabelece sobre si, identificando e constituindo seus espaços internos, é
também uma questão teórica, um modo de enxergar a si mesmo, que no caso da História
corresponde a mais uma das tarefas da Teoria da História.
A Historiografia também desenvolve inúmeros procedimentos e metodologias para
constituir as fontes históricas, para analisá-las, para serializá-las, para utilizá-las como fontes de
indícios e informações historiográficas, ou para abordá-las como discursos que devem ser
decifrados, analisados, incorporados criticamente pelo historiador. Inúmeros âmbitos
relacionados aos "métodos e técnicas" poderiam ser aqui indicados, e a História Oral, a
Arqueologia, a Análise de Discurso, ou o tratamento serial e estatístico constituem apenas
alguns exemplos.
É imprescindível à Metodologia da História, ainda, o próprio "planejamento da pesquisa"
e, neste sentido, o "Projeto de Pesquisa" constitui um recurso metodológico importante. Um
bom Projeto de Pesquisa também falará de Teoria, uma vez que faz parte de um bom
planejamento indicar as referências conceituais, discutir o quadro teórico que orientará a
análise, formular hipóteses, e dialogar com a historiografia e teoria já existente. A ideia é que
uma decisão "teórica" pode encaminhar também uma escolha "metodológica".

História. 17
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Reciprocamente, a metodologia – ou uma certa maneira de fazer as coisa – também pode


retroagir sobre a concepção teórica do pesquisador, modificando sua visão de mundo e
levando-o a redefinir os seus aportes teóricos. Há certas implicações metodológicas a partir de
certos pressupostos teóricos e, inversamente, quando optamos por uma certa maneira de fazer
as coisas, de enfrentar situações concretas apresentadas pela pesquisa, também estamos
optando por um certo posicionamento teórico.
A pesquisa em História e a sua posterior concretização em escrita da História (isto é, a
apresentação dos resultados da pesquisa em forma de texto) envolvem este confronto
interativo entre teoria e metodologia. O ponto de partida teórico, naturalmente, corresponde a
uma determinada maneira como vemos o processo histórico. Podemos alicerçar nossa leitura da
História na ideia de que esta é movida pela ''luta de classes". Mas se quisermos identificar essa
"luta de classes" na documentação que constituímos para examinar este ou aquele período
histórico específico, teremos de nos valer de procedimentos técnicos e metodológicos especiais.
Será talvez uma boa ideia empreender uma "análise de discurso" sobre textos produzidos por
indivíduos pertencentes a esta ou àquela "classe social", por exemplo. 28
Existem metodologias que favorecem ou que inviabilizam o encaminhamento de certas
perspectivas teóricas. A interação entre Teoria e Metodologia também aparece de maneira
muito clara na elaboração de "hipóteses". Via de regra, uma hipótese é gerada a partir de certo
ambiente teórico, e frequentemente é formulada a partir de conceitos muito específicos. Posto
isto, não há sentido em formular uma hipótese que não possa ser demonstrada – pois, se assim
for, não estaremos diante de uma verdadeira hipótese, e sim de uma mera conjectura. É depois
que formulamos uma hipótese, e quando partimos para a sua demonstração, que surge a
necessidade de uma "metodologia".
Nas ciências históricas, qualquer hipótese apresentada deve buscar respaldo nas fontes
primárias, e na análise dessas fontes, ou, ao menos, deve ser referida a evidências que tenham
chegado ao historiador de alguma maneira. Estes procedimentos – o levantamento de fontes, a
constituição de um corpus documental, a verificação comparada de informações e a análise dos
discursos trazidos pela documentação – estão ancorados na Metodologia. Para verificar uma
hipótese, ou para rejeita-la, é preciso de método. Uma hipótese nasce no mundo teórico, a
partir de uma determinada maneira de enxergar a realidade, mas em seguida ela se dirige ao
âmbito metodológico em busca de comprovação. Torna-se mais um dos inúmeros elos que
podem ser estabelecidos entre a Teoria e a Metodologia. Se há uma interpenetração possível
entre concepções teóricas e práticas metodológicas disponíveis ao historiador ou a qualquer
outro tipo de pensador/pesquisador, deve-se ter sempre em vista que "teoria" e "método" são

28
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 69-73.

História. 18
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coisas bem distintas, da mesma maneira que "ver" e "fazer" são atitudes verbais e práticas
diferenciadas, embora possam se interpenetrar.
Um ponto interessante que pode ser ressaltado para o caso da Teoria é que pode existir
uma grande diversidade de teorias possíveis para qualquer objeto de investigação ou para
qualquer campo de conhecimento examinado, e que as diversas teorias podem se contrapor, se
sucederem ou se sobreporem umas às outras.Uma vez que cada teoria propõe ou se articula a
uma determinada "visão de mundo", e ela também corresponde à formulação de determinadas
perguntas e, consequentemente, abre espaço a um certo horizonte de respostas. Na mesma
medida em que as teorias se diversificam, também variam muito as respostas proporcionadas
por cada teoria em relação a uma certa realidade ou objeto examinado. 29
Thomas Kuhn, autor do célebre livro A estrutura das revoluções científicas 30, de 1962, já
considerava que uma teoria frequentemente se afirma em detrimento de outra, precisamente
porque responde a algumas questões que a outra teoria não respondia. Nessa perspectiva, as
mudanças de teoria (ou as opções por uma ou outra teoria) ocorrem porque uma teoria passa a
satisfazer mais do que outra, isto é, porque as questões a que a nova teoria adotada dá resposta
começam a ser consideradas mais importantes ou relevantes pelo sujeito que produz o
conhecimento. Dito de outra maneira, cada teoria, ao corresponder ou ao equivaler a uma
determinada visão de mundo, permite que sejam formuladas certas perguntas e,
frequentemente, uma nova teoria contrasta com as teorias anteriores que abordaram esta ou
aquela questão precisamente pela sua capacidade de colocar novas perguntas.
O pensar no "modo teórico" deve se amparar, nos dias de hoje, em certos procedimentos
e pressupostos que foram reforçados pelo padrão de cientificidade da vida moderna. A "teoria"
sem demonstração, sem encadeamento coerente de suas partes, sem verificabilidade, pode se
converter meramente em um conjunto de "conjecturas", pelo menos de acordo com o
pensamento que passou a predominar no mundo contemporâneo. A Ciência, compreendida
como forma específica de produzir conhecimento, pode ser identificada a partir da co-presença
de alguns aspectos que lhe são inerentes. Deve antes de tudo visar e constituir um
conhecimento a ser produzido sistematicamente, com rigor metodológico. O saber científico
também deve ultrapassar, necessariamente, o mero nível descritivo ou narrativo, de modo a
fornecer explicações ou "sistemas para a compreensão" acerca dos fenômenos que examina.
Em última instância, não busca, a Ciência, no seu sistemático processo de produzir o
conhecimento, fornecer valorações éticas ou que tenham por escopo final julgar os fenômenos
observados de acordo com algum ponto de vista moral (tal como ocorre com a Ética ou com a
Religião). Sobretudo, trata-se de um conhecimento demonstrado, tanto a partir de uma lógica

29
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 75-77.
30
Cf. KUHN, 1998.

História. 19
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argumentativa, como no que se refere à comprovação de dados que lhe sirvam de base
informativa. É por fim, e este é um dos seus aspectos mais definidores, um conhecimento que
deve ser "testável", isto é passível de ser verificável ou percorrido mais de uma vez por qualquer
pesquisador que se proponha a seguir todos os passos da pesquisa original. Para tanto, o
conhecimento produzido cientificamente deve explicitar necessariamente o "caminho'' e os
"pressupostos" que permitiram que o mesmo fosse produzido (o "método" e também a "visão
de mundo", isto é, a "teoria", que o sustenta), assim como deve esclarecer as condições de
produção do conhecimento em questão.
Portanto, a História, desde o momento em que postulou se tornar científica, ou ao menos
se pôs a dialogar com as sociedades científicas, trouxe para o centro de suas preocupações um
extremo cuidado em indicar as suas fontes. Essa é uma questão "metodológica" da maior
importância para a História. É através da indicação das fontes utilizadas por um historiador que
um outro, que deseje submeter o seu trabalho à prova, poderá percorrer o mesmo caminho
traçado pelo primeiro pesquisador. A fonte está na base da dimensão de verificabilidade
possível à História. Se na Química o pesquisador pode repetir em laboratório a experiência
produzida pelo primeiro pesquisador, na História se deve assegurar que todos tenham acesso às
fontes examinadas. Faz parte da ideia de teoria a possibilidade de demonstração (de confirmar
ou de extrair consequências daquilo que é formulado). Para estarmos no âmbito da Teoria
também é necessário que o que se formula teoricamente seja submetido a um diálogo com
outras proposições teóricas, seja para reforço ou para refutação. Por isso as diversas teorias
relacionam-se, por contraste ou por interação, no interior de um campo de conhecimento mais
vasto, que é o campo científico que se tem em vista. 31

31
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 80-83.

História. 20
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5. O PARADIGMA HISTORIOGRÁFICO
Pertencem ao âmbito da teoria da história os grandes paradigmas historiográficos e os
sistemas teóricos mais amplos que se destinam a encaminhar a compreensão e análise
historiográfica. Os paradigmas Positivista, Historicista e o Materialismo Histórico, entre outros,
pertencem ao quadro de grandes correntes teóricos disponíveis aos historiadores (embora
frequentemente essas correntes também envolvam aspectos metodológicos). 32
Mas o que é um paradigma? Ora, paradigma é um conceito das ciências e da
epistemologia (a teoria do conhecimento) que define um exemplo típico ou modelo de algo. É a
representação de um padrão a ser seguido. É um pressuposto filosófico, matriz, ou seja, uma
teoria, um conhecimento que origina o estudo de um campo científico; uma realização científica
com métodos e valores que são concebidos como modelo; uma referência inicial como base de
modelo para estudos e pesquisas.
Como dito alhures, a segunda metade do século XVIII é um momento de passagem
importante para um novo momento na historiografia, até o século XIX, quando se consolidará a
historiografia científica. Esta metade de século em que surgem as "filosofias da história" é como
que uma antessala para algo ainda mais inovador, que será o ambiente de surgimento das
"teorias da história" ainda na primeira metade do século XIX. Estes dois momentos da
historiografia, embora distintos, fazem parte de um mesmo movimento que já podemos situar
no ambiente de uma nova era historiográfica.
Embora fosse já antiga a prática da historiografia, ou de vários tipos de pesquisa e de
elaboração de textos assemelhados à historiografia, surgiria efetivamente em fins do século
XVIII a primeira formulação do conceito atual de história, entendida como um “singular-
coletivo”, isto é, como a interação de todas as experiências humanas, desaparecendo a
tendência a se falar em “histórias”, no plural, separadas umas das outras. Essa mudança
semântica anuncia efetivamente os novos tempos: a partir de então um mesmo conceito –
"História" passaria a designar simultaneamente a realidade vivida (a história enquanto processo
de acontecimentos) e a reflexão sobre esta realidade vivida (a historiografia produzida pelos
historiadores na sua narração ou análise da história). Daqui em diante, a História passará a
carregar o nome de sua carne.
O novo tipo de historiador extrairá parte de suas inspirações e traços essenciais não
apenas dos filósofos, como também dos teólogos e filólogos; além do que, é claro, aquilo que
naturalmente se extrairá dos antigos praticantes de gêneros cronísticos e proto-historiográficos.

32
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, p. 70.

História. 21
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As interessantes observações da filósofa Hannah Arendt 33 sob uma sutil mudança que ocorria
pela mesma época (fins do século XVIII) na própria história da Filosofia, pois esta mudança no
ambiente mental dos filósofos vai de fato ao encontro da emergência da nova mentalidade
historiográfica que já vinha surgindo por outras vias. Arendt observou que a história do
chamado "pensamento filosófico ocidental" conheceu três grandes épocas, a saber:
1) Era filosófica– extraordinariamente extensa na história do pensamento ocidental, no que
concerne a esta questão específica que seria a determinação da principal tarefa do
filósofo, seria aquela que foi atravessada por uma filosofia que valorizava
prioritariamente a Metafísica. Teríamos aqui aquela filosofia que, desde Platão e
Aristóteles, havia fixado como tarefa maior e mais nobre da Filosofia investigar as "causas
primeiras" (isto é, aquelas que estão acima do mundo humano, que se referem às
reflexões sobre o próprio Ser enquanto Ser, examinado como se estivesse fora da história
e do fugaz e revolto mundo humano). De Aristóteles até fins da Idade Média, passando
pelos tomistas, esta teria sido a tônica maior da história da Filosofia que precede o
período moderno.
2) Primeira Modernidade– os séculos XVI e XVII trarão, em seguida, a ''primeira
modernidade''. A "primeira modernidade" se traduz efetivamente em mudanças
importantes na história do pensamento filosófico com relação a esta questão específica,
isto é, "qual seria a principal tarefa do filósofo?". Do inquérito metafísico sobre as causas
primeiras, a tarefa maior e mais nobre da Filosofia passa a ser vista, nos séculos XVI e
XVII, como aquela que é cumprida pelas Teorias Políticas. De Maquiavel (1469-1527) a
Locke (1632-1704) e a Hobbes (1469-1527), há fartos exemplos. A Filosofia, já desde a
primeira modernidade, passa a ser preocupar enfaticamente com o mundo humano, com
a sua organização política, com o mundo da "ação". Não que esta Filosofia como na
Filosofia da Antiguidade também se tratou muito do "Político''), mas sim que, neste novo
período, o ''Político" é que passa a ser enfatizado como a temática mais importante.
3) Segunda Modernidade– O último terço do século XVIII (coincidindo precisamente com o
período que JornRusen qualificará como do surgimento de uma nova era historiográfica)
assistira ao "concomitante" declínio do interesse pelo puramente político". Diante do
portal que introduz, no século XIX, a "segunda modernidade". Esta já nasce, por assim
dizer, distintivamente marcada pela "consciência histórica”. De uma maneira até então
inédita a História passa a contaminar a Filosofia, toda ela se torna histórica, e se auto
percebe como mergulhada na história. Esta é pelo menos a tendência geral, da qual
Hegel nos oferecerá o mais bem acabado exemplo.34

33
ARENDT, 2009, p. 101apudD'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, p. 45.
34
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, pp. 43-50.

História. 22
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A "Verdade" não está mais fora da história, de maneira transcendente; ao contrário,


daqui em diante ela está dentro da história. Rigorosamente falando, a Verdade é a própria
história. A noção de "processo histórico'' se impõe a partir daqui. A verdade a ser apreendida,
seja pelos filósofos ou por estes novos intelectuais que serão os historiadores, dá-se na história,
está inarredavelmente inscrita no tempo. É por isso que a História deixa de ser aquela
modalidade de prática intelectual ou literária que antes parecia destinada a fornecer exemplos
para a Teoria Política, tal como em Maquiavel. Ela (a história) é o próprio processo a ser
estudado. Isto vai se impor com tanta força que o século XIX vai ser cognominado de ''século da
história".
Diante da nova concepção de que a história corresponderia a uma realidade vivida
efetiva, a função do historiador, por isto mesmo, passaria a ser a de apreender esta realidade,
ou algo desta realidade, o que nos leva desde já ao segundo traço apontado por JornRusen em
sua caracterização deste novo modo de conceber e elaborar a História que começa a se afirmar
a partir do último terço do século XVIII. Assim, enquanto o primeiro traço referia-se à natureza
da história-efetiva, isto é, à maneira como a natureza da história passa a ser compreendida pela
nova historiografia, já o segundo traço refere-se à ligação ou ao tipo de ligação que deve ser
estabelecido entre a historiografia e a história, que a primeira toma para objeto de
conhecimento.
A Historiografia passa a ser entendida cada vez mais como "forma de conhecimento'' (e
não mais como mero meio pragmático ou voltado para o aprimoramento ético). Como nova
forma de conhecimento a ser cuidadosamente definida em suas especificidades, a principal
estratégia cognitiva da historiografia para lidar com a experiência do passado deverá ser
necessariamente a "racionalidade do método". Surgirá aqui, concomitantemente, um novo
conceito importante para ser considerado no âmbito dos procedimentos metodológicos da
historiografia: a "objetividade".
Os historiadores logo começaram a perguntar a si mesmos: “que elementos da realidade
histórica podem ou devem ser apreendidos pelos historiadores?”, ou ainda, "como a História –
ou a verdade histórica – poderá tornar-se apreensível para o sujeito que produz o
conhecimento?”. Em termos mais simplesmente historiográficos, os historiadores começam a se
preocupar com duas coisas: ''o que buscar na história", e "que métodos e procedimentos
empregar nesta busca". Estas duas perguntas, a partir da segunda metade do século XVIII, e
sobretudo no século XIX, estarão presentes na mente de todos os historiadores ou eruditos que
procuram elaborar algum tipo de conhecimento sobre a experiência do passado. As respostas
que serão dadas a estas perguntas, contudo, darão origem a correntes diferenciadas do
pensamento historiográfico.
Boa parte dos iluministas da segunda metade do século XVIII, por exemplo, haviam
passado a responder à primeira pergunta ("o que encontrar na História") em termos de uma

História. 23
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grande busca de leis ou generalizações. Almejavam compreender, na História, o que estava por
trás da própria História. Haveria "leis" presentes por trás do desenvolvimento das sociedades
humanas, tal como havia leis que regiam os fenômenos físicos? Esta busca também foi a dos
positivistas no século seguinte.
Já os primeiros românticos do século XVIII, e mais tarde os historicistas do XIX, não
estavam propriamente interessados em leis gerais, em grandes generalizações que permitissem
compreender a história como um desenvolvimento único e sob a perspectiva de uma
universalidade que abarcasse toda a humanidade. Essencialmente, buscavam na história as
singularidades, as diversidades, a especificidade de cada sociedade ou processo histórico. Sua
perspectiva historiográfica, em uma palavra, seria "particularizante", e não "universalizante".
Quanto à pergunta metodológica (''que estratégias cognitivas deveriam ser utilizadas
para lidar com a experiência do passado?”), as respostas foram também várias, mas a mais
consistente seria trazida pelos historicistas que se afirmariam a partir do início do século XIX: a
historiografia deveria desenvolver métodos sistemáticos de críticas das fontes, das evidências
que registravam as experiências do passado humano. Este trato sistemático das fontes ficaria
conhecido como "Crítica Documental", e foi de fato uma das maiores contribuições do
Historicismo dos primeiros tempos – e da Escola Histórica Alemã em particular – ao
desenvolvimento da historiografia como um todo.
Outras duas contribuições, para além da própria difusão do paradigma historicista, foram
a inserção e consolidação da História como disciplina universitária, e a instituição da figura do
historiador profissional como aquele sujeito humano que, legitimamente, poderia tomar a seu
cargo a tarefa da escrita da História com base em uma rigorosa especialização laboriosamente
conquistada. A nova figura do historiador profissional logo passaria a se contrapor à do sábio
erudito que, entre inúmeros outros interesses, já vinha escrevendo no século XVIII também as
suas obras historiográficas, a exemplo de filósofos iluministas como Voltaire, Montesquieu ou
David Hume. De igual maneira – em que pese que eventualmente as ''teorias da história" do
século XIX achem-se eventualmente impregnadas de alguma ''filosofia da história" (como o
Positivismo comtiano ou a perspectiva da marcha teleológica da civilização para o socialismo
que se acha inserida no materialismo Histórico de Marx e de Engels) o historiador do século XIX,
o "historiador científico", passa a se dedicar cada vez mais ao exame do concreto vivido trazido
pelas suas fontes, e a se distanciar cada vez mais das perspectivas teleológicas daquelas
"filosofias da história" que buscavam antecipar um futuro e refletir essencialmente sobre o
sentido e o ponto de chegada da história, mais do que sobre a história em si mesma. 35

35
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, pp. 53-55.

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O historiador profissional que surge no século XIX, e que seguirá pelos séculos
posteriores, estará muito claramente ocupado em sedimentar as suas reflexões em evidências,
e em se afastar de especulações não comprováveis ou sem alguma base empírica.
Em face da necessidade de estabelecer um método que o tornasse capaz de atingir a
essencialidade do processo histórico ou da experiência humana examinada, passaram a ocupar
uma centralidade fundamental para a produção do conhecimento histórico estes materiais,
vestígios ou evidências de todos os tipos que vão sendo deixados pelas sucessivas épocas e pela
a ação humana através do tempo. Em uma palavra: a ideia de História, no sentido moderno,
passa a ser quase que automaticamente associada ao conceito de ''Fonte Histórica", embora a
definição sobre o que poderia ou não ser considerado como fonte histórica tenha passado por
sucessivas transformações ao longo do desenvolvimento da historiografia, em geral na direção
de uma gradual expansão que terminaria por abarcar um universo praticamente infinito de
possibilidades. Desde então, destacam-se dois elementos entre aqueles que mais habitualmente
associamos à matriz disciplinar que constitui este campo de conhecimento que denominamos
História: a Fonte Histórica, e a referência ao Tempo.

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6. DOIS PARADIGMAS EM CONTRAPOSIÇÃO: POSITIVISMO E


HISTORICISMO
A historiografia dos séculos XIX ao XXI oferece um arco interessante e diversificado de
posições relacionadas à questão da oposição e interação entre Objetividade e Subjetividade em
História. Praticamente o século XIX abre-se e encerra-se com este debate, pois, além de ser o
século da História, será constituído de décadas de confronto entre duas posições fundamentais
com relação a esta questão: o Positivismo e o Historicismo. Adicionalmente, surge em meados
do século XIX uma nova Teoria da História, mas sem estar ainda acompanhada por um número
significativo de obras historiográficas propriamente ditas: o Materialismo Histórico, que no
século XX traria inúmeras contribuições historiográficas já produzidas por historiadores ligados
ao Materialismo Histórico.
A oposição fundamental entre Positivismo e Historicismo dá-se em torno de três aspectos
fundamentais: (1) a dicotomia Objetividade/Subjetividade no que se refere à possibilidade ou
não de a História chegar a Leis Gerais válidas para todas as sociedades humanas; (2) o padrão
metodológico mais adequado à história (de acordo com o modelo das Ciências Naturais, ou um
padrão específico para as ciências humanas); e (3) a posição do historiador face ao
conhecimento que produz (neutro, imerso na própria subjetividade ou engajado na
transformação social).
Ambos, o Positivismo e o Historicismo, pautaram-se na ideia de que a História se refere a
uma realidade humana temporalizada, e na perspectiva de que poderia se tornar objeto de
conhecimento este mundo humano real a ser compreendido no tempo. De igual maneira, com
estes dois paradigmas historiográficos concorrentes, já entramos no âmbito das "teorias da
história".
É importante ressaltar que, enquanto o Positivismo, como paradigma, já está
praticamente pronto desde o início do século XIX – já que herda uma série de pressupostos do
Iluminismo, embora por vezes invertendo a sua aplicação social e vindo a constituir de fato uma
visão de mundo tendencialmente conservadora, ao contrário dos setores mais revolucionários
do pensamento Ilustrado –, já o Historicismo estará construindo o seu paradigma no decurso do
próprio século XIX. Influências mais isoladas lhe chegavam de autores precursores como Herder
ou Vico, que já estavam no século XVIII atentos à relatividade das sociedades humanas contra a
tendência predominante na intelectualidade da época, o Iluminismo, que tendia a pensar na
Natureza Universal do Homem e em uma história "universalizante", e não "particularizante".36

36
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, pp. 63-65.

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Os Positivistas contam de fato com toda uma fortuna crítica que inclui as já clássicas
discussões iluministas em torno de questões que lhes seriam caras: (1) a possibilidade de um
conhecimento humano inteiramente objetivo; (2) a construção de uma história universal,
comum a toda a humanidade; (3) a possibilidade de amparar um conhecimento científico sobre
as sociedades humanas com base na ideia de imparcialidade do sujeito que produz o
conhecimento. Estes três princípios, no que apresentam de mais essencial, sustentam-se sobre a
noção de que haveria uma "natureza imutável do Homem''. São estes fundamentos, que já
vinham sendo discutidos há muito pelo pensamento Ilustrado, que o Positivismo tomaria para
si, emprestando-lhes uma nova coloração. Por isso, podemos dizer que, no essencial das
questões que irá colocar a si mesmo, o Positivismo já inicia o século XIX com um quadro
bastante claro de seus posicionamentos.
Naturalmente que a ideia de uma "imparcialidade absoluta'' será sempre um problema. O
Iluminista, contudo, via a si mesmo como um homem desprovido dos ''preconceitos'' que
seriam tão típicos da Igreja, dos partidários da Monarquia Absoluta, dos defensores dos
privilégios da Aristocracia, ou mesmo do povo mais humilde, por estar sujeito à ignorância que
lhe impunham aqueles que o dominavam. O Homem ilustrado, burgueses e intelectuais, livres
de preconceitos e dotados de pensamento crítico, estaria apto a enxergar as coisas como elas
são, sendo esta a ideia que seráretomada mais tarde pelo Positivismo. Além disso, a noção de
progresso e linearidade histórica também emergem do pensamento iluminista, ao passo que
conservavam a ideia de que o transcurso das ações dos homens no tempo constituía um
acumulo de experiências (como nas ciências naturais) que vão sendo selecionadas e guiadas de
forma teleológica, objetivando alcançar sempre o aperfeiçoamento da humanidade. 37
Já para os primeiros historicistas, como dito, nada de fato estava propriamente pronto no
início do século XIX. O Historicismo ainda precisará construir a si mesmo, estendendo
contribuições diversas em um arco que irá de Ranke – ainda preocupado em ''narrar os fatos tal
como eles aconteceram'' – até Droysen e Dilthey, historicistas relativistas que já se ocupam em
trazer à historiografia uma reflexão sobre a subjetividade do próprio sujeito que constrói a
História, bem como sobre a singularidade do padrão metodológico a ser encaminhado pela
Historiografia: um padrão "compreensivo'' e não ''explicativo'' como nas ciências naturais. Esta
mesma discussão estende-se através do século XX, chegando a nomes como Gadamer, Paul
Ricoeur e outros historicistas modernos, como Marrou. 38
Para deixar mais claro, a distinção fundamental entre Positivistas e Historicistas, de um
lado, refere-se ao contraste de suas perspectivas sobre o Homem – percebido como uma
natureza imutável, pelos positivistas, e como um ser em movimento e em processo de

37
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, p. 66.
38
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, p. 67.

História. 27
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diferenciação, pelos historicistas. De outro lado, os dois paradigmas também se opõem


precisamente no que se refere ao papel da Objetividade e da Subjetividade na produção do
conhecimento histórico: aferrados a um modelo cientificista que procura aproximar ou mesmo
fazer coincidir os modelos das Ciências Naturais e das Ciências Socais e Humanas, os Positivistas
tendem a enxergar a subjetividade – do mundo humano examinado, mas também do
historiador – como um problema para uma história que procurava ocupar um lugar entre as
demais ciências; em contrapartida, os Historicistas, que construirão seus posicionamentos em
torno desta questão ao longo da várias décadas do século XIX, tenderam a enxergar a
subjetividade não como um problema, mas sim como uma inestimável riqueza, ou mesmo como
aquilo que precisamente permite à História constituir-se em um conhecimento de novo tipo,
dotado de uma especificidade própria. Dito de outra forma, para os Positivistas o historiador
deveria deixar-se guiar pela objetividade cruamente, enquanto que para os Historicistas o
historiador deveria ter compreensão da subjetividade presente nas próprias fontes e até mesmo
da sua subjetividade no exercício da escrita e análise dos fatos.
Os maiores nomes entre os historicistas das últimas décadas do século XIX, que estendem
sua contribuição para uma continuidade com os historicistas do século XX, chegam a realizar
efetivamente a virada relativista, e a lidar com a subjetividade como algo que não compromete
a cientificidade do trabalho historiográfico. Em vista disto, será fundamental para estes
Historicistas opor o paradigma explicativo das Ciências Naturais (e reivindicado pelos
Positivistas) ao paradigma da Compreensão, aspecto que é operacionalizado de maneiras
distintas por alguns Historicistas quando contrapostos entre si. Além disso, é importante
ressaltar que a passagem das filosofias da História para as teorias da História é muito tênue, por
vezes eivada de ambiguidades. Não raro, correntes já historiográficas afirmaram sua pretensão
de elaborarem uma história científica, depurada de toda filosofia, e foram depois acusadas por
outras correntes que as sucederam de ocultarem na verdade filosofias da História, precisamente
aquilo que alguns de seus historiadores declaravam ter superado. Na verdade, a relação entre
historiografia e filosofia é muito íntima, e, a não ser que se pretenda elaborar uma história
meramente factual e descritiva – o que de resto é rejeitado nos dias de hoje – pode-se dizer que
a historiografia em sentido moderno ampara-se necessariamente em uma Teoria da História e,
por que não dizer, em uma Filosofia da História, que corresponde à especulação dos
historiadores sobre o seu próprio ofício. 39
Para finalizar esse tópico, sintetizamos abaixo o paralelo comparativo entre Positivismo e
Historicismo:

39
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, pp. 68-71.

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A) Fundamentos do Positivismo: Leis Gerais / Universalidade Humana (As sociedades


humanas são reguladas por leis naturais, invariáveis, independentes da ação humana).
Identidade de Métodos entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais. Objetividade
Científica / Neutralidade (O objeto de estudo já está na natureza, e o cientista dele se
apropria. Separado de seu objeto de estudo, o historiador pode ser neutro e imparcial,
indo de encontro à verdade dos fatos).

B) Fundamentos do Historicismo: Relatividade do Objeto Histórico (Inexistem leis de


caráter geral que sejam válidas para todas as sociedades. Qualquer fenômeno social só
pode ser compreendido dentro das transformações no tempo). Distinção de Métodos
entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais (Prevalece a diferença entre fatos
históricos e fatos naturais). Subjetividade do Historiador (O historiador também está
mergulhado na História).

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7. MATERIALISMO HISTÓRICO
O Materialismo Histórico é uma abordagem metodológica dedicada ao estudo da sociedade,
da economia e da história que foi elaborada originalmente por Karl Marx (1818-1883) e Friedrich
Engels (1820-1895), apesar de eles próprios nunca terem empregado essa expressão. Em todo
caso, Marx e Engels foram os criadores de uma nova forma de compreensão da sociedade que
permitiu superar tanto o idealismo como o materialismo do seu tempo. Essa nova abordagem
desvelou o caráter limitado e a natureza mistificadora da filosofia e da economia política burguesa.
Dessa forma, com o propósito de estudar histórica e cientificamente a sociedade de sua época,
Marx e Engels começaram por criticar as teorias existentes, para então e formularem uma nova
forma de interpretação da realidade. É nesse sentido que, analisando as teorias dos idealistas, dos
metafísicos, dos materialistas ingênuos, representantes do pensamento burguês, eles elaboraram
uma explicação radicalmente oposta.
A partir da análise das teorias sociais existentes, Marx e Engels realizaram a ruptura com o
pensamento de vários teóricos. Entre eles, o pensamento de Hegel (1770-1831), filósofo alemão
que acreditava que a ideia constitui-se a própria realidade, ou seja, que são os pensamentos, as
ideias, que determinam a vida material; e o pensamento de Feurbach (1804-1872), que dizendo-se
materialista, toma a essência genérica do homem como ponto de partida da história, admitindo a
existência do indivíduo isolado, abstraído do seu contexto histórico. Além desses dois pensadores,
Marx faz também, severas críticas a Proudhon (1809-1865) que, devido à sua concepção pequeno-
burguesa, analisa as relações sociais capitalistas como imutáveis.
Portanto, vale perguntar: se Marx critica esse materialismo existente até então, como ele vê
o indivíduo? Qual o conceito de história que ele propõe? Em que consiste o Materialismo Histórico
proposto por Marx e Engels? Ora, o materialismo histórico procura as causas de desenvolvimentos
e mudanças na sociedade humana nos meios pelos quais os seres humanos produzem
coletivamente as necessidades da vida. As classes sociais e a relação entre elas, além das
estruturas políticas e formas de pensar de uma dada sociedade, seriam fundamentadas em sua
atividade econômica. O materialismo histórico, na qualidade de sistema explanatório, foi
expandido e refinado por milhares de estudos acadêmicos desde a morte de Marx.
Na obra A Ideologia Alemã, escrita conjuntamente por Marx e Engels, a ruptura com o
filósofo Feuerbach, o principal expoente da filosofia neohegeliana, ocupa lugar central. Discordam
enfaticamente do princípio de que é o pensamento quem determina e direciona a vida humana, de
que as ideias, os princípios, os pensamentos, são os determinantes da forma de ser dos homens.
Nessa análise de Feuerbach é a consciência que determina a vida, sendo assim, “a Ideia constitui-
se a própria realidade, na medida em que o mundo real nada mais é que a exteriorização

História. 30
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deliberada da Ideia. Decorre daí que o pensamento não depende das coisas mas estas é que
dependem dele” 40.
Nessa perspectiva, não se leva em consideração a história real, em vez de ser interpretado
como produto do trabalho humano, o homem é concebido como fruto do seu próprio
pensamento. É, portanto, abstraído do seu contexto histórico, das relações sociais estabelecidas na
produção da vida material. Assim, parte-se do que os homens dizem, representam ou imaginam e
não dos homens em seu processo real de vida.
Feuerbach, concebe o real apenas como objeto sensível. Não concebe assim, o homem em
sua conexão social com outros homens e com a natureza, não chega aos homens ativos, existentes,
produtores de sua própria existência, ele fica só na abstração do homem. “Na medida em que
Feuerbach é materialista, não aparece nele a história e, na medida em que toma a história em
consideração, não é materialista. Materialismo e história aparecem completamente divorciados
nele”.41
Além disso, Marx também deixa claro que se diferencia de Hegel, a sua fundamentação
teórica e o seu método dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua antítese direta.
Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de ideia, transforma num sujeito
autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua manifestação externa. “Para mim,
pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material transposto para a cabeça do homem e por
ela interpretado” 42. Marx distancia-se do modo hegeliano abstrato e a-histórico de entender o
homem, ao afirmar que não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a
consciência. Quando Marx fala da produção da vida, ele está tratando de uma atividade produtiva
concreta que decorre da maneira de viver do homem. Esta noção de produção do homem pelo
trabalho ocupa um papel de suma importância no seu pensamento. É da produção que ele parte
para explicar a própria sociedade, é pela produção que se entende o caráter social e histórico do
homem.
Para Marx, as explicações para as questões postas na sociedade devem ser buscadas na
práxis material dos homens. A categoria da práxis ocupa lugar central na teoria marxiana, por isso,
toma a produção da vida material como ponto de partida: “Indivíduos produzindo em sociedade –
portanto uma produção de indivíduos socialmente determinada, este é, naturalmente, o ponto de
partida”43. A leitura de Marx é uma leitura da realidade social e a categoria de práxis ocupa um
lugar fundamental em sua obra. É precisamente sobre a concepção do homem como ser prático e

40
MARCUSE, 1978, p.19apud SOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 2.
41
MARX, 1986, p. 40apud SOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 2.
42
MARX, 1983, p. 20apudSOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 2.
43
MARX, 1983, p. 201apudSOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 4.

História. 31
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social que repousa na ideia capital do trabalho como forma modelar de práxis, vale dizer, o único
modo de criação, é precisamente a partir dessa concepção que Marx elabora a sua teoria da
história.
Portanto, podemos dizer que, do ponto de vista de Marx e Engels, as relações sociais de
produção são construídas a partir das condições materiais existentes. É o entendimento dessas
condições que permite a compreensão de todas as questões humanas. Dessa forma, a base da
sociedade está no trabalho. O trabalho em Marx é uma categoria essencial que permite além de
explicar o mundo e a sociedade, explicar também a própria constituição do homem, um ser que
pelo trabalho se constituiu homem. Para Marx, o trabalho é um processo entre o homem e a
natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu
metabolismo com a natureza. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de
trabalho. A ideia é que o trabalho pertence exclusivamente ao homem. No fim do processo de
trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e
portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural;
realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural, o seu objetivo. Os elementos simples do processo de
trabalho são a atividade orientada a um fim ou o trabalho mesmo, seu objeto e seus meios. O
processo de trabalho é a atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação
do natural para satisfazer a necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o
homem e a natureza, condição eterna da vida humana e, portanto, comum a todas as suas formas
sociais.44
O trabalho é apontado por Marx como a primeira necessidade humana, a partir da
satisfação dessa necessidade, outras vão sendo criadas no interior do processo de produção. Nesse
sentido, todas as questões humanas são produtos do trabalho, e só podem ser compreendidas no
contexto em que foram produzidas. Podemos afirmar então que, em suas análises, Marx parte dos
indivíduos reais, produtores de suas ações, de suas condições de vida, de suas ideias. Assim é que,
produzindo seus meios de vida, produzem sua própria vida material. "Tal como os indivíduos
manifestam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto
com o que produzem, como o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende
das condições materiais de sua produção"45.
Para tanto, Marx diz que existe uma única ciência, a da história, que pode ser examinada
sob dois aspectos: a história da natureza e a dos homens. Essas duas são inseparáveis e coincidem
reciprocamente. Para ele, o homem é um ser natural, criado pela própria natureza e que está
sujeito as suas leis. Mas, ao mesmo tempo, o homem não se confunde com a mesma natureza de
que ele faz parte, transformando-a conscientemente segundo suas necessidades. É no processo de

44
MARX, 1983apud SOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 5.
45
MARX 1986, p.28apud SOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 5.

História. 32
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busca da satisfação de suas necessidades materiais que o homem trabalha, criando a si mesmo e à
sua história nesse processo.
Para Marx, a história não é um movimento linear, não é determinista, ela se dá através de
contradições, de antagonismos e conflitos, enfim, é um campo aberto de possibilidades: “Os
homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob
circunstâncias de sua escolha e sim sob aquela com que se defrontam diretamente, legadas e
transmitidas pelo passado”.46
A busca pela satisfação das necessidades vitais para a manutenção da vida humana faz com
que os homens produzam os meios de satisfazê-las, esse é para Marx o primeiro ato histórico.
Desse modo, a satisfação dessas necessidades leva a outras. A própria divisão do trabalho por
exemplo, se deu a partir das necessidades reais desses homens que produziam em sociedade.
Assim, o próprio mundo sensível é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma
série de gerações.
Nas palavras de Marx: “A história nada mais é do que a sucessão de diferentes gerações,
cada uma das quais explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas
pelas gerações anteriores; ou seja, de um lado prossegue em condições completamente diferentes
a atividade precedente, enquanto, de outro lado, modifica as circunstâncias anteriores através de
uma atividade totalmente diversa” 47.
Nesse contexto, a consciência do homem pode ser entendida como fruto do seu trabalho, já
que na produção social da própria vida os homens estabelecem determinadas relações que, por
sua vez corresponde a uma certa etapa de desenvolvimento das forças produtivas. O conjunto
dessas relações de produção formam a estrutura da sociedade que corresponde a formas sociais
determinadas de consciência. Sendo assim, o representar, o pensar, o intercâmbio espiritual,
aparecem como emanação do comportamento material dos homens.
A análise da realidade, portanto, deve se dar a partir da teoria da infraestrutura e
superestrutura que circundam um determinado modo de produção. Isto significa dizer que a
história sempre está ligada ao mundo dos homens enquanto produtores de suas condições
concretas de vida e, portanto, tem sua base fincada nas raízes do mundo material, organizado por
todos aqueles que compõem a sociedade. Os modos de produção são históricos e devem ser
interpretados como uma maneira que os homens encontraram, em suas relações, para se
desenvolver e dar continuidade à espécie. Segundo Marx, não é a consciência que determina a
vida, mas a vida que determina a consciência.

46
MARX, 1985, p.1apud SOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 5.
47
MARX, 1986, p.70apud SOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 5.

História. 33
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Marx deixa claro o método que está propondo para a história: é o método que parte dos
fenômenos reais – não se parte do que os homens dizem, representam ou imaginam, nem
tampouco do homem predicado, pensado, representado ou imaginado, para chegar, partindo
daqui, ao homem de carne e osso; parte-se do homem que realmente atua e, partindo de seu
processo de vida real, se expõe também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos
deste processo de vida. Tão logo se expõe este processo ativo de vida, a história real deixa de ser
uma coleção de fatos mortos, ainda abstratos, como o é para os empiristas, ou uma ação
imaginária de sujeitos imagináveis como o é para os idealistas. Ao propor o seu método, Marx
acredita que não está desenvolvendo um conhecimento contemplativo, mas um conhecimento
que implica na possibilidade de transformar o real. O real é um movimento contraditório, marcado
por conflitos e interesses antagônicos. A ciência da história deve buscar desvendar esse
movimento que é a base para a compreensão da economia, da história, da política, enfim, de
qualquer campo de estudo48.
Assim, o entendimento de qualquer fenômeno, implica em compreendê-lo a partir da
realidade concreta do qual faz parte. Além disso, Marx fala que as ideias da classe dominante são
em cada época as ideias também dominantes. A classe que tem em seu poder os meios de
produção, tem também em suas mãos os instrumentos de dominação, já que é a classe consciente,
pensante. A produção intelectual se transforma com a produção material. As ideias dominantes de
uma época sempre foram apenas as ideias da classe dominante. Por isso, que as ideias dominantes
expressam as relações que estão estabelecidas, ou seja, as relações materiais dominantes. Nesse
sentido, o Manifesto do Partido Comunista escrito por Marx e Engels, buscando superar o que está
posto, colocando as bases da teoria social de um novo socialismo e de uma política revolucionária,
que expressa teoricamente a perspectiva de classe proletária na qual o proletariado constitui-se
como sujeito histórico revolucionário.
A análise de Marx revela que, quando se desenvolvem as forças produtivas que a relação
capitalista de produção é capaz de conter, esta, de forma de desenvolvimento das forças
produtivas transforma-se no seu entrave. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças
produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes
ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das
quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas,
essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social.
Nesse contexto, manifesta-se com toda potência a contradição entre forças produtivas
sociais e a relação de produção. Se a ordenação da sociedade em classes distintas foi
historicamente necessária em decorrência do insuficiente nível de desenvolvimento das forças

48
MARX, 1986, p.37apud SOUZA; DOMINGUES, 2009, p. 6.

História. 34
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produtivas, as lutas de classes no capitalismo criaram a possibilidade da abolição de toda relação


social fundada no antagonismo de classes.
Para Marx, as relações de produção burguesas são a última forma contraditória do processo
de produção socia. Mas, contraditória não no sentido de uma contradição individual, mas de uma
contradição que nasce das condições de existência social dos indivíduos. No entanto, as forças
produtivas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa, criam ao mesmo tempo as
condições materiais para resolver esta contradição. Assim, para Marx se deve conhecer essas
estruturas, pois conhecer implica em transformar, isto é, conhecer uma dada realidade para
modificá-la. A realidade que Marx quis conhecer e na qual centrou os seus estudos foi a sociedade
burguesa industrial. Ele estudou o modo capitalista de produção no movimento histórico do seu
devir, sua existência, sua extinção, ou seja, partiu da análise da sociedade de classes, mas o que
pretendia mesmo era chegar à sociedade sem classes, ao explicar o significado da crise da ordem
burguesa.
Marx diz também que, os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas maneiras,
o importante é transformá-lo. Podemos dizer, portanto, que o método de Marx usa de uma chave
evolutiva, pensando a evolução histórica e transformadora das sociedades, de maneira que desde
as sociedades mais remotas até a atual essa evolução se dá pelos confrontos entre diferentes
classes sociais – a luta de classes – decorrentes da "exploração do homem pelo homem".

História. 35
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8. A MODERNA MATRIZ DISCIPLINAR DA HISTÓRIA


A Matriz Disciplinar da História, embora não com esta designação, foi bem analisada por
Michel De Certeau em um importante ensaio intitulado A operação historiográfica 49, no qual a
História (a historiografia) é apresentada como constituída simultaneamente por um Lugar de
Produção, uma Prática e uma Escrita. Dos aspectos acima arrolados, pode-se dizer que o Lugar de
Produção – o lugar de onde se produz esta forma de conhecimento específica que é a História –
relaciona-se diretamente à Comunidade de Historiadores. Todos os historiadores, com tudo o que
até hoje já se produziu em termos de conhecimento histórico e de discursos historiográficos,
influenciam de alguma maneira, ainda que de maneira indelével na maior parte dos casos, no
trabalho de cada historiador em particular.
O discurso historiográfico sistematicamente decifrado por Michel De Certeau situa-se bem
ancorado na encruzilhada de "um lugar social", "uma prática", "uma escrita". O estudo
historiográfico aparece, assim, mais como produto de um lugar que de uma disposição individual, e
afirma-se de maneira particular à tradicional tônica da relação do trabalho historiográfico com o
Presente, esta que já era lugar-comum nos anos de 1970 e que remonta ao antigo dito de
Benedetto Croce que proclamava que ''toda história é contemporânea''. 50
A comunidade dos historiadores, interferindo diretamente sobre o trabalho de cada
historiador em particular, expressa-se através de inúmeros mecanismos de pressão e
contrapressão, inclusive institucionais. Por outro lado, inegavelmente a comunidade de leitores
que consomem a História enquanto produto cultural, gênero literário ou modalidade acadêmica, o
que já nos conduziria a um outro campo de reflexões, como as que foram desenvolvidas por
autores como Paul Ricoeur em Tempo histórico e narrativa (1982-1983). O leitor, diante das
múltiplas possibilidades de sentido de um texto, que se estabelecem mesmo para além das
intenções originárias do autor-historiador, é ele mesmo parte integrante do lugar de produção do
texto historiográfico.
Para além de um Lugar de Produção, a Matriz Disciplinar da História define também uma
Escrita – vale dizer, um modo de Escrita específico, autorizado pela comunidade de historiadores,
pelas expectativas já consolidadas pelos diversos gêneros historiográficos, e pelas possibilidades
oferecidas pelas expectativas e competências dos leitores. Este aspecto – o padrão de escrita do
texto historiográfico – sofre naturalmente transformações ao longo da própria história da
historiografia, mas pode-se dizer que, essencialmente, a Escrita da História tem desde os primeiros
tempos alternado relato, sob a forma de narrativa ou descrição, e a análise, por vezes com o

49
DE CERTEAU, 1982.
50
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, p. 58.

História. 36
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predomínio de um ou outro destes polos conforme o paradigma historiográfico em questão, a


escola histórica ou o estilo pessoal de cada historiador.
Conforme também ressalta Michel De Certeau, a Historiografia produz necessariamente um
discurso que se "desdobra sobre si mesmo", uma vez que ela coloca em interação ou alterna
necessariamente o discurso do historiador e o discurso de suas fontes, de múltiplas maneiras. Essa
forma de escrita alicerçada na consideração do textoou da "fala do outro" tem sido uma constante
no trabalho do historiador desde seus primórdios, embora admitindo inúmeras possibilidades
expressivas, e por isso pode ser indicada como um traço essencial da identidade mínima definida
pela Matriz Disciplinar da História, presente em todos os paradigmas historiográficos até hoje
surgidos.51
Existe, por fim, uma Prática. Essa Prática faz parte da prática historiográfica, por exemplo, o
trabalho obrigatório e metodologicamente conduzido a partir das Fontes Históricas – isto é,
evidencias, vestígios e materiais de toda espécie deixados pelos processos históricos e pelas ações
humanas. Essa base da pesquisa do historiador na "fonte histórica'', ou em documentos e vestígios
de todos os tipos, faz parte da identidade mínima da História no que se refere à sua Prática. Bem
entendido, a maneira de se trabalhar com as fontes históricas, ou ainda o que pode e deve ser
definido ou constituído como fonte histórica, se pode mudar com os próprios desenvolvimentos da
história da historiografia, mas dificilmente mudará algum dia o fato de que o historiador deve
necessariamente trabalhar com fontes históricas de modo a legitimar as afirmações e reflexões
que produz sobre as sociedades, processos e realidades históricas que está examinando, ou
mesmo de modo a se aproximar de alguma maneira destes processos ou realidades discursivas
com os quais irá trabalhar. Até o presente momento, a Fonte Histórica é o único recurso que
permite ao historiador acessar uma época e uma sociedade que não estão mais no presente.
A historiografia contemporânea, a partir do século XX, estabeleceu como exigência mínima
para o historiador que ele elabore a sua historiografia a partir de "problemas", e na verdade esta
exigência já aparece mesmo em diversos historiadores do século anterior, tal como Johann Gustav
Droysen que, em sua Historik (1858), explicita claramente a norma de que "o ponto de partida de
toda pesquisa é a pergunta histórica" 52. Deste modo, já não é possível, pelo menos para um
historiador que almeje ser reconhecido pela comunidade de historiadores profissionais, que se
faça uma historiografia meramente narrativa ou descritiva, sem incluir algum tipo de análise ou
interpretação dos fatos e dados. A historiografia, nos dias de hoje, é necessariamente
problematizada – é uma "História-Problema".

51
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, pp. 59-60.
52
DROYSEN, 2009, p. 46apudD'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, p. 62.

História. 37
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O trato com o ''Tempo", a "Intenção de Verdade", a "Problematização'' estes e outros,


enfim, são alguns elementos que constituiriam a Prática hoje definida pela Matriz Disciplinar da
História, consistindo naquilo que aparece no trabalho de qualquer historiador, independente do
seu Paradigma, da escola historiográfica a que se filia, de seu estilo pessoal, do sistema conceitual
como o qual habitualmente lida.
Existe ainda um outro aspecto que pode ser postulado como um traço que foi incorporado à
Matriz Disciplinar da História no último século: a tendência do campo da história à ''Abertura
Interdisciplinar". A História, mais do que qualquer outra disciplina, passou a incluir na sua prática
corrente a Interdisciplinaridade. A História tem incorporado muito naturalmente conceitos e
métodos oriundos de outros campos de saber, os (re)apropriando para seus próprios fins, e no
decurso do século XX conheceu sucessivas vagas de interdisciplinaridade que a trouxeram para o
diálogo com ciências sociais diversas como a Economia, a Geografia, a Sociologia, a Antropologia, a
Linguística, a Psicologia, e ainda outras.53

53
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2014, p. 63.

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9. ESCOLA DOS ANNALES


A expressão “escola histórica” diz respeito a algumas das linhas e contribuições
historiográficas do século XX. Mas os historiadores, obviamente, não se definem apenas pelo
pertencimento a escolas, e muitos deles não pertencem de fato a escola alguma. Os conceitos de
“escola”, “paradigma” e “campo histórico”, entre outros conceitos e noções como a de “corrente
historiográfica” e “linhas de pesquisa”, ajudam a conferir uma identidade mais precisa aos diversos
historiadores. Ora, o que caracteriza uma escola é um certo programa de ação, uma determinada
identidade que se forma, um campo de escolhas (teóricas, metodológicas, temáticas, éticas,
associativas, geradoras de inclusão e exclusão) que permite ao praticante do campo sintonizar-se
com outros que a ele se assemelham nas mesmas escolhas. E não é só isso. Os membros de uma
escola costumam atuar juntos e podem se reconhecer reciprocamente quando são
contemporâneos (pois devemos lembrar que uma escola pode atravessar largos períodos de
tempo e envolver também gerações não contemporâneas). Ou seja, existe certo jogo de
identidade que se harmoniza a partir do pertencimento a uma escola. 54
A Escola dos Annales, por seu turno, é um movimento historiográfico do século XX que se
constituiu em torno do periódico acadêmico francês Annales d'histoireéconomiqueetsociale, tendo
se destacado por incorporar métodos das Ciências Sociais à História. Fundada por LucienFebvre e
Marc Bloch em 1929, propunha-se a ir além da visão Positivista da história como crônica de
acontecimentos, substituindo o tempo breve da história dos acontecimentos pelos processos de
longa duração, com o objetivo de tornar inteligíveis a civilização e as mentalidades. Marc Bloch foi
morto pela Gestapo durante a ocupação alemã da França, na Segunda Guerra Mundial, e Febvre
seguiu com a abordagem dos Annales nas décadas de 1940 e 1950. Nesse período, orientou
Fernand Braudel, que se tornou um dos mais conhecidos expoentes dessa escola. A obra de
Braudel definiu uma segunda geração na historiografia dos Annales e foi muito influente nos anos
1960 e 1970, especialmente por sua obra, O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de
Felipe II. Já a terceira geração dos Annales é conduzida por Jacques Le Goff e ficou mais conhecida
como a Nova História, segundo a qual toda atividade humana é considerada história. Além de Le
Goff, nesse período se destaca também seu companheiro de profissão, Pierre Nora.
Foi o historiador Peter Burke que fez essa divisão, que já se tornou clássica, acerca da Escola
dos Annales, estabelecendo da seguinte forma:
“Esse movimento pode ser dividido em três fases. Em sua primeira fase, de 1920 a 1945,
caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilhas contra
a história tradicional, a história política e a história dos eventos. Depois da Segunda Guerra

54
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 11-15.

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Mundial, os rebeldes apoderaram-se do establishement histórico. Essa segunda fase do


movimento, que mais se aproxima verdadeiramente de uma “escola”, com conceitos diferentes
(particularmente estrutura e conjuntura) e novos métodos (especialmente a “história serial” das
mudanças na longa duração), foi dominada pela presença de Fernand Braudel. Na história do
movimento, uma terceira fase se inicia por volta de 1968. É profundamente marcada pela
fragmentação. A influência do movimento, especialmente na França, já era tão grande que perdera
muito das especificidades anteriores”.55
A escola dos Annales renovou e ampliou o quadro das pesquisas históricas ao abrir o campo
da História para o estudo de atividades humanas até então pouco investigadas, rompendo com a
compartimentação das Ciências Sociais (História, Sociologia, Psicologia, Economia, Geografia
humana e assim por diante) e privilegiando os métodos pluridisciplinares.
A supremacia da escola francesa sobre a produção historiográfica ocidental se apresentou
profunda e duradoura. A historiografia dos Annales se consolida como corrente dominante a partir
de uma crítica a história realizada em seu tempo. Para se firmar como corrente historiográfica
dominante na França, e estender posteriormente sua influência a outros países da Europa e
também da América, os fundadores e consolidadores dos Annales precisaram estabelecer uma
arguta e impiedosa crítica da historiografia de seu tempo – particularmente daquela historiografia
que epitetaram de História Historizante ou de História Eventual – buscando combater mais
especialmente a Escola Metódica Francesa e certos setores mais conservadores do Historicismo.
Os Annales, em busca de sua conquista territorial da História, precisavam enfrentar as tendências
historiográficas então dominantes, mas também se afirmar contra uma força nova que começava a
trazer métodos e aportes teóricos inovadores para o campo do conhecimento humano: as
nascentes Ciências Sociais. É contra o pano de fundo deste duplo desafio que o movimento inicia a
sua aventura historiográfica. 56
O movimento dos Annales – ao lado do Materialismo Histórico e das contribuições da
Hermenêutica Historicista – constitui certamente uma das influências mais impactantes e
duradouras sobre a historiografia ocidental. O impacto dos Annales sobre a historiografia ocidental
como um todo, e sobre a historiografia brasileira em particular, não deixa de ser produzido por
uma parte efetiva de contribuições substanciais e extremamente inovadoras para a historiografia,
e também por uma parte não menos significativa de recepção favorável do “mito” construído
pelos primeiros líderes do movimento em sua ascensão ao domínio do território institucional. Em
função desta dupla característica – contribuição efetivamente inovadora e “mito da inovação” –,
algumas ambiguidades iniciais merecem ser pontuadas. Os Annales representam a Nova História
contra uma “Velha História”, tal como postularam os primeiros fundadores do movimento, e

55
BURKE, 1992, pp. 13-14.
56
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2010, p. 5.

História. 40
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também os seus refundadores? Se representaram de fato uma Nova História, foram eles os únicos
setores da historiografia que puderam se auto perceber como uma Nova História? E quanto aos
setores estigmatizados pelos primeiros annalistas como uma “Velha História”, estavam todos
mergulhados, em sua inteireza, em uma velha história totalmente retrógrada e inadaptada aos
novos tempos? Estas perguntas podem ser colocadas provocativamente a respeito dos Annales, e
algumas delas se expressam em ambiguidades relacionadas à própria designação do movimento.
Frequentemente, quase como um sinônimo para a contribuição dos Annales ou para o tipo
de historiografia que se pretende que este movimento tenha inaugurado, é empregada a
expressão Nova História em seu sentido ampliado, o que inclui tanto a Escola dos Annales
propriamente dita como a corrente à qual, a partir dos anos 1970, muitos se referem também
como Nouvelle Histoire, mas agora em sentido mais restrito. Por outro lado, uma vez que os mais
recentes historiadores da Nouvelle Histoire muito habitualmente reivindicam uma herança
historiográfica que remete às duas primeiras gerações dos Annales, não é raro o uso da expressão
“Escola dos Annales” de modo a abarcar as diversas gerações de historiadores que têm como
referência a Revista dos Annales.
Para além do importante diálogo bibliográfico que já existe em torno dos Annales, é
fundamental considerar, antes de tudo, as fontes que revelam diretamente o pensamento dos
historiadores dos Annales. Afirmam-se aqui obras já clássicas, como: A apologia da História, de
Marc Bloch; os Combates pela História, de LucienFebvre; os ensaios de Fernand Braudel incluídos
na obra A escrita da história; o ensaio Território do historiador, de Ladurie; o livro História, ciência
social, de Pierre Chaunu; os ensaios reunidos por François Furet em 1982 sobre a rubrica A oficina
da história; ou ainda as grandes coletâneas coordenadas por historiadores da Nouvelle Histoire,
como Jacques Le Goff e Pierre Nora, entre os quais a coletânea Faire de I’Hisoireou a coletânea
Nouvelle Histoire.
Finalmente, a própria atuação de cada historiador ligado aos Annales, no exercício de sua
prática e elaboração de estudos históricos específicos, deixa entrever novas nuances. Obras como
Os Reis Taumaturgos, de Marc Bloch, o Rabelais de LucienFebvre, A crise da economia francesa no
Antigo Regime de Labrousse, O Mediterrâneo de Fernand Braudel, ou Sevilha e o Atlântico de
Pierre Chaunu, tornaram-se aqui páginas privilegiadas para a identificação de um novo e complexo
padrão historiográfico que iria deixar seus traços definitivos na história da historiografia. 57
No tocante ao programa comum partilhado pelos historiadores que se identificavam com a
Escola dos Annales, podemos identificar que alguns itens referem-se tanto à primeiras gerações de
historiadores dos Annales – as gerações Bloch-Febvre-Braudel – como aos historiadores ligados à
chamada Nouvelle Histoire, que reivindicam para si mesmos a herança do movimento, e

57
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 53-59.

História. 41
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pretendem desenhar sua imagem como a de uma terceira e quarta gerações dos Annales. Outros
dos itens expostos indicam pontos de discordância entre esses blocos, como é o caso da oposição
entre a ideia de História Total, típica das duas primeiras gerações annalistas, e a Fragmentação
Temática que não é propriamente apresentada como um ponto programático pelos próprios
historiadores da Nouvelle Histoire, mas que tem sido indicada por alguns de seus críticos como
traço característico deste grupo historiográfico.
O primeiro item programático dos Annales a ser considerado – ao mesmo tempo
coincidindo com uma estratégia de projeção da escola no meio acadêmico, e com uma concepção
com a qual Bloch e Febvre pessoalmente já estavam sintonizados antes mesmo de seu encontro na
Universidade de Estrasburgo – é a interdisciplinaridade.
Esta orientação interdisciplinar tornou-se um dos itens mais importantes do programa de
História dos Annales, e continuaria tendo a mesma importância na época da geração de
historiadores franceses que se autodenominaria Nouvelle Histoire. Por outro lado, ao entrar em
contato com novos aportes e metodologias, com novos sistemas conceituais e mesmo com novas
linguagens, e, sobretudo, ao ampliar cada vez mais suas temáticas para além das instâncias da
política oficial, a História também iniciou um movimento de diversificação interna. A multiplicação
de campos interdisciplinares, ou a proliferação de identidades que pareciam diversificar por dentro
o saber histórico, surgiu como uma consequência quase natural para os historiadores que abriram
seus horizontes interdisciplinares, que ampliaram seus objetos de estudo, e que passaram a
trabalhar com novos tipos de fontes e problemas.
Podemos exemplificar o desenvolvimento de um campo mais sistemático que poderia ser
denominado História Econômica, oportunizado ao lado das realizações historiográficas ligadas ao
Materialismo Histórico, ainda por se desenvolver, e também de outras escolas de História
Econômica que já vinham se desenvolvendo em outros países. Além de uma História Política, os
historiadores agora poderiam pensar em uma História Econômica, assim como poderiam em breve
redefinir em novos termos um campo a ser conhecido como História Cultural. Alguns dos campos
históricos foram surgindo primeiro, em função de uma fortuna crítica pregressa ou de contextos
históricos específicos. A História Econômica, surgida junto a um campo ainda um tanto vago que
foi batizado de História Social, uma História Demográfica que emergia no próprio contexto das
expansões demográficas na primeira metade do século XX, uma nova forma de consideração do
espaço pelos historiadores que resultaria na consolidação de uma Geo-história, a promessa de
uma futura Psico-história incentivada pelo diálogo entre História e Psicologia – cada uma dessas
possibilidades começou a ser explorada atentamente pelos historiadores dos Annales, de modo
que a multiplicação de campos intradisciplinares confirmou-se como um item importante no
programa dos Annales.

História. 42
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Já a História Problema tornou-se de longe o instrumento mais combativo e reluzente do


programa dos Annales, pois permitia afrontar, a partir de um novo conceito e de uma nova
definição para uma história que se queria nova, o frágil universo dos modelos de historiografia que
se limitavam a narrar os fatos ou a expor informações, de maneira meramente descritiva. A
bandeira da História Problema, uma novidade necessária nos inícios da atividade dos historiadores
dos Annales, em 1929, tinha cores bem vivas e transluzia à distância, sobretudo quando era bem
agitada nos manifestos da Escola dos Annales.
Esta História problematizada é hoje, no século XXI, lugar-comum para qualquer historiador
formado historiador, isto é, formalmente bacharelado em curso superior universitário, e já era
lugar quase comum na ocasião da retomada desta tremulante bandeira por LucienFebvre em 1946,
assim como o fora ao menos para um setor importante da historiografia do século XIX anterior à
própria pré-história dos Annales. Todavia, mesmo quando a História Factual já estaria longe de ser
dominante, percebe-se a força deste conceito de guerra, o mais comovente de todos os
instrumentos programáticos empunhados pelos annalistas. Mas é as gerações dos Annales que
vieram a refletir sobre questões relevantes para o avanço historiográfico e ampliando as
possibilidades de análise históricas pensando uma história total ou global. 58
Vale destacar também que a possibilidade de ultrapassar os estreitos limites dos fatos
políticos também ensejou uma ampliação no universo de fontes dos historiadores, de modo que
aqui interagem dois dos itens programáticos da Escola dos Annales: a História Problema e a
ampliação de fontes históricas. A expansão da tipologia de fontes históricas – a multiplicação das
possibilidades de fontes abertas aos historiadores – constituiu-se por isso mesmo em mais uma
das notas importantes do acorde programático dos Annales. Doravante, seria preciso afirmar com
convicção cada vez mais fortalecida que não mais deveriam interessar aos historiadores apenas as
fontes de arquivo e as crônicas que dizem respeito à História Política tradicional. Qualquer vestígio
ou qualquer evidência – dos objetos da cultura material às obras literárias, das séries de dados
estatísticos às imagens iconográficas, das canções aos testamentos, dos diários de pessoas
anônimas aos jornais – podia ser agora legitimamente utilizado pelos historiadores. A revolução
documental e a nova definição de fonte histórica constituíram uma das grandes novidades trazidas
pelas primeiras gerações da Escola dos Annales. Décadas depois, esta mesma expansão
documental será evocada pelos historiadores da terceira geração do movimento, substituindo a
história baseada em textos e documentos escritos, por uma história fundamentada numa ampla
variedade de documentos escritos de todos os tipos, documentos iconográficos, resultados de
escavações arqueológicas, documentos orais, etc. Uma estatística, uma curva de preço, uma

58
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 102-130.

História. 43
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fotografia, um filme, ou, quando se trata de um passado mais longínquo, vestígios de pólen fóssil,
uma ferramenta, um ex-voto são documentos de primeira ordem para a História Nova. 59
Outro aspecto importante é acerca da transformação da noção de espaço. O espaço, é
importante dizer, não será tratado pela nova historiografia apenas como lugar no interior do qual
se acomoda o homem. Tal como Marc Bloch demonstrou em sua exemplar obra sobre os
Caracteres originais da história rural francesa (1931), o espaço também é construído pelo próprio
homem, a ação humana está constantemente remodelando a paisagem, dando ao espaço a face
humana que têm os campos de cultivo, e neles imprimindo sob forma visível sua própria história.
Daí que o espaço natural, nas mãos dos novos historiadores, pode se tornar fonte histórica com a
mesma legitimidade que um grande conjunto documental.
Obviamente que, como não poderia deixar de ser, esta história que enxerga seus objetos
num ponto, em uma linha, na profundidade – em outras palavras, esta história que percebe seus
objetos concretamente situados no espaço e impregnados de uma realidade que emana das três
dimensões do mundo físico, mesmo que seja preciso percebê-las por meio de fontes indiretas –,
tampouco não poderia deixar de lidar criativamente com a quarta dimensão: o tempo. Talvez
algumas das contribuições mais criativas dos Annales tenham sido as experimentações em torno
das novas formas de lidar com o tempo, e este item certamente faz parte de seu programa. O
mestre nestas realizações, certamente, foi o líder da segunda geração dos Annales: Fernand
Braudel. Com ele concretiza-se um item programático de vital importância para a Escola dos
Annales, que é a proposta de uma maior criatividade em relação ao tempo histórico. 60
Fernand Braudel, autor do estudo sobre o Mediterrâneo e Felipe II, no qual é possível
encontrar três formas de temporalidade diferentes: a primeira é referente a uma história quase
sem tempo (homem e ambiente); já a segunda uma história das estruturas civilizacionais dos
territórios banhados pelo mediterrâneo (tempo lento); a terceira uma história dos acontecimentos
(tempo curto). Em tal obra enfatizou a mudança das estruturas, desejando alcançar o
entendimento dos fatos em sua totalidade. Produziu um trabalho voltado para a longa duração,
característica marcante da segunda geração dos Annales.61
A linha de pesquisa de Braudel era baseada em tempos heterogêneos (temporalidades
diferentes), sendo ela a longa duração, o tempo conjuntural e o factual. O factual estava sujeito à
longa duração. Braudel teve considerável influência da Antropologia e criou uma entidade
interdisciplinar, a Maison desSciences de I’Homme (Casa das Ciências Humanas), onde passou a ter

59
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 140-141.
60
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 150-151.
61
REIS, 2012.

História. 44
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contato com intelectuais, como Pierre Bourdieu e Claude Lévi-Strauss. Tal contato com a
Antropologia pôde promover, por parte de Braudel, um trabalho voltado para o estruturalismo.
Afirmando a crise das Ciências do Homem, que, segundo o mesmo, são meras acumulações
de novos conhecimentos e estão esmagadas sob seus próprios progressos, pregava a completa
união de tais ciências, mas destacando a utilidade da história em relação às outras. Para Braudel, a
história estaria no centro de todas as ciências sociais e, por isso, era mais importante, sendo capaz
de tratar do passado e da atualidade, sendo esta, para Braudel, a fórmula da história indispensável
a todas às ciências sociais, pois englobava as múltiplas temporalidades. 62
Para Braudel, o tempo curto representava o tempo dos eventos. Fala do evento como algo
explosivo, que enche a consciência das pessoas, mas que, ao mesmo tempo, não dura. A visão de
Braudel com relação ao tempo curto era contrária à dos filósofos, que, baseados em uma série de
significações, atribuem ao evento um tempo muito maior do que sua verdadeira duração. Falam
do evento como sendo apenas uma parte que se anexa, que se liga – ou não – a toda uma série de
acontecimentos.
Para o historiador, o evento significa o tempo curto, afirmando que tal tempo existe em
vários âmbitos: social, econômico, religioso, geográfico, entre outros. Foi esta a principal
característica da história política (ocorrencial, factual, baseada praticamente só no documento) do
século XIX, que foi criticada não só pela primeira geração dos Annales, mas também por Braudel na
segunda geração. Ele enfatiza assim a passagem do foco da produção da história política para a
produção da história econômica e social, permitindo estas últimas, conforme sua visão, uma
análise muito mais ampla do que a primeira.63
Temos a forma de abordagem histórica recitativa estrutural. Assim chegamos ao Tempo
Lento (longa duração). Passa-se, assim, à análise da mudança pelo tempo lento no econômico e
social, dando grande ênfase ao aspecto da quantificação. Tal aspecto ajudará na elaboração de
análises de temporalidades dentro da própria história econômica, buscando aplicação social,
como, por exemplo, preços que sobem em um determinado período e que baixam em outro.
Como o aspecto mais estrutural para os historiadores, segundo Braudel, é algo que se
veicula muito lentamente (ao contrário do pensamento de Lévi-Strauss, que considera as
estruturas invariáveis; por isso Braudel, mesmo utilizando-se de tal modelo, o estrutural, aplica a
temporalidade da história, dizendo que, mesmo que muito lentamente, as estruturas se
modificam), tais aspectos são as prisões de longa duração, porque são onde o homem está

62
REIS, 2012.
63
REIS, 2012.

História. 45
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enraizado. Elementos estáveis como os quadros mentais e mais ainda a coerção geográfica. Pode-
se perceber as durações da história propostas por Braudel, mas não separadas e, sim, solidárias. 64
Braudel chega a falar das diferenças entre o tempo do historiador e o tempo do sociólogo.
Para ele, o historiador passaria do tempo curto ao longo e depois ao muito longo, proporcionando
uma análise aprofundada, dentro daquilo que Braudel chama de história inconsciente (que
ultrapassa a simples superficialidade dos eventos). Já o sociólogo estaria mais voltado apenas para
análise particular, não dando ênfase ao todo.
Sendo assim, segundo o pensamento Braudeliano, a história lidaria muito melhor com a
temporalidade do que a sociologia e as demais ciências sociais, proporcionado uma análise
completa e aprofundada. Por isso, ela seria superior às outras ciências. Isso se torna mais evidente
a partir dos diálogos com Lévi-Strauss. Há, deste modo, a reaproximação e, ao mesmo tempo, a
disputa e críticas entre a história e as outras ciências sociais no contexto pós-guerra. São
justamente estes diálogos e críticas que levarão Braudel a uma abordagem mais estrutural, típica
da antropologia. Isso proporcionou a formulação de uma linha de pensamento dos Annales na 2ª
geração: noção precisa da multiplicidade do tempo e grande valorização da longa duração. 65
Ademais, vale dizer que a consciência da relação entre o presente e o passado é
precisamente outro dos itens programáticos importantes para a Escola dos Annales. Marc Bloch
lembrará que esta interação existe em duas vias: “Compreender o presente pelo passado”, mas
também “compreender o passado pelo presente”, constituem as duas vias desta complexa relação.
Marc Bloch também elabora uma definição de História que se tornou clássica. Em oposição à
antiga definição de que “a História é o estudo do passado humano”, Bloch propunha a definição de
que “a História é a ciência dos homens no tempo”. Dizer isso significa que não importa,
rigorosamente, se o historiador estuda esta ou aquela época do passado, ou se estuda mesmo o
presente, disputando um território com os sociólogos e antropólogos. O que faria de um
historiador um historiador seria o fato de que ele estuda os homens imerso na temporalidade,
vivendo o tempo, percebendo o tempo, produzindo o tempo. O mesmo historiador que estuda o
passado, de acordo com esta perspectiva, poderia estudar o tempo presente – que, de fato, estaria
em breve por se converter, em um futuro não muito distante, em mais uma modalidade histórica:
a “História do Tempo Presente”. Por fim, uma última implicação do aforismo blochiano: nesta
ciência dos homens no tempo, as temporalidades poderiam dialogar a partir da mediação
historiador.
Ora, a História que traz a consciência de que o passado é diferente do presente é bem
distinta da História na qual o presente pretende aprender do passado uma velha lição.

64
REIS, 2012.
65
REIS, 2012.

História. 46
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Febvreparece dar seu recado a respeito da velha ideia da história “mestra da vida”. A História tem
algo a nos ensinar, mas não de maneira linear, como uma fórmula que pode ser sempre
empregada, uma vez aprendida através de ciclos que sempre se repetem. A História não se repete,
diz Febvre. 66
Podemos concluir esta lembrança de que também as ausências constituem um programa –
tanto as proibições escolares como aquilo que não é mencionado no programa ou nos manifestos
e que deixam aos membros do grupo um espaço livre para se movimentar nesta escola. 67

66
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, pp. 182-186.
67
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2012, p. 205.

História. 47
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10. ESCOLA INGLESA DO MARXISMO


Vamos dar um outro exemplo de escola historiográfica, na história da historiografia
europeia. Este exemplo será oportuno, pois contrasta com o exemplo do movimento dos Annales
em pelo menos um aspecto, pois enquanto os historiadores ligados aos Annales possuíam as mais
diversificadas tendências teóricas, e desenvolviam variadas orientações metodológicas em seus
trabalhos, os historiadores ligados à Escola Britânica do Marxismo possuíam a singularidade de se
autodefinirem todos no interior de um único paradigma: o Materialismo Histórico.
Como dissemos, existem escolas que podem reunir sob a sua identidade historiadores
pertencentes aos vários paradigmas teóricos, mas também podem existir escolas que se localizam
no interior de um único paradigma ou orientação teórica. No âmbito do paradigma do
Materialismo Histórico, por exemplo, não são raras as escolas mais específicas de historiadores.
A Escola Britânica do Marxismo, também chamada de "Escola Inglesa", reuniu, na segunda
metade do século XX, historiadores de orientação relacionada ao materialismo histórico. Todos
eles viviam em países ligados ao Reino Unido. Muitos viviam na Inglaterra, tal como Eric
Hobsbawm (1917-2012), Edward Thompson (1924-1993) e Christopher Hill (1912-2003). E havia
outros, como o australiano Gordon Childe (1892-1957), que viviam em outros países ligados à
comunidade britânica.
Um outro aspecto que nos habilita a nos referirmos a este grupo de historiadores como uma
escola é o fato de que eles desenvolviam trabalhos coletivos, e tinham um veículo importante para
a divulgação de trabalhos dos historiadores do grupo, que era a revista inglesa "Past&Present". Já
fizemos notar que as escolas históricas, com frequência, possuem uma revista sob sua
administração, através da qual podem produzir ou motivar a produção de uma Historiografia
correspondente ao seu programa de ação e pensamento.
Todos os historiadores da "Escola Britânica" relacionavam-se a um projeto em comum de
renovação do Materialismo Histórico, cuja principal característica era a valorização da "Cultura",
não mais postulada como mero epifenômeno da "Economia". Destarte, cada um destes
historiadores continuava trabalhando com os pressupostos fundamentais do Materialismo
Histórico: Dialética, Materialismo, Historicidade Radical. Utilizavam também, como todos os
historiadores materialistas históricos, conceitos básicos para este paradigma: "modo de
produção", "luta de classes", "classe social", "revolução". A questão é que estes historiadores
trabalham de modo mais flexível com estes conceitos, evitando esquematismos muito simples e
procurando apreender uma totalidade mais complexa da vida social.

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A renovação dos estudos culturais trazida pela Escola Inglesa tem sido fundamental para
repensar o Materialismo Histórico nos dias de hoje – particularmente para flexibilizar o já
desgastado esquema de uma sociedade que ainda era vista, por muitos marxistas, a partir de uma
cisão entre infraestrutura e superestrutura. Com a Escola Inglesa do Marxismo, o mundo da
Cultura passa a ser examinado como parte integrante do “modo de produção”, e não como um
mero reflexo da infraestrutura econômica de uma sociedade. Existiria, de acordo com esta
perspectiva, uma interação e uma retroalimentação contínua entre a Cultura e as estruturas
econômico-sociais de uma Sociedade, e a partir deste pressuposto desaparecem aqueles
esquemas simplificados que preconizavam um determinismo linear e que, rigorosamente falando,
também já havia sido criticado por Antonio Gramsci, outro historiador marxista especialmente
preocupado com o campo cultural. Será oportuno citar uma memorável passagem de Thompson:
“Uma divisão teórica arbitrária como esta, de uma base econômica e uma superestrutura cultural,
pode ser feita na cabeça e bem pode assentar-se no papel durante alguns momentos. Mas não
passa de uma ideia na cabeça. Quando procedemos ao exame de uma sociedade real, seja qual for,
rapidamente descobrimos (ou pelo menos deveríamos descobrir) a inutilidade de se esboçar a
respeito de uma divisão assim”.68
Thompson rejeita, inclusive, a habitual prioridade interpretativa atribuída ao “Econômico”.
Se algures já se disse que “sem produção não há história”, o historiador inglês acrescenta, com
alguma ironia: “sem cultura, não há produção”. Por vezes, não seria mesmo possível separar
economia e cultura com relação a certos processos ou fatos históricos, mesmo já referentes ao
período moderno.
O exemplo mais brilhante desta impossibilidade de separar economia e cultura no estudo de
alguns processos históricos específico foi dado pelo próprio Edward Thompson em suas pesquisas
sobre as revoltas populares na Inglaterra no século XVIII, que foram expressas em um texto escrito
em 1971 com o título A Economia Moral da multidão inglesa do século XVIII. Thompson demonstra
que neste contexto social era em nome dos princípios morais que se faziam as queixas, confiscos
de grãos e pães, e inúmeros outros processos pertinentes ao mundo econômico e também à
Política. A Economia, neste contexto social e relativamente a estes diversos processos, não era,
portanto, separável de certas concepções morais que circulavam na sociedade em questão.
Economia e Moral, e, portanto, Economia e Cultura, não eram separáveis. Separá-las
historiograficamente seria equivalente a perder a possibilidade de compreender aqueles processos
históricos. Em vista disto, Thompson introduz um novo conceito no âmbito das reflexões
historiográficas: o de “Economia Moral” (na verdade, conforme indica Thompson, a expressão já
havia sido empregada na própria Inglaterra do século XVIII, em uma polêmica de BronterreO’Brien
contra os autores vinculados à Economia Política). Posteriormente, o conceito foi incorporado às

68
THOMPSON, 2001, p.258.

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análises historiográficas e passou a ser utilizados por historiadores para a análise de contextos
diversos.
Outro historiador notável da Escola Britânica do Marxismo foi Christopher Hill, que trouxe
grande impacto aos meios teóricos ligados ao Materialismo Histórico ao propor uma leitura inédita
da Revolução Inglesa de 1640, com o livro O Mundo de Ponta-Cabeça. Nesta obra, Christopher Hill
propõe uma hipótese inusitada sobre aquele processo histórico: a de que a Revolução Inglesa não
foi um processo único, unilinear, homogêneo, ou sequer uma única revolução. Na verdade, teriam
ocorrido, durante os acontecimentos que ficaram conhecidos como Revolução Inglesa, duas
revoluções paralelas, tensionando-se uma contra a outra. A revolução que representava os
interesses da burguesia acabou por prevalecer e por apagar a outra, a revolução dos grupos
radicais, determinando consequentemente os rumos do processo revolucionário inglês a partir do
triunfo da ética protestante e dos interesses burgueses. Contudo, teria existido uma outra
revolução, radical – representada por grupos como os diggers, ranters, levellers, quacres – esta sim
propondo uma radical reviravolta da sociedade. É este olhar para uma história esquecida, apagada
por uma historiografia que trouxe os vencedores para o centro do palco, o que Christopher Hill
procura trazer. Aqui temos outro aspecto importante da escola Britânica do Marxismo, que é uma
especial atenção ao que Thompson chamou de uma “História Vista de Baixo”.
O terceiro grande nome da Escola Britânica do Marxismo é bem conhecido no Brasil: Eric
Hobsbawm. Com sua série de livros intitulados "eras" – a Era das Revoluções, a Era dos Impérios e
a Era dos Extremos – Hobsbawm tornou-se de grande sucesso no meio editorial. Tento alcançado
uma grande longevidade, viveu todo o século XX, o que resultou em outro livro, intitulado Tempos
Interessantes - Uma Vida no século XX, que permite mostrar um historiador que assiste à passagem
de sucessivas eras neste século no qual o tempo parece ter se comprimido tal a velocidade das
transformações políticas, tecnológicas e ambientais nele implicadas. Hobsbawm também traz a
marca da Escola Britânica, escrevendo ensaios teóricos Sobre a História (1998), e também
revelando sua faceta de historiador cultural na série de críticas sobre o Jazz que publicou durante
anos, e que resultou finalmente no livro intitulado História Social do Jazz.
Conforme podemos ver, sem abrir mão dos elementos essenciais do paradigma do
Materialismo Histórico, os historiadores da Escola Britânica o renovam, rediscutindo seus
conceitos, e trazendo um novo olhar sobre a Cultura e sobre a "História Vista de Baixo".
Constituem um exemplo oportuno de escola que se desenvolve no interior de um único
paradigma.69

69
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2011.

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11. ESCOLA DE FRANKFURT


A Escola de Frankfurt nasceu no ano de 1924, em uma quinta etapa atravessada pela
Filosofia Alemã, depois do domínio de Kant e Hegel em um primeiro momento; de Karl Marx e
Friedrich Engels em seguida; posteriormente de Nietzsche; e finalmente, já no século XX, após a
eclosão dos pensamentos entrelaçados do existencialismo de Heidegger, da fenomenologia de
Husserl e da ontologia de Hartmann. A produção filosófica germânica permaneceu viva no
Ocidente, com todo vigor, de 1850 a 1950, quando então não mais resistiu, depois de enfrentar
duas Guerras Mundiais.
A Escola de Frankfurt reuniu em torno de si um círculo de filósofos e cientistas sociais de
mentalidade marxista, que se uniram no fim da década de 1920. Estes intelectuais cultivavam a
conhecida Teoria Crítica da Sociedade. Seus principais integrantes eram Theodor Adorno, Max
Horkheimer, Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Leo Löwenthal, Erich Fromm, Jürgen Habermas,
entre outros. Esta corrente foi a responsável pela disseminação de expressões como “indústria
cultural” e “cultura de massa”.
A Escola de Frankfurt foi praticamente o último expoente, o derradeiro suspiro da Filosofia
Alemã em seu período áureo. Ela foi criada por Félix Weil, financiador do grupo, Max Horkheimer,
Theodor Adorno e Herbert Marcuse, que a princípio a administraram conjuntamente. Ernst Bloch e
o psicólogo Erich Fromm acompanhavam à distância o despertar desta linha filosófica, que vem à
luz justamente em um momento de agitação política e econômica vivido pela Alemanha, no auge
da famosa República de Weimar. Seus membros seriam partícipes e observadores das principais
mutações que convulsionariam a Europa durante a Primeira Guerra Mundial, seguida por outros
movimentos subversivos, dos quais ninguém sairia impune.
Esta Escola tinha uma sede, o Instituto para Pesquisas Sociais; um mestre, Horkheimer,
substituído depois por Adorno; uma doutrina que orientava suas atitudes; um modelo por eles
adotado, baseado na união do materialismo marxista com a psicanálise, criada por Freud; uma
receptividade constante ao pensamento de outros filósofos, tais como Schopenhauer e Nietzsche;
e uma revista como porta-voz, publicada periodicamente, na qual eram impressos os textos
produzidos por seus adeptos e colaboradores. O programa por eles adotado passou a ser
conhecido como Teoria Crítica.
Os integrantes da Escola assistiram, surpresos e assustados, a deflagração da Revolução
Russa, em 1917, o aparecimento do regime fascista, e a ascendente implantação do Nazismo na
Alemanha, que culminou com um exílio forçado deste grupo, composto em grande parte por
judeus, a partir de 1933. Esta mudança marcou definitivamente cada um deles, principalmente
depois do suicídio de Walter Benjamin, em 1940, quando provavelmente tentava atravessar os
Pireneus, temeroso de ser capturado pelos nazistas.

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Eles se tornam nômades, viajando de Genebra para Paris, então para os EUA, até se fixarem
na Universidade de Columbia, em Nova York. A primeira obra produzida pelo grupo foi
denominada Estudos sobre Autoridade e Família, gerada em Paris, na qual eles questionam a real
vocação da classe operária para a revolução social. Assim, eles naturalmente se distanciam dos
trabalhadores, atitude que se concretiza com o lançamento do livro Dialética do Esclarecimento,
lançado em 1947, em Amsterdã, que já praticamente elimina do ideário destes filósofos a
expressão “marxismo”. Erich Fromm e Marcuse dão uma guinada teórica ao juntar os conceitos da
Teoria Crítica aos ideais psicanalíticos. Marcuse, que optou por ficar nos Estados Unidos depois da
volta do Instituto para o solo alemão, em 1948, foi um dos integrantes da Escola que mais
receptividade encontrou para sua produção intelectual, uma vez que inspirou os movimentos
pacifistas e as insurreições estudantis, fundamentais em 1968 e 1969, os quais alcançaram o auge
no chamado Maio de 68.
Por outro lado, Adorno, até hoje tido como um dos filósofos mais importantes da Escola de
Frankfurt, prosseguiu sua missão de transformação dialética da racionalidade do Ocidente, na sua
obra Dialética Negativa. Sua morte marca a passagem para o que alguns estudiosos consideram a
segunda etapa da Escola, que encontra seu principal líder em Jürgen Habermas, ex-assessor de
Adorno e, posteriormente, seu crítico mais ardoroso. 70
O trabalho da Escola de Frankfurt pode ser completamente compreendido sem igualmente
entenderem-se as intenções e os objetivos da teoria crítica. Inicialmente delineada por Max
Horkheimer no seu Teoria Tradicional e Teoria Crítica, de 1937, a teoria crítica não pode ser
definida como uma autoconsciência social crítica que é o objetivada na mudança e na
emancipação através do esclarecimento, e não se liga dogmaticamente aos seus próprios
pressupostos doutrinais.
Horkheimer a opôs à "teoria tradicional", que se refere à teoria no modo positivista,
cientificista, ou puramente observacional, isto é, do qual derivam generalizações ou leis sobre
diferentes aspectos do mundo. Baseando-se no pensamento sociológico de Max Weber,
Horkheimer argumentou que as ciências sociais são diferentes das ciências naturais, visto que
generalizações não podem ser feitas facilmente supostas por experiências, porque o entendimento
de uma experiência social em si é sempre moldada por ideias que estão nos pesquisadores. O
pesquisador não percebe que é capturado em um contexto histórico cujas ideologias moldam o
pensamento; portanto, a teoria estaria em conformidade com as ideias na mente do pesquisador
mais do que na própria experiência. A ideia é que os fatos que os nossos sentidos apresentam para
nós são socialmente efetuados de duas maneiras: através do caráter histórico do objeto percebido
e através do caráter histórico do órgão que percebe. Ambos não são simplesmente naturais, ao

70
SANTANA, 2019.

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passo que eles são moldados pela atividade humana e também pelas percepções individuais deles
mesmos como receptivos e passivos no ato da percepção.
Para Horkheimer, abordagens para o entendimento nas ciências sociais não podem
simplesmente imitar aquelas das ciências naturais. Apesar de várias abordagens teóricas tornarem-
se próximas de romper as restrições ideológicas que as restringem, como o positivismo,
pragmatismo, neo-Kantianismo e fenomenologia, Horkheimer argumentaria que elas falharam,
porque todas estavam sujeitas a um prejuízo "lógico-matemático" que separava a atividade teórica
da vida real (significando que todas aquelas escolas tentaram encontrar uma lógica que sempre
permaneceria verdadeira, independentemente de consideração pelas atividades humanas
correntes). De acordo com Horkheimer, a resposta apropriada para este dilema é o
desenvolvimento de uma teoria crítica.
O problema, Horkheimer argumentou, é epistemológico: nós não deveríamos meramente
reconsiderar o cientista, mas o conhecimento individual em geral. Diferente do marxismo
ortodoxo, que meramente aplica um "padrão" não original a tanto crítica quanto ação, a Teoria
Crítica procura ser uma autocrítica e rejeita quaisquer pretensões de uma verdade absoluta. A
teoria crítica defende a primazia nem da matéria (materialismo) nem da consciência (idealismo),
argumentando que ambas as epistemologias distorcem a realidade para o benefício, afinal, de
algum grupo pequeno. O que a teoria crítica tenta fazer é colocar ela mesma fora de estruturas
filosóficas e do confinamento das estruturas existentes. Entretanto, como um modo de pensar e
"recuperar" o autoconhecimento da humanidade, a teoria crítica frequentemente se inspira no
marxismo pelos seus métodos e ferramentas.
Horkheimer sustentou que a teoria crítica deveria ser direcionada para a totalidade da
sociedade na sua especificidade história, assim como ela deveria melhorar o entendimento da
sociedade integrando todas as maiores ciências sociais, incluindo a geografia, economia, história,
ciência política, antropologia e psicologia. Enquanto a teoria crítica deve em todas as vezes ser
autocrítica, Horkheimer insistiu que uma teoria é somente crítica se é explicativa. A Teoria Crítica
deve, portanto, combinar pensamento prático e normativo para que possa explicar o que está
errado com a realidade social corrente, identificar atores para mudá-la e fornecer normas claras
para o criticismo e finalidades práticas para o futuro. Visto que a teoria tradicional pode apenas
refletir e explicar a realidade como presentemente é, o propósito da teoria crítica é mudá-la; nas
palavras de Horkheimer, o objetivo da teoria crítica é a emancipação dos seres humanos das
circunstâncias que os escravizam.
Os teóricos da Escola de Frankfurt foram explicitamente associados com a filosofia crítica de
Immanuel Kant, na qual o termo crítica significou reflexão filosófica nos limites de reivindicações
feitas por certos tipos de conhecimento e uma conexão direta entre crítica e a ênfase na
autonomia moral – como oposta às tradicionais deterministas e estáticas teorias de ação humana.

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Em um contexto intelectual definido pelos dogmáticos positivismo e cientificismo em uma mão e o


dogmático "socialismo científico" em outra, teóricos críticos pretenderam reabilitar as ideias de
Marx através de uma abordagem filosoficamente crítica.
Já que pensadores ortodoxos marxista-leninistas e social-democratas viam Marx como um
novo tipo de ciência positiva, os teóricos da Escola de Frankfurt, como Horkheimer,
preferencialmente basearam o seu trabalho na base epistemológica do trabalho de Karl Marx, que
apresentava ele mesmo como crítica, como em O Capital. Eles, assim, enfatizaram que Marx estava
tentando criar um novo tipo de análise crítica orientada em direção à unidade de teoria e prática
revolucionária mais do que um novo tipo de ciência positiva. Crítica, no senso marxista, significa
tomar a ideologia de uma sociedade – a crença na liberdade individual ou no livre mercado sob o
capitalismo – e criticá-la comparando-a com a realidade social daquela mesma sociedade –
desigualdade social e exploração. A metodologia na qual os teóricos da Escola de Frankfurt
fundamentaram essa crítica veio a ser o que foi antes sendo estabelecido por Hegel e Marx,
nomeadamente o método dialético.
A Escola de Frankfurt também tentou reformular a dialética como um método concreto. O
uso de tal método dialético pode ser devido à filosofia de Hegel, quem concebeu a dialética como
a tendência de uma noção para atravessar pela sua própria negação como o resultado do conflito
entre os seus aspectos contraditórios inerentes. Em oposição aos modos anteriores de
pensamento, os quais viam coisas em abstração, cada uma por si mesma e como pensamento
dotado com propriedades fixas, a dialética hegeliana tem a habilidade de considerar ideias
conforme os seus movimentos e mudança no tempo, assim como consoante suas inter-relações e
interações.
A História, de acordo com Hegel, prossegue e desenvolve-se de uma maneira dialética: o
presente incorpora a abolição racional, ou "síntese", de contradições passadas. A História pode
assim ser vista como um processo inteligível que é mover-se em direção a uma específica condição
– a percepção racional de liberdade humana. Entretanto, considerações sobre o futuro não eram
de interesse de Hegel, para quem a filosofia não pode ser prescritiva porque ela é entendida
apenas depois do ocorrido. O estudo da história é assim limitado à descrição do passado e de
realidades presentes. Por isso, para Hegel e seus sucessores, dialéticas inevitavelmente levam à
aprovação do status quo.
Isto foi ferozmente criticado por Marx e pelos “jovens hegelianos”, que afirmaram que
Hegel havia ido muito longe ao defender sua concepção abstrata de “Razão absoluta” e havia
falhado em observar as “reais” condições de vida da classe trabalhadora. Invertendo a dialética
idealista de Hegel, Marx explicou a sua própria teoria de materialismo dialético, argumentando
que não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social
que determina as suas consciências. A teoria de Marx seguiu uma lei de história e espaço

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materialistas, em que o desenvolvimento das forças produtivas é visto como o motivo primário
para deflorar uma mudança histórica, e de acordo com qual as contradições material e social
inerentes ao capitalismo irão inevitavelmente levar a sua negação, desse modo substituindo o
capitalismo por uma nova forma racional de sociedade: o comunismo.
Marx assim contou vastamente com uma forma de análise dialética. Esse método, para
saber a verdade descobrindo as contradições em ideias presentemente predominantes e, por
extensão, nas relações sociais às quais elas estão ligadas, expõe a luta básica entre forças opostas.
Para Marx, é apenas tornando-se consciente da dialética de tais forças opostas, em uma luta pelo
poder, que os indivíduos podem se libertar e mudar a ordem social existente.
De outro lado, os teóricos da Escola de Frankfurt rapidamente vieram a perceber que um
método dialético poderia apenas ser adotado se pudesse ser aplicado a si mesmo – o que é dizer,
supondo que eles adotassem um método autocorretivo – um método dialético que lhes permitiria
corrigir falsas interpretações dialéticas anteriores. Do mesmo modo, a teoria crítica rejeitou os
dogmáticos historicismo e materialismo do marxismo ortodoxo. De fato, as tensões materiais e
lutas de classes das quais Marx falou não eram mais vistas pelos teóricos da Escola de Frankfurt
como tendo o mesmo potencial revolucionário dentro das sociedades ocidentais contemporâneas
– uma observação que indicou que as interpretações dialéticas e as previsões de Marx estavam
incompletas ou incorretas.
Contrário à práxis ortodoxa marxista, que somente procura implementar uma imutável e
estrita ideia de "comunismo" na prática, os teóricos críticos tomaram que a práxis e a teoria,
seguindo o método dialético, deveriam ser interdependentes e deveriam influenciar mutuamente
uma a outra. Quando Marx expôs nas suas Teses de Feuerbach que filósofos têm apenas
interpretado o mundo de muitos modos, dizendo que o ponto é mudá-lo, a sua ideia real era que a
única validade da filosofia era em como ela informa a ação. Teóricos da Escola de Frankfurt
corrigiriam isso afirmando que quando a ação falha, então o orientador da teoria deve ser revisto.
Em suma, ao pensamento filosófico socialista tem de ser dada a habilidade de criticar a si mesmo e
"subjugar" seus próprios erros. Enquanto a teoria deve participar da práxis, a práxis deve também
ter uma chance de participar da teoria.
A Escola de Frankfurt também foi alvo de diversas críticas, dentre elas está a crítica do
intelectual italiano Umberto Eco. Ele teceu diversas críticas aos frankfurtianos, entre elas o
anacronismo e a posição elitista de seus teóricos, a defesa da cultura erudita e a rejeição da cultura
de massa. No livro Apocalípticos e integrados, ele os classifica como “apocalípticos”, adjetivo usado
largamente na crítica à Escola de Frankfurt. Segundo o autor, eles seriam responsáveis por esboçar
teorias sobre a decadência, enquanto aos integrados, pela falta de teorização, só lhes restaria
produzir e afirma: “O Apocalipse é uma obsessão do dissentir, a integração é a realidade concreta
dos que não dissentem. Caberia aos apocalípticos o papel de consolar o leitor, já que, em meio à

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catástrofe, se elevariam os “super-homens”, ou seja, aqueles acima da média, que olhariam para o
mundo com desconfiança”.
Para Umberto Eco, essa atitude seria um convite à passividade. O problema estaria em
pensar a cultura de massa como algo bom ou mau. O verdadeiro problema reside em aceitar que
se vive em uma sociedade industrial na qual os meios de massa são uma realidade. A partir de tal
premissa, o teórico questiona qual seria então o modo pelo qual as massas medias poderiam servir
para transmitir valores culturais.
Durante os anos 1980, os socialistas antiautoritários no Reino Unido e Nova Zelândia
também criticaram a visão rígida e determinista sobre a cultura popular implantada dentro das
teorias da Escola de Frankfurt a respeito da cultura capitalista, que parecia excluir qualquer papel
pre-figurativo para a crítica social dentro desse trabalho. Recentes críticas da Escola de Frankfurt
feitas pelo libertário Instituto Cato focadas na afirmação de que a cultura tem crescido mais
sofisticada e diversificada como consequência da liberdade econômica e da disponibilidade dos
nichos culturais para a mídia de massa.

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12. MICRO-HISTÓRIA
A Micro-História, como o próprio nome sugere, é um gênero da historiografia que reduz a
escala de observação de seus objetos na pesquisa histórica. Ora, vale lembrar que existem várias
formas de se escrever história. A ciência História é definida por várias metodologias que resultam
em técnicas de pesquisas diferenciadas. A forma tradicional de se escrever História fazia uso de
uma abordagem narrativa geral, identificando estruturas que se alteravam em eventos de longa
duração. Mas o desenvolvimento da ciência permitiu o florescimento de novas metodologias que
enriqueceram o campo.
Entre 1981 e 1988 surgiu uma coleção, na Itália, organizada pelos historiadores Carlo
Ginzburg e Giovanni Levi e intitulada de Microstorie. A coleção fez muito sucesso apresentando sua
forma inovadora de se abordar o objeto de pesquisa e passou a influenciar historiadores em várias
partes do mundo com as novas metodologias.
Como dito, a Micro-História é uma forma de se pesquisar e escrever História na qual a
escala de observação é reduzida. Sem deixar de levar em consideração as estruturas estabelecidas
pela História Geral, a Micro-História se foca em objetos bem específicos para apresentar novas
realidades. A proposta é que o historiador desenvolva uma delimitação temática extremamente
específica em questão de temporalidade e de espaço para conseguir observar realidades que não
são retratadas pela História Geral.
A Micro-História oferece grandes serviços à História Geral, já permite revelar fatos e
realidades até então desconhecidas. Assim, a Micro-História aborda o cotidiano de comunidades
determinadas ou apresenta biografias que complementem o contexto geral, mesmo que os
indivíduos destacados fossem figuras anônimas. Na verdade, é isso que permite esclarecer as
realidades conjunturais existentes dentro das estruturas já conhecidas.
A diferença da Micro-História para a História Geral é notória também quando é escrita.
Enquanto esta se desenvolveu como um gênero mais ligado à narrativa histórica, a Micro-História
se dedica a uma profunda exploração das fontes, utilizando os artifícios da narrativa, as vezes até
retórica, mas também da descrição etnográfica. Ainda assim, a Micro-História demorou a se tornar
conhecida no mundo. Durante muito tempo permaneceu como um método muito característico e
restrito aos italianos.
A relação da Micro-História com a História Social se demonstrou muito frutífera. Uma vez
que esta procura dar voz às camadas mais baixas da sociedade, a Micro-História contribui
fornecendo elementos enriquecedores para permitir que os excluídos da História Geral se
expressem.

História. 57
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A Micro-História forneceu um grande benefício também para a ciência História como um


todo, já que incluiu no trabalho dos historiadores uma gama imensa de fontes de pesquisa até
então desconsideradas. O trabalho do historiador se enriqueceu muito, mostrando-se capaz de
reconstituir com melhores detalhes o cotidiano do passado.71
Por ser um campo historiográfico muito recente, ainda hoje gera muitas polêmicas com
relação às suas possibilidades de definição. Uma questão complicadora é que a Micro-História
começou a desabrochar com um grupo muito específico de historiadores italianos, que possui, até
os dias de hoje, publicação própria (os QuaderniStorici), e por isto não é raro que se confunda a
Micro-História – enquanto nova possibilidade de abordagem historiográfica – com este grupo. O
olhar micro-historiográfico, deve-se dizer, pode ser conectado aos mais distintos aportes teóricos,
e é assim que ele tem aparecido inclusive na historiografia brasileira das últimas décadas.
Outra confusão sem nenhum fundamento que algumas vezes se faz surge quando se
relaciona equivocadamente a História Regional e a Micro-História, apesar de estes serem campos
radicalmente distintos no que concerne às suas motivações fundadoras. Quando um historiador se
propõe a trabalhar dentro do âmbito da História Regional, ele mostra-se interessado em estudar
diretamente uma região específica (ou, melhor dizendo, uma determinada espacialidade). O
espaço regional, é importante destacar, não estará necessariamente associado a um recorte
administrativo ou geográfico, podendo se referir a um recorte antropológico, a um recorte cultural
ou a qualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com o problema histórico que irá
examinar. Mas, de qualquer modo, o interesse central do historiador regional é estudar
especificamente este espaço, ou as relações sociais que se estabelecem dentro deste espaço,
mesmo que eventualmente pretenda compará-lo com outros espaços similares ou examinar em
algum momento de sua pesquisa a inserção do espaço regional em um universo maior (o espaço
nacional, uma rede comercial).
Que a região é uma construção do historiador, do geógrafo ou do cientista social que
examina uma determinada questão, isto já o sabem de longa monta os historiadores regionais. A
região não existe obviamente como espaço pré-estabelecido, ela é construída dentro das
coordenadas de uma determinada pesquisa ou de uma certa análise sociológica ou historiográfica.
Por isto, aliás, é preciso que o pesquisador – ao delimitar o seu espaço de investigação e defini-lo
como uma “região” – esclareça os critérios que o conduziram a esta delimitação. Posto isto, é
óbvio que o “espaço”, seja este definido como espaço físico ou como espaço social, é uma noção
fundamental dentro deste campo de estudos que pode ser enquadrado como História Regional.
Enquanto a História Regional corresponde a um domínio ou a uma abordagem
historiográfica que foi se constituindo em torno da ideia de construir um espaço de observação

71
GASPARETTO JUNIOR, 2013.

História. 58
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sobre o qual se torna possível perceber determinadas articulações e homogeneidades sociais (e a


recorrência de determinadas contradições sociais, obviamente), já a Micro-História corresponde a
um campo histórico que se refere a uma coisa bem distinta: a uma determinada maneira de se
aproximar de uma certa realidade social ou de construir o objeto historiográfico. A Micro-História,
sustentaremos aqui, relaciona-se a uma abordagem, mais do que a qualquer outra coisa.
Antes de mais nada, é preciso deixar claro que a Micro-História não se refere
necessariamente ao estudo de um espaço físico reduzido ou delimitado, embora isto possa até
ocorrer. O que a Micro-História pretende é uma redução na escala de observação do historiador
com o intuito de se perceber aspectos que, de outro modo, passariam desapercebidos. Quando um
micro-historiador estuda uma pequena comunidade, ele não estuda propriamente a pequena
comunidade, mas estuda através da pequena comunidade (não é por exemplo a perspectiva da
História Local, que busca o estudo da realidade micro-localizada por ela mesma). A comunidade
examinada pela Micro-História pode aparecer, por exemplo, como um meio para se atingir a
compreensão de aspectos específicos relativos a uma sociedade mais ampla. Da mesma forma,
pode-se tomar para estudo uma “realidade micro” com o intuito de compreender certos aspectos
de um processo de centralização estatal que, em um exame encaminhado do ponto de vista da
macro-história, passariam certamente desapercebidos.
O objeto de estudo do micro-historiador não precisa ser, desta maneira, o espaço micro-
recortado. Pode ser uma prática social específica, a trajetória de determinados atores sociais, um
núcleo de representações, uma ocorrência (por exemplo, um crime) ou qualquer outro aspecto
que o historiador considere revelador em relação aos problemas sociais ou culturais que está
disposto a examinar. Se ele elabora a biografia ou a “história de vida” de um indivíduo (e
frequentemente escolherá um indivíduo anônimo) o que o estará interessando não é
propriamente biografar este indivíduo, mas sim os aspectos que poderá perceber através do
exame micro-localizado desta vida.
Da mesma maneira, assim como a Micro-História não deve ser confundida com a História
Regional ao examinar eventualmente um espaço micro-recortado, também não deve ser
confundida com o chamado “estudo de caso” ao estudar uma prática social ou uma ocorrência, e
nem ser confundida com a Biografia Histórica ao examinar uma “vida” ou uma trajetória individual.
Sempre que toma estes objetos – micro-localidade, prática social, ocorrência histórica, trajetórias
individuais entrecruzadas ou vida individual – o micro-historiador está no encalço de algo mais do
que estes objetos em si mesmos. A prática micro-historiográfica não deve ser definida
propriamente pelo que se vê, mas pelo modo como se vê.
Para utilizar uma metáfora conhecida, a Micro-História propõe a utilização do microscópio
ao invés do telescópio. Não se trata, neste caso, de depreciar o segundo em relação ao primeiro. O
que importa é ter consciência de que cada um destes instrumentos pode se mostrar mais

História. 59
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apropriado para conduzir à percepção de certos aspectos do universo (por exemplo, o espaço
sideral ou o espaço intra-atômico). De igual maneira, a Micro-História procura enxergar aquilo que
escapa à Macro-História tradicional, empreendendo para tal uma redução da escala de observação
que não poupa os detalhes e que investe no exame intensivo de uma documentação.
Considerando os exemplos antes citados, o que importa para a Micro-História não é tanto a
unidade de observação, mas a escala de observação utilizada pelo historiador, o modo intensivo
como ele observa, e o que ele observa. 72

72
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2011.

História. 60
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13. HISTORIOGRAFIA SOBRE O TEMPO: REINHARTKOSELLECK


Vamos agora examinar uma das mais recentes e interessantes concepções sobre a relação
entre Tempo e História, bem como sobre as mudanças constantes na sensibilidade coletiva diante
do Tempo. O responsável por esta nova concepção historiográfica do Tempo foi o célebre
historiador dos conceitos, recentemente falecido, ReinhartKoselleck (1923-2006). Começaremos
por lembrar que foi em sua célebre obra Futuro Passado, publicada em 1979, que
ReinhartKoselleck deu forma mais acabada à sua singular perspectiva de que cada Presente não
apenas reconstrói o Passado a partir de problematizações geradas na sua atualidade – tal como
propunham os Annales e outras correntes historiográficas do século XX – mas também de que cada
Presente ressignifica tanto o Passado (referido na conceituação de Koselleck como “campo da
experiência”) como o Futuro (referido conceitualmente como “horizonte de expectativas”). Mais
ainda, para Koselleck cada Presente concebe também de uma nova maneira a relação entre Futuro
e Passado, ou seja, a assimetria entre estas duas instâncias da temporalidade, e não é por acaso
que o título de sua mais conhecida coletânea de ensaios é Futuro Passado – contribuição à
semântica dos tempos históricos (1979).
Constitui a contribuição mais notável de Koselleck, para a Teoria da História, a apurada
percepção desta tensão que sempre se estabelece entre o “espaço de experiência” e o “horizonte
de expectativas” – uma tensão que é própria da elaboração do conhecimento historiográfico e
mesmo das múltiplas leituras sobre o fenômeno da temporalidade que vão surgindo em cada
época, inclusive ao nível das pessoas comuns que vivenciam os padrões disponíveis de
sensibilidade diante do tempo que lhes são oferecidos no momento em que vivem. Vamos discutir
esta base conceitual, pois apenas a partir dela poderemos recolocar com as devidas proporções as
reflexões de Koselleck acerca da “ruptura entre presente e Passado” nos tempos contemporâneos.
A “experiência” e a “expectativa” são apresentadas por Koselleck como duas categorias
históricas (duas categorias para uso da Teoria da História, melhor dizendo) que “entrelaçam
passado e futuro” 73. É oportuno salientar que tem sido considerada uma das mais importantes
contribuições historiográficas recentes este esclarecimento koselleckiano, através das categorias
da experiência e da expectativa, de que cada uma das temporalidades – o Passado, o Presente e o
Futuro – pode imaginariamente se alterar, contrair ou se expandir conforme cada época ou
sociedade, modificando-se também a maneira como são pensadas e sentidas as relações entre
eles.
Vamos entender, antes de mais nada, o próprio sistema conceitual proposto por Koselleck
para lidar com as três temporalidades (Passado, Presente, Futuro). Porque um “espaço de

73
KOSELLECK, 2006, p.308apud D'ASSUNÇÃO BARROS, 2011.

História. 61
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experiência”; e porque um “horizonte de expectativas”? A experiência pertence ao Passado que se


concretiza no Presente, de múltiplas maneiras: através da Memória, dos Vestígios, das
Permanências e, para os historiadores, das fontes históricas. Talvez não haja definição mais precisa
do que aquela que é trazida pelo próprio Koselleck:
“A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser
lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional quanto as formas inconscientes
de comportamento, que não estão mais, que não precisam estar mais presentes no
conhecimento. Além disso, na experiência de cada um, transmitida por gerações e instituições,
sempre está contida e é preservada uma experiência alheia. Neste sentido, também a história é
desde sempre concebida como conhecimento de experiências alheias”74.

Já as expectativas – que visam o Futuro – correspondem a todo um universo de sensações e


antecipações que se referem ao que ainda virá. Nossos medos e esperanças, nossas ansiedades e
desejos, nossas apatias e certezas, nossas inquietudes e confianças – tudo o que aponta para o
futuro, todas as nossas expectativas, fazem parte deste “horizonte de expectativas”. As
expectativas, além disto, não apenas são constituídas pelas formas de sensibilidade com relação ao
futuro que se aproxima, mas também pela curiosidade a seu respeito e pela análise racional que o
visa. A expectativa, enfim, é tudo aquilo que hoje (ou em um determinado Presente) visa o Futuro,
crivando-o das sensações as mais diversas. É por isto que Koselleck lembra que, tal como a
experiência (esta herança do passado) se realiza no Presente, “também a expectativa se realiza no
hoje”, constituindo-se, portanto, em um futuro presente.
Embora a experiência associe-se comumente ao Passado Presente, e a expectativa ao
Futuro Presente, é importante atentar para a já mencionada afirmação de Koselleck de que estas
duas categorias “entrelaçam o Futuro e o Passado”. Elas não se opõem uma à outra, como em uma
dicotomia qualquer; e de fato “experiência” e “expectativa” estão sempre prontas a repercutir
uma na outra. São categorias complementares, visto que a experiência abre espaços para um certo
horizonte de expectativas. Mais ainda, uma experiência ou o “registro de uma experiência”
referido a um passado remoto pode produzir, em outra época, expectativas relacionadas ao
futuro.
Outro aspecto particularmente interessante relaciona-se aos dois conceitos que se colocam
a “experiência” e “expectativa”. Tentemos compreender porque um “espaço de experiência” e um
“horizonte de expectativas”. A partir dos conceitos fundamentais de Koselleck, vamos construir
uma possibilidade de explicação e entendimento de como funcionam as imagens do “espaço” e do
“horizonte” nestas duas noções criadas por Koselleck para favorecer uma compreensão mais
complexas acerca das temporalidades.

74
KOSELLECK, 2006, p.309-310apud D'ASSUNÇÃO BARROS, 2011.

História. 62
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O “Passado Presente” pode melhor ser representado como um espaço porque concentra
um enorme conjunto de coisas já conhecidas. Pensemos na figura acima como uma possibilidade
de representação. Ela é composta de uma linha horizontal, que representará o horizonte de
expectativas, e de um semicírculo colado a esta, que representará o campo de experiências. Existe
uma infinita região do Passado que não é conhecida, e que, na verdade, jamais será conhecido.
Podemos entender este Passado incognoscível, do qual jamais saberemos nada a respeito, como
estando fora do semicírculo. Aquilo que não deixou memória, ou cujas memórias já pereceram;
aquilo que não deixou vestígios, nem fontes para os historiadores; aquilo que não está
materializado no presente a partir das permanências, das continuidades, da língua, dos rituais
ainda praticados, dos hábitos adquiridos, tudo isto faz parte de uma experiência perdida, que se
situa fora do semicírculo. O que está dentro do semicírculo, contudo, corresponde ao “espaço de
experiência”. Tudo o que ficou do que um dia foi vivido, e se projeta hoje no presente de alguma
maneira, está concentrado neste espaço que é fundamental para a vida, e particularmente vital
para os historiadores – pois estes só podem acessar o que foi um dia vivido através deste espaço
de experiências que se aglomeram sob formas diversas, e dos quais eles extraem as suas fontes
históricas. Tal como esclarece Koselleck, a experiência elabora acontecimentos passados e tem o
poder de torná-los presentes, e neste sentido está “saturada de realidade”. 75
Pode-se pensar ainda na transferência de elementos do “campo de experiência” para
aquele espaço indefinido do passado que já se torna inacessível. Memórias podem se perder,
fontes podem se deteriorar e se tornarem ilegíveis, arquivos podem se incendiar, rituais podem
deixar de serem praticados e tradições podem passar a não mais serem cultivadas. Quando morre
um indivíduo, certamente o mundo perde para este espaço exterior algo do que poderia ser
conhecido, do que estava efemeramente situado dentro do semicírculo e que jamais poderá ser
recuperado. A História Oral, uma modalidade mais recente das ciências históricas, apresenta, aliás,
uma conquista extremamente importante para a historiografia, e mesmo para a humanidade.
Através desta abordagem histórica, é possível fixar o que um dia irá perder, pois as memórias
podem ser registradas em depoimentos, gravados ou anotados, e as visões e percepções de
mundo de indivíduos que um dia irão perecer também podem encontrar o seu registro. É possível
imaginar que algo que também parecia estar no espaço exterior também venha um dia para
dentro do semicírculo, nos momentos em que os historiadores descobrem novas fontes, ou
mesmo novas técnicas para extrair de fontes já conhecidas elementos que antes não pareciam
fazer parte do “espaço de experiência”.
Qualquer Passado, qualquer coisa que hoje está no interior deste semicírculo que é o
“espaço de experiência” ou o “Passado Presente”, assim como ainda aquilo o que se perdeu para
fora dele, mas que um dia também foi vivido, já correspondeu outrora a um Presente. Nosso

75
KOSELLECK, 2006, p.312 apud D'ASSUNÇÃO BARROS, 2011.

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presente, cada instante que vivenciamos, logo se tornará um passado, e mesmo ocorrendo com o
futuro que ainda não conhecemos. Por isto mesmo, a cada segundo, a cada novo presente, o
espaço de experiência se transforma. O que podemos acessar de um vivido e de uma experiência
que nos chega do passado revolve-se constantemente, reapresentando-se a cada vez de uma nova
maneira. As próprias experiências já adquiridas podem se modificar com o tempo.
Quanto ao “Futuro Presente” (este Futuro que ainda não ocorreu, mas cuja proximidade ou
distância repercute no Presente sob a forma das mais diversas expectativas), este é representável
por uma linha. Na verdade, é representado por uma linha porque é efetivamente o que está para
além desta linha, correspondendo àquilo que ainda não é conhecido. Temos apenas uma
“expectativa” sobre o futuro, mas efetivamente não podemos dizer como ele será. Por isso a
metáfora do horizonte – o extremo limite que se oferece à visão, e para além do qual sabemos que
há algo, mas não sabemos exatamente o que é. Sempre que nos aproximamos do horizonte, ele
recua, de modo que nunca deixará de persistir como uma linha além da qual paira o desconhecido,
que logo se tornará conhecido porque se converterá em presente. Conforme as próprias palavras
de Koselleck, “horizonte quer dizer aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo espaço
de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser contemplado; a possibilidade de se
descobrir o futuro, embora os prognósticos sejam possíveis, se depara com um limite absoluto,
pois ela não pode ser experimentada”76.
Entre estas duas imagens se comprime o Presente: um fugidio momento de difícil de
representação visual que parece se comprimir entre o espaço concentrado que representa o
Passado (e logo se incorporar a ele) e a linha fugidia que representa o Futuro – esta linha
eternamente móvel (pois rapidamente o que ele traz, tão logo se torne conhecido, transforma-se
por um segundo em Presente e logo depois passa a ser englobado pelo interior do semicírculo que
corresponde ao “espaço de experiência” (quando não se perde no Passado incognoscível situado
fora do semicírculo).
É importante ressaltar ainda que o “Passado Presente” e o “Futuro Presente”, ou o “campo
de experiências” e o “horizonte de expectativas”, não constituem conceitos simétricos.
Imaginariamente, o campo de experiência, o Presente, e o horizonte de expectativas podem
produzir as relações mais diversas, e assim ocorre no decorrer da própria história. Há épocas em
que o tempo parece aos seus contemporâneos se desenrolar lentamente, e outras em que parece
estar acelerado, em função da rapidez das transformações políticas ou tecnológicas. Existem
períodos da história, crivados de movimentos revolucionários, nos quais os agentes que deles
participam desenvolvem a sensação de que o futuro é aqui agora, tendo se fundido ao presente.
Em outros, inclusive, o futuro parece permanecer “atrelado ao passado”, tal como naqueles em
que as expectativas do futuro não se referem a este mundo, mas sim a um outro que será

76
KOSELLECK, 2006, p.311 apud D'ASSUNÇÃO BARROS, 2011.

História. 64
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escatologicamente trazido pela redenção dos tempos. As fusões e clivagens que se estabelecem
imaginariamente entre as três temporalidades – Passado, Presente e Futuro – podem aparecer ao
ambiente mental predominante em cada época, e às consciências daqueles que vivem nestas
várias épocas, de maneiras bem diferenciadas.
Para Koselleck, o Tempo Histórico é ditado, de forma sempre diferente, pela tensão entre
expectativas e experiência. Há por exemplo ações e práticas humanas que são constituídas
precisamente desta tensão, tal como ocorre com a elaboração de “prognósticos”, que sempre
exprimem uma expectativa a partir de um certo campo de experiências (portanto, a partir de um
“diagnóstico”). Diz-nos também o historiador alemão que “o que estende o horizonte de
expectativa é o espaço de experiência aberto para o futuro”, o que se pode dar de múltiplas
maneiras, conforme a relação estabelecida entre as duas instâncias 77. Como se disse, em cada
época pode haver uma tendência distinta a reavaliar a tensão entre o espaço de experiência e o
horizonte de expectativas (ou entre o Passado e o Futuro, através da mediação do Presente).
Apenas para ilustrar com uma das hipóteses de Koselleck, na modernidade as expectativas passam
a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então; em contrapartida, em todo o
ambiente mental predominante no ocidente até meados do século XVII, o futuro parecia
permanecer fortemente atrelado ao próprio passado. Poderíamos mesmo pensar em duas
representações para os dois momentos da história das sensibilidades europeias em relação ao
Tempo, já que, no período propriamente moderno, o espaço de experiência deixa de estar limitado
pelo horizonte de expectativa; os limites de um e de outro se separam.
O aparato conceitual desenvolvido por Koselleck foi incorporado pela historiografia como
aquilo que de mais eficaz se produziu até hoje para operacionalizar uma visão historiográfica do
tempo.78

77
KOSELLECK, 2006, p.313 apud D'ASSUNÇÃO BARROS, 2011.
78
D'ASSUNÇÃO BARROS, 2011.

História. 65
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14. O ENSINO DE HISTÓRIA

14.1. CONCEPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA O ENSINO DA HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO


INFANTIL E NO ENSINO FUNDAMENTAL

Dentro da discussão teórico-metodológica sobre o ensino de História, entendemos que


estes são históricos, isto é, se transformam de acordo com a realidade econômica, política e social
dada em certo período. No Brasil, o ensino de História tem recebido influência dos debates
acadêmicos acerca dos aspectos teórico-metodológicos. As discussões sobre os pressupostos
teórico-metodológicos da ciência histórica e consequentemente o seu ensino na educação básica,
em geral, se direciona à análise de questões filosóficas e ou epistemológicas sobre a história, seu
objeto e o fazer científico do historiador. Contudo, nesta aula abordaremos a temática dentro da
ótica do primeiro e segundo item.
A História procura estudar o homem através dos tempos, nos diferentes lugares em que
tem vivido. O conceito e definição da ciência histórica vem acompanhando os desdobramentos
fruto do seu tempo, de modo a ressignificar o seu sentido. Para Ferreira (2004, p.1050), História é
a “[...] narração metódica dos fatos notáveis ocorridos na vida dos povos, em particular, e na vida
da humanidade em geral”. Contudo, tal concepção tem sido debatida dentro da esfera acadêmica.
Para Penteado (2010, p. 23) a história “[...] investiga permanências e mudanças ou transformações
de seu modo de vida, no empenho de compreendê-las” (2010, p. 22).
O movimento historiográfico das últimas décadas permite admitir a História como uma
ciência interdisciplinar, dado o seu diálogo com outras ciências, que, muitas vezes, auxiliam na
compreensão das diversas fontes utilizadas pela historiografia. Bittencourt (2011) evidencia que
enquanto muitos historiadores da década de 1980 aproximaram-se dos sujeitos e objetos de
investigação da Antropologia e da Sociologia, à investigação histórica agregavam-se novas fontes
como a memória oral, as lendas e mitos, os objetos materiais entre outros. A narrativa histórica,
centrada nos fatos, datas e grandes nomes estava às voltas com um processo de renovação que
buscava a articulação da macroestrutura com o micro: a História do cotidiano e os diversos sujeitos
históricos.
Além disso, a partir da década supracitada, o ensino de história passou por discussões
quanto ao seu objeto. Os pressupostos da concepção positivista da história passaram a ser
negados, e aos poucos, os historiadores foram redescobrindo o homem como agente do processo
histórico, como o principal personagem de uma história que sem sua presença não existiria.
Mas calma. Para entender as diferentes concepções de História, e consequentemente de
ensino em História, é necessária uma pausa e retornarmos um pouco. Adam Schaf (1986)

História. 66
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apresenta alguns elementos sobre as três principais concepções: o marxismo, o positivismo e o


presentismo.
A linha marxista foi elaborada inicialmente pelo filósofo Karl Marx e Friedrich Engels entre
os anos de 1840 e 1850, mais tarde modificada e contemplada por adeptos. Essa corrente filosófica
se apresenta como um método para a análise social de alguns aspectos da sociedade moderna,
especialmente aqueles ligados aos conflitos de classe e a organização produtiva. O termo
“marxismo” só passou a ser utilizados anos após a morte de Marx e agrega pensamentos distintos
e, às vezes, até discordantes.
Com uma visão materialista do desenvolvimento histórico e uma dialética de transformação
social, o marxismo busca incessantemente resolver a divisão entre as duas classes. A concepção de
tempo no método de investigação é do tempo presente ao passado, permitindo entender fatos
sociais do presente, pois tudo sempre está constantemente em movimento, evoluindo,
modificando e quando um processo é finalizado, outro se inicia.
Nesse contexto, Marx concebe a história como um processo dinâmico, de sentido
progressivo, regido por leis dialéticas, onde o ´´surgimento sequencial de estádios de evolução
deve ser lido à luz das transformações do mundo material e da posse dos bens de produção``. No
entanto, para Marx, ao contrário de Hegel, a dialética tem uma base material e a ação dos filósofos
deve contribuir para mudar as sociedades onde se inserem, isto é, há nas propostas de Marx
objetivos claros de transformação do mundo e não apenas de uma análise fria da realidade.
Já os historiadores positivistas propõem uma ideia de neutralidade na escrita dos fatos, o
que significa que a história deveria ser contada de modo imparcial, sem que o autor pudesse emitir
qualquer subjetividade nessa narrativa, fazendo-a, dessa forma, de maneira clara e neutra. Todos
os conhecimentos obtidos no âmbito da história deveriam ter, assim como nas demais ciências,
uma comprovação científica que se daria pela análise de documentos oficiais sobre os
acontecimentos passados.
De acordo com o pensamento positivista, o historiador deve ser imparcial inexistindo
interdependência entre ele e o seu objeto; a história existe em si, objetivamente e se oferece
através dos documentos; os fatos devem ser extraídos dos documentos rigorosamente criticados
interna e externamente e organizados em sequência cronológica (AZEVEDO, 2010, p.10).
Os documentos ficam responsáveis por contar os fatos, sendo o historiador/pesquisador o
narrador desses fatos. Totalmente sistematizado e incorporado a uma lógica eurocêntrica, o
ensino da história passou a ser completamente periodizado e linear mostrando apenas a visão das
classes dominante sobre a história, desconsiderando outros pontos de vista e outras fontes
históricas. A aplicação prática dos métodos positivista no ensino da história acabaria
desestimulando a produção do conhecimento, limitando o aluno a memorização de datas e fatos
isolados.

História. 67
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A concepção que é denominada como presentismo, apresenta alguns elementos de uma


concepção que outros autores costumam chamar de fenomenologia, e especificamente na
produção do conhecimento histórico tem sido mais comumente conhecida como Nova história, ou
de acordo com Ciro Flamarion Cardoso, “paradigma pós-modernismo”. Devido às diversas
denominações para esta última concepção, e levando em consideração a complexidade das
discussões sobre as mesmas, a terminologia “Nova História” é mais utilizada pelos estudos
historiográficos (ou Escola Nova).
A revista Annales foi fundada, em 1929, em Estrasburgo, por Marc Bloch (1886-1944) e
LucienFebvre (1878-1956) e assumiu, desde logo, a intenção de promover e divulgar uma história
diferente daquela que então se fazia. Basicamente, propunha-se acolher nas suas páginas uma
história-problema, que substituísse a tradicional narrativa de acontecimentos, que não se limitasse
aos aspectos políticos e que incluísse todos os aspectos da vida humana. Desde seu surgimento,
passou por quatro fases e teve grandes nomes como representantes de cada uma (Segundo Peter
Burke (1996), é possível encontrar três fases distintas de desenvolvimento):
 Primeira Fase (Fundação 1929-1945):Conforme mencionado, os criadores Marc Bloch e
LucienFebvre, começam a escrever em contraposição à história tradicional “enraizada” nos
homens e fatos, que marginalizava muitos aspectos das experiências humanas, para
“história nova” toda vivência humana é portadora de uma história. A primeira geração dos
Annales foi o ponto de partida para as novas abordagens da história.
 Segunda Fase (em torno de 1950):É caracterizada pela direção e marcante produção de
Fernand Braudel, que considerava a “história dos eventos” superficial e a história
política/militar revelada pela narrativa seria limitada. O historiador deveria percorrer
caminhos de tempo mais longo a fim de entrar em contato com a estrutura social e
econômica da sociedade em questão (utilizando, inclusive análises quantitativas – história
quantitativa – para subsidiar os estudos e pesquisas nesse período). Braudel foi importante
para a construção da geo-história e o estudo da relação do homem o seu meio.
 Terceira Fase:Em 1969, Braudel abandonou a direcção dos Annales, sendo substituído por
um colectivo que integrava Marc Ferro, Emmanuel Le Roy Ladurie, Jacques Le Goff e
Jacques Revele que anunciava uma nova fase na história da revista. Assim, a partir da
terceira geração a Escola dos Annales passou a receber uma identificação mais plural.
Muitos historiadores migraram da base econômica para o estudo das manifestações
culturais e utilizaram de diálogos com outras disciplinas, como Antropologia.
O novo movimento historiográfico foi muito impactante e renovador, colocando
emquestionamento a historiografia tradicional e apresentando novos e ricos elementos para o
conhecimento das sociedades. Abordava uma História bem mais vasta do que a que era praticada
até então, expondo todos os aspectos possíveis da vida humana ligada à análise das estruturas. A

História. 68
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terceira geração dos Annales virou-se decididamente para a história das mentalidades e para a
história cultural.
Conforme exposto acima, a nova história buscou a superação dos pressupostos que
caracterizam o positivismo.
“Sua maior contribuição à história foi a introdução de conceitos, métodos e modelos das ciências
naturais na investigação social, e a aplicação à história, conforme parecessem adequadas, das
descobertas nas ciências naturais.” (HOBSBAWN, 1998, p.158).

14.2. O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL E FUNDAMENTAL

Segundo os PCNs (BRASIL, 1997, p. 35-36) O saber histórico escolar, na sua relação com o
saber histórico, compreende de modo amplo, a delimitação de três conceitos fundamentais: o fato
histórico, de sujeito histórico e de tempo histórico. Os contornos e as definições que são dadas a
estes três conceitos orientam a concepção histórica, envolvida no ensino da disciplina.
Tratando-se de História, de acordo com Neves (1985), o que se objetiva é desenvolver na
criança
“[...] a percepção da multiplicidade temporal da História, em termos de ritmos de mudanças-mais
rápidas ou mais lentas-, e que explicariam certas contradições aparentes da sociedade atual.” (p.
17).

Nesse contexto, os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam:

[...] o ensino e aprendizagem de História estão voltados, inicialmente, para atividades em que os
alunos possam compreender as semelhanças e as diferenças, as permanências e as
transformações no modo de vida social, cultural e econômico de sua localidade, no presente e no
passado, mediante a leitura de diferentes obras humanas (BRASIL, 2000, p. 49).

Dentro do processo de construção do conhecimento histórico, é de grande importância que


os estudos de História estejam constantemente pautados na construção da noção de identidade,
através do estabelecimento de relações entre identidades individuais, sociais. O ensino de História
deve permitir que os alunos se compreendam a partir de suas próprias representações, da época
em que vivem, inseridos num grupo, e, ao mesmo tempo resgatem a diversidade e pratiquem uma
análise crítica de uma memória que é transmitida.
Deste modo, recorrendo novamente aos PCNs (BRASIL, 1997), os conteúdos para os
primeiros ciclos do Ensino Fundamental deverão partir da história do cotidiano da criança, em seu
tempo e espaço específicos. Porém incluindo contextos históricos mais amplos, partindo do tempo

História. 69
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presente e abordando a existência de tempos passados, e modos de vida e costumes diferentes


dos que conhecemos, sempre os relacionando ao tempo presente e ao que a criança conhece, para
que não fique apenas no abstrato, evitando o temido anacronismo.

O anacronismo é uma incoerência cronológica em alguma disposição, especialmente uma


justaposição de pessoas, eventos, objetos, ou costumes a partir de diferentes períodos de
tempo. Muitas vezes o item extraviado no tempo é um objeto, mas pode ser uma
expressão verbal, uma tecnologia, uma ideia filosófica, um estilo musical, um material, um
costume, ou qualquer outra coisa associada a um período específico no tempo, de modo
que é incorreto para colocá-lo fora do seu domínio temporal adequado.

As propostas curriculares decorrentes após a década de 1990 trazem como marca o


momento de ruptura que se deu nos modos de pensar e ensinar História. Tal ruptura passa pela
renovação das metodologias, de temas e problemas, resultantes dos embates acontecidos na
década anterior, em 1980. Essas discussões estavam, então, envoltas no processo de valorização
da História e da Geografia que recebiam de volta, no pós-ditadura militar, o status de áreas
específicas do conhecimento (FONSECA, 2003).
As renovações curriculares do período absorviam ainda as questões colocadas à
historiografia no período. Bittencourt (2011) aponta que, enquanto muitos historiadores da
década de 1980 aproximaram-se dos sujeitos e objetos de investigação da Antropologia e da
Sociologia, à investigação histórica agregavam-se novas fontes como a memória oral, as lendas e
mitos, os objetos materiais entre outros. A narrativa histórica, centrada nos fatos, datas e grandes
nomes estava às voltas com um processo de renovação que buscava a articulação da
macroestrutura com o micro: a História do cotidiano e os diversos sujeitos históricos.

14.2.1 O Ensino Infantil

O Ensino de História nas Séries Iniciais deve considerar a história de vida do aluno, uma vez
que somos seres históricos. Contudo o Ensino de História nas Séries Iniciais, nas palavras de Cruz é
de suma importância já que para este autor:
Estudar História e Geografia na Educação Infantil e no Ensino Fundamental resulta em uma
grande contribuição social. O ensino da História e da Geografia pode dar ao aluno subsídios para
que ele compreenda, de forma mais ampla, a realidade na qual está inserido e nela interfira de
maneira consciente e propositiva (CRUZ, 2003, p.2).

História. 70
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O estudo de História nas Series Iniciais deve partir da própria história de vida do aluno,
avançando para o estudo da história local que deve ser apresentada como algo, vivo, vibrante,
capaz de despertar paixão e colaborar para a compreensão do mundo. A Educação Infantil,
entretanto, foi pensada globalmente e não fragmentada, por isso ela não está dividida em
disciplinas. Nesse sentido, a Secretaria de Educação, dispõe-se no planejamento do Currículo para
a educação Infantil, os campos de experiências em que se organiza a BNCC, que são:
 O eu, o outro e o nós;
 Corpo, gestos e movimentos;
 Traços, sons, cores e formas;
 Escuta, fala, pensamento e imaginação;
 Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações.
Nesse sentido, o documento normativo para a Educação Infantil aponta:
Considerando que, na Educação Infantil, as aprendizagens e o desenvolvimento das crianças
têm como eixos estruturantes as interações e as brincadeiras, assegurando-lhes os direitos de
conviver, brincar, participar, explorar, expressar-se e conhecer- se, a organização curricular da
Educação Infantil na BNCC está estruturada em cinco campos de experiências, no âmbito dos quais
são definidos os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento. Os campos de experiências
constituem um arranjo curricular que acolhe as situações e as experiências concretas da vida
cotidiana das crianças e seus saberes, entrelaçando-os aos conhecimentos que fazem parte de
patrimônio cultural (ANÁPOLIS, SEMED; 2019.)
Tendo em vista os eixos estruturantes das práticas pedagógicas e as competências gerais da
Educação Básica propostas pela BNCC, seis direitos de aprendizagem e desenvolvimento
asseguram, na Educação Infantil, as condições para que as crianças aprendam em situações nas
quais possam desempenhar um papel ativo em ambientes que as convidem a vivenciar desafios e a
sentirem-se provocadas a resolvê-los, nas quais possam construir significados sobre si, os outros e
o mundo social e natural.

14.2.2. O Ensino Fundamental

O Ensino de História nas séries iniciais (Ensino Fundamental) é de extrema importância no


contexto da educação. Ele deve partir da própria história de vida do aluno, avançando para o
estudo da história local que deve ser apresentada como algo, vivo, vibrante, capaz de despertar
paixão e colaborar para a compreensão do mundo. De acordo com Cruz (2003, p. 2):

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Estudar História e Geografia na Educação Infantil e no Ensino Fundamental resulta em uma


grande contribuição social. O ensino da História e da Geografia pode dar ao aluno subsídios para
que ele compreenda, de forma mais ampla, a realidade na qual está inserido e nela interfira de
maneira consciente e propositiva.
De acordo com os PCNs de História para o Ensino Fundamental, o papel do ensino de
história está vinculado com a produção de identidade, pois:
A opção de se introduzir o ensino de História desde os primeiros ciclos do ensino
fundamental explicita uma necessidade presente na sociedade brasileira e acompanha o
movimento existente em algumas propostas curriculares elaboradas pelos estados. (...) A demanda
pela História deve ser entendida como uma questão da sociedade brasileira, ao conquistar a
cidadania, assume seu direito de lugar e voz, e busca no conhecimento de sua História o espaço de
construção de sua identidade (BRASIL, 1997, p. 4-5).
Pois para Cruz (2005), é necessário dinamizar conceitos como, o fato histórico: uma reflexão
sobre a atividade cotidiana; o tempo histórico: suporte para uma avaliação sobre o tempo e
finalmente, uma observação e avaliação sobre as ações cotidianas que identificam o sujeito
histórico, partindo da premissa do cotidiano da criança.
Tais assuntos enquadram-se nas diretrizes dos PCN´s, em consonância com o eixo temático
“História Local e do Cotidiano”, cujo enfoque está nas diferentes histórias relacionadas aos grupos
de convívio da criança, dimensionadas em diferentes tempos. Nessa organização de conteúdos,
destaca-se que:
(...) no primeiro ciclo, os alunos iniciem seus estudos históricos no presente, mediante a
identificação das diferenças e das semelhanças existentes entre eles, suas famílias e as pessoas
que trabalham na escola. Com os dados do presente, a proposta é que desenvolvam estudos do
passado, identificando mudanças e permanências nas organizações familiares e educacionais.
(BRASIL, 1997, p.52)

De acordo com algumas pesquisas com professores deste nível de ensino, a influência da
chamada “História Local” e da “História do Cotidiano” aparece em seus apontamentos, que
consideraram os conteúdos História local (bairro, cidade) e História pessoal da criança, como os
mais importantes de serem trabalhados nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.
Contudo, de acordo com Silva (2013), há uma desvalorização do saber histórico nos anos
iniciais. Tal processo é atribuído ao foco na alfabetização, de acordo com o que determinam os
documentos oficiais para os três primeiros anos de escolarização. O autor confirma com Silva e
Fonseca (2010), que consideram que algumas concepções e práticas de ensino não inserem o
conhecimento histórico no processo de alfabetização e letramento, de maneira que a História
apenas é introduzida após a consolidação da leitura e da escrita. Entretanto, consideram ainda
que,

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O “foco na alfabetização”, todavia, não pode perder de vista as diversas dimensões que o
processo envolve, pois, como nos ensinou Paulo Freire, ler é ler o mundo: não podemos aprender
a ler as palavras sem a busca da compreensão do mundo, da História, da Geografia, das
experiências humanas, construídas nos diversos tempos e lugares (SILVA; FONSECA, 2010, p.60)

Os Parâmetros Curriculares Nacionais apontam que:


No caso do primeiro ciclo, considerando-se que as crianças estão no início do processo de
alfabetização, deve-se dar preferência aos trabalhos com fontes orais e iconográficas e, a partir
delas, desenvolver trabalhos com a linguagem escrita (BRASIL, 1997, p.49).
Nessa perspectiva, o ensino de História possibilita a leitura de mundo a que se refere Freire,
necessária ao desenvolvimento das habilidades inerentes ao letramento. Entende-se, portanto,
que o ensino da disciplina possui importantes fundamentos que garantem a sua inserção nos
primeiros anos do Ensino Fundamental.

14.2.3. Conteúdos

Sobre a seleção de conteúdos escolares, Bezerra (2007) considera que eles não são mais um
fim em si mesmo, perante um projeto educacional, anunciado pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDBEN), nº 9394/1996, no qual,
[...] os objetivos da escola básica, segundo essa lei, não se restringem à assimilação maior ou
menor de conteúdos prefixados, mas se comprometem a articular conhecimento, competências e
valores, com a finalidade de capacitar os alunos a utilizarem-se das informações para a
transformação de sua própria personalidade, assim como para atuar de maneira efetiva na
transformação da sociedade (BEZERRA, 2007, p. 37).

Nessa perspectiva, os conteúdos configuram-se como meios básicos para a construção de


competências cognitivas e sociais, sendo que sua escolha e seleção devem considerar o cenário
social em cada época. Assim, a construção de um conhecimento histórico escolar significativo
desloca o interesse pela quantidade de conteúdos a serem ministrados e suas possíveis lacunas, e
passa a colocar em evidência o modo de trabalhar os conceitos históricos, em seus temas, assuntos
e objetos. Dentro deste cenário, deve-se ressaltar a indicação dos PCN´s para o trabalho com as
diversas fontes Históricas nos anos iniciais, apontando o trabalho com fontes orais e iconográficas
para os primeiros anos, momento da alfabetização, e complementam para os anos posteriores,
pois
Valorizando os procedimentos que tiveram início no primeiro ciclo, a preocupação de ensino e
aprendizagem no segundo ciclo envolve um trabalho mais específico com leitura de obras com
conteúdos históricos, como reportagens de jornais, mitos e lendas, textos de livros didáticos,
documentários em vídeos, telejornais. [...] Nesse sentido, cabe ao professor criar situações
instigantes que os alunos comparem as informações contidas em diferentes fontes bibliográficas e
documentais, expressem as suas próprias compreensões e opiniões sobre os assuntos e

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investiguem outras possibilidades de explicação para os acontecimentos estudados (BRASIL,


1997, p.61)

Nos PCN´s há a indicação para organização dos conteúdos em eixos temáticos. Os eixos
propostos procuram introduzir noções e conceitos básicos para a História a partir do processo de
alfabetização, sendo progressivamente trabalhados ao longo de todo o ensino fundamental e
médio. No documento curricular destacam-se os conceitos de cultura, de organização social e do
trabalho e as noções de tempo / espaço históricos, sendo que o conceito tempo é apresentado
por meio da noção do antes e do depois, buscando uma construção conceitual que não se
restrinja a ideia de tempo cronológico (BITTENCOURT, 2011).
Como exemplo, abaixo temos dois quadros com os respectivos conceitos e habilidades a
serem trabalhados na primeira etapa do Ensino Fundamental. Ambos quadros, tanto do 1º Ano
quanto o do 5º Ano, são dos meses de Janeiro e Fevereiro de 2019, de modo a ser seguido por
toda a rede municipal de Anápolis, nas devidas proporções e realidades escolares.

Matriz Curricular História 1º Ano Ensino Fundamental – Janeiro/Fevereiro

Sujeito Histórico Fato histórico Tempo histórico

- Comparar as condições de
existência das moradias dos - Selecionar e ordenar fatos
membrosde grupo de convívio dos utilizando fontes históricas escritas
quais participo no passado e enão escritas sobre a(s) minha(s)
naatualidade. (I/A) moradia(s) (fotos,
documentos,relatos orai etc.), para - Ordenar os fatos históricos de
- Reconhecer as casas, suas
formular e expressar ordem pessoal, familiar e do grupo
histórias e diferenciar os tipos de
(oralmente,graficamente e por de convívio escolar. (I/A)
casasconstruídas ontem e hoje.
(I/A) escrito) uma sequência narrativa, - Diferenciar ações e eventos
da minhahistória em relação à(s) cotidianos
- Descrever oralmente a sua moradia(s), na qual entenda que ocorridossequencialmente, antes e
moradia, incluindo cômodos e asmoradias fazem parte da minha depois de outros e ao mesmo
suasfunções. (I/A/C) história. (I/A) tempo em que outros. (I)
- Compreender as várias formas de - Identificar aspectos da produção - Situar-se em relação ao “ontem”
moradias das pessoas artística e cultural da localidadeno (ao que passou), com relação ao
(própria,aluguel, favelas, passado e no presente, noentorno hoje (ao que está ocorrendo) e com
aglomerado, da minha moradia. (I) relação ao amanhã (a expectativa
cortiços,apartamentos,
- Identificar as práticas do porvir). (I)
cedida,financiadas, etc.) (I/A)
econômicas, de organização do - Reconhecer as semelhanças e
- Identificar através de gravuras de trabalho epolítica da localidade diferenças, a relação tempo x
construções antigas e atuais, onde moro no passado e compará- espaço, através do estudo da
emvisita a museu ou observação in las aspráticas econômicas e história da escola. (I/A)
loco, construções antigas e políticas atuais. (I)
modernas;e verificar as mudanças - Comparar fotos do seu passado
que ocorrem ao longo do tempo. - Identificar os grupos de convívio e com fotos atuais. (I/A)
(I/A) as instituições relacionadas
àcriação, utilização e manutenção
- Identificar os diferentes tipos de dos patrimônios culturais
trabalhos e de dalocalidade. (I)
trabalhadoresresponsáveis pelo
sustento de seugrupo de convívio

História. 74
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atualmente eno passado. (I)


- Identificar o local onde mora.
(I/A)

Fonte: Secretaria de Educação de Anápolis, 2019. Disponível em:


https://drive.google.com/drive/folders/1K7WFDVrk2EN1BKHQetOT1iqJpmme6lRC

Matriz Curricular História 5º Ano – Janeiro/Fevereiro

Organização do Tempo e do Espaço Fontes históricas

- Entender que a chegada dos portugueses ao


Brasil causou devastação e contribuiu para a
destruição das culturas indígenas.
- Compreender como era administrada a colônia
- Reconhecer, ler, interpretar diversas fontes
e o processo de expansão do território colonial.
históricas: mapas, documentos, pinturas,
- Identificar objetivos e agentes das bandeiras. imagens.
- Conhecer as causas e as consequências da
exploração da Mata Atlântica.

Fonte: Secretaria de Educação de Anápolis, 2019. Disponível em:


https://drive.google.com/drive/folders/1K7WFDVrk2EN1BKHQetOT1iqJpmme6lRC

14.3. A BNCC E O ENSINO DE HISTÓRIA

A BNCC para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental foi homologada em dezembro de


2017. Já o documento para o Ensino Médio teve sua homologação em dezembro de 2018. O
documento estabelece as aprendizagens fundamentais às quais os alunos devem ter acesso
durante a Educação Básica — composta pela Educação Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino
Médio.Tendo sido discutida e aprovada pelo Conselho e sancionada pelo Ministro da Educação, a
Base Nacional Comum Curricular contemplou a História e a Geografia como componentes
curriculares, desde o primeiro ano do Ensino Fundamental, integrantes da área de Ciências
Humanas.

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https://www.todospelaeducacao.org.br/_uploads/_posts/158.pdf

De maneira geral, a Base estabelece dez competências gerais que os estudantes devem
desenvolver ao longo da Educação Básica. Essas competências guiam o trabalho dos componentes
curriculares e têm como objetivo a formação integral do aluno, preparando-o para os desafios do
século XXI. O documento ainda define para as escolas de todo território nacional, a Base Comum
Curricular de História, estruturada em: Competências Gerais da Base; Competências Específicas de
História para o Ensino Fundamental; Unidades Temáticas, Objetos de Conhecimento e Habilidades
a serem desenvolvidas em cada uma das etapas/anos do ensino fundamental.
O documento apresenta algumas das perspectivas recorrentes no debate da área do ensino
de História ao orientar sobre o processo de ensinar e aprender: a importância de estabelecer
relações entre passado e presente.
A área de Ciências Humanas contribui para que os alunos desenvolvam a cognição in situ, ou
seja, sem prescindir da contextualização marcada pelas noções de tempo e espaço, conceitos
fundamentais da área. Cognição e contexto são, assim, categorias elaboradas conjuntamente, em
meio a circunstâncias históricas específicas, nas quais a diversidade humana deve ganhar
especial destaque, com vistas ao acolhimento da diferença. O raciocínio espaço-temporal baseia-
se na ideia de que o ser humano produz o espaço em que vive, apropriando-se dele em
determinada circunstância histórica. A capacidade de identificação dessa circunstância impõe-se
como condição para que o ser humano compreenda, interprete e avalie os significados das ações
realizadas no passado ou no presente, o que o torna responsável tanto pelo saber produzido
quanto pelo controle dos fenômenos naturais e históricos dos quais é agente (BRASIL, 2017, p.
353).

Aponta ainda que a compreensão não se dá de maneira automática. É necessário, pois,


“referências teóricas capazes de trazer inteligibilidade aos objetos históricos selecionados”
(BRASIL, 2017c, p. 347). Nesse sentido, sugere a utilização de diferentes fontes e tipos de
documentos(escritos, iconográficos, materiais e imateriais), pois facilitam a compreensão da
relação tempo e espaço e as relações sociais que os produziram.

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Nesse contexto, faz-se necessário o desenvolvimento de habilidades voltadas para o uso


concomitante de diferentes linguagens (oral, escrita, cartográfica, estética, técnica etc.). Por meio
delas, torna-se possível o diálogo, a comunicação e a socialização dos indivíduos, condição
necessária tanto para a resolução de conflitos quanto para um convívio equilibrado entre
diferentes povos e culturas. (BRASIL, 2017c, p. 356)

Guimarães (2012) afirma que as diferentes fontes e linguagens podem ampliar o olhar do
historiador e o seu campo de estudo, tornando o processo de transmissão e produção de
conhecimentos interdisciplinar, dinâmico e flexível. Além disso, questionam as fronteiras
disciplinares, permitem a religação dos saberes e possibilitam aos estudantes a reconhecerem a
estreita relação entre os saberes escolares e a vida social.De acordo com a BNCC, os usos de
fontes, linguagens, objetos materiais contribuem para formar nos estudantes uma “atitude
historiadora”.
De acordo com o documento, a história não emerge como um dado ou um acidente que
tudo explica: ela é a correlação de forças, de enfrentamentos e da batalha para a produção de
sentidos e significados, que são constantemente reinterpretados por diferentes grupos sociais e
suas demandas – o que, consequentemente, suscita outras questões e discussões. (BRASIL, 2017c)
Entre os saberes produzidos, destaca-se a capacidade de comunicação e diálogo,
instrumento necessário para o respeito à pluralidade cultural, social e política, bem como para o
enfrentamento de circunstâncias marcadas pela tensão e pelo conflito. O texto do documento
seleciona e indica os processos considerados imperativos na formação dos estudantes:
identificação, comparação, contextualização, interpretação e análise de um objeto. Reforça que
tais processos estimulam o pensamento.
No entanto, o texto é discreto em relação a problematização. Lembramos Karnal (2004) ao
defender que ensinar a construir conceitos e situações problema contribuem no processo de
interpretação, na construção de argumentos que permitam explicar a si próprios e aos outros, de
maneira convincente, potencializa a apreensão da situação histórica e desenvolve uma percepção
mais abrangente da condição humana nas mais diferentes culturas e diante dos mais variados
problemas.
De acordo com a Base, um dos objetivos da disciplina História é
[...] estimular a autonomia do pensamento e a capacidade de reconhecer que os indivíduos agem
de acordo com a época e o lugar nos quais vivem, de forma a preservar ou transformar seus
hábitos e condutas. A percepção de que existe uma grande diversidade de sujeitos estimula o
pensamento crítico, a autonomia e a formação para a cidadania (BRASIL, 2017c, p. 350).

No Ensino Fundamental – Anos Iniciais, é importante valorizar e problematizar as vivências e


experiências individuais e familiares trazidas pelos alunos, por meio do lúdico, de trocas, da escuta

História. 77
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e de falas sensíveis, nos diversos ambientes educativos (bibliotecas, pátio, praças, parques,
museus, arquivos, entre outros).

Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf

O processo de ensino e aprendizagem da História no Ensino Fundamental – Anos Finais está


pautado por três procedimentos básicos, de acordo com o documento:
1. Pela identificação dos eventos considerados importantes na história do Ocidente
(África, Europa e América, especialmente o Brasil), ordenando-os de forma
cronológica e localizando-os no espaço geográfico.
2. Pelo desenvolvimento das condições necessárias para que os alunos selecionem,
compreendam e reflitam sobre os significados da produção, circulação e
utilização de documentos (materiais ou imateriais), elaborando críticas sobre

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formas já consolidadas de registro e de memória, por meio de uma ou várias


linguagens.
3. Pelo reconhecimento e pela interpretação de diferentes versões de um mesmo
fenômeno, reconhecendo as hipóteses e avaliando os argumentos
apresentadoscom vistas ao desenvolvimento de habilidades necessárias para a
elaboração de proposições próprias (BRASIL, 2017c, 416)
O documento apresenta ainda as unidades temáticas, os objetos de conhecimento e
habilidades a serem desenvolvidas em cada ano do Ensino Fundamental. Do primeiro ao quinto
ano são selecionados alguns dos temas tradicionalmente prescritos nos currículos dos anos iniciais,
como a história da criança, da família, da escola, da comunidade; as noções temporais; o
patrimônio histórico. Já no sexto ano do Ensino Fundamental as unidades temáticas são:
 História: tempo, espaço e formas de registros;
 A invenção do mundo clássico e o contraponto com outras sociedades;
 Lógicas da organização política;
 Trabalho e formas de organização social e cultural.

No sétimo são propostas as seguintes unidades temáticas:


 O mundo moderno e a conexão entre sociedades africanas, americanas e europeias;
 Humanismos, Renascimentos e o Novo Mundo;
 A organização do poder e as dinâmicas do mundo colonial americano;
 Lógicas comerciais e mercantis da modernidade.

No oitavo ano do ensino fundamental destaca:


 O mundo contemporâneo: o Antigo Regime em crise;
 Os processos de independência nas Américas;
 O Brasil no século XIX;
 Configurações do mundo no século XIX.

No nono ano do ensino fundamental ressalta:


 O nascimento da República no Brasil e os processos históricos até a metade do século
XX;
 Totalitarismo e conflitos mundiais;
 Modernização, ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1946;
 A história recente.

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14.4. O LIVRO DIDÁTICO: POSSIBILIDADES E LIMITES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA

Na perspectiva de Sacristán (2000), pode-se entender os PCN´s na condição de currículo


oficial, dado que tal documento propõe-se a orientar os sistemas de ensino em relação a educação
obrigatória. Entretanto, o mesmo autor aponta algumas considerações com relação às limitações
de inserção do currículo oficial na esfera da prática, uma vez que considera que os professores são
os agentes decisivos na efetivação dos conteúdos e significados dos currículos, visto que moldam
as propostas que lhes são dirigidas de acordo com sua cultura profissional, sejam elas vindas da
administração dos sistemas, seja do currículo elaborado pelos materiais, guias, livros didáticos,
entre outros. Sobre essa questão, Bittencourt (2004, p. 72) destaca,
Ao lado dos textos, o livro didático produz uma série de técnicas de aprendizagem: exercícios,
questionários, sugestões de trabalho, enfim as tarefas que os alunos devem desempenhar para a
apreensão ou, na maior parte das vezes, para a retenção dos conteúdos. Assim, os manuais
escolares apresentam não apenas os conteúdos das disciplinas, mas como esse conteúdo deve
ser ensinado.

E de maneira geral, os PCN´s afirmam, “[...] o trabalho pedagógico requer estudo de novos
materiais (relatos orais, imagens, objetos, danças, músicas, narrativas), que devem se transformar
em instrumentos de construção do saber histórico escolar” (BRASIL, 1997, p. 39).
O uso de variadas fontes, já consolidado na pesquisa histórica, mostra-se importante para o
ensino da disciplina, na medida em que,
Ao se recuperar esses materiais, que são fontes potenciais para construção de uma história local
parcialmente desconhecida, desvalorizada, esquecida ou omitida, o saber histórico escolar
desempenha um outro papel na vida local, sem significar que se pretende fazer do aluno um
“pequeno historiador” capaz de escrever monografias, mas um observador atento das realidades
do seu entorno, capaz de estabelecer relações, comparações e relativizando sua atuação no
tempo e espaço (BRASIL, 1997, p. 39)

A BNCC, em sua estruturação, apontou o controle deste caminho na construção da relação


com a sala de aula, por meio de uma dinâmica sistematizada na figura abaixo, reproduzida do Guia
de Implementação da BNCC.

História. 80
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Fonte: Guia de Implementação da Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: http://implementacaobncc.com.br/wp-
content/uploads/2018/06/guia_de_implementacao_da_bncc_2018.pdf. Acesso em: 12 dez. 2019

A elaboração de materiais didáticos tem como principal política o Programa Nacional do


Livro e do Material Didático – PNLD – que avalia e distribui obras literárias e didáticas de diferentes
áreas de conhecimento, entre elas História, para escolas da educação básica pública, das redes
federal, estaduais, municipais e distritais e às instituições comunitárias, confessionais ou
filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com o Poder Público. A partir de 2017, este
programa passou a ser regulamentado peloDecreto nº 9.099, de 18 de julho que estabeleceu como
um de seus objetivos “apoiar a implementação da Base Nacional Comum Curricular” (BRASIL,
2017a). Com base neste Decreto, foram lançados dois editais de convocação para o processo de
Inscrição e Avaliação de Obras Didáticas para o Programa Nacional do Livro Didático referentes ao
PNLD 2019 que avaliou coleções para os anos iniciais do ensino fundamental (BRASIL, 2017b) e ao
PNLD 2020 que avaliará obras para os anos finais do ensino fundamental (BRASIL, 2018b).

14.4.1. O Livro didático de História

O livro didático de história sofreu as mais variadas mudanças desde sua implantação. Ao
longo do tempo, o livro se cristalizou como a forma mais consistente de apresentar uma proposta
curricular aos professores e alunos, expressando uma seleção e organização de determinados
conteúdos culturais. Nessa perspectiva, os LD são produtos culturais didatizados, de forma a
garantir a cultura comum, e, como tal, está suscetível às influências do contexto sócio político-
econômico e cultural. Segundo Bittencourt:
Um aspecto fundamental a ser considerado em análises sobre materiais didáticos é seu papel de
instrumento de controle do ensino por parte dos diversos agentes do poder [...]. O despreparo do
professor, resultante de cursos sem qualificação adequada, e as condições de trabalho nas
escolas muitas vezes favorecem, [...], uma cultura mercantilizada que transforma cada vez mais
a escola em um mercado lucrativo para a indústria cultural, [...] (Bittencourt, 2004, p. 298).

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Tendo o livro didático como produto cultural fabricado por técnicos (professores,
pesquisadores, outros), o LD é uma mercadorialigada ao mundo editorial; é um suportede
conhecimentos escolares propostos pelos currículos educacionais; é também um suporte
demétodos pedagógicos, ao conter exercícios, atividades e formas de avaliação do conteúdo
escolar; e é veículo de um sistema de valores, de uma cultura de uma dada época e de uma dada
sociedade (Bittencourt, 2004).
Devido a esse panorama, o LD tem sido material importante no cotidiano escolar e,
geralmente, é enfatizado como uma ferramenta auxiliar e não como um instrumento de trabalho
exclusivo e único de professores e alunos. Destaca-se ainda a mediação do LD pelo professor, que
se reflete no seu comprometimento com a autonomia intelectual dos alunos.
Bittencourt (2004) aponta que a História e as demais disciplinas escolares fazem parte de
um sistema educacional que, mesmo se redefinindo constantemente, tem suas especificidades no
processo de constituição de saberes ou do conhecimento escolar. Ainda segundo a autora, uma
das dificuldades dos professores do Ensino de História é fazer a dessincretização do saber histórico
do livro. É nesse sentido que a teoria da transposição didática abordada por Chevallard (1991)
avança nessa discussão, afirmando que os saberes produzidos na academia precisam circular no
espaço da escola, de modo que os alunos compreendam com fluência o que está sendo estudado.
Nesta perspectiva, o conceito de transposição didática (Chevallard, 1991) aparece como um
instrumento relevante para esclarecer esse tipo de problema. O termo transposição implica no
reconhecimento da diferenciação entre saber acadêmico e saber escolar, considerados como
saberes específicos de natureza e funções sociais distintas, nem sempre evidentes nas análises
sobre a dimensão cognitiva do processo de ensino aprendizagem.

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