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Acerca da Superestrutura

(03/08/1989)
Wilson do Nascimento Barbosa
1. Introdução

Talvez a ênfase que venhamos a colocar nos diferentes pontos desta exposição
seja desigual. De fato, ela busca refletir acerca da experiência de um grupo concreto de
pesquisadores, de professores, de historiadores. Esta experiência, por certo, cruza-se
com a experiência de outros grupos, mas estará sempre limitada pelo referencial teórico
do nosso grupo, refletindo muito do enfoque do coletivo de História Econômica da Pós-
Graduação do Departamento de História (FFLCH - USP).
Isso implica dizer que o nosso ver tem insuficiências, limitações específicas e
vícios, mas que isso a priori não invalida o nosso enfoque, ou a valorização de
determinados aspectos do problema teórico-metodológico em detrimento de outros.
Também esta exposição deverá variar, portanto, entre o óbvio e o inexplicado,
não implicando dai a conclusão que estamos preocupados com a ruptura de paradigmas
desta ou daquela natureza.
O objetivo primordial é trazer problemas que afligem a pesquisa e o ensino de
História, tal como eles são praticados aqui no nosso meio, fazendo-se a defesa, portanto,
do método histórico e do ver específico dos historiadores, como praticantes de ensino e
pesquisa.
Esta reflexão nos traz hoje, em conseqüência, a discussão do que é
SUPERESTRUTURA, das relações conceituais desta categoria com outras do método
histórico; em que extensão esta categoria ultrapassa os limites específicos da abordagem
científica e suas vinculações político-ideológicas; da importância de conhecer-se
explicitamente estas relações; da vantagem ou desvantagem do uso explícito da
categoria, etc. E claro que não vamos "esgotar o tema". Vamos apenas propor uma
direção para o debate, como uma proposta para aprofundar aspectos importantes que
têm sido negligenciados pelo "furor" do debate ideológico, que se tem colocado "acima"
do debate científico no meio acadêmico.

2. A Importância do Método Histórico

É óbvio que os historiadores fazem a defesa do Método Histórico. Contudo,


estamos hoje vivendo uma situação muito particular: A comunidade dos historiadores
não faz a defesa do Método Histórico; uma boa parte se opõe à idéia mesma de que

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exista um "método histórico". Em conseqüência, os cursos de História transformaram-
se, nos últimos vinte anos, em lugares de diletantismo de outras disciplinas; um lugar -
desculpem-me a dureza da expressão - onde a opinião e o ponto de vista tornam-se mais
importantes que o conhecimento.
Esta degradação reflete, sem dúvida alguma, a falta de definição político-
ideológica dos historiadores no exercício da sua profissão e, consequentemente, o seu
descompromissamento com seu objetivo de trabalho e a fluidez dos objetivos do próprio
trabalho.
O nosso modo-de-ver é aqui discordante da maioria. Estamos convencidos de
que há um "Método Histórico". Existem, portanto, premissas objetivas de trabalho que
se impõem a diferentes escolas historiográficas. Os métodos históricos específicos das
diferentes escolas têm construído um perceber comum, desenvolvem um pano-de-fundo
comum, e este fundo comum é patrimônio do coletivo dos historiadores e de cada
cultura nacional. Rebelamo-nos em conseqüência, contra a banalização da História
como disciplina e nos comprometemos com a elevação do nível do ensino e da
pesquisa. Tal elevação, por isso mesmo, passa pela reflexão dos problemas dos Métodos
Historiográficos e tem por decorrência a redução do diletantismo e da "picaretagem" no
estudo, no ensino e na pesquisa de História. Insistamos, portanto, o que é o "Método
Histórico"?
Assegurada a premissa da autonomia da História como disciplina e rejeitado o
ponto-de-vista positivista da convergência de todas as formas de ciência, a História
pode ser afirmada como uma abordagem dos fenômenos da sociedade humana ao longo
do tempo, onde sua específica relativização é característica do método historista.
Rejeitando-se a relatividade do fenômeno histórico, rejeita-se o método historista,
eliminando-se, consequentemente, o específico da História como disciplina.
Podemos, assim, destacar como "historiadores" os praticantes da História
historista, isto é, da História como disciplina autônoma e explicadora.
A atribuição de um método específico à História separa, pois, a História das
outras disciplinas ou ciências sociais. Quer dizer, a base do "Método Histórico" é o
relativismo historista.
"Método", diz-nos um dicionário, é "um caminho para chegar a um fim". De que
"fim" se trata? Trata-se do "fim histórico", isto é, da "explicação histórica".
Temos então que "método histórico" é um método de conhecimento. Ele nos
oferece uma forma específica de conhecimento que não podemos alcançar através de

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outras disciplinas. E qual é esta forma de conhecimento? Ela é a relativização historista,
isto é, um modo próprio de analisar os fenômenos, colocando suas partes contra o seu
todo, da qual resulta uma explicação da sua singularidade.
A Metodologia Histórica não é pois Sociologia, Política, Economia, Economia
Política, Matemática, Psicologia, etc. Ela é um caminho específico de explicação que
pode-se valer de ferramentas inerentes a todas estas - e outras - disciplinas, pelo fato de
lançar mão de recursos desenvolvidos por outras disciplinas.
O específico do "Método Histórico" como método de conhecimento consiste,
dissemos, na explicação da singularidade do fenômeno. Isto quer dizer que não basta
explicar as generalidades que enquadram ou situam o fenômeno como incidente de um
tempo histórico e cronológico. É preciso constituir uma teoria dos cruzamentos
específicos de situações (mentais, comportamentais, institucionais etc) que fazem o
fenômeno perceptível como algo que não se repete (função de sua temporalidade).
Nunca será demais insistir que o procedimento do historiador é determinado por
esta atitude básica. O chamado "Imperialismo" de outras ciências sobre a História vem
sempre dado pelo fato de que um historiador não tem uma posição madura quanto ao
"Método Histórico". Como dissemos, há até historiadores que negam a existência de um
método histórico, ou da objetividade ou da interpenetração dos diferentes métodos
históricos, formando um subconjunto útil, o "Método Histórico".
Como exemplo, citaremos o caso de estudantes ou pesquisadores que não
percebem a diferença de abordagem característica das diferentes disciplinas; julgam que
um texto de crítica literária possa satisfazer as necessidades de crítica histórica; ou
ainda, que uma explicação de teoria econômica sirva também como uma explicação
histórica, etc. Os casos vão do hilariante ao fantástico e repetem-se diariamente no
quotidiano de qualquer curso de História. Dito por alguns, "curso de Escória". Daí que a
idéia de "escória" não está tão errada assim, pois sabemos que a "escória" é justamente
o dejeto que sobrou de diversas operações de processamento metalífero. No nosso caso,
"histórico" passou a ser tudo aquilo que é considerado insuficiente e ruim para os outros
departamentos. De forma que, depois de muitos anos desta prática, surgiram também
escorços, ensaios, teses e livros de História que não aplicam qualquer versão de método
histórico.
Generalizou-se no curso de História a aceitação de literatura não-histórica em
substituição às bibliografias de História; a apresentação de cursos de Literatura, de
Psicologia, de Cultura, etc no lugar de cursos ou programas de História. Não se trata

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aqui de negar a interdisciplinaridade. Ela é cada vez mais importante. Mas há dois
modos de abordar uma disciplina: (a) do ponto de vista dela própria; (b) do ponto de
vista de outra. No caso dos programas de História , a Literatura, a Cultura, a Psicologia,
a Sociologia, etc, devem ser apresentados do ponto-de-vista da História na maior parte
do curso. No caso contrário, elimina-se a História como disciplina independente e ela
passa a ser uma área suplementar da Economia, da Antropologia, etc.
Cumpre aqui insistir que o Método Histórico não é apenas um emaranhado de
categorias antipositivistas. Ela é, como a visão de qualquer "disciplina" ou "ciência",
resultado de um modo-de-ver, de um processo, de uma separação no trabalho da
intelectualidade. Tem, portanto, implicações não apenas teóricas e metodológicas, mas
políticas e ideológicas. Como tal, constitui-se autêntica inorganicidade "atacar a
História desde dentro". Ela tem seu lugar específico, seu ver específico e justifica-se
com tal.
O conhecimento histórico é um dos conhecimentos mais sutis. Ele colinda com
a filosofia e a religião. Alimentando-se culturalmente do surgimento do moderno e do
contemporâneo, o conhecimento histórico separou-se do humanismo e avançou por
meio do sentimento revolucionário que limitou a razão. Neste sentido, ao privilegiar a
intuição, ele colocou-se muito próximo a métodos do conhecimento experimentados na
filosofia e na religião.
Por outro lado, a importância que o conhecimento histórico dá aos seus modelos
específicos de explicação do que se passou, ou que se está passando, gerou a razão
histórica, um modo operativo específico de razão associada ao relativismo historista. A
sutileza de todas estas relações fazem requerer do historiador uma atitude muito
particular dentro da intelectualidade. Ao mesmo tempo em que considera a razão,
considera a intuição, ou seja, se rende a um certo nível de incognoscibilidade do objeto
de reflexão. Nisso ele se aproxima dos filósofos e dos religiosos.
Todos os métodos históricos argumentam que o esquema lógico a serviço da
razão permite várias aproximações explicativas - INTERPRETAÇÕES - do fenômeno
histórico, porém, observe-se, sem esgotá-lo. As miopias específicas do sujeito da
observação ou da reconstrução do fenômeno impediriam a fotografia perfeita, a
reprodução absoluta. Esta recuperação do IMPURO, do não-lógico, dá um papel ao
lógico, mas dá um papel ao inconhecível. O objeto histórico retém assim, elementos na
sua identificação, que refletem a crítica ao Iluminismo e fixam os parâmetros da razão
pelas críticas de Rosseau, de Kant, de Hegel.

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E claro que se pode postular filosoficamente a superação do Kantismo, do
Hegelianismo ou do Marxismo, mas não se pode superar o conhecimento histórico
como produto cultural senão por via de cruzamentos de reelaborações filosóficas com as
próprias teorias do Método Histórico. Aqui, a superação do paradigma ainda não foi
colocada.
Apesar do colossal avanço das técnicas de processamento e arquivamento de
dados e da ampla sistematização das informações disponíveis, a experiência recente tem
indicado a quase infindável variedade de fatos, tendendo, portanto, a reforçar as teorias
da história que valorizam a inesgotabilidade e o sentido das reinterpretações. As visões
de H. Buckle ( História da Civilização na Inglaterra) e K. Marx (Miséria da Filosofia, o
Manifesto do Partido Comunista e O Capital) não estão assim esgotadas: o avanço da
vida material dá maior importância aos entendimentos individuais, e as percepções
ideológicas se complicam.
Estamos, portanto, muito justificados para argumentar que não vamos resolver
aqui estes e outros problemas da teoria e da metodologia. Fazemos apenas uma
reafirmação da atitude do historiador enquanto historiador, para intentar uma
compreensão específica do uso categorial no Método(s) Histórico(s), e debater a função
conhecimental da categoria SUPERESTRUTURA.
As duas metodologias mais importantes no cruzamento do subconjunto "Método
Histórico" são a empirista e a marxista. Ambas as metodologias fazem uso da categoria
"superestrutura", mas com ênfase diferente. A complicada relação entre CONHECÍVEL
X INCONHECÍVEL foi enfrentada, no método histórico, pelo estabelecimento da
abordagem DUAL da categorização.
O desenvolvimento da lógica das dualidades remete a culturas muito anteriores e
parece decorrer da própria quebra das cosmovisões, no limiar das sociedades de classes.
Não vem ao caso aprofundar aqui esta questão. Basta-nos citar que os filósofos gregos
introduziam este debate no Ocidente, por via da dialética antiga, e ele foi retomado
pelos filósofos medievais, que fizeram da lógica das dualidades um instrumento das
suas teorias do conhecimento.
Raimundo Luli e Giordano Bruno deram grande ênfase à lógica das dualidades,
mas em função das revoluções cartesianas e do avanço da metodologia de Francis
Bacon, e também como resultado de certas circunstâncias, a lógica das dualidades foi
temporariamente abandonada. Com a crítica de Rosseau ao Iluminismo e o avanço do

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sentimento revolucionário no último terço do século XVIII, voltou à ordem-do-dia a
atitude negativa e, consequentemente, retornou-se a teoria das contradições.
A reflexão de Kant, o crescimento do nacionalismo alemão e a colaboração de
Schelling e Hegel deu um novo impulso à lógica das dualidades, tornando possível a
convergência entre a metodologia filosófica e a teoria materialista da História de
Montesquieu e Vico. Consequentemente, no século XIX, surgiram os diferentes
métodos históricos modernos, que possuem importante componente na lógica dialética,
sob diferentes formas.
O Método(s) Histórico(s) em sua versão marxista e empírica revelou-se assim
um poderoso método de autoconhecimento dos diferentes povos, através da reflexão de
sua vida ao longo dos séculos. Ele permitiu, como ferramenta mais sofisticada, a
formação da Economia Política como disciplina e, consequentemente, o surgimento da
escola clássica do pensamento econômico, de onde deriva a Economia como disciplina
autônoma.
A categoria da "superestrutura" foi dada à luz por Montesquieu, em seu célebre
"Espírito das Leis". Montesquieu sentiu a necessidade de explicar a dinâmica histórica,
através da dicotomia de duas categorias fundamentais, ao estudar as causas da grandeza
e decadência dos povos antigos, particularmente os romanos. Nas "Considerações sobre
as Causas da Grandeza dos Romanos e sua Decadência", o filósofo iluminista já havia
feito uso das categorias opostas para estabelecer leis históricas indicativas das
transformações.
A sua visão relativista e determinista sobre a estrutura da sociedade, exposta em
"O Espírito das Leis", lançou a base da metodologia moderna da História. Sua
preocupação com a evolução histórica e com o caráter profundo de um povo lançou
também as bases para as teorias democráticas dos séculos XVIII, e após ele, e XIX. A
categoria das "superestrutura" passou assim, junto com a categoria de "base", a fazer
parte da dicotomia fundamental explicativa da dinâmica da sociedade, até o surgimento
das correntes empíricas (alemã e inglesa) e marxistas (alemã e inglesa) do método
histórico.
3. Infra-estrutura e Superestrutura

Para simplificar o debate da SUPER-ESTRUTURA, vamos nos ater a esta


categoria tal

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como ela é adotada na corrente marxista de historiografia, isto é, o chamado
Materialismo Histórico. Não queremos com isso afirmar que não seja interessante
estudar a visão empirista. O caso é que ela é muito diferenciada, e não seria possível
abarcar e comparar ambas as correntes de opinião e sua contribuição específica para o
subconjunto "Método Histórico", dentro dos limites que estamos adotando.
A difusão da metodologia analítica, como se sabe, é um fenômeno recente, do
século XVII. Os historiadores e filósofos do século XVII e XVIII tinham dificuldade
para intentar classificar os fatos, os fenômenos da vida social, segundo estruturas de
relação, ou seja, segundo seu "parentesco" ou "causalidade", etc. Eles elaboravam.
assim, estruturas tentativas, estruturas aproximativas, onde podiam se inserir toda uma
suposta ordem de fenômenos, desde os mais simples até os mais complexos, desde os
mais próximos entre si, até os mais distantes.
Nesse sentido, Carlos Luís de Montesquieu agrupou todos estes fenômenos, de
um lado, como "base"; do outro, como "superestrutura".
Podemos assim definir "base", "infraestrutura" ou "fundamento" da sociedade
como o conjunto das atitudes associacionais estabelecidas pelo homem para produzir ou
obter produtos para o seu sustento ou sobrevivência como grupo.
Do outro lado, poderíamos definir como "superestrutura" todas as atitudes
associacionais relacionadas com outras coisas que não a produção ou obtenção de
produtos para o seu sustento como grupo.
E claro que é grande a faixa de arbitrariedade nessa oposição. Uma dança numa
sociedade pré-classista é um ato econômico ou de puro lazer? A importância explicativa
reside, contudo, não na pureza lógica da separação, mas em sua embricação com o
relativismo e o determinismo histórico como fatos temporais e, portanto, iniludíveis.
Somente a intuição histórica, o focinho empírico do historiador examinando detalhe por
detalhe, a relativização de todas as explicações, a busca maniática do único e irrepetível
em cada situação; somente a soma de uma série de "atitudes de historiador" são
compatíveis com a metodologia do conhecimento histórico e podem permitir reconstruir
de melhor maneira cada desempenho ou funcionalidade.
É evidente que a "atitude de historiador", em busca da penetração simpática em
fatos materiais ou imateriais perdidos, até mesmo, em culturas extintas é, de fato, uma
atitude científica. Nesse sentido, não tem origem diferente da atitude de outros cientistas
sociais ou naturais. Mas a forma do treinamento que esta atitude gera é diferente, o que
implica dizer que a atitude, "na chegada", no resultado, é diferente. Podemos dizer que,

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no resultado, a atitude é "historizante" ou "historista". Ela reduz o conjunto das
explicações possíveis à sua incidência histórica. É claro que todas as disciplinas fazem
algo semelhante. E é isto que as torna necessárias.
A compreensão histórica como tentativa de reconstrução revela, portanto, sua
relatividade na própria associação de suas categorias metodológicas. Ao mesmo tempo
em que tais categorias classificam a "realidade fenomênica", separando umas partes e
abandonando outras, elas "reduzem" o fenômeno à própria categoria; mas ao negar sua
aproximação, relativizando, ela aceita o que o "fenômeno" nega na "categoria" como
generalidade, passando a descrevê-lo como "singularidade". A busca do "irrepetível" é,
portanto, a negação da categoria, ou do par de categorias em ação, pela admissão de sua
capacidade redutora, daí, falseadora. Trata-se o defeito da generalização contida na
aceitação do modelo pela sucessiva correção das partes do modelo, em função daquilo
que se quer representar.
No processo que nos trouxe desde a formulação de Montesquieu até hoje, o
sistema categorial assumiu muitas outras sofisticações, de maneira que a nossa definição
inicial não passa de uma noção introdutória aos conceitos, tal como se depreende hoje.
A título de exemplo, vamos argumentar com a ubiqüidade do termo
"superestrutura". O termo latino "SUPER" significa "aumento" ou "excesso"; "em
cima"; indica "superioridade", algo que é melhor que outra coisa parecida. O termo
"estrutura" é "disposição ou arrumação ou ordem das partes de um 'todo", tendo, assim,
o implícito de analítico, isto é, da percepção em separado "das partes" e "do todo".
"Superestrutura" pode significar portanto a "estrutura que se coloca por cima" ou
a "estrutura que aumenta" ou ainda a "estrutura que é superior".
Voltemos agora à nossa definição inicial de "superestrutura". Uma vez que
"infraestrutura" estava relacionada com a produção ou obtenção de produtos para fins de
consumo do grupo ou da sociedade, "superestrutura", contrariamente, estava relacionada
com outras atividades que não a produção ou obtenção de produtos. Apenas excluímos
dos dois conceitos a expressão "atitudes associacionais" que utilizáramos antes.
De fato, se recuarmos hipoteticamente até à sociedade da horda primitiva, a 300
mil anos atrás ou 1 milhão de anos atrás, chegaríamos a uma situação em que a
"sociedade hominídea" que nos precedeu dedicava-se a coletar do meio-ambiente os
recursos necessários à sua sobrevivência. Gafanhotos, palmitos, frutos, peixes ou ratos
silvestres, raízes ou formigas, não importa, tudo aquilo que podia servir de alimento ou
de proteção, todos aqueles "produtos" que podiam ser arrancados do meio ambiente,

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"expropriados" pela horda primitiva em constante movimentação. Em que consistia
vida "não material" daquela horda primitiva? Tudo indica que a economia da recoleção
ocupava a maior parte do tempo útil do grupo, deixando pouco tempo disponível para
outras manifestações culturais que não aquelas relacionadas diretamente com a
materialidade dos "produtos". Pode-se acreditar que, à semelhança de outros animais, os
antepassados do homem inseriam as manifestações de júbilo ou rancor, toda sua "vida
espiritual" no contexto da própria cultura material, como os horários de publicidade da
TV estão inseridos dentro da programação normal.
Teríamos, assim, pequenos hiatos de superestrutura, irrompendo aqui e ali, por
determinação e necessidade das condições da infraestrutura.
Este raciocínio está legitimamente de acordo com a gênese das categorias da
infraestrutura e da superestrutura, concebidas como um processo - um modelo - que
busca descrever a lógica possível do que efetivamente se passou na História.
A "infraestrutura" "está por baixo", é "inferior" e "precede"; portanto,
"determina". A "superestrutura" "está por cima", é "superior" e "sucede"; portanto,
"responde à determinação".
É evidente que se um homem, tomado aqui no sentido de um grupo, passa todo o
seu tempo colhendo raízes para comer, sobra-lhe pouco tempo para tocar o berimbau.
Quanto menos tempo necessitar para coletar raízes ou castanhas, mais tempo lhe sobra
para o berimbau. Portanto, o lazer, o convívio e o folguedo contrapõem-se à economia,
contrapõem-se ao trabalho. Certamente o contrário é verdadeiro; quanto mais tempo o
homem "trabalhar", isto é, "dedicar a transformar ou alterar o meio", menos tempo há de
sobrar-lhe para descansar, para divertir-se e, por extensão, para retratar o próprio
processo de transformar o meio.
O trabalho e o sonho opõem-se nesta referência e se situam em planos
dicotômicos. Temos assim em aparente tautologia, que se esta tese que estamos
afirmando corresponde a uma experiência histórica, a "base" e a "superestrutura" devem
refletir o que se passa nas relações destes planos dicotômicos.
A ubiqüidade do próprio termo explica o sentido do processo: quanto mais
temos avançado no tempo histórico para o sentido do presente, mais tem aumentado a
dimensão da superestrutura, realizando-se de acordo com as condições, as técnicas e as
situações da infraestrutura.

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Por outro lado, a produção de produtos para a sobrevivência material da
sociedade, embora corresponda às determinações da infraestrutura sofre as penetrações
e as influências das demandas superestruturais.
Ora, havíamos prometido referir à ubiqüidade do termo "SUPERESTRUTURA"
para exemplificar a complexidade crescente do categorial. O que isto significa?
Quando nos referimos à INFRAESTRUTURA e SUPERESTRUTURA, estamos
nos referindo a coisas que efetivamente existem e que descobrimos; ou estamos nos
referindo a esquemas suposicionais, andaimes hipotéticos, que nos permitem descrever
coisas pouco conhecidas?
Esta é uma questão bastante complicada. O método histórico, qualquer que ele
seja, separa, como dissemos, os dados ou fatos que considera úteis, e que suas
ferramentas permitem apreender ou valorizar, e abandona outros elementos, que
evidentemente não contribuem para o modelo como "CLONE" da "realidade".
Do ponto-de-vista teórico e ideológico, o objeto fenomênico é constituído de um
IMPURO com lógico e não-lógico, material empírico de CONHECÍVEL e
INCONHECÍVEL e, portanto, não totalmente redutível às generalidades da
modelização, ou às singularidades da tipificação. Nesse sentido, o tempo histórico é um
CONTINUUM social, diferente mesmo do tempo astronômico em que se insere, e de
que adota a periodização, por via matemática do calendário.
O tempo histórico como um continuo é um microcosmo do tempo físico e,
consequentemente, se passa na irreversibilidade de um instante cósmico.
A reflexão historiográfica nada mais faz, portanto, do que intentar tratar como
um continuo a sucessão dos seus modelos explicativos. Nesse sentido, o suceder lógico
não precisa se passar no continuo do tempo histórico, conformado impuramente, mas
apenas no suceder da razão histórica, conformada puramente pelas circunstâncias do
método histórico de conhecimento. Portanto, o processo lógico-dialético do
desenvolvimento da formação econômico-social supõe-se um reflexo do efetivo
suceder, no tempo histórico, das sociedades.
As categorias se aplicam, pois, no vir-a-ser fenomênico e suas generalizações
resultam numa forma de conhecimento que adquire existência própria e se justifica
como "ciência". Suas sucessivas aproximações permitem recriar o movimento
fenomênico sem cessar. Como num planetário, ou num modelo de computador de
geração avançada.

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Todos conhecem a metáfora com que Newton referiu-se ao seu papel no
conhecimento. O universo era um oceano, e o cientista apenas uma criança que, da
praia, brincava com a areia. Embora a metáfora de Newton esteja correta, não podemos
nos furtar a construir teorias e intentar descrever o movimento que presenciamos.
A partir daqui podemos nos referir ao tempo histórico como um continuo social
e consequentemente podemos utilizar o construído do processo das formações
econômico-sociais, no lugar da referência a uma suposta observação direta da evolução
das sociedades, o que de fato não estamos fazendo. No sentido do construído, o
movimento processual reflete o continuo objetivo da história-que-sucede, permitindo-
nos pois "construir a história" como "interpretação científica".
Redefiniremos, agora, infraestrutura como o conjunto das relações de produção
que correspondem a um estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas.
Consequentemente, a superestrutura vai definir-se como o conjunto da consciência
social e das instituições a ela relacionadas, que correspondem a um estágio determinado
como base, ou infraestrutura. Que vantagens adquirimos com relação às definições
anteriores? Em primeiro lugar, em virtude de havermos introduzido uma separação entre
a observação do fenômeno e sua reconstrução, nós ganhamos em avanço racional. Em
segundo lugar, podemos "mexer" no modelo "descritivo" do fenômeno de acordo com
nossas necessidades, enfatizando os elementos e as categorias cruciais para o seu
funcionamento concentrado, antes de remeter nossas especulações de novo à instância
empírica.
De uma explicação em que lançamos mão, para exemplificar, da horda primitiva,
avançamos para uma categoria nova, o conceito de "consciência social", o qual poderá
aproximar ou "reduzir" fatos históricos concretos que suspeitemos sejam de "natureza
superestrutural".
Se a tese que levantamos anteriormente, a da determinação da superestrutura
pela base estava correta, isto é, descrevia no fundamental o que se passou, é evidente
que as formas da consciência social que caracterizam a superestrutura foram resultando,
no contínuo do tempo histórico, das transformações da base e da superestrutura,
sucessivamente.
A consciência social, compreendida assim, seria conformada por um certo nível
de desenvolvimento da capacidade de produção, a qual, por sua vez, só podia implicar
um determinado tipo de relação de propriedade, de distribuição e apropriação dos
produtos, etc. É evidente que todo o edifício institucional, como a forma de família, o

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tipo de casamento, o sistema de governo, etc, isto é, toda a estrutura jurídico-política da
sociedade, está em intima relação com a forma pela qual a riqueza que é produzida
distribui-se, etc. Rousseau argüi nesta direção, quando ele caracteriza a propriedade
como um roubo, e a propriedade como fonte da civilização. A civilização nesta visão
seria uma gigantesca alienação, uma sofisticada mentira através da qual se justificaria a
pobreza por via de religiões, discursos científicos, etc.
Mas também pode-se abordar o conceito de "consciência social", a partir de
outro lado, ou outra aresta.
Na verdade o conceito de consciência social que estamos aqui introduzindo
praticamente de contrabando, decorre do próprio conceito de tempo histórico, tal qual
ele pode ser percebido por Schelling e Hegel, dando conseqüência à crítica
revolucionária de Rousseau. Para os dois filósofos, a lógica da dualidade era uma
manifestação da unidade do universo, o tempo histórico era uma forma concreta do
tempo cósmico. Consequentemente, o tempo histórico só poderá ser um todo único, dito
em termos contemporâneos, um espaço-tempo onde se processava a "expansão" do
processo humano. Neste sentido perde importância a definição hegeliana de tal
expansão como um continuo espiritual, porque, de fato, a percepção da unidade do
tempo histórico é mais importante para a teoria histórica do que sua interpretação como
um fenômeno "ideal".
A continuidade do tempo histórico permitiu ver toda a história humana como um
único episódio e resolver portanto ao nível teórico o problema da globalidade da
experiência humana, que à época, o avanço da acumulação capitalista e do colonialismo
faziam prever. E esta continuidade implicava, pois, acima das eventuais rupturas do
processo, a sua unidade; implicava, pois, a visão da evolução e da ruptura (revolução)
como uma unidade; implicava, portanto, a necessidade da análise dual, e a necessidade
da ferramenta da lógica da dualidade.
A totalidade dos fenômenos sociais como o único processo e história global
abria caminho a teoria da Humanidade como categoria central da experiência humana e
coroava, assim, o humanismo renascentista. O Iluminismo atingia em Schelling e Hegel
a sua mais alta expressão, pela via de Rousseau, negando-se a si mesmo e formulando
teoricamente a utopia, a abstração do real, como o centro do próprio destino humano. E
o que permitia refundar assim a religião como antropocentrismo, como experiência
humana comum de sucessivas gerações? É evidente que a "consciência social".

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A formulação da categoria da "consciência social" como o elemento que reflete a
percepção da humanidade como coletivo, não foi apenas a solução do problema central
da teoria da superestrutura. Foi também a chave da transformação da história como
disciplina no quartel general da filosofia aplicada.
A percepção da consciência social é a percepção da própria superestrutura como
ato de criação coletiva, e como esfera da ação quotidiana que permite reinventar a
história-que-se-vive. Vemos assim que Schelling e Hegel haviam levado muito longe o
problema da burguesia como "ratio" histórica, como razão histórica, como força de
liderança da humanidade no comando do mundo. Ao faze-lo, criaram a base moderna
para a doutrina socialista, tornando teoricamente possível a dualidade entre o
"proletariado" e a "humanidade", por via do processo da consciência social.
Vemos a essa altura que o nosso modo de expor inicialmente, em que a
necessidade de separar analiticamente exigia a lógica da dualidade, nos levou a entender
que as categorias duais, "base" e "superestrutura", são partes integrantes e autônomas.
Entendida esta autonomia, podemos seguir com a análise da "superestrutura" como uma
categoria do método histórico, independente de suas relações com a "infraestrutura".

4. A Superestrutura

Havíamos referido que a armação institucional, ou "estrutura político-jurídica da


sociedade", fazia parte da superestrutura. Depois, havíamos acrescentado uma outra, a
"estrutura da consciência social". De fato estávamos aproximando a percepção da
autonomia da superestrutura, para depois nos aprofundarmos com mais detalhe.
O roteiro que estamos fazendo nesta exposição tem preocupação didática. São
poucos os estudantes que tiveram a oportunidade de ouvir pensar-se em público a teoria
da História. Devemos insistir, contudo, que apesar do caráter fascinante do tema, não
podemos esgotá-lo aqui. Estamos abrindo caixinhas onde está escrito "Teoria da
História"; olhamos dentro; mas nesse processo de abrir e olhar, estamos
deliberadamente saltando várias caixinhas. Saltamos, por exemplo, a caixinha onde
estão as diferenças de visão entre Schelling e o Hegel definitivo, e suas conseqüências
para a teoria da categoria "superestrutura"; vamos também saltar a caixinha onde estão
os "hegelianos de esquerda". O objetivo é permitir o entendimento da "superestrutura"
como uma categoria, e a partir daí, despertar o interesse do público de História para

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outras leituras, onde perceberá outras coisas. Trata-se de um esforço para lutar contra o
rebaixamento do nível teórico e da teoria, nos moldes daquela piada que o curso é de
História e não de escória.
Por esta razão, vamos saltar a caixinha onde está a formação do materialismo
histórico como método histórico, mas apenas insistir que tal formação contribuiu e
contribui para o enriquecimento do "método histórico" como subconjunto gnoseológico,
e recusando, portanto, a teoria que anda se divulgando por aí, que o materialismo
histórico não teve ou não tem contribuição alguma positiva.
Resumindo certos aspectos do materialismo histórico, ele pode ser entendido
como uma formulação explícita da lógica das dualidades para ser aplicada como método
histórico.
A preocupação de Marx e Engels, como herdeiros que eram da tradição
iluminista, foi superar o fosso entre o iluminismo revolucionário e o iluminismo
cartesiano, também ao nível do método histórico. Por essa razão, eles procuraram
franquear a fronteira entre a lógica formal, que não admite a dualidade, e a lógica
dialética, que de fato é a lógica das dualidades, tal como ela foi organizada pelo
pensamento de Hegel e seus companheiros.
Marx e Engels entenderam a lógica da não-contradição como expressando um
dado nível, um dado espaço do pensamento, da explicação dos fenômenos, que
valorizava a análise estática. Por outro lado, seguindo a tradição de Hegel, eles
procuraram desenvolver a lógica dialética como um outro espaço do pensamento, capaz
de valorizar a análise dinâmica.
Desta forma, eles procuravam dar uma "fundamentação científica" ao pensamento
crítico de Rousseau, livrando-se dos aspectos da teoria revolucionária que valorizavam a
intuição, negavam o papel da intelectualidade, etc e o que afirmava ser a força cega das
massas a verdadeira força inteligente da História. Dito de outra maneira, Rousseau era
demasiado radical. Para reconciliá-lo com a intelectualidade, era necessário domesticar
os seus conceitos pelo abandono da lógica da intuição, e substituindo-se pela lógica
dialética.
A lógica dialética poderia assim enriquecer o método histórico com o
estabelecimento sistemático de pares categoriais, os quais refletissem, ao mesmo tempo,
a unidade do tempo histórico e a sua continuada ruptura como experiência humana. Esta
forma concreta do método histórico é o materialismo histórico. É evidente que Marx e
Engels não formularam esta percepção de uma vez. Eles foram hegelianos de esquerda,

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e o pensamento de Hegel é um ciclone de onde é difícil fugir, e de onde se entende que
a vida é curta para se expressar tudo que se percebe. Mas o materialismo histórico como
doutrina teve sua estrutura estabelecida entre 1845 e 1850. Este método permite recriar
a experiência histórica da humanidade como um modelo do tempo histórico e da razão
histórica, colocando analiticamente desta forma, a dinâmica da história - por via do
modelo - acessível à percepção analítica formal.
Através desta ferramenta de trabalho, Marx e Engels tornaram possível a
milhões de indivíduos deixarem as trevas do tatibitate e entenderem uma teoria do
tempo histórico, da evolução histórica da Humanidade, de sua trajetória através de
diferentes formações econômico-sociais e "modos-de-produção".
Eles tornaram possível realizar aquela profecia de Goethe: que da sujeira do
chão da oficina se levantaria a humanidade de um mundo novo. Estavam, portanto,
dando curso ao programa de Rousseau e de Baboeuf.
No prefácio à Crítica da Economia Política, K. Marx explica o modelo do
funcionamento da sociedade, a partir exatamente das categorias de base e de
superestrutura. Naquela situação, o método histórico avançou tanto que abarcava
praticamente todas as ciências sociais, como as entendemos hoje, o que levou Marx e
Engels a declararem que só conheciam uma ciência, a História.
Já que nos referimos à superestrutura como uma estrutura, intentemos agora
explicar como ela está formada. Havíamos nos referido a duas estruturas:(a) político-
jurídica;(b) de consciência social. Vamos explicar rapidamente como cada qual está
constituída.
As relações de propriedade no processo de produção têm uma expressão: (1)
jurídica, através de uma série de agências sociais de dominação e (2) outra política,
através do Estado e outros aparatos institucionais necessários para regular a propriedade
e assegurar a repartição do produto social de acordo com esta forma de propriedade.
Temos assim os elementos básicos da estrutura "político-jurídica".
Mas esta estrutura forma uma unidade, um todo, com uma outra, que com ela
está em contradição, e cuja natureza é diferente. Chamamos tal estrutura de
"consciência social". A estrutura de consciência social é diferente da estrutura político-
jurídica pelo fato de que ela não se constitui de "aparatos", de "máquinas de poder", de
forças materiais repressivas em estado de tensão e prontidão. Os aparatos da "ordem",
não importa o quão refinados ou "públicos" eles se aparentem, são apenas isto, um
"aparato de ordem". Não é possível enfeitar uma delegacia de polícia até provar que ela

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defende o interesse do preso; nem convencer a um pobre de que um tribunal serve a
todos, etc. A estrutura político-jurídica, para ser eficaz, precisa renegar à generalidade, e
apresenta-se como um instrumento de um grupo restrito: "As pessoas honestas", "a
ordem", os "homens de bem", eis o que tal estrutura abertamente representa.
No que se refere porém à estrutura que a ela se contrapõe, isto é, à "estrutura de
consciência social", não representa a "ordem" de modo aberto. A estrutura de
consciência social é muito mais sutil, muito mais refinada, e está formada por sistemas
de idéias e suas formas de se veicular, abrigando, eventualmente instituições
materializadas. Ela não reflete apenas o lado de ruptura anterior, qual seja, a
consolidação institucional de um sistema de dominação, mas reflete também o lado de
evolução, o lado de continuidade, o lado de experiência histórica acumulada pela
sociedade.
Para tal, a estrutura de consciência social é intensamente contraditória, em luta
consigo mesma e conteudística. Em oposição à estrutura político-jurídica, que tende ao
estaticismo, a expelir todos os mecanismos de oposição interna, sendo formalista.
A estrutura político-jurídica valoriza o aparato, o cerimonial, a encenação, a
intimidação, o amesquinhamento. A estrutura de consciência social valoriza o essencial,
dá pouca importância à aparência, estimula a disciplina auto-consciente.
As duas estão assim opostas e em "luta perpétua" na superestrutura. No entanto,
a superestrutura não poderia subsistir em uma autonomia sem a luta, a oposição de
ambas as estruturas, que a compõe.
Por outro lado, ambas as estruturas se decompõem categorialmente em conceitos
definidos, que expressam o movimento dialético de seus mecanismos interiores.
Uma vez que a estrutura político-jurídica é bastante conhecida como estrutura
formal, vamos concentrar nossa explanação na estrutura de consciência social.
Em primeiro, relembremos que as categorias são aparatos lógicos que supõem
refletir o "movimento real", neste caso, histórico, portanto, as próprias subcategorias
delas componentes não se aplicam a qualquer ponto do processo do modelo histórico,
mas se aplicam concretamente na linha de continuidade e ruptura que implica a
necessidade de inclusão de tais subcategorias.
Ou seja, as categorias são decomponíveis justamente para "refletir a realidade" e
não para "assegurar a correção do modelo".

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Em segundo, o caráter conteudístico da estrutura de consciência social faz com
que ela represente a totalidade da vida espiritual da população do sistema com todos os
modos, portanto, de representação que tal significa.
Vamos recorrer novamente a um exemplo simplista, mas que nos permite partir
para raciocínios seletivos na direção que nos pode resultar um novo entendimento.
Como naquela situação arbitrária de um bando de hominídeos, vamos agora
recorrer a um habitante de uma aldeia indígena, que supostamente não tivesse contato
com a civilização ocidental. Vamos acompanhar a vida deste indígena. Ele levanta-se de
manhã cedo, vai ao rio, por exemplo, toma um banho; flecha um peixe na corrente e
volta para a oca. Sua mulher preparou uns beijus, ele come e sai com outros indígenas
para caçar.
Durante a caçada, que demora, ele colhe uns frutos pela floresta. Começa a
anoitecer, mas o grupo teve sorte: nosso indígena flecha uma paca e a trazem para casa.
Ao anoitecer, todos na aldeia jantam a paca juntos. Nosso "índio" brinca com as
crianças, conta-lhes uma história e elas vão dormir; os indígenas então dedicam-se a
diferentes tarefas. O nosso amigo vai à roça e ajuda a mulher a trazer algumas
mandiocas para casa, depois senta-se e vai fabricar algumas flechas.
Podemos dizer que o dia do índio refletiu tarefas que, sem grande rigidez, estão
compreendidas dentro da divisão natural do trabalho. Examinando o dia-a-dia do
indígena pelos critérios da divisão social do trabalho, ele exerceu diversas "profissões"
no mesmo dia: pescador, caçador, magarefe, coletor, orientador pedagógico, agricultor,
marceneiro, etc. Podemos nos fazer a pergunta: se nosso indígena pode safar-se
exercendo todas estas atividades, de onde surgiram as mesmas como profissões?
Surgiram de necessidades da sobrevivência. Surgiram de necessidades da visão-
de-mundo gerada na luta pela sobrevivência. Surgiram, portanto, do entrejogo, da
reciprocidade da base e da superestrutura, ao acaso do fluxo das necessidades.
Quanto mais complexa a sociedade, mais "profissões", mais divisões sociais do
trabalho ocorreram. Quanto mais complicada a luta da infra e da superestrutura, e vice-
versa, mais divisões sociais de trabalho podem ocorrer.
Todo ato não material que o nosso indígena praticou naquele dia, está "incluído"
na superestrutura da sociedade dele. É muito mais complicado nós admitirmos, então
que a maioria dos atos não-materiais decorrem de experiências reais e levam,
consequentemente, a produzir novas experiências no mundo circundante.

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Se o indígena depois do jantar tocou uma flauta, ele tocou a flauta para satisfazer
esta necessidade não-material que havia nele. Mas quando ele fabricou flechas, ele as
fez para tornar possível a caçada ou pescaria do dia seguinte. Portanto os atos mentais
podem se transformar em força material e a priori não podemos saber se eles se dirigem
a expandir, a modificar, a infraestrutura ou a superestrutura. O entrejogo destes
impulsos sociais através dos indivíduos, modificando isto ou aquilo é o que chamamos
"cultura", no sentido histórico. O ato cultural expressa, pois, a unidade entre base e
superestrutura.
Daí aquilo que chamamos de "caráter conteudístico da estrutura de consciência
social". Na medida em que se representam como estrutura as idealizações coletivas e, a
partir de um certo estágio, também as idealizações individuais, é necessário que esta
estrutura seja de "concordância", isto é, seja "pública", seja "não-contestada" pela
maioria, e até, pela totalidade dos usuários da mesma.
O indígena faz suas representações, suas "soluções de mundo", e elas necessitam
um modulador, um mecanismo tradutor, que as faça identificar-se com as necessidades
e/ou os anseios do grupo: percebemos aqui a funcionalidade da estrutura de consciência
social.
Percebemos também que esta estrutura pode ser mais direta, menos complicada,
numa sociedade baseada na divisão natural do trabalho e até sem a estrutura político-
jurídica. Mas numa sociedade de classes, dentro daquilo que os historiadores chamam
"civilização", onde vigoram códigos escritos e simbólicos e linguagens de poder
cifradas contra classes não-dominantes, etc então, nesses casos, pode tornar-se muito
complexa, implicando necessariamente subestruturas.
Quando nós dissemos que a criação de um ato não-material pelo indígena ficava
incluída na superestrutura da sociedade dele, queríamos dizer que ela se fazia dentro dos
parâmetros da superestrutura, ou seja, só ali tinha existência. Pode-se, evidentemente,
contrapor o ato mental, ato-em-si, ao ato não material, por exemplo, "tocar a flauta",
ato-para-si, que desempenha uma função indireta sobre a infraestrutura. Tanto um como
o outro se realizam no "espaço" da superestrutura, como as representações que ela
faculta, e mais precisamente, realizam-se na estrutura de consciência social. Estamos
agora em condições de perceber o nosso raciocínio anterior, quando falávamos que a
estrutura de consciência social abarca inclusive instituições materializadas, ou quando
referimos que ela era uma "estrutura de conteúdos", isto é, que ela ocupava o "dentro"
dos elementos do sistema cultural.

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Sendo a "estrutura de consciência social" uma estrutura que se produz
historicamente, é evidente que os seus elementos componentes decorrem de suas
contradições internas, e não aparecem, portanto, todos de uma só vez, logicamente, "ex-
nihilo"; seus componentes resultam de processos concretos do desenvolvimento social,
tem uma pertinência histórica racional; porque, relembremos, a teoria das categorias
deve refletir os procedimentos que se dão no efetivo da sociedade.
Isto quer dizer aquele suposto que já afirmamos. O desdobramento do processo
histórico, ao efetivar-se, o faz do menos complexo para o mais complexo. Pela via do
processo de ruptura, velhas unidades fenomênicas são desfeitas em proveito de novas;
através do processo de continuidade, a experiência processual acumulada é levada em
frente por meio dos processos de ruptura. A nova unidade contém elementos da unidade
antiga, embora não se identifique com ela, nem reflita as unilateralidades que levaram a
antiga à destruição.
Este contínuo autosuperar-se, pelo movimento para além-de-si, é o movimento
das dialéticas internas dos fenômenos, que a lógica das dualidades busca refletir no
modelo. O novo destaca-se do velho, não antes de modificá-lo; luta contra o velho
porque é novo, é outro; mas para destruí-lo, se transforma; algo novo resulta, que já não
é o velho novo nem o novo velho; trata-se, sem dúvida, do novíssimo, que, para
afirmar-se, deve superar o antigo novo...
Esta luta sem quartel de todas as coisas, esta transformação do "elemento
essencial" do mundo "descoberto" por Descartes, a matéria; passa-se também neste
instante muito breve, no sentido cósmico, que é o tempo histórico. Como tal, a dialética
dos processos reflete-se também na dialética da superestrutura, e por extensão, na
dialética da estrutura de consciência social.
Admitida esta explicação, a superestrutura nas origens, entre os bandos de
homínideos, argumentáramos, eram fiapos perdidos dentro do tempo histórico da
infraestrutura. Com a expansão do excedente social, com a "revolução neolítica" e, logo
a "revolução urbana", observaríamos a expansão contínua da superestrutura, e não
apenas da infraestrutura.
Os elementos contraditórios dentro da superestrutura geraram historicamente sua
duplicidade: à estrutura político-jurídica opunha-se à estrutura de consciência social.
Também nesta última estrutura não podiam-se evitar os opostos, e duas
subcategorias, ao fim, três, viriam a agrupá-los e descrevê-los: (1) a estrutura ou

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subestrutura de psicologia social; (2) e a subestrutura de ideologia social; finalmente (3)
a subestrutura de ideologia política.
O caráter profundamente conteudístico da estrutura de consciência social nos
indica o surgimento desta estrutura a partir de seu embrião, a cosmovisão das
sociedades primeiras. Vemos, assim, que aí já estavam em germe as "subestruturas"
referidas e descritas pelas "subcategorias".
O avanço da divisão natural (sexo, idade...) do trabalho, o advento e avanço da
divisão social do trabalho associam-se a novos quadros alienatórios e desempenham
decisivo papel na conformação da superestrutura.

4.1. Consciência Social e Psicologia Social Como Subestruturas Superestruturais

Sem entrar no detalhe dos debates entre os especialistas no método do


materialismo histórico, poderíamos informar que a estrutura de consciência social é o
desdobramento histórico de uma estrutura mais simples, a estrutura de psicologia social,
a qual, após originá-la, ficou nela compreendida.
A estrutura de consciência social pode, assim, ser sucintamente expressa como
um processo que abarca uma sucessão de outros processos, apresentáveis como
estruturas fenomênicas que se propõem no curso do tempo histórico, e logicamente
definíveis em função daquela estrutura, como partes dela integrantes. Daí que o
conhecimento destes processos específicos como estágios históricos sucedentes é que
nos permite compreender a estrutura de consciência social.
Quando os homens - fossem aqueles da horda de hominídeos, fossem aqueles da
aldeia indígena, fossem estes que se encontram nesta sala - se reúnem para resolver seus
problemas, aparecem obviamente soluções.
Estas soluções podem ser adequadas ou não ; podem haver equívocos,
incidentes, que levem a confundir causa e efeito, etc. De maneira que, não importa,
estas soluções boas ou más, são guardadas na memória individual e na memória do
grupo.
Todas estas experiências - de fato experiência históricas - são acumuladas desde
as sociedades menos complexas até as mais complexas no tempo histórico. Também
não é o decisivo a forma pela qual elas fiquem gravadas na memória: (1) herança
genética; (2) contos e narrativas; (3) crenças; (4) literatura; (5) literatura científica.

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A acumulação e a memorização desta experiência histórica não implica - é
interessante! - a sua reorganização de acordo com a divisão social do trabalho no futuro,
mas tão somente a inserção da mesma na memória coletiva através do mecanismo
modulador: o camponês louco transforma-se em profeta ou fundador da raça, para o
futuro... Mas não é isto que nos preocupa aqui.
Assim, acumulam-se interpretações consideradas válidas pela sociedade que
refletem, de fato, a experiência histórica de soluções de problemas no passado. O grupo,
o interesse, ou a classe que dominou no passado, dominará este estágio, esta estrutura da
consciência social. Estamos falando da estrutura de psicologia social (ou subestrutura,
se consideramos a categoria para aplicação atual).
Devemos aqui observar que, das mais de 400 gerações que estão constituídas na
memória do Ocidente, apenas 30-40 gerações (10%) compreendem o espaço histórico
da revolução industrial até aqui.
Uma colossal massa de memória aparentemente perdida de 370 gerações, se
quisermos considerar a memória ocidental européia, atua, portanto, como substrato de
cada atitude assumida nas culturas decorrentes deste tipo de civilização. Não queremos
enfatizar um determinismo, mas apenas as pré-condições superestruturais.
Se considerarmos, por exemplo as culturas africanas, na perspectiva do antigo
Estado egípcio ou do domínio da Etiópia, estes sistemas teocráticos estão afastados de
nós até 780 gerações, o que dá a dimensão do profundo arraigamento que o movimento
superestrutural impõe sobre o futuro, com a experiência do passado.
Poderíamos descrever, portanto, o estágio de psicologia social da estrutura de
consciência social como um amálgama, uma estrutura onde se encontram todos os
apelos e entendimentos consensuais que refletem historicamente o grupo e que ele
percebe como sua experiência.
Nesse sentido, as crenças ou idéias aí compreendidas não fazem mais parte de
um grupo ou outro, embora nós possamos rastrear e até catalogar sua origem de classe
ou de grupo social. É evidente que no Egito antigo havia uma psicologia social dos
aldeões e outra dos palacianos, por exemplo, mas ambas estavam plasmadas de tal
maneira que as diferenças não eram grandemente percebidas por sua origem social entre
os personagens daquela sociedade.
Quando eu digo "cataplasma é bom para aliviar o pulmão" digo algo que em
nossa sociedade reflete mais a psicologia social do pobre, e do homem do campo, mas

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também poderemos encontrar industriais que compartam o mesmo ponto-de-vista,
porque "minha avó" ou "minha mãe" sempre fez assim.
Diferenças do padrão do tipo que acabamos de explanar levaram, ao longo do
tempo histórico, à crescente separação entre a psicologia e a ideologia sociais, de forma
que a estrutura ou subestrutura da ideologia social terminou por separar-se da psicologia
social de modo nítido, com conformação própria.

4.2. Consciência Social e Ideologia Social Como Subestruturas Superestruturais

Ao nível da subestrutura da ideologia social, os elementos éticos, estéticos, os


costumes, etc não se encontram mais amalgados em articulações ocasionais e
representativas, como o culto ou a dança coletivos, mas ganham o estatuto de corpos
doutrinários distintos em institutos sociais próprios.
Por exemplo, quando o negro era proibido como escravo de brincar o Carnaval,
o que se procurava era impedir a fusão da festa ou da expressão cultural do negro com
os entrudos do branco, e desta forma preservar a ideologia e psicologia sociais do
branco, da psicologia social do negro que, sendo muito mais representativa do universo
da sociedade, poderia sobre o branco influir.
É evidente que a separação em corpos sociais distintos implica o caráter
doutrinário coisificado e, portanto, altamente alienatório da ideologia social. É ao nível
da ideologia social que são mascarados os privilégios (se necessário) e os sistemas de
dominação. A rede "pública" de educação cumpre aqui papel essencial. O "modulador"
é aqui ainda mais importante, porque as contradições da ideologia social se passam num
nível de refinamento, de luta e domínio ideológico, portanto, sob a forma de consenso
social.
Um livro de escola, um texto religioso, um manual universitário, dificilmente
devem ser acusados de não representar a sociedade, mas apenas o cínico conchavo de
um grupo. E a questão se torna efetivamente mais complicada porque a psicologia social
indica para todas as forças da sociedade o caráter benemérito, "maravilhoso", geral,
dessas instituições doutrinárias concretas.
Vemos assim a última contradição entre a ideologia social e a psicologia social;
a ideologia é sistemática, a psicologia é empírica; a ideologia tende ao seletivo, a
psicologia ao acumulativo; no entanto, a ideologia não pode subsistir sem a psicologia,
porque não passa de uma radicalização das absurdidades daquela. A ideologia se ceva

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na psicologia social, faz dela seu caldo-de-cultura, e procura instrumentalizá-la para
exercer o domínio ideológico absoluto da vida social, através de uma visão-de-mundo
às avessas, manifestada na manipulação, no controle da opinião pública.
Por outro lado, em aparente absurdo, a psicologia social se rebela contra as
coisificações específicas da ideologia social. O "senso comum", a experiência das
"velhas gerações" é trazida de volta na censura às "novidades piores que se
estabelecerem". Prova-se que "antigamente era melhor"; refazem-se releituras e
discursos de todos os institutos: éticos, filosóficos, estéticos, etc. Esta luta contínua se
evidencia por ciclos, por "voltas" periódicas do "passado" e de seus "costumes"; pelo
saudosismo como instituição e pela rejeição ideológica dos novos dominadores.
Assim, os rebeldes ingleses do século XVII executaram o rei por introduzir
novidades e não seguir a Bíblia. Eles estavam sendo sinceros; não possuíam uma
ideologia política explícita; a sua ideologia política se confundia com a sua própria
ideologia social de trabalhadores e pequenos-proprietários.
Referindo-se ao mestre-escola suíço, disse Nadezda Krupskáia que ele era o
"carcereiro do proletário suíço". Isto é, a passagem da ideologia social através da
psicologia social era tão bem feita na escola suíça, que o trabalhador suíço tornava-se
prisioneiro superestrutural do seu futuro patrão, antes de ser trabalhador, ainda como
criança. Neste sentido, o proletariado suíço renunciava a elaborar a sua própria
ideologia social, fundindo a ideologia social dos patrões com a sua psicologia social de
suíço. Tratava-se, pois, por via da escola, de difundir-se a cegueira espiritual. Não ver o
"outro", para uma classe social, implica em continuar como classe-em-si.
Há, portanto, uma subestrutura de consenso, e esta é a psicologia social; há,
depois, uma subestrutura de doutrinação, de coisificação, e esta é a ideologia social.
Quando o individualismo e o "fetiche da mercadoria" avançaram demais na sociedade,
criaram-se as condições para uma nova subestrutura destacar-se da ideologia social: a
que chamamos de ideologia política.
O exemplo clássico do caráter consensual - embora contraditório - dos
fenômenos da subestrutura social é a prova da existência de Deus chamada "consenso
das gentes". Segundo esta prova, de formulação medieval, "se todos os povos crêem em
Deus é porque ele existe". Trata-se, no caso, de nítida confusão entre fato e crença. No
terreno da psicologia social, a "experiência teórica" da maioria é aceita como "prova" e
como tal não necessita ser submetida a verificação racional.

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Por outro lado, a subestrutura de ideologia social não trabalha apenas com a
"experiência dos povos", embora se apoie nela. Ela "prova o que sabe", através dos
esquemas clássicos da "miopia das classes". Portanto, ela fabrica "provas" parciais que
são generalizadas e tornadas "consensuais" através dos mecanismos da subestrutura da
psicologia social, e impostas a "opinião pública", que funciona como uma espécie de
janela da psicologia social. A maior parte dos argumentos apresentados até como
acadêmicos não passam de argumentos de ideologia social, onde a confusão entre fato e
crença é ulteriormente sofisticada. Por exemplo, sabemos que é correto que, para o povo
Deus existe, ele é um fato de psicologia social, ele explica diversos comportamentos da
sociedade que não podem ser explicados de outra forma. Podem, evidentemente, ser
canalizado como uma força material, como nos casos das brigadas da K. Klux Klan, ou
da "marcha da família com Deus", do célebre padre Caldwell.
O fato de "Deus existir" ,contudo, como um fenômeno de psicologia social "não
justifica" a sua corporificação doutrinária nas igrejas correntes, fenômeno de ideologia
social, nem a enorme quantidade de teses acadêmicas que tratam de sua "realidade
como ordem universal". Nesse caso, o caráter doutrinário, coisificado, e,
consequentemente alienado, revela-se na transformação de um fato psicológico (crença)
num fato material (existência) da sociedade. O que explica a corporificação doutrinária
de Deus em igrejas é a necessidade de manipulação ideológica na superestrutura, para
garantir a perpetuidade de sistemas de reprodução e de apropriação econômica e
cultural. Por outro lado, do ponto de vista histórico, e não político-ideológico, todas
estas instituições religiosas, por corresponderem a necessidades concretas, "estão
justificadas" no sentido do tempo histórico.
Vê-se, portanto, que a "teoria da superestrutura" como modelo do que se passa
na "realidade histórico-social" , não pode ser separada do substrato político-ideológico
da teoria da alienação. Mas deve ser modelada pela separação entre os aspectos
analíticos e históricos da abordagem, que se relativizam mutuamente, evitando que a
teoria, ela própria parte de uma doutrina, se inutilize a ponto de reduzir-se a simples
fenômeno de ideologia social. Esta teoria tem a pretensão maior de ser um fenômeno de
ideologia política, o que nos faculta, aliás, a discutir um pouco os elementos da
subestrutura de ideologia política da estrutura de consciência social.

4.3. Ideologia Social e Ideologia Política Como Subestruturas Superestruturais

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O surgimento da subestrutura de ideologia política de dentro da subestrutura de
ideologia social produziu-se, na Civilização Ocidental, nos séculos XVII e XVIII,
quando a luta de classes tornou-se um fenômeno tão explícito na sociedade que já não
se podia ocultar a luta permanente entre as diferentes ideologias sociais. Esta luta havia
tomado um caráter aberto e programático, originando o que nós chamamos de
subestrutura de ideologia política, com o desenvolvimento dos jornais, da literatura de
choque, com o romance, etc. A duplicidade do poder social gerou a profissão de
"jornalista", que ao lado do "teatrólogo" veio a se tornar o grande porta-voz na luta
aberta de classes para o domínio da opinião pública, ou seja, da psicologia social.
O passo seguinte foi a formalização das formas de luta pacíficas de classes, com
o advento da democracia burguesa, do jogo parlamentar, dos partidos e clubes políticos,
etc. Como sabemos, esse avanço no sentido de permitir ao indivíduo se opor ao Estado,
ao próprio interesse de sua classe etc não foi um avanço linear, mas compreende parte
de todas as desesperadas lutas conhecidas entre os séculos XVII e XX.
Vemos, de fato, a imbricação e a alienação mútuas entre o reconhecimento à
alteridade e luta no seu desenrolar pacífico e/ou no desenrolar violento. Moralmente,
contudo, não se pode reconhecer, ao nível da ideologia social, tal fenômeno. Embora
determinados institutos de ideologia social reconheçam o direito de rebelião, é somente
ao nível da ideologia política que tal princípio fica, de fato, compreendido.
Vemos, assim, que as contínuas complicações das sociedades no tempo
histórico, compreendendo claramente os momentos de ruptura, implicam na
transformação, ou mudança social, também pelas contradições da superestrutura,
embora esta estrutura como um todo seja gerada a partir da base material, ou seja, da
infraestrutura.
Podemos falar deste modo da "estrutura da consciência social" como reflexo do
"ser social". E que o entendimento desta estrutura reflita, seus mecanismos constitutivos
e seus processos de mudança, é de suma importância. Neste sentido, a interação entre
estrutura político-jurídica e a subestrutura de ideologia política constitui ponto crucial,
para permitir a percepção do funcionamento da superestrutura e do processo da sua
lenta modificação.
A diversidade dos processos da consciência social se manifesta na reflexão
parcial dos interesses do ser social como um todo em diferentes propostas e programas.
Nesse caso, cada forma da consciência social como um todo, particularmente a um nível
da subestrutura da ideologia política, apresenta um "programa" para o conjunto da

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sociedade e dá, como resultado, a sua visão parcial e separada do caminho da sociedade,
ao nível da subestrutura de ideologia política.
Torna-se evidente que, sem os mecanismos de "administração pacífica" da crise
superestrutural, não haveria subestrutura de ideologia política e que, por outro lado, sem
subestrutura de ideologia política tampouco haveria o explícito de programas "parciais"
para o conjunto da sociedade. Daí a importância do "modulador" ao nível da
subestrutura de ideologia política, particularmente no que se refere às relações desta
com a estrutura político-jurídica.
O modulador permite aos programas explícitos e egoístas das diferentes camadas
e classes sociais serem "disfarçados socialmente" ao nível da subestrutura da ideologia
política. Desta forma, as condições para a dominação aberta podem ser mascaradas e o
poder do Estado pode ser exercido através de condomínios específicos que refletem a
canalização e o consenso, ao nível das subestruturas da ideologia social e política.
Instaurada a "hipocrisia social", a sociedade complexa, a civilização contemporânea
pode adiar e/ou mascarar os seus conflitos internos até graus extremos.
Desta maneira, os mecanismos alienatórios em curso na superestrutura, ao
mesmo tempo refletem e adulteram as necessidades econômicas e sociais num jogo
independente e numa ação indireta que requer a maior sofisticação para uma análise
correta.
A existência como produção social leva, assim, no processo do tempo histórico,
à geração de estruturas contraditórias: (a) uma para a produção efetiva; outra (b) para a
assunção perceptiva como ser social. De um lado temos o campo da observação e
estudo da História Econômica; do outro, aqueles da História Social e da História
Política. Seria ingênuo, contudo, se pretendêssemos entender o funcionamento da
infraestrutura, ignorando a superestrutura; ou vice-versa. Os problemas do processo
efetivo da sociedade como fenômeno histórico só podem ser percebidos na globalidade,
na síntese. A separação, a análise, não são mais que artifícios do modo de abordagem, a
lógica formal e a lógica dialética.
Elas operam através do modelo constituído, e nos permitem abordar
categorialmente o fenômeno; mas não o esgotam, nem nos permitem fazer avanços
maiores que o próprio ferramental, a própria ideologia que aplicamos.
Neste sentido, a subestrutura da ideologia política tem por implícito a dualidade
e até, pluralidade, das ideologias políticas. Os problemas polarizados ao nível da
subestrutura de ideologia social, e até mascarados, devem ser permitidos "existir" ao

27
nível da ideologia política. Um ulterior refinamento dos argumentos e das técnicas irá,
nesse caso, contribuir para a diversificação e sutileza maior da subestrutura de
ideologia social.
A ideologia dominante, uma ou várias, não dominará mais apenas como
mecanismo espontâneo a psicologia social e a ideologia social. As instituições e
aparatos deste processo far-se-ão ou tender-se-ão a fazer-se ocupar por partidos
políticos formais, que se propõem abertamente ao controle da sociedade. Como
exemplo, poderíamos citar o PDS, partido da ditadura, que domina até hoje a CBF, os
clubes de futebol em vários estados, particularmente São Paulo, etc. Através destes
mecanismos do lazer das multidões, controlando o lazer destas multidões, os
manipuladores se identificam com a representação de mundo dessas multidões, não
apenas ao nível da opinião pública (psicologia social), da ideologia social (terreiros,
igrejas, mães-de-santo) mas ao nível das representações políticas (eleições, escolha
partidária, voto, etc).
Ora, sendo a ideologia política uma forma da consciência social, ela reflete
primariamente o "ser social", como referimos, reflete um sistema dado de relações de
produção. Em função de seu caráter conteudístico, por outro lado, ela não pode deixar
de canalizar os interesses sociais implicados nesta reflexão. Daí a dualidade desta
subestrutura: ela "deve refletir" os interesses de dominação, numa ideologia política e
dos dominados, noutra; ou até múltiplas ideologias políticas, que encontrem sustentação
na formação econômico-social para a sua sobrevivência. Daí o grau de dependência em
que a dominação, através da ideologia política, fica de cada situação concreta na relação
de forças. Daí a enorme necessidade de obter alianças e consenso ao nível da ideologia
social e da psicologia social da sociedade. Daí a importância dos mecanismos de
efetivação de mais-valia, e de sua redistribuição na sociedade. Fica caracterizado o laço
profundo com as relações de produção.
Admitamos, para fins de argumentação, que ao nível da subestrutura da
ideologia política existam somente duas "ideologias políticas": (a) a da classe
dominante; (b) a da principal classe dominada. Neste caso teríamos que, para cada
classe, apenas a sua visão corresponda uma visão "correta e necessária" do mundo, a
clássica "miopia das classes". No sentido, portanto, de cada uma dessas classes, a visão
da ideologia política não chega a ser subestrutural: suas ideologias não estão vinculadas
e não devem desaparecer como resultado do movimento histórico. A superação será
apenas a superação da ideologia do outro, subsistindo sem grandes alterações a

28
ideologia que lhe é própria. É esta "miopia de classes" que faculta, ao mesmo tempo, o
caráter classista da ideologia política e o potencial para a ruptura da ordem (unidade)
estabelecida. Pela via da tentativa de volta ao passado ou pela via de revolução.
Pode-se, portanto, falar, desde um ponto-de-vista político-ideológico, em que a
ideologia política tem um caráter de classe. Tal raciocínio é também extensivo para a
subestrutura, entendendo-se, porém, tal caráter no plural, pois existirão, ao menos, nesta
subestrutura, dois blocos ideológicos hostis, com base classista.
As idéias gerais e postulados que expressam o interesse político de determinada
classe espelham tanto os seus anseios como os seus métodos de luta. Isto significa dizer
que a ideologia política de uma classe está solidamente encartada na ideologia social
desta classe, e que ela possui, por origem, uma psicologia social que também lhe é
própria.
É evidente que uma grande parte dos conceitos e idéias gerais da ideologia política, da
ideologia social e da psicologia social de um dada classe, também faz parte da visão de
outra classe etc gerando-se, por este cruzamento, uma situação superestrutural em que
uma parte considerável da cultura de dominação reflete a necessidade de ruptura, e que
da cultura revolucionária reflete a necessidade de continuidade. Temos assim o
cruzamento de diferentes conjuntos formando, de fato, subconjuntos específicos de (a)
psicologia social; (b) ideologia social; (c) e ideologia política, comuns à totalidade, ou a
maioria absoluta da sociedade. É nestes subconjuntos específicos que se nutre a
mudança social. O choque do sistema social presente com o sistema social futuro tem
um ponto comum de convergência parcial, o subconjunto do sistema utópico que
interage ambos.
A ideologia política da classe dominante ao nível da subestrutura da ideologia
política trava a luta social, intelectual e teórica, capaz de mantê-la atualizada na leitura
da realidade. Seus agentes, em conseqüência, preenchem com esta leitura teórica os
conteúdos disponíveis da estrutura político-jurídica, ou seja, o Estado e outros órgãos de
dominação. A relação-de-forças política concreta, na luta pelo discurso da opinião
pública, permite um preenchimento mais ou menos cabal, hegemônico ou não, do poder
do Estado.
Nestas condições, desempenham um poderoso papel o monopólio dos meios de
informação e comunicação, porque eles permitem controlar os moduladores sociais do
processo superestrutural. Sabemos que o desenvolvimento da imprensa por Gutemberg
quebrou, no fim da "Idade Média", o monopólio que a Igreja possuía dentro da

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intelectualidade; mas sabemos também que a sociedade contemporânea desenvolveu ao
máximo tais meios de comunicação, de forma que os mesmos hoje são inseparáveis dos
detentores das relações de produção.
Por isso vamos considerar um pouco as relações de aspectos da superestrutura
como formas de alienação.

4.4. Psicologia Social e Alienação

Como dissemos, as idéias sociais gerais, portanto, as "ideologias gerais" e as


teorias sobre a sociedade, fazem parte da superestrutura. O Estados e outros
mecanismos políticos-operativos, como as empresas, caracterizam-se como
fundamentos políticos da superestrutura, vinculando-a expressadamente ao processo de
base.
Com o avanço das relações de produção capitalistas por todo o globo terrestre
recuaram os sistemas de produção tradicionais, com o desaparecimento proporcional de
classes e camadas sociais ligadas à pequena produção para os mercados locais, ou até
"mercados primitivos".
O fato de terem ocorrido profundas transformações às custas de sociedades
tribais, comunidades aldeães, indústrias artesanais e pequenas nações não implicou, por
outro lado, o desaparecimento social da experiência histórica dessas classes e grupos, ou
mesmo, das ideologias gerais a ela vinculadas, ou por ela culturalmente preservadas, de
sociedades anteriores. Ou seja, o "ser social", ou "ente social", ao nível material de vida
quotidiana, da cultura, da família e do trabalho, para exemplificar, continuou operando
com soluções herdadas historicamente de outros sistemas econômicos, que talvez já não
existissem sequer como "restos".
A divisão social e técnica do trabalho, em suas relações com a psicologia social
e outras formas da consciência social, continuaram "refletindo" tais deformações,
resultados "ossificados" de experiências pregressas.
A questão é: o osso que o folião traz pendurado no pescoço faz parte do folião
ou faz parte do Carnaval? Na medida em que as pessoas são os "verdadeiros veículos"
das relações sociais, é possível que até o Carnaval seja parte do folião.
Todo ato de criação cultural, reflete um determinado momento do ser social,
pois este "envelopa" materialmente os parâmetros específicos desta criação cultural.

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Assim, alguma função deve ser atribuída a estes "restos", que do ponto-de-vista racional
parecem não ter significado.
Parece haver um significado na sobrevivência destes "restos" de "entes sociais
anteriores", no processo de "alienação como alheação", ou seja, a recusa em participar
da sociedade vigente. O estudo das superestruturas das sociedades pré-industriais nós dá
inclusive indicações da prática coletiva da alheação como alienação, o que implica dizer
que tal não é uma novidade da sociedade industrial. A condenação característica da
sociedade industrial quanto a tais práticas revela as dificuldades que as mesmas
impuseram às relações capitalistas, através do "mercado-de-trabalho". Mas como tal
forma alienatória está vinculada à ruptura da cosmovisão e tem base na pequena
propriedade, ela estava, certamente, garantida de sobreviver, no ambiente de outra
superestrutura privatista ( no sentido do seu "ser social").
O pensamento das pessoas comuns reflete todo tipo de sentimentos e percepções
comuns do grupo, com relação a explicações e relacionamentos, bem ou mal
fundamentados, na sociedade. Trata-se do ambiente da psicologia social, em que o
moral, o rito, a rude experiência, as idéias religiosas e grupais encontram-se
intensamente misturadas e consolidadas. Nos ditados populares podemos ver os
verdadeiros "sistemas analíticos" herdados de "entes sociais passados" e que
ornamentam a maneira de ver das maiorias sociais. "O bom filho à casa torna"; " o frade
ruivo do que usa, cuida" etc são algumas jóias das que nos revelam as superestruturas
passadas.
É evidente, pois, que o conjunto das formas vivas da psicologia social se
encontram referidas na estrutura da psicologia social. O que não invalida nem nega o
terreno específico de psicologia social das diferentes classes sociais, que se
entrecruzam, mas não se confundem necessariamente, com o pano-de-fundo
superestrutural das mesmas, para as sociedades mais complexas.
Há, portanto, uma situação ampla na sociedade, que abarca o todo das operações
transmudadas da superestrutura por seu "modulador"; e há uma representação modelar,
categorial, feita para a compreensão, que interessa-se apenas pelo que processa o
"modelador". Nesse caso, o modelo, devido a sua simplificação, permite compreender o
processo real, sem que nos percamos para sempre no nível empírico.
A operação dos elementos ordinários de consciência implicados na psicologia
social estimula os fundamentos da visão de grupo, determinada pelas condições
materiais de existência. Pessoas que trabalham nos mesmos locais, moram nos mesmos

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bairros e são obrigadas a ter que conviver nas mesmas associações e clubes tende a
apresentar uma psicologia social comum, que se manifesta ao nível do que
classificamos como "operação espontânea". É claro que ao lado de especificidades
étnicas e culturais, a "operação espontânea" será diferente no Jardim Paulista, numa
fabrica do Brás ou no Largo 13 de Santo Amaro; será diferente na Hípica, daquela do
Clube da CMTC. No entanto, é possível a um ou a vários indivíduos alhearem-se
completamente do seu meio social e manifestarem-se com padrões totalmente estranhos.
Poderíamos interpretar tal comportamento como característico da alienação por
alheação.
Se tal atitude chega à negação da própria personalidade do meio, com
identificação que recuse o seu próprio eu, teremos o caso da alienação, ao nível da
psicologia social, com a privação do seu próprio eu. É comum encontrarmos pessoas
que buscam amizades com pessoas mais ricas, fogem da vida no seu ambiente de
trabalho ou de residência, expresso na acepção clássica: "Não me rebaixo, só subo!”
Esta expressão é manifesto público da alienação com privação do seu próprio eu, ao
nível da psicologia social.
É sabido que a alienação pela privação do seu próprio eu atinge indivíduos ou
grupos de alta sensibilidade e revela o desespero ante a opressão, a ausência da
percepção de um caminho, de uma saída, dentro das estruturas sociais. Ao lado das
alienações características do reflexo das condições materiais de existência, deformações
adicionais podem ser racionalmente consideradas como fonte explicativa de extensivas
"irracionalidades", ao nível da psicologia social e da consciência social em geral. A
incorporação material dos hábitos, das tradições, dos vícios, dos costumes, das manias,
enfim de parcelas consideráveis e até majoritárias de uma sociedade implica, portanto, a
idéia de "deformação do reflexo". Isto é, a superestrutura não "reflete" apenas o "lado
correto" dos condicionamentos do "ser social", mas "reflete" também as deformações
deste condicionamento, bem como as "sobrevivências" de reflexões históricas
antecedentes.
Neste sentido, a alienação pela religião é uma das mais profundas e interessantes
características da psicologia e da ideologia sociais, conquanto ela praticamente não se
estenda, como tal, ao nível da ideologia política.
Havendo a explicação religiosa se gerado pela relação mágica, eletromagnética,
cinética, entre os grupos humanos e fenômenos naturais, ela não pode ser separada das
experiência cognitivas próprias das cosmovisões primitivas. Consequentemente, na

32
experiência do processo civilizatório, o desenvolvimento da superestrutura traz consigo
o desenvolvimento da religião. Ao longo do tempo histórico, a religião se materializa
mais e mais, desempenhando importante papel nas relações de produção e cristalizando-
se ideal e institucionalmente ao nível da ideologia social. Transforma-se, pois, em
importante modulador de ideologias sociais específicas para a dominação e a produção,
desempenhando um papel coisificador das superestruturas passadas e sua reinserção nas
novas formas superestruturais.
As íntimas relações da psicologia social com o "ser social", que fazem dela, sem
dúvida, a parte "mais material" da estrutura de consciência social, implicam em muitos
aspectos a dificuldade analítica de separar relações de produção e psicologia social.
Como "reflexão espontânea" da sociedade, é a psicologia social a esfera que
impulsiona a ação imediata dos coletivos humanos, dispensando em geral reflexões
ulteriores de corte individual e caracterizando, o "sentimento das massas", Por isso, o
controle da opinião pública é uma força material decisiva para o desempenho da
superestrutura.
Por outro lado, este "estado de prontidão" da psicologia social, de proximidade
da atividade produtiva, faz dela a "porta-de-entrada natural" da alienação pelo trabalho
na superestrutura. A alienação pelo trabalho é uma das principais forças superestruturais
que fazem avançar a individuação e, consequentemente, o individualismo. O homem
como produtor-de-produtos, ao perder esta condição e se transformar em objeto da
mais-valia, em vendedor de força-de-trabalho, tem como resultado o trabalho
transformar-se em algo exterior a ele. A estranheza do trabalho, o desaparecimento do
HOMO FABER, implica o ódio ao trabalho, o desprezo pelo instrumento de seu
empobrecimento. Daí que a psicologia social abrigue tantas formas de associação que
legitimam o ódio ao trabalho e desprezo ao próprio trabalhador.
Evidentemente que estamos dando exemplo bastante simplificados. Na família
tribal matrilinear, na família "camponesa patriarcal", na família "mercantil moderna" etc
por exemplo, as formas de alienação e as subestruturas da consciência social associam-
se de forma diferenciada e com múltiplos efeitos, numa sucessão de jogos de "quebra-
cabeça" praticamente sem fim e que exigem estudo concreto, caso a caso. A nossa
preocupação aqui é apenas indicar como se fazem tais associações analíticas. O
raciocínio althusseriano da alienação pela dupla identidade, por exemplo, é mais
significativo como fonte de hipóteses para trabalhar-se ao nível de ideologia social, do
que ao nível da psicologia social.

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A continuidade da divisão social do trabalho, com a permanência de hábitos e
instrumentos de trabalho, durante várias gerações; habilidades adquiridas coletivamente
no trabalho e no lazer; atitudes e formas de conhecimento grupal; constituem-se
elementos decisivos no desenvolvimento da psicologia social.
Vemos assim que o cruzamento da experiência, ou sucessão de experiências,
entre os institutos da superestrutura e da vida da população, "grava-se" ao nível da
psicologia social, como "tradição".
Hobsbawm, analisando casos da Grã-Bretanha, chama a atenção para os procedimentos
pelos quais as classes dominantes na Escócia, ou na era vitoriana etc "inventaram"
tradições para o Reino Unido, descoladas do desenvolvimento histórico real. É
interessante também observar-se que tal "invenção" não é um ato isolado das classes
dominantes, mas correspondem também a "necessidades da psicologia social das
massas", do contrário elas seriam simplesmente ignoradas.
Uma das mais cruéis "invenções" da superestrutura ocidental, o racismo,
corresponde a necessidade dos colonizadores em geral; "invenção" do soldado de linha
enviado para a colônia; do trabalhador rural desempregado na metrópole, transformado
em capataz na colônia; etc. Caso o racismo corresponde-se "apenas" a "invenção da
classe dominante" ele não seria posto em uso em tal escala pelo conjunto da sociedade
dominadora. Nesse caso, a inferiorização biológica da vítima, justifica a consciência
social do algoz. Nenhum caçador pode achar que ele e o elefante fazem parte
igualmente da natureza.
Os fatos sucessivos da intelectualidade "espontânea" viva no meio da população, sua
percepção das relações sociais e dos fenômenos nacionais etc acumulam os sentimentos
e procedimentos populares de geração a geração. Tal constitui-se de uma "sabedoria
própria", que não depende exclusivamente da psicologia social das classes dominantes,
mas que - pelo contrário - engloba tal experiência classista. Esta experiência transmite-
se entre diferentes países ou culturas, sendo a "fonte material das ideologias sociais" e
base importante das mudanças culturais futuras.
A medida que se avança pela sociedade de classes, é compreensível que aumente
a importância específica das psicologias sociais de classe dentro do subconjunto
"estrutura de psicologia social". Ainda assim, continuará existindo este "espaço comum"
das diferentes psicologias sociais das classes, pois é através deste mecanismo unificador
que se processam as interações e leituras recíprocas de experiência, ao longo do tempo
histórico e ao nível da psicologia social.

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O exemplo empírico da História também nos demostra a lentidão com que se
operam os "desaparecimentos" da psicologia e ideologia social de formações
pregressas, ao mesmo tempo em que nos indica a extensão da atividade dos mecanismos
reorientadores que coisificam as formas superestruturais passadas e as reaproveitam.
Vemos, assim, ao lado das características classistas ou de grupo, a permanência
do "sentimento nacional" e das "tradições, que desempenham funções à margem da
racionalidade de quem analisa, ou de quem as vive. Isto significa, portanto, um "caráter
objetivo da estrutura da consciência social", que não pode ser confundido com apenas
"o desenvolvimento subjetivo da consciência". Uma vez que a representação intelectiva
da consciência social não se confunde com o próprio processo da consciência social, há
fundamento para nos referirmos a esta objetividade.

4.5. Ideologia Social e Alienação

A consciência objetivada das classes sociais e o seu cruzamento, a que estamos


constantemente chamando de subconjuntos dos modos-de-ver, pode ser chamada de
“ideologia social”. Quando dizemos “ideologia social” estamos insistindo na sua
independência em relação a pontos-de-vista individuais. Como a psicologia social, a
ideologia social é ambiente, o caldo-de-cultura onde se reflete o ser social; mas é algo
diferente: ela está mais estratificada, mais separada da produção, sob a forma de
“opiniões sociais”.
É claro que estas opiniões sociais não são simples agregados, amalgamados
como havíamos insistido no caso da psicologia social, mas separados bem definidos,
com suas instituições de “visões sociais”. Ao nível da ideologia social, encontraremos
“correntes de opinião” sobre os diferentes fatos da superestrutura da sociedade:
políticos, filosóficos, éticos, jurídicos, religiosos, estéticos, etc. Estas interpretações
separadas nos revelam não apenas a visão ideológica das diferentes classes ou camadas
da sociedade, como também nos indicam os “cruzamentos”, os pontos-de-vista que
ultrapassam o horizonte de um grupo definido e terminam por formar “o substrato
comum”. Por outro lado, este substrato comum constitui-se a base da “ideologia
nacional”, etc. É aí que as classes dominantes vão buscar os valores, apresentáveis
racionalmente, para justificar e fortalecer, se possível, seu “domínio nacional”, etc.
Vemos, portanto, que na expressão da “estrutura de ideologia social”, os
sistemas operativos alienatórios da consciência social são sedimentados, reificados

35
como instituições e tornam-se institutos ativos da difusão alienatória “ao nível da
razão”. Ao tempo do Estado teocrático antigo, em que a dominação se exercia através
da cosmovisão, em fragmentação, da sociedade aldeã, colocados a serviço de corpos
sacerdotais, expressão da “nova dominação”. Na sociedade moderna, embora tenha sido
quebrado o monopólio que os institutos religiosos possuíam da intelectualidade, as
igrejas ainda “falam pela sociedade”, refletindo o seu poder como ideologia social.
Por outro lado, ao representar a concentração melhor articulada das visões
existentes na “psicologia social”, a “ideologia social” mostra-se capaz de expressar os
interesses de classes inerentes à psicologia social como ideologia social. Isto significa
um acumulado das melhores teorias sobre os aspectos econômicos, políticos e
filosóficos da vida da sociedade, posto a serviço da visão-de-mundo de uma classe.
A subestrutura ou estrutura - tanto faz - da ideologia social, consiste assim de
uma visão-de-mundo tipificada, um subconjunto de idéias, teorias e doutrinas que são
comuns a diferentes classes da sociedade; este cruzamento, este “terreno comum”
implica um “terreno incomum”. Isto é, para lá desta “visão comum” estão as idéias e
doutrinas socialmente válidas para cada classe e que, obviamente, não podem sê-lo para
todas. Por exemplo, burgueses e trabalhadores podem estar de acordo em que os preços
sobem sem ser culpa de uns ou outros; podem estar de acordo que é melhor o governo
não operar empresas; mas certamente nunca estarão de acordo em que o governo deve
deixar os preços livres porque, então, eles baixarão.
Os trabalhadores aceitam que os burgueses sejam pessoas simples e de boa-fé
como eles próprios se consideram. Está na sua psicologia social. Mas eles dificilmente
crêem que um burguês agirá de boa-fé, se os preços forem livres. Da mesma forma, um
burguês, por exemplo, dificilmente acreditará que o trabalhador vai cumprir seu horário
sem ser vigiado. Há em ambos os exemplos uma base classista de experiência que tende
a negar os valores do outro. E as teorias que partem deste ponto-de-vista, por mais
refinada que seja a linguagem que empregam, dizem apenas isto; o interesse social da
classe em questão.
O fenômeno alienatório também se manifesta de forma que o apreenderíamos
como um “fenômeno de ideologia social”. Ocorrem tanto o “alheamento individual”
como a “alheação grupal” ao nível da ideologia social, constituindo-se num dos
fenômenos mais ricos e interessantes para o estudo da superestrutura. Particularmente
nas sociedades que manifestam “dualidade superestrutural” como no Brasil, com dois
parâmetros bem distintos de ideações e de valores em torno dos quais se constróem

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quase todas as definições da vida social; a alienação na estrutura de ideologia social
adquire profunda significação.
A formalização do trabalho industrial na era Vargas é fonte interessante da luta
entre poder do Estado, com sua máquina repressiva, e a ideologia social dos
descendentes de escravos, os quais eternizaram em poesias e canções o elogio do
“vadio”, do “vagabundo” e da “orgia”; do “malandro” enfim, com a condenação do
trabalhador como a figura do “otário”.
Evidentemente que a simples repressão e a proibição, via censura, dos elementos
culturais de uma “ideologia social indesejável” não resolvem o problema da luta de
opiniões, mas o agrava. A luta se desvia do nível político para formas menos
racionalizáveis. E continua aí, como atesta hoje no Brasil, a “guerra civil oculta”. A luta
pela aculturação de etnias, classes ou “culturalidades adversas” tem, portanto, ao nível
da estrutura de ideologia social, um grande espaço.
Ao nível da cultura de dominação, trava-se uma luta frontal contra manifestações
da ideologia social de outros grupos que podem aspirar ao poder, ou reinterpretar a vida
da sociedade. Por meio das instituições, veículos de propaganda e de comunicação
social, procura-se ridicularizar ou negar a existência de outros pontos-de-vista. O
exótico, o assimétrico, o perturbador são identificados, tornados feios e
instrumentalizados para arruinar seus seguidores. É claro que semelhante luta se baseia
nos elementos comuns a todas as ideologias sociais existentes, num espaço para
neutralizar e, se possível, eliminar a dualidade cultural. Há, portanto, mudança social
pelas contradições da superestrutura, e as manifestações destes diferentes interesses de
forma organizada opera, basicamente, pela ideologia social.
A interpretação da experiência histórica por via da ideologia social reflete, na
sociedade moderna, os interesses de classes e faz parte da luta de classes. A justificação
ou a antagonização de um estado de coisas, da ação do Estado, das agência difusoras de
normas e métodos de comportamento social e político, reflete a experiência do ser
social, as necessidades do processo de desenvolvimento da consciência social. Portanto,
a estrutura da ideologia social leva historicamente a um novo estágio, aquele que
qualificamos de ideologia política. Ao lado da visão-de-mundo socializada de uma
classe, e do cruzamento desta experiência com a de outras classes, surgem propostas,
programas, sistemas de visão, utopias, que refletem diretamente no nível político tais
necessidades sociais, gerando instituições próprias: os partidos políticos.

37
4.6. Ideologia Política e Alienação

É fácil entender que na sociedade moderna todas as classes sociais têm um


sistema definido de idéias básicas que definem o mundo, “em todas as suas estâncias”.
O desdobramento desta “visão científica espontânea”, isto porque ela é muito racional,
implica o surgimento da ideologia política como subestrutura independente.
As relações das ideologias políticas hostis é bastante conhecida pelo nosso ramo
de historiadores e não preciso entrar em detalhe aqui sobre as suas características.
Cumpre apenas relembrar que o surgimento da estrutura ou subestrutura da ideologia
política é um fenômeno histórico bastante recente. Ela está em geral disfarçada sobre o
nome de “democracia política” e em poucos países ou culturas o seu funcionamento tem
permitido uma canalização eficiente dos processos de luta de classes para a otimização
do desempenho da sociedade.
A experiência histórica mais visível neste sentido é a do cenário dramático; dos
golpes de estado, da violação da ordem democrática, mantida apenas a nível
experimental, etc. Conforme enfatizam os teóricos e dirigentes políticos Gramsci e
Togliatti, o desenvolvimento democrático no mundo contemporâneo deve ser entendido
como um meio para os trabalhadores aperfeiçoarem a sociedade. Nesse sentido, a
consciência de classe e a consciência política são parte decisiva do processo de
consciência social, e consequentemente, de transformação histórica da vida.
O processo da ideologia exerce uma poderosa influência sobre a psicologia
social, embora seja por ela gerado. É claro que a partir de um certo ponto do processo, a
psicologia das diferentes classes se desenvolve sob influência de sua respectiva
ideologia, o mesmo podendo-se dizer da sociedade como um todo, no tempo histórico.
Pode-se inclusive perceber, no estudo das superestruturas das diferentes sociedades, as
relações de continuidade e ruptura ao longo do tempo histórico, em que determinadas
ideologias sociais evidenciam possuir “germens de ideologias futuras”, ou que, ao ser
historicamente substituídas, “emprestam” suas estruturas ou parte delas a novas
ideologias, ou simplesmente confundem-se com a psicologia social vigente.
Vê-se assim quão importante se torna o aspecto da alienação, já configurado ao
nível da psicologia social e da ideologia social, quando se manifesta ao nível da
ideologia política.
Os meios principais de influência ideológica encontram-se sempre, nas
diferentes sociedades, nas mãos das classes dominantes.

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Na sociedade contemporânea, estes meios encontram-se nas mão da burguesia,
ou de formas da burguesia, como ditaduras abertas, etc. O controle das igrejas, escolas,
cinemas, redes de TV e vídeo, imprensa, editoras, universidades etc concede à burguesia
um poder social quase monopólico na sociedade. Outros grupos e classes restringem o
seu controle aos atos culturais e políticos de sua própria criação, que prescindem de tais
instituições comunicativas. Se pensarmos na experiência histórica da industrialização
brasileira em que o povo foi levado a um nível de quase mendicidade, desprovido
totalmente dos espaços culturais e físicos de que ainda dispunha há cem anos atrás,
entenderemos o que Marx chamou de “expropriação dos produtores de produtos”; ele
não estava se referindo apenas aos “cercamentos”, mas a toda uma expropriação social e
cultural correlata.
Hoje sabemos que uma comunidade não consegue manter uma escola-de-samba
ou um bumba-meu-boi simplesmente porque ela não pode ensaiar em “praça pública”
ou alugar um galpão - todos reservados para o movimento do capital - ao preço mais
alto do mundo. Poderíamos dar exemplo mais tristes ao nível da educação e da saúde.
Desta maneira processa-se à “libertação cultural das massas”: elas ficam “livres
de produzir cultura” ou de se reunir num sindicato, mas podem assistir à “novela das 6”,
“das 8”, etc.
Os imensos espaços tomados às massas de milhões de trabalhadores, no aspecto
físico, são transformados em “áreas mortas”: enormes supermercados, onde caixas e
embalagens ocupam a posição de modelos em desfile; enormes estacionamentos;
intermináveis autopistas e “minhocões”; colossais prédios de arranha-céus, com um
punhado de famílias a residir. Trata-se de uma “civilização de concreto armado”. Os
imensos espaços culturais tomados aos trabalhadores também se constituem vazios: no
lugar das atividades culturais locais, os “enlatados” de TV, os filmes de violência: a
cultura do ver-sem-fazer, sem participar, sem viver. A industrialização incessante e a
realização dos diferentes ciclos do capital através da urbanização rompem o equilíbrio
ecológico e se refletem na superestrutura como profundos processos alienatórios: a
negação da sociedade, do coletivismo e do próprio eu das diferentes visões e
experiências humanas.
A mídia eletrônica é assim utilizada não para a educação, para o debate entre os
“diferentes veres” das ideologias sociais; ela é utilizada como um instrumento de
massificação, de nivelamento para baixo, de separação entre as “elites” e o “povo” de
modo total e radical: o sucateamento político e cultural da sociedade.

39
Esta exacerbação alienante assume diferentes “formas decadentistas” e tem a
pretensão de se apresentar como “vanguarda”: o consumo de drogas, a recusa ao
trabalho, o tráfico de toda a espécie de venenos - legal e ilegalmente - gera uma
“acumulação paralela”, onde uma “nova burguesia” emerge de atividades consideradas
antes “marginais”.
Portanto, o caráter mistificador das relações sociais expressa as complexidades
da vida social, por um lado, e as necessidades da vida econômica por outro; as crises
exigem novas soluções, e tais soluções nem sempre seguem as “normas estabelecidas”.
Além disso, o caráter mistificador das relações sociais simplesmente mistifica; isto é, ao
expressar a confusão vigente no caráter empírico do processo social, ele distorce
intensamente a consciência social. A primeira destas distorções e alienações é aquela
que atribui total independência e até prioridade para os processos de consciência. Não
há consciência sem experiência, mas isto é mistificado, e pode-se tomar a criatura pelo
criador, ou seja, mistificar-se.
Vê-se, assim, a importância tanto da história social como da história política, ao
retraçar o quadro de todos os processos das diferentes subestrutura que referimos, as
relações do processo de consciência social com o processo produtivo, e os aspectos
independentes daquele. A relação entre a psicologia e a ideologia sociais, ou seja, o
movimento da opinião pública, nasceu em seu sentido moderno - a recuperação do papel
do indivíduo - na revolução cultural do Renascimento. Na sociedade contemporânea, as
forças do Estado assumiram um papel prioritário no controle da opinião pública,
naquele sentido orwelliano de “1984”, ou seja, o exército, a polícia, os tribunais
colocam-se acima dos cidadãos e expressam uma prevalência de uma força social
inexistente fora dos cidadãos: a Nação. O então ministro Falcão escreveu no passaporte
que ele é propriedade do Brasil. Não há liberdade individual se o cidadão pagar por um
benefício e não aproveitar do benefício pelo qual ele pagou. O passaporte é do indivíduo
e não do Estado; O Estado não vai a parte alguma; o cidadão sim.
Através de sofismas como esse, perpetua-se o império da estupidez neste espaço
denominado “Brasil”. Ignora-se, pois, a divisão social da opinião pública, premissa da
vida democrática, e os burocratas a serviço das classes dominantes intentam impor ao
povo a santificação da ideologia dos exploradores.
Este exemplo deixa a nu a visão repressiva - e não mediadora - do Estado. No
caso de uma sociedade, cada cidadão que a compõe, possui direitos e deveres, que são
mediados através do Estado. A mediação implica passividade. O Estado repressivo não

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pode permitir a um cidadão exercer o seu direito de ir-e-vir, porque este direito só é
legítimo quando ele se coloca e não quando ele não se coloca. Você tem direito a comer
as rosas do jardim do rei; mas quando você se apresenta no palácio para tal, é preso ou
“desaparecido”; nisto consiste a “democracia subdesenvolvida”. Você pode casar com
todo mundo, desde que seja com a Maria...

5. Conclusão

Fizemos hoje uma interessante digressão. A provocação lançada lá no começo


“para quem não leu Marx”, mostrou-se cheia de sentido. A visão marxista, ou
materialista histórica, como método histórico, é muito interessante e nos traz muitos
elementos para a reflexão, que não poderiam ser obtidos fora dela. Nesse sentido, nossa
mensagem é que devemos ler as diferentes metodologias, porque temos muito a
aprender com elas.
Temos a aprender com todas as metodologias e nada justifica a afirmação hoje
corrente nos cursos de História de que “Marx morreu”; Marx, como Sombart, ou Weber,
como Buckle, estão bem vivos e muito atuais. A “escola marxista” junto com a “escola
empírica”, são as mais interessantes para se estudar e elas encerram inúmeras “dicas”,
conhecimentos, vias de acesso, que não podem ser recusadas a priori, por adoção de
outras “escolas” também interessantes, mas muitas vezes derivadas destas duas citadas.
Através de uma abordagem detalhada - mas ainda assim superficial - embora que única
no Brasil, do problema da categoria “SUPERESTRUTURA”, intentamos trazer
elementos para a reflexão da juventude acadêmica - de valor geral - mas aqui mais
orientadas para as questões colocadas no dia-a-dia do pós do Departamento de História.
A nossa preocupação foi destacar o quanto uma simples categoria envolve, o
acúmulo de percepções e de processo analítico que aí reside. Portanto, a nossa posição
como estudantes não pode ser nunca a rejeição total, a rejeição a priori, ou a redução
dos conteúdos dos diferentes métodos às críticas rivais estabelecidas por outros
métodos. Ao nos preocuparmos com efetivamente aprender, nos capacitaremos para
ensinar em ambos os casos teremos que possuir uma atitude reflexiva, contida, e até
humilde diante do objeto que pretendemos conhecer. É somente assim que nos
habilitaremos a enxergar a multiplicidade de aspectos que cada questão nos traz, em sua
vida de relações.

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Não devemos supor que antes de nós só havia tontos, idiotas, e que não
percebiam nada do trabalho que estavam fazendo; eles eram seres humanos como nós, e
como tal, refletiam suas próprias superestruturas societárias. Eles tinham idéias,
percepções, teorias, projetos e emoções; não poderiam, portanto, elaborar estudos ou
esquemas que nada refletissem da vida, ou nada possuíssem para nos ensinar.
A importância dos “seminários de pesquisa” está em re-situar os problemas teóricos
vividos pelo coletivo dos pesquisadores de História. Este coletivo vive a sucessão
perene da problemática “demanda de ensino” X “necessidade de pesquisa” e a trancos e
barrancos, sem recursos suficientes, procura indicar as trilhas para o trabalho a ambos
os níveis, que deve-se alimentar mutuamente. Isto talvez explique as qualidades e as
deficiências da presente “intervenção”, ou, se preferem, “excurso”.
Uma das perguntas mais freqüentes dos candidatos à Pós-Graduação do
Departamento é por que “História Econômica” e “História Social”; é porque tais nomes
indicam “Base” e “Superestrutura”, duas categorias bastante conhecidas das “escolas”
que mais têm contribuído para o Método Histórico como um terreno comum. É claro
que não há intenção de excluir a “História Política”, alias muito bem representada em
nosso departamento, mas tratá-la apenas como o “estágio superior da História Social”,
se me permitem o uso de uma linguagem execrada. Nesse sentido, qualquer que seja a
periodização ou a metodologia que venhamos a adotar, continuaremos a aprender muito
das visões diferentes, isto porque a História não aprende da semelhança, mas da própria
diferença. Muito obrigado a todos.

DEBATE (Resumo)

Pergunta - Não seria puramente ideal uma proposta de “método histórico” independente
das diferentes linhas de pensamento historiográficas?

Resposta - Sem afirmar que “estou certo”, penso que não. Há, de fato, um acúmulo de
conhecimento das diferentes linhas de opinião das diferentes “escolas”, que forma uma
convergência, um pano-de-fundo comum, que permite a um “hegeliano” ler um
“marxista” e a um “empirista” debater um ponto-de-vista “kantiano”. Há, sem dúvida,

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aquilo que citamos como um “cruzamento”, uma interposição criativa das diferentes
escolas que se fecunda mutuamente e torna possível - mais do que a troca de
experiências - o avanço comum sobre um terreno comum. Por outro lado, o “ideal” não
possui uma direção necessariamente “ruim”, como comprova a experiência do
hegelianismo.

Pergunta - Não entendi bem o seu exemplo do “vadio” e do “otário” na era Vargas.
Poderia explicar melhor? Você está apoiando os “vadios”?

Resposta - Veja: o meu ponto era o exemplo da dualidade superestrutural. Wilson


Batista, o grande sambista, entoou, por exemplo:

“ Meu chapéu de lado,


tamanco arrastando,
lenço no pescoço,
navalha no bolso,
eu faço barulho,
provoco, desafio,
Eu tenho orgulho
em ser vadio...”

Quer dizer, não sou eu que estou do lado dos “vadios”, mas todo um setor da
psicologia social brasileira nos idos de 1930-1940, estava do lado dos “vadios”, isto é
que é importante. Wilson Batista, que por acaso era meu primo, ressaltava aqui a revolta
contra o avanço das relações capitalistas geradas na massa dos descendentes de libertos,
que se haviam beneficiado da lei Áurea e que haviam atravessado a “República do
Café” num estado de rebeldia permanente, de “revolução permanente”, contra o capital,
a urbanização e a mercantilização das relações sociais.
Noel Rosa respondeu a Wilson Batista, com “Rapaz Folgado”:

“Deixa de arrastar o teu tamanco,


que tamanco nunca foi sandália
Fazendo samba-canção,
já te dei papel e lápis,

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arranje um amor e um violão.”

Observe-se que Noel frisa a negação do passado - o irredentismo antiescravista -


que Batista queria afirmar; há uma contradição-de-ver inarredável entre ambos. Noel
propõe “samba-canção”, forma domesticada em que a “cultura negra” deve servir à
“cultura branca”, e dá “papel e lápis”, confirmando a indigência instrumental do negro
diante da superestrutura mercantilizada dos brancos. Por fim, deixa por conta de Batista
“atualizar-se”, isto é, “arranjar um amor e um violão”, atos ocidentais de apropriação,
capazes de preceder a verdadeira mercantilização. Como disse Noel Rosa:

“Malandro é palavra derrotista


Pra quem não quer reconhecer
o direito do sambista
Eu peço ao povo civilizado
Não te chamar “malandro”
mas sim de “rapaz folgado”...

Ou seja, no lugar da atitude utópica de luta, o “orgulho”, o “vadio” e a “navalha”


que Batista cantava, Noel propõem inserção no contexto, ou seja, “reconhecer o direito
do sambista”, que é fazer “samba-canção” e ser tratado pelo “povo civilizado”, isto é,
parcela branca e dominante da sociedade, como “rapaz folgado”... Conclua-se
observando que a existência de um “povo civilizado” contrapõem-se necessariamente
“um povo sem civilização”, ou seja, negros e mistos, descendentes de escravos e/ou
índios, dos quais o próprio Batista fazia parte. Espero, com este exemplo, haver
respondido à sua dúvida.

Pergunta: - Parece-me - pelo destaque que você concedeu a historiadores empiristas -


que uma formulação da categoria “Superestrutura” seria possível e tão fecunda do
ponto-de-vista empirista como o foi a sua exposição do conceito marxista. Você não
trapaceou intelectualmente? Afinal, todas as teorias valem a mesma coisa?

Resposta: - Penso que uma formulação da categoria “superestrutura” esta feita, de fato,
na obra do historiadores empiristas e ela é tão importante do ponto-de-vista
gnoseológico como a versão - ou as outras versões que não expusemos - dita “marxista”

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que fizemos aqui. Quanto ao segundo ponto: não creio que trapaceio intelectualmente.
Quanto ao terceiro ponto: gnoseologicamente, todas as teorias não valem a mesma
coisa; porém moralmente, elas valem isso: a mesma coisa. É uma das grandes falhas da
dominação burguesa no Brasil tratar a luta-de-classes como caso de polícia. Creia-me:
isso vai acabar mal.
A mesma negligência que a estrutura de dominação apresenta ao tratar a luta-de-
classes como um caso de polícia, pode-se manifestar também em outros níveis da
ideologia social, como em sua referência a “trapaça intelectual”. Considerar uma
opinião que não a própria significa reconhecer a necessidade das diferenças sobre
idéias, emoções, costumes, crenças e ideologias, que estão expressas na psicologia
social e na ideologia social. Ao nível da subestrutura da ideologia política, o estudo da
história política ou da ciência política, a politologia, como exemplo, se tornam
metodologicamente inviáveis se negarmos a necessidade de diferenças, se acreditarmos
que o “estranho não possui frutos em seu quintal”. Mas é porque tem, que ele pode nos
dar algo, e então há uma base comum, há troca, a democracia se torna possível. Os
resultados gnoseológicos podem diferir, mas nunca os resultados humanos, o ato
coletivo de criação de cultura.

Pergunta: - No debate entre Wilson Batista e Noel Rosa você quer dizer que Batista
expressou a psicologia e a ideologia do povão e Noel a visão do capitalista?

Resposta: - Sim. Independente do inexcedível talento de Noel Rosa, um “segundo Rui


Barbosa”, ou um “terceiro Castro Alves”; ele foi apenas, neste caso, um “partidário” do
capitalismo. Quanto a Wilson Batista, ele foi o que era: o negro, o insubmisso, o
capoeira, o revoltado. Aliás, o famoso “Almirante” - personagem histórica da
radiodifusão no tempo em que a mídia não desservia o povo - disse isso antes de mim.

Pergunta: - Qual a relação entre o “estado de bem-estar social” e a ideologia social


contemporânea; poderia explicar no caso brasileiro?

Resposta: - Isso é muito complicado. Em primeiro lugar, no Brasil não há bem-estar


social, há apenas a “casca”, a forma, a palavra afixada na porta das instituições de
serviço público. Não há verbas, não há nada; há apenas pessoas, funcionários mal-pagos
que fazem o que poderiam fazer, sem recursos, sem treinamento, sem assessoramento.

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Exemplo? Tome as clínicas dentárias públicas, municipais ou federais; ou o problema
da AIDS. Há bem-estar social em outros lugares, não no Brasil. O bem-estar social
implica um ajuste, um aperto muito grande da máquina pública; neste caso o “último
funcionário público”, como na época de Frederico, o Grande, na Prússia, é munido com
um nível muito alto de decisão. Por exemplo, ninguém fica sem assistência médica,
ninguém fica sem pagar o aluguel ou sem comer, nenhuma criança fica sem escola. Isto
não tem nada a ver com o Brasil. É para um outro nível de civilização. Como frisou
Paul I. Singer, com o dinheiro gasto em maus serviços o governo poderia pagar um
salário para cada carente.

Pergunta: - Nixon disse em “O Desafio Diante de Nós” e Kennedy, na época da crise da


invasão da Baía dos Porcos, que o debate seria vencido ou perdido pelo Ocidente no
terreno das idéias; é isso que está ocorrendo, ou o que está ocorrendo é outra coisa; no
caso de outra coisa, qual?

Resposta: - Esta é uma pergunta crucial. Acho que é isto que está ocorrendo. A luta
ideológica está sendo - ou melhor, foi decidida - no terreno das idéias. Daí a atualidade
de Hegel. Infelizmente, não tratei de nada desse aspecto nessa conferência. A sua
pergunta foi para lá do que eu disse. Ela tratou do que viria depois, do que eu não disse.
A luta ideológica pode descolar-se completamente do terreno concreto. Eu sempre dou
um exemplo disso: você sabe por que o capitalismo nunca fracassa? Porque o fracasso
não é “fruto do mercado”, é fruto do fracassado; se você não agüentar trabalhar 10 ou
18 horas por dia, o problema é seu... Mas você sabe por que o socialismo é um fracasso?
Porque o Estado não dá ao trabalhador “tudo aquilo que ele necessita”. Mas, o
capitalismo dá? Claro que não. O problema não é dar ou não dar, mas de prometer ou de
não prometer. No socialismo o indivíduo espera receber; no capitalismo o indivíduo “se
vira”, depois das 8 horas de trabalho diário. Esta é a “diferença” fundamental. Daí é
claro que o capitalismo ganhou o debate ao nível da psicologia social e da ideologia
social no período após a guerra do Vietnã. O que oferecem é que “cada qual pode
realizar o seu projeto”. Ou seja, cada indivíduo, como havia esclarecido Hegel há 190
anos, pode negar o estado e a comunidade e fazer as “maluquices” que bem lhe
aprouver; nisto consiste a “liberdade do indivíduo”, ou seja, na “negação do Estado” e
na “negação da Sociedade”. O indivíduo negador do Estado, enquanto ser-livre, nada
tem a reivindicar do Estado e consequentemente, pasmem! -, esta é a lógica da

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dominação social, - através da liquidação do Estado é que avançaria a sua liberdade e a
sua consciência. Sobre isso falaremos outra vez. Obrigado.

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