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Ciência e Tecnologia na Constituição

André Ramos Tavares

Sumário
I. A narrativa constitucional dos artigos 218
e 219. II. Pesquisa científica básica e o direito ao
desenvolvimento. III. Pesquisa tecnológica e a fi-
nalidade vinculada aos problemas e desenvolvi-
mento brasileiros. III.1. Vinculação da pesquisa
e as liberdades fundamentais. III.2. Da pesquisa
científica à tecnológica vinculada. IV. Capaci-
tação de recursos humanos. IV.1. Formação de
recursos humanos. IV.2. Condições especiais
de trabalho. V. Fomento legal de investimento
empresarial em pesquisa e criação de tecnologia.
VI. Orçamento público em pesquisa e criação de
tecnologia. VII. Conclusões.

I. A narrativa constitucional
dos artigos 218 e 219
A Constituição de 1988, numa verda-
deira mudança paradigmática, destinou
um capítulo próprio para a matéria do
desenvolvimento tecnológico e científico do
país, demonstrando relevância conferida à
matéria, a ponto de vincular o legislador,
tolhendo seu espaço de livre conformação1
a certas posturas e orientações mínimas.
Com isso, reconheceu-se a importância
da Ciência e Tecnologia – C&T na geração
André Ramos Tavares é Doutor em Direito de crescimento econômico, o que, aliás, é
Constitucional pela PUC/SP, Professor dos recorrente entre os países em desenvolvi-
Programas de Doutorado e Mestrado em Direito mento (Cf. ANCOG, 1993, p. 1)2. O desen-
da PUC/SP; Livre-Docente em Direito Constitu-
volvimento científico passa a ser percebido
cional pela Faculdade de Direito da USP; Visiting
Research Scholar na Cardozo School of Law – New
não somente como forma de acumular
York; Professor Convidado da Universidade de conhecimentos, mas também como ins-
Santiago de Compostela; Diretor do Instituto Bra- trumento para gerar capital e solucionar
sileiro de Estudos Constitucionais. problemas sociais (SILVA, 2000, p. 61). A
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figura da “Pesquisa e Desenvolvimento” tras; apesar da abertura indicada, referido
– P&D – uma parte essencial da C&T – é, marco compõe um mínimo de vinculação
assim, assimilada como de importância a postulados e patamares propriamente
basilar para o avanço econômico e social de constitucionais.
um país3. O objetivo deste estudo é explorar Aliás, é aceitável que o desenvolvimento
o marco constitucional do desenvolvimento em C&T seja promovido por meio de legis-
científico e tecnológico do Brasil. lação (o que explica uma parcela propositi-
O primeiro dispositivo do referido va das normas constitucionais). Isso porque
capítulo é o artigo 218 que, logo em seu interfere-se em campos que dependem de
caput, estabelece as diretrizes desenvolvi- ajustes legais contínuos. É necessário, por
mentistas brasileiras para o setor científico exemplo, que a lei preveja a alocação de
e tecnológico. Sua redação, tal como ocorre recursos para C&T, a criação de fontes fi-
em todas as normas constitucionais de na- nanceiras adicionais e o estabelecimento de
tureza pretensamente dirigente, apresenta programas de desenvolvimento humano,
(i) colorido (aparentemente e não exclusi- educação e pesquisa. Ademais, o dinamis-
vamente) propositivo, apontando para o mo do setor de C&T traz à tona diversas
futuro; e, (ii) caráter abstrato (mas com um questões dependentes de regulamentação,
núcleo mínimo de significado). tais como a propriedade intelectual em
Referida abstração leva a uma abertura, novos campos, v.g. softwares, biotecnologia
é dizer, não se estabelece, propriamente, o (ANCOG, 1993, p. 2-4) e a composição entre
como, os meios pelos quais o Brasil obterá o o desenvolvimento científico e tecnológico
tão apreciado desenvolvimento tecnológico e problemas éticos que dele podem derivar
e científico, nem discute como se fomentará a (bioética)5. E o reconhecimento, em patamar
pesquisa e a capacitação tecnológica, que são constitucional, da importância da C&T ser-
os meios necessários para a realização do de- ve como base e como vetor para a edição de
senvolvimento propugnado pela norma. leis que contemplem esses temas6.
Ademais, o art. 218 passa ao largo de Por outro lado, referida opção consti-
uma contemplação temporal, ainda que tucional se coaduna com o caráter liberal
progressiva, relacionada a esses propósitos que ali se assumiu, particularmente em
(problema do prazo exigível em termos de seu art. 170, caput, ao estabelecer, de
implementação progressiva no tempo de forma peremptória, constituir a livre ini-
determinações constitucionais). Tampouco ciativa7 um dos fundamentos da ordem
especifica quais as prioridades científicas econômica. Reforça-se esse caráter liberal
e tecnológicas do país. Tais circunstâncias pela visão constante do art. 174, com a
levam alguns autores a perceber o dispo- prescrição de que as funções de incentivo
sitivo como uma “mera recomendação”, e planejamento serão meramente indicativas
sem valor jurídico relevante (Cf. FERREIRA (não impositivas) para o setor privado. Ou
FILHO­, 1995, p. 91-92)4. Essa não é, porém, seja, ainda quando regulamentados por
a posição que aqui se adota. lei os elementos constitucionais, nem por
Compreendemos que, em decorrência isso estará invariavelmente vinculado o
da postura constitucional acima narrada, particular. Isso significa que eventual área
as diversas indagações que surgem deve- ou produto a ser desenvolvido pelo setor
rão ser respondidas e regulamentadas pela privado deverá contar com o apoio volitivo
legislação ordinária (espaço de livre confor- livre do respectivo segmento econômico,
mação legislativa), a qual, contudo, haverá conforme bem lembram Arruda, Vermulm­
de obedecer ao que denominamos Estatuto & Hollanda (2006, p. 8)8.
Constitucional da Ciência e Tecnologia, a ser Não por outro motivo o §1o do art. 218,
aqui desenvolvido em suas linhas mes- quando delimita, com alguma precisão, a

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pesquisa científica a ser desenvolvida priori- de definição de pesquisa científica básica, é
tariamente (a saber, a básica), restringe essa uma variável de menor importância, assim
determinante à figura do Estado. Esta é a como o resultado que aquela pesquisa repre-
redação do dispositivo em questão: “A pes- sentará em termos de progresso da ciência.
quisa científica básica receberá tratamento Acrescente-se, contudo, que, em vir-
prioritário do Estado, tendo em vista o bem tude da parte final do §1o do art. 218 da
público e o progresso das ciências”. CB, a pesquisa científica básica, quando
A menção à pesquisa científica básica conduzida pelo Estado, deverá objetivar o
não é despropositada. Optou-se por esse bem público e o progresso da ciência. Houve,
tipo de pesquisa, como de preferência aqui, uma alteração conceitual, por força
estatal, em contraposição à aplicada, em de um elemento normativo, de natureza
virtude da natureza genérica da primeira, constitucional. Dessa maneira, à definição
menos compromissada com resultados e apresentada anteriormente, será imperioso,
objetivos específicos. no Brasil, acrescentar, como finalidades
Tradicionalmente, pesquisa científica bá- vinculadas da pesquisa científica básica: (i)
sica se caracteriza pelo trabalho teórico ou o bem público; e, (ii) o progresso da ciência.
experimental desprovido (i) de qualquer Essas variantes, como se percebe, restrin-
aplicação futura e específica, e (ii) da exigên- girão a promoção da pesquisa científica
cia de que seu resultado seja socialmente básica por parte do Estado brasileiro.
aproveitável. Ao contrário da pesquisa Neste ponto, parece ter havido um
aplicada, seu desenvolvimento/realização influxo marcante do republicanismo, cuja
independe de qualquer estudo preliminar máxima é a atuação do Estado em prol
quanto aos seus impactos/resultados na/ do interesse público 9. Mas não apenas
para a sociedade. Ressalte-se que se trata de isso. Justifica-se, igualmente, essa opção
pesquisa científica e não tecnológica, o que constitucional em virtude de um elemento
não significa, contudo, que seja desprovida fático da realidade brasileira, qual seja, a
de importância ou que não possa repercutir, finitude dos recursos orçamentários. Ainda
indiretamente, na formação (ou constituir mais perante o cenário brasileiro atual, cujo
a base) de novas teorias ou concepções de orçamento encontra-se, em grande parte,
grande impacto prático. comprometido com a necessidade de se
Nesses termos, a pesquisa científica obter superávit primário e com políticas
básica fica identificada pela sua plena de cunho sócio-assistencial.
liberdade quanto aos fins. A ela aplicar- Justifica-se, ainda, a vinculação realiza-
se-ia a máxima “a ciência pela ciência”, da constitucionalmente, pela perspectiva
evidentemente sem qualquer conotação fiscalizadora, já que qualquer destinação
negativa ou idealista. Permite o estudo e de dinheiro público estará sujeita à veri-
pesquisa de vastos segmentos do saber ficação de sua legitimidade por parte dos
sem a preocupação com o aproveitamento órgãos e instituições vocacionados a esse
social ou econômico dos possíveis resulta- objetivo (Ministério Público, Tribunal de
dos. Essa característica conceitual estaria Contas, comissões parlamentares de inqué-
plenamente ajustada à natureza liberal da rito, controladorias, etc.). Essa fiscalização
Constituição de 1988, pois não se restringe levará em conta os elementos normativos
o apoio estatal à realização de uma pesquisa consubstanciadores da pesquisa básica e
científica básica. Seu elemento norteador é das finalidades que devem ser atendidas.
a possibilidade de se obter eventual avanço Contudo, um aspecto não enfrentado
do conhecimento humano; insista-se: não a pela Constituição, dentro dessa temática,
certeza e, tampouco, a probabilidade (desse diz respeito a saber qual seria o critério de
avanço). O possível resultado social, para fins alocação de recursos orçamentários desti-

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nados ao desenvolvimento tecnológico e à previsão do direito ao desenvolvimento e
pesquisa científica no âmbito da pesquisa da redução das desigualdades sociais.
científica básica, posto que várias opções O direito ao desenvolvimento encontra-
poderão ser de interesse público e propi- se previsto no art. 3o, II, da CB. O significado
ciar, prima facie, o progresso da ciência. de tal direito foi largamente debatido em
âmbito supranacional, restando definido
II. Pesquisa científica básica e o na Declaração sobre o Direito ao Desen-
direito ao desenvolvimento volvimento das Nações Unidas, de 1986,
como direito humano a beneficiar todas as
Na trilha de uma justificação desse olhar pessoas e povos, que vincula os Estados nos
constitucional privilegiado para a pesquisa seguintes termos:
básica, poder-se-ia bem compreendê-lo ao “Os Estados têm o direito e o de-
perceber que, não se pretendendo obter, ver de formular políticas nacionais
necessariamente, resultados econômicos adequadas para o desenvolvimento,
ou lucro10, nesse tipo de pesquisa, poderia que visem o constante aprimoramen-
ela quedar marginalizada pelo agente pri- to do bem-estar de toda a população
vado, o qual tenderia optar pela pesquisa e de todos os indivíduos, com base
cien­tífica aplicada, quiçá economicamente em sua participação ativa, livre e
mais proveitosa. Nesse sentido, constata significativa no desenvolvimento e na
Chaimovich­ (2000, p. 138): distribuição eqüitativa dos benefícios
“(...) A ciência básica é desenvolvi- daí resultantes” (art. 2, § 3o).
da quase inteiramente em universida- Percebe-se que o direito ao desenvolvi-
des e institutos de pesquisa. Apesar mento, tal como assentado no documento
de o discurso sobre a importância do internacional, refere-se não somente ao
financiamento privado para a criação crescimento econômico, mas também à
em ciência básica, todos os dados igualdade de acesso aos benefícios que
disponíveis no mundo mostram que dele resultem (Cf. DONADELI, 2004, p.
este subsistema é financiado majori- 178): os frutos do desenvolvimento devem
tariamente por fundos públicos”. ser gozados também pelos segmentos mais
De outro lado, não há como desconsi- vulneráveis da sociedade (TRINDADE,
derar as questões práticas que se colocam, 1993, p. 174).
tal como a referida finitude dos recursos Em íntima conexão com o direito ao
orçamentários estatais, que fazem com que desenvolvimento, encontra também gua-
o Estado tenha de adotar algum critério rida constitucional o direito à redução das
para definir como e onde serão aplicados desigualdades sociais, previsto no art. 3o,
esses recursos. Daí entender-se o porquê III, da CB. Ambos devem vincular o Estado
de o legislador constituinte ter feito men- quando da distribuição dos recursos para
ção, ao final do §1o do artigo transcrito, ao eventuais propostas de realização de pes-
interesse público e ao progresso científico. quisa científica básica.
São vetores que devem ser considerados Portanto, ainda que se possa afigurar
pelo Estado em sua atuação no âmbito da como um contra-senso com o conceito tra-
pesquisa científica básica. dicional, as pesquisas científicas básicas que
De qualquer forma, ainda que o legisla- vierem a contar com a participação estatal
dor constituinte originário houvesse se omi- haverão de passar por um estudo preliminar,
tido, há outras proposições constitucionais com vistas a aferir quais os resultados a se-
que seriam suficientes para nortear a aloca- rem produzidos por esta, se será promovido
ção de recursos orçamentários na pesquisa o bem público, e, também, a probabilidade de
científica básica, especificamente falando, a este resultado ser efetivamente produzido.

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Pode-se dizer, então, que a pesquisa tífica básica, seja a tecnológica ou profis-
científica básica desenvolvida pelo Estado sional, devam voltar-se, necessariamente,
apresenta, em alguma medida, contornos para solucionar problemas brasileiros e
de pesquisa científica aplicada, em virtude aprimorar o sistema produtivo brasileiro,
dos comandos constitucionais analisados. em qualquer hipótese, mesmo quando
idealizada, subsidiada e implementada por
III. Pesquisa tecnológica e a agentes privados com recursos próprios, é
finalidade vinculada aos problemas e preocupante e juridicamente inaceitável. O
Estado brasileiro não pode pretender impor
desenvolvimento brasileiros
ao agente privado, atue ele no comércio, na
III.1. Vinculação da pesquisa e
prestação de serviços, no setor tecnológico
as liberdades fundamentais
ou em qualquer outro, as suas próprias
Dispõe o art. 218, §2o, da CB que: “A prioridades e metas. Pode exigir-lhe o res-
pesquisa tecnológica voltar-se-á preponde- peito a determinadas regras trabalhistas,
rantemente para a solução dos problemas ambientais, urbanísticas, penais, etc., mas
brasileiros e para o desenvolvimento do não pode, por meio de leis, interferir com
sistema produtivo nacional e regional”. os objetivos e prioridades empresariais,
A primeira cautela que há de se ter quando lícitas, nem pode utilizar-se de
quando da leitura do dispositivo acima marcos regulatórios em áreas lícitas (como
é que a pesquisa tecnológica a que se faz os mencionados) para obter, transversa-
menção é a promovida pelo ente estatal e mente, finalidades inconsistentes com esses
não a promovida pelo particular, pelo agen- marcos, desvirtuando-os. Ou seja, não está
te privado. É o Estado (conforme determina autorizado a remodelar ou redesenhar
o caput do dispositivo) que há de direcionar finalidades institucionais privadas, para
a sua pesquisa tecnológica para os fins so- as quais não contribui nem colabora, nem
ciais indicados pela norma constitucional tampouco embaraçar-lhes o funcionamento
transcrita. Vale, aqui, a análise já exposta como reprimenda ou punição por não co-
para o âmbito da pesquisa de base. laborarem com as metas estatais­.
A imposição, ao particular, enquanto Vale recordar, aqui, discurso proferido
atue com recursos exclusivamente priva- no Instituto Nacional de Pesquisas Espa-
dos, de que a sua pesquisa tecnológica ciais – Inpe, em 13 de março de 2007, pelo
tenha, necessariamente, uma destinação Presidente Lula, quando admoestou todos
social específica, qual seja, a solução dos a comprometerem suas pesquisas com as
problemas brasileiros em âmbito nacional orientações políticas do Estado, visando a
ou regional, é inconsistente com o já men- resolver os problemas brasileiros. Como ob-
cionado princípio da livre iniciativa (ainda servou Dagnino (2007, p. A3) – analisando
que se admita – como se há de admitir – que esse discurso –, isso parece significar que “a
esteja mitigado pela busca da promoção ou comunidade de pesquisa deve contribuir,
justiça social). Eventual benefício social, com o conhecimento que a sociedade lhe
ocasionado pela pesquisa tecnológica pro- permitiu adquirir, para ‘fazer as lições’
movida pelo agente privado, não deixará da alfabetização, da reforma agrária, da
de ser uma mera externalidade11 positiva, distribuição de renda”.
fora de um dos propósitos principais da O vocacionar a pesquisa e a própria
empresa, que é obter competitividade no educação, quando públicas, para os proble-
mercado, por meio de inovações e/ou mas brasileiros e para o desenvolvimento
atualizações de seus produtos. nacional é a essência do que determina
Nesse sentido, a insinuação de que as a própria Constituição, como visto. Essa
pesquisas, no Brasil, seja a pesquisa cien- apropriação do discurso constitucional,

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portanto, é válida (viável juridicamente) com que o agente que a desenvolva obte-
apenas para o segmento público. Para o nha um maior market share (RACY, 2004).
privado apenas se (i) estiver em colabo- As pesquisas tecnológicas respondem por
ração (voluntária) com o público, ou (ii) 97% das patentes, em países desenvolvi-
deste receber incentivos ou recursos. Se dos, e 100% em países subdesenvolvidos
se pretender extrapolar esses limites, a (RACY, 2004).
exigência, além de inconstitucional, repre- Em regra, quando o Estado, no Brasil,
sentaria um retrocesso para a pesquisa, por realiza tais pesquisas, implementa-as por
desestimular amplas áreas nas quais o país, meio de Empresas Estatais ou State Owned
por meio do seu setor produtivo privado, Enterpises – SOE’s (que abarcam também as
pôde avançar. Seria, ademais, uma polí- sociedades de economia mista). Um exem-
tica que desconheceria a competitividade plo paradigmático é o da Petrobrás, a qual
internacional em setores estratégicos para é detentora da mais avançada tecnologia
o próprio país, porque responsáveis pelo para prospecção de petróleo em grandes
bom equilíbrio de uma balança comercial, profundidades.
sem que isso represente qualquer solução Outro exemplo de empresa abarcada
a problemas brasileiros específicos (como a pelo preceptivo constitucional em questão
questão agrária, a fome ou miséria, a obe- é a Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-
sidade, a questão ambiental da Amazônia, pecuária – Embrapa, criada em 1973, e
com sua biodiversidade etc.). responsável pelo aumento exponencial da
Essas observações acerca da liberdade produção agropecuária no Brasil. A sua
de pesquisa tecnológica (e a observação é atuação em muito auxiliou o desenvolvi-
plenamente abrangente da pesquisa cien- mento da região Centro-Oeste, reconhecida
tífica básica) estão diretamente amparadas como um dos mais importantes centros de
pela Constituição do Brasil, com a previsão produção de soja, no mundo, na medida
da livre iniciativa, da liberdade de pensa- em que tornou­ possível que uma cultura,
mento, da liberdade de informação e da típica do clima­ temperado, se ajustasse ao
liberdade de expressão da atividade intelec- clima brasileiro, eminentemente tropical
tual e científica (art. 5o, IV, IX, XIII e XIV, da (EMPRESA­ BRASILEIRA DE PESQUISA
Constituição do Brasil). Seria uma violação AGROPECUÁRIA, 2006), concretizando
a direitos fundamentais reconhecidos pela os mandamentos constitucionais já mencio-
Constituição pretender o Estado direcionar, nados. Trata-se, enfim, de empresa estatal
em sua essência, toda e qualquer pesquisa inserida no setor de pesquisa tecnológica,
privada científica ou tecnológica. no âmbito agropecuário, cuja atuação em
muito contribuiu para melhorar a quali-
III.2. Da pesquisa científica à dade desses produtos, tornando-os mais
tecnológica vinculada competitivos no âmbito internacional e, por
Cumpre melhor esclarecer a distinção conseguinte, trazendo maiores dividendos
entre a chamada pesquisa científica (ante- para o país e para diversas regiões, como é
riormente tratada na vertente da pesquisa o caso da região Centro-Oeste, implemen-
científica básica) da aqui analisada pesquisa tando o princípio constitucional da redução
tecnológica. A primeira é um ato eminente- das desigualdades sociais.
mente acadêmico, responsável, nos países Importante frisar, da análise do dispo-
desenvolvidos, por 3% das patentes obti- sitivo ora comentado, que há um direcio-
das. A pesquisa tecnológica é produzida no namento, preestabelecido, para a realiza-
meio econômico. Trata-se, enfim, de uma ção das pesquisas tecnológicas no Brasil,
ação econômica, cuja finalidade maior é quando o agente promotor, incentivador
elevar a competitividade do produto, fazer ou financiador seja Estado, a saber: (i) a

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solução dos problemas brasileiros; e, (ii) justificar tal ponto de vista seria aquele
o desenvolvimento do sistema produtivo que considerasse como o maior problema
nacional e regional. brasileiro a sua disparidade social e eco-
Atreladas que são, expressamente, à nômica. Nesse sentido, qualquer pesquisa
pesquisa tecnológica, tais finalidades have- tecnológica que pudesse tornar o país mais
rão de nortear e, de certa forma, limitar a competitivo no mercado internacional e,
pesquisa a ser desenvolvida ou incentivada desta feita, atrair dividendos, poderia ser
pelo Estado brasileiro. O que se quer dizer desenvolvida pelo Estado.
é que eventual pesquisa tecnológica patro- A principal conseqüência dessa inter-
cinada pelo Estado e que supostamente não pretação seria hipertrofiar o exercício da
esteja em sintonia com os objetivos acima discricionariedade por parte do Executivo
mencionados estará eivada de inconstitucio- e, desta feita, dificultar eventual controle
nalidade, estando sujeita a eventual controle judicial de dispêndio orçamentário no setor
por parte do Poder Judiciário. de P&D e de C&T. A atuação do Estado
Essa previsão constitucional, ademais, na pesquisa tecnológica passaria a ser ato
impõe ao Estado um maior ônus argumen- de governo (gubernaculum12), político, e a
tativo quando da edição de atos normativos única forma de controle seria a realizada,
procurando incentivar um específico seg- posteriormente, nas urnas.
mento, uma particular pesquisa tecnológi- Essa interpretação, embora aprioristica-
ca. Enfim, a motivação de seus atos haverá mente atraente, apresenta uma séria falha,
de ser cautelosa, expondo qual a importân- qual seja, a de inutilizar, plenamente, a re-
cia da pesquisa tecnológica a ser promovida dação do art. 218, §2o, da CB. Não se pode,
para a solução dos problemas brasileiros simplesmente, por meio do exercício da
e para o sistema produtivo nacional e re- hermenêutica constitucional, desconsiderar
gional. Um exemplo de eventual pesquisa diretrizes estabelecidas explicitamente.
tecnológica encampada pelo Estado brasi- Na medida em que se pretendeu atrelar
leiro e que estaria sujeita a um controle de a pesquisa tecnológica estatal à solução
constitucionalidade por parte do Judiciário dos problemas brasileiros, há que se evitar
seria o caso de pesquisa tecnológica que a concessão de interpretação extensiva a
buscasse desenvolver motor automotivo tal termo, de forma a admitir qualquer
específico para o inverno típico de países tipo de pesquisa tecnológica, levando em
nórdicos. Uma pesquisa desse porte, salvo consideração apenas a possibilidade de tal
pelo interesse de exportação (ou seja, mero pesquisa gerar dividendos para o Brasil e,
e eventual lucro), guarda pouca relação desta feita, justificando uma “solução de
com os problemas brasileiros, e, portanto, problemas brasileiros” (especificamente a
não poderia ser considerada constitucional pobreza). Ademais, essa interpretação seria
em face tanto do art. 218, §2o, da CB, como geradora de um alto grau de insegurança
da vocação social do Estado e da escassez nesse campo, já que a discricionariedade
de recursos públicos. por ela desencadeada certamente esbar-
De outra banda, poder-se-ia argumentar raria no controle de legitimidade dos atos
que a finalidade prevista no dispositivo estatais.
constitucional em questão apresenta traços Importante, no entanto, ressaltar que,
firmes de abertura. A pesquisa tecnológica ao estabelecer tais finalidades da pesquisa
encampada pelo Estado poderia ser reali- tecnológica, a Constituição não parece ter
zada em um número infinito de áreas e, estabelecido uma tábua hierárquica das
ainda assim, justificar-se perante a finali- áreas que haverão de ser desenvolvidas
dade esposada pelo dispositivo estudado tecnologicamente. É dizer, a Constituição
neste tópico. O principal argumento para não determina que o Estado desenvolva,

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prioritariamente, v.g., tecnologia agrope- se afigura como problema brasileiro, a
cuária para, posteriormente, pesquisar Constituição não estabelece prioridades,
tecnologia no segmento da aeronáutica; fazendo-se aberta e sujeita a uma gama de
tampouco estabelece que o setor aeronáu- compreensões variáveis.
tico ou aeroespacial possua preferência em
face da pesquisa tecnológica na área da IV. Capacitação de recursos humanos
agropecuária. Nessa seara dos problemas A Constituição de 1988, como não pode-
brasileiros, retorna-se, portanto, à plena ria deixar de ser, destinou atenção à neces-
discricionariedade executiva para determi- sidade de se formar material humano apto
nar qual setor terá preferência. a realizar pesquisa científica e tecnológica
Um exemplo do que foi dito pode ser e, desta feita, promover o desenvolvimento
encontrado no fato do “apagão” elétrico científico tecnológico e científico da nação.
que o Brasil sofreu há alguns anos. O O primeiro dispositivo sobre o tema é o
problema, em grande parte, encontra-se art. 218, §3o, cuja redação é a seguinte: “O
no desperdício energético, e, também, na Estado apoiará a formação de recursos
insuficiência das fontes já existentes pe- humanos nas áreas de ciência, pesquisa e
rante a demanda energética. Uma solução tecnologia, e concederá aos que delas se
a essa problemática seria a exploração de ocupem meios e condições especiais de
novas formas de geração energética, muito trabalho”.
embora o potencial hidroelétrico brasilei- Para fins de melhor estudo desse dispo-
ro seja enorme13. Diante desse contexto, sitivo, cumpre desmembrá-lo em dois. A
então, poder-se-ia dizer que o Governo primeira parte diz respeito à (i) formação
brasileiro estaria jungido ao fomento tec- de recursos humanos nas áreas de ciência,
nológico do setor elétrico? Tendo em vista pesquisa e tecnologia. A segunda parte,
a discricionariedade acima mencionada, presente na oração final do preceptivo
a resposta seria negativa (ressalte-se que acima, refere-se à (ii) concessão de meios e
essa conclusão tem validade, apenas, para condições especiais de trabalho.
o âmbito da pesquisa tecnológica; seu âm-
bito de incidência não se estende ao foro IV.1. Formação de recursos humanos
do fornecimento de energia elétrica, uma No que diz respeito à formação de recur-
vez que tal se afigura como serviço público sos humanos nas áreas de ciência, pesquisa
essencial e que, portanto, há de ser necessa- e tecnologia, a iniciativa estatal se fez sentir
riamente disponibilizado, seja pelo Estado, por meio da criação de órgãos responsáveis
seja por quem lhe faça as vezes). Poderia o pela concessão de bolsas-auxílio de pesqui-
Estado priorizar, por exemplo, a pesquisa sa científica e tecnológica, que fomentariam
tecnológica na área da agropecuária ou no a formação de recursos humanos no Brasil.
setor aeroespacial. É óbvio, contudo, o ônus O maior exemplo dessa iniciativa é o CNPq,
argumentativo para motivar tais pesquisas atualmente denominado como Conselho
e o risco de o Governo brasileiro se ver Nacional de Desenvolvimento Científico e
responsabilizado nas urnas, por meio do Tecnológico, criado em 1973, e, então, enca-
controle democrático. beçado pelo almirante Álvaro Alberto.
Este é um aspecto importante da ques- No âmbito dos Estados-membros, foram
tão da pesquisa tecnológica pelo Estado e criadas, por exemplo, a Fundação de Am-
cumpre deixá-lo consignado: a Constituição paro à Pesquisa do Estado de Minas Gerais
determina que a pesquisa tecnológica tenha – Fapemig, que concede bolsas e propicia
como propósitos os problemas brasileiros e a realização de estágios técnicos, e a Fun-
o aumento do sistema produtivo nacional dação de Amparo à Pesquisa do Estado de
e regional; contudo, dentro daquilo que São Paulo – Fapesp.

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Esta última, de 2004 até outubro de 2006, inovação, propriamente dita, o que torna o
concedeu US$ 583.561.879,00, envolvendo pesquisador brasileiro mal-utilizado.
concessões de bolsas para exercícios futuros­
(FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA IV.2. Condições especiais de trabalho
DO ESTADO DE SÃO PAULO, 2006). A Cabe, agora, analisar a segunda parte
título de curiosidade, a Fapesp apresenta, do art. 218, §3o, da CB, na qual se prevê a
ainda, uma linha de pesquisa relacionada concessão de meios e condições especiais
ao tema de políticas públicas, a qual, certa- de trabalho para os que atuam na área de
mente, tem como intuito promover o bem ciência, pesquisa e tecnologia. A importân-
público. cia dessa análise se justifica pela existência
Frise-se que, nada obstante essas inicia- do art. 7o, XXXII, da CB, o qual assegura
tivas que buscam fomentar a capacitação como direito dos trabalhadores: “proibição
de futuros pesquisadores, um problema de distinção entre trabalho manual, técni-
se afigura mais difícil que a mera formação co e intelectual ou entre os profissionais
de recursos humanos, a saber, como fazer respectivos”.
com que os pesquisadores sejam absorvi- Pode-se concluir validamente que há
dos pelo segmento privado. A realidade uma conflituosidade (aparente, ao menos)
brasileira é a de o Estado como o grande entre os dispositivos ora analisados, tendo
empregador desses pesquisadores (Cf. em vista que o art. 218, §3o, da CB privilegia
KRIEGER; GALEMBECK, 2006). Cabe os profissionais que atuam na área de ciên-
ao pesquisador brasileiro se refugiar nas cia, pesquisa e tecnologia. Ou seja, cria uma
Universidades Públicas (as Universidades distinção. Cumpre, agora, verificar qual a
Privadas têm pouca participação na contra- conseqüência dessa oposição.
tação de pesquisadores altamente qualifica- A primeira seria a declaração de incons-
dos) e/ou em empresas estatais. titucionalidade de uma das duas previsões
Isso não está a significar que as empre- constitucionais. Para tanto, é certo, seria
sas privadas não contratem pesquisadores preciso reconhecer que a Constituição de
e desenvolvam as suas próprias linhas 1988 estabelece uma tábua hierárquica en-
de pesquisa. Tal ocorre, mas em pequena tre suas normas. Nesta hipótese, não seria
escala. Duas são as justificativas para tan- um despautério considerar que o art. 7o,
to. A primeira é a condição das empresas XXXII, da CB teria prevalência hierárquica
brasileiras, que, em sua grande maioria, são sobre o art. 218, §3o, da CB, em razão de o
de pequeno ou médio porte, e que preferem primeiro se afigurar no Título II, Dos Direi-
importar tecnologia a desenvolver suas tos e Garantias Fundamentais, o qual estaria
próprias. Em regra, as grandes empresas protegido pelo art. 60, §4o, IV, da CB, o
são ex-estatais ou multinacionais, sendo qual configura como cláusula pétrea (pre-
que estas últimas possuem pouca relação visões não sujeitas a alteração), os direitos
com determinado país e, quando há, tal e garantias individuais e que são direitos e
relação se dá apenas com o país em que garantias previstos no mesmo título.
funciona a sua matriz, sendo que, na grande Tal tese, contudo, não encontra guarida
maioria, o profissional será enviado para constitucional, em virtude de o próprio Su-
a central de desenvolvimento tecnológico premo Tribunal Federal – STF não admitir
que, inevitavelmente, se situará no estran- a existência de “normas constitucionais
geiro. A segunda condição, amplamente inconstitucionais”. Na ADIn n. 815-96/DF
correlacionada com a primeira, é o fato de (BRASIL, 1996), o STF afastou, perempto-
as empresas brasileiras optarem mais pela riamente, a linha argumentativa de que
atualização de produtos e processos (Cf. a inserção do art. 7o, XXXII, da CB, como
ARRUDA, 2006, p. 8) do que primarem pela norma de intangibilidade, seria um indício

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de superioridade constitucional em face de O Estado, contudo, não fica excluído dessa
outras normas constitucionais. relação, na medida em que, por meio de
É preciso trilhar outros caminhos. Nesse leis, buscará incentivar, fomentar o agente
sentido, poder-se-ia considerar o art. 218, privado, a investir em pesquisa. A atuação
§3o, da CB como uma singela exceção à pre- do Estado, nesse dispositivo, enfim, é indi-
visão geral do art. 7o, XXXII, também da CB. reta (normativa).
Tratar-se-ia, assim, de uma restrição à previ- Por outro lado, uma atuação estatal
são normativa do art. 7o, XXXII, da CB14. nesse sentido apresentará relevância para
Encerrando o assunto, o regime consti- que se reverta a tendência do setor privado
tucional do Direito da Ciência e Tecnologia, nacional de investir secundariamente em
no que se refere à possibilidade ou não de P&D. O avanço do progresso tecnológico
diferenciação de trabalho manual, técnico e no Brasil­ depende muito da criação de um
intelectual, é diverso do regime constitucio- ambiente econômico e político que estimule
nal dos direitos sociais (Capítulo II, do Títu- as em­presas privadas a investirem no setor
lo II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais), (FONSECA­, 2001).
na medida em que, sim, admite a concessão Importa registrar, aqui, que esse dispo-
de meios e condições especiais15. Não há sitivo constitucional há de ser aplicado, no
hipocrisia constitucional neste ponto. tocante à pesquisa tecnológica incentivada
pelo Poder Público, concomitantemente
V. Fomento legal de investimento ao art. 218, § 2o, já estudado. É dizer, a
empresarial em pesquisa e criação subvenção carreada pelo Estado, bem
como os eventuais benefícios fiscais por
de tecnologia
ele concedidos, haverão de atentar para
É determinação expressa constante do as condicionantes previstas no dispositivo
art. 218, § 4o, da CB, in verbis: mencionado. É dizer, a pesquisa tecnológi-
“A lei apoiará e estimulará as em- ca, promovida por agente privado, deverá
presas que invistam em pesquisa, dirigir-se, necessariamente, para (i) a so-
criação de tecnologia adequada ao lução dos problemas brasileiros e (ii) para
País, formação e aperfeiçoamento de o desenvolvimento do sistema produtivo
seus recursos humanos e que prati- nacional e regional.
quem sistemas de remuneração que Nesse diapasão, o art. 219 reforça que
assegurem ao empregado, desvin- o Estado, ao estabelecer incentivos para o
culada do salário, participação nos segmento econômico, na área tecnológica,
ganhos econômicos resultantes da deverá objetivar a autonomia do país, o
produtividade de seu trabalho”. que deve ser compreendido a partir das
Primeiramente, cumpre consignar que condicionantes acima indicadas.
esse dispositivo, ao contrário dos anterior-
mente discorridos, tem como âmbito de VI. Orçamento público em pesquisa
incidência, essencialmente, o setor privado. e criação de tecnologia
Se nos preceptivos constitucionais previa-
mente estudados a preocupação centrava- Passa-se, agora, ao estudo da questão do
se na atuação, por assim dizer, direta por repasse de recursos orçamentários, pelos
parte do Estado (salvo o art. 218, § 2o, da Estados e Distrito Federal. Segundo o art.
CB, o qual prevê, de certa forma, a atuação 218, § 5o, da CB: “É facultado aos Estados e
indireta – normativa – do Estado, no âmbito ao Distrito Federal vincular parcela de sua
da pesquisa tecnológica), na área da pesqui- receita orçamentária a entidades públicas
sa científica e tecnológica, essa nova norma de fomento ao ensino e à pesquisa científica
encontra-se vocacionada ao ente privado. e tecnológica”.

16 Revista de Informação Legislativa

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A importância desse dispositivo está no em consideração o art. 23, V, da CB, o qual
fato de o mesmo atuar como uma exceção afirma que é competência comum da União,
ao disposto no art. 167, IV, da CB, o qual dos Estados, do Distrito Federal e dos Mu-
veda a vinculação de receita de impostos nicípios: “proporcionar os meios de acesso
a órgão, fundo ou despesa. Nesse sentido, à cultura, à educação e à ciência”.
o artigo objeto de estudo nesse tópico per- Deixando de lado essa injustificável
mitiria que essa receita em específico fosse omissão, que redunda em verdadeira
destinada a entidades públicas comprome- exclusão dessas entidades, da exceção
tidas com a pesquisa científica e tecnoló- prevista no dispositivo constitucional em
gica, tais como as fundações de amparo à comento (art. 218, § 5o), o importante é
pesquisa. Sobre esse assunto em específico, poder notar que, muito embora tal previ-
o STF, na ADIn n. 550-2/MT (e em diversas são almejasse incentivar os investimentos
outras), julgou constitucional norma da estaduais no âmbito da P&D, tais conti-
Constituição de Mato Grosso que atribui à nuam relativamente baixos, se compara-
fundação de amparo à pesquisa deste ente dos ao aporte federal, cujo investimento
a dotação mínima correspondente a 2% da nesse segmento sofreu uma preocupante
receita tributária (BRASIL, 2002). redução16.
Ressente-se, contudo, ao se ler o art. Adiante, tem-se gráfico (Cf. TEIXEIRA;
218, § 5o, da CB, a ausência da figura do SIMÕES, 2006) no qual se constata facil-
Município e da União. Essa omissão se mente a parca participação dos Estados-
torna ainda mais injustificável se se levar membros em P&D:

VII. Conclusões Como elementos positivos do marco


constitucional, pode-se apontar o estabe-
O presente estudo teve como finalidade lecimento de alguns critérios/diretrizes
analisar, especificamente, o Capítulo IV, para a pesquisa científica e tecnológica. No
Da Ciência e Tecnologia. Buscou-se, sucinta- âmbito da pesquisa científica básica de ca-
mente, verificar e integrar também alguns ráter estatal, exige-se que esteja vocacionada
dispositivos constitucionais presentes em ao bem público e ao progresso da ciência.
outras partes da Constituição e que man- Quanto à pesquisa tecnológica, realizada
têm relação com os preceptivos do capítulo pelo Estado, deverá dirigir-se à solução
acima mencionado, interferindo na leitura dos problemas brasileiros e ao desenvol-
adequada da narrativa constitucional da vimento do sistema produtivo nacional e
ciência e tecnologia. regional. Esses marcos estabelecidos auxi-
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liam no controle da atuação estatal nessas apenas que o Estado deve amparar a cultura, pro-
áreas. Concedem aos cidadãos e órgãos movendo, por lei, a criação de institutos de pesquisa
(art. 174, caput e parágrafo único); e a de 1967 dispôs
de fiscalização a prerrogativa de alçar ao que “o Poder Público incentivará a pesquisa científica
crivo judicial as posturas adotadas pelo e tecnológica” (art. 171, parágrafo único), disposição
Poder Público. Outro ponto positivo foi essa renumerada para o parágrafo único do art. 179,
o incentivo constitucional à formação de pela Emenda Constitucional de 1969. Analisando essa
pesquisadores e, principalmente, a preocu- última redação, afirmou Pontes de Miranda (1972,
p. 366): “A regra jurídica constitucional, ao falar de
pação demonstrada com a absorção destes incentivo à pesquisa científica e tecnológica, apenas
pelo setor privado. revela que em alguns setores do movimento de 1964
Como fator nem tão positivo do marco havia o reconhecimento de que o que mais falta ao
constitucional sobre a ciência e a tecnologia, Brasil é ciência e técnica. Mas apenas há programa-
está a natureza propositiva de algumas nor- ticidade em termos gerais, sem percentual de verbas
e sem criação de direitos aos que à ciência e à técnica
mas. Não há a determinação de segmentos a se dedicam ou querem dedicar-se. Apenas se deu
serem, prioritariamente, pesquisados, tam- redação mais restrita ao texto de 1946”.
pouco os meios como se darão tais pesquisas. 2
Amelia Ancog (1993, p. 1, tradução nossa) explica
Essa natureza das normas constitucionais que “[d]iversos países em desenvolvimento têm hoje
fez com que houvesse um hiato temporal de consciência de que C&T é um componente essencial
dos esforços para impulsionar o aumento da produ-
quase 16 anos para que normas ordinárias tividade conducente ao crescimento. Isso foi demons-
fossem editadas, como é o caso da Lei do trado pelo processo de desenvolvimento dos países
Bem (Lei n. 11.196/05) e a Lei da Inovação emergentes (growth countries) como o Japão e os tigres
Tecnológica (Lei n. 10.973/04). asiáticos, tais como a Coréia do Sul, Taiwan, Singapura
Ademais, tem-se como ponto negativo e Hong Kong, em que o caminho para a prosperidade
econômica foi aberto pelo aperfeiçoamento e desen-
derradeiro a adoção de termos tradicio- volvimento de sua capacidade científica e tecnológica.
nais do meio científico e tecnológico, tal Tal auxiliou que desenvolvessem uma vantagem
como pesquisa científica básica, aos quais competitiva e possibilitou que cavassem uma posição
são acrescentados elementos que lhe são, no mercado mundial para seus produtos”.
aprioristicamente, estranhos (embora
3
Os Estados mais desenvolvidos e com alguns dos
melhores indicadores de desenvolvimento humano
constitucionalmente imperiosos). Tal fato apresentam alto índice de P&D. Frise-se, contudo, que
torna obrigatória a realização de uma di- não há necessariamente um juízo de identidade entre
fícil atividade exegética, ao mesmo tempo P&D e um bom Índice de Desenvolvimento Humano
profunda e polêmica. – IDH. Um exemplo paradigmático da desconexão
Verificou-se, por fim, que se encontra entre alto investimento em P&D e índices não tão
exemplares de IDH é a China, a qual, atualmente,
constitucionalmente assegurada a ampla encontra-se como o terceiro país do mundo a investir
liberdade de pesquisa. A vinculação a certas em P&D (Cf. ARRUDA; VERMULM­; HOLLANDA,
finalidades, como acima indicado, ocorre 2006, p. 8), mas que, entretanto, deixa a desejar em
para a pesquisa pública, que cooptará agen- seus índices de desenvolvimento humano apurados.
tes interessados em atuar nesse setor priori- Em 2003, a China ocupava a posição 85 no índice de
desenvolvimento humano, segundo o Human Deve-
zado normativamente. Assim compreendida lopment Reports.
a vinculação mencionada, não há violação 4
Comentando o art. 218, § 1o, o autor afirma:
da liberdade científica e tecnológica. “Tratamento prioritário. Trata-se obviamente de mera
recomendação. Exige-se aqui uma ‘prioridade’, mas
em relação a quê? À pesquisa aplicada?” (FERREIRA
FILHO, 1995, p. 91). Quanto ao § 2o desse mesmo
Notas artigo, afirma: “Solução dos problemas brasileiros. Outra
1
As Constituições brasileiras anteriores não promessa sem significado jurídico, a não ser formal”
trataram do tema, senão dedicando-lhe pequenas (FERREIRA FILHO, 1995, p. 91). Por fim, no que toca
referências em dispositivos esparsos. A Carta de 1937 ao § 3o, discorre: “Recursos humanos. Igualmente aqui
(a primeira a tratar do assunto) estabeleceu o dever está uma recomendação desprovida de conteúdo ju-
do Estado de contribuir para o estímulo e desenvol- rídico, senão meramente formal” (FERREIRA FILHO,
vimento da ciência (art. 128); a de 1946 determinou 1995, p. 91).

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5
Em defesa da íntima conexão entre desenvolvi- 13
Desconsiderem-se, nesse esforço argumentativo,
mento científico e tecnológico, crescimento econômico as importantes implicações ambientais dessa peculiar
e o papel da legislação nos países em desenvolvimen- forma de geração de energia.
to, sustenta Ancog (1993, p. 6, tradução nossa): “Uma 14
Sobre o tema, Gilmar Ferreira Mendes (2002),
vez que a capacidade científica e tecnológica é um dos com muita propriedade, pontua que: “Os direitos indi-
principais componentes dos esforços para o alcance viduais enquanto direitos de hierarquia constitucional
de metas econômicas, o sucesso depende muito das somente podem ser limitados por expressa disposição
reformas legais que incentivem atividades de pesquisa constitucional (restrição imediata) ou mediante lei
e desenvolvimento, promovam inovações nas tecno- ordinária promulgada com fundamento imediato na
logias existentes, aperfeiçoem o setor industrial por própria Constituição (restrição mediata)”. (MENDES;
meio da aplicação de nova tecnologia, e fortaleçam a COELHO; BRANCO, 2002).
infra-estrutura da C&T de forma continuada. 15
A relevância atribuída à C&T, como fator essen-
Portanto, pode-se medir a força dos esforços de cial na geração de crescimento econômico, justifica um
um país para o seu desenvolvimento através da sua especial tratamento àqueles que atuam na área, de
estrutura legal, que incentiva e acomoda inovações, forma a incentivá-los a permanecer nesse trabalho e
produtividade e excelência”. maximizar a sua produtividade. Nesse sentido, defen-
6
Nesse sentido, embora referindo-se especificamente de Ancog (1993, p. 7, tradução nossa) que se estabeleça,
à experiência das Filipinas (ANCOG, 1993, p. 13). em favor de cientistas, pesquisadores e tecnologistas,
7
O que não significa, de sua parte, uma compre- um sistema de recompensas e incentivos, em troca de
ensão da liberdade exclusivamente individualista, seu trabalho para o governo: “Em razão da ausência
vale dizer, sem interconexões necessárias, elementos de incentivos atrativos para cientistas e pesquisadores
sociais e outros (Cf. TAVARES, 2006). em termos de desenvolvimento de carreira e segu-
8
O tema será retomado abaixo, quando do estudo rança financeira, eles não são induzidos a contribuir
da pesquisa tecnológica no país. com seu conhecimento e experiência em serviço do
9
O fato de poder-se encontrar governos formal- governo. Essa é uma grande razão pela qual muitos,
mente republicanos com baixo compromisso ético- entre o pessoal de C&T, optam por ir a outros países
republicano não infirma a idéia apresentada. em busca de melhores oportunidades de emprego, ou
10
Deve-se reconhecer, porém, que existe íntima oferecem seu trabalho à iniciativa privada, onde são
conexão entre educação e desenvolvimento tecno- adequadamente compensados. Conseqüentemente,
lógico: “A pesquisa está indissoluvelmente ligada à seus talentos criativos não se tornam disponíveis em
educação. A conclusão semelhante a que chegaram benefício do público. Existe a necessidade, portanto,
Denison, Shiskin, Servan Schreiber, bem como ainda de um sistema em que se assegure aos cientistas no go-
Robert McNamara no seminário de Jackson, Missis- verno uma carreira de estabilidade e desenvolvimento
sipi, em fevereiro de 1967, insiste em que a educação com a correspondente e suficiente remuneração”.
permanente é o principal motor de inovação tecnoló- 16
Segundo artigo publicado em boletim da
gica, sendo ambas os principais fatores do desenvol- Unicamp, Inovação, 1,02% do PIB fora investido pelo
vimento no processo da economia norte-americana” Estado, em 2001, em P&D. Em 2004, apenas 0,93%
(Cf. FERREIRA, 1995, p. 198). A pesquisa básica, a (TEIXEIRA; SIMÕES, 2006).
gerar conhecimentos não diretamente relacionados
com a sua aplicação, pode apresentar-se como ponto
de partida para a inovação tecnológica: “Quem po-
deria predizer, por exemplo, que a observação das Referências
folhas de lotus através do microscópio de varredura ANCOG, Amelia C. Law, science and technology. Law
poderia vir a produzir tintas que, quando aplicadas, and Technology, Washington, v. 26, n. 3, 1993.
resultam em carros autolimpantes?” (CHAIMOVICH,
2000, p. 135). ARRUDA, Mauro; VERMULM, Roberto; HOLLANDA,
11
Considere-se, aqui, o conceito construído por Sandra. Inovação tecnológica no Brasil: a indústria em
Fábio Nusdeo (2001, p. 151-152), consoante o qual a busca da competitividade global. São Paulo: ANPEI,
externalidade consiste no “fato de, numa atividade 2006.
econômica, nem sempre, ou raramente, todos os custos
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de
e os respectivos benefícios recaírem sobre a unidade
inconstitucionalidade n. 550-2/MT. Relator: Min.
responsável pela sua condução, como seria pressupos-
Ilmar Galvão. Cuiabá, [200-]. Diário da Justiça, Brasília­,
to. (...) As externalidades correspondem, pois, a custos
18 out. 2002.
e benefícios circulando externamente ao mercado, vale
dizer, que se quedam incompensados, pois, para eles, BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de
o mercado não consegue imputar um preço”. inconstitucionalidade n. 815-96/DF. Relator: Min. Mo-
12
Sobre a distinção entre gubernaculum e jurisdictio reira Alves. Brasília, [199-]. Diário da Justiça, Brasília­,
(sindicáveis pelo Judiciário), Cf. McIlwain (1977). 10 maio 1996.

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