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na formação de historiadores
e historiadoras no ensino superior
The Place of Theory of History in the Training
of Historians at the Higher Education Level
Breno MENDES *
Cristiano Alencar ARRAIS **
Carlos Oiti BERBERT JÚNIOR ***
* https://orcid.org/0000-0001-6408-4117
Universidade Federal de Goiás (UFG), Faculdade de História
Avenida Esperança, s/n, Campus Samambaia, 74690-900, Goiânia, GO, Brasil
mendes.breno@gmail.com
** https://orcid.org/0000-0001-7831-1376
Universidade Federal de Goiás (UFG), Faculdade de História
Avenida Esperança, s/n, Campus Samambaia, 74690-900, Goiânia, GO, Brasil
cpaarrais@gmail.com
*** https://orcid.org/0000-0002-9428-3755
Universidade Federal de Goiás (UFG), Faculdade de História
Avenida Esperança, s/n, Campus Samambaia, 74690-900, Goiânia, GO, Brasil
carlosoiti@ufg.br
This is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
Breno MENDES, Cristiano Alencar ARRAIS & Carlos Oiti BERBERT JÚNIOR
Abstract This article argues that the theory of history holds inherent
functions and meanings and plays a fundamental role in the formation
of historians. We reject the dualism between theory and practice that
persists in many university curricula. The academic discipline of the
theory of history can be conceived of as focusing on the guiding factors
inherent in reconstructive processes, raising to the level of conscious-
ness what students often perceive only intuitively. To support our argu-
ment, we first investigate the formation process of the theory of history
field in Brazil. Next, using the theory of curriculum, we analyze the
pedagogical projects of a dozen undergraduate courses in Brazil, aiming
to understand the relationship between the theory of history discipline
and other curricular components. Finally, we propose linking theory
and the teaching of history through the didactics of history to obtain a
gain of cultural orientation.
Keywords Theory of history, curriculum, didactics of history
4 Ao analisar o currículo de história e geografia da USP, Roiz (2007, p. 77-78) sustenta que, “no
conjunto, o curso de Geografia e História, limitava-se a caracterizar aos alunos, as grandes
linhas da História mundial e nacional, os aspectos geográficos do processo e a formação
histórica e linguística do território brasileiro (...). Nos cursos primava-se pela formação do
professor ‘secundário’ e de um ‘espírito crítico’ nos alunos, mas ainda não se pensava na
formação do especialista em história, ou num ‘oficio de historiador’”.
5 Uma exceção teria sido o currículo do curso de geografia e história da Universidade de
Porto Alegre (UPA), projetado em 1936, que previa uma cadeira de “filosofia da história” e
uma de “metodologia da história e da geografia”. O documento não chegou, contudo, a ser
implantado. Em sua reformulação, sintomaticamente, as duas disciplinas que mencionamos
foram suprimidas. Ver Rodrigues (2013).
6 BRASIL. Lei n° 2.594, de 8 de setembro de 1955. Dispõe sobre os desdobramentos dos Cursos
de Geografia e História nas Faculdades de Filosofia. Disponível em: https://www2.camara.
leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-2594-8-setembro-1955-361157-norma-pl.html. Acesso em:
14 jan. 2023.
7 “Ensinar num plano universitário os fatos sem a teoria seria o mesmo que limitar-se, nos
cursos jurídicos, a ministrar a lei e os códigos sem a teoria e a interpretação (...). Na história,
como em qualquer ciência, os progressos referentes ao esclarecimento conceitual, teórico e
metódico são tão necessários quanto o conhecimento dos fatos (...). No Brasil, onde o apetite
pela história é tão grande e tantos são os que a ela se dedicam, seria urgente e indispensável
a inauguração de curso universitário dessa natureza. O que já se fez em direito e em filosofia
com a cadeira de Introdução, dever-se-ia fazer com a história” (RODRIGUES, 1957, p. VIII,
grifos dos autores).
8 Depois de garantir que os estudos teóricos não se confundiam, de maneira alguma, com a
filosofia da história especulativa, Jean Glénisson (1961, p. 5) delineava entre os seus pro-
pósitos na disciplina de introdução aos estudos históricos a ênfase em aspectos metodoló-
gicos e historiográficos: a) “iniciar o estudioso na concepção contemporânea de história”;
b) “mostrar sumariamente os caminhos percorridos pela história até atingir sua problemática
atual”; c) “assinalar, de passagem, as correntes inovadoras que permitem discernir a provável
evolução de nossa disciplina nos anos por vir, concedendo-se, evidentemente, grande lugar
à história da história, pelo menos a partir dos anos 1850-1900, que presenciaram o triunfo
do método crítico”; d) “revelar o método e as técnicas, pôr ao alcance do amador de história
o instrumento que poderá convertê-lo em historiador consciente”.
9 A presença de Glénisson integra o conjunto de intelectuais franceses que estabeleceram as
bases do ensino superior no Brasil em diversas áreas de ensino, a partir do final da década
de 1930. Como observa Roiz (2020, p. 104), “veremos que nesse caso também as tentativas
de construção de certas tradições foram comuns, mas igualmente se formavam em meio a
disputas pelo poder, cuja expectativa era dar forma a como se deveria escrever a história,
especialmente, a história do Brasil”.
10 “As preleções daquele curso extracurricular de 1943 foram publicadas na revista Verbum, em
1953 e, em 1956, surgiam como conteúdo da cadeira obrigatória para o curso de formação
de professores, legitimada nacionalmente com a autonomização das graduações de História
e Geografia” (FREITAS, 2020, p. 278).
11 Em nota de rodapé, o editor da Revista, Eurípedes Simões de Paula (in BESSELAAR, 1954,
p. 407), destacou a inovação da proposta do professor holandês, a despeito da sua extensão
pouco comum para artigos acadêmicos: “iniciamos a publicação do interessante trabalho do
Prof. Dr. José Van Den Besselaar que, por representar uma necessidade para os nossos alunos
desprovidos de bons manuais, não tivemos dúvidas em estampar, apesar do seu tamanho. Nos
números seguintes publicaremos as outras três partes e, finalmente, depois de todo publicado
será reunido em livro e aparecerá na coleção de Cadernos da Revista de História”.
14 “Após a legislação, a principal porta de entrada que os pesquisadores possuem para estudar
um curso qualquer, da educação básica ao nível superior, são os seus respectivos currículos.
É por meio deles que temos acesso ao ordenamento dos conteúdos e à distribuição da carga
horária, o que nos permite acessar evidentemente as matérias eleitas como prioridade para o
processo de ensino aprendizagem em questão e os critérios de organização dessas matérias no
conjunto de um curso, especialmente porque hoje já pomos em cheque (sic) a naturalização
da organização dos conteúdos de uma instituição escolar” (COSTA, 2018, p. 148).
15 Importante destacar que, para nós, os projetos pedagógicos “não são operacionalizados como
sinônimos de verdade. Tampouco espelham uma realidade. Não são reflexo de uma suposta
realidade que se encontra presente nas faculdades e/ou nos departamentos. Eles são traços
constituintes das práticas que concorrem para criar os percursos formativos dos professores
de História. São registros fragmentários que representam parte das disputas que envolvem
as condições que permitem, nesse tipo de documento, inserir algumas informações, ao passo
que proíbem outras” (CAVALCANTI, 2021, p. 138).
16 UNIVERSIDADE Federal do Paraná (UFPR), Departamento de História. Programa das
disciplinas. Disponível em: http://www.humanas.ufpr.br/portal/historia/1o-semestre-de-2022/.
Acesso em: 14 jan. 2023. Todas as ementas citadas ao longo deste parágrafo estão associadas a
disciplinas como “teoria e metodologia da história”, “teoria da história” e “introdução aos estudos
históricos”. Buscamos contemplar a diversidade de instituições em distintas regiões do Brasil.
30 KLEINBERG, Ethan; SCOTT, Joan; WILDER, Gary. Teses sobre teoria e história, 2018, p. 2,
grifos no original.
31 Rerum gestarum refere-se àquilo que é narrado, e res gestae diz respeito às coisas realizadas no
passado. De acordo com Koselleck (2006), somente com o conceito moderno de história há
uma confluência, por assim dizer, entre a história como narrativa/conhecimento e a história
como conjunto de acontecimentos.
32 “A história crítica não aplica teoria à história, nem pede por maior integração da teoria nos
trabalhos históricos como que vinda de fora. Ao contrário, ela busca produzir história teorica
mente orientada e teoria historicamente fundamentada. A história crítica trata seriamente os
arranjos, processos e forças não contíguas e não-aproximadas, sejam eles estruturas sociais,
simbólicas ou psíquicas; campos e relações; ou ‘causas’ que possam ser separadas de seus
‘efeitos’ por continentes ou séculos. A história crítica reflete sobre suas próprias condições
históricas e sociais de possibilidade. Especifica suas premissas, orientações e as implicações
teóricas dos seus argumentos”. KLEINBERG, Ethan; SCOTT, Joan; WILDER, Gary. Teses
sobre teoria e história, 2018, p. 5.
33 KLEINBERG, Ethan; SCOTT, Joan; WILDER, Gary. Teses sobre teoria e história, 2018, p. 3.
34 BENTIVOGLIO, Julio. Precisamos falar sobre o currículo de história. In: Café História, 15
maio 2017.
35 KLEINBERG, Ethan; SCOTT, Joan; WILDER, Gary. Teses sobre teoria e história, 2018, p. 3,
grifos no original.
36 Do ponto de vista ontológico, a melhor crítica à noção de contexto foi apresentada por
Martin Heidegger (2012) em Ser e tempo. Não é segredo que a ciência histórica moderna
tem na noção de contexto um de seus principais expedientes para compreender um evento
e o historicizar. O grande problema, na perspectiva de Heidegger, é que, nesses termos, o
contexto está enraizado na historicidade imprópria, uma vez que ele é visto como algo externo
ao ser humano, como um lugar no tempo no qual ele deve ser simplesmente posicionado. Ao
contrário, no caso da historicidade própria, o ser humano é temporal e histórico no fundo do
seu ser, ele é sempre um ser-com, um ser temporal, um ser em um mundo.
37 KLEINBERG, Ethan; SCOTT, Joan; WILDER, Gary. Teses sobre teoria e história, 2018, p. 6.
A dicotomia entre teoria e prática vem sendo apontada como uma pe-
dra no caminho da formação de historiadores e historiadoras há al-
gum tempo. Em busca de solucionar o problema, na última década
tem havido uma aproximação recíproca entre os campos da teoria da
história e do ensino de história (SEFFNER, 2000; GUIMARÃES, 2009;
MENDES, 2021). Do ponto de vista institucional, um exemplo emble-
mático é o currículo do Mestrado Profissional em Ensino de História
(PROFHISTÓRIA),38 que tem como um de seus princípios norteadores
a articulação do ensino de história com a teoria da história – que, diga-
-se de passagem, é uma das poucas disciplinas obrigatórias do curso.39
De acordo com Estevão Martins (2020), podemos, grosso modo,
dividir o campo do ensino-aprendizagem em história em duas grandes
vertentes: a) tradicional: focada na cultura escolar e nos espaços formais
institucionalizados de ensino, diz respeito ao “dar aulas de história”;
b) potenciadora: focada nos efeitos formativos do desenvolvimento da
consciência histórica na cultura histórica, diz respeito à didática da his-
tória. Levando isso em consideração, e diante das diferentes possibilida-
des de associar teoria da história e ensino de história, procuraremos nos
concentrar no campo da didática da história, algo que, segundo Rüsen
(2010a, p. 41-42) coloca em evidência a função mediadora da teoria da
história e sua importância para a formação histórica:
38 “Mas como seria esse mestrado? Seria mais um curso de atualização de conteúdo focado no
fornecimento de informações factuais e interpretações relativas a esses eventos e temáticas?
A despeito de algumas diferenças, um ponto foi consensual desde o início entre o grupo de
professores participantes: o curso deveria ter a teoria da história e a historiografia como foco
central. Isso queria dizer que o mais importante era trabalhar com o processo de construção
do conhecimento histórico e com a premissa de que todas as temáticas abordadas deveriam
estar relacionadas com a sua prática na sala de aula” (FERREIRA, 2016, p. 40-41).
39 Os outros componentes obrigatórios são “história do ensino de história” e “seminário de
pesquisa”.
do que seja a aprendizagem histórica requer o conhecimento do que seja história, daquilo
em que consiste a especificidade do pensamento histórico e da forma científica moderna
em que se expressa. No cerne da questão está a capacidade de pensar historicamente, a ser
desenvolvida nos processos de educação e formação” (RÜSEN, 2015, p. 248).
41 “Como conceito filosófico, o termo possui um significado muito mais amplo; significa ‘o modo
de ser histórico do espírito humano’, uma característica fundamental de tudo o que é humano
em contraste com o ser natural, quer dizer, como conceito filosófico historicidade reflete a
temporalidade radical da existência [Daseins] humana” (RENTHE-FINK, 2021, p. 208-209).
42 “O conceito de cultura histórica (...) refere-se ao modo como as pessoas ou os grupos humanos
se relacionam com o passado. Em outras palavras, corresponde às formas pelas quais elabora-
mos experiências situando-as no tempo e no espaço (...) A base necessária para a constituição
da cultura histórica reside no dado antropológico de que as ações humanas necessárias à vida
são dotadas de sentido e finalidades” (GONTIJO, 2019, p. 66).
45 SANCHES, Monica. Museu da República no Rio recebe peças históricas de religiões afro-
-brasileiras apreendidas pela polícia há mais de 100 anos. In: G1, 21 set. 2020. Disponível
em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/09/21/museu-da-republica-no-rio-
recebe-pecas-historicas-de-religioes-afro-brasileiras-apreendidas-pela-policia-ha-mais-de-
100-anos.ghtml. Acesso em: 14 jan. 2023.
46 Citado por VIEIRA, Isabela. Grupo de trabalho definirá destino de peças religiosas apreen-
didas no século 20. In: Agência Brasil, 19 set. 2017. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.
com.br/cultura/noticia/2017-09/grupo-de-trabalho-definira-destino-de-pecas-religiosas-
apreendidas-no-seculo. Acesso em: 14 jan. 2023.
47 “Agora se deve ressalvar que o pensamento histórico, obviamente, não modifica os fatos do
passado, as res gestae, os ‘feitos’. Quando se afirma que o passado se pode tornar ‘melhor’,
não se está fazendo referência aos fatos em si, mas à razão de ser da interpretação deles, ou
seja, à circunstância de que os seres humanos interpretam o passado de maneira a superar as
condições determinantes do seu agir presente” (RÜSEN, 2011, p. 278).
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