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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


LABORATÓRIO DE ANTROPOLOGIA

INTRODUÇÃO AOS CONCEITOS BÁSICOS DA ANTROPOLOGIA *

I. Definição de Antropologia

Em sentido amplo, “antropologia” – do grego anthropos (homem) e logía (tratado, ciência,


discurso) – é entendida como a ciência que se propõe estudar o homem em sua totalidade física e
social, ou seja, como ser biológico e cultural, preocupando-se em distinguir e, ao mesmo tempo,
revelar as inter-relações entre os comportamentos geneticamente herdados e os adquiridos pela
cultura. Algumas definições acadêmicas de antropologia nos serão úteis para compreender melhor
essa disciplina:
– “ciência que estuda o homem, suas produções e seu comportamento. O seu interesse está no homem
como um todo – ser biológico e ser cultural –, preocupando-se em revelar os fatos da natureza e da
cultura”1.
– “é a ciência da humanidade e da cultura. Como tal é uma ciência superior social e
comportamental, e mais, na sua relação com as artes e no empenho do antropólogo de sentir e
comunicar o modo de viver total de povos específicos, é também uma disciplina humanística”2.
– “visa um conhecimento global do homem, abrangendo seu objeto em toda sua extensão histórica e
geográfica; aspirando a um conhecimento aplicável ao conjunto do desenvolvimento humano desde,
digamos os hominídeos até as raças modernas, e tendendo para conclusões, positivas ou negativas,
mas válidas para todas as sociedades humanas, desde a grande cidade moderna até a menor tribo
melanésia”3.
– “é comumente definida como o estudo do homem e de seus trabalhos. Assim definida, deverá
incluir algumas das ciências naturais e todas as ciências sociais; mas, por uma espécie de acordo
tácito, os antropólogos tomaram como campos principais o estudo das origens do homem, a
classificação de suas variedades e a investigação da vida dos chamados ‘povos primitivos’” 4.
A antropologia é então a ciência do homem, daquilo que ele é e faz. O antropólogo estuda
todas as formas de expressão da cultura, sejam materiais ou imateriais, e todas as modalidades de
organização social. A antropologia baseia-se fundamentalmente na observação do “outro”, isto é, de
outros povos, etnias, sociedades, grupos, comunidades ou fenômenos culturais específicos a fim de
estudar a diversidade cultural humana e tentar compreender a lógica e a racionalidade dos diversos
sistemas sociais. Sendo assim, o antropólogo é uma pessoa que estuda outras pessoas, é um sujeito
que estuda outros sujeitos humanos, o que implica numa forma intersubjetiva de conhecer o outro. A
antropologia investiga a perspectiva do “diferente” em relação ao pesquisador que realiza a

*
© Apontamento preparado pelo prof. Mauro V. Barreto para a disciplina “Antropologia Cultural I” da UFPA (2000).
1
MARCONI & PRESOTTO, 1992, p. 22
2
HOEBEL & FROST, 1984, p. 3
3
LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 396
4
LINTON, 1987, p. 12

1
investigação para conhecê-lo e respeitá-lo. Ao agir assim, a antropologia se torna uma maneira de
conhecermos a nós mesmos na medida em que ela nos fornece informações cruciais sobre a natureza
humana.
A antropologia pretende ser um discurso científico sobre a alteridade e uma forma não
etnocêntrica de olhar a diversidade. O etnocentrismo é a tendência de se considerar a nossa cultura
como melhor ou superior as outras ou de julgar as demais sociedades a partir dos valores e
parâmetros culturais vigentes em nossa própria sociedade. É uma mundivisão em que a cultura do
observador serve de modelo ou referência para a análise e interpretação de outras realidades sociais5.
Os diversos grupos humanos, sejam tribos ou nações, tendem todos a pensar que a sua cultura e
tradições são as “certas” ou as mais aperfeiçoadas. Conhecemos o mundo do “nosso” grupo,
compartilhamos os mesmos costumes, pensamentos e sentimentos. Quando nos deparamos com um
“outro” grupo, com o “diferente” têm-se a experiência do choque cultural. O “outro” em questão
pode ter um tom de pele ou tipo físico distinto do nosso ou viver de um modo e fazer coisas que
podem nos causar desde um simples espanto até uma completa repulsa. Se fossemos traçar uma
escala etnocêntrica ela iria desde a perplexidade até a total rejeição do “outro”:

Estranhamento Estereótipos/preconceitos Aversão/rejeição Discriminação


Segregação Etnocídio Genocídio

O etnocentrismo – que não é mesma coisa que racismo mas está na base dele – é um
fenômeno de âmbito universal, posto que pode ser encontrado em qualquer época e em todos os tipos
de sociedade. A diferença pode nos parecer ameaçadora porque, de forma explícita ou inconsciente,
ela coloca em cheque a nossa própria identidade cultural, que supomos a “natural”.
À essa visão opõe-se o relativismo cultural, que não considera nenhuma cultura melhor ou
pior que outra; as culturas podem ser simples ou complexas, mais ou menos desenvolvidas
tecnologicamente, mas não se pode considerar uma mais perfeita que outra, elas são apenas
diferentes. Relativizar “é não transformar a diferença em hierarquia, (...) em bem ou mal, mas vê-la
na sua dimensão de riqueza por ser diferença”6. A abordagem antropológica procura ser uma forma
de superação do etnocentrismo. É claro que o antropólogo é um ser humano concreto que nasceu e foi
socializado numa dada sociedade, por isso seria um absurdo ele ignorar que tem sentimentos,
condutas e uma formação pessoal condicionada por sua cultura. Mas como pesquisador ele procura,
na medida do possível, compreender a cultura do outro e traduzir essa experiência através de uma
linguagem e de uma metodologia científica; sua meta é descrever e interpretar os fenômenos culturais
e a realidade social do grupo estudado. Para isso ele tem que conviver com as pessoas e participar da
vida cotidiana da sociedade que investiga. A antropologia busca então oferecer um conhecimento
científico da humanidade e de sua diversidade cultural e étnica.
Duas características são fundamentais na antropologia: a comparação sistemática dos
fenômenos culturais e a grande abrangência de seu campo investigativo:

Em contraste com outros pesquisadores, os antropólogos geralmente são mais


comparativos, pois se interessam pelos seres humanos de toda as épocas e de
todos os lugares. (...) Além de serem mais comparativos, os antropólogos
também são mais holísticos. Isto quer dizer que os antropólogos se interessam
por todos os aspectos da vida humana, desde a biologia até os sistemas de
agricultura, relações sociais, linguagem, psicologia e religião7.

5
ROCHA, 1994
6
ROCHA, 1994, p. 20
7
WERNER, 1990, p. 12-13

2
Ao antropólogo, portanto, interessa todas as sociedades que existem no presente ou que
existiram no passado em qualquer lugar do mundo. A antropologia é uma ciência que, ao estudar as
ações e manifestações culturais das diversas populações, intenta realizar uma tradução intercultural
dos variados modos de vida existentes nas mais distantes partes do globo. A antropologia estuda as
sociedades humanas como sistemas simbólicos e não como sistemas naturais, por isso tende mais a
interpretar do que explicar. Ela investiga e compara as manifestações culturais em todas as
sociedades a fim de realizar generalizações aplicáveis a toda humanidade e não para estabelecer leis
sociobiológicas de comportamento.
Devido à grande abrangência de seu objeto de estudo, posto que lida com toda a complexa
diversidade cultural humana, a antropologia divide-se em diversos ramos ou subdisciplinas, cada
uma especializada numa determinada área ou aspecto da realidade humana, por isso ela tem trânsito
tanto nas ciências biológicas quanto nas ciências humanas e sociais. Em linhas gerais, a antropologia
pode ser dividida em:
1. Antropologia física ou biológica: estuda a origem e evolução da espécie humana
(paleoantropologia), as características físicas e biológicas do homem e as variações genéticas e
morfológicas existentes entre os diferentes grupos humanos. Baseia-se na antropometria (técnica de
mensuração das características anatômicas do corpo humano) e na somatologia (estudo das
características e variações corporais, fisiológicas, genéticas e sexuais do ser humano).
2. Antropologia cultural: estuda a cultura em sentido amplo, tanto o conjunto abstrato das normas,
valores e concepções simbólicas que ordenam as relações sociais e as formas de comportamento em
dada sociedade como também as suas manifestações materiais e técnicas. Seu principal objetivo
consiste no estudo das semelhanças e diferenças existentes entre as diversas sociedades, tentando
identificar tanto as características particulares quanto universais do agir humano. Neste sentido,
procura descobrir quais os elementos culturais existentes em todas as sociedades e quais os
específicos de cada uma para tentar saber o que os humanos têm de igual e de diferente entre si.
3. Antropologia social: dedica-se ao estudo da estrutura social e dos processos sociais observados nas
sociedades humanas ou grupos específicos dessas sociedades. O antropólogo social tem como objeto
de análise o conjunto de relações sociais que estruturam e permitem o funcionamento da sociedade: a
família, a organização do parentesco, as relações de gênero, os papéis sociais, as classes de faixa
etária, as categorias ou status ocupacionais, a interação comunitária, o sistema sociopolítico e
econômico etc. Utiliza as relações sociais como matéria-prima, isto é, foca sua investigação no nível
da sociedade, estudando a estrutura social das comunidades a partir de suas instituições e das inter-
relações entre tais instituições; aproxima-se, por isso, da abordagem sociológica, da qual distingui-se
pela metodologia e técnicas empregadas.
4. Arqueologia: estuda as sociedades humanas pré-históricas e históricas pretéritas através dos
remanescentes materiais recuperados nas escavações. Procura reconstituir o modo de vida das
sociedades desaparecidas pela análise e interpretação dos restos materiais: artefatos8, ruínas, fósseis e
demais vestígios. Divide-se em arqueologia pré-histórica (antes da descoberta da escrita) e histórica
(oriental, clássica, medieval, industrial etc.).
5. Lingüística: estuda a linguagem oral e os idiomas.
No sentido estrito não existe uma nítida diferenciação entre antropologia cultural – conceito
usado nos EUA – e antropologia social – termo empregado na Inglaterra. A distinção está mais na
ênfase dada ao assunto abordado (comportamento, tecnologia e cultura material na 1ª e os sistemas
de parentesco e a estrutura social na 2ª) e não na essência do que é estudado. Na França, o termo

8
Artefato é todo e qualquer objeto que, de uma forma ou outra, sofreu alguma transformação deliberada – logo,
consciente e planejada – por parte do ser humano para desempenhar determinada função prática e/ou simbólica,
constituindo então todos os tipos de ferramentas, peças e apetrechos confeccionados de forma artesanal ou industrial;
podem ser de origem vegetal, animal ou inorgânica, neste último caso referimo-nos à pedra, barro e metais.

3
“antropologia” originalmente reportava-se ao estudo biológico e anatômico do homem, enquanto que
“etnologia” tem sido empregado como sinônimo de antropologia cultural e/ou social.
A rigor, essa diferença “cultural” e “social” não existe na prática, pois o antropólogo está
preocupado tanto com o que as pessoas pensam e fazem para sobreviver quanto com as relações
sociais comunitárias.

II. As Características Metodológicas da Pesquisa Antropológica

Em seus primórdios a antropologia tradicionalmente estudava os grupos étnicos ágrafos nas


regiões mais distantes e isoladas da Terra. Seu alvo eram os bandos ou grupos tribais não ocidentais
pré-industriais. Posteriormente passou também a se interessar por segmentos específicos das
modernas sociedades urbanas mais complexas. Em qualquer dos casos, são os grupos de pequena
escala que ela investiga, por isso sua metodologia é mais aplicável às pequenas sociedades ou
comunidades. O antropólogo adota a prática da observação direta em campo, convivendo e
participando da vida cotidiana da coletividade que estuda, visando com isso obter uma visão holística
do grupo social ou etnia investigada. Etnia pode ser definida como uma população “que adota um
etnónimo e que reclama uma mesma origem, possuindo uma tradição cultural comum, especificada
por uma consciência de pertença a um grupo, cuja unidade se apoia em geral numa língua, numa
história e num território idênticos”9.
Já a sociologia concentra-se prioritariamente no estudo das interações, instituições e
segmentos sociais das complexas sociedades contemporâneas, letradas e de escala urbano-industrial:
“O objeto do sociólogo aparece menos distante e mais visível do que o do etnólogo, e a sociologia
escolhe como método preferido a amostragem sobre um vasto conjunto, enquanto a etnologia prefere
elaborar inventários descritivos completos das culturas de pequena dimensão”10. Numa interpretação
livre, diríamos que o sociólogo analisa as macro-estruturas sociais enquanto o antropólogo as micro
– estudando neste caso, além da organização social, o comportamento, os costumes, as inter-relações
cotidianas e as crenças do grupo investigado.
Tendo em vista a imensa gama de assuntos abordados pela antropologia, o antropólogo deve
se dedicar a um ou no máximo dois ou três temas de pesquisa. Ele pode se especializar numa
temática ou numa determinada comunidade humana, que pode ser um grupo étnico em particular ou
um segmento social específico de uma grande sociedade moderna. Seu objetivo é realizar
observações, comparações e interpretações a respeito da organização, dos valores, da ideologia, do
funcionamento e da estrutura social do grupo ou sociedade que estuda. Para a consecução desses
objetivos, o antropólogo:

tenta revelar as formas ou padrões estruturais que existem por detrás da


complexidade e aparente confusão das realidades da sociedade que estuda. (...)
por meio da análise chega a abstrações das realidades sociais complexas, e
depois relaciona estas abstrações umas com as outras de tal modo que as relações
sociais totais se apresentem como uma estrutura e sejam assim percebidas pela
mente em perspectiva e como um todo integrado, em que aparecem destacadas as
suas características essenciais11.

O trabalho do antropólogo tem três fases:


1. Etnografia (do grego ethnos, povo; graphein, escrever): é o registro e descrição dos fenômenos
culturais particulares de um povo, grupo ou comunidade humana através da observação,
classificação e catalogação dos dados obtidos em pesquisa direta e participante de campo. A coleta

9
RIVIÈRE, 2000, p. 14
10
RIVIÈRE, 2000, p. 19
11
EVANS-PRITCHARD, 1985, p. 119

4
de material etnográfico se dá através de entrevistas, conversas informais, anotações em cadernetas e
diários de campo, gravadores de voz, máquinas fotográficas, filmadoras etc. O contato imediato e
constante com o nativo ou grupo estudado que a estada em campo proporciona é o laboratório do
antropólogo. No estudo das modernas sociedades complexas, onde a diversidade social e – muitas
vezes – a composição étnica da população costumam ser muito variadas, o termo mais adequado
seria sociografia12, já que não se concentra num grupo étnico específico.
2. Etnologia: com base na análise comparativa dos dados etnográficos procura explicar a
organização social e as características culturais de uma ou várias sociedades. Consiste “em um
primeiro nível de abstração: analisando os materiais colhidos, fazer aparecer a lógica específica da
sociedade que se estuda”13. É o primeiro passo em direção a uma síntese que pode operar em três
direções: geográfica, quando se compara dados de culturas vizinhas; histórica, quando se quer
reconstituir o passado de um ou mais grupos e, por fim, sistemática, quando se estuda de forma
isolada uma determinada técnica, costume, artefato ou instituição14. Para isso, o antropólogo lança
mão de um corpo teórico de caráter sistemático, ou seja, de uma teoria antropológica que melhor
explique ou se adeqüe à natureza de seu objeto de estudo.
3. Síntese antropológica: analisa e compara os dados dos mais variados grupos étnicos e povos a fim
de construir sínteses ou modelos teóricos que expliquem as peculiaridades e diversidades culturais
registradas entre as diversas sociedades do globo. O objetivo final é procurar entender os fatores
socioculturais e ambientais que atuam para explicar as semelhanças e diferenças entre as sociedades
humanas de todas as épocas e lugares. Isto evidencia duas características importantes da
antropologia: a comparação sistemática dos fenômenos culturais e o caráter holístico de sua
investigação.
Entretanto, logo à primeira vista podemos perceber que esses procedimentos são tão
imbricados, tanto do ponto de vista metodológico quanto teórico, que não se pode fazer uma distinção
tão explícita entre o trabalho do etnógrafo, do etnólogo e o do antropólogo. Os três níveis convergem
e interagem entre si para alcançarem o mesmo fim. De acordo com o grande antropólogo francês
Lévi-Strauss:

Etnografia, etnologia e antropologia não constituem três disciplinas diferentes,


ou três concepções diferentes dos mesmos estudos. São, de fato, três etapas ou
três momentos de uma mesma pesquisa, e a preferência por este ou aquele destes
termos exprime somente uma atenção predominante voltada para um tipo de
pesquisa, que não poderia nunca ser exclusivo dos dois outros15.

Assim, a antropologia tem como objeto de estudo as sociedades humanas e seu objetivo é
obter um conhecimento holístico e sistemático do ser humano, de suas interações sociais, de sua
relação com o ambiente e dos produtos de sua ação cultural no mundo. Sempre lembrando que os
fenômenos culturais não são estudados isoladamente, mas como parte de um todo orgânico, ou seja,
dos subsistemas socioculturais (político, econômico, religioso e de parentesco) que formam a
estrutura social das comunidades humanas e permitem seu funcionamento. É papel do antropólogo
revelar essa estrutura social que, conforme Lévi-Strauss (1975), nunca se confunde com as relações
sociais empíricas e visíveis, sendo estas apenas a matéria-prima a partir das quais o pesquisador
elabora modelos mentais que tentam abstrair a dita estrutura. Mas não só isso. Numa perspectiva
hermenêutica, ou de abordagem semiótica da cultura, o estudo antropológico é, antes de mais nada,
uma interpretação dos discursos sociais e dos atos simbólicos do homem, daí porque o antropólogo

12
Sociografia: “Parte da sociologia descritiva que cuida do material demográfico, estatístico, histórico, folclórico,
geográfico, ecológico etc., de grupos sociais” [DICIONÁRIO MICHAELIS, 2000, p. 1962].
13
LAPLANTINE, 1993, p. 25
14
LÉVI-STRAUSS, 1975
15
LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 396

5
norte-americano Clifford Geertz considera a antropologia não como uma “uma ciência experimental
em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”16.
Em suas origens, a antropologia se dedicou essencialmente aos estudos das sociedades sem
escrita não ocidentais: as chamadas sociedades “primitivas” – hoje mais conhecidas como ágrafas,
pré-letradas, pré-industriais, simples, de pequena escala, arcaicas ou tradicionais. O nome
“primitivo” não deve ser entendido num sentido pejorativo de atrasado ou rudimentar, mas no sentido
de primeiro, primordial, as formas mais elementares de sociedade humana.
O estudo das sociedades ágrafas procura investigar todos os aspectos, características e
elementos culturais presentes em um determinado grupo étnico, bando ou tribo, no momento em que
se dá a pesquisa (sincronia) e também, se possível, sua evolução histórica através de uma maior ou
menor escala de tempo (diacronia). A dificuldade de pesquisas diacrônicas em sociedades ágrafas
decorre dos obstáculos que existem para se ter informações seguras a respeito do processo de
transformação histórica nessas sociedades, já que as mudanças estruturais ocorrem ordinariamente
num ritmo acentuadamente lento. Além disso, como não possuem escrita, os dados sobre o seu
passado só podem ser conseguidos pelos relatos da tradição oral, pelas fontes etnohistóricas, se
existirem, ou pela arqueologia. Quase todas as sociedades tradicionais pré-letradas desapareceram ou
se transformaram em razão do contato com a civilização ocidental. As poucas que restaram estão em
acentuado processo de mudança. Essas sociedades partilham certas características em comum:
a) comunidades ou assentamentos que variam de algumas dezenas de indivíduos (bandos familiares)
até concentrações demográficas maiores com centenas e mesmo milhares de pessoas (aldeias com
várias linhagens e clãs);
b) o raio de ação do grupo é geralmente circunscrito geograficamente ao território de caça, forrageio,
zona de exploração nômade, pastagens para o gado ou lugares onde se fazem cultivos agrícolas;
c) tecnologia simples mas eficaz para a exploração do ambiente em que é empregada e eficiente para
a sobrevivência da sociedade. A economia pode ser baseada na caça, pesca e coleta de produtos
vegetais silvestres; neste caso temos uma sociedade caçadora-coletora. Mas também, além do
forrageio, podem existir rebanhos de animais domesticados, com a prática do pastoreio, e/ou alguma
forma de agricultura incipiente e/ou extensiva; neste caso temos uma sociedade produtora de
alimentos e não apenas coletora. Em razão de disporem de artefatos e técnicas simples para
manejarem o meio físico, existe uma dependência adaptativa mais direta em relação ao ambiente e
aos recursos naturais;
d) ausência de classes sociais ou de divisões em camadas estratificadas; a divisão social do trabalho é
baseada no sexo e na idade do indivíduo, com nenhuma ou pouca especialização de funções
socioeconômicas.
As sociedades ágrafas não européias, o objeto original de estudo da antropologia, sofreram
profundas transformações em razão do contato com a civilização ocidental moderna. A introdução de
artefatos industriais, como machados e armas de fogo, criou novos hábitos de consumo e compeliram
essas sociedades a se inserirem nas relações de mercado capitalistas, seja vendendo produtos
silvestres a comerciantes ou trabalhando para fazendeiros. A intromissão das agências
governamentais, proibindo ou restringindo certas práticas culturais, e a ação de missionários cristãos
alteraram profundamente o antigo modo de vida dessas sociedades, fazendo com que elas perdessem
muitas de suas antigas características. Daí se falar de uma “crise da antropologia”, posto que seu
objeto de estudo estava desaparecendo. No entanto, a partir dos anos 40-50 do século XX
desenvolveram-se também os estudos antropológicos das sociedades complexas urbano-industriais
contemporâneas. Com isso a antropologia ampliou enormemente seu raio de estudo e diversificou
ainda mais os assuntos incluídos em sua esfera de investigação.

16
GEERTZ, 1989, p. 15

6
Hoje, além das sociedades tradicionais, o antropólogo pode se especializar num dos muitos
temas que constituem o variado leque de pesquisas antropológicas: comunidades rurais, grupos
migrantes, seitas religiosas, crenças e supertições populares, eventos folclóricos, segmentos etários,
camadas urbanas, clubes, favelas, minorias sexuais, associações de classe, estudos de gênero, formas
de lazer e sociabilidade, modismos estéticos, literatura etc. No Brasil esses estudos propagaram-se
principalmente depois da criação dos cursos de pós-graduação nas universidades.

III. A Cultura

Cultura, num sentido antropológico, pode ser sumariamente definida como o conjunto de
idéias, abstrações, padrões de comportamento, hábitos e técnicas de um grupo social humano. A
cultura engloba tudo o que os humanos pensam e fazem enquanto parte de uma coletividade: os
costumes, as crenças, as leis, os comportamentos, a linguagem, a tecnologia, a arte, a religião, a
mitologia, a filosofia, o folclore etc. Sendo assim, ela é toda uma maneira de viver e encarar a
realidade e não apenas um conjunto superficial de costumes e conhecimentos. Uma conceituação de
cultura elaborada por dois grandes antropólogos nos ajudará a entender melhor esse assunto:

Cultura é o sistema integrado de padrões de comportamento aprendidos, os quais


são característicos dos membros de uma sociedade e não o resultado de herança
biológica. A cultura não é geneticamente predeterminada; é não-instintiva. É o
resultado da invenção social e é transmitida e aprendida somente através da
comunicação e da aprendizagem17.

Cada sociedade tem uma cultura distinta, que é historicamente herdada e transmitida. Por
outro lado, uma sociedade pode compartilhar muitos elementos culturais em comum com outras
sociedades ou fazer parte de uma tradição cultural maior. Por exemplo, podemos dizer que o Brasil
faz parte da cultura ocidental, já que foi colonizado por uma nação européia, da cultura ibérica
latino-americana e que dentro do próprio país existem marcantes regionalismos que nos permitem
distinguir subculturas: a cultura nordestina, a gaúcha, a amazônica etc.
Os elementos que influem na configuração cultural são o indivíduo, a sociedade e o meio
ambiente. Sendo assim, iniciaremos esclarecendo a relação entre indivíduo, personalidade e cultura
demonstrando o caráter essencialmente cultural da natureza e do comportamento humano. Uma das
primeiras constatações da antropologia é que todos os homens são entes culturais porque todos
possuem os elementos ou características básicas que moldam a personalidade e o comportamento
sociocultural humano:
1. A estrutura psicossomática: o ser humano é um organismo biológico com uma dimensão corpórea
e psicológica, isto é, dotado de corpo físico e de uma consciência subjetiva. Isto quer dizer que ele é
um sujeito pensante e cognitivo. O que não significa concluir que o homem seja uma dualidade
(corpo/alma ou espírito), pois a nossa autoconsciência, personalidade e cognição dependem
fundamentalmente de um órgão anatômico material: o cérebro. Embora o pensamento e o raciocínio
sejam por si mesmos atividades mentais imateriais, eles derivam-se de nosso encéfalo.
Consequentemente, o psiquismo humano não é senão o produto superior de um alto grau de
desenvolvimento fisiológico da matéria, o que nos permite pensar o homem como uma unidade
psicofísica. Nosso intelecto, em que pese os argumentos metafísicos e idealistas, é um epifenômeno
de nosso sistema nervoso central. A estrutura da mente humana e suas faculdades – o intelecto, o
raciocínio e o pensamento – são atributos básicos e universais de todos os seres humanos, porém seu
conteúdo simbólico e ideológico varia enormemente, pois depende de cada contexto cultural.

17
HOEBEL & FROST, 1984, p. 4

7
2. A multideterminação histórica e social: não existe o ser humano abstrato. Todo indivíduo nasce em
uma determinada época e lugar e, portanto, pertence a uma cultura e sociedade específica. Através da
endoculturação aprende a falar uma língua e assimila a moral, a religião, a mentalidade, os costumes,
as técnicas e a ideologia que predominam em seu ambiente social. Estas, por sua vez, dependem e são
condicionadas por um determinado contexto histórico. Como o homem vive inserido em uma
sociedade e, dentro desta, faz parte de um determinado grupo ou categoria social, sua personalidade
vai ser fortemente moldada pelo ambiente em que foi socializado. De acordo com o pensador
soviético Lev Vigotski, são as relações sociais interacionistas que constituem e conformam as
funções psíquicas superiores do homem (linguagem, consciência, pensamento etc.). Isto quer dizer
que os elementos materiais e espirituais que modelam as características psicoculturais da pessoa
humana – sua subjetividade psicológica, seu comportamento e sua identidade social – são
constituídos a partir da sociedade, do ambiente cultural e do momento histórico em que vive cada
indivíduo. Na verdade, a própria consciência humana tem origem social na medida em que é
condicionada pelos valores e pela ideologia da sociedade, que por sua vez também são condicionados
pelas relações concretas de produção da vida material: “O modo de produção da vida material
condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens
que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”18.
Havendo mudança nas condições de vida material da sociedade haverá também mudanças nos valores
culturais, na mentalidade social e no mundo psíquico do homem. Mas é também é importante reiterar
que, ainda que poderosamente condicionado, o homem não é determinado por sua sociedade, ou seja,
sua individualidade não é absorvida ou diluída pelo conjunto da vida social; ele mantém um certo
grau de autonomia pessoal e pode transpor sua facticidade e os condicionamentos socioculturais
alterando suas concepções e ações.
3. A história de vida pessoal: todo indivíduo nasce e cresce numa certa sociedade e compartilha com
seus semelhantes o mesmo ambiente cultural, mas a maneira como ele apreende os valores morais,
toma decisões, faz escolhas e vivencia as experiências existenciais ao longo da vida é profundamente
condicionada pelas circunstâncias psíquicas, familiares e sociais de sua formação pessoal. O
contexto familiar em que alguém cresce influencia em muito o que essa pessoa será no futuro. Aqui
também é necessário lembrar que nem todos os aspectos de uma cultura são igualmente acessíveis a
todos os membros da sociedade. As diferenças de condição social e econômica, o nível de instrução
educacional, a criação familiar, o ambiente de crescimento e as experiências individuais de cada
pessoa influem decisivamente no desenvolvimento físico, psicológico e intelectual humano,
configurando o caráter e a personalidade do indivíduo e também favorecendo ou inibindo o
desenvolvimento de certas potencialidades pessoais e de determinados comportamentos.
Pelo que pudemos constatar até aqui é possível afirmar que embora o substrato psíquico
humano seja um atributo natural – posto que de origem biológica –, seu conteúdo cognitivo,
ideológico e intelectual resulta de um conjunto de relações sociais presentes e atuantes em uma
determinada época e local, o que equivale dizer que deriva de situações mutáveis e condicionadas
pela cultura de uma sociedade específica, sendo, por conseguinte, um produto histórico.
Conseqüentemente, a formação das propriedades mentais humanas não depende unicamente do
desenvolvimento psicofisiológico do cérebro, mas também e fundamentalmente das relações sociais
que os homens mantém entre si. Isto porque os fatores determinantes da personalidade e da
mentalidade humana são produzidos socialmente e resultam de todo um processo histórico de
evolução biológica e cultural.
Esta afirmativa remete-nos a uma velha indagação: existe uma natureza humana? Pergunta
complexa e difícil de responder. As ciências humanas demonstram que os comportamentos, os
valores e as idéias dos homens – ou seja, a cultura – variam em conseqüência das condições sociais,

18
MARX, 1999, p. 52

8
econômicas, políticas e históricas em que eles vivem. O que desmente a opinião de que existiria uma
essência humana universal, eterna, imutável, intemporal e que subsistiria por si e em si mesma.
Sendo assim, seria então melhor falar de uma “condição humana” que se constrói em interação com a
sociedade e cuja formação depende de fatores históricos e culturais. Por outro lado, é indubitável que
podemos falar de uma natureza humana na acepção biológica, já que do ponto de vista taxionômico
os homens pertencem todos a uma única espécie e certas características psicofisiológicas de seu
comportamento têm base genética, sendo, portanto, comuns a todos os indivíduos. Deduz-se então
que o homem é o resultado de suas relações sociais. Sendo assim, o próprio estudo da subjetividade
humana efetuado pela psicologia não pode dissociar o indivíduo da coletividade, haja vista que a vida
psíquica, a consciência, a personalidade19 e o comportamento individual vão se constituindo e
estruturando progressivamente através das multíplices teias de relações sociais estabelecidas entre os
humanos. Donde conclui-se que o homem é por natureza um animal essencialmente social. Mas se
ninguém pode duvidar do fato de que o homem é um animal social, também verificamos que a vida
em sociedade não é uma prerrogativa humana. Algumas espécies animais também formam
agrupamentos sociais. Existem os insetos sociais (formigas, cupins e abelhas) e também os
mamíferos sociais (lobos, elefantes, macacos etc.). Qual a diferença então? Podemos responder com
uma citação da literatura antropológica:

entre as formigas (e outros animais sociais) existe sociedade, mas não existe
cultura. Ou seja, existe uma totalidade ordenada de indivíduos que atuam como
coletividade. Existe também uma divisão de trabalho, de sexos e idades. Pode
haver uma direção coletiva e uma orientação especial em caso de acidentes e
perigos – tudo isso que sabemos ser essencial nas definições de sociedade. Mas
não há cultura porque não existe uma tradição viva, conscientemente elaborada
que passe de geração para geração, que permita individualizar ou tornar singular
e única uma dada comunidade relativamente às outras (constituídas de pessoas
da mesma espécie).
Sem uma tradição, uma coletividade pode viver ordenadamente, mas não tem
consciência do seu estilo de vida20.

Os animais não possuem tradição porque vivem de acordo com o padrão de comportamento
instintivo de sua espécie, que é invariável e biologicamente determinado. Portanto, ao compararmos
as sociedades animais com as humanas, somos induzidos a crer que os comportamentos sociais são
de duas naturezas:
a) biosocial: comportamento social geneticamente herdado por ser transmitido e condicionado pela
hereditariedade biológica. É o caso de todas as espécies animais;
b) sociocultural: transmitido pela endoculturação e variável de acordo com a época e a sociedade;
próprio da espécie humana. É importante enfatizar que o homem nasce com a capacidade para criar,
assimilar, desenvolver e transmitir cultura, mas ele não nasce com cultura: tudo lhe é transmitido pela
sociedade. O que não implica em dizer que todo comportamento humano seja de origem cultural: rir,
sorrir, chorar, ter medo, sentir alegria, sofrer por empatia, altruísmo, impulsos agressivos e outros
atos de base psicofisiológica têm haver mais com a genética do que com a cultura, ainda que o
comportamento cultural condicione fortemente a manifestação desses atos21.

19
Não é o caso de aqui delinearmos uma teoria da personalidade, mas, de um modo geral, a estrutura da mente humana,
tal como Freud a concebeu, é composta por três instâncias ou dimensões psíquicas: o id (instância que encerra a energia
libidinal, os instintos inconscientes que impulsionam o organismo), que pode ser considerado o componente biológico da
personalidade; o ego (a parte consciente da mente que lida com a realidade objetiva), que forma o componente
psicológico e, por fim, o superego (as normas e valores morais da sociedade introjetados no indivíduo pela
endoculturação), que é o componente sociocultural.
20
DAMATTA, 1993, p. 48 [grifos do autor]
21
EIBL-EIBESFELDT, 1977

9
A história da sociedade humana se confunde com a da cultura e ela principia quando os
primeiros hominídeos desenvolveram um comportamento que já não era exclusivamente biológico:
começaram a fabricar instrumentos, a simbolizar e a estabelecer regras sociais de convivência,
acasalamento e parentesco. Essa transformação aconteceu quando se consolidou a separação entre o
comportamento humano e o natural: quando os homens criaram uma organização social que já não
era mais geneticamente determinada, mas de ordem simbólica. Isto significa dizer que a cultura se
concretizou como elemento característico da espécie humana a partir do estágio em que os homens
passaram a seguir determinadas regras e preceitos normativos – os quais não tinham origem numa
programação genética direta – para controlar seus instintos, moldar seu comportamento e dirigir suas
atitudes. Esse passo não se deu da noite para o dia, foi um processo que transcorreu lentamente ao
longo dos milênios de anos de evolução humana.
O surgimento da cultura não implicou no fim dos condicionamentos biológicos da espécie
humana, já que os humanos, como todos os outros animais, precisam comer, beber, respirar, dormir,
descansar, evacuar etc. A cultura, todavia, se não é a total libertação dos determinismos biológicos
do corpo, vai muito além da herança genética somática, que não mais programa automaticamente
nossas ações individuais e sociais cotidianas. E é justamente por possuir cultura que o homem tem a
capacidade de superar ou mesmo neutralizar muitas das contingências e dos condicionamentos de sua
natureza animal. O agir humano está além do biológico, sendo norteado por aquilo que Kroeber
chamou de o superorgânico, isto é, os padrões de comportamento que não se originam diretamente
de um imperativo orgânico. Desse modo, são as regras e práticas culturais, e não mais nossos
instintos e impulsos libidinais – no sentido freudiano de desejos prazerosos – que governam nosso
comportamento e disciplinam as vontades de nosso corpo biológico. Na realidade, a cultura tanto
disciplina quanto reprime nossos desejos:

Mas por outro lado, é necessário reconhecer que toda a nossa vida cotidiana se
baseia numa permanente negação dos imperativos imediatos do corpo. Os
impulsos sexuais, os gostos alimentares, a sensibilidade olfativa, o ritmo
biológico de acordar/adormecer deixaram há muito de ser expressões naturais do
corpo porque o corpo, ele mesmo, foi transformado de entidade da natureza em
criação da cultura. A cultura, nome que se dá a esses mundos que os homens
imaginam e constróem, só se inicia no momento em que o corpo deixa de dar
ordens22.

É bem verdade que a cultura constrói-se sobre a natureza e, sob determinado aspecto,
depende dela, mas também é verdade que ela modela de tal maneira o comportamento e a experiência
humana que sem ela essas duas propriedades psicossomáticas seriam impossíveis de tomar forma: “a
cultura não pode ser considerada nem simplesmente justaposta nem simplesmente superposta à vida.
Em certo sentido substitui-se à vida, e em outro sentido utiliza-a e a transforma para realizar uma
síntese de uma nova ordem”23. Sendo assim, um bom conceito de cultura estaria preocupado em
explicar as semelhanças e variações no comportamento humano, a sua unidade e diversidade,
distinguindo aquilo que se pode atribuir à herança biológica daquilo que é adquirido através da
aprendizagem. Cultura, portanto, “refere-se àqueles fenômenos que consideram padrões de
comportamento que não podem ser integralmente explicados pelos conceitos psicobiológicos”24. Daí
porque, muitas vezes, é tão difícil separar nitidamente no comportamento humano o que é biológico
(natural e universal) do que é cultural (arbitrário e local).

22
ALVES, 1999, p. 20
23
LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 42
24
KAPLAN & MANNERS, 1981, p. 16

10
Entretanto, mesmo que o homem não tenha um comportamento biologicamente determinado,
existem certas características socioculturais que – não obstante a variabilidade e mutabilidade de
suas expressões – são universais, isto é, encontram-se em todos os grupos humanos:
– organização social funcionalmente estruturada baseada em normas e códigos de comportamento
regulamentando a vida familiar, as relações sociais, a sexualidade, as regras de parentesco e o
acasalamento;
– linguagem fonética simbólica formando uma estrutura gramatical idiomática;
– poder político, que pode ser baseado no prestígio pessoal, na autoridade moral, na hierarquia etária
ou em mecanismos institucionais coercitivos de controle e/ou repressão;
– conjunto de tradições e elaborações simbólicas a respeito de um mundo sobre ou supranatural,
abrangendo uma dimensão mítica e religiosa;
– capacidade para transformar e agir sobre o meio físico natural através de um aparato técnico-
ergológico extra-somático;
– diversões organizadas (lazer e atividades lúdicas) e sentimento estético.
Essas características gerais derivariam, a acreditarmos em Lévi-Strauss (1975), de uma
estrutura inconsciente do espírito humano, isto é, nosso cérebro já traz no inconsciente as estruturas
mentais fundamentais que permitem formar e organizar o conteúdo lógico e simbólico da cultura.
Devido à unidade psíquica da humanidade – já que todos os seres humanos pertencem a uma única
espécie e possuem as mesmas propriedades cerebrais – essas estruturas ou propriedades mentais
inatas seriam universais e explicariam a recorrência, em diferentes regiões do mundo, de formas
semelhantes de estrutura social e de contrastes binários: bom x ruim, quente x frio etc. Para esse
autor, embora as expressões culturais possam variar empiricamente de povo para povo, suas
diferenças são de pequena monta pois derivam-se das mesmas categorias mentais inconscientes que
estruturam as sociedades, o pensamento e as relações humanas. Idéia essa que não é tão difícil de
aceitar quando constatamos que é impossível ao homem subsistir sem algum tipo de estrutura social
que ordene sua vida cotidiana individual e coletiva.
Concluí-se, então, que se é verdade que certos aspectos do comportamento humano –
comportamento, não estou falando das idéias – em seus fundamentos psicofisiológicos podem ter
uma base inata, genética, não é correto pensar-se que, em sua essência, o comportamento humano
seja biologicamente determinado, mesmo que admitamos, como quer o biosociólogo Desmond Morris
(1996), que as diferenças culturais apresentadas por nossa espécie no fundo provenham, ou sejam
variações, de uma herança filogenética subjacente a toda humanidade. Dito isso, podemos encerrar
essa parte com uma citação que, a meu ver, resume bem o ponto de vista sobre esse complexo
assunto: “Na verdade, nem o biologismo exclusivo, nem o culturalismo exclusivo podem dar as
explicações esperadas para os fenômenos socioculturais. Para entender a sociedade humana deve-se
buscar a fusão das explicações culturais e biológicas e, mesmo assim, as indagações e as dúvidas
persistem”25.
Vejamos agora em que a cultura diferencia a espécie humana dos outros animais. Ao
contrário do que muitos pensam, algumas espécies animais são bastante inteligentes e comportam a
capacidade de raciocinar, de transmitir mensagens e de reagirem a estímulos propositadamente. Mas
ainda que possam aprender muitas coisas quando treinados ou condicionados, os animais possuem
um comportamento essencialmente instintivo26, enquanto que no homem o comportamento é
25
MARCONI & PRESOTTO, 1992, p. 203
26
O instinto pode ser conceituado como o conjunto de comportamentos e ações (nos animais) ou atos psicossomáticos
(no homem) necessários à realização de alguma função ou necessidade fisiológica com o fito de manter a existência do
indivíduo ou da espécie. Nos animais a ação instintiva é regida por fatores biológicos genéticos, portanto inatos e
hereditários, inerentes a cada espécie em particular e invariáveis de indivíduo para indivíduo, sendo, por isso, ações
automáticas, previsíveis, elementares e inconscientes; quanto mais organicamente inferior o animal, tanto mais estreita
tenderá a ser a margem de variação de seu comportamento. Em alguns mamíferos superiores a ação instintiva pode ser
acompanhada de atos resultantes de uma inteligência concreta, o que não altera seu comportamento essencialmente

11
socialmente aprendido pela endoculturação e, por isso mesmo, extremamente variável e dependente
do contexto sociocultural onde ele nasceu. Com efeito, o traço distintivo do homem, o que o
diferencia de todos os outros animais, é que ele é um ser cultural: “A cultura não é para o homem
algo acidental, um passatempo, mas faz parte de sua própria natureza, é um elemento constitutivo de
sua essência”27. As sociedades humanas distinguem-se das dos outros animais pela presença da
cultura. Elas são produto da cultura e, ao mesmo tempo, uma condição necessária para ela, por isso
nenhuma sociedade humana é desprovida de cultura. Exatamente por isso que Lévi-Strauss (1982)
sustenta que na história da evolução humana nunca existiu uma fase ou estágio pré-cultural, estando
sempre a cultura como um elemento essencial para a caracterização e funcionamento da sociedade
humana, ou seja, não se pode dissociar homem e cultura: não há homem sem cultura e não é possível
cultura sem homens. Como afirma Geertz, é inconcebível imaginar homens sem cultura porque seu
comportamento seria virtualmente ingovernável, caótico, sua experiência não teria forma nem
sentido: “Eles seriam monstruosidades incontroláveis, com muito poucos instintos úteis, menos
sentimentos reconhecíveis e nenhum intelecto: verdadeiros casos psiquiátricos”28.
Mas a cultura só pode se expressar e transmitir através de relações comunitárias. Até porque
os homens não agem sobre o mundo de modo individual, mas essencialmente de modo social, pois a
cultura não é produzida isoladamente e sim de maneira coletiva, ou seja, as relações sociais que os
homens estabelecem entre si são estruturadas e mantidas unicamente pela aquiescência dos
integrantes de cada sociedade, constituindo-se em sistemas sociais culturalmente convencionados.
Desse modo, tanto a sociedade humana quanto a cultura são produtos da interação dialética dos
homens entre si e, precisamente por serem criações humanas, a estrutura social, a organização
institucional e os códigos morais das sociedades antrópicas são extremamente variáveis.
Isto significa dizer que para se entender a natureza da espécie humana não se pode examiná-
la apenas em termos biológicos, genéticos, anatômicos, fisiológicos ou ecológicos, mas também, e
fundamentalmente, deve-se considerar toda uma complexa elaboração sociocultural: tecnologia,
produção econômica, sistemas de valores, regras de parentesco, religião, organização política etc.
Outrossim, não se deve encarar a cultura apenas como um amontoado de padrões e comportamentos
aprendidos ou praticados, ela é bem mais complexa do que isto. A respeito desse assunto vale a pena
citar mais duas idéias de Geertz a respeito do homem enquanto ser cultural:

A primeira delas é que a cultura é melhor vista não como complexos de padrões
concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos –,
como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de
controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de
computação chamam “programas”) – para governar o comportamento. A
segunda idéia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente
dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais
programas culturais, para ordenar seu comportamento29.

Como vimos, para o referido autor a cultura seria uma espécie de programação cibernética
(software) instalada no cérebro do homem, o que lhe permitiria direcionar seu comportamento e seu
raciocínio. Os homens não nascem com cultura, eles nascem geneticamente preparados para receber
um “programa” e este programa é a cultura. Nosso encéfalo cresceu e desenvolveu-se em constante
interação com a cultura e depende tanto dela que é “incapaz de dirigir nosso comportamento ou

instintivo. No homem, porém, as coisas se passam de maneira diferente: se é verdade que nele se manifestam impulsos
instintivos, eles não são de modo algum suficientemente fortes para determinarem seu comportamento cotidiano – pelo
menos o consciente –, regido primordialmente por regras socioculturais.
27
MONDIN, 1999, p. 180
28
GEERTZ, 1989, p. 61
29
GEERTZ, 1989, p. 56

12
organizar nossa experiência sem a orientação fornecida por sistemas de símbolos significantes” 30.
Com esta citação chegamos ao ponto fundamental de nosso estudo. A sociedade cultural humana só é
possível por uma característica essencial e única no homem: sua capacidade de simbolizar. A
diferença fundamental entre os homens e os animais consiste no fato de que todo comportamento
humano depende de regras simbólicas e é a faculdade de simbolizar que origina a cultura e permite
sua continuidade.
O homem é um animal simbólico porque somente ele pode criar e atribuir significado às
coisas que o rodeiam e às suas próprias ações. A palavra símbolo designa tudo aquilo que, por
convenção social, representa outra coisa em relação a qual é heterogêneo. O símbolo pode ser um
objeto material, natural ou artificial, pessoa, elemento gráfico, emblema, som ou ato que evoca,
sugere, indica, representa ou substitui outra coisa. Os símbolos representam tanto coisas concretas
quanto abstratas e o significado deles depende do contexto histórico e cultural em que foram
estabelecidos. Por causa de sua capacidade mental de simbolizar, o ser humano pode atribuir
significados arbitrários e convencionais aos objetos, sons, gestos, ideias, atitudes, cheiros, sabores,
sinais gráficos, posturas corporais, lugares, tempo, a existência etc., possibilitando-lhe transcender a
facticidade da realidade onde se acha envolto. A cruz, por exemplo, é o símbolo do cristianismo, a
coruja o da sabedoria, a balança o da justiça, a bandeira o da nação, a pomba o da paz e assim por
diante.
Se é verdade que os animais podem compreender signos – mas apenas como índices – quando
amestrados ou por reflexo condicionado, são incapazes de elaborar ou distinguir símbolos, o que
denota uma diferença de qualidade e não apenas de quantidade ou grau, isto é, de essência e não
somente de nível: “Uma criatura ou usa símbolos ou não o faz; não há graus intermediários”31. Ao
contrário dos animais, que só são capazes de conhecimento sensitivo e perceptual, o homem é capaz
de conhecimento conceptual e abstrato na medida em que pode entender tanto o signo quanto o
símbolo, o significado e o significante, é a chamada “equação simbólica”32. As significações
simbólicas são elaboradas e compartilhadas socialmente através de um conjunto coerente de
representações coletivas33 a respeito da ideologia, da religião, das crenças, dos costumes, dos mitos,
das técnicas, da arte e de tudo o mais que o homem cria no domínio do pensamento e da prática. Isto
é tão conspícuo que se repararmos atentamente ao nosso redor iremos logo perceber que vivemos
num mundo eivado de significações simbólicas criadas pela cultura.
Com efeito, o simbolismo está, em se tratando da vida social, em toda parte: nas posturas
corporais, nos gestos, nos olhares, nas expressões faciais, no tom e conteúdo de nossa fala, nos
códigos de etiqueta, nos cumprimentos formais e informais, no tratamento que damos a nosso corpo,
na maneira como nos trajamos, em nosso nível de instrução, nas relações sociais, no sistema de
parentesco, nos ritos religiosos, nas cerimônias públicas, na ideologia etc. Mas não somente nossa
conduta é simbólica, o mesmo ocorre com a cultura material. O que se possui e o que se usa também
são coisas que denunciam – com maior ou menor evidência – o tipo de personalidade, o estilo de
vida, o status social, a categoria profissional, a classe social ou até a nacionalidade dos indivíduos: as
30
GEERTZ, 1989, p. 61
31
WHITE, 1977, p. 182
32
Os animais podem ser amestrados ou condicionados – através de experiências repetitivas – a responder a estímulos
suscitados por alguns signos, mas ao assim procederem o fazem sem atribuir à eles qualquer significado que vá além de
sua simples identificação ou associação como índice de alguma coisa para a qual foram condicionados: um macaco pode
identificar a forma de letras, o objetivo de certos gestos e sons mas não compreende seu significado simbólico; pode ser
treinado para comer com garfo e faca todavia não entende o sentido daquilo como uma regra de etiqueta social e de boas
maneiras.
33
A palavra “representação” tem vários sentidos; como termo epistemológico significa o ato pelo qual um fato ou objeto
concreto é apreendido sensitivamente pela mente através do pensamento e da memória. Sociologicamente falando,
“representações coletivas” significa “concepções e símbolos que resultam da interação social e adquirem um significado
comum para os membros do grupo, suscitando-lhes reações emocionais semelhantes” [DICIONÁRIO MICHAELIS,
2000, p. 1821].

13
roupas, os adereços, os penteados, os carros, as casas, a mobília, os padrões de consumo, os lugares
freqüentados etc. Os símbolos servem tanto para representar quanto para interpretar a realidade
criando o universo de significados culturais próprios de cada grupo social. Portanto, todas as ações
humanas, sejam elas na esfera do trabalho, da economia, do comportamento, da sociabilidade, da
religiosidade etc., são efetuadas segundo as regras e convenções simbólicas socialmente prescritas
pela cultura. A simbolização permite que as tradições e que os valores culturais de uma sociedade
sejam transmitidos de uma geração à outra, garantindo assim sua continuidade.

Os ícones religiosos tem um imenso poder simbólico porque eles intensificam a relação do fiel com a
divindade ou poder transcendente. A religião é o domínio mais explícito das representações simbólicas.
Todas as grandes crenças religiosas adotam algum tipo de signo para representar seu sistema doutrinário.

Ora, mas os símbolos só podem expressar-se socialmente através de alguma forma de


comunicação, sendo que a mais importante delas é a linguagem oral articulada, a mais sofisticada
forma de expressão simbólica. É claro que existem outras formas de comunicação além da fala –
como as expressões faciais, os gestos corporais, os sinais gráficos (escrita) e as imagens visuais
(desenhos, pictografias, gravuras, fotos etc.) – mas não há dúvida de que a linguagem fonética é o
principal veículo de transmissão de ideias e sentimentos. A cultura contrapõe-se ao mundo natural
porque é elaborada e expressa simbolicamente pela linguagem falada, ou seja, a estrutura da
linguagem humana supera a dos animais porque constitui-se num sistema arbitrário de signos
fonéticos, regidos por convenções culturais, isto é, dependentes da aceitação da sociedade. Os
animais se comunicam e transmitem mensagens, mas não experiências, somente o homem adquiriu
um meio não instintivo de se comunicar através da linguagem verbal. Afinal, voltando à Leslie
White, sem comunicação simbólica não haveria cultura:

Sem a palavra articulada não haveria organização social humana. Famílias


poderia haver, mas esta não é uma forma de organização peculiar ao homem;
não é por si mesma humana. Não teríamos a proibição do incesto, nem regras de
exogamia, endogamia, poligamia ou monogamia. (...).
Não poderia haver organização política, econômica, eclesiástica ou militar;
nenhum código de etiqueta e ética; nenhuma espécie de lei, ciência, teologia ou
literatura; nem jogos ou música, senão no nível dos símios. Os instrumentos
rituais ou cerimoniais não teriam sentido sem a palavra. Ainda mais, sem a
linguagem não faríamos uso de instrumentos, senão de maneira ocasional e
insignificante, como entre os símios superiores, pois é ela que transforma o uso

14
não-progressivo de instrumentos do macaco no uso progressivo e cumulativo do
homem, o ser humano34.

É justamente por possuir cultura que os humanos têm o poder de transmitir experiências
através da linguagem falada, que é também uma decorrência de sua capacidade de simbolizar. Por
meio da linguagem os grupos humanos são capazes de comunicarem seus códigos culturais, isto é, de
transmitirem todo o sistema simbólico elaborado no interior de suas sociedades. Em sua coletânea de
ensaios Dogmatismo e Tolerância, Rubem Alves destaca o importante papel desempenhado pela
linguagem na estruturação dos sistemas simbólicos humanos, pois o homem habita um universo
cultural demarcado pelos limites de sua linguagem. É por meio da linguagem que os indivíduos e as
sociedades constróem sua identidade, seu modo de ser, seu etos, seu cotidiano, o significado de sua
vida ritual e institucional:

Na linguagem encontramos as marcas – os limites – do corpo. É por isso que o


homem não pode mais gozar o seu corpo imediatamente como os animais, que
respondem, no momento, à fome, à dor, ao cio. O homem dá graça à mesa,
transforma os alimentos em símbolos sacramentais, não vive só de pão, mas da
palavra dele colada, sorri perante a dor, agüenta a tortura por lealdade, por
amor, demoniza ou diviniza o sexo, sente vergonha, é capaz de auto-sacrifício e
do suicídio. Único animal que enterra seus mortos, marcando os seus lugares
com lápides e chorando sobre elas. A linguagem, berço de sua cultura, roupa de
seu corpo, arquitetura do seu mundo, lhe diz que um cadáver significa alguma
coisa35.

Denota-se, portanto, que o mundo da cultura, ou seja, o mundo humano, é um mundo de


símbolos permeado e mediado pela linguagem, sendo esta mais do que um sistema de comunicação,
constituindo-se, na verdade, num instrumento para exprimir conceitos, sentimentos, idéias, valores e
representações simbólicas. Dessa forma, pode-se asseverar que o homem é um animal eminentemente
simbólico, e foi considerando o caráter simbólico do agir humano que Georges Gurvitch exemplificou
como as mentalidades e as consciências – individuais e coletivas – representam a realidade
subjacente:

O totem, animal ou vegetal, não é um símbolo do Deus do clã, (...)? A Cruz não
é o símbolo da religião cristã, que evoca não apenas o calvário e a ressurreição
de Cristo, mas todo o conjunto de valores e de idéias reveladas aos fiéis, (...)? A
bandeira nacional não é o símbolo de união e de participação numa sociedade
global suprafuncional (a Nação), símbolo cujo conteúdo é de extrema riqueza? O
guarda-civil que encontramos no canto da rua não simboliza uma certa
organização municipal e política? Os uniformes ou, de modo mais geral, as
roupas que usamos não simbolizam as funções sociais de que estamos investidos,
os papéis sociais que desempenhamos, ou simplesmente valores estéticos ligados
a um gênero particular de vida, ou a uma ‘condição’?36 .

Não por acaso, as instituições com maior carga simbólica tendem a ser as mais estáveis – a
religião, o direito, o idioma etc. – e a se modificarem com maior lentidão. Já a esfera das forças
produtivas, a dimensão econômica e tecnológica, é mais sujeita a mudanças e alterações de maior
intensidade. Com certeza é bem mais fácil se modificar ou aperfeiçoar o desenho e a complexidade
técnica de um carro ou de um computador do que a forma do crucifixo ou de um ritual religioso! Os

34
WHITE, 1977, p. 188-189
35
ALVES, 1982, p. 24
36
GURVITCH, 1977, p. 195

15
símbolos religiosos encerram uma intensa carga de valores emocionais porque representam e
expressam conteúdos sagrados no que refere ao sentido e significado da vida.
De tudo o que foi dito, pode-se então constatar que a sociedade e o mundo humano, tanto na
dimensão material quanto espiritual, não são essencialmente produtos de fatores biológicos ou
hereditários, mas de uma herança acumulada de experiências, idéias, normas, práticas, sistemas
simbólicos e comportamentos socialmente elaborados que chamamos de cultura. Donde se conclui
que não existe o homem natural:

Assim, é possível esperar ver um animal doméstico, por exemplo, um gato, um


cachorro ou uma ave de galinheiro, quando se acha perdido ou isolado, voltar ao
comportamento natural que era o da espécie antes da intervenção exterior da
domesticação. Mas nada de semelhante pode se produzir no homem, porque no
caso deste último não existe comportamento natural da espécie ao qual o
indivíduo isolado possa voltar mediante regressão37.

Como o homem não nasce biologicamente especializado, condicionado ou programado a


qualquer comportamento em particular, nem geneticamente predestinado a viver um tipo específico
de vida ou num tipo determinado de sociedade, é necessário então que ele construa, com seus
semelhantes, um mundo humano. Os animais não humanos vivem num mundo fechado em suas
possibilidades, posto que já trazem em seu ADN o comportamento que vão ter, o modo como lidarão
com o ambiente e, caso sejam espécies sociais, o tipo de sociedade em que viverão. Desse modo, cada
espécie animal tem um mundo próprio determinado por seus genes e instintos. O mesmo não acontece
com os humanos, que através da cultura são capazes de estruturarem diferentes tipos de sociedade,
ainda que, indubitavelmente, essa aptidão derive de sua natureza biológica, dotada de um cérebro
pensante. Como bem expressa o sociólogo Peter Berger:

O mundo do homem é imperfeitamente programado pela sua própria


constituição. É um mundo aberto. Ou seja, um mundo que deve ser modelado
pela própria atividade do homem. Comparado com os outros mamíferos
superiores, tem o homem, (...), uma dupla relação com o mundo. Como os outros
mamíferos, o homem está em um mundo que precede o seu aparecimento. Mas à
diferença dos outros mamíferos, este mundo não é simplesmente dado, pré-
fabricado para ele. O homem precisa fazer um mundo para si. A atividade que o
homem desenvolve em construir um mundo não é, portanto, um fenômeno
biológico estranho, e sim a conseqüência direta da constituição biológica do
homem38.

E este mundo é construído pela cultura que é um fenômeno de múltiplas dimensões cuja
essência abrange a totalidade das ações, idéias e produtos materiais humanos – sendo que seus
elementos constitutivos podem ser resumidos em quatro: a linguagem (a base da elaboração
simbólica), as técnicas (a tecnologia de produção da vida material), os costumes (as concepções
éticas e comportamentais) e os valores (a pilastra axiológica). No que se refere a suas formas de
manifestação, é possível classificar a cultura em duas grandes divisões:
1. Cultura material (ergologia): são os elementos materiais produzidos pela cultura e abrange todos
os bens tangíveis. A ergologia é a parte da antropologia cultural que estuda a cultura material.
Chamamos de cultura material a “tudo o que é feito, modelado ou transformado como parte da vida
social coletiva, da preparação do alimento à produção de aço e computadores, passando pelo
paisagismo que produz os jardins do campo inglês”39. Uma definição mais detalhista concebe a
37
LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 43
38
BERGER, 1985, p. 18
39
JOHNSON, 1997, p. 59

16
cultura material como todas as “coisas materiais, bens tangíveis, incluindo instrumentos, artefatos e
outros objetos materiais, fruto da criação humana e resultante de determinada tecnologia. Abrange
produtos concretos, técnicas, construções, normas e costumes que regularizam seu emprego”40.
Ambos os enunciados dão a entender que a cultura material compreende não apenas as coisas
tangíveis elaboradas pelos humanos como também o conhecimento (know-how) para fazer essas
coisas, isto é, inclui tanto os entes palpáveis em si quanto o conjunto de procedimentos práticos
necessário para a feitura e uso das coisas. Não obstante, se indubitavelmente a cultura material
incorpora em sua inteireza os objetos e bens que possuem existência concreta, também é inegável que
a habilidade técnica e intelectual para lidar com a matéria é uma consequência da operação imaterial
do raciocínio neurônico cerebral. Depreende-se, assim, que concepções mentais derivadas do
psiquismo humano – as tradições, conceitos, crenças, valores e demais elementos abstratos – podem
se objetificar nas coisas materiais e, por outro lado, estas coisas direcionam, configuram e replicam
os comportamentos, regras e atitudes culturais que caracterizam o modo de vida de uma determinada
sociedade. Os objetos utilizados na vida cotidiana servem para intermediar as relações entre o mundo
físico e as sociedades humanas, cujos sistemas de organização social estão embasados em noções e
preceitos mentais imateriais. Antes de continuar vale aqui lembrar que o homem, devido a sua
corporeidade, é também um ente material que vive num mundo material.
Os estudos ergológicos tentam entender a relação entre a sociedade humana e o mundo
material no qual ela está inserida. Tais estudos implicam na análise de três dimensões da cultura
material: a espacial (o lugar ou ambiente onde os objetos e coisas se apresentam), a histórica (o
processo de transformação das coisas ao longo do tempo) e a antropológica, que são as relações
psicossociais e culturais dos indivíduos com as coisas que os cercam. A cultura material, em suas
múltiplas e multifacetadas manifestações, está presente em todos os aspectos da vida social e é um
dos elementos através dos quais os povos e nações afirmam ou constroem uma identidade étnica e
sociocultural comum. Isto porque todas as coisas materiais feitas pelo homem são “objetos humanos”
na medida em que encerram e reverberam conteúdos e valores culturais vigentes na sociedade em que
foram produzidos e utilizados. Enfim, a cultura material é constituída pelo conjunto de artefatos
móveis ou transportáveis e pelas estruturas estáticas, isto é, por tudo aquilo que os homens
construíram combinando matéria-prima, trabalho e tecnologia. Contudo, é oportuno ressaltar que a
cultura material também abrange os objetos naturais inalterados mas que são apropriados,
significados e usados pelos humanos ao lado das coisas que estes fabricam.
As coisas materiais feitas pelos humanos são extremamente diversificadas e, a bem dizer,
incontáveis; vão desde os simples artefatos até as grandes edificações arquitetônicas. Os vários itens
ergológicos utilizados pelas diferentes culturas humanas são fabricados de acordo com a
disponibilidade de matérias-primas presentes no ambiente e o nível de elaboração técnica deles
depende da complexidade tecnológica da sociedade que os produzem. A cultura material engloba
todas as coisas manufaturadas ou modificadas pelos humanos:
a) objetos móveis (artefatos): que são o vestuário, os utensílios, as ferramentas, as armas, os adornos,
a mobília, as obras de arte e todo tipo de treco carregável. A indumentária ou a falta dela evidencia
bem a variabilidade cultural. Vemos desde o esquimó com o corpo todo coberto com vestimentas
impermeáveis de peles até a total nudez nos trópicos quentes e úmidos. As roupas são mais leves,
claras e soltas nos climas calorentos enquanto que nos lugares frios ou de intensa insolação, como os
desertos, as roupas devem funcionar como isolante térmico;
b) as estruturas fixas, que vão desde um simples forno de carvão enterrado no solo até as grandes
obras de engenharia. Incluem as casas, muros, prédios, monumentos, praças, estradas, pontes, túneis,
canais e quaisquer outros tipos de construções inamovíveis. A habitação é outro exemplo da
variabilidade cultural; os principais tipos de habitação entre as sociedades simples são os abrigos, as

40
MARCONI & PRESOTTO, 1992, p. 46

17
cabanas e as casas de palha, galhos, madeira e/ou barro (nas áreas de florestas tropicais e
temperadas), os abrigos semi-subterrâneos (entre povos de regiões frias e/ou descampadas), as tendas
de peles (entre os povos pastoris) e os iglus (esquimós). As residências e construções erigidas com
pedra ou tijolo e argamassa são características de sociedades mais complexas. Os edifícios de
concreto e aço são produtos de nossa moderna civilização industrial. Essas grandes estruturas inertes
podem ser pensadas como “superartefatos”.
c) objetos móveis não portáteis: postes, máquinas pesadas e quase todos os meios de transporte
coletivos terrestres (como trenós, carroças, carruagens, automóveis, trens etc.), aquáticos (desde
simples canoas até barcos a vela e grandes navios a óleo diesel). O avião é o mais recente e veloz
meio de transporte aéreo.
Os objetos e as estruturas são produzidos e utilizados num contexto histórico e social
específico e constituem o legado ou patrimônio cultural de cada sociedade.
2. Cultura imaterial: são os elementos intangíveis da cultura, aqueles que não possuem substância
concreta. O pensamento e o raciocínio, assim como todas as atividades intelectuais, são por si
mesmos imateriais embora dependam – como vimos – de um órgão material que é o nosso cérebro. A
cultura imaterial “inclui símbolos – de palavras à notação musical –, bem como as ideias que
modelam e informam a vida de seres humanos em relações recíprocas e os sistemas sociais dos quais
participam. As mais importantes dessas ideias são as atitudes, crenças, valores e normas” 41. Ela
corresponde aos aspectos intáteis da cultura, isto é, os elementos espirituais ou abstratos que não
existem efetivamente no plano da realidade material: os símbolos, as ideias, os valores, as regras
morais, as normas sociais, os conhecimentos acumulados, os saberes tradicionais, os costumes
ancestrais e os conceitos metafísicos.
As concepções mentais são expressões da cultura imaterial porque não possuem realidade
ontológica fora da consciência humana ou porque elas existem somente como imagens, ideias ou
conceitos incorpóreos inteiramente separados de sua existência material. A cultura imaterial é
constituída tanto pelos pensamentos e sentimentos que estão incutidos e ocultos na cabeça das
pessoas quanto pelas atitudes que impulsionam os movimentos corporais visíveis do comportamento
operante individual e as ações sociais. Entre as expressões da cultura imaterial estão as
manifestações coletivas que marcam a vivência social das comunidades: as festas, o folclore, a
música, as danças, a religiosidade, os rituais, as artes cênicas, os jogos e brincadeiras, as lendas, as
artes, a literatura oral etc. Enfim, todas as experiências e conhecimentos enraizados pelos indivíduos
durante seu processo de socialização desde a infância até a maturidade e que servem de parâmetro
para guiar o comportamento deles na vida social.
A mente humana pode elaborar concepções intelectuais de coisas concretas e abstratas
porque as representações coletivas incluem tanto as noções de objetos reais (martelo, cadeira, casa
etc.) como as de coisas ou seres ontologicamente irreais (o mau olhado, dragões, fantasmas, o saci-
pererê etc.) que formam a base das concepções imagéticas e das crenças mítico-religiosas. Não
importa se as representações mentais correspondam ou não a objetos, coisas, fatos ou entidades reais,
o que importa e faz diferença é se o indivíduo crê ou não que elas sejam verdadeiras apesar de não
vê-las e nem senti-las42.
Podemos dizer que a cultura imaterial norteia as relações sociais, embora estas nunca
ocorram desvinculadas das coisas materiais. Com efeito, são as normas e regras morais
consuetudinárias, os costumes ancestrais, os hábitos arraigados, a tradição, os códigos de etiqueta e a
ideologia de uma sociedade que condicionam e comandam o comportamento, a conduta e as reações
dos indivíduos em sua interação com o ambiente natural e social. Sendo assim, as ideias e as
representações coletivas – embora derivem-se de elaborações psíquicas produzidas pelas faculdades
mentais – formam e orientaram os sentimentos, as motivações, as concepções, as percepções, os
41
JOHNSON, 1997, p. 59
42
MARCONI & PRESOTTO, 1992

18
pensamentos, as atitudes e os movimentos que produzem as ações motoras individuais e os fatos
sociais visíveis43.
Mas ainda que distintas, essas duas dimensões da cultura – a física e a imaterial – são
dialética e intrinsecamente relacionadas e, portanto, indissociáveis, pois a produção e o manejo da
cultura material são sempre atividades que ocorrem em concomitância com o funcionamento do
sistema social simbólico de cunho espiritual. Na verdade, as relações sociais são intermediadas pela
cultura material e, na maior parte dos fatos sociais, podemos observar que “a cultura imaterial
encontra-se em perfeita fusão com a material. A cerimônia de casamento, por exemplo, apresenta os
dois aspectos”44. De fato, se tomarmos como exemplo um típico consórcio matrimonial poderemos
ver os dois aspectos se manifestando em perfeita mescla. O casamento é um evento social carregado
de significados que une pelo enlace conjugal duas pessoas de famílias distintas, mas que agora se
tornam aparentadas, e sua realização requer uma série de itens materiais e de procedimentos
tradicionais. O primeiro deles é o convite antecipadamente enviado aos amigos e parentes do casal
dando ciência do acontecimento. O casório inclui a decoração do local (templo, salão, clube, chácara
etc.) com flores, velas, balões, faixas e fitas, os trajes que serão usados pelos consortes, o ritual
religioso celebrado por um clérigo devidamente paramentado ou uma cerimônia laica efetuada por
um oficiante leigo que sela o conjúgio, a documentação fotográfica ou em vídeo da cerimônia, as
congratulações dos convidados aos nubentes, as cadeiras e mesas para as pessoas se acomodarem, a
recepção festiva, a comida servida no banquete ou coquetel nupcial, as lembrancinhas das bodas
ofertadas aos presentes, o lançamento do buquê de flores da noiva para as moças casadoiras, as
danças e brincadeiras, etc.
Como visto, a cultura é sistêmica, ela é um conjunto interligado de objetos, técnicas, ideias,
costumes, valores, modos de fazer e comportamentos mutuamente influenciáveis e interdependentes.
Por isso, ambos os aspectos da cultura, o material e o imaterial, manifestam-se praticamente em
qualquer acontecimento social. Para uma melhor explanação desse assunto podemos apelar para uma
citação de Ralph Linton:

Pode-se ver, (...), que o conceito [de cultura] inclui fenômenos de, pelo menos,
três ordens diferentes: material, isto é, produtos de indústria; cinético, isto é,
conduta pública (uma vez que isto abrange necessariamente movimento) e
psicológica, isto é, o conhecimento, atitudes, e valores partilhados pelos
membros de uma sociedade. Para nossos presentes propósitos, os fenômenos das
duas primeiras ordens podem ser classificados juntamente, como constituindo o
aspecto manifesto de uma cultura. Os da terceira ordem, isto é, fenômenos
psicológicos, constituem o aspecto oculto de uma cultura. (...). O aspecto
manifesto de qualquer cultura é concreto e tangível. Está sujeito a observação e
registro diretos (...). [enquanto que a cultura oculta] é uma questão de estados
psicológicos, e a natureza e até mesmo a existência de tais estados só podem
inferir-se da conduta pública a que deram origem 45.

43
A atividade do intelecto humano é supramaterial porque o objeto proporcional de sua percepção não se restringe as
categorias particulares e limitadas da realidade apreendida pelos sentidos, mas é capaz de ir muito mais além e
perscrutar o universo inteiro. Suas faculdades cognitivas ultrapassam a experiência imediata e as qualidades sensíveis
das coisas dadas, sendo também, por isso, capazes de investigar sua natureza, de conceituá-las e de conferi-lhes
significados simbólicos. Isto é possível porque qualquer aspecto ou elemento da realidade física pode ser mentalmente
desvinculado de sua condição material e visível, através do raciocínio e da abstração, e pensado como um conceito, idéia
ou representação pela operação do intelecto.
44
MARCONI & PRESOTTO, 1992, p. 46
45
LINTON, 1979, p. 49-50

19
Pode-se concluir essa exposição sobre a natureza da cultura apresentando um esquema
proposto por Leslie White, que concebia a cultura como uma resposta adaptativa global aos desafios
do ambiente e que poderia ser dividida em subsistemas:
a) subsistema tecnológico: relações do homem com a natureza, sendo por isso o extrato ou camada
básica;
b) subsistema sociológico: relações dos homens entre si mediadas pelas instituições sociais, regras
comportamentais e normas legais;
c) subsistema ideológico: conhecimento mais abstrato, como as crenças e valores de uma sociedade.
Passemos agora aos processos culturais:
1. Mudança cultural: pode ocorrer em conseqüência de fatores internos (endógenos) e externos
(exógenos), sendo esses fatores a invenção, a adoção ou exclusão, a aceitação parcial ou a rejeição
integral de traços, complexos ou padrões culturais. Mas o ritmo de inovação, mudança ou
estabilidade depende de uma série de fatores históricos e ambientais, por isso as transformações
culturais numa sociedade podem ocorrer de forma lenta ou quase imperceptível ou de modo
acelerado. Também pode acontecer de certos elementos culturais mudarem bem rapidamente
enquanto outros se mantém imutáveis ou sofrem poucas alterações. Por essa característica a cultura é
ao mesmo tempo dinâmica e estável.
2. Difusão cultural: é a difusão geográfica de um ou mais traços culturais, podendo a propagação
ficar restrita a uma área pequena ou atingir várias regiões. Um elemento cultural vindo de uma
sociedade alienígena pode ser adotado por várias culturas diferentes, mas o nível de aceitação pode
ser extremamente variado: ele pode ser adotado integralmente sem nenhuma mudança ou pode sofrer
pequenas adaptações que não modificam-no em sua essência, mas também pode sofrer grandes
alterações em sua morfologia e/ou passar por substancial reformulação em sua aplicação, significado
ou função – quer o item em questão seja um artefato, um costume ou um comportamento. Nesse
ponto deve-se considerar o aspecto seletivo da cultura: na transmissão de objetos ou de certos tipos
de comportamento, o uso, o sentido ou o propósito original do traço cultural podem ser esquecidos e
outros novos serem criados. O fenômeno da difusão ocorre desde o início da história humana. O trigo
foi domesticado no Oriente Médio – na área do chamado “crescente fértil” – e depois seu cultivo se
espalhou pela Europa e pelo norte da África, durante esse processo se desenvolveram várias
modalidades de panificação. O hábito de fumar – uma prática ritual/cerimonial ameríndia – se
difundiu por todo o planeta depois da Idade Moderna e passou a ser desfrutado na forma de
cachimbo, charuto ou cigarro em qualquer hora ou lugar, tornando-se um vício para milhões de
pessoas. Com a expansão mundial do sistema capitalista, consolidado pelo atual fenômeno da
globalização – graças ao imenso aperfeiçoamento da informática, da tecnologia, das
telecomunicações e dos meios de transporte –, a difusão do estilo de vida e dos padrões de consumo
da sociedade urbano-industrial ocidental tendem a homogeneizar a cultura mundial, pelo menos em
seus aspectos materiais.
3. Endoculturação: processo de aprendizagem de uma cultura desde a infância, também chamado de
“enculturação”. Na psicologia social e na sociologia é sinônimo de “socialização”.
4. Aculturação: ainda que queira basicamente significar a interpenetração de culturas distintas, a
palavra tem diferentes nuanças. O termo é um neologismo usado pela primeira vez em 1880 querendo
expressar “adoção e assimilação de cultura alheia”. De um modo geral, pode ser definida como as
mudanças e transformações na cultura de uma sociedade sob a influência do contato com outra
sociedade com quem estabelece relações, ou seja, o conjunto de fenômenos provenientes do contato
direto ou indireto – seja contínuo ou intermitente – entre culturas diferentes, com mudanças
subsequentes nos elementos culturais originais de um ou de ambos os grupos. Aqui vale lembrar que
as transformações aculturativas também podem acontecer entre três ou mais culturas. É oportuno
ressaltar também que se toda aculturação implica numa mudança cultural e envolve a difusão de um
ou mais traços culturais, nem toda mudança cultural é resultado de um processo aculturativo.

20
Quando se verifica um intercâmbio de elementos culturais (as permutas culturais ocorrem nos dois
sentidos, afetando ambos os grupos), podemos dizer que existe uma interpenetração cultural entre
duas sociedades ou aculturação bilateral. Mas também existem as aculturações unilaterais, não
harmônicas, que podem ser divididas em dois tipos:
a) a primeira consiste na pressão lenta e insidiosa que uma sociedade politicamente majoritária e/ou
tecnologicamente superior exerce sobre uma sociedade minoritária ou com tecnologia menos
desenvolvida. Através da assimilação gradual ou da adoção completa de elementos culturais da
sociedade dominante pelo grupo menor, mais simples ou economicamente dependente, vai-se
lentamente modificando a cultura original do grupo, povo ou sociedade subalterna;
b) o segundo tipo caracteriza-se pela assimilação forçada ou imposição violenta dos traços e
elementos culturais de um povo ou grupo social hegemônico sobre outro povo ou grupo dominado;
neste caso, o grupo aculturado pode sofrer uma deculturação ou um etnocídio.
Todavia, deve-se esclarecer que mesmo nesses dois tipos de aculturações não harmônicas o
grupo hegemônico também é passível de adotar certos traços culturais do grupo ou povo sobre o qual
exerce pressão. Na realidade, os processos aculturativos não são unilaterais, posto que eles nunca se
dão em um só sentido. Pode-se acrescentar ainda que a aculturação não significa o encontro de duas
sociedades estáticas, já que todas as culturas se encontram em permanente processo de
transformação. Com uma perspectiva sociológica, Roberto Cardoso de Oliveira propôs a noção de
“fricção interétnica” para designar a natureza competitiva e conflituosa dos contatos entre os grupos
tribais indígenas brasileiros e os segmentos das frentes de expansão econômica da sociedade
nacional.
Pode-se encerrar esse tópico esclarecendo o significado de um termo genérico usado na
antropologia para designar o caráter sociocultural distintivo de um grupo étnico ou sociedade: etos.
Para W. Sumner, etos significaria a totalidade dos traços característicos pelos quais um grupo se
individualiza e se diferencia dos outros. Para A. Kroeber o conceito corresponderia ao sistema de
ideais ou valores predominantes numa cultura, norteando o comportamento de seus membros.

IV. A Organização Política

A organização política é um elemento sociocultural encontrado em todos os grupos humanos,


simples ou complexos. Não existe sociedade humana sem algum tipo de controle ou regulamentação
política com o propósito de manter as regras morais e a coesão social interna, o que varia é a
natureza e a função da organização política: “Julgamos (...) que o poder político é universal,
imanente ao social (quer o social seja determinado pelos ‘laços de sangue’ ou pelas classes sociais),
mas que ele se realiza de dois modos principais: poder coercitivo, poder não coercitivo”46. A
característica essencial da organização política é o exercício do poder ou da autoridade em suas
variadas formas, desde o uso legal da força através das instituições governamentais oficiais até as
formas não coercitivas, nas quais é quase impossível isolar e estudar, à parte, o fato político do todo
social, tal como acontece nas sociedades ágrafas, onde o poder político é difuso e descentralizado,
sendo as desavenças e conflitos resolvidos pela arbitragem ou pela pressão social sobre o
comportamento divergente. Os elementos da organização política e social nas sociedades tradicionais
estruturadas em bandos ou tribos fundam-se quase que exclusivamente nas relações de parentesco
determinadas pela filiação ou alianças matrimoniais.
Ao analisarmos as sociedades humanas, percebemos que existem diferenças na natureza da
organização social e na escala de abrangência e efetividade do poder político. Há uma serie de fatores
socioculturais que influenciam na estruturação das sociedades: o papel e a função social de cada
sexo, o sistema de parentesco, o renque hierárquico, o status simbólico, a condição socioeconômica

46
CLASTRES, 1986, p. 17

21
etc. Dependendo da complexidade da organização social, a sociedade pode ser igualitária – dividida
apenas em categorias sexuais e faixas etárias – ou estratificada em camadas, castas ou classes
sociais – determinadas pela ocupação econômica, especialização profissional e condição censitária.
Ora, a “arrumação hierárquica destas desigualdades constitui uma ordem sobre a qual, para se
legitimar e para agir, o poder político se fundamenta”47. Neste caso, a organização política existe
para dirigir as atividades de interesse comum da comunidade e estabelecer um sistema de
regulamentação para as relações entre os integrantes dos grupos e subgrupos da sociedade e,
também, para com membros de outras sociedades.
Nas sociedades sem estado não existe um poder formal que abranja toda a coletividade; não
existe um indivíduo ou grupo que exerça uma autoridade centralizada sobre a sociedade. Nos
sistemas políticos com estado existem chefes, governantes, reis ou conselhos com autoridade sobre o
conjunto da sociedade48. No que se refere aos tipos de organização sociopolítica, as sociedades
podem ser classificadas em quatro grandes níveis ou estágios de integração sociocultural propostos
pela antropologia neoevolucionista:
a) bandos: é a forma mais simples de organização social e política. Formado por famílias nucleares
aparentadas, sendo o casamento geralmente exogâmico e virilocal. O número de membros varia de
algumas dezenas até cerca de cem pessoas. Vivem da caça e da coleta de produtos vegetais; a
organização social e a distribuição das tarefas ligadas à subsistência baseiam-se no sexo e na idade
dos indivíduos. Não existe um chefe ou líder oficial, as tensões e disputas são resolvidas entre as
partes com a mediação de parentes mais velhos.
b) tribos: são sociedades segmentárias formadas por grupos multifamiliares que moram em unidades
residenciais isoladas ou, mais freqüentemente, em aldeias. Em geral, seu numero varia de algumas
centenas até pouco mais de mil pessoas. Sua economia é, via de regra, baseada na agricultura de
subsistência e/ou na criação de animais domesticados. Além do parentesco, existem também os
conselhos de aldeia, as associações por idade, as confrarias e as metades rituais. Neste nível percebe-
se a existência de hierarquizações com várias gradações, mas geralmente não rigidamente
institucionalizadas. As aldeias são autônomas e os chefes não possuem poder político coercitivo,
sendo que sua liderança está baseada na capacidade de influenciar e convencer, na experiência, na
idade e no prestígio;
c) chefias: organizações centralizadas sob a direção de um chefe supremo, geralmente sacerdote,
respeitado por seu grande poder político que, todavia, não se baseia ainda essencialmente num
aparato repressor. São sociedades que podem ser formadas por cerca de 5 a 20 mil indivíduos. O
chefe controla uma aldeia ou grupos de aldeias e responsabiliza-se pela distribuição ritual de bens e
produtos. Existe amiúde um assentamento principal, um centro cerimonial permanente que serve
como sede do poder do chefe e onde ele reside com seus seguidores. Este centro, apesar de não ser
um núcleo urbano, pode ser às vezes fortificado e abrigar templos. Embora a sociedade ainda se
baseie no parentesco, há uma diferença de prestígio entre as linhagens, com uma nítida distinção
hierárquica entre os chefes e o povo, existindo também especialização de atividades: guerreiros,
artesãos, sacerdotes etc. No paises latino-americanos são também chamados de ‘cacicados’;
d) estados: organizações sociopolíticas sob a direção de uma liderança suprema (régulo, rei ou
imperador) que pode governar sozinha ou assessorada por um conselho ou assembléia e que exerce
autoridade sobre toda a sociedade. Seu índice demográfico ultrapassa os 20 mil membros. Sendo uma
instituição centralizada, conta com uma força armada permanente e com uma burocracia que
controla a administração e o recolhimento de tributos e pedágios. O padrão de assentamento é
caracterizado por cidades com milhares de habitantes e onde se erguem edifícios públicos,
monumentos e templos. O dirigente supremo dispõe de um poder político coercitivo legitimado por
códigos civis e/ou religiosos, mas além do aparelho militar, policial e jurídico estatal, sua autoridade
47
RIVIÈRE, 2000, p. 125
48
HOEBEL & FROST, 1984

22
é reforçada por mecanismos ideológicos de controle social. O parentesco já não é o único ou principal
vínculo social, existe agora uma clara estratificação em classes sociais com uma elite política e
econômica dominante, estando a sociedade dividida em camadas que vão dos muito ricos aos muito
pobres.

V. A Organização Econômica

Sem cairmos no determinismo econômico, devemos todavia reconhecer a importância da base


material de sustentação e do nível de desenvolvimento tecnológico alcançado por uma determinada
sociedade para garantir sua subsistência. Isto porque é através das técnicas e dos meios de produção
que uma sociedade dispõe que ela garante sua reprodução, ou seja, a própria existência física de um
grupo humano depende de sua capacidade tecnológica de agir e transformar a realidade. Sem isto,
sem assegurar a subsistência material, não há sociedade. Com efeito, existe uma estreita relação entre
o modo de subsistência de uma sociedade – condicionado pela tecnologia que ela domina para
explorar os recursos naturais – e o modelo de organização sociocultural que se cristaliza a partir de
suas formas de reprodução material.
A atividade econômica engloba tudo o que diz respeito à coleta, produção, distribuição e
consumo de bens. As sociedades humanas tradicionais, que dependem essencialmente dos recursos
naturais, mantém índices demográficos adaptados à fase de menor oferta sazonal de alimentos
(capacidade de carga) em seu território. Nessas sociedades a divisão social do trabalho é determinada
pelo sexo e idade, enquanto que nas mais complexas se dá pelo status, classe social e especialização
profissional. Em todas as sociedades existem papéis sociais, ocupações e tarefas diferenciadas para
homens e mulheres, mas esta divisão é mais incisiva nas sociedades de pequena escala, enquanto que
tende cada vez mais a se relativizar ou desaparecer nas modernas sociedades urbano-industriais.
De acordo com o professor Dennis Werner (1987) a antropologia costuma classificar as
sociedades ágrafas baseando-se no modo como produzem seus alimentos e na tecnologia de
sobrevivência que elas dispõem:
1. Caçadores-coletores: dependem fundamentalmente de alimentos selvagens obtidos pela caça,
pesca, coleta de vegetais, insetos comestíveis etc. São organizados em bandos nômades que exploram
os recursos naturais sazonais ou permanentes de uma extensa área. Embora pratiquem a caça, a
maioria dessas populações esteia-se na coleta de vegetais – com exceção dos esquimós e outros
grupos árticos – para compor grande parte de sua alimentação. Por isso seriam melhor definidos
como forrageadores intensivos, isto é, subsistem de uma dieta baseada predominantemente na recolha
de vegetais silvestres, pois não possuem plantas domesticadas, e na qual a carne aparece apenas
como um suplemento – ainda que de suma importância alimentar e simbólica 49. A tecnologia
venatória inclui o arco e a flecha, arpões, o boomerang (Austrália), a zarabatana (na Amazônia e
Malásia), armadilhas, alçapões, redes etc. Como, de um modo geral, esses grupos despendem apenas
algumas horas do dia para garantirem sua subsistência, resta assim muito tempo para o lazer, o ócio
e a sociabilidade. Entre os exemplos de grupos caçadores-coletores temos os pigmeus das florestas
equatoriais do Congo, os Hadza das savanas secas da Tanzânia, os esquimós da Groelândia e
Canadá, os !Kung do deserto do Kalahari, os aborígines australianos etc.
Não existe a propriedade privada de nenhum meio de produção, a terra e os recursos naturais
pertencem ao bando ou clã. O nível de mobilidade do grupo – maior ou menor grau de nomadismo ou
sedentarismo –, a ocupação do espaço geográfico e o manejo ambiental são condicionados pela
disponibilidade e distribuição ecológica dos recursos zoobotânicos na região habitada pelo bando.
Uma tabela mostra essa relação:

49
HOEBEL & FROST, 1984; SERVICE, 1971

23
Distribuição de Defendabilidade Comportamento Grau de mobilidade
Recursos
Abundantes e Baixa Partilha de informações Alto
imprevisíveis
Imprevisíveis e escassos Baixa Disperso Muito alto
Abundantes e previsíveis Alta Territorialidade Baixo
Escassos e previsíveis Média/baixa Raio de alcance Baixo/médio
doméstico

2. Agricultores extensivos: praticam uma agricultura itinerante de corte e queima em pequenas roças
(horticultura) cultivadas com instrumentos simples – como a enxada – e que requerem um período de
pousio da terra para a recuperação do solo e da vegetação. Cerca de 80% dessas sociedades estão nas
áreas tropicais do globo. A agricultura intensiva nos trópicos é prejudicada pelos solos, geralmente
pobres, pragas e fortes chuvas que lixiviam os nutrientes. O consumo de produtos ricos em calorias e
amido – banana, mandioca, batata doce, inhame, taro etc. – pode provocar avitaminoses, sendo
assim, boa parte das proteínas são obtidas pela caça e pesca (América do Sul), gado bovino (África)
e porcos (Nova Guiné). Geralmente trabalham mais que os caçadores-coletores para obter alimentos.
3. Agricultores intensivos: cultivam continuamente, ou pelo menos sem grandes intervalos, a terra
usando arado, animais de tração, fertilizantes ou técnicas de irrigação. Aproximadamente 75%
dessas sociedades estão em regiões de clima temperado. O cultivo intensivo de arroz irrigado, no
sudeste asiático tropical, beneficia-se das algas que retém o nitrogênio do ar e possibilita a
aquicultura (técnica de manejo de rios, lagos e canais para a criação de plantas aquáticas e peixes,
incrementando a atividade piscatória). Apresentam maior densidade demográfica. A agricultura
intensiva foi a base para o surgimento das primeiras sociedades estatais, como foi o caso das
civilizações egípcia, suméria, hindu e chinesa. As civilizações – sejam elas agrícolas ou industriais –
são estruturadas em classes sociais e possuem um sistema econômico complexo, com mercado,
comércio e especialização de ofícios bem desenvolvidos.
4. Pastores especializados: geralmente são grupos seminômades criadores de gado que ocupam terras
secas ou muito frias para a agricultura: os lapões da Escandinávia, os mongóis da Ásia Central, os
Massai do Quênia e da Tanzânia, os Nuer do Sudão etc.
A descoberta da agricultura possibilitou a criação das cidades e de um modo de vida urbano
mas, até a época da Revolução Industrial, a maior parte da população mundial vivia no campo. Um
dos ramos da antropologia atual dedica-se ao estudo das comunidades campesinas, que são os
segmentos rurais das modernas sociedades urbano-industriais. Nas áreas rurais o dinheiro é
comumente empregado e a produção para um mercado consumidor urbano é a meta da maior ou
menor parte dos camponeses. Suas características fundamentais são: produção em pequena escala,
tecnologia simples, dependência em relação ao mercado consumidor urbano, tradicionalismo e
resistência a mudanças. A mecanização da agricultura e o cultivo em grandes plantações de produtos
para exportação, como a soja, criam a concentração fundiária e obrigam o pequeno produtor rural a
vender ou abandonar sua terra e engrossar o êxodo rural em direção à cidade ou metrópole.
Há controvérsias entre os pesquisadores sobre quem se deve considerar camponês. Para
alguns estudiosos, como Eric Wolf, camponês seria apenas o produtor agrícola que visa a
subsistência e vende ou troca o excedente, excluindo, portanto, o grande fazendeiro latifundiário
investidor em empresas rurais. Para George Foster, o critério definidor de uma sociedade camponesa
deve ser estrutural e relacional, não ocupacional; com isso queria dizer que não é o que produzem
que é importante, mas como e para quem produzem.

VI. A Religião

24
A busca da verdade religiosa constitui uma parte significativa da história humana, mas
embora a religião lide com a esfera do transcendente ela é uma manifestação cultural humana e,
como tal, é estudada pela antropologia. O fenômeno religioso, por ser universal, é extremamente
variável e mutável, mas sua característica básica é a crença numa realidade que ultrapassa a ordem
natural, ou seja, num mundo sobrenatural ou em poderes supramundanos. Todos os grupos humanos,
com maior ou menor intensidade, desenvolveram algum tipo de crença em seres não-físicos ou na
existência de um poder ou poderes ultranaturais – forças espirituais, entidades, espíritos ou deuses –
para explicar a origem do mundo, o sentido da vida, o funcionamento da natureza e, principalmente,
para apresentar um sistema de crenças com a finalidade de alicerçar e/ou legitimar as estruturas
sociais e os valores morais vigentes na sociedade.
O antropólogo inglês Edward Tylor concebeu a religião como uma crença no sobrenatural,
de origem psicológica, sendo que a primeira noção religiosa teria sido a de “alma”, derivada da
experiência do sonho e, especialmente, da morte. Já para o grande sociólogo francês Émile
Durkheim, a religião constitui um fenômeno eminentemente social: “As representações religiosas são
representações coletivas que exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem
unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar, a manter, ou a refazer certos
estados mentais desses grupos”50. A religião teria a função essencial de assegurar a coesão social em
uma sociedade mantendo um controle sobre as tendências anárquicas do indivíduo. Por isso é que
Durkheim rejeita categoricamente as teorias psicológicas sobre a origem da religião, pois esta só se
entende e explica pelo social. Em sua obra As Formas Elementares da Vida Religiosa (publicada em
1912), procurou desvendar as origens sociais da religião, especialmente do totemismo, que
considerava a forma mais elementar de religião. O estudo de Durkheim foi baseado em dados
etnográficos das sociedades aborígines australianas, mas ele extrapola suas conclusões para todas as
outras sociedades. Uma grande contribuição de Durkheim para o estudo da religião foi concebê-la
não como uma mera ilusão, mas como um fenômeno institucional e social real, ainda que baseado em
representações coletivas abstratas. Neste sentido, não existem religiões falsas, pois todas preenchem
de alguma maneira a determinadas necessidades da vida humana.
De acordo com Durkheim, as características básicas do fenômeno religioso seriam:
a) crenças e doutrinas (representações coletivas);
b) ritos – a parte cerimonial e prática – que podem ser classificados em propiciatórios ou de
intensificação, de iniciação e de passagem ou transmissão (puberdade, casamento e morte);
c) igreja ou coletividade: não existe religião sem caráter associativo, sendo os indivíduos membros de
um culto que se organizam em torno da obediência a certas regras e crenças vigentes na sociedade,
estabelecendo formas ativas de solidariedade. A participação ritual, nas reuniões e assembléias, é
fundamental para a solidariedade social e para a reafirmação periódica e regular dos ideais e das
crenças coletivas. Sozinho o indivíduo não é nada, é somente como membro de um grupo social que
ele se afirma. Os membros de uma comunidade religiosa sentem-se ligados e solidários por
compartilharem de uma crença comum, a mesma mundividência e os mesmos preceitos morais;
d) classificação das coisas reais ou simbólicas em duas categorias opostas:
– O profano: refere-se a esfera da vida diária, da rotina, do trabalho, do cotidiano, do comum, do
conhecido, do familiar, isto é, ao círculo das atividades práticas e utilitárias.
– O sagrado: distingue-se do prosaico por provocar uma atitude de respeito, reverência e medo do
sobrenatural, do incomum, do misterioso, do proibido, ou seja, do que está fora, separado deste
mundo. Desperta atitude de temor e submissão frente ao desconhecido e sentimento numinoso (na
filosofia da religião de Rudolf Otto, diz-se do estado da alma inspirado pelas qualidades
transcendentais da divindade).

50
DURKHEIM, 1989, p. 38

25
Durkheim distingue a religião da magia; a primeira seria um fenômeno coletivo caracterizado
pela associação de crentes para participar de cerimônias rituais ou para prestar culto a divindade; a
segunda seria pautada pelo individualismo ou por seu caráter não associativo.
1. Religião: não se definiria simplesmente pela crença no sobrenatural, já que a noção científica de
“ordem natural” é um conceito desenvolvido na sociedade ocidental a partir da Idade Moderna. Em
muitas sociedades e durante muito tempo os fenômenos miraculosos não eram rigidamente encarados
como coisas sobrenaturais que transcendessem o mundo físico. Durkheim também demonstra que a
noção de divindade não é um critério para se definir religião; a idéia de deuses e espíritos está ausente
em muitas religiões ou, quando muito, aparecem de forma secundária ou obscura. É o caso do
budismo, que não possui um deus pessoal e supremo, sendo a salvação do fiel uma busca de auto-
redenção individual através de reencarnações. Então Durkheim define religião como: “é um sistema
solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e
práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem”51.
2. Magia: crença na existência de poderes sobrenaturais e na eficácia de encantamentos, ritos e ações
por meio dos quais se pretende atuar sobre a natureza a fim de se obter coisas benéficas ou maléficas
ou precaver-se contra forças ocultas. Seus ritos e práticas são mais simples porque visam fins
utilitários. O mago procura manipular os poderes sobrenaturais invisíveis através de feitiços –
fetiches e encantamentos formulados por palavras mágicas seguidas ou não de atos rituais – para
obter resultados visíveis, muitas vezes apelando para os mesmos espíritos ou entidades reverenciados
pela religião. A magia se caracteriza pelo individualismo e por seu caráter anti-social, pois visa
interesses particulares de indivíduos ou grupos isolados. O mago tem uma clientela, não uma igreja, e
as relações entre eles são esporádicas e passageiras, não existindo vínculos duráveis que os tornem
membros de um corpo moral como um culto. Por isso a magia, embora também seja constituída por
crenças e ritos, caracteriza-se por seu aspecto não associativo. Possui também uma atitude de
arrogância e autoconfiança no rito, bruxaria ou fetiche.
Para o antropólogo Bronislaw Malinowski, a magia é usada nos momentos e situações em
que as pessoas não têm como influenciar ou garantir o resultado de ações ou acontecimentos que não
podem ser plenamente controlados ou cujas conseqüências são imprevisíveis, gerando, com isso,
ansiedade. Foi o que pôde constatar durante sua pesquisa na Melanésia:

Nas ilhas Trobriand, a pesca e magia que lhe está associada constituem um teste
interessante e crucial. Enquanto nas aldeias da lagoa interior a pesca se efetua de
uma maneira fácil e com absoluta confiança, recorrendo ao método de
envenenamento, permitindo resultados profícuos sem perigo nem incerteza, já
nas costas marítimas se encontram tipos de pesca perigosos (...). É curioso notar
que, no que se refere à pesca na lagoa, em que o homem pode confiar
absolutamente no seu conhecimento e perícia, a magia não existe, ao passo que
na pesca em pleno mar, cheia de perigo e incertezas, encontramos já um vasto
ritual mágico para garantir segurança e bons resultados 52.

A crença na magia está presente em todas as culturas. Em nossa própria sociedade vemos
pessoas que andam com medalhões, pés-de-coelho, figas, santinhos, fitas e outras coisas tidas como
eficientes para proteger do azar, de mandingas, de mau-olhado ou apenas para trazer sorte.
Vejamos agora os tipos de Magia:
a) analógica ou imitativa (homeopática): aquela em que se imita a causa desejada, já que o
semelhante produz efeito semelhante, ex: boneco que é espetado;
b) contagiosa: as coisas em contato com alguém podem transmitir o bem ou o mal, ex: feitiços sobre
objetos para atingir o usuário;
51
DURKHEIM, 1989, p. 79
52
MALINOWSKI, 1988, p. 32

26
c) simpática: aquela em que se pretende influenciar uma pessoa ou objeto distante mediante partes
dessa pessoa ou objeto.
Concluí-se assim que a magia é uma técnica manipulatória de forças impessoais imanentes e
suscetíveis ao manejo do homem (feiticeiro) para fins pragmáticos e pessoais, ao passo que a
religião, lidando com o transcendente, tem um caráter social integrador e almeja suprir aspirações
coletivas. Diversos antropólogos acharam muito rigorosa essa distinção de Durkheim e pensam que é
difícil distinguir claramente religião e magia. Por isso, chamam esses fenômenos de mágicos-
religiosos: “Hoje a tendência é considerar que se religião e magia são, de fato, duas orientações
opostas de pensamento e ação, não constituem, no entanto dois domínios que se excluem
mutuamente, podem coexistir num rito ou numa instituição determinada”53.
Para Durkheim a idéia de divindade seria, na essência, a representação simbólica da
sociedade, transformada numa entidade personalizada. O Deus ou deuses de uma sociedade – e os
valores morais sagrados a eles associados – simbolizariam a própria sociedade, que prestando culto a
seu totem ou a seu deus presta, de maneira inconsciente, culto a ela mesma, reforçando assim sua
coesão e identidade coletiva. O culto à divindade ou aos entes sagrados é um culto à sociedade, que
projeta nas crenças e rituais suas aspirações e necessidades. As entidades religiosas são os símbolos
de sentimentos coletivos e das forças sociais. A religião então tem um papel social integrador ao
identificar o indivíduo com a sociedade, pois os cultos ou rituais coletivos são meios pelos quais o
grupo social periodicamente se reafirma enquanto tal: “Se a religião gerou tudo o que existe de
essencial na sociedade, é porque a idéia da sociedade é a alma da religião”54. Justamente por isso as
concepções religiosas não refletem apenas as aspirações positivas e idealizadas que uma sociedade
espera alcançar, mas também a dura realidade de suas imperfeições:

[a religião] é realista à sua maneira. Não existe feiúra física ou moral, não
existem vícios, não há males que não tenham sido divinizados. Existiram deuses
do roubo e da astúcia, da luxúria e da guerra, da doença e da morte. O próprio
cristianismo, por mais alta que seja a idéia de divindade que tem, foi obrigado a
conceder lugar, na sua mitologia, ao espírito do mal. Satã é uma peça essencial
do sistema cristão; (...). O antideus é um deus, inferior e subordinado, é verdade,
no entanto dotado de vastos poderes; ele é até objetos de ritos, pelo menos
negativos. Portanto a religião, longe de ignorar a sociedade real e de abstraí-la,
reflete a sua imagem; ela reflete todos os seus aspectos, também os mais vulgares
e repelentes55.

Durkheim acentua que os sistemas religiosos criam um universo simbólico no qual são
projetados os valores e objetivações do próprio homem. Por isso a religião lastrearia, com sua força
moral e ideológica, o funcionamento das sociedades, sem o que esta correria o risco da anomia. As
prescrições religiosas garantiriam o respeito às normas e regras morais estabelecidas pela sociedade.
É por esta razão que no centro das representações religiosas encontramos a própria sociedade. É a
sociedade em que nascemos que nos confere nossa identidade cultural, afetiva e existencial. Então é
“compreensível que ela seja o Deus que todas as religiões adoram, ainda que de forma oculta,
escondida aos olhos dos fiéis”56. Daí porque a religião – por meio de suas instituições e de seus
preceitos éticos – assume uma função ordenadora e legitimadora dos valores e tradições morais de
uma determinada sociedade, respaldando-lhe a organização social:

A religião suporta a moralidade principalmente através de dois meios: o mito e o


tabu. O mito cria a fé sobrenatural da qual decorrem sanções para normas de
53
MERCIER, s. d., p. 136
54
DURKHEIM, 1989, p. 496
55
DURKHEIM, 1989, p. 498
56
ALVES, 1999, p. 65

27
conduta socialmente (ou sacerdotalmente) indesejáveis; as esperanças do céu e os
terrores do inferno levam o indivíduo a tolerar as restrições que lhes são
impostas pelos dominantes ou pelos grupos. O homem não é de natureza
obediente, nem dócil, nem casto; e antes da formação da consciência nada o
refreia tanto quanto o medo dos deuses. As instituições da propriedade e do
casamento repousam, em boa medida, sobre as sanções religiosas, e tendem a
perder o vigor quando a incredulidade sobrevém 57.

Por tudo o que foi exposto, vê-se que a religião, enquanto ideologia totalizante, “fornece ao
homem o primeiro sistema de referência que lhe permite sobreviver, ao lhe dar um lugar na sociedade
e no universo”58. Por isso mesmo ela exerce, enquanto força social, uma pressão constante sobre o
indivíduo, constrangendo-o a obedecer e respeitar os preceitos e normas sagradas, o que também não
significa que ele seja sempre passivo ou que não possa ocasionalmente se insurgir contra uma
intromissão muito severa da esfera do sagrado sobre a vida profana. De todo modo, fica demonstrado
o caráter social da religião, pois embora seja verdade que a experiência religiosa individual seja um
fenômeno psicológico e subjetivo que varia de pessoa para pessoa, o sistema religioso é moldado e se
manifesta socialmente.
Mas a importância social da religião é também uma coisa que varia de sociedade para
sociedade e de acordo com a época. As conclusões de Durkheim foram baseadas no estudo dos
grupos nativos australianos, que eram sociedades clânicas pré-industriais, por isso a coisa muda de
figura quando se investiga a religião em outros contextos, como é o caso das sociedades urbano-
industriais contemporâneas. O domínio ideológico e a influência social da religião geralmente são
mais fortes e abrangentes em sociedades de pequena escala e tendem a decrescerem à medida que as
sociedades ficam mais complexas, embora isto também seja muito relativo. Sem embargo, atualmente
existem sociedades onde a religião tem grande força política e social, como no Irã e Arábia saudita,
mas nas modernas sociedades urbano-industriais secularizadas ocidentais a religião já não tem o
mesmo predomínio nem a mesma influência que tinha no passado nem desempenha o mesmo papel
preponderante que exercia na organização e estruturação das sociedades pré-letradas. Além disso,
nas sociedades modernas existe o pluralismo religioso e as ideologias materialistas que põem em
cheque a visão de um mundo transcendente. Mesmo assim, a religião ainda ocupa um espaço
relevante na vida social cotidiana, pelo menos para alguns segmentos da sociedade, haja vista que
muitos acontecimentos da vida pessoal e comunitária ainda são comumente celebrados ou assinalados
por rituais religiosos: nascimentos, iniciações, casamentos, formaturas, inaugurações, festas,
sepultamentos etc. Também é inegável a proliferação de cultos religiosos salvacionistas, esotéricos e
espiritualistas.
Falaremos agora a respeito de um tipo particular de manifestação religiosa registrado em
algumas culturas ágrafas: o totemismo, um fenômeno social intimamente ligado à existência do clã.
Ainda que suas manifestações sejam muito variadas, e por isso sociologicamente heterogêneas, o
totemismo pode ser, a grosso modo, definido como um conjunto de crenças, atos ou ritos religiosos e
sociais determinados pela crença na existência de uma relação de afinidade e parentesco com um
totem (que pode ser uma espécie animal ou vegetal, um objeto [raramente de natureza inorgânica] ou
fenômeno natural a que certas sociedades primitivas consideram como ancestral ou símbolo de sua
coletividade [clã ou tribo], sendo, por isso, seus protetores). O totem não é uma planta ou animal em
particular, mas a espécie biológica. É impessoal e coletivo, sendo considerado o emblema do clã e,
por sua condição simbólica ou sagrada, é objeto de tabus59 e deveres particulares.

57
DURANT, s. d., p. 47
58
LABURTHE-TOLRA & WARNIER, 1997, p. 217
59
Tabu: palavra polinésia (do tonga tabu), aplicada ao objeto, ato, lugar ou indivíduo que, por seu caráter sagrado, estão
separados e interditos ao contato com profanos, isto é, por causa das proibições levantadas em relação aos mesmos não

28
As organizações totêmicas foram registradas em diversas sociedades aborígines. O
antropólogo Alexander Goldenweiser, escrevendo em 1934, constatou que ele ocorria em vastas
extensões da América do Norte e entre várias tribos da América do Sul; era comum na África negra e
em Madagascar; muitas tribos primitivas da Índia tinham o totemismo; na Austrália era quase geral;
no Pacífico existia desde a Nova Guiné até as ilhas mais ocidentais da Polinésia. No entanto, o
totemismo variava muito em suas características de acordo com a região do globo:

Entre os Iroqueses e os Zuñi o totem é apenas o nome de sipe, não havendo (...)
nem mesmo o tabu sobre o totem, a proibição de matar ou comer a criatura
epônima, o que, juntamente com o nome totêmico, é um dos característicos mais
comuns do totemismo. Na Austrália e na Melanésia este tabu é mais
pronunciado; na África é freqüentemente o aspecto central de um complexo
totêmico, sendo que a palavra para totem, em várias línguas Bantu significa ‘a
coisa proibida.’ Na América contudo, o tabu totêmico é muitas vezes apenas
ligeiramente desenvolvido ou de todo ausente. A ascendência totêmica, segundo
a qual o totem é considerado um ancestral remoto – aparece em forma um tanto
velada na Austrália; é marcada e precisa na Melanésia; na África não parece
ocorrer60.

Durkheim estava correto quando destacou a natureza sagrada do totem, mas o aspecto
religioso, num sentido restrito, é relativamente raro no totemismo. O totem é encarado com respeito,
mas não é visto como um deus com poderes muito acima dos humanos. Mas embora não lhe prestem
culto, dele esperam proteção. Um dos tabus em relação ao totem é a proibição de comê-lo ou só
consumi-lo em ocasiões rituais. Mas isto pode variar: os Ojibwa do Canadá caçavam seu totem,
embora pedissem autorização ao animal, através de ritos, e depois desculpas posteriores. Para John
Beattie uma função do ritual seria realçar a importância social de algo que é mantido como um valor
na sociedade que tem o ritual. Como símbolo do clã, o totem é uma insígnia em torno da qual se
procura manter viva a solidariedade grupal. Sociologicamente, então, o totemismo seria explicado
como um mecanismo de controle social e de autoperpetuação e defesa do sistema social da
comunidade. Ora, sendo a religião um fenômeno de origem eminentemente social, pode-se sustentar
que não foi o totemismo que despertou os sentimentos religiosos do grupo, e sim que o grupo
despertou o sentimento religioso e totêmico.
De tudo o que vimos até aqui, podemos dizer que a experiência religiosa é um fenômeno
social que se manifesta num plano institucional e que se expressa no pensamento (mitos e doutrinas),
na ação (culto coletivo e serviços) e na comunidade (associação entre membros). Após evidenciarmos
o caráter social da religião, podemos agora tecer algumas considerações sobre sua fenomenologia e
sobre o papel que ela exerce na vida pessoal do indivíduo. O sociólogo brasileiro Rubem de Azevedo
Alves (1933-) conta-se entre os que, sem negar o valor e a contribuição durkheimiana, afasta-se da
tradição positivista e alinha-se com uma interpretação weberiana e fenomenológica da religião, que
enfatiza a busca da “compreensão” em oposição ao critério da “explicação,” abordagem que
prevalece nas ciências naturais. Rubem Alves bacharelou-se em teologia no Seminário Presbiteriano
de Campinas e depois foi ordenado ministro evangélico. Concluiu seu mestrado e doutorado em
universidades norte-americanas.
Inicia um de seus livros, O Enigma da Religião (1975), constatando o fascínio que a religião
exerce sobre a humanidade a ponto de não se ter notícia de uma cultura que não tenha produzido

se pode aproximar deles ou estabelecer qualquer relacionamento, estando os infratores sujeitos aos castigos
sobrenaturais.
60
GOLDENWEISER, 1970, p. 27

29
concepções mítico-religiosas61. Assevera também que não existe uma única resposta para explicar a
origem e a universalidade do fenômeno religioso. Mesmo assim propõe-se a dar uma interpretação a
respeito do que seria a essência da religião. Em sua supracitada obra, o autor leva em consideração o
gradual processo histórico de secularização e dessacralização da sociedade ocidental, processo que se
iniciou no período renascentista. Desde essa época, sucederam-se a revolução científica do século
XVI-XVII, o racionalismo, o iluminismo e as filosofias agnósticas e materialistas do século XIX, que
pareciam conduzir a humanidade a um mundo sem religião. A teoria heliocêntrica de Galileu, ao
retirar da terra a condição de centro do cosmos, havia criado um problema habitacional para Deus,
tornando-o dispensável como hipótese de explicação da realidade. O positivismo de Auguste Comte
postulava que o estágio positivo ou científico do pensamento, preocupado em descobrir através do
raciocínio e da observação empírica as leis efetivas e invariáveis que regem a realidade física e
social, substituiria as ultrapassadas visões teológicas e metafísicas. Em Marx a religião é a
consciência e o sentimento do homem que ainda não se encontrou ou que tornou a perder-se, ou seja,
uma consciência alienada da realidade. A miséria religiosa seria a expressão da miséria real, fruto de
uma sociedade economicamente exploradora e opressiva. No âmbito da psicanálise freudiana, a
religião seria a neurose obsessional e universal da humanidade; a mente do homem primitivo, da
criança e a de um neurótico se assemelhariam pela crença ilusória na onipotência do desejo, expresso
nas concepções religiosas. A religião nos apresentaria um mundo mascarado e deformado, enquanto a
ciência seria o repositório da racionalidade. Por isso, na concepção dos positivistas e agnósticos, a
religião feneceria à medida que a ciência promovesse o progresso da humanidade.
Como a ciência passou a ser permeada por um ateísmo metodológico, parecia que
caminhava-se, no dizer do sociólogo alemão Max Weber, para um desencantamento da realidade.
Contudo, a persistência e até o revigoramento da religião no mundo moderno – mesmo com todo seu
materialismo e sofisticação cientifico-tecnológica – fizeram ruir as previsões dos que apregoavam
sua decadência. A variedade e a intensidade das manifestações religiosas contemporâneas
contradiziam enfaticamente as previsões dos que anteviam seu fim.
Como então entender a perenidade e a complexidade da religião? Para Alves o estudo
rigoroso e objetivo da religião seria impossível em virtude da ordem do mundo social humano não ser
a mesma do mundo natural. O mundo dos homens é uma realidade construída e mediada pelos
códigos culturais que se expressam numa linguagem simbólica cujos significados e sentidos são
refratários a uma abordagem objetivista, como pretendida pela análise positivista. Isto porque a
realidade sociocultural não possui uma existência autônoma em si, anterior à consciência:

As realidades do mundo humano, entretanto, só existem por haverem sido


construídas por uma consciência e uma atividade que as antecederam. Sempre
que consideramos os fatos sociais como se fossem coisas cometemos o grave erro
de identificar a esfera da realidade humana com a esfera da realidade da
natureza e pressupomos, ainda que de uma forma não confessada, uma origem
mágica para as instituições, independente das experiências, projetos e atividades
de seres concretos62.

Sendo assim, contrariamente ao que afirmavam os positivistas, não existe consciência pura,
desvinculada da realidade e do contexto existencial e social em que vive o indivíduo, mas toda
consciência é intencional, isto é, tende para o mundo. Por conseguinte, também não existe objeto
puro, ou seja, que não seja apreendido pela intencionalidade da mente. A consciência atribui

61
A ubiqüidade da religião ou da crença em uma dimensão supra-natural da realidade não deve ser confundida com a
universalidade da idéia de divindade ou de imortalidade da alma. Por exemplo, os Hadza da Tanzânia não crêem numa
vida depois da morte e após o enterro dos falecidos seus túmulos não são assinalados nem visitados.
62
ALVES, 1975, p. 12

30
significado e sentido para o mundo, portanto não pode existir uma realidade autônoma, desenraizada
do sujeito que a conhece. Isto quer dizer que o homem não conhece o mundo, ele conhece um mundo.
O estabelecimento de fatos objetivos, isentos do viés da observação e da subjetividade humana, seria
uma pretensão cientificista. A objetividade, a imparcialidade e a impassibilidade frente ao mundo são
aspirações impossíveis de se alcançarem no espírito humano porque o mundo não é sentido e
interpretado pelos seres humanos apenas como uma realidade física e material, como um dado bruto,
mas como uma realidade carregada de sentidos e significados simbólicos conferidos pela imaginação,
ou seja, a percepção que o homem tem do mundo não é essencialmente intelectual e prática, mas
afetiva, emocional, semiótica, envolvente e apaixonada 63.
No entanto, deve-se esclarecer que o conceito de “imaginação” empregado por Alves para
definir o substrato mental e ideológico básico da religião não significa falsidade, engodo, fraude,
ilusão ou devaneio mental. A imaginação deve ser entendida como a imensa capacidade do homem
em criar um universo simbólico e de dar sentido a realidade que o cerca, isto é, seu imaginário. Para
o autor essa capacidade é a “forma mais fundamental de operação da consciência humana. Os
animais não têm imaginação (...). Por isto também nunca puderam produzir religião” 64. Se é verdade
que em seu opúsculo O que é Religião – publicado originalmente em 1981 – Alves considera as
entidades religiosas como ontologicamente imaginárias, ressalta que não pretende dizer com isto que
“religião é apenas imaginação, apenas fantasia. Estou sugerindo que ela tem o poder, o amor e a
dignidade do imaginário”65. A imaginação torna tudo possível e traz à existência o que não existe,
realizando o irrealizável.
Como vimos no tópico III, essa capacidade imaginativa de criar um universo simbólico é
uma prerrogativa exclusiva da espécie humana. Mas também vimos que o homem, diferentemente
dos animais, não foi geneticamente programado para nenhum tipo específico de comportamento ou de
existência, neste caso ele precisa então construir um mundo humano para si. É aí que entra a religião.
Quando os humanos surgiram na Terra e alcançaram a autoconsciência, não havia ciência no sentido
que hoje entendemos como um conhecimento racional e sistemático do mundo. Eles inicialmente
procuraram compreender a realidade a partir do supra-natural e ao longo de muitos milênios a
mitologia, a magia e as crenças religiosas foram as únicas formas de explicação da realidade: “os
primeiros sistemas de representações que o homem produziu do mundo e de si mesmo são de origem
religiosa”66. O mundo era visto como um lugar encantado dotado de poderes mágicos e forças
sobrenaturais: “Historicamente considerados, os mundos do homem têm sido, na sua maioria,
mundos sagrados. Na verdade, parece provável que só através do sagrado foi possível ao homem
conceber um cosmos em primeiro lugar”67. A capacidade imaginativa humana pode criar um mundo
totalmente espiritual, sem correspondência física na realidade material, mas nem por isso menos real
para quem nele acredita: “para o homem, o que importa são as fantasias. Não são os fatos que
determinam sua maneira de ser, mas sim os fatos transfigurados pela emoção. (...) São as fantasias
que estruturam as nossas experiências”68. Com efeito, a religião tem o poder de conferir credibilidade
e realidade a coisas invisíveis, dotando-as de uma aparência de veracidade para os que nelas
acreditam. Daí porque um autor definiu religião como um “sistema de símbolos que atua para
estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas concepções com tal aura
de fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente realistas”69.
Sendo assim, por meio da religião os homens tentam construir um mundo com sentido e
significado, isto é, um mundo estável e inteligível. Para tanto, a consciência religiosa humaniza e
63
ALVES, 1975, 1999
64
ALVES, 1975, p. 15
65
ALVES, 1999, p. 31
66
DURKHEIM, 1989, p. 37
67
BERGER, 1985, p. 40-41
68
ALVES, 1975, p. 22
69
GEERTZ, 1989, p. 104-105

31
personifica a natureza e a sociedade – ao dar-lhes uma interpretação antropomórfica – revestindo-as
de significados simbólicos. Por isso “todas as religiões conhecidas foram de uma forma ou de outra,
sistemas de idéias tendendo a abarcar a universalidade das coisas e a dar-nos uma representação total
do mundo”70. De fato, todas elas têm mitos sobre a criação do mundo e da humanidade, sobre a
origem e o significado da vida, sobre a morte e o além. A religião tudo abarca e para tudo tem uma
explicação, mas como ela é uma forma pré-científica de conhecimento sempre busca no sobrenatural
a explicação para a realidade. A crença religiosa não pretende conhecer ou compreender o mundo tal
como o método científico preconiza, pelo contrário, ela intenta ser uma elucidação para os problemas
da existência humana que a ciência explica mas que não dá um significado existencial. Daí que o
discurso religioso preenche essa lacuna tentando fornecer uma explanação para toda a realidade: a
vida e a morte, a origem e o propósito da existência, o funcionamento da ordem natural, a boa sorte e
o azar, a felicidade e a desgraça, a riqueza e a miséria, o bem e o mau, a fatalidade e o imprevisto, a
doença e a saúde, enfim, para todos os fatos e decorrências do devir existencial. Afinal, como bem
disse Elman Service: “Quanto menos uma pessoa sabe, no sentido natural, mas ela parece saber, ou
pode pensar que sabe, mediante o emprego do sobrenatural”71. E não poderia ser diferente, pois o ser
humano tem horror a um mundo sem sentido! A religião oferece um ponto de apoio e uma
interpretação inteligível do mundo: “Com seus símbolos sagrados o homem exorciza o medo e
constrói diques contra o caos”72.
Ora, mas todos os mundos humanos são inerentemente precários e instáveis, não possuindo a
estabilidade etológica do mundo animal. As sociedades humanas estão constantemente mudando e
com elas também mudam as idéias e os costumes. As coisas se transformam e o que dantes era certo
e bom, hoje pode não ser mais. Como as concepções culturais são mutáveis, existe a virtual e perene
possibilidade de que o mundo simbólico dos sistemas religiosos – com seus valores e doutrinas
sagradas – venha a ser ameaçado de diluição pelo devir histórico, que pode reduzir a nada as
instáveis organizações sociais humanas. Daí porque a religião sempre procura se lastrear em valores
tidos por absolutos, porque sagrados, e como tais inquestionáveis devido a seu caráter divino:

Os valores que exercem esta função de inspiração, de apoio e de guia de uma


cultura (...) possuem um caráter absoluto e soberano. Mas não podem receber
esse caráter de realidades contigentes e mutáveis como são o homem e a
sociedade. Seus ombros são demasiado fracos e frágeis para sustentar o peso dos
valores absolutos. A lógica das coisas (como a própria história da cultura), para
garantir neste ponto aos valores este caráter absoluto e soberano e dar-lhes um
valioso embasamento, apela para Deus e para a religião, porque somente um ser
que é realmente absoluto e soberano como Deus e uma atividade como a religião,
que relaciona o homem com o ser divino, estão em condições de dar aos valores
absolutos a dignidade que lhes compete73.

Portanto, para que a religião seja eficaz, para que seu efeito e funcionalidade alcance
legitimidade e aceitação social, é necessário que ela seja revestida de uma autoridade transcendente
que sustente seu caráter de revelação divina e/ou de verdade absoluta incontestável, por mais que o
que defenda seja indemonstrável e até mesmo irracional: “A perspectiva religiosa repousa justamente
nesse sentido do ‘verdadeiramente real’ e as atividades simbólicas da religião como sistema cultural
se devotam a produzi-lo, intensificá-lo e, tanto quanto possível, torná-lo inviolável pelas revelações
discordantes da experiência secular”74.

70
DURKHEIM, 1989, p. 185
71
SERVICE, 1971, p. 92
72
ALVES, 1999, p. 25-26
73
MONDIN, 1999, p. 187
74
GEERTZ, 1989, p. 128

32
Os valores e símbolos religiosos refletem, em grande parte, um desejo humano inconsciente:
“O projeto inconsciente do ego, não importa seu tempo nem seu lugar, é encontrar um mundo que
possa ser amado. (...) criar um mundo que faça sentido, que esteja em harmonia com os valores do
homem que o constrói”75. Mas quando Alves fala de um mundo aprazível e repleto de amor, está se
remetendo a conceitos oriundos da psicanálise freudiana que tem entre seus pressupostos a idéia de
que a existência humana é direcionada inconscientemente pelo princípio do prazer, entendido este
como a força pulsional, ou libido, que busca a satisfação dos desejos prazerosos – não exclusiva nem
necessariamente sexuais – que nos propiciem felicidade e gratificação. Até a cultura que o homem
elabora está relacionada com essa intenção de criar os objetos de seu desejo e de construir um mundo
que faça sentido.
A religião, como fenômeno cultural, ocupa um papel importante na construção de um mundo
inteligível, mesmo que apelando para a imaginação. Uma das primeiras coisas que os humanos
constatam ao amadurecerem é que a realidade concreta é dura e insensível. Eles percebem a
precariedade em que vivem neste mundo e dão-se conta de sua incapacidade de controlar plenamente
seu destino. Os homens precisam lidar com situações impostas pela realidade objetiva e muitas vezes
não têm como evitar, impedir ou reverter coisas e acontecimentos negativos: as fatalidades, doenças,
imprevistos, acidentes, injustiças, sofrimentos e – o que é mais atordoante – a morte rondam
ininterruptamente sua existência. Então como conviver com uma situação tão adversa e enfrentar os
angustiantes problemas do dia-a-dia? Como edificar um mundo justo e feliz onde prevalece a
desavença e a crueldade? Como dar sentido a uma vida que sabe-se finita? Como realizar os desejos e
anseios sistematicamente negados pelo mundo? Como enfrentar o implacável problema da dor e do
sofrimento? Sendo esta última questão, aliás, um dos mais sérios problemas enfrentados pelo
discurso religioso: “o problema do sofrimento é, paradoxalmente, não como evitar o sofrimento, mas
como sofrer, como fazer da dor física, da perda pessoal, da derrota frente ao mundo ou da impotente
contemplação da agonia alheia algo tolerável, suportável – sofrível, se assim podemos dizer”76. A
consciência se angustia ao perceber as limitações da condição humana e o indivíduo se descobre
impotente e desnorteado frente a um mundo que parece negar constantemente suas aspirações.
A vida então é contraditória: desejamos o prazer e a felicidade mas nos deparamos
freqüentemente com decepções, frustrações, desventuras ou eventuais tragédias trazidas pelas
contingências de uma existência que não controlamos. Apesar dos humanos ansiarem por uma
existência de paz, alegria e harmonia, a vida parece-lhes dizer que este anseio é inatingível: “a
realidade não foi feita para atender aos desejos do coração. A intenção de que fôssemos felizes não se
acha inscrita no plano da criação”77. A experiência demonstra que o mundo pode apresentar, além
das agruras e dos problemas corriqueiros, fatos e acontecimentos aterradores – note-se quanto
sofrimento e terror trazem um grande terremoto, uma guerra ou um campo de concentração! A
dolorosa realidade, com suas misérias cotidianas, deixa claro aos homens a fragilidade de suas vidas,
a limitação de seu poder e a instabilidade do mundo em que vivem. Para Alves é desta contradição
existencial que surge a religião, ou “mais precisamente: esta contradição é a religião”78. Isto porque é
difícil para os homens aceitarem que esta vida, com suas mazelas e desgraças, seja tudo o que exista
e passam a acreditar que Deus ou os deuses devem se interessar pela humanidade dando-nos
compaixão e auxílio. Não por acaso então “As grandes religiões são em algum nível ideologias de
auto-ajuda”79. Em tais circunstâncias, Deus ou os deuses se tornam nossos mais potentes auxiliares
para lidar com o mundo, dando-nos forças para enfrentar as privações e provações da existência. A
religião torna-se a um só tempo um mecanismo de consolo e fuga da terrível realidade e também uma

75
ALVES, 1999, p. 22-23 [grifos do autor]
76
GEERTZ, 1989, p. 119
77
ALVES, 1999, p. 90
78
ALVES, 1975, p. 30
79
WRIGHT, 1996, p. 324

33
defesa contra o medo e a insegurança. Assim, a religião não deixa de ser uma projeção, no plano da
imaginação, dos mais recônditos desejos anímicos humanos:

Religiões são ilusões, realizações dos mais velhos, mais fortes e mais urgentes
desejos da humanidade. Se elas são fortes é porque os desejos que elas
representam o são. E que desejos são esses? Desejos que nascem da necessidade
que têm os homens de se defender da força esmagadoramente superior da
natureza. Eles perceberam que, se fossem capazes de visualizar, em meio a essa
realidade fria e sinistra que os enchia de ansiedade, um coração que sentia e
pulsava como o deles, o problema estaria resolvido. Deus é esse coração fictício
que o desejo inventou, para tornar o universo humano e amigo. Então a própria
morte perdeu o seu caráter ameaçador 80.

E é também por isso mesmo que o sentimento religioso, não esta ou aquela religião em
particular, é perene e indestrutível, porque os desejos e o sentido da realidade que ele procura
também o são. Nesse aspecto, Rubem Alves (1999) concorda com Durkheim quanto ao papel do
sagrado como elemento de estabilidade social, para ele a sociedade é “o Deus que todas as religiões
adoram, ainda que de forma oculta, escondida aos olhos dos fiéis”81. Mas além de ser uma ideologia
que contribui para a coesão social, em todas as sociedades humanas a religião cumpre o papel de
explicar e justificar a ordem sobrenatural do universo e também de propiciar alívio para as
ansiedades individuais. Eis porque as crenças religiosas persistem mesmo em sociedades
secularizadas, e sua influência simbólica e moral tende a ser mais evidente – tanto em nível
psicológico quanto no social – nas classes de baixa renda e menos instruídas. Por isso que quando
“os problemas mudam, mudam os deuses também”82. Daí também porque a aceitabilidade social de
um sistema religioso depende de sua capacidade de dar sentido e ordem à vida comunitária e também
aos problemas existenciais de cada indivíduo:

Tome qualquer religião e você verá que a sua eficácia existencial e social se
deriva do seu poder de fazer algo com o homem, dando-lhe forças (Durkheim),
dando-lhe um sentido para viver e morrer. Quando a religião deixa de ter esse
poder para fazer algo com o homem ela fenece e morre. Em outras palavras: o
discurso religioso é uma extensão simbólica do corpo do crente. Esta é a razão
por que quando a sua linguagem é ferida, é como se o seu corpo tivesse sido
atacado83.

Contudo, o objetivo primordial da religião não é apenas explicar o mundo, como se fosse
uma teoria científica: “Ela nasce, justamente, do protesto contra esse mundo que pode ser descrito e
explicado pela ciência (...) é a voz de uma consciência que não pode encontrar descanso no mundo,
tal como ele é, e que tem como seu projeto utópico transcendê-lo”84. Portanto, o que a religião busca
é bem mais que uma explicação coerente da realidade, o que ela realmente procura é um sentido para
a realidade e para a vida. Ela não se dirige ao intelecto do homem, pois não é ciência ou filosofia,
mas ao coração e as emoções do indivíduo. A experiência religiosa é um resultado da fé e não do
raciocínio lógico. A ciência pretende explicar objetivamente o mundo por meio de teorias,
paradigmas, modelos e métodos racionais de investigação, expressos em linguagem científica,
enquanto que a religião se pauta por uma relação mística com a realidade, isto é, a experiência
religiosa é subjetiva, espiritualista, envolvente, emotiva: “A verdade da religião, assim, não está na

80
ALVES, 1999, p. 91
81
ALVES, 1999, p. 65
82
ALVES, 1982, p. 31
83
ALVES, 1982, p. 25
84
ALVES, 1975, p. 25

34
infinitude do objeto [a divindade ou o sagrado] mas antes na infinitude da paixão”85. Seu fundamento
não é um objeto, mas uma relação afetiva entre o sujeito e o alvo de sua crença pois o que conta é a
intensidade da paixão e não o conteúdo da fé. A fé estabelece um forte vínculo entre o devoto e a
divindade venerada, não importa se ele nunca a contemplou ou se sabe profundamente sobre sua
natureza ontológica, pois o “sagrado não é um círculo de saber, mas um círculo de poder”86.
O que tudo isso quer dizer? Que a religião não é apenas a expressão ou manifestação
sacralizada dos valores socioculturais da sociedade ou uma percepção encantada (mística) do mundo,
mas também uma resposta psicocultural aos anseios, temores e aflições conscientes ou inconscientes
do indivíduo, dando-lhes consolo na dor – seja ela física ou psíquica – e proporcionando-lhes um
refugio contra o medo e as incertezas da vida. Vimos que a dor e o desamparo frente ao sofrimento
são os mais angustiantes problemas existenciais humanos, mas os homens até podem suportar bem a
dor, o que é tremendamente mais difícil de enfrentarem é a falta de sentido e esperança para a vida:
“Não é a dor que desintegra a personalidade, mas a dissolução dos esquemas de sentido”87. A religião
pode dar esse sentido para a vida que o homem tanto procura. E porque precisamos tanto de sentido
para a vida? Lembremos que o homem é único animal que sabe que vai morrer, tem perfeita e clara
noção de sua finitude existencial, tem plena consciência que caminha para um fim inevitável e
inexorável: um nada, em termos físicos, existenciais e sociais o espera. Como sabe que não pode
alterar ou reverter essa situação factível, dada, irreversível, inerente à sua condição biológica, se
angustia. O filósofo Heidegger considerava a angustia como o sentimento básico mais presente e
primordial do ser humano, ainda que nem sempre ele se aperceba disso. Diferente do medo, que é o
temor de algo objetivo, a angustia é um medo vago, de algo às vezes indefinido, originado pela
sensação de impotência, limitação ou contingência própria da condição humana, o que pode causar
ansiedade ou depressão.
A maioria das culturas humanas parece se incomodar com o caráter inelutável, arbitrário e
imprevisível da morte88. Como lidar com essa situação? Ora, se não podemos evitar nossa morte
física podemos pelo menos atenuá-la através de sua negação simbólica: “Canções fúnebres
exorcizarão a morte? Parece que não. Mas elas exorcizam o terror e lançam pelos espaços afora o
gemido de protesto e a reticência de esperança”89. Por isso, as mais diversas culturas humanas
recorreram a religião para mitigar o temor que inspira o fim da vida e a dissolução do corpo, o que
engendrou a crença numa outra vida após a morte. A doutrina da imortalidade da alma e a crença na
ressurreição dos mortos desenvolvidas pela tradição judaico-cristã, o ciclo de reencarnações a que
estaria sujeita a alma propalado pelas religiões orientais (hinduismo e budismo) e pelo espiritismo
retratam muito bem a desesperada recusa de aniquilação e o anseio de eternidade. Não obstante,
como a finitude é uma condição básica e imutável da existência humana, podemos asseverar que de
uma forma ou de outra a religião subsistirá enquanto a humanidade existir na face da terra:

a religião continuará, até o fim, como expressão de amor e como expressão de


medo. O homem viverá, para sempre, num mundo de deuses e demônios,
símbolos de suas aspirações e temores (...). Como muito bem observou Durkheim
‘há algo de eterno na religião que está destinado a sobreviver a todos os símbolos
particulares com que o pensamento religioso sucessivamente se envolveu’ 90.

85
ALVES, 1975, p. 26-27
86
ALVES, 1999, p. 64
87
ALVES, 1999, p. 34
88De acordo com Freud, a idéia da não-existência é tão desconfortável para o indivíduo que nossa mente desenvolveu
um mecanismo psíquico inconsciente de defesa para lidar com esse problema: sempre que imaginamos nossa própria
morte a vemos como espectadores porque ela nunca é possível nem admissível quando se trata de nós mesmos, ou seja,
em nosso inconsciente tentamos ignorar a morte não pensando nela ou remetendo-a para um futuro distante.
89
ALVES, 1999, p. 22
90
ALVES, 1975, p. 30

35
VII. Sistema de Parentesco

No sentido antropológico, o parentesco estuda o complexo de regras que determinam as


relações de descendência (consangüíneas ou não), os vínculos de filiação, as normas de sucessão do
status familiar e os laços de união conjugal, definindo assim a condição social de indivíduos e grupos
em referência a seus liames familiares e possibilidades matrimoniais. O parentesco pode ser
conceituado como um sistema estrutural de relações sociais constituído por um grupo de pessoas
relacionadas por consangüinidade real (descendência genética) ou putativa, laços de afinidade marital
(casamento) ou por ligações fictícias (adoção). A consangüinidade não é decisiva na análise
antropológica do parentesco, pois o parentesco no sentido genético não tem um papel social único ou
determinante na definição da relação de parentesco aceita pela sociedade. Não se deve confundir
filiação – princípio ou convenção social que regula a transmissão ou reconhecimento do parentesco –
com consangüinidade, que é uma relação biológica; pode existir consangüinidade sem laços efetivos
de filiação ou vice-versa91. Na realidade, as normas e as leis do parentesco humano não dependem
fundamentalmente da hereditariedade biológica, elas são antes um sistema arbitrário de
representações concebido pela mente humana de modo a formar uma estrutura jurídica e moral que
determina o lugar e o papel do individuo no que se refere às três relações primárias da rede social de
parentesco: sua filiação genética (pai/mãe-filho[a]), germanidade (irmão[ã]-irmão[ã]) e a união de
parceiros núbeis por meio das regras de aliança, ou seja, do casamento92.
As relações de parentesco são tão velhas quanto a espécie humana, ainda que, claro, elas
tenham se formado aos poucos durante o longo processo evolutivo da humanidade. Ao contrário do
que muitos podem pensar, nunca existiu uma sociedade plenamente humana sem normas que
regulassem as uniões, ajuntamentos ou laços matrimoniais entre homens e mulheres, ou que não
tivesse regras destinadas a disciplinar as atividades sexuais dentro do grupo. Não existem indícios de
ter havido um período ou estágio da organização social humana caracterizado por relações de pura
promiscuidade. Também na etnografia não há registro de sociedades antrópicas promíscuas, o que
pode variar ou diferir, isto sim, é o grau de permissividade e tolerância que uma cultura concede a
determinadas práticas sexuais ou modos de acasalamento. Enquanto algumas culturas são bastante
liberais quanto à prática sexual pré-marital, por exemplo, outras já são mais repressivas; a poligamia
é legalmente aceita em muitos países e em outros é um crime. Por conseguinte, toda sociedade impõe
normas para orientar ou inibir o intercurso sexual e coloca algumas condições para a formação e a
permanência dos casais. Portanto, sejam elas quais forem, as normas reguladoras são necessárias e
indispensáveis ao funcionamento qualquer comunidade humana, posto que não pode haver sociedade
sem regras.
No que diz respeito aos nossos parentes filogenéticos mais próximos, verifica-se que quanto
mais socialmente organizado é um grupo primata, mais provável é que prevaleça, no que se refere ao
acasalamento, um sistema de “consórcio”: um casal macho-fêmea estável ou um macho dominando
várias fêmeas constituindo unidades reprodutoras93. Também não há porque pensar que nesse aspecto
somos radicalmente diferentes de outros primatas sociais, mormente dos grandes antropóides. Alguns
imaginam que existe um fosso imenso entre o homem e os outros primatas, mas as pesquisas
etológicas tendem cada vez mais a confirmar que “as diferenças entre os seres humanos e os outros
primatas são questões de quantidade e não de qualidade”94. Da mesma forma que os humanos, todos
os outros primatas vivem em grupos que variam da família elementar do gibão até cerca de 400
indivíduos, como as hordas de babuínos. A organização social dos grandes símios já prenuncia
algumas características comportamentais que ocorrem entre os seres humanos:

91
AUGÉ, 1978
92
LÉVI-STRAUSS, 1975, 1982
93
FOX, 1986
94
WERNER, 1990, p. 145

36
O homem certamente compartilha com os outros antropóides, gorila, chimpanzé,
orangotango, traços que se consideravam próprios dele: associação de fêmeas em
torno de um mesmo macho, formação de grupos fechados compostos de machos
aparentados e compreendendo numerosas fêmeas, solidariedade desses machos
para defesa de seu território comum, e, no interior do dito grupo, diminuição e
até mesmo desaparecimento da disputa dos machos por suas fêmeas. Podemos
citar ainda mecanismos mais ou menos elaborados para evitar o incesto como a
dispersão e expulsão dos jovens indivíduos nascidos no grupo95.

Vejamos rapidamente como se comportam os antropóides. Os gibões são monogâmicos e a


unidade familiar é formada unicamente pelo casal e pelos filhos. Os gorilas são poligínicos, com um
macho mais velho dominando o grupo e dispondo do exclusivo acesso sexual às fêmeas. Os
orangotangos também são poligínicos, mas não vivem em grupos; um macho mantém, ou tenta
manter, o controle sobre várias fêmeas maduras que vivem espalhadas e sozinhas com suas crias. Já
os chimpanzés vivem em grupos que podem chegar a várias dezenas de indivíduos e seu sistema de
acasalamento consiste de uma poliginia multimachos, isto porque as fêmeas quando entram no cio
copulam com vários machos, só que, nestas ocasiões, geralmente saem de seu grupo e migram para
outras comunidades, evitando assim relações incestuosas com os machos de seu próprio grupo. Desse
modo, conforme demonstrado, mesmo entre os macacos antropóides encontramos um certo tipo de
acasalamento ordenado e uma função protetora dos machos em relação às crias, com exceção do
chimpanzé que pouco se importa com os filhotes96. Sem embargo, é preciso salientar que não existe
entre os primatas superiores nada que se aproxime de uma organização estrutural simbólica de
parentesco tal como entre os humanos.
Durante a evolução do homem uma série de fatores biológicos, de ordem anatômica e
fisiológica, concorreu para a formação de pares macho-fêmea mais ou menos estáveis. A diminuição
da pélvis humana, por causa do bipedismo, implicou no nascimento cada vez mais precoce e indefeso
do bebê humano, aumentando o tempo de dependência em relação aos cuidados dos pais e o período
de socialização. Daí, em nome do futuro da espécie, a mãe e a criança tinham que ser protegidas. Isto
fez com que nas sociedades hominídeas se consolidasse um certo tipo de acasalamento ordenado e
uma função protetora exercida pelos machos sobre as fêmeas e crias. Sendo assim, o bando patrilocal
formado por famílias nucleares mono ou poligâmicas talvez seja o mais primitivo dos grupos
verdadeiramente humanos e deve ter sido, com toda probabilidade, a unidade social dos nossos
antepassados caçadores-coletores do Paleolítico.
Para o antropólogo inglês Robin Fox (1986), os quatro princípios básicos do parentesco e
casamento aos quais a humanidade teve que se adaptar durante o longo processo de evolução são:
a) os filhos são gestados pelas mulheres;
b) os homens engravidam as mulheres;
c) o controle familiar é geralmente exercido pelos homens;
d) os parentes consangüíneos de primeiro grau não se acasalam entre si.
Os dois primeiros são fatos da natureza, isto quer dizer que eles são fenômenos biológicos
comuns a todos os animais que se reproduzem sexualmente. O terceiro é um princípio predominante
mas não absoluto, pois embora o papel dominante do homem – como provedor e tomador de decisões
– seja mais visível em sociedades de pequena escala, ele tende a diminuir em sociedades urbano-
industriais avançadas. O último ponto é justamente o que permite a estruturação do sistema de
parentesco humano e é antes um fenômeno cultural do que biológico. Todas as sociedades antrópicas
impõem regras de acasalamento e especificam termos para a classificação do parentesco. Constata-se

95
LABURTHE-TOLRA, & WARNIER, 1997, p. 78
96
WERNER, 1990

37
também que em todas elas a construção dos sistemas de parentesco está relacionada com uma regra
básica: a proibição do incesto. A palavra vem do latim in “não” e castus “puro, casto”, ou seja, uma
ação contra a castidade. Incesto é uma relação sexual ou conjugal ilícita entre parentes
consangüíneos ou entre pessoas que a sociedade considera como estando unidas por laços de
parentesco que impedem o mútuo casamento. O tabu do incesto na família nuclear é quase universal,
as exceções registradas ocorriam nas famílias reais do antigo Egito, do Império Inca no Peru e do
Havaí (casamento entre irmãos e irmãs), entre os Azandes do Sudão (chefes e filhas) e alguns grupos
Bacongos (avô e neta). As penalidades para o incesto variam de cultura para cultura e podem ir
desde a desonra até uma punição mais grave como o exício dos infratores: entre os aborígines
australianos e os Ashantis da África o par incestuoso estava sujeito a morte; em Bali, na Indonésia,
eram expulsos para sempre da aldeia e condenados a viver como animais na floresta porque nenhuma
aldeia os receberia com medo de atrair desgraças.
Uma hipótese sobre as origens do tabu do incesto seria dele funcionar como um mecanismo
para evitar os efeitos perniciosos da procriação consangüínea persistente – que poderia causar
anomalias genéticas – e a competição sexual no interior do grupo familiar. Essas razões, junto com a
universalidade do fenômeno, levaram alguns a defender que o tabu do incesto seria instintivo. Mas, se
fosse assim, por que haveria leis tão severas o proibindo? Se a aversão fosse instintiva, como
explicar os casos reais de incesto, ainda que relativamente raros. Embora Lévi-Strauss reconheça que
a interdição do incesto possua simultaneamente a “universalidade das tendências e dos instintos e o
caráter coercitivo das leis e das instituições”97, para ele o tabu do incesto não se explica na natureza,
isto é, na biologia, psicologia ou genética, e sim na teoria da aliança, um fenômeno cultural
representado pela prática dos casamentos exogâmicos que selam a união entre dois grupos e não
apenas entre duas pessoas98. Afirma ele que a proibição do incesto é fundamentalmente uma síntese
privilegiada da natureza e da cultura, pois é nela que se opera a passagem entre essas duas ordens. O
tabu do incesto é a única regra (cultura) que é universal (natureza). A proibição do incesto contém
em si própria o princípio da troca matrimonial, que é o princípio organizador do parentesco, a base
de toda vida cultural. E a organização que a cultura dá aos fenômenos da natureza só é possível pelo
fato da natureza deixar aberta à cultura a possibilidade de organização desses fatos. Nessa
perspectiva, a regra de proibição do incesto é interpretada como a passagem da natureza à cultura,
possibilitando a constituição da sociedade humana, pois seria a forma negativa (proibição) de uma
regra positiva (a exogamia).
Sendo assim, a proibição do incesto é instaurada para fundamentar, direta ou indiretamente,
imediata ou mediatamente, a troca exogâmica, já que “a proibição do incesto e a exogamia
constituem regras substancialmente idênticas”99. Dessa forma, a troca matrimonial de mulheres entre
famílias e grupos dentro de cada sociedade vai se tornar importante para a própria continuidade da
vida social, pois a aliança (casamento) é uma regra de trocas recíprocas. Mas por que a aliança
intergrupal mediada pelo casamento é tão importante para os seres humanos? A resposta dada pela
teoria da aliança seria que casando-se fora do seu grupo de parentesco consangüíneo os homens
estabeleceriam, por meio do intercâmbio de esposas, contatos amistosos com outras comunidades,
selariam pactos de amizade e evitariam conflitos entre si, aumentando assim suas chances de
sobrevivência. Ao trocarem suas filhas e irmãs e tornarem-se cunhados, genros ou sogros, eles
deixavam de ser estranhos uns aos outros e passavam a cooperar ou pelo menos a evitarem conflitos
diretos graves ou prolongados. Certa vez, durante seu trabalho de campo na Nova Guiné, nos anos

97
LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 49
98
As regras de união marital, no que respeita à escolha do cônjuge, são basicamente duas: a) exogamia: regra social que
exige que o indivíduo se case com uma pessoa que seja de fora de seu grupo local de parentesco, linhagem, clã ou
comunidade; b) endogamia: regra de casamento oposta a da exogamia, obrigando ou pressionando a pessoa a contrair
matrimônio dentro de seu grupo social, comunidade ou etnia, respeitando-se obviamente as interdições incestuosas.
99
LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 101

38
30, a antropóloga Margaret Mead perguntou provocativamente aos nativos arapeshes o que eles
pensariam de alguém que cassasse com a própria irmã. A questão lhes pareceu tão absurda que eles,
de início, não sabiam como respondê-la. A pesquisadora insistiu na indagação e o que todos lhes
responderam foi mais ou menos o seguinte, de acordo com o resumo da autora:

O que, você gostaria de se casar com sua irmã? O que é que há com você? Você
não quer um cunhado? Não percebe que, se se casar com a irmã de outro homem
e outro homem casar-se com sua irmã, você terá pelo menos dois cunhados, ao
passo que, se se casar com sua irmã, não terá nenhum? Com quem você irá
caçar, com quem irá cultivar, a quem irá visitar?100

A imposição de regras de casamento, estabelecendo quem pode se unir com quem, inclusive
a própria aceitação da poligamia – mas aí já como regra social – surge também como uma forma
encontrada pelo grupo de evitar conflitos sexuais internos motivados pela disputa aberta e
descontrolada por mulheres, assegurando assim a distribuição mais equilibrada possível de consortes
entre os homens do grupo. Isto também tem uma forte motivação econômica. Como veremos mais
abaixo, em muitas sociedades pré-industriais a mulher surge como um bem econômico valorizado por
suprir uma série de tarefas domésticas consideradas próprias de seu gênero e não apropriadas a um
homem, formando então com o parceiro uma unidade familiar baseada na divisão de trabalho entre os
sexos.
Antes de continuar, façamos uma breve pausa para esclarecer as convenções sociais que
norteiam a descendência ou filiação. Na linguagem antropológica, chamamos de “filiação” à regra
que define a transmissão do parentesco. Os grupos de filiação são estruturados com base na crença –
real ou suposta – de que seus integrantes possuem um antepassado comum. As formas de
descendência ou de identificação dos grupos de parentesco podem ser:
a) unilateral ou unilinear – o vínculo de parentesco é transmitido por apenas um dos progenitores e
pode ser:
– patrilinear (agnática): a classificação da linha de parentesco, os direitos e funções sociais e a
transmissão de bens para o indivíduo são determinados pela descendência paterna, isto é,
exclusivamente através do elo masculino;
– matrilinear (uterina): o mesmo acontece neste caso, mas agora somente pelo lado feminino.
b) bilateral (cognática): o parentesco é contado tanto pelo pai quanto pela mãe, por isso é uma
filiação indiferenciada, pois reconhece laços sociais de direitos e deveres com a parentela de ambos
os lados do par formado pelo casal;
c) unilinear dupla ou bilinear (rara): ocorre quando as linhas unilaterais existem concomitantemente
lado a lado e se justapõem regulamentando determinadas obrigações e direitos com os grupos de
parentes patrilineares ou matrilineares, dependendo dos propósitos: os Yakö da Nigéria e os Ashanti
de Gana101.
Vejamos agora os tipos de grupos de parentesco unilinear, a começar pelo mais simples
deles: a linhagem. Quando falamos de linhagem queremos nos referir a um grupo de filiação em que
existe um relacionamento sanguíneo efetivo de parentesco entre seus membros, haja vista que eles
descendem de um ancestral comum real e conhecido – que pode ser de um ou outro sexo – e não
meramente presumido, como no clã. Etimologicamente a palavra “clã” é de origem gaélica (clann) e
significa filhos ou descendentes. Na antropologia o termo clã é usado para definir um grupo formado
por várias linhagens exógamas que acreditam ter sua origem num ancestral fundador remoto, ou seja,

100
MEAD, 2000, p. 101
101
De acordo com um levantamento antropológico sobre a freqüência relativa das formas de organização do parentesco,
realizado em 860 sociedades de todo o mundo, 36% seriam cognáticas, 46% patrilineares, 14% matrilineares e 4%
bilineares (HOEBEL & FROST, 1984).

39
um grupo de parentesco que acredita derivar de um ancestral comum, geralmente lendário ou mítico,
e que segue uma regra de descendência unilinear, masculina ou feminina, mas nunca ambas
simultaneamente. Embora os membros de um clã se considerem genealogicamente aparentados, isto
não pode ser demonstrado e, em razão das regras de filiação em linha exclusiva, alguns parentes afins
podem ser incluídos no grupo de parentesco e alguns consangüíneos excluídos. Os clãs totêmicos
reverenciam o mesmo totem e respeitam determinadas interdições matrimoniais. As funções do clã
seriam manter a solidariedade do parentesco, prover uma rede de mútua proteção, regular os
casamentos e arbitrar disputas. Também se usaram, para designar clã, os termos “sib” ou “gens”,
este último para a linha masculina. O terceiro tipo de grupo de parentesco é a “metade tribal”,
organização em que a sociedade é dividida em duas categorias de pessoas formando uma divisão
dual; as metades geralmente constituem grupos exógamos, com cada uma fornecendo à outra
parceiros para o casamento. Na verdade, este é um método eficiente de institucionalizar a
reciprocidade de um modo estrutural. E, por fim, temos a fratria, que é a união de dois ou mais clãs
através de um laço de identidade e solidariedade comum, mantendo, porém, cada clã a sua
individualidade102.
O parentesco está, logicamente, ligado a família. O conceito de família é um tanto quanto
impreciso, mas podemos definir família como o grupo social unido por laços de parentesco e
caracterizado por residência comum, cooperação econômica e por gerar descendência biológica. Em
qualquer sociedade, todo indivíduo pertence a uma família de orientação (onde nasceu), ao casar-se
ele ou ela constituem uma família de procriação; na primeira seu papel é de filho(a) e irmão(ã), na
segunda de marido (esposa) e pai (mãe). O matrimônio é o elo que permite o relacionamento entre os
membros de ambas. A fim de melhor abordar o assunto, reproduzirei aqui o conceito de família
definido por três antropólogos: “designa habitualmente um grupo social que compreende, no mínimo,
um homem e uma mulher unidos por laços socialmente reconhecidos e mais ou menos duradouros do
casamento, e um ou vários filhos nascidos dessa união ou adotados”103. Outra é “um grupo de
pessoas ligadas pelo sangue, pelo casamento ou pela adoção e habitualmente residindo junto, tendo
por objetivo a sobrevivência econômica, a identificação individual e coletiva, e a criação de eventuais
rebentos”104. A família é uma unidade primária da organização sociocultural humana e não existe
nenhum grupo, etnia ou sociedade sem arranjo familiar, embora, sem dúvida, varie muito sua
estrutura e funcionamento. Vale também acrescentar que a unidade familiar concreta pode se
modificar e até se desfazer, mas o sistema de parentesco perdura mesmo quando os membros da
família estão dispersos. As quatro funções básicas da família seriam:
a) sexual (legitima e regula as relações sexuais);
b) reprodutiva (manutenção da sociedade);
c) econômica (divisão das tarefas de subsistência entre o casal e o sustento e proteção dos filhos);
d) educacional (socialização e transmissão da cultura e status).
No que diz respeito à última dessas funções, a família é o agente educador básico porque é
responsável pela socialização da criança durante sua fase de aprendizado, transmitindo-lhe a herança
cultural de seu grupo e preparando-a para ingressar na sociedade. Obviamente que, dependendo de
uma série de fatores psicológicos e sociais, nem sempre essa tarefa é cumprida de modo satisfatório,
por isso toda sociedade terá em seu meio os desajustados ou desviantes. Os tipos de organização
familiar são:
1. Extensa: rede familiar de aparentados consangüíneos por linha masculina ou feminina, geralmente
não por ambas, podendo incluir além da unidade nuclear, os avós, tios, sobrinhos, netos, primos,
afilhados etc. São constituídas por pessoas de três ou mais gerações e caracterizam-se pela indefinida
continuidade no tempo. Não estimula ou é incompatível com a residência neolocal.

102
HOEBEL & FROST, 1984; MARCONI & PRESOTTO, 1992
103
AUGÉ, 1978, p. 49
104
LABURTHE-TOLRA & WARNIER, 1997, p. 105

40
2. Elementar: família nuclear ou natal-conjugal (pais e filhos). Constitui a base da estrutura social,
ainda que tenda a ser efêmera, pois com o tempo diminui à medida que os filhos deixam o lar original
ou se dilua com a morte dos pais. É o tipo de família ajustado às condições de vida das modernas
sociedades urbano-industriais, onde se faz necessária a mobilidade dos trabalhadores, que moram ou
mudam-se de cidade ou região de acordo com a oferta de emprego e trabalho. Além disso, o custo
econômico de manutenção de uma grande prole nos centros urbanos não estimula a natalidade.
Outras instituições – como o estado através da previdência social pública ou as empresas de
previdência privada – se encarregaram de muitos dos papéis e obrigações que outrora eram de
responsabilidade da família: cuidar dos órfãos e crianças abandonadas, oferecer amparo aos velhos,
doentes, inválidos e desempregados.
3. Composta: formada por dois ou mais cônjuges e seus filhos unidos em grupos familiares maiores.
Nas sociedades poligâmicas tem como centro um homem ou mulher e seus cônjuges; nas sociedades
monogâmicas existem por meio de relações de adoção: padrasto, enteado etc.
Aceitando-se a universalidade da família, pode-se agora discorrer sobre sua natureza.
Voltando aos dois primeiros pontos de Robin Fox listados anteriormente, vemos que a organização
familiar é uma contingência da reprodução biológica. Também já assinalamos que a família, como
subsistema social, está presente em todas as sociedades, mas não se deve entender com isso que ela
tenha como modelo ou núcleo mínimo a família nuclear. Robin Fox (1986) afirma que o grupo social
mais básico, elementar e irredutível, é constituído pela mãe e seus filhos (família natural, na
classificação de alguns sociólogos), independente de existir ou não um laço conjugal estável entre ela
e o genitor da prole, já que a presença do pai não é, nem nunca foi, uma realidade constante em todas
as famílias. Em outras palavras, a ligação da mãe com seu filho ou filhos é um fato biológico que não
depende da presença de um marido-pai efetivo, podendo a união conjugal ser tênue, passageira,
intermitente ou até mesmo, como dito, inexistente. Desse modo, a unidade familiar mínima na história
da evolução social humana foi, e é, a da mulher e seus filhos, sendo esta uma verdade que vale tanto
para uma mulher que cuida de sua criança em seu clã familiar numa sociedade tradicional quanto
para uma mãe moderna que cria sozinha seus filhos numa cidade grande de nossa civilização. Isto
também poderia explicar o porque de em muitas sociedades a classificação do parentesco e a
sucessão hereditária serem pelo lado materno, isto é, matrilinear:

Temos, portanto, que a mais simples forma familial foi a da mulher com seus
filhos, vivendo juntos no clã, ou com o irmão; tal arranjo era um natural
desenvolvimento da família animal – mãe e filhotes – dentro da biológica
ignorância do homem primitivo [sic]. (...), a progênie era traçada pela linha
materna; a herança vinha pelo lado da mãe; às vezes, mesmo a sucessão dos
chefes ou reis se fazia pela linha feminina, não masculina. Este ‘direito da mãe’
não era um ‘matriarcado’ – não implicava o governo do homem pela mulher.
Mesmo quando a propriedade se transmitia pelo lado feminino, a mulher exercia
pouco poder sobre ela; apenas usavam essa linha como meio de traçar a
descendência, num regime de paternidade sempre obscura 105.

Posto está que não devemos confundir coabitação pré-conjugal, casamento e família – que
são coisas diferentes. Expliquemos melhor. Chamamos de união pré-conjugal à intimidade sexual
entre duas pessoas de sexos opostos sem que haja entre elas qualquer vínculo matrimonial. Neste
caso, temos um relacionamento ou ajuntamento cujo propósito é primordialmente a satisfação dos
impulsos sexuais sem maiores conseqüências. Em muitas sociedades antigas e/ou tradicionais, de
todos os continentes, a atividade sexual pré-marital era, e ainda é, comum. Entre os indígenas da
América do Sul e do Norte, a vida sexual começava muito cedo, sem que isto constituísse um

105
DURANT, s. d., p. 23

41
impedimento para o futuro casamento. Nas ilhas Trobriand, estudadas por Malinowski, as
experiências sexuais dos nativos iniciavam-se também na adolescência e tinham livre curso até que a
pessoa encontrasse alguém que se apegasse e contraísse com ela um compromisso permanente.
Nessas sociedades, a virgindade não era considerada um valor moral de monta e o que uma moça
mais receava não era a sua perda, mas a infertilidade uterina, este sim um grave problema. Citando
novamente Will Durant:

O que a moça primitiva mais temia não era perder a virgindade, mas adquirir a
fama de estéril; freqüentemente a prenhez pré-marital constituía uma ajuda, em
vez de embaraço para o casamento, porque provava a fecundidade da mulher.
Antes do advento da propriedade as tribos mais simples conotavam
negativamente a virgindade achando-a indicativa de impopularidade. (...). Em
muitos lugares a virgindade era considerada como barreira ao casamento, porque
punha a cargo do noivo a desagradável tarefa de violar o tabu que lhe proibia
derramar o sangue da tribo. Às vezes a moça se oferecia a um estrangeiro, como
meio de livrar-se desse tabu. No Tibete, as mães ansiosamente procuravam um
homem que lhes quisesse deflorar as filhas; no Malabar as moças cercavam nas
estradas os passantes e lhes pediam o grande favor, porque ‘enquanto fossem
virgens não encontrariam casamento’. (...); entre certas tribos das Filipinas
havia um funcionário, muito bem pago, incumbido de poupar aos noivos esse
incômodo106.

Em que pese todos esses fatos, ainda assim permanece a verdade de que toda sociedade
impõe certas restrições à prática sexual – ou pelo menos à sexualidade desenfreada – e procura
regular a reprodução biológica filial e a união familiar. É importante não confundir liberdade sexual
com libertinagem, esta sim no geral condenada por praticamente todas as sociedades humanas, que
também amiúde censuram a mulher com reputação de leviana ou depravada 107. Na realidade, pode-se
dizer que essa livre e prematura expressão da sexualidade servia – além, é óbvio, da liberação do
instinto libidinal – como uma espécie de experiência para o par de namorados testar seu nível de
compatibilidade antes de assumirem a responsabilidade do casamento e de criarem uma família. É
então a partir desse ponto que passamos a discorrer sobre a instituição do casamento. Enquanto um
casal está junto unicamente para o exercício da sexualidade, sua relação é basicamente psicofísica. Já
o casamento é uma instituição social determinada pela cultura e implica mais do que a mera
intimidade sexual, ele confere legitimidade social à relação entre os sexos, referendando não apenas a
união conjugal como também o status do casal e de sua descendência perante seu grupo social. O
casamento é então uma instituição cultural, sendo por isso o “complexo das normas sociais que
definem e controlam as relações de um par unido um com o outro, com seus parentes, com sua prole
e com a sociedade em geral”108. De fato, constituí-se num contrato que define as obrigações mútuas
de um par como marido e esposa, incluindo os direitos sexuais de ambos, os serviços domésticos e os
cuidados com a descendência. O casamento obriga mesmo a uma mudança, temporária ou definitiva,
nos hábitos de residência do novo casal. A respeito das regras de residência conjugal, convém
informar que a antropologia utiliza os seguintes termos: a) matrilocal (ou uxorilocal): residência pós-
marital na comunidade, grupo ou casa dos pais da esposa; b) patrilocal (ou virilocal): residência pós-
marital na comunidade, grupo ou casa dos pais do esposo; c) avuncolocal: a esposa vai morar na
casa do tio materno do noivo; d) neolocal: os cônjuges vão residir num novo local sem os parentes; e)
bilocal (ou ambilocal): o casal pode residir temporariamente com os pais de qualquer um deles.

106
DURANT, s. d., p. 32
107
WRIGHT, 1996
108
HOEBEL & FROST, 1984, p. 176

42
O casamento, então, mais do que regularizar a vida sexual, teria a finalidade de legitimar, em
termos sociais, os filhos nascidos dessa união, além é claro, de prover os meios materiais para cuidar
da sobrevivência e da instrução das crianças, uma tarefa de importância fundamental em qualquer
sociedade humana. O casamento possuiu duas formas básicas: pode ser monogâmico, quando é
contraído com um só cônjuge, ou poligâmico, quando um homem ou mulher contrai matrimônio com
dois ou mais cônjuges ao mesmo tempo. Neste caso, divide-se em:
a) poliginia: casamento de um homem com duas ou mais mulheres;
b) poliandria: casamento de uma mulher com dois ou mais homens.
Não há provas de que tenha existido o chamado casamento grupal; que também não se deve
confundir com a prática da extensão de privilégios sexuais para outros homens ou mulheres além dos
cônjuges, porém sem implicar no sustento ou cooperação econômica. Os esquimós são monogâmicos,
mas a esposa pode prestar ocasionais favores sexuais aos hóspedes do marido. Nas ilhas Marquesas
(Oceania), a esposa pode conceder seus favores sexuais a outros homens de seu grupo de residência,
além do marido, mas todos os filhos que nascem pertencem ao esposo. Obviamente que muitos desses
costumes se modificaram ou desapareceram em razão da influência aculturativa da sociedade
ocidental, principalmente dos missionários cristãos.
Mas nesse ponto de nossa argumentação se levanta uma questão: por que, à medida que as
sociedades ficavam cada vez mais complexas, com o surgimento das civilizações, a moral sexual
passou a restringir cada vez mais a união pré-marital e a valorizar a virgindade da noiva bem como o
vínculo indissolúvel do casamento? Algumas chegaram até a proibir ou dificultar ao máximo o
divórcio e sacralizaram a união conjugal a ponto de transformá-la num sacramento religioso, como
fez a Igreja Católica na Europa Medieval. Parece que a resposta a essa pergunta está no acúmulo de
bens e riquezas proporcionado pelo aparecimento da propriedade privada:

os fatores econômicos podem influenciar a imposição de controle da atividade


sexual pré-marital livre. Isto deve ter desempenhado um papel cada vez mais
importante no desenvolvimento da história humana à medida que as sociedades
constituíam mais e mais propriedades. A união tornou-se mais do que a simples
expressão de impulsos biológicos. Controlada pelo casamento, ela ligava a
reprodução à locação de propriedade e à sua transferência de uma geração a
outra109.

O que transformou a virgindade feminina de incômodo em virtude foi a instituição da


propriedade pessoal e/ou familiar dos meios de produção e o surgimento das desigualdades
patrimoniais a partir da estruturação da sociedade em classes sociais estratificadas pela renda e posse
pecuniária. À medida que algumas famílias acumulavam maior quantidade de bens que outras e
diferenciavam-se das demais que tinham menos, a importância dos indivíduos no renque social
passou a depender cada vez mais de suas riquezas e de seu poder de influenciar a sociedade. Ora, a
exigência da castidade pré-marital tornou-se a garantia de que a noiva desposada não tinha filhos de
um relacionamento anterior, ou seja, seu marido não teria que preocupar-se em dividir seu patrimônio
com outros presumidos herdeiros. Neste caso, a noiva virgem tornou-se mais valorizada que a não
virgem, pois trazia um atestado de seu passado e uma promessa de fidelidade conjugal. A própria
mulher tornou-se também uma espécie de propriedade do homem e o adultério passou a ser punido
com rigor. Nas sociedades de regime patriarcal, o marido podia dispor da esposa e dos filhos como
escravos. Em alguns lugares, como na Índia, a mulher tinha que ser sacrificada junto com o marido
quando este morria: era o costume do sati. O resultado disso foi o progressivo cerceamento da
liberdade feminina até alcançar, em muitos casos, o total enclausuramento da mulher pertencente às
classes mais altas, prática essa que esteve presente em graus variados nas mais diversas sociedades

109
HOEBEL & FROST, 1984, p. 178

43
antigas e modernas: desde a Atenas clássica até o Brasil colonial, atingindo, porém, extremos rigores
em algumas nações muçulmanas.
Mas voltando ao casamento em si, analisemos como ele é uma forma de linguagem e um
meio de troca simbólico entre os grupos humanos. De acordo com Lévi-Strauss (1975), as relações
entre os homens seriam reguladas pela troca de mulheres (casamento), de bens (economia) e de
palavras (comunicação simbólica). Sendo assim, o princípio da reciprocidade e da aliança
matrimonial entre os grupos humanos constituiria a base da organização social familiar. Mas
enquanto nas modernas sociedades urbano-industriais, o casamento – ou a opção de não casar – é um
assunto não regulado pela família ou cuja ingerência é mínima, ficando a escolha do namorado(a) ou
companheiro(a) à critério da própria pessoa, o mesmo não acontece em muitas partes do mundo onde
subsistem outras formas de sociedade ou de ideologias religiosas. Na maioria das sociedades
tradicionais o casamento é um assunto mais ou menos rigorosamente regulado dentro de uma
estrutura definida. Explicando melhor, nas sociedades tradicionais, nas áreas rurais de várias regiões
do planeta ou ainda entre alguns grupos minoritários (como os judeus ortodoxos), a aliança
matrimonial não é apenas, como à primeira vista pode parecer, uma união entre um homem e uma
mulher, mas um arranjo que envolve o consentimento e a participação dos parentes de ambos os
nubentes, sendo o casal que irá contrair as núpcias apenas o vínculo de ligação mais importante desse
arranjo. Trata-se, na verdade, de uma:

União contraída entre dois grupos exógamos pelo casamento de um dos seus
membros, a aliança liga dois indivíduos de sexo diferente através de um conjunto
de direitos e de obrigações mútuas, variáveis de cultura para cultura. (...). [a
aliança] condiciona os processos de filiação, de residência, de apelido, de
herança, de atitudes e abre caminho à procriação legítima no grupo conjugal.
Geralmente, um rito de casamento, religioso ou civil, soleniza a mudança de
estatuto dos novos esposos e a criação de laços jurídicos, sociais e econômicos
entre o grupo de filiação do marido e o da mulher. Não é falso dizer-se que,
muitas vezes, predominam no casamento motivações de ordem econômica 110.

É por esta razão que Lévi-Strauss considera os sistemas de parentesco e as regras de


casamento como uma linguagem que por meio de uma série de trocas matrimoniais, isto é, através de
casamentos entre famílias ou comunidades diferentes, estabelece um tipo de comunicação entre os
grupos humanos. Essa reciprocidade das trocas, condição para a aliança intercomunitária, é o que
torna a proibição do incesto necessária e universal, e representa a regra da dádiva por excelência. É
também neste sentido que os casamentos entre grupos ou comunidades diferentes representam uma
troca de mensagens, sendo a mulher, neste caso, a portadora da mensagem, pois como esposa é um
bem permutável que é negociado entre famílias, bandos, clãs e tribos, permitindo ligar diferentes
grupos humanos entre si. Conseqüentemente, nas sociedades tradicionais, o matrimônio não é uma
coisa que o indivíduo decida por si mesmo. Ele sela uma aliança entre dois grupos de parentesco que,
independente do modo de filiação, estão invariavelmente sob controle masculino:

A relação global de troca que constitui o casamento não se estabelece entre um


homem e uma mulher como se cada um devesse e cada um recebesse alguma
coisa. Estabelece-se entre dois grupos de homens, e a mulher aí figura como um
dos objetos da troca, e não como um dos membros do grupo entre os quais a
troca se realiza. (...) o laço de reciprocidade, que funda o casamento, não é
estabelecido entre homens e mulheres, mas entre homens por meio de mulheres,
que são somente a ocasião principal 111.

110
RIVIÈRE, 2000, p. 70
111
LEVI-STRAUSS, 1982, p. 155

44
Mas por que as mulheres são tão valorizadas nessas sociedades a ponto de serem quase uma
espécie de moeda corrente? Lévi-Strauss (1982) revela que nas sociedades tradicionais existe uma
relação entre as transações econômicas e as trocas matrimoniais: as mulheres são comparadas a bens
intercambiáveis, ou seja, as mulheres, por sua relativa escassez nas sociedades tradicionais – seja por
desequilíbrio demográfico ou por razões culturais, como o infanticídio seletivo das meninas –
constituem-se no supremo bem econômico, a “mercadoria” mais cobiçada. São, na verdade,
extremamente valorizadas em virtude da importância econômica que assume a divisão das tarefas
domésticas nessas sociedades. E aqui tocamos num ponto fundamental. Enquanto na nossa moderna
sociedade as diferenças entre solteiros e casados, no que respeita ao aspecto econômico, são mínimas,
nas sociedades tradicionais a importância econômica do enlace matrimonial assume uma enorme
dimensão. Explicando melhor, nas sociedades ágrafas pré-industriais a especialização técnica e a
divisão sexual do trabalho, isto é, das tarefas específicas de homens e mulheres, são bem delimitadas,
com cada um dos sexos dedicando-se a produção de diferentes tipos de alimentos e de artefatos. Daí
porque nesses grupos, especialmente naqueles em que a família nuclear tem grande peso, a
importância econômica do casamento é bastante acentuada. A família não é apenas uma união
sexual, mas uma unidade de cooperação econômica que envolve todos os seus membros: marido,
esposa, filhos e eventuais agregados. O casal depende muito um do outro para uma alimentação
regular e balanceada, coisa mais eficazmente alcançada no âmbito da família conjugal, como pôde
constatar o próprio Lévi-Strauss, em 1938, durante sua estada entre os índios Nambiquaras do Brasil
Central:

Para compreender bem a atitude dos dois sexos, um para com o outro, é
indispensável ter presente no espírito o caráter fundamental do casal entre os
Nambiquaras, é a unidade econômica e psicológica por excelência. Entre esses
bandos nômades que se fazem e desfazem sem cessar, o casal surge como uma
realidade estável (pelo menos teoricamente); é também ele, apenas, que permite
assegurar a subsistência dos seus membros. Os Nambiquaras vivem sob uma
economia dupla: de caçadores e lavradores, por um lado, de colhedores e
apanhadores, pelo outro. A primeira é assegurada pelo homem, a segunda pela
mulher. Enquanto o grupo masculino parte, durante um dia inteiro, para a caça,
armado com arcos e flechas, ou vai trabalhar nos campos, durante a estação das
chuvas, as mulheres, munidas com o pau de cavar, vagueiam com as crianças,
através da savana, e apanham, (...): sementes, frutos, sebes, raízes, tubérculos,
ovos e pequenos animais de todas as espécies. Quando a mandioca está madura e
enquanto há, o homem traz um fardo de raízes, que a mulher rala e espreme,
para com ele fazer bolos, e, se a caça foi proveitosa, cosem-se rapidamente os
bocados dos animais caçados112.

Nesses tipos de sociedade, quando um solteiro não tem sorte na caça pode ficar seriamente
privado dos alimentos vegetais, já que o cultivo, coleta ou processamento desses são usualmente
tarefas femininas. Citando novamente Lévi-Strauss, desta vez em outra obra:

Uma das impressões mais profundas que guardamos (...) numa aldeia indígena
do Brasil Central, [foi] de um jovem acocorado horas inteiras no canto de uma
cabana, sombrio, mal cuidado, terrivelmente magro (...). Observamo-lo vários
dias seguidamente. Raramente saía, exceto para caçar, solitário, e quando em
redor das fogueiras começavam as refeições familiares teria quase sempre
jejuado se uma vez ou outra uma parente não colocasse a seu lado um pouco de

112
LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 271

45
alimento, que ele absorvia em silêncio. Quando, intrigado com este singular
destino, perguntamos finalmente quem era este personagem, a quem atribuíamos
alguma grave doença, responderam-nos rindo de nossas suposições: ‘é um
solteiro’. (...). O solteiro miserável, privado de alimento nos dias em que, depois
de infelizes expedições de caça ou de pesca, o menu limita-se aos frutos da
colheita e da apanha, às vezes da jardinagem, femininos, é um espetáculo
característico da sociedade indígena113.

Quando um solteiro não tem sorte na caça pode ficar em apuros, pois se vê na contingência
de depender dos alimentos vegetais cultivados ou coletados pelas mulheres, já que essas são tarefas
femininas. De um modo geral, então, para os grupos primitivos, é imprescindível não somente ter-se
uma mulher, mas também é um costume valorizado ter, se possível, mais de uma esposa, pois quanto
mais mulheres um homem tiver melhor será sua situação material, já que terá à sua disposição mais
esposas trabalhando e realizando para si as tarefas domésticas próprias da condição feminina. Daí
porque mulheres e filhos são bens extremamente valorizados nessas sociedades. A monogamia não é,
portanto, natural entre os humanos e sua presença ou predominância nas sociedades arcaicas decorre
mais da ausência de privilégios econômicos e da baixa densidade demográfica. Geralmente a
poliginia é mais comum entre os chefes, pajés ou homens que se destacam na caça, mas não é raro
que as mulheres de um mesmo marido sejam irmãs. Mas quanto mais complexo é o nível
socioeconômico de uma sociedade, mais freqüente é a presença do casamento poligâmico de um
homem, com bom prestígio ou projeção social, com mais de uma mulher. Pelo visto, pode-se deduzir
que não é o sexo a principal motivação para o casamento nessas sociedades, pois, como relatamos, a
sexualidade pré-marital é uma prática mais ou menos liberada. O que na realidade exerce maior
pressão para estabelecimento de laços conjugais mais sólidos entre os parceiros é justamente a
necessidade de cooperação econômica. Sendo assim, em quase todas as sociedades tradicionais,
qualquer que fosse a forma de união dos sexos, o casamento era, e é, uma imposição das
circunstâncias impostas pela necessidade de sobrevivência 114. O homem solteiro é considerado meio
homem e o celibato é considerado quase como uma maldição na medida em que a pessoa que não tem
um parceiro para dividir as tarefas de subsistência arrisca-se a passar por severas privações.
Mas apesar das vantagens mútuas que o casamento pode trazer para o casal, não se deve
exagerar sua relevância ou constância nas sociedades tradicionais. De um modo geral, apenas uma
pequena proporção dos casamentos são para toda a vida e poucas dificuldades existem para o
divórcio. Em muitas dessas sociedades as uniões raramente perduram mais que alguns anos, sendo
porém comum uma pessoa contrair vários casamentos durante a vida – mas será que em nosso meio
artístico televisivo é diferente? Entre os índios Kayapó do Pará, por exemplo, o casamento e divórcio
são bastante informais. A vida sexual de rapazes e moças começa bem cedo, mas:

Embora chamem os parceiros sexuais de ‘marido’ e ‘esposa’, tais


relacionamentos são muito flexíveis. Somente quando nasce um filho o
casamento se torna mais estável. Mesmo depois de ter um filho o sexo fora do
casamento é muito comum, e os casais se separam com facilidade. Se a mulher
não quer mais morar com o homem, apenas coloca os pertences dele fora da
casa. Se o marido quer a separação, basta que apanhe seus pertences e os
deposite na casa dos homens situada no centro da aldeia ou na casa de suas
irmãs115.

113
LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 79
114
LÉVI-STRAUSS, 1982
115
WERNER, 1987, p. 112

46
Não por acaso, então, os laços de afeto mais fortes e duráveis em muitas dessas sociedades
eram entre mãe e filho e entre irmão e irmã, e não exatamente entre marido e mulher. Em
conseqüência de uma vida sexual mais ou menos livre, nem sempre uma mulher podia determinar o
pai de seu bebê. Todavia isto também não a preocupava, pois tanto ela quanto o filho eram
resguardados – dependendo do tipo de descendência – por seu pai, tio ou irmão, mas, de todo modo,
pelo clã.
Mas o que vimos até aqui foi, essencialmente, o modo como se estruturam o parentesco e o
casamento em sociedades tradicionais, ou onde as uniões conjugais ainda desempenham importante
papel político como meio de intercâmbio e aliança matrimonial entre diferentes famílias ou grupos.
Passemos agora a ver como o parentesco e o casamento estão organizados em nossa própria
sociedade para podermos fazer algumas comparações.
O sistema de parentesco predominante nos países ocidentais modernos, incluindo o Brasil,
apresenta, é claro, muitas nuanças, mas alguns traços comuns são distinguíveis. Em primeiro lugar, a
linha de descendência, que define e classifica os parentes, é cognática ou bilateral, sendo
considerados igualmente como parentes os tios, primos e avós tanto por parte de pai quanto de mãe,
ou seja, inclui toda pessoa com a qual o indivíduo tem alguma ligação genealógica. Este arranjo
abarca os consangüíneos, mas também cria os chamados parentes por afinidade, como, por exemplo,
o marido de minha tia, irmã de minha mãe, ao qual posso chamar familiarmente de “tio”. Este
sistema de filiação bilateral (paterno e materno) que tem como base o casamento monogâmico e como
modelo a família nuclear, se por um lado é altamente adaptado às situações mutantes ou instáveis das
sociedades urbanas modernas, por outro reflete a falta de coesão estrutural fora do círculo interno da
família conjugal e o papel secundário, em certos casos até mesmo irrelevante, que o grupo de
parentesco exerce nas relações sociais ordinárias dessas sociedades. Enquanto nas sociedades
tradicionais a organização social e as relações interpessoais são determinadas pela estrutura de
parentesco, e até se confunde com ela, em nossa sociedade o parentesco, embora também seja um
organizador social, não predetermina automaticamente o status de um indivíduo no renque social nem
as relações sociais cotidianas. Fora da família nuclear imediata, as inter-relações do indivíduo,
excluindo os amigos ou conhecidos mais chegados, costumam ser impessoais, fugazes ou transitórias.
O número e a composição do grupo de parentesco mais próximo pode variar de família para
família, mas usualmente é formado pela parentela que costuma se encontrar regularmente nas
ocasiões rituais ou festivas (batizados, casamentos, aniversários, confraternização natalina, enterros
etc.) ou nas reuniões familiares informais. Em que pese eventuais brigas ou dissensões internas, as
pessoas da rede familiar são as primeiras à que se recorre em épocas de dificuldades, constituindo um
grupo de ajuda mútua116.
O estilo de vida individualista e autônomo implantado pelo modo de produção massificado do
capitalismo industrial e pela vida atomizada nas grandes cidades e metrópoles modernas modificou
em poucas gerações os valores e os códigos familiares e sexuais da sociedade ocidental. Para isso
muito contribuiu a urbanização, o aumento do nível de instrução, as novas relações de trabalho
abrangendo ambos os gêneros, as ideologias liberais e socialistas, bem como a psicanálise freudiana,
ao derrubar cientificamente uma série de tabus sobre a sexualidade e demonstrar o caráter normal e
saudável do sexo na vida do indivíduo. Com a chamada “revolução sexual” dos anos 60, a liberdade
sexual e os métodos contraceptivos transformaram significativamente as relações de intimidade
cotidiana e os padrões morais vigentes. O individualismo, o hedonismo e a exaltação da liberdade
pessoal como estilo de vida – divulgados pelo cinema, revistas e depois pela TV – fizeram com que
os jovens não se submetessem mais aos tradicionais costumes paternalistas, que passaram a ser
criticados e considerados antiquados.

116
HOEBEL & FROST, 1984

47
Ao contrário do casamento nas sociedades tradicionais ou patriarcais– usualmente acertado
entre famílias e caracterizado pela troca direta restrita ou indireta generalizada de nubentes – em
nossa moderna sociedade urbano-industrial ocidental o casamento é caracterizado pelo amplo e livre
direito do indivíduo escolher o parceiro nupcial. Teoricamente pode-se casar com qualquer pessoa
que não seja um parente consangüíneo, podendo a mesma pertencer inclusive à outro segmento ou
categoria social, o que não significa dizer que não haja preferências ou barreiras decorrentes de
questões de classe, raça, religião ou nível de instrução. Mas em qualquer caso, a escolha do par e o
casamento são, em princípio, um assunto pessoal: a decisão é baseada na livre escolha da pessoa,
sendo o envolvimento emocional e/ou a paixão amorosa – e não as convenções sociais ou os
interesses familiares – a motivação ou justificação da união. Os filhos não solicitam nem prescindem
do consentimento dos pais para casar, embora desejem sua aprovação.
No enlace matrimonial não está presente a idéia de aliança entre famílias ou grupos, sendo a
união marital, antes de mais nada, um assunto que diz respeito primordialmente aos noivos.
Obviamente, isto não significa dizer que não existam interesses envolvidos, pois em qualquer
casamento pesam uma série de considerações simbólicas, socioculturais e econômicas, mas elas se
tornam mais ponderáveis quando envolvem riquezas e posição social. Os casamentos de pessoas bem
situadas socialmente ou de classe alta, por exemplo, freqüentemente envolvem a busca de projeção
social, a manutenção de status e arranjos nupciais convenientes ou coniventes com os interesses
socieconômicos familiares dos nubentes. Na realidade, quanto mais rica a pessoa, maiores
implicações sociais e jurídicas terá seu casamento, pois o que está em jogo é o futuro de seu
patrimônio e o legado de sua herança.
Embora a necessidade de compartilhar as tarefas domésticas também se apresente, não se
casa para arranjar um parceiro para dividir os afazeres do lar, pois nas sociedades mais
desenvolvidas do mundo moderno – caracterizadas pela complexa divisão do trabalho e com homens
e mulheres equiparando-se nas funções, papéis, posições e ocupações profissionais – a diferenciação
entre solteiros e casados, no que se refere à subsistência econômica e à autonomia financeira,
tornaram-se mínimas. É preciso lembrar que até os anos 50-60 do século XX competia sempre ou
principalmente ao homem desempenhar, no modelo burguês de família, o papel de chefe da família e
sustentar a casa, sendo o marido considerado o provedor da família. Já a mulher deveria ser uma boa
dona-de-casa para cuidar do lar, cabendo-lhe ainda a maior parte da responsabilidade na educação
dos filhos. Neste caso, como ambos os gêneros tinham papeis sociais bem definidos, a estabilidade do
casamento era favorecida pelo fato do casal depender muito um do outro. Tudo isso mudou com a
entrada da mulher no mercado de trabalho em todos os ramos da economia, que por isso não só pôde
adquirir autonomia financeira como também passou a priorizar sua ascensão profissional em pé de
igualdade com o homem. Além disso, o fato de terem um emprego facultava aos cônjuges a decisão
de manterem ou não a união quando um dos dois estivesse insatisfeito com a relação. Na realidade,
em muitos casos, o casal pode até se separar se ambos não conseguirem compatibilizarem suas
carreiras profissionais com a vida conjugal. O divórcio, da mesma forma que o casamento, diz
respeito às duas partes e pode ser solicitado por qualquer uma delas. O casamento formal, legal,
nunca foi a tônica predominante nas famílias das camadas mais baixas da sociedade, mas hoje até
nas classes médias aumenta cada vez mais a coabitação sem compromisso, isto é, de casais que
moram juntos sem o vínculo nupcial da lei. No Brasil tais uniões eram apenas 6,5 % em 1960, mas
em 1995 já representavam 23,5 % dos casamentos117. É preciso ter em mente que até meados do
século XX, o divórcio não era comum ou mesmo permitido em muitos países, mas, nos dias atuais,
os laços que prendem o vínculo conjugal em nossas sociedades são semelhantes aos de muitos povos
tradicionais, isto é, são relativamente fracos e facilmente rompíveis.

117
BERQUÓ, 1998

48
Entretanto, a característica mais evidente da vida familiar moderna é que são múltiplas e
variadas as formas que a família pode assumir, sendo o tradicional modelo de união nuclear (pai-
mãe-prole) apenas um dos arranjos familiares possíveis na sociedade contemporânea. Ao estudar a
evolução da família brasileira nas últimas décadas, a pesquisadora Elza Berquó constatou que as
relações entre os sexos se tornaram menos assimétricas e houve uma tendência “à passagem de uma
família hierárquica para uma família mais igualitária”118. Observou também que se é verdade que a
família nuclear ainda é o modelo ideal de família cultivado em nossa sociedade, a realidade nos
mostra que existem e coexistem diversas formas de organização familiar no atual quadro da vida
urbano-industrial, inclusive os arranjos monoparentais: um dos pais morando com os filhos, contando
ou não com outros parentes. Um exemplo é o aumento do número de lares mantido por mulheres sem
a presença do marido. Dados do IBGE referentes ao ano de 1998 demonstraram que 25,9% das
famílias brasileiras eram chefiadas por mulheres, o que não é tão surpreendente se considerarmos que
com a ruptura do casamento quase sempre é a mulher que fica encarregada de cuidar dos filhos. Por
outro lado, tais chefes de família enfrentam maiores dificuldades e desvantagens no mercado de
trabalho119.
Contudo, em muitos lugares do país este tipo de arranjo assume formas peculiares. Num
estudo sobre os papéis sexuais e as relações de parentesco realizado entre camadas pobres da
periferia de Salvador, Bahia, o antropólogo Klaas Woortman demonstrou que a família doméstica era
predominantemente matrifocal, isto é, centrada nas mulheres em geral e nas mães em particular,
sendo os homens tanto cultural quanto estruturalmente marginais. Este sistema foi considerado uma
adaptação de padrões africanos de vida familiar às condições econômicas locais. Como articuladoras
das redes familiares de parentesco, as mulheres exercem grande influência na direção de seu grupo
doméstico. Em caso de dissolução da união conjugal, é com a mãe que os filhos ficarão, pois o
elemento central tanto da organização quanto da ideologia familiar é a união mãe-filho; a mulher
pode ter vários companheiros durante a vida, mas é este vínculo forte que permanece. Woortman
revela também que a luta pela sobrevivência em condições adversas de privação material e a busca de
estabilidade econômica levou as mulheres pobres baianas a desenvolverem estratégias peculiares de
parceria conjugal:

À primeira vista, pareceria que o ‘abandono’ por parte do marido ou


companheiro é a causa da instabilidade conjugal, pois subitamente uma mulher
se vê face à situação de ter de sustentar sozinha a si mesma e a seus filhos. Mas,
na verdade, é raro que esta mulher se veja sozinha. Ela é, (...), uma construtora e
uma articuladora de redes de parentesco. Ademais, com muita freqüência, não é
a mulher que é abandonada, mas é ela, com o apoio de sua rede de parentesco
que se descarta de um companheiro ‘anti-econômico’, eliminando um ‘peso-
morto’, que teria de ser sustentado por sua rede de parentesco, na qual ele é,
afinal, um estranho. Contrariamente, se ele é um ‘homem de recursos’ ou
mesmo um ‘homem sério’, pobre mas trabalhador, ganhando pouco mas
ganhando sempre, ele é adicionado a essa rede como um de seus contribuintes.
(...). Mudar de companheiro é uma estratégia no sentido de ter sempre em casa
um homem que seja um contribuinte ativo. Pela rotação de parceiros, elas
procuram ter sempre um contribuinte ‘produtivo em casa’ (...). Se a mulher
encontra um ‘homem de recursos’ ou um ‘homem sério’, ela inverte a estratégia
passando a cultivar a estabilidade conjugal, e deixando o marido ‘cantar de
galo’120.

118
BERQUÓ, 1998, p. 415
119
BERQUÓ, 1998
120
WOORTMAN, 1987, p. 303-304

49
Além da diminuição ou efemeridade das uniões conjugais, outra tendência do modo de vida
familiar moderno é o crescente índice de pessoas solteiras ou que vivem só. Já em 1988 constatou-se
que na Grã-Bretanha 25% das residências eram ocupadas por um único indivíduo, e desde então esse
número tem aumentado. As estatísticas demonstram que o mesmo ocorre em outros países da Europa
– na Suécia é de 40% – e nos EUA, onde 26% dos domicílios são constituídos de apenas um
morador. Em Paris este indicador ronda os 50% das habitações. No Brasil já são quase 10%. Ao
mesmo tempo, diminui aceleradamente o índice de natalidade no primeiro mundo: na Alemanha, e na
Europa como um todo, o número de casais sem filhos é cada vez maior.
O casamento na sociedade ocidental é legalmente monogâmico, mas a poliginia ainda é uma
das mais freqüentes formas de casamento – sendo registrada em 980 das 1154 sociedades humanas
registradas pelos antropólogos – estando presente principalmente em muitos países da África e nos de
religião islâmica. Todavia, em quase metade dessas sociedades ela é apenas ocasional e mesmo onde
é mais comum é sempre um privilégio reservado aos homens de melhores condições financeiras e/ou
de melhor posição social que têm condições de mantê-la. Em muitos desses países as mulheres com
certo nível de instrução não aceitam que seus maridos escolham outra esposa. Entretanto, não
devemos idealizar o sistema de casamento nas sociedades ocidentais, o que existe na realidade é uma
monogamia seriada, permitida, entre outras razões, pela facilidade do divórcio. De qualquer forma,
em sociedades com ideologias igualitárias e democráticas e também com menores contrastes
econômicos, a monogamia é a regra geral, sendo a poliginia uma característica de sociedades
altamente estratificadas:

Laura Betzig demonstrou que, nas sociedades pré-industriais, a extrema


poliginia anda de mãos dadas com a extrema hierarquização política, e atinge o
ápice nos regimes mais despóticos. (Entre os zulus, cujo rei pode monopolizar
mais de cem mulheres, o ato de tossir, cuspir ou espirrar à sua mesa podia ser
punido com a morte). E a distribuição de recursos sexuais por posição política
tem sido muitas vezes refinada e explícita. Na sociedade inca, os quatro cargos
políticos de subchefe e chefe dividiam tetos de sete, oito, quinze e trinta
mulheres, respectivamente. Faz sentido que à medida que o poder político se
tornou mais amplamente distribuído, o mesmo ocorreu com as esposas. A
amplitude mais recente é um-homem-um-voto e um-homem-uma-esposa. Ambos
caracterizam a maioria das nações industrializadas contemporâneas 121.

Com a expansão do modo de produção capitalista, da civilização industrial, da urbanização e


dos padrões culturais ocidentais pelo resto do mundo, os modelos de organização familiar de muitas
sociedades tradicionais passaram a sofrer grandes alterações. Em muitos países do Terceiro Mundo,
os novos valores morais trazidos pela modernidade vieram abalar, em maior ou menor grau, os
velhos sistemas familiares: entre eles podemos arrolar o enfraquecimento da poligamia, a preferência
da residência neolocal pelo casal, o direito de escolher os parceiros nupciais, a liberdade sexual pré-
marital, o aumento dos solteiros e divorciados, o crescimento do número de pessoas que vivem só, a
queda da natalidade e o direto da mulher trabalhar fora e ter sua própria vida profissional. Pelo visto,
o modo de vida tecno-industrial estaria contribuindo para criar, pelo menos nos grandes centros
urbanos do mundo, um “modelo familiar universal” baseado na família nuclear e na mobilidade do
casal122.

VIII. O Folclore

121
WRIGHT, 1996, p. 76
122
LABURTHE-TOLRA & WARNIER, 1997

50
A palavra deriva do inglês Folk (povo) e Lore (saber, conhecimento) e foi cunhada em 1846
por William Thoms para designar um “saber popular” transmitido pelas tradições orais e pelos
costumes em oposição a um saber erudito, ensinado através da instrução organizada nas escolas e
livros. Na antropologia, o termo refere-se ao estudo das formas não escritas das tradições populares.
Para o grande folclorista brasileiro Câmara Cascudo (1898-1986), o fato folclórico se caracterizaria
por quatro elementos básicos:
a) antiguidade: os fenômenos folclóricos se distinguem por serem costumes com uma longa tradição
temporal ou histórica no seio de uma sociedade, às vezes com séculos ou milênios, por exemplo: o
carnaval;
b) persistência: um fato antigo e popular numa época, porém esquecido em outra, não é folclore. A
autêntica tradição folclórica tem raízes e continuidade na memória popular;
c) anonimato: o folclore é de criação coletiva e não de um autor em particular. O que não significa
que não haja uma interação dinâmica entre o indivíduo e sua tradição cultural;
d) oralidade: o folclore é transmitido oralmente e incorpora-se na memória coletiva e popular através
da tradição oral. O que não impede que seja registrado pela escrita ou por outros meios de
documentação.
Para efeitos analíticos podemos dividir os fatos folclóricos em festas, bailados, mitos e
lendas, danças, recreações, músicas, ritos, sabedoria popular: a “sabença” (crendices, orações,
simpatias, encantamentos, rezas, medicina curativa etc.), linguagem (inclui tanto a “literatura oral” –
cantos populares, canções de ninar, provérbios, adivinhações etc. – quanto a literatura escrita – como
é o caso da riquíssima literatura de cordel) e artes e técnicas populares (culinária, artesanato,
bordado etc.).
Nas atuais sociedades urbano-industriais, o folclore, enquanto cultura popular, também está
presente nas modernas cidades e metrópoles, mas ao seu lado, e freqüentemente sobrepondo-se a ele,
impõe-se a cultura de massa ou de consumo, a chamada “industria cultural” baseada nas regras de
mercado capitalistas. As músicas, danças, discos, micaretas, festas, festivais, modas, obras de arte,
comportamentos, gostos e outras manifestações culturais acabam virando mercadorias para serem
consumidas de forma rápida e massificada como qualquer outro produto. Os objetos são produzidos
em série e em escala industrial e os eventos tradicionais são promovidos ou patrocinados como
grandes shows turísticos ou empresariais, veja-se o caso do carnaval na Bahia e no Rio de Janeiro.

IX. Raciologia

A antropologia atual reconhece que não existe um conceito preciso de raça, pois qualquer
definição de raça mostra-se incapaz de abarcar todas as variações somáticas existentes entre os
diversos grupos e subgrupos humanos. Até porque não existe e nem nunca existiu uma raça pura,
sendo as características físicas dos diferentes povos definidas arbitrariamente. Os estudos genéticos
evidenciaram ainda mais a impropriedade do conceito biológico de raça, portanto, a sua utilização só
se justifica devido ao seu conteúdo social, ou seja, raça é um conceito construído socialmente para se
construir identidades étnicas e culturais. Em outras palavras, a definição de raça é mais ideológica do
que biológica, mais social do que genética. Pode-se, contudo, admitir que “raça”, num sentido amplo,
seja uma grande divisão do gênero humano cujos membros apresentem certas características
fenótipicas mensuráveis de traços herdados de ancestrais comuns, isto é, “populações que possuam
somas de genes nas quais certos genes ocorram em freqüências diferentes das suas freqüências em
outras populações”123. Constituiriam, assim, uma parcela da humanidade que compartilharia uma
herança genética comum decorrente exclusivamente de seu isolamento e das pressões ambientais de
seu habitat. Os critérios são unicamente físicos (tonalidade da pele, estatura, textura do cabelo,

123
HOEBEL & FROST, 1984, p. 31

51
formas do rosto e do crânio, grupo sangüíneo etc.) e não implicam em diferenças quanto à
inteligência e capacidade intelectual. Para melhor compreensão desse assunto, devemos apresentar
alguns conceitos biológicos:
a) biótipo: grupos de indivíduos que possuem o mesmo genótipo, ou seja, a mesma constituição
hereditária fundamental, sendo, por isso, geneticamente iguais.
b) genótipo: totalidade dos genes de um indivíduo ou grupo de igual constituição genética; genoma.
c) fenótipo: indivíduos com características ou aspecto exterior geral determinado por seu genótipo e
pelas condições mesológicas, diferindo de outros de sua espécie somente por certos traços exteriores
da aparência.
Como as diferenças exteriores dos seres humanos são decorrentes unicamente das
freqüências diferentes para determinados genes, toda a humanidade constitui uma única espécie,
sendo todos os seus membros biologicamente iguais, pois apresentam:
a) interfecundidade sexual (intercâmbio de genes);
b) diferenças morfológicas e não fisiológicas, ou seja, fenótipicas e não genótipicas. As diferenças
somatológicas e bioquímicas são mínimas. Filosoficamente diria-se que são ontologicamente iguais;
c) as características fenótipicas apenas atestam a natureza plástica da constituição física e somática
dos seres humanos.
Pelo que foi exposto, não existe base para qualquer tipo de discriminação racial,
comportamento cientifica e moralmente insustentável.
De um modo geral, tem-se classificado a humanidade em quatro grandes troncos raciais:
1. Caucasóide: europeus (nórdicos, eslavos, mediterrâneos e lapões), semitas (árabes e judeus),
iranianos, afegãos e hindus do norte.
2. Mongolóide: chinês-coreano, japonês, mongóis, asiáticos do sudeste (Insulíndia e Indochina),
esquimós, tibetanos, índios americanos.
3. Negróide: africanos (sudaneses, camitas, bantus, khoisans, pigmeus), dravidianos (Índia),
melanésio-papuanos, negrilhos do sudeste asiático.
4. Australóide: aborígines australianos.
Os diferentes grupos étnicos particulares pertencentes a essas grandes divisões constituem
povos cujas peculiaridades fenótipicas distintivas decorrem essencialmente do ambiente específico ao
qual se adaptaram e se desenvolveram de forma mais ou menos isolada durante longas gerações.

Aos meus alunos


QUEM LÊ: questiona mais; sabe mais; pensa melhor;
melhora seu vocabulário; compara ideias; tem o que
falar; tem o que responder; fundamenta suas opiniões;
aumenta sua compreensão; absorve as experiências; sabe
o que está acontecendo...

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