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07/12/23, 11:27 Notícias | LIESA - Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro

A carta de Luís Gama à luta de sua mãe

Através de seu filho, Luis Gama, sonhamos com uma carta onde o importante abolicionista responde sua mãe sobre o legado da memória que ela deixou: o livro.

Narrar essa história é como narrar a busca pelo sentido da nossa existência enquanto sujeitos negros ativos neste Brasil. Por que somos? Por que assim fazemos? Por
quem lutamos? Em memória do que?

A saga de uma mulher que incorpora-se a tantas outras que lhe atravessam, ensinam e revigoram, em um legado de persistência na insistência de sobreviver. Inúmeras
trajetórias diferentes, vivenciadas por gerações e gerações de escravizados ao longo dos anos, e sabemos, até hoje por todas as mulheres que nasceram com este “defeito
de cor”. Precisamos não apenas nos espelhar nesta imagem, mas, principalmente, valorizar as descendentes desses movimentos de coragem por amor à continuidade.

O título, “Um Defeito de Cor”, é baseado no artifício da dispensa do defeito de cor usado por negros no século passado que, quando acatado, os permitia exercer cargos
de importância na religião, governo e na política. É justamente esta característica, a da cor, que posiciona os personagens do novo enredo da Portela para o próximo
carnaval. Caminhos, histórias e consequências que apenas se explicam por serem vivenciadas por sujeitos negros no Brasil, conforme explica o carnavalesco André
Rodrigues.

“O livro nos entrega uma história que entendemos que se confunde muito com a história de tantas outras mães negras que tem suas experiências maternas atravessadas
pela questão racial; conseguimos compreender as marcas da violência histórica que justifica, inclusive, sobre as nossas experiências com as nossas mães”, diz
Rodrigues.

“A gente se coloca no lugar desse filho que compreende o tamanho da importância de sua mãe por ser uma mulher tão ativa buscando um Brasil melhor, buscando seu
próprio reconhecimento, sua ancestralidade, sua identidade e, também, sua individualidade. Os reflexos que separam esses dois são, na verdade, resultados de um
sistema racista e escravocrata. É uma verdadeira história de amor e reconhecimento. Puro Afeto”, finaliza.

Leia a sinopse:

Um Defeito de Cor

Argumento

Para o carnaval de 2024, o sonho da GRES Portela está baseado no principal fator simbólico que dá consistência para ela ser o que é e chegar onde chegou: O Afeto.
Ancestralidade cultuada no sagrado feminino, no terreiro da mãe de todas as outras que vieram depois, a Iyá centenária.Para o carnaval de 2024, o sonho da GRES
Portela está baseado no principal fator simbólico que dá consistência para ela ser o que é e chegar onde chegou: O Afeto. Ancestralidade cultuada no sagrado feminino,
no terreiro da mãe de todas as outras que vieram depois, a Iyá centenária.

Baseado no romance “Um Defeito de Cor”, da escritora Ana Maria Gonçalves, o enredo traz uma outra perspectiva, refazendo os caminhos imaginados da história da
mãe preta, Luiza Mahim. Essa poderia ser a história da mãe de qualquer um de nós, ou melhor dizendo, é a história das negras mães de todos nós.

Escolhemos este tema, que será contado através deste enredo, por entender a importância e a necessidade de celebrar e cultuar na arte, na cultura, junto do maior
mecanismo de comunicação deste país (os desfiles das escolas de samba), a trajetória de uma negra matriarca que se confunde a tantas outras até os dias de hoje.
Precisamos não apenas nos espelhar na história, mas principalmente valorizar as descendentes desses movimentos de coragem por amor à continuidade. Através de seu
filho, Luiz Gama, sonhamos com uma carta onde o importante abolicionista responde a sua mãe sobre o legado da memória que ela deixou: o livro.

Através de seu filho, Luiz Gama, sonhamos com uma carta onde o importante abolicionista responde a sua mãe sobre o legado da memória que ela deixou: o livro.

Afastados enquanto ele ainda era menino, o desenvolvimento demonstra o tamanho do orgulho que o mesmo sente das façanhas de sua heroína. Narrar essa história é
como narrar a busca pelo sentido da nossa existência enquanto sujeitos negros ativos neste Brasil. Por que somos? Por que assim fazemos? Por quem lutamos? Em
memória do que?

Nossos passos vêm de longe e necessitamos honrar cada pegada trilhada na dor que é ser uma negra na história afro-brasileira. Identidades plurais que são moldadas a
todo tempo. A saga de uma mulher que se incorpora a tantas outras que lhe atravessam, ensinam e revigoram, em um legado de persistência na insistência de sobreviver.
Inúmeras trajetórias diferentes, vivenciadas por gerações e gerações de escravizados ao longo dos anos, e sabemos, até hoje por todas as mulheres que nasceram com
este defeito de cor.

“Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor é a origem da riqueza de
milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão, tão semelhante à da terra, abriga, sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo
sagrado da liberdade“. – Luiz Gama

A Carta

Minha mãe, aqui quem te escreve é Omodunte. Recebi a carta que me deixaste. Sim, estou de volta. Vim com o vento, tal qual um Abikú Fefee, inesperadamente.
Lembrando das histórias que me contava, estou tal qual um pássaro, como se voasse, buscando em minha cabeça cada lugar que pisou, capaz de ser você em cada
encontro que tivesses nesses longos anos.

Até hoje quando repasso tuas memórias, procuro ter olhos de Daomé, olhos de jeje, olhos de águia (que era o espírito preferido da mãe de vossa mãe). Agarro-me ao
poder de sentir o cheiro, de ouvir o som, de sentir a terra sob meus pés, de ver as famílias no mercado, os bichos que correm, o barulho das crianças e a calmaria no fim
da tarde – mas nunca serei capaz de imaginar tudo o que sentiste na pele.

Sou capaz, minha mãe, de sentar à sombra de uma árvore qualquer e pensar ser uma gameleira, um Iroko, e dali mesmo ver a ti, sorrindo e brincando, com tua irmã
Taiwo, como todo Ibeji deve ser. Ibejis, como bem me ensinou, trazem boa sorte e riqueza para a família em que nascem. E que sorte a tua ainda ter vivido e aprendido
com as tuas mais velhas.

Luiza, minha mãe, todas as vezes que fui ao mar eu vislumbrava o manto de Iemanjá, enxergava as ondas tecer o pano que usava Durójaiyé, minha ancestral, raiz da
nossa árvore. Todas as vezes que eu fui ao mar, imaginei a dor que passou. O mar deveria ser negro, se não pela quantidade dos nossos que a ele foram jogados, talvez
pela solidão que ele causa em seu infinito incerto. A solidão, minha mãe, é negra feita a noite, mas a noite é uma mulher preta – e quem está com ela nunca está só.

Nesta carta eu te chamo pelo nome, Kheinde, teu verdadeiro nome, pois sei que muitos ainda vão lê-la e espero que não te confundam. Uma mulher negra pode ser feita
de muitas outras, mas não pode ser confundida, pois cada uma carrega sua própria história e devem ter o direito de contá-las. Tanto não são iguais que, aposto, minha
mãe, que muitas fizeram o mesmo ao chegar nos portos desta terra: jogaram-se ao mar. Muitas se jogaram para fugir, mas eu me vejo quando tu relata que pulaste nas
águas não apenas em busca da liberdade, mas principalmente para guardar tua memória, fugindo do batismo, procurando preservar o mais precioso bem que te restava:
a tua identidade.

Luiza do Mahin, quando chegaste a Salvador, ela não salvava ninguém: corrompia corpos, cortava laços, rompia almas. Era muito pagã para a tua santidade de menina
Jeje. Não há santos em Daomé que nomeiam meninas. Não nasceram divindades em Savalu. Ali surgiram forças, reis e rainhas que foi o que te ensinaram a cultuar e
dos quais eu sou herdeiro.

Honrar quem veio antes é o que faço. Eu sou porque tu fostes, minha mãe.

https://liesa.globo.com/noticias/230403-portela-lanca-enredo-para-2024.html 3/6

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