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Número - 2 | Dezembro 2020

tema de capa

VIOLENCIA
curiosidades republicanas

REI MORTO, REI DEPOSTO, SELO POSTO...

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editorial
O filme “2001 – Uma Odisseia no Espaço” consciencializou-nos que
a Violência acompanha a Espécie Humana, desde o instante em que
um dos primeiros hominídeos assassinou um dos seus semelhantes,
com recurso a um qualquer objeto, ocasionalmente transformado
em arma. Desde aí, a Violência não tem deixado de estar presente
nas Sociedades, adaptando a sua topologia aos paradigmas dos
sucessivos “Aqui e Agora”.

Também no Rito Francês, a Violência está presente em todos os Graus


e Ordens, alimentando o dramatismo dos Mitos que lhes dão corpo.

É, pois, ouvindo mentalmente os acórdãos musicais do “Assim falava


Zaratrusta”, de Richard Strauss, e recordando-me do gigantesco
obelisco negro, recreado por Stanley Kubrick no seu filme, que
escrevo este Editorial do segundo número da FANZINE, que tem por
tema principal precisamente a Violência, nos seus múltiplos aspetos.

Visando o Rito Francês a Emancipação do Maçon, numa Sociedade


mais Justa e mais Fraterna, para cuja Construção deverá tornar-se
agente ativo, não é surpreendente que numa Fanzine Maçónica de
um Soberano Capítulo, se proponham temas de reflexão que têm
diretamente a ver com a Cidade. Também não será surpreendente
que as ferramentas simbólicas propostas pelas Ordens de Sabedoria,
que foram concebidas numa perspetiva de Modernidade alimentada
pelos ideais das “Luzes”, possam continuar a possibilitar, mediante
reinterpretação, um suporte de reflexão eficaz, para uma abordagem
racional das questões que afetam o mundo atual.

Numa ótica de construção Republicana, não compete à Maçonaria


ser reativa à Sociedade – para isso existem os Partidos e os Sindicatos.
Incumbe-lhe sim, estar à frente do Tempo, por forma a poder
contribuir para que o Futuro nos traga avanços, e não retrocessos
civilizacionais, que possam elevar a Humanidade para patamares de
mais Liberdade, mais Igualdade, e mais Fraternidade.

Daí que procuramos, com o nosso nº 2 da FANZINE, possibilitar a


todos os nossos leitores uma reflexão mais aprofundada sobre este
tema, pela leitura das diversas opiniões propostas, que
poderão contribuir para uma melhor compreensão do
mundo atual, no que concerne a este aspeto. Tendo
presente que o pensamento será sempre estéril se
não lhe suceder a ação, tentemos neste e em todos os
temas que abordamos na nossa vida Maçónica, fazer
sempre o que nos recomenda Bergson: “Agir enquanto
Homens e Mulheres de Pensamento, e Pensar
enquanto Homens e Mulheres de Ação”.

Só assim, nestes tempos difíceis, poderemos


contribuir para ter mais, e melhor República.

Joaquim Grave dos Santos

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sumário

2
Editorial

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não há tolerância para com os que se alimentam de ódio

5
Os Medos e a Violência na Moderna Sociedade Líquida

12
Feminicídio. O que falta fazer?

18
Justiça e vingança
Usos e costumes nos princípios do século xx

23
Manifesto Progressivo Redux

29
Humildade
Valor fundamental do rito francês

32
Rei Morto, Rei Deposto, Selo Posto …

38
Degustações

publicação digital do diretor


SOBERANO ALBERTO LOURENÇO
CAPÍTULO FRATERNIDADE
ao Vale de Lisboa editor
JOAQUIM GRAVE DOS SANTOS
GRANDE CAPÍTULO GERAL
DE PORTUGAL conselho editorial
RITO FRANCÊS ANTÓNIO GARGATÉ
NUNO DIAS PEREIRA
NUNO DE SOUSA NEVES
PEDRO GONÇALVES
RICARDO GAIO ALVES

Contacto: fanzine81@gmail.com

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não há tolerância para com os que se alimentam de ódio
a 16 de outubro de 2020, Samuel Paty foi assassinado em Conflans-Sainte-
Honorine por alguém cujo nome não merece ser lembrado; a 29 de outubro,
três pessoas são assassinadas em Nice, no interior de uma basílica; a 2 de
novembro, quatro pessoas foram mortas e mais de vinte feridas num ataque
com arma de fogo, nas ruas de Viena

um assassinato é algo de hediondo, um homicídio é um crime e é sempre difícil


encontrar justificação para tais atos; mais difícil ainda será compreender ações
ditadas não por distúrbios emocionais, problemas psicológicos ou sociopatias
mal resolvidas, mas apenas porque sim, por quem não aceita a diversidade,
para quem a liberdade é palavra vã, pelos detentores da verdade que desejam o
fim da liberdade de consciência e, sobretudo, da liberdade de expressão

todas as sociedades, ao longo de gerações, já viveram tempos de


obscurantismo que chegue, já viram passar diante de si mortes e mortes
prepetradas em nome de deuses vários e da sua verdade absoluta – as crenças
e as convicções de cada um não poderão jamais pôr em causa a liberdade dos
outros e a convivência entre todos

defensores, desde sempre, dos valores da liberdade, igualdade e fraternidade


que a razão contrapõe ao dogma, lutadores por uma sociedade equatitativa
e laica, não podemos deixar passar em branco os crimes alimentados pelos
extremismos ou fundamentalismos, quaisquer que sejam as suas roupagens

para os que acreditam na possibilidade de um mundo mais justo para todos,


parece, por vezes, que ainda está tudo por fazer; e é por isso que na nossa
vida quotidiana, como cidadãos livres e empenhados, teremos de lutar
intransigentemente por princípios, por valores e pela educação na cidadania
que pode levar à sua consolidação

as instituições democráticas e republicanas têm de ser firmes, todos temos


de ser firmes, mais do que nunca, na denúncia e condenação dos atos
criminosos que visam minar a sua estabilidade atacando a base dos seus pilares
fundamentais, pela tentativa de instalação de um clima de terror

não há tolerância para com os que se alimentam de ódio


ALBERTO LOURENÇO

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tema de capa

OS MEDOS E A VIOLÊNCIA
NA MODERNA SOCIEDADE LÍQUIDA

Na atual sociedade, os sólidos da anterior “Modernidade Sólida” foram-se


liquefazendo. Os padrões alicerce da “Modernidade Sólida” tornaram-se
maleáveis, fluidos, e apesar de poderem assumir em cada momento uma
forma, ela não é constante, pois molda-se constantemente face a cada
circunstância. Entrámos na era da “Modernidade Líquida” na definição de
Zygmund Bauman. Os padrões, códigos e regras alicerces da “Modernidade
Sólida” constituíam amarras para a liberdade individual pois, eram “obrigações”
assumidas pelos indivíduos. A solidez dos laços da cidadania, da comunidade,
da tradição, do parentesco, impedia a livre escolha do individuo, ou seja, a
fluidez, que a nova sociedade requer. Esta fluidez assenta no desamarrar do
sólido, do permanente, do futuro previsível, das raízes, da forma constante, em
troca da forma inconstante, do momento, da escolha livre, e do individualismo.
A nova “Modernidade Líquida” apela ao desapego, à mutação permanente.
As velhas referências padrão da “Modernidade Sólida” como a classe social,
o bairro, a associação política, a família alargada, o clã, a Igreja e comunidade
religiosa, o próprio Estado, estão-se
paulatinamente diluindo, constituindo-
se, em grande parte, como instituições
“zombie”. A vida ultra-rápida e
moldável da “Modernidade Líquida”,
definitivamente não se coaduna
com estes parâmetros sólidos da
“Modernidade” anterior.

É um facto que, nunca houve ao


longo da história um sentimento de
tanta liberdade do indivíduo como
na “Moderna Sociedade Líquida”.
Quebradas as correntes dos padrões,
códigos e regras da sociedade
sólida, ele agora é livre de seguir o seu caminho sem impedimentos, isto é, de
escolher continuamente, entre as imensas oportunidades que se lhe abrem.
Mas o facto de ter deixado de ter os faróis balizares de orientação, implicou que
o indivíduo foi largado no vácuo da liberdade total da escolha que, contudo,
acarreta paralelamente, uma responsabilidade acrescida nas consequências.
Estas inúmeras oportunidades de escolha que o novo indivíduo pode optar em
liberdade, também acentuam o seu problema psicológico da angústia. Como
diz Sartre, no seu livro “O Ser e o Nada”: “É na angústia que o homem toma
consciência da sua liberdade” e mais afirma este filósofo: “Viver é isto: ficar-se
equilibrando o tempo todo, entre escolhas e consequências”.

O novo “Homem Líquido” perante o qual se abre um mundo de oportunidades


extra-territoriais, mas temporais, precisa de liberdade de escolha e precisa de
desapego. Compromissos a médio ou longo prazo deixam de fazer parte do
seu vocabulário, pois, requer-se um indivíduo “leve” e moldável na sua forma,
consoante as situações. O “moderno Homem Líquido” é fluido por natureza e
necessidade, e tem consciência das mutações constantes de uma sociedade
fluída, às quais se tem que adaptar. Não pode aceitar nada que o prenda
porque, as potenciais oportunidades que podem satisfazer os seus desejos

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surgem de qualquer lado, e a qualquer momento, e duram…. “um instante”.
As oportunidades surgem à velocidade de um “click eletrónico” e, têm que ser
respondidas, num mesmo “click”. A falta das balizas da “Sociedade Sólida”, que
davam ao indivíduo os parâmetros para a sua identidade, traduz-se em que o
“homem líquido” tem que se auto afirmar, tem que encontrar a sua identidade
por si mesmo, e à sua responsabilidade. Nessa tarefa, ele olha para a sociedade
procurando exemplos, valores e regras, que constituíam uma argamassa
suficientemente sólida, para utilizar na construção de uma identidade com
raízes duradouras. Todavia, o que o mercado tem para lhe oferecer são conceitos,
bens e serviços, para consumo e utilização imediata, de prazo de validade muito
perene, que o satisfazem num momento, e logo se esgotam. Então o indivíduo
percebe, que as identidades assim construídas também são fugazes, frágeis,
erigidas para consumo imediato. O “real” foi substituído pelo “aparente” ou, se
quisermos, pelo “virtual”. O indivíduo é acima de tudo um consumidor, e apenas
conta como tal. Tudo é vendável, porque
tudo é consumível. Porém, o consumo é, por
essência, uma atividade solitária mesmo que,
efetuada no meio de uma multidão.

Somos, pois, uns solitários no meio de uma


multidão de solitários!

A individualidade é um dos alicerces da


moderna sociedade líquida. Ela não só é
aceite e fomentada ao extremo como, é
absolutamente necessária. A predominância
do individualismo leva o indivíduo a
desconfiar do outro nesta sua competição.
A sua libertação, leva-o à indiferença. As
preocupações e cuidados dos indivíduos
enquanto indivíduos, enchem o espaço
público, expulsando tudo o resto do discurso
público. O “público” é colonizado pelo
“privado” e, o “interesse público” é reduzido
à curiosidade sobre as vidas privadas de
figuras públicas, e à exposição pública das
questões privadas. Ao ser ocupado o espaço público pelos interesses privados, a
individualização da sociedade afasta o indivíduo do papel de “cidadão”, aquele
que poderia discutir, defender e implementar os projetos públicos. E isto, é
perfeitamente compreensível numa sociedade que impele o indivíduo a olhar
apenas para si como fator de autoafirmação e para os outros, apenas como
competidores, que lhe podem impedir a realização dos seus desejos ou roubar-
lhe as oportunidades. A individualização, destrói os alicerces da cidadania,
mas, a individualização não é uma escolha, é uma fatalidade. Sem ela, a
“Modernidade Líquida” não se poderia afirmar.

O isolamento para o qual os indivíduos são empurrados nesta nova sociedade,


na sua ânsia de autoafirmação e construção da sua identidade, aniquila a
antiga ideia de comunidade. A Comunidade constituía um lugar confortável e
aconchegante. Era como um teto no qual nos abrigávamos das intempéries,
onde nos resguardávamos de alguns medos. Lá fora, na rua, poderia existir
uma série de perigos, tínhamos que ter cuidado quando saíssemos, cuidado
com quem falávamos, estar alerta em cada minuto. Porém, na comunidade,
podíamos relaxar, sentirmo-nos aconchegados. Supostamente numa
comunidade, todos se entendem, podemos confiar relativamente no que
ouvimos, e raramente ficar desconcertados ou surpresos. Não éramos

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estranhos entre nós. Podíamos discordar de algumas decisões, ou sobre a
forma de as aplicar, mas, sabíamos que o objetivo era comum – o bem-estar
da comunidade. Também sentíamos o conforto de que se tropeçássemos e
caíssemos, os outros nos ajudariam a ficar de pé outra vez. Não era muito difícil
a concretização da comunidade dado que , na sociedade anterior havia pontos
sólidos, regras, pilares de conceção da sociedade e do relacionamento humano,
que serviam de pontos seguros onde se podia fixar as âncoras e construir o
edifício evitando-se, o flutuar ao sabor indefinido da corrente sem perspetiva de
se encontrar um porto seguro, se é que ele existe.

Havia, contudo, um pequeno preço a pagar pela segurança e conforto que a


comunidade nos dava – alguma restrição da liberdade, ou autonomia, ou direito
à autoafirmação, ou identidade. Segurança e liberdade, são
dois valores igualmente preciosos e desejados, mas de certa
forma opostos, pois, quando se deseja mais de um, tem que
se ceder mais do outro. A questão está em encontrar a dose
suficiente e necessária do equilíbrio dos dois.

A moderna sociedade ao exacerbar o individualismo


e a empurrar o indivíduo, a suas expensas, a procurar
desenfreadamente uma identidade, relevou o antagonismo
entre segurança e liberdade. O antagonismo latente, tornou-
se mais evidente pois: por um lado, o novo homem líquido
precisa do paraquedas e para-choques, duradouro e estável
que a comunidade lhe confere mas, por outro, precisa de
encontrar a sua identidade numa sociedade fluida, em
permanente mutação, que lhe exige desapegar-se de todos
os laços duradoiros e o impeça de flutuar livremente, na
busca das múltiplas oportunidades que o mercado lhe
oferece. Para todos os efeitos, ele foi impelido a assumir o
papel de consumidor despindo o de cidadão. Porém, o seu
novo papel acarreta-lhe a insegurança de como o conseguir,
bem como, a incerteza de quando o conseguir (na realidade será infinito) tanto
mais que, deixou de contar com o paraquedas amortecedor da comunidade,
caso as coisas corram mal. Até porque, caso ele consiga encontrar e definir uma
identidade, sabe que ela será perene, rapidamente perde o prazo de validade
face às novas e renovadas necessidades que a sociedade exige. O lema que
permite definir a “moderna Sociedade Líquida” para o indivíduo é a de que:
“o Eu é Indefinido; Todo o Eu é possível; O Processo de Criação do Eu nunca
Termina “.

Se antes, a comunidade constituía um escudo para os perigos vindos de fora


isolando, dentro do possível, os seus membros, ela demonstra-se incapaz
de se defender dos perigos vindos de dentro, onde os interesses individuais
raramente serão comuns, pelo que, dificilmente se consegue encontrar uma
frente coletiva e coesa .

A origem da legitimidade e necessidade do Estado, como muito bem definiu


Thomas Hobbes no seu livro “Leviatã”, era regular uma sociedade impedindo a
aplicação do chamado “direito natural” que estipulava: “… todos os homens têm
legitimamente a mesma aspiração sobre todas as coisas, e dado que as não
poderão usufruir todos em simultâneo, entram em guerra. E nesta guerra de
todos contra todos, nada pode ser considerado injusto, o bem e mal não têm
significado”. Assim, nesta circunstância, estaríamos perante a lei do mais forte.
A base da definição de um processo de regulação, seria estabelecer-se pactos
em que, cada um cede parte dos seus direitos em troca de direitos de outros.

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Mas para serem viáveis, esses pactos necessitam de uma entidade que os
fiscalize e os faça respeitar – o Estado. Assim, o papel primordial do Estado seria
a garantia e provimento da segurança e essa seria a sua razão de ser. Todavia,
era inevitável que o indivíduo para poder auferir desse guarda-chuva de
proteção, teria que ceder algo – esse algo era parte da sua liberdade. O Estado,
instituído pelo poder e cedência dos indivíduos–cidadãos, regulava as relações
económico-sociais dentro do espaço geográfico que lhe competia, tentando
manter um “status quo” minimamente aceitável e, minimamente justo, para os
seus concidadãos. Cabia ao Estado, criar e regular as melhores condições para
o encontro entre os fatores capital e trabalho, assumindo mesmo custos com o
fator trabalho, através dos programas sociais, que o capital não estava disposto
a suportar mantendo assim, o custo do trabalho a níveis aceitáveis para o
capital.

Na “moderna Sociedade Líquida”, o Estado alterou o seu papel e, em vez


do papel de intermediário entre os fatores capital e trabalho (ótica da
produção) assumiu o novo papel de intermediário entre as mercadorias e
consumidores (ótica consumo). Mas mais do que isso, a razão de ser do Estado
de Direito, como Hobbes definiu, diluiu-se dado que, no nosso mundo de
interdependência planetária e circulação planetária de finanças, capitais de
investimento, “commodities” e informação,“realizar a tarefa” fica, de maneira
obstinada, além do alcance e da capacidade de Estados territorialmente
confinados. Os poderes que decidem o conjunto de opções abertas a qualquer
desses Estados atuam muito além
do território sujeito a seu controle,
e restringem de forma grave seu
espaço de manobra. Decisões tomadas
nas capitais de Estados-nação só se
aplicam no interior de suas fronteiras.
O poder político dos Estados é de
âmbito local, todavia, as regras e o
verdadeiro “ditame” da “engrenagem”
de movimento é de origem extra
territorial, global, contra a qual o poder
político local pouco, ou nada, pode fazer
e regular.

O medo é um sentimento conhecido de


toda a criatura viva. Decorre do próprio
fato de viver e assenta, no desejo
inconsciente de sobreviver. O medo é
mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado,
flutuante, sem endereço nem motivo claros, quando nos assombra sem que
haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser
vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. “Medo” é o
nome que damos à nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve
ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la,
se aniquilá-la estiver além do nosso alcance. Afinal, viver num mundo líquido-
moderno conhecido por admitir apenas uma certeza – “a de que amanhã
não pode ser, não deve ser, não será como hoje” – significa um ensaio diário
de desaparecimento, sumiço, de extinção e morte. E assim, indiretamente,
um ensaio da não-finalidade da morte, de ressurreições recorrentes e
reencarnações perpétuas.

Existem os medos que chamaremos de primários, a morte (inevitável), o


atentado à integridade física (por causas naturais ou fabricadas) e os de

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natureza secundária, a que Zygmund Bauman chama de “medos derivados”.
Estes podem abarcar a durabilidade da ordem social e confiabilidade nela,
ou mesmo, a posição do indivíduo no mundo, a sua posição na hierarquia
social, a sua identidade (classe, género, étnica, religiosa, etc.) ou, se quisermos,
a imunidade à degradação e exclusão social. Todos eles aumentam a
insegurança e vulnerabilidade do novo indivíduo líquido, que sente crescer
vertiginosamente os seus “medos derivados”. Olham à sua volta procurando
âncoras onde se possam agarrar e, colchões que lhes amorteçam as quedas
eventuais, mas, o que encontram são comunidades diluídas, ou no máximo
virtuais, e um Estado que já despiu a sua roupa da “proteção social” para vestir
a da “proteção pessoal”. O Estado pode reforçar as suas defesas (apesar de
na maioria das vezes serem insuficientes) contra inimigos e ameaças de fora
mas, é manifestamente incapaz de lhes acudir e fornecer remédios, para os
seus “medos derivados” relativos à insegurança e permanente incerteza sobre
o futuro, da garantia de manutenção da sua posição social, de se manterem à
“tona de água” na corrida vertiginosa da
nova sociedade e, logo, do risco de caírem
nos domínios do exército dos excluídos,
ou seja, daqueles que não são capazes de
permanecer na sociedade ativa, apenas
flutuando nas suas margens, e para quem
as portas da democracia fundada em
trabalho e direitos se fecharam. No meio de
toda a angústia, os indivíduos da “moderna
Sociedade Líquida” defrontam-se com
a cruel verdade de que, “estão sozinhos
não só na morte, mas também nos seus
esforços para se manter vivos“.

Exortados, instados e pressionados


diariamente a perseguirem seus próprios interesses e satisfações, e a só se
preocuparem com os interesses e satisfações dos outros na medida em que
afetem os seus, os indivíduos modernos acreditam que os outros à sua volta
são guiados por motivos igualmente egoístas e, portanto, não podem esperar
deles uma compaixão e uma solidariedade mais desinteressada do que eles
próprios estão dispostos a oferecer. Numa sociedade assim, a perceção da
camaradagem humana, como fonte de insegurança existencial e, como um
território repleto de armadilhas em emboscadas, tende a tornar-se endémica.
Numa espécie de círculo vicioso, ela exacerba, por sua vez, a fragilidade crónica
dos vínculos humanos e aumenta os temores, que essa fragilidade tende a
gerar.
Tendo assolado o mundo dos humanos, o medo torna-se capaz de se
impulsionar e se intensificar por si mesmo. Adquire um ímpeto e uma lógica
de desenvolvimento próprios, precisando de poucos cuidados e quase nenhum
estímulo adicional para se difundir e crescer.

Os ritos esotéricos, dos Mistérios das civilizações antigas, ensinavam aos


discípulos a inevitabilidade da morte com a recompensa de um renascimento
o que, tornava a própria morte mais suportável, mas, tinha sempre subjacente
um horizonte mais ou menos duradouro até à ocorrência. Na nova sociedade
o horizonte é o dia. O indivíduo líquido sente-o permanentemente, não tanto
no medo da morte, como medo primário (ou seja, a morte física) mas da
morte como “medo secundário” ligada à sua condição social e à sua própria
identidade. Até porque, se os contos morais de outrora, ao espalharem os
medos, normalmente traziam, acoplado, algum antídoto para a sua redenção,
os contos morais de agora, não trazem qualquer antídoto que permita exorcizar

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os atuais medos.

A violência entre humanos, é uma situação tão antiga quanto o homem. Ao


longo da história da civilização humana, ela assumiu variadas formas, diferentes
motivos e intensidades diferentes.

A atual “Moderna Sociedade Líquida” assente na globalização, alterou


radicalmente a forma de relacionamento entre estados – nação. O facto de
o poder tornar-se “extraterritorial”, não limitado pelas fronteiras do espaço
físico, implicou que os conflitos de interesses entre estados e também,
por conseguinte, os motivos dos conflitos deixassem de ter como objetivo
primordial a conquista de território físico, como o foi na Idade Média ou na
Antiguidade. Os interesses e o poder na nova sociedade não está no tamanho
do território que dominam (até porque quanto maior, mais custos acarreta e,
por conseguinte, maior dificuldade na sua organização) mas sim, na quantidade
de consumidores. E para isso, não precisam de conquistar territórios, o que
precisam é apenas de destruir todas as barreiras que obstem à livre circulação e
difusão da fluidez do novo paradigma. A célebre fórmula de Clausewitz (general
prussiano) “A guerra é a continuação da política por outros meios” poderia ser
parafraseada, na “Moderna Sociedade Líquida”, por: “a guerra é a promoção do
livre comércio por outros meios”.

A “Moderna Sociedade Líquida” cria, em resultado do próprio sistema,


desigualdades gritantes entre os que estão no topo (aqueles que frequentam
os mares do capital e fluxos de informação extraterritoriais) e os que, não
tendo capacidade de acompanhar a velocidade das mudanças, engrossam
o exército da exclusão. Estas evidencias tão sentidas e sofridas pelas franjas
de população lançadas no submundo da sociedade originando muitas vezes
reações mais ou menos violentas. Porém, neste mundo globalizado, não é
fácil para os reivindicantes definir concretamente e objetivamente, onde e
quem são os alvos, dado que, eles não são locais, mas extraterritoriais. Então
viram-se para os poderes públicos dado que, no seu entender, os eleitos terão
como responsabilidade inerente apresentar soluções para o seu problema de
insegurança e incerteza do
seu futuro. Infelizmente os
poderes públicos de âmbito
nacional, são impotentes
de os poder resolver dado
que, a sua origem extravasa
o seu âmbito de atuação.
Nestes casos, a solução
encontrada pelos poderes
públicos, consiste em
encontrar um inimigo a quem
possa culpabilizar e, assim
desviar e dirigir a atenção
dos descontentes. Existem
múltiplos exemplos desta
estratégia, desde questões relativas aos emigrantes, etnias, religiões, conflitos
“artificiais” com outros estados, etc. O Estado é o próprio instigador da violência
(com o bónus extra que até pode vir a dar vantagens eleitorais). O clima do
medo sempre foi uma estratégia largamente utilizada ao longo da história.

A desregulamentação da nova sociedade constitui um dos pilares fundamentais


da aparente liberdade dada ao indivíduo. Com efeito, nem os novos poderes
estão interessados em serem regulados – o que lhes limitaria a liberdade de

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escolhas ou liberdade de movimentos – nem sentem já o interesse em regular
os outros. Nos novos tempos, a dominação já não assenta no compromisso, na
capacidade de os dirigentes observarem de perto os movimentos dos dirigidos
e intimidarem-nos à obediência, situação dado que isso, causa incómodo
e é custoso. Agora há um método mais seguro e eficaz, a insegurança dos
dirigidos, sobre qual será o próximo movimento dos governantes, caso estes
se dignem a fazê-lo. O estado de permanente precariedade que os dirigidos
sentem individualmente, é o melhor remédio para diluir qualquer resistência
firme, organizada e solidária contra os movimentos dos governantes. A
aparente ampla liberdade, dada ao novo indivíduo da Moderna Sociedade,
acaba por caminhar de mãos dadas com a sua própria autorrepressão, como
bem enuncia o filósofo Byung-Chul Han. Ao contrário da anterior sociedade
de cariz disciplinar, a atual, tornou-se numa “sociedade de rendimento”.
Nela, o indivíduo livre é um sujeito de rendimento que se tem que superar
todos os dias, auto explorando-se até ao limite, de modo, a demonstrar que
ainda é produtivo e útil à sociedade, diga-se poderes que a regem, tentando
permanentemente evitar, ser mais um, dos muitos, arrastados para as
profundezas do oceano, dos inaptos, ou seja, dos excluídos. Esta é uma violência
em que o agressor e vítima são o mesmo sujeito, provocando um enganador
desvio de culpas pois, existe a tendência de o indivíduo culpar-se pelo insucesso
e não, o sistema que o leva a isso a, “violência da positividade” na ótica de
Byung-Chul Han.

A violência tem sido uma constante de todas as sociedades a par do sentimento


do medo. Mas na sociedade anterior normalmente, estas duas características
aplicavam-se face ao diferente, desemelhante, à alteridade, que se considerava
inimigos (que Byung-Chul Han chama a “violência da negatividade”) e não
em relação ao igual, aquele que era semelhante e fazia parte da mesma
comunidade ou classe. Porém, na Moderna Sociedade a individualização e a
assunção pelo indivíduo de ser um “sujeito rendimento“, significa que, mesmo
os iguais são competidores, ou seja concorrentes, a um dos poucos lugares
de sobrevivência pelo que, a linha de separação entre competidor e inimigo
paulatinamente se desvanece.

Jaime Freitas

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FEMINICÍDIO. O QUE FALTA FAZER?

Naquela noite de Abril, escutei a Mui Sábia dizer:

«A luz brilhou a teus olhos desde o momento da tua iniciação. Cada dia ela te
iluminará mais e, se tiveres força para persistir, atingirás o verdadeiro objetivo
da Maçonaria. Toma assento, entre as Eleitas, Minha Irmã».

Assim, tenho tentado fazer. Tomo assento entre as Eleitas, lugar que me está
destinado neste percurso que procuro fazer em cada momento, em plena
liberdade de consciência, tendo presente que a minha liberdade terá sempre a
limitação do respeito devido aos outros.

Bem, se for persistente, poderei atingir o


verdadeiro objetivo da Maçonaria.
Considero aqui relevante, explicitar este
objetivo que me foi transmitido, integrei e
passou a ser a minha realidade.

Mais uma vez, apoio-me nas palavras de


António Arnaut: «Maçonaria significa, pois,
construção. O maçon constrói o seu futuro
tornando-se um homem melhor. A Maçonaria
constrói o futuro da Humanidade, tornando-a
mais justa e perfeita».
Desafiada ao Trabalho, começo por descobrir,
nesta Iª Ordem que «O Mestre Eleito desperta,
para, em liberdade de consciência e o
apaziguar das suas emoções, renunciar
à vingança pessoal e atuar apenas, em
resultado de uma justiça coletiva».

Para este meu trabalho, vacilei ao escolher o


tema a desenvolver, de tantos e tantos sobre
os quais necessito de refletir, mas foram decisivas as palavras da Carta do Rito
Francês do Grande Capítulo Geral Feminino de Portugal, que são lidas pela Irmã
Oradora e que escuto em cada Conselho, no meu «assento como Eleita»:

«O Grande Capítulo Geral Feminino de Portugal afirma a sua identidade


maçónica feminina, o seu compromisso e a sua responsabilidade na
promoção de reflexões e ações que contribuam para a emancipação das
mulheres, para o reconhecimento e respeito dos seus direitos, para a defesa
da sua integridade física e moral, para a afirmação da sua dignidade e para o
exercício da sua liberdade.»

Foram estas palavras que me deram a motivação para abordar um tema em


que possa refletir nestes objetivos, de «defesa da integridade física e moral,
dignidade e exercício da liberdade, das mulheres».

Se, em 1673, Poulain de la Barre publica «De l`Egalité des deux sexes», onde
refere que «os homens, sendo os mais fortes, por toda a parte favorecem o
próprio sexo e que as mulheres aceitam por hábito essa dependência. Nunca
tiveram possibilidades, nem liberdade, nem instrução» .

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Na mesma linha de sentido, no Século XVIII, o
Século do Iluminismo, já em 1774 o autor da
«Controverse sur l`Ame de la femme» afirma «a
mulher criada unicamente para o homem deixará
de existir no fim do mundo, porque deixará de
ser útil ao objecto para o qual, foi criado, do que
se conclui naturalmente que a sua alma não é
imortal», e é ainda Rousseau que refere «Toda
a educação da mulher deve ser relativa ao
homem...A mulher é feita para ceder ao homem e
suportar-lhe as injustiças».

Em contrapartida, é também deste tempo, Jean


Caritat, Marquês de Condorcet, que defende
uma conceção de sociedade mais avançada com
inclusão de todas as pessoas, sem exceção. Foi um
dos pioneiros na defesa de um ensino igual para
homens e mulheres e também do voto feminino,
que a maioria dos revolucionários não aceitava. Referia «Foi dito que as
mulheres ...não tinham propriamente o sentimento da justiça, que obedeciam
antes aos seus próprios sentimentos de que à sua consciência...(Mas) não se
trata da sua natureza e sim da sua educação; é a existência social que causa
essa diferença».

Após a Revolução Francesa, o papel da


mulher não voltou a ser o mesmo, as vozes
femininas começam a ser ouvidas, com
avanços e recuos, as suas reivindicações
começam a ser apresentadas.

Em 1791, Marie Gouze, que vem a ser


conhecida como Olympe de Gouges escreve
a «Declaração dos direitos da mulher e da
cidadã» onde refere: «A mulher nasce e vive
igual ao homem em direitos. As distinções
sociais não podem ser fundadas a não
ser no bem comum». Este documento
pretende corrigir a omissão da «Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão»,
que fora proclamada em 27 agosto de 1789 em plena Revolução, mas que não
contemplava as mulheres.

A Declaração escrita por Olympe de Gouges, foi


o primeiro documento da Revolução Francesa a
mencionar a igualdade jurídica e legal das mulheres
em comparação aos homens, contudo, o documento
é reprovado na Assembleia Nacional de França, em 28
outubro 1791, acabando por cair no esquecimento.
Em 1793, apenas dois anos depois, Marie Gouze sobe ao
cadafalso em Paris.
É a jornalista e escritora Benoîte Groult, que em 1986,
publica pela primeira vez na íntegra a Declaração,
no seu livro «Olympe de Gouges», obra divulgada
internacionalmente, e que se tornou num ícone dos
movimentos feministas, sendo a «Declaração dos
Direitos da Mulher e da Cidadã» um documento inovador na defesa dos

13
direitos das mulheres, havendo quem o considere
percursor para o que viria a ser a Declaração Universal
dos Direitos Humanos.

Mas também o Iluminismo em Portugal marca


presença, em 1782. Luís António Verney publica o
«Verdadeiro Método de Estudar», considerada a
grande obra pedagógica do século. O seu último
capítulo é dedicado à mulher. Assim, refere «Quanto
à necessidade [de as mulheres se instruírem], eu
acho-a grande, que as mulheres estudem. Elas,
principalmente as mães de família, são as mestras
nos primeiros anos da nossa vida (...) além disso elas
governam a casa, e a direção do económico fica na
esfera da sua jurisdição (...) Além disso, o estudo pode
formar os costumes (...) porque não acho texto algum
da lei, ou sagrada ou profana, que obrigue as mulheres a serem tolas e não
saberem falar (...) ler e escrever português corretamente, é coisa que rara
mulher sabe fazer em Portugal».

Por ordem da Rainha D. Maria I, em 1790, são criadas, em Portugal, as primeiras


escolas para meninas, um local onde aprendem a coser, a fiar e a bordar, mas
também a ler e a escrever.

A evolução da educação em Portugal passa também por períodos de avanços


e recuos, apesar dos ideais Republicanos terem como um dos seus melhores
projetos, a alfabetização da população portuguesa, mas o que temos, na
realidade, passado mais de um Século, é um panorama confrangedor.

De facto, em 1950 a taxa de analfabetismo das crianças entre os 7 e os 11 anos de


idade é de 20,3%. Das crianças com idade compreendida entre os 10 e 11 anos,
apenas 6,3% possuem a instrução primária obrigatória, entenda-se a 3.ª classe,
pois a 4.ª classe não fazia parte do ensino obrigatório.
De facto, a Política Educativa do Estado Novo instituiu o prolongamento da
obrigatoriedade da escolaridade primária elementar, de três para quatro anos,
mas diferenciado para cada um dos sexos. Em 1956, o Dec.-Lei nº 40 964, de
31 de dezembro, estabeleceu que a escolaridade obrigatória seria de quatro
classes para os menores do sexo masculino, e só em 1960 através do Dec.-Lei nº
42 994, de 28 de Maio, se alargou ao sexo feminino.

Não pretendo alongar-me


na história da educação
em Portugal, apenas,
referir, ainda, a realidade
atual e bem diferente,
com dados de 2018
(PORDATA): Taxa de alunos
na educação pré-escolar
– 93,8%; Taxa de alunos no
ensino secundário -121%;
Taxa de alunos no ensino
superior 49,7%.

Vejamos, ainda, em 2019,


os dados dizem-nos que
63% dos alunos do ensino

14
superior são mulheres, um acréscimo de 21% em cerca de 40 anos. Ao nível
superior do ensino, no Doutoramento, 54% são mulheres.

A lenta transformação do papel da mulher na sociedade seguiu o seu curso. Em


permanente luta, atravessou o Século XIX com conquistas significativas que se
tornam visíveis no Século...XX, e chegamos, assim, ao Século XXI.
Pergunta: «Que te faltava fazer? Nada, a vingança fora feita».

Sim, é verdade, passados cerca de 300 anos, a mulher na Europa tem o seu
reconhecimento social plasmado em igualdade de direitos na Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia (18/12/2000), cujo Preâmbulo refere
– «Consciente do seu património espiritual e moral, a União baseia-se nos
valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade,
da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do
Estado de direito. Ao instituir a cidadania da União e ao criar um espaço de
liberdade, de segurança e de justiça, coloca o ser humano no cerne da sua
ação».

Questões sobretudo relacionadas com o direito à dignidade do ser humano


(artigo 1.°), o direito à integridade do ser humano (artigo 3.°), o princípio de
não discriminação, designadamente em razão do sexo (artigo 21.°), o direito à
igualdade entre homens e mulheres (artigo 23.°), o direito à ação e a um tribunal
imparcial (artigo 47.°), abrangidos pelos títulos I «Dignidade», III «Igualdade», e
VI «Justiça».

Pergunta: «Que falta fazer? Nada, porque tudo parece concluído».


Será?

Apesar da grande transformação social, em que


a mulher adquire um estatuto de liberdade e
igualdade de direitos, temos hoje, no Século XXI,
um problema no feminino que põe em causa a sua
dignidade, e que já foi designado como epidemia,
«a violência contra as mulheres».

Em 2019, em França, mais de 100 mulheres


morreram às mãos dos companheiros ou ex-
companheiros, Espanha contabiliza 1000 mortes
de mulheres, em contexto de violência doméstica,
entre 2003 e 2019. Em Portugal, nos últimos 5
anos, houve em Portugal mais de 500 mortes em
contexto de violência doméstica, das quais 70%
são mulheres, ou seja, 350 mulheres foram mortas,
contudo, se olharmos para os últimos 15 anos, este
número ultrapassa os 500.
O contexto de pandemia que vivemos, não altera a realidade da violência
doméstica. O Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR (União de
Mulheres Alternativa e Resposta) deu conta, que este ano, e até ao mês de
Agosto, dez mulheres foram mortas em Portugal. Se os dados evidenciam
uma descida do número de vítimas, face ao ano passado, constata-se que as
tentativas de homicídio aumentaram.

Os pedidos de ajuda, à Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência


Doméstica aumentaram sobretudo nas vias telefónicas e digitais. A linha de
apoio da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), email
e o número de SMS criados especificamente para o contexto da pandemia

15
receberam 727 contatos entre 19 de Março e 15 de Junho, um aumento de 180%
face ao primeiro trimestre de 2019.

A «violência contra as mulheres» é um problema grave, comum aos mais


diversos estratos sociais ou económicos e que atravessa fronteiras. É um tema
que inquieta e nos deve mobilizar.

O Comité das Nações Unidas para a Eliminação da


Discriminação contra as Mulheres e o Conselho da
Europa, têm procurado dar a conhecer a amplitude e
a natureza da violência contra as mulheres, contando
com o apoio de algumas iniciativas levadas a cabo por
vários Estados-Membros da União Europeia.
Um inquérito promovido pela Agência dos
Direitos Fundamentais da União Europeia permite
demonstrar que a violência contra as mulheres é uma
violação frequente aos seus direitos fundamentais,
que afeta a vida de um grande número de mulheres na União Europeia.

Este inquérito, baseado em entrevistas presenciais com cerca de 42 000


mulheres, é o estudo mais completo, até à data, realizado na União Europeia e a
nível mundial, sobre as experiências de violência vividas pelas mulheres.
O inquérito teve como população-alvo as mulheres entre os 18 e os 74 anos de
idade, residentes na União Europeia e falantes de pelo menos uma das línguas
oficiais do seu país de residência. Todas as inquiridas foram selecionadas de
forma aleatória e os resultados do inquérito são representativos tanto a nível da
União Europeia como a nível nacional.

As entrevistas tiveram lugar entre abril e setembro de 2012 e foram realizadas


presencialmente por entrevistadoras do sexo feminino em casa das
entrevistadas.

O trabalho de campo foi gerido pela Ipsos MORI, empresa internacional


especializada em inquéritos, em parceria com o Instituto Europeu para a
Prevenção da Criminalidade e a luta contra a Delinquência. Os resultados
obtidos pelas respostas ao inquérito permitem concluir o seguinte:

Prevalência global da violência física e sexual


- Uma em cada três mulheres (33%) foi vítima
de violência física e/ou sexual desde os 15 anos
de idade.
Globalmente, 43% das mulheres sofreram
alguma forma de violência psicológica por
parte de um parceiro íntimo. As formas mais
comuns de violência psicológica por parte
de um parceiro consistem em rebaixar ou
humilhar a mulher em privado, insistir em
saber sempre onde ela está de um modo que
excede uma preocupação normal e irritar-se
se ela falar com outros homens. Uma mulher em cada quatro foi vítima destas
formas de violência nas suas relações íntimas.

Cerca de 5% das mulheres foram vítimas de violência económica na sua relação


atual e 13% em relações passadas, tendo sido, por exemplo, impedidas pelo
parceiro de tomar decisões independentes sobre as finanças da família, ou
proibidas de trabalhar fora de casa.

16
O relatório final com os resultados deste inquérito permitiu concluir «que a
violência contra as mulheres, em especial a violência baseada no género que
as afeta de forma desproporcionada, constitui uma violação frequente dos
direitos humanos».

A constatação da violação da dignidade das mulheres, nas mais diversas formas


e até à sua morte, provocam a nossa inquietação e indignação.

Procuro respostas para esta incongruência entre a lei vigente, o quadro


regulamentar, até o enquadramento social, e a realidade prática das vivências.
Parece que tudo está concluído, e apenas parece. Ao mesmo tempo que temos
leis contra a violência doméstica, temos também, na Europa, movimentos
contra essas mesmas leis.

Vivemos em Democracia, estamos na era da informação, sob os mais


diversos suportes são divulgados os conceitos de direitos e deveres,
da liberdade e igualdade/paridade, contudo, constatamos esta
violência nas diversas faixas etárias, dos mais velhos aos mais novos.

Apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos ter sido


assinada em Paris, há quase 72 anos, foi tempo insuficiente para
mudar mentalidades.
Feminicídio. O que falta fazer?

O trabalho tem de continuar, tal como Sísifo, nas palavras de Albert


Camus:
«Deixo Sísifo no sopé da montanha! Sempre se reencontra seu fardo.
Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta
os rochedos. Ele também acha que tudo está bem. Esse universo
doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada
um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha
cheia de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em
direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano» .

MGP

Bibliografia consultada
Camila Moraes Monteiro, Mariana Imbelloni Braga Albuquerque, «Da revolução ao lar, do lar à
revolução».
Direção-Geral da Segurança Social Núcleo de Documentação e Divulgação, «A mulher em
Portugal: Alguns aspetos do evoluir da situação feminina na legislação nacional e comunitária»,
Volume I, dezembro 2014.
Alice Mendonça, «Evolução da Política Educativa em Portugal». Universidade da Madeira.
EUROPEAN UNION AGENCY FOR FUNDAMENTAL RIGHTS, «Violência contra as mulheres:um
inquérito à escala da União Europeia».

https://pt.wikipedia.org/wiki/Declararaçao_dos_Direitos_da_Mulher_e_da_Cidada - 18.11.2019
https://portuguesaletra.com/significados/significado-de-vingar/
http://www3.uma.pt/alicemendonca/conteudo/investigacao/
evolucaodapoliticaeducativaemPortugal.pdf,

17
JUSTIÇA E VINGANÇA
USOS E COSTUMES NOS PRINCÍPIOS DO SÉCULO XX

ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E SOCIAL

Em tempos de decadência da monarquia e da I República os problemas


políticos, sociais, a guerra, a pandemia, as sucessivas revoltas e as constantes
mudanças de governos e de presidentes, agudizavam todos os dias a vida
na sociedade, a vida do povo. Tempos em que a Carbonária desmontava
progressivamente os canteiros, choças e barracas, por falta de
objetivos, as dissidências na Maçonaria e nos partidos políticos,
muito contribuíram para a progressiva decadência da democracia
e para a instalação da ditadura e depois do Estado Novo. A fome,
miséria, doenças, faziam parte do dia a dia, tudo acontecia à luz do
dia, à noite a luz que havia em casa era a dos candeeiros a petróleo e
nas ruas era a dos candeeiros da noite de iluminação tremelicante, e
poucos candeeiros havia. A justiça andava longe, o povo disso pouco
ou nada sabia, o povo pobre dos bairros pobres, era quase todo ele um povo
analfabeto, um povo que não vivia, um povo que sobrevivia. Os princípios
herdados da Revolução Francesa da «Liberdade, Igualdade e Fraternidade»
eram mesmo uma utopia de uns quantos, de uns quantos poucos.

A «justiça da noite, a justiça da mão negra», era a justiça que


havia, a «justiça feita pelas próprias mãos», a mão da justiça
era, muitas das vezes, a das mãos dos juízes populares. Não
precisavam de polícias, de tribunais, nem de carcereiros,
a justiça era «feita pela calada da noite, com sentença
da palavra rasgada, lida e executada na hora», as mãos
endireitavam o que torto lhes parecia, e não estavam com
meias medidas, com desperdícios de tempo para apurar como
foi ou como não foi. Era tudo feito na hora.

Se cheirasse a esturro, não havia demoras, era o tempo de arrebanharem os


«capangas» do costume e não perdiam tempo em discussões fúteis, era para
rachar, era como nos tempos idos da «tirania» de João Franco e da monarquia
que se distanciava no tempo.

Por causa das «coisas», disfarçavam-se com boinas, boinas enterradas nas
cabeças oleosas até aos olhos, muitas vezes com lenços ou com máscaras
de Carnaval a tapar as caras, armados com «gadanhos cordões grossos e
amarrados, espadas e punhais desembainhados, forquilhas e varas», que ao
bater no chão, à cadência de uma pancada, faziam um batuque de aterrorizar,
alguns mais ousados traziam mesmo «armas de fogo», para o que desse e
viesse. Tudo para desentortar e não desconversar.

Julgar os outros é coisa difícil, é demorado, é caro e de desfecho


imprevisível, é o eterno problema do «simbolismo da balança».

Para os da ronda da noite, os da mão negra, o que era


desconchavado era resolvido na hora, eram as separações de
casais, as questões das partilhas, as questões dos terrenos, o desvio e o roubo
de águas, os despejos das casas, os que emborcavam bem e espancavam as
mulheres, as mulheres deles, sim, porque as «mulheres deles eram deles».

Os que se não se arrumavam com «toga de juiz feito», rufiões sem vergonha,
usavam farpelas rasgadas, faziam a justiça dos usos e costumes, o costume era

18
o de fazer «justiça pelas próprias mãos», e se a coisa ficasse tremida e se não ia
às boas, era «rachar lenha de criar bicho», era tempo de apertar os gorgomilos.
Primeiro vinha o «cabecilha» com o «sermão das falinhas mansas», se o
sermão era de «meias falas ou de meias missas», apareciam os varapaus para
desentortar de vez o que se entortara.

Tudo dependia de quem fazia a ronda, a justiça da noite, a justiça das mãos
negras, muitas vezes e quando os que estavam à testa eram
gente má, gente das pingolas de vinho dos fins de tardes nas
tabernas dos becos e das travessas, ou os que eram pior que
todos, os que «agiam só por vingança».

Dentro destes facínoras alguns poucos acabavam por ir parar


à «choldra» e acabavam por ir responder a tribunal. A maioria
conseguia escapar por serem protegidos pelas gentes de posses,
a quem prestavam serviços, sim que as gentes de posses tinham
quem lhes fizesse os «trabalhinhos» por eles, a troco de «côdeas de pão» para
engrossar a sopinha providencial, a sopinha quente, muitas vezes a sopa de
véspera, umas malgas de vinho tinto, e de uns míseros dinheiros. A fome era
muita, não havia trabalho, o dinheiro escasseava.

Para os homens de posses nunca houve fatura sem recibo. Era da


maior conveniência desacreditar os que para eles haviam executado
a justiça popular pela mão dos intermediários. Quando eram
apanhados nas curvas em delações, penavam com «coças de rachar
tudo», eram amedrontados com uma suadela das antigas, com
parelhas de pontapés, alguns borravam-se mesmo por dentro das
calças de medo, a ossada ficava sempre em mau estado. E eram
ignorados para todo o sempre, «deixavam de pertencer ao grupo»,
tudo era executado pelos mais fiéis, pelos mais dependentes, pelos
mais bem recompensados pelos seus mandantes.

Ao tempo não havia corrupção, não havia «megaprocessos» nem essas


ferramentas asquerosas hoje vividas, havia outras coisas, coisas parecidas, mas
coisas diferentes, próprias das gentes de posses, e essas gentes eram, então
como hoje, inimputáveis. Queriam lá saber dos princípios éticos e republicanos
da I República, que nem conheciam, que nem queriam conhecer, como os
princípios da «a Justiça, a Verdade e a Razão».

Todos os que ousavam «mijar fora do penico» tinham à perna a justiça da noite,
a justiça da mão negra, justiça de que haviam sido atores. Tinham que amochar,
amochar à força, e se a mulher dele desse uns «pontos» fora, logo lhe colocavam
a mala à porta e ao homem uma «catrefa de porrada», chegando-lhe a roupa
ao pelo, para ter vergonha na fronha, para reentrar nos eixos, metiam-se para
sempre na vida dele, era preciso controlá-lo para saber o preço da delação, o
preço apagar por informadores, delatores ou bufos.

Na rua arregimentavam gente disponível nas tabernas dos becos e das


travessas, gente de cheiro a mijo velho vinda dos fatos-macacos de
colarinhos moídos, remendados e enfeitados com fundilhos, gente de
suores velhos, e que à sua passagem na hora de saída da sua labuta
diária, diziam em voz alta de uns para os outros de modo a que o traidor
ouvisse, que ouvisse bem, sob «sons de fundo de músicas taurinas», o
grito em grupo e humilhante de: «Olhó corno! Olhó boi!». Era a «vergonha
não lavável», era a desacreditação para todo o sempre, era para sempre um
«culpado sem defesa».

19
Se fosse hoje, em que separação de casais é «mato», a justiça da noite, a justiça
das mãos negras, não teria mãos a medir, mas, tudo evoluiu, outras liberdades
conquistadas, outras diferenças surgidas e outras soluções que emergiram,
agem de modo diferente com os mesmos objetivos.

Ao tempo, a indissolubilidade do casamento (que durou até 1975), nem sempre


casava com os sentimentos e a paixão que unira para sempre homem com
mulher, debaixo de juramento para a vida feito na Igreja e perante o senhor
Padre e perante o Senhor. Era a família que intervinha na escolha dos cônjuges,
no fundo era mais uma relação de poder, que de respeito, de vontades e de
sentimentos.

Pobre casava com pobre, gente pobre era gente que não
sabia ler nem escrever, «nem sabia soletrar»… Filho(a)s de
gente de posses casavam com filha(o)s de gente de posses.
O senhor Padre estava sempre disponível, aconselhava
todos, para não terem problemas para o resto de toda a vida.
Era bem recompensado pela gente de posses, gente que
sabem ser generosa no seu interesse, especialmente para
quem servia Cristo com Amor.

Com gente de posses não se podia brincar, a justiça da noite, a justiça da mão
negra, acabava na mesma sendo feita, mas de uma maneira diferente, mais
elaborada, mais prensada, a justiça sumária. Contratavam um «capanga», com
a ajuda de intermediário, de intermediário de confiança, de gente segura, de
gente mesmo segura, gente bem paga e bem protegida. O «capanga» tinha
de aceitar, a bem ou a mal, senão nunca mais teria trabalho, nunca mais teria
descanso. As regras eram servir, receber pouco e calar fundo, calar bem fundo,
calar no fundo do poço, do poço que não estava seco e que era um poço com
um fundo que não se via.

Para segurar a barra, outros mandantes, intermediários


amigos, sempre gente bem paga, faziam-lhe como tiranos
o cerco da vida, compunham um «cigarrito» para lhe
aquecerem o queixo, para lho entranharem bem na carne,
na carne dos costados. O «silêncio era a regra» a cumprir,
era o silêncio para a vida. A experiência ensinara que os
«enxertos de porrada» só faziam efeito durante algum tempo, a natureza
do homem é avessa a sermões de «água benta» e a pancadas. O tempo
lavava os enxertos. Amiúde tinham de ser lembrados sobre o que juraram,
lembrados nos cus badalhocos, lembrados no corpo, lembrados sempre e
para sempre.

Outros, poucos se descuidados iam parar ao «xelindró». Se calassem o silêncio


que juraram, enquanto nas masmorras lambiam dores, esgalgados de sede,
com sede de vinho, passavam fome e frio, cá fora, sabiam que nas famílias
não haveria fome nem miséria. Havia recompensa para a regra do silêncio.

Nunca faltou gente para «pintar a manta», gente ansiosa por cenas de
«porrada, de porrada de criar bicho», era na hora em que o vinho bebido pelos
bebedolas nas tabernas dos becos e das travessas, vinho servido em cálices de
vidro grosso, vinho carrascão das pipas das terras de Alenquer, vinho misturado
com petiscos, com iscas e pataniscas, e com os fumos do tabaco de onça.
Quando o vinho aquecido pelo tabaco de onça já tinha subido bem às cabeças
e se espalhara pelo corpo, já tinha tudo azedado. Muitas vezes, umas «fatias na

20
hora», dadas na hora certa, davam jeito, e quando tocava à «pauzada», aquilo
era pancadaria de meter medo ao bicho!

O «adultério era um crime muito grave», o catolicismo muito laborou nessa


moral cega durante séculos, e reconheçamos que com êxito, «hoje é coisa
que se resolve», melhor ou pior, sem padres, mas ainda há apenas um século
a «coisa» era coisa séria, muito séria, coisa de bramir aos céus, de caminho
assegurado para o inferno.

Os «homens mulherengos» da época, garanhões de mãos abusadoras,


andavam sempre bem vestidos, vestidos de corte fino, com
cabelo cheiroso resplandecente como lamparina de altar, bigode
amiudadamente enrolado e bem tratado, mulherengos que os havia,
que os há e que sempre haverá. Quando viam uma mulher asseada,
lavadinha e cheirosa, vislumbrando em sonho um corpo em forma
escultural de uma ampulheta, «não paravam de discretamente lhes rondar
a saia», nos momentos de desencontros com os maridos de lancheira, que
andavam na labuta diária, do nascer ao pôr-do-sol. E tanto porfiavam, que as
mulheres maltratadas, cediam ao assédio.

Os encontros não eram coisa fácil, não havia motéis nem muitas outras
facilidades de agora, era coisa de encontros fugazes, combinados «por sinais
e por troca de secretas palavras», só por eles entendidos, em qualquer canto,
em abrigos temporários, em pardieiros com camas feitas de caruma seca, ou
atrás das moitas, lavavam os mínimos atirando fora a água suja. Em horas de
aflição era no lugar que estivesse à mão. Eram encontros sempre fugazes, para
ninguém ver, para ninguém ouvir, a regra era a do silêncio mútuo, a hora era a
de dar prazer ao homem, para ambos era só o prazer do risco.

De avanço em avanço, de muito prazer a maior prazer, de risco a maior risco,


começavam a desejar lugar mais prazeroso, mais confortável, a arriscar com a
casa dela, ou antes com a casa do marido, sim que ela e a casa eram do marido,
o marido em desencontro, o marido que estava bem longe, estava de lancheira,
estava na sua labuta diária do nascer ao pôr-do-sol. A coisa parecia ser coisa
sem risco, a coisa parecia segura. Era a cíclica necessidade a comandar o desejo.

Se algum invejoso visse o garanhão a entrar ou a sair, ouvisse através do som


das paredes uns «ais» ou uns «gemidos de prazer», logo dava com a língua
nos dentes, todo o povo da terra ficava a saber. O invejoso era movido por
simplesmente desdenhar, por não ser ele a «molhar o pincel».

E logo se organizavam os da justiça da noite, os da justiça da mão negra, para


apanharem em «flagra» os criminosos, os adúlteros, um «crime de desrespeito
aos usos e costumes», às famílias, ao povo, ao senhor Padre e suas beatas de
água benta, algumas papa missas de pera e bigode ralos, e acima de tudo e de
todos um desrespeito à Igreja Católica Apostólica Romana.

O garanhão, normalmente homem casado e de


respeito, mal lhe cheirasse a esturro e temendo
o caldo em que se metera, sentindo o bater
cadenciado ao ritmo de uma pancada certa no
chão de pedra, dos cajados e das forquilhas, ala que
dava à sola com o coração a galope. Os da justiça
da noite, os da justiça da mão negra, invadindo a
casa na mesma cadência, apanhavam a mulher já meia composta e refastelada
na cama, como nada se tivesse passado, mas acabando por se descompor,

21
expondo o que as ceroulas tapam e os saiotes protegem. Tinham a prova, a
prova não provada, a prova não sujeita a contraditório.

Espalhada a notícia de mansinho, de boca a boca, em boatos de orelha, no


átrio da Igreja nas missas dominicais, viria a «lei da vergonha», a adúltera nem
à missa podia voltar. As beatas de água benta saíam a passo de corrida direitas
à porta do adro, escandalizadas, gritando «schita Diabo!», «schita Diabo»,
deixando o senhor Padre a falar para Deus, a falar sozinho. A adúltera pecara
para sempre, traíra o juramento sagrado feito ao marido perante o Senhor,
estava excomungada pelo povo.

Os padres sempre disponíveis para o perdão, alinhavam com as beatas de


água benta, sem prejuízo de praticarem o mesmo pecado com algumas delas,
viúvas, tias solteironas ou casadas. As beatas de água benta estavam sempre
disponíveis para ajudarem o senhor Padre na limpeza dos seus aposentos, em
lhe lavarem a roupa à mão e em lhe passarem a roupa a ferro, a ferro aquecido a
carvão…

Para os padres não havia justiça da noite, nem justiça da mão


negra, nem qualquer tipo de justiça, gozavam de impunidade
divina, «só respondiam perante Deus», só Deus os poderia julgar,
apesar de muitos meninos e meninas que pululavam pela terra,
pela lei eram filhos do pai, mas de facto eram filhos dele…

Podia agora maçá-los narrando outros contos macabros,


vividos ao tempo, com pedófilos, homossexuais, «pilha-galinhas», etc., mas as
conclusões seriam igualmente dramáticas, idênticas aos olhos de hoje. Toda a
vida houve mixórdia que escapou à justiça, «quem se safa é quem se mete em
copas», quem alija com soberba as responsabilidades, quem tem posses, para
desgraças já basta as que têm.

Crime merece castigo, assim devia ser sempre, mas o pobre está mais sujeito a
castigo que o homem de posses, aqui, ali e em todo o lado, em todos os tempos
passados, atuais e vindouros. Tudo na justiça sempre dependeu e depende das
posses, da literacia, da cultura, dos usos e dos costumes, da moral da religião,
dos interesses da política.

Vingança sabemos que não é caminho que se trace, que


não leva a lado nenhum, vingança gera vingança! Mas que
alternativas havia naquele tempo? Que justiça tinha o povo
senão a justiça da noite, senão a justiça da mão negra? Ontem,
hoje e sempre, houve, há e haverá uma justiça para os pobres e uma justiça
para a gente de posses.

Eu, nem sou muito exigente, gostava que os princípios e valores que enformam
a Maçonaria e que os que nos antecederam nos ensinaram, princípios e valores
que nunca podem ser esquecidos, que vingassem em todos os países, em todas
as sociedades, em todas as etnias, em todas as culturas, que se reforçassem no
nosso seio, nas nossas famílias, nos nossos círculos profissional e social.

Dan\ M. Cas\, Dezembro, 2020

22
MANIFESTO PROGRESSIVO REDUX

Preâmbulo

Em 2018, foi elaborado um Balaústre, trabalho colectivo


do S\ C\ Fraternidade intitulado Manifesto Progressivo.
Esse Balaústre foi apresentado no Seminário sobre Ordens
de Sabedoria, organizado no âmbito do X Congresso dos
Soberanos Capítulos do G\ C\ G\ P\ - R\ F\ .

O Balaústre elaborado procurava dar resposta à questão de


trabalho colocada pelo Comité Ramsay para os seus encontros
de 2019: “Face à violência das respostas identitárias e do comunitarismo, como
respeitar as singularidades individuais, sem colocar em risco o denominador
comum da humanidade?”.

Revisitámos esse documento e procurámos escutar a sua música, com que


formas e cores ilustrava as nossas ideias e sentimentos, numa discussão
fundamental sobre a Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Face à actualidade das questões debatidas e o enquadramento temático


do número 2 desta publicação considerámos pertinente revisitar aquelas
nossas reflexões, colocadas sob a forma de um manifesto com características
especiais, que procurava, na sua estrutura conceptual, o estabelecimento
de uma dinâmica progressiva assente nos valores da Liberdade, Igualdade e
Fraternidade.

Inspirámo-nos também na visão, na procura de estabelecimento de um quadro


de relação e evolução das sociedades humanas, que se encontra no centro da
elaboração de documentos, cartas de princípios, manifestos de valores éticos,
de que são exemplos eloquentes a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789 ou Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada
pela Assembleia Geral da ONU a 10 de Dezembro de 1948.

A criação de um manifesto

A criação de um manifesto pode ser um momento de extrema liberdade, de tal


forma extrema que, em inúmeros manifestos, é notória a vontade de acentuar
essa liberdade pela rejeição absoluta com o substrato da sua ruptura.

Um manifesto supõe o afrontamento e a sua proposta visa a transformação da


situação, sociedade ou substrato cultural vigente. Manifesta-se pela oposição e
funda, numa infra-estrutura transformativa, a essência das suas propostas.

A maior parte dos manifestos (inclusive este) integram a caracterização de um


tempo histórico, identificando os seus aspectos negativos e a sua decadência.
Fundam no presente um tempo futuro, numa alternativa de mudança, numa
proposta que se pretende nova e regeneradora.

A qualidade da construção da interpretação histórica constitui um factor


decisivo para o sucesso de um manifesto, tal como os exemplos arrebatadores,
a beleza e força da sua expressão, a veracidade dos seus pressupostos e,

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sobretudo, a atractividade das suas propostas, contribuem
para o seu triunfo, para a sua glória, embora esta seja muitas
vezes efémera.

Como criar algo que não seja efémero, que progrida, que
se reconstrua mas mantenha a sua orientação, o seu
propósito?

Como criar algo que não seja efémero, que progrida, que se
reconstrua mas mantenha a sua orientação, o seu propósito?

A pergunta tanto poderia servir para a criação de um La Liberté guidant le peuple,


Eugène Delacroix, 1830
manifesto artístico, como para a criação de uma religião ou de
uma teoria política. Como garantir a sua adaptabilidade aos processos
históricos, garantindo que a sua evolução mantém os objectivos fundamentais,
os seus valores e propostas?

Considerando um quadro de evolução da sociedade, nas suas múltiplas


dinâmicas, tempos e escalas de transformação, um manifesto, uma ideia, um
projecto de futuro, habitam um ecossistema altamente competitivo, um cenário
de competição e afirmação nas dinâmicas do presente mas visando o futuro e a
sua construção.

Se o seu centro é o Homem e este é um produto do tempo e da história, como


garantir que a dinâmica do tempo e da história são progressivos? E o que é ser
progressivo?

Da união dos homens à unicidade dos valores

Partir da união dos homens para a união dos valores é um desafio de integração
num universo de diversidade e expansão, em que outros valores ou para-valores
contraditórios e disruptivos emergem. É um desafio perante o conhecimento
que se expande, mas também que se esquece e que importa recuperar,
revisitar, buscando uma integração da diversidade sem a necessidade de uma
verdade definitiva e dogmática.

Já em 1737, no célebre discurso do Cavaleiro Andrew Michael Ramsay,


encontramos plasmadas as ideias de que “Os homens não são distintos,
essencialmente, que pela diferença das línguas que eles falam, dos trajes que
usam, dos países que ocupam. O Mundo inteiro não é senão uma República
na qual cada nação é uma família, e cada indivíduo uma criança. É para fazer
reviver e espalhar estas máximas essenciais, tomadas na natureza do homem,
que a nossa Sociedade foi, à partida, estabelecida”.

E é com base neste pressuposto, que “Nós queremos reunir os Homens de


espirito esclarecido (…) em que o interesse da Confraternidade se torna o do
todo o género humano (…)”.

Importa, pois, enquadrar nesta base fundacional, a questão que nos era
colocada (Face à violência das respostas identitárias e do comunitarismo, como
respeitar as singularidades individuais, sem colocar em risco o denominador
comum da humanidade?), reflectindo no que concerne aos limites éticos, e aos
vectores de ação, que a mesma aconselha, face aos paradigmas e dinâmicas do
Aqui e Agora.

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A necessidade de que todos possam viver em comum, de uma forma que
garanta a plena liberdade de consciência, e a igualdade de direitos, torna-
se cada vez mais acentuada, nas nossas sociedades contemporâneas,
teoricamente multi-étnicas, multiconfessionais, multi-ideológicas, e
socialmente diferenciadas.

Resulta evidente que o livre desenvolvimento dos comunitarismos não tem


vindo a conduzir à coexistência pacifica, e equitativa das comunidades, mas
sim a conflitualidades, segregações, e à própria limitação da liberdade de
consciência de cada um, em aceitar, ou não, os costumes particulares da sua
identidade, em função dos limites éticos pessoais que autoconstruiu.

Nas democracias Europeias que se regem pelos valores filosóficos originados


no século das Luzes, e maturados nos dois séculos subsequentes, a laicidade
congrega o princípio de unificação dos Homens no seio do Estado, introduzindo
uma distinção de direito entre a vida privada do homem como tal, e a sua
dimensão pública de cidadão.

A Laicidade fundamenta-se na liberdade de consciência, preserva a igualdade


confessional e ideológica, e sobrepõe o interesse comum ao de grupos
identitários particulares.

No entanto será, por si só, a Laicidade suficiente para emancipar e congregar, os


indivíduos num projeto humanista comum?

Assim, à perspetiva do Cavaleiro Ramsay, de União dos Homens “pelo


laço da Virtude e da Ciência”, que também se encontra no objeto da
procura dos Grandes Eleitos (“O conhecimento da arte de aperfeiçoar
o que é imperfeito, e o de chegar ao tesouro da verdadeira moral”),
o nosso século XXI impõe-nos a necessidade complementar de
consideração da Fraternidade, enquanto alavanca de emancipação, e
de acesso a um progresso da Humanidade, que permita dar sentido à
liberdade individual, de afirmação identitária, no âmbito da igualdade, e
da solidariedade social.

Metropolis, Fritz Land,
1927

A garantia de uma justiça que sustente a evolução moral e a construção


ética

Se o centro da Maçonaria é o homem, capaz de, através da sua razão, entender


que faz parte de uma dinâmica histórica em que é dono e responsável do
seu destino, então como orientar esse destino, ou melhor, a construção desse
destino?

Se o homem é dono do seu destino então ele é livre e a liberdade é o seu maior
potencial mas também deve ser a sua maior responsabilidade.

Se a Maçonaria tem como base o Homem livre e se todos os Homens são livres,
então todos são iguais na mesma dimensão da liberdade que possuem. A
Igualdade deve ser pois uma consequência e uma condição da liberdade de
todos e a sua medida uma dimensão da própria liberdade.

E que fazer com a liberdade de todos e a igualdade entre todos? Deixar que
se constitua cada um como um agente competitivo, um egoísta na procura

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estrita do seu interesse ou afirmação de opiniões pessoais, ou procurar no bem
comum o cenário de um futuro melhor para todos e para cada um?
A liberdade é condicionada, em cada tempo histórico, pela maioria, pelo
colectivo, partindo do princípio que as normas em vigor são estabelecidas por
modelos democráticos. Esta será portanto, uma liberdade individual plena
e consciente, inserida num colectivo com regras validadas e escrutinadas
democraticamente. Rousseau, no Contrato Social, afirmava que o Estado
assegura a liberdade de cada cidadão através da independência individual
privada e da livre participação politica.

A construção de uma sociedade mais justa não passa pela justaposição de


“guettos”, mas sim pela criação de um espaço público no qual o bem comum
assume a forma de uma emancipação pela cultura universal, e onde os direitos
intangíveis, como a liberdade individual, ou a igualdade entre os sexos, não
possam ser postos em causa por qualquer prática cultural, seja ela de carácter
ancestral, ou religioso.

Importa esclarecer um princípio essencial – em matéria de culturas, e de


costumes, nem tudo é respeitável. Nenhuma civilização pode ser eximida
do livre exame, que permita distinguir tudo o que, embora assumido como
cultural, não é aceitável à luz dos nossos princípios éticos humanistas. Estas
práticas, são “a priori” identificáveis, e separáveis, do que constitui, na realidade,
património cultural.

Só este último, nas suas vertentes de costumes familiares, e de conjunto do


património estético, e afectivo, deve ser preservado, numa esfera estritamente
privada, claramente separada do espaço público neutro. E mesmo assim, deve
sempre ser garantido que esta afirmação identitária resulta do livre arbítrio do
individuo, e não da imposição da comunidade na qual o mesmo se encontra
inserido.

Dispor livremente das suas referências culturais é um direito inerente ao


princípio de plena liberdade de consciência, e o “direito à diferença” é,
também, para cada ser humano, o direito de ser “diferente da sua diferença”,
nomeadamente de rejeitar, total ou parcialmente, a identidade cultural da
comunidade na qual se encontra inserido.

Daí que a distinção entre as esferas pública, e privada, seja decisiva, na medida
em que permite distinguir os locais, e as regras de afirmação das diferenças, de
modo a salvaguardar-se tanto a livre escolha de uma opção ética ou espiritual,
como a neutralidade de espaços públicos comuns, como o devem ser as
escolas, ou os serviços de saúde.

Será, pois, pela educação cívica, orientada para o respeito pela diferença,
e para a valorização do espaço público, naturalmente laico, que se poderá
alcançar uma emancipação intelectual, e moral, das comunidades, que permita
resistir aos fundamentalismos religiosos, e ideológicos, permitindo a todos os
seres humanos, promovidos à verdadeira autonomia étnica, escolherem, em
liberdade, o seu modo de vida, e a sua relação com o outro, no respeito pelas leis
comuns.

Construção, desconstrução, reconstrução

Nada é interpretado exactamente da mesma forma por pessoas diferentes.


Cada pessoa é um contexto de interpretação e acção subsequente. De

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aquisição do conceito, da sua interpretação (que é uma desconstrução) e da
sua reconstrução num conceito próprio, numa visão própria, que se torna
mensagem e transmissão, sempre com algo de novo.

Mais do que questionar os modelos de sociedade democráticas pela liberdade


que proporcionam, impõe-se questionar os processos de formação da
consciência que estão presentes em todas as fazes da vida do individuo. Somos
aquilo que a sociedade produz e, hoje, mais que no passado, somos moldados
diariamente, por todos o meios modernos de comunicação dos quais não
abdicamos e usamos como fontes da verdade.

Assim, somos constantemente confrontados com o condicionamento do


pensamento, através das mais diferentes formas de manipulação, que na
prática se traduz em formas de impor o pensamento único, orientado para
objectivos que nem sempre são visíveis numa primeira fase.

A liberdade individual e as escolhas que fazemos na nossa sociedade


democrática, deverão ser formadas na pluralidade das propostas, com a clareza
do esclarecimento e debate. Só assim poderemos aspirar a uma sociedade mais
justa e equitativa.

Contrariamente às religiões a Maçonaria não oferece um destino metafísico.


Não apresenta uma proposta de um tempo colectivo, orientado para a
eternidade ou perfeição. A sua visão de evolução é a de um tempo de
construção, desconstrução e reconstrução, assente em arquétipos e valores
escolhidos como axiomas do progresso.
Os nossos rituais estão orientados para a construção de uma visão colectiva
baseada na interpretação individual de valores comuns estruturantes. A busca
de conhecimento centra-se em elementos primordiais, permitindo uma
dimensão subjectiva que não compromete mas fortalece a visão colectiva.

O futuro pode ser abordado com uma atitude


moral e ética. Uma moral e uma ética que
permitam a continuação do crescimento. Que
permitam o desenvolvimento das sociedades
e dos indivíduos. Que permitam que o prazer
do aperfeiçoamento não seja travado, nem pela
própria ideia de perfeição, nas suas implicações
de dogmatismo estático e fundamentalista.

Newton, William Blake, 1795

Uma serenidade de perspectiva, liberdade para pensar e agir, liberdade para


construir espaços de crescimento da liberdade

Desde a sua génese, o manifesto da Maçonaria fundou-se numa perspetiva


universalista, assumindo-se como um “centro de união”, destinado a “reunir o
que está disperso”.

Os factores e os cenários em que a história evolui são susceptíveis de alteração,


de transformação. Como o ambiente em que as espécies evoluem, a história
ou o tempo constituem o ambiente, o cenário da evolução das ideias e das
sociedades humanas.

A Maçonaria, enquanto manifesto, assenta pois numa perspetiva dualista, de

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tradição e vanguarda, e baseia-se numa concepção ternária do tempo – com
base em valores que vêm do passado, estabelece-se um vasto campo de
reflexão e de ação no presente, na esperança de se alcançar o progresso da
humanidade, no futuro.

E como criar este conceito cultural complexo, esse manifesto progressivo que é
a Maçonaria? Podemos tentar responder a esta questão com novas perguntas
deixando, ao bom estilo maçónico (e também das religiões), a cada IIr:. uma
dimensão subjectiva na sua resposta:

- Como seria possível criar uma visão da história, intemporal e transcultural, que
se baseasse na crença de que o homem é dono do seu próprio destino e que
pode encontrar na racionalidade a inspiração para o seu futuro?

- Como criar uma teoria de futuro inspirada pelo progresso científico que
integrasse a própria mutabilidade das teorias científicas como um factor de
evolução natural ao serviço da evolução da humanidade?

- Como seria possível criar um universo de proposta cuja legitimidade


decorresse de elementos imutáveis e fosse credível tanto nas propostas
positivas como nos alertas negativos?

- Como garantir e aumentar o impacto das propostas e visões da sociedade


considerando a dificuldade de previsão da evolução da história e das sociedades
humanas?

- Como procurar garantir que o Homem, centro e agente principal da história, a


interpreta criando “cadeias de união que nos levam do passado para o futuro”?

O manifesto progressivo é uma atitude de questionamento, de debate


e integração de perspectivas diversas, que se enriquecem e expandem.
Mas o manifesto progressivo é também uma visão em que a
fraternidade é a resposta da razão, da utopia e do sonho, na conciliação
da Liberdade e da Igualdade.

Ser progressivo é conceber novas formas de organização social e
de conceber uma visão de futuro alicerçada em princípios éticos
orientadores, considerados estruturantes na criação de um cenário ou
universo de evolução. The Wizard of Oz, Victor Fleming, 1939

Ser progressivo é procurar garantir a continuidade do


crescimento, do desenvolvimento das sociedades
a partir do desenvolvimento dos indivíduos. Ser
progressivo é procurar garantir que o futuro é melhor
para cada um mas sobretudo melhor para todos!

Em que a fraternidade é o alicerce lógico na construção


de uma dinâmica evolutiva e progressiva.

Em que a fraternidade é expressão do nível de


evolução de uma teoria de futuro assente na razão, que
interpreta e constrói a história.

A poesia está na rua, Vale de Lisboa, 10 de Novembro de 6020


Vieira da Silva, 1974 Trabalho coletivo do S\ C\ Fraternidade
Coordenação de Nuno de Sousa Neves

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rito francês

HUMILDADE
VALOR FUNDAMENTAL DO RITO FRANCÊS

Sendo a terra o limite espacial de todas as areias de todos os mares, rios


e desertos nela existentes, a relação do Homem com o Universo em que
coabitará, mais do que infinitamente pequena, é incomensurável, comparando
a relação de cada um dos seus grãos, com toda a areia existente na Terra. Uma
reflexão da qual nos damos esporadicamente conta, já que, críticos que somos,
a fazemos até de forma involuntária. Quiçá, procurando inconscientemente a
nossa origem ou mesmo o nosso destino.

E, se esta reflexão o é por racionalidade, a aceitação da nossa incomensurável


pequenez, mais que um desafio à nossa inteligência, é um acto de carácter, pois
de HUMILDADE se trata.

Inerentemente, mau grado o desenvolvimento em progressão aritmética do


conhecimento do Homem, o simples conhecimento do comum dos cidadãos,
basta para nos questionarmos sobre a perfeição e harmonia de tudo quanto é
vida.

No nosso planeta, na nossa “Terra” é o equilíbrio


interactivo dos quatro elementos da Natureza,
Ar, Água, Terra e Fogo que sustenta a Vida,
a mais sublime dádiva da natureza. Depois,
infinito firmamento fora, o próprio equilíbrio
intergravitacional planetário, condicionando cada
órbitra de cada planeta, onde mais Vida haverá de
existir, por detrás de tudo isto que se citou, QUEM
estará? E, qual será o termo a substituir o limitativo
QUEM, quanto à grandeza que envolve?

Mas utilizando o que, em cada língua, dialeto ou


linguagem gestual não tendo outro, fica o que
temos. QUEM? Será um Deus?

Aceitar isto, não como dogma, que na Maçonaria a incessante procura da


VERDADE, não tem lugar, mas por racionalidade, por sua vez “moldadora”
do carácter de cada um, pela consciência e consciencialização da sua
pequenez, a começar no que se é e nos rodeia, desde o que está ao simples
alcance das mãos, até ao Universo na sua infinidade, traduz uma postura de
HUMILDADE, como virtude indissociável de cada Maçon, não por si, mas pelo
comportamento que em sociedade inspira, relativamente ao seu semelhante.

A humildade é assim uma virtude, tão tímida e tão aparentemente oposta


à imagem poderosa de si que tantos se esforçam por construir. Carl Jung,
aponta-a como uma virtude para a segunda metade da vida, porque a maioria
que está na primeira metade, não tem autoestima suficiente para abrir mão das
suas metas exteriores, nem dos seus desejos de reconhecimento, admiração
e valorização. Ninguém fica humilde repentinamente, é preciso lutar!!! E
paradoxalmente, esta luta não deverá ser para nos tornar humildes, mas sim,
para ultrapassarmos e vencermos as nossas próprias falhas!

É preciso coragem, para vivenciar a humilhante e, ao mesmo tempo


surpreendente, experiência do autoconhecimento. É preciso ousadia para

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descer ao mais profundo do nosso ser, visitar o lado sombrio do nosso EU
e, conhecer as raízes dos nossos vícios, impulsos e, porque não, as nossas
imperfeições. Para Tomás de Aquino, a Humildade é um “equilíbrio entre a
força e a fraqueza; a grandeza e a pequenez”, por sua vez, para Agostinho de
Hipona é a “percepção da nossa medida”. Encontraremos isto mesmo num
versículo da Bíblia... “Por isso, pela graça que me foi dada digo a todos vocês:
ninguém tenha de si mesmo um conceito mais elevado do que deve ter; mas,
ao contrário, tenha um conceito equilibrado” (Romanos 12,3).

No caso do comportamento laboral, em cadeia hierárquica,


é um “ingrediente” formativo, educacional e de carácter,
determinante no reforço da autoridade que por formação
moral e ética se aceita e louva, em detrimento do autoritarismo
que, por dignidade se rejeita. Daí que a Maçonaria, mais que
uma escola e reserva de valores, é também por inerência
uma escola para a vida, que temos o privilégio não só de
frequentar como de integrar, aprendendo e apreendendo
umas vezes, tentando, o melhor possível transmitir o que
sabemos, noutras. No espírito do nosso Rito, o carácter terreno
– que vai de homem para homem e, não do céu para a terra
e, a humildade exigida, devem reger tanto a nossa afiguração
uniformizada, quanto o nosso comportamento como Maçons.
Toda a simbólica que adorna o Templo, constituem o que é
visível, devendo estar de acordo com a essência do nosso Rito
– sóbrio e humilde, despojado de elementos acrescentados de
vários momentos da sua história, nomeadamente, soltando-o de demasiadas
referências a doutrina filosóficas sobre o racionalismo e a religião ou, até
mesmo, a referências ocultistas, reflectindo assim, o seu valor supremo que é, a
laicidade.

O contrário à humildade, é a soberba, altivez, sobranceria, ou arrogância..., que


são, indiscutivelmente, o maior dos inimigos da Maçonaria. Transformando o
Maçon que se agarra a estas, no pior e mais nefasto dos impostores, no principal
destruidor de grupos, projectos e de relações; cuja adopção comportamental de
justiceiro, cuja insistência o faz apregoar virtudes e qualidades morais, as quais,
muitas vezes não possui!!! Que se observa amiúde que a prática, é a negação
completa daquilo que fala, decepcionando Todos aqueles que fraternalmente
o acolhem! Um desvio de carácter, com duas extremidades marcantes nos seus
traços de personalidade. O narcisismo num extremo e a baixa auto-estima num
outro.

Entre outras, mas destacando o modelo socialmente


materialista que globalmente atravessamos, em detrimento
dos mais elementares e diferentes valores, éticos, morais,
deontológicos, culturais, educacionais e humanos, não só pelo
despotismo e sobranceria, por vezes a roçar o ridículo com que
se apresenta, a SOBERBA, em termos individuais, está sempre
por detrás também da ingratidão e da inveja.

Em termos colectivos a xenofobia e o racismo não são


lamentavelmente de triste memória, mas realidades actuais.

Também em certos meios, particularmente académicos, a


afirmação pela sobranceria intelectual, como forma de soberba,
é algo paradoxal, considerando o pelo menos hipotético nível
intelectual dos seus protagonistas, a não dever “autorizar” esta

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modalidade de novo-riquismo, outra forma de manifestação da soberba.

Ainda uma referência ao sentimento da indignação, um direito dos bons –


“quem não se sente, não é filho de boa gente” – sentimento que começa a
desaparecer, ou por regressão de valores na nossa sociedade – a indignação
é um valor a preservar – ou em termos de expressão, pelo receio social de se
confundir quem se indigna e por tal se manifesta, com quem por mediocridade
inveja, ou pior, ameaça ou mesmo retalia, receios que em progressiva instalação
social, na defesa dos valores que nos cumpre, urge combater. A indignação é
um direito, mesmo uma obrigação.

Se te julgas importante
Para provares que o és,
Respeita o teu semelhante
Que és baixo em bico de pés.

N Dias Pereira

Aquele irmão é brilhante, não entendemos


nada das suas pranchas nem seus discursos,
mas ele fala tão bem que ficamos a
acreditar que percebemos

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curiosidades republicanas

REI MORTO, REI DEPOSTO, SELO POSTO …

Todos e tudo têm os seus símbolos.

Camões, poeta maior de um Portugal, tanto monárquico como republicano,


escreveu num dos seus sonetos:

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades


Muda-se o ser, muda-se a confiança
Todo o mundo é composto de mudança
Tomando sempre novas qualidades.»

A 5 Outubro de 2020, num Portugal, por enquanto chamado de Abril, ainda se


ouve, por vezes alto e próximo, outras vezes demasiado institucional, formal,
baixo e frio, o «Viva a República».

Alguns dos que contribuíram para a implantação da República em Portugal,


disseram que esta nasceu em 1908, a 1 Fevereiro, com o assassinato de D. Carlos,
do príncipe herdeiro D. Luís Filipe e a posterior subida ao trono de um novo Rei,
aclamado com o nome de D Manuel II.

Deixo essas especulações para os historiadores, são quem sabe.

Em Julho de 1909, não obstante só aprovada definitivamente, pelos Correios,


a 31 de Agosto desse mesmo ano, deu-se início à primeira tiragem da emissão
de selos com efígie de D. Manuel II. Já aqui, ou melhor dizendo também aqui, a
governação monárquica dava sinais de algum desnorte, uma vez que Decreto e
Portaria a autorizar e ordenar aquela que seria a primeira emissão de selos, do
curto reinado de D. Manuel II, só foi aprovada em 19 de Agosto . Desnorte ou o
velho e actual hábito português traduzido no ditado popular «pôr a carroça à
frente dos bois» ou na expressão «dar o jeitinho»!

A emissão D. Manuel II para Portugal Continental, entrou em circulação em 1 de


Janeiro de 1910, é da autoria de Domingos Alves do Rego, composta por 14 taxas
em réis (fig.1), a utilizar consoante o serviço prestado, e em diferentes cores e
papeis (esmalte e porcelana) havendo um desenho para as taxas de 2 ½ a 300
réis e um outro para as taxas de 500 e 1000 réis (fig.2 e fig.3).

Fig.2-Selo de 1000 réis Fig.3-Selo de 20 réis

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Fig.1 - Bilhete-postal – imagens dos selos de todas as taxas emitidas

Mas…há sempre um… e houve um 5 de Outubro e alguma coisa mudou.


A jovem República, por motivo de optimização de recursos, mudança de
instituições e afirmação de regime, cedo determinou, a 7 de Outubro de 1910 ,
que o stock existente na Casa da Moeda fosse objecto de uma sobrecarga com
a palavra «REPUBLICA», impressa na diagonal, de baixo para cima, da esquerda
para a direita, a cor verde (selo de 20 réis) e vermelha nos restantes (fig. 4).
Porém nem monarquia nem república são regimes perfeitos e erros ocorrem,
no caso de impressão, encontrando-se muitos exemplares com sobrecarga
deslocada, invertida, dupla sobrecarga (fig. 5 e 6). É aceite que as inversões e
duplas sobrecargas não terão sido oficialmente colocadas pela Casa da Moeda,
ou podendo o ter sido dela terão saído clandestinamente (a República dava
passos na arte da contrafacção e do contrabando)

Fig 4 - Bilhete-postal circulado em 26/12/1911 – com selos com sobrecarga

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Fig. 5 - Sobrecarga invertida Fig. 6 - Dupla Sobrecarga

O processo de colocação da sobrecarga foi tratado com toda a celeridade; a 13


de Outubro, assinados o decreto e a portaria que aprovaram e determinaram
a oposição da sobrecarga; a 25 Novembro publicado, no Diário de Notícias, que
a venda, dos selos postais, na cidade de Lisboa, teria início a 1 de Novembro. A
distribuição pelas outras estações de Correio do país ocorreu poucos dias mais
tarde, a 5 de Novembro (o que parece ter sido cumprido – ver carta da fig.7). A
máquina da propaganda do Governo carburava e dava fogo à peça. Contudo o
tempo, ou melhor a falta dele, e as exigências da procura não permitiram que
todos os selos fossem sobrecarregados, ditando que a circulação da emissão
D. Manuel II, sem a sobrecarga «REPUBLICA» pudesse continuar a circular
(portaria de 2 de Março de 1911 – veio repor a prática já existente).

Fig.7 - Carta circulada, Madeira, 8 Dez 1910 combinando selos com e sem sobrecarga

Os selos foram sendo obliterados de diversas formas oficiais, mas surgiram


por vezes interessantes e curiosos momentos de criatividade. Encontramos
não raras vezes, a palavra «Republica» (fig.8) manuscrita sobre os selos, mas
igualmente manifestações republicanas como o «Barrete Frígio» (Fig.9), sobre

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a efígie do Rei deposto. Sobre estas últimas subsiste por vezes alguma dúvida
sobre a sua autenticidade (no pequeno mundo da filatelia a falsificação
também está presente).

Fig. 8 – Selo D Manuel II com Republica manuscrita

Fig.9 – Barrete Frígio sob efígie de D Manuel II

Ainda de referir que entre Janeiro de 1911 e Outubro de 1912, a Casa da Moeda
imprimiu novas tiragens de selos de D Manuel II com sobrecarga «REPUBLICA».
A República continuava ainda refém da Monarquia que, não obstante
moribunda, ainda não estava morta, como de facto se veio a verificar mais
tarde, em 1919 numa derradeira e última tentativa de restaurar a Monarquia,
episódio conhecido como Monarquia do Norte.

Esta série (com e sem sobrecarga) foi definitivamente retirada de circulação


a 31 de Março de 1913, cumprindo a sua função transitória, após ter coexistido
durante algum tempo, com a emissão, já de cariz republicano, que a veio
substituir.

Só 16 meses após 5 de Outubro de 1910, entrou em circulação a nova emissão


de selos postais, conhecida como «Ceres». A ideia de democracia, mas também
de ética republicana, determinou o lançamento de um concurso público de
apresentação de propostas para o desenho do selo, que viria a ser, perante o
país e o mundo, o rosto da República Portuguesa, e que decorreu até 17 de
Março de 1911.

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O processo, nas suas variadas etapas, teve início em 4 de Fevereiro de 1911
e foi dado como terminado quando o primeiro selo criado pela República
Portuguesa e a ela alusivo, foi colocado em circulação no dia 14 de Fevereiro de
1912.

O projecto vencedor da autoria de Constantino de Sobral Fernandes é um


busto da Deusa Ceres (fig.10), considerado de grande beleza e igualmente de
profunda simplicidade, o que tornou difícil o trabalho do gravador José Sérgio
de Carvalho e Silva, de quem se diz não ter conseguido reproduzir fielmente o
desenho (Fig.11).

Fig. 10 – Projecto Vencedor Fig.11 Ceres de 1 Centavo

A moeda apresentada no projecto é ainda a da monarquia «Reis», o Escudo


aparece só mais tarde, em data posterior ao términus do concurso público, e
por decreto de 22/5/1911. A relação Escudo versus Réis é de 1 para 1000, 1 Escudo
tem valor de 1000 Réis, 1 Centavo equivale a 10 Réis.

O selo com taxa de 1 Centavo foi o primeiro colocado à venda ao público, no dia
em 14 de Fevereiro de 1912. A taxa já se apresentava na nova moeda o Escudo; 1C
é a centésima parte do Escudo; a palavra «Portuguesa» aparece escrita com a
letra “S” contrariamente ao projecto inicial onde aparecia com “Z”.

Emissão tipo Ceres de 1912 – taxas emitidas.

As reacções e receptividade da população, ao selo, foram diversas, desde uma


gravura pobre e de fraca qualidade face ao projecto inicial; nem bonitos nem
feios para uns, belos e perfeitos para outros, recordemos que as proporções do

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selo são as da «regra de oiro» e por último ainda para alguns, horríveis, os piores
alguma vez emitidos; também havia quem deles dissesse simplesmente que
cumpriam a sua função, representavam bem o ideal Republicano. Não sabemos
se existiram reflexões sobre a foice, conhecendo-se no entanto, anos mais tarde,
em 1926, sátira apresentando a Ceres suicidando-se (melhor dizendo, talvez a
República), aquando da conhecida emissão “Ceres de Londres”, em que deixou
de ser Portuguesa e virou Inglesa , entenda-se o desenho e a impressão.

A qualidade de impressão das primeiras tiragens (1912) não terá sido a melhor,
o que se agravou ainda mais durante o período da 1ª Guerra Mundial, levando
a que alguns tivessem dito que a República apresentava-se de óculos (escuros
talvez e de olhos esbugalhados, acrescento eu). Quanto à qualidade da goma
para aderir ao papel também surgiram reclamações, já que a mesma teria
má aderência, fazendo com que frequentemente os selos se descolassem dos
envelopes, retardando a expedição da correspondência e originando multas a
pagar pelos destinatários (o controlo de qualidade não tinha na época a mesma
importância que tem nos dias atuais, já os atrasos na correspondência parecem
continuar a existir).

A emissão CERES objecto de variadíssimas tiragens e emissões, para continente,


ilhas e colónias, de que não é aqui momento para escrever, circulou entre 14
de Fevereiro de 1912 e 30 de Setembro de 1945, granjeando uma longa vida
de 33 anos, 7 meses e 16 dias, convivendo com as 4 emissões base que se
lhe seguiram, Lusíadas em 1931, Monumentos nacionais e efígies de homens
célebres da nossa história em 1934-1936, Estado Novo - Tudo pela Nação em
1935 e por fim a emissão Caravela em 1943. Desconfio que a Ceres terá convivido
muito mal com algumas destas emissões que se lhe seguiram, mas se assim
tiver sido, soube perseverar nos ideais e resistir.

Terá a República, a 1ª delas, amado verdadeiramente a sua Ceres? Não, não


amou, mas como diz o povo são “águas de um outro rosário”, que este já vai
longo. Opiniões existiram e existem ainda nos nossos dias, de e para todos
os gostos, à boa maneira Portuguesa. O certo é que mais de 100 anos após
a primeira emissão tipo Ceres, estes selos continuam a fazer a delícia dos
filatelistas e a serem objecto de controvérsia e estudo.

A Ceres renasceu em 1/10/2010, aquando das celebrações do Centenário


da implantação da Republica em Portugal. Os CTT emitiram um selo
comemorativo, evocativo daquela primeira emissão tipo Ceres o que de facto
é representativo da sua importância e simbolismo; desta vez já em Euro. A
República que derrubou Reis (Fig12), deixou cair o Escudo (Fig.13) e entregou-se
ao Euro (Fig14), quem te defende agora?

Fig.11 Fig.12 Fig.13

Viva a República, a 5 de Outubro de 2020.


MB

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degustações
“LE RITE FRANÇAIS, SES FONDAMENTAUX, SA PHILOSOPHIE” de
Gérard Chomier, com Prefácio de Philippe Guglielmi

No passado mês de Outubro foi editado, com No Rito Francês recusa-se, assim, a “Simbolatria”,
o nº 22 da “Collection Pollen maçonnique” encontrando-se o fundamental numa essência,
(Conform Edition, Paris), o livro “Le Rite Français, que está “para aquém dos nossos paramentos e
ses fondamentaux, sa philosophie” de autoria das nossas pantominas rituais”.
do Irmão Gérard Chomier, antigo membro da
Câmara de Administração do Grand Para fundamentar estas opiniões,
Chapitre Géneral du Rite Français o Irmão Gérard Chomier faz-
du GODF. Esta obra é prefaciada nos viajar pela História das
pelo Irmão Philippe Gugliemi, Mui Ideias, do Mithos ao Logos,
Sábio e Perfeito Grande Venerável descrevendo o longo caminho
desta Jurisdição. da Humanidade, em busca da
plena Liberdade de Consciência.
Tendo a História do Rito Francês Aborda, igualmente o conceito
vindo a ser objeto de diversos de Laicidade, salientando a sua
trabalhos publicados nos últimos importância nas bases filosóficas
anos, dos quais se destacam os da que sustentam o Rito Francês.
autoria dos Irmãos Ludovic Marcos,
Pierre Mollier, e da Irmã Cécile Por último, tece algumas
Révauger, o presente livro tem a considerações no que concerne
particularidade de se encontrar aos paramentos a utilizar nas
mais focalizado para as bases diferentes Ordens de Sabedoria,
filosóficas deste percurso Maçónico. propondo soluções que têm por
O Irmão Gérard Chomier centra- referência a trilogia humildade-
se, pois, mais nas questões: “O que sobriedade-laicidade, tendo
é que é o Rito Francês? Qual é a presente que quanto mais o
sua caraterística? Qual é a sua Maçon progride no seu percurso
essência?” iniciático, maior deverá ser o
despojamento do seu traje.
Segundo o autor, o Rito Francês é um Rito
de Liberdade, de livre pensamento e de livres O presente livro constitui, pois, uma abordagem
pensadores, construído na horizontal, que tem por original do Rito Francês, e revela-se uma
objeto a emancipação do Maçon, numa Sociedade ferramenta bastante interessante, para quem o
mais Justa, na qual ele é cidadão empenhado e queira compreender. É, seguramente, uma leitura
ativo. Visa libertar os seus adeptos de qualquer muito recomendada para os Irmãos e Irmãs que o
pensamento dogmático, e de qualquer sistema de praticam, especialmente para os que já trabalham
moral imposto na vertical, sendo a Laicidade um em Soberanos Capítulos Franceses.
dos seus pilares mais estruturantes.
Daí que se possa concluir, que a Bibliografia
O Rito Francês é, pois, um Rito terrestre, que disponível sobre este Rito ficou mais rica com a sua
coloca o Homem em busca do Universo que o publicação, podendo ser adquirido através do site
rodeia, e de si próprio. Assim, os Maçons do Rito da editora Conform Edition.
Francês encontram na horizontalidade as metas
da sua progressão. Contrariamente aos Irmãos
dos Ritos Deístas, que procuram “chegar mais Joaquim Grave dos Santos
alto”, eles satisfazem-se por “ir mais longe”. O Rito
Francês vai, assim, “do Outro ao Outro”, tendo
por caraterísticas fundamentais a sobriedade, e a
humildade, e no qual os Símbolos não são mais
do que um microscópio através do qual o Maçon
observa o Mundo, sob uma luz especifica, e um
ângulo particular.

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A Revista de Maçonaria é uma iniciativa independente das
organizações maçónicas e virada para a publicação de artigos de
investigação e reflexão sobre temas relacionados com Maçonaria,
Espiritualidade, Sociedades Fraternais e, também, temas de
actualidade.

A revista será semestral e o primeiro número acaba de sair. O


projeto tem como diretor Fernando Marques da Costa e como
editor Manuel Pinto dos Santos. Pretende preencher uma lacuna
no panorama editorial português, onde não existe uma revista que
se dedique à publicação de artigos sobre estes temas, ao contrário
do que existe na generalidade dos países.

Não se trata de uma revista de divulgação da Maçonaria nem


das organizações existentes, tarefa que a estas deve competir. O
projeto está aberto a autores nacionais e estrangeiros, sejam ou
não Maçons.

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