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Permanência vs.

Mudança: Padrão cultural e


aculturação

Atendo-se à separação entre raça e cultura e à noção de que as culturas eram resultados
de processos históricos de incorporação de materiais exógenos através de processos de
difusão, Herskovits podia defender que os negros haviam adotado os elementos da
cultura europeia no longo processo de aculturação. Por outro lado, observando a
sobredeterminação do “espírito” de uma cultura aos materiais exógenos que lhe eram
ofertados, Herskovits viria a privilegiar a noção de sobrevivências africanas na
América, mostrando que as culturas africanas permaneceram estáveis, ou sobreviveram,
dentro das possibilidades do contexto escravista.

Com isso, Herskovits voltava aos impasses entre permanência e mudança que já
observávamos na teoria da aculturação e da difusão cultural em Boas. Num prefácio a O
mito do passado negro, datado de 1958, em que reavalia retrospectivamente sua obra e
o impacto que ela teve sobre a discussão racial nos EUA, Herskovits deu sua própria
formulação ao dilema que enfrentou:

Em essência, minhas primeiras proposições teóricas afirmavam que a cultura é


aprendida, não inata, a não ser na medida em que a espécie homo sapiens como
um todo deriva sua habilidade de criação cultural do fato de ser o organismo
que é; ou seja, que o fator da raça não entra em consideração. Eu ainda sustentei
que a cultura, sendo adquirida, pode ser aditivamente adquirida; que essa
aquisição aditiva sempre se faz presente no contato entre os povos e dá origem a
novas formas culturais. Contudo, eu notei que muitos dos modos pré-
estabelecidos de comportamento são retidos em situações de contato, e que,
onde quer que ocorra o intercâmbio cultural, eles influenciam a forma daquilo
que é apreendido.43

Não é difícil observar que Herskovits descreve, nesse trecho, sua passagem da
noção boasiana de cultura como o resultado histórico de adições e colagens derivadas
de processos de difusão, para uma noção – igualmente boasiana – de cultura como todo

42 MINTZ, S., op. cit.


43 HERSKOVITS, M., op. cit., p. XXXV.

orgânico e integrado que sobredetermina as influências exógenas. A tensão entre


permanência e mudança estava plenamente explicitada aí, e O mito do passado negro
pode ser encarado, sob um ponto de vista, como uma tentativa de equacionar o
problema. Vejamos como Herskovits a empreende.

Escala de intensidade dos Africanismos

Herskovits afirma que as culturas negras do Novo Mundo variam conforme a


região e a classe social considerada, podendo ser localizadas em algum ponto no interior
de um espectro bipolar, uma “escala de aculturação” que se estenderia desde a adoção
plena dos padrões europeus até a transposição plena das culturas africanas à América. A
maior parte das culturas negras, parecia-lhe, se situaria em algum ponto entre esses dois
polos. Seria possível, assim, classificar as comunidades negras americanas segundo o
grau de africanismo que manifestariam em sua vida cultural, relacionado sempre aos
contextos históricos e sociais. Tratava-se de determinar até que ponto as culturas
africanas mudaram, e até que ponto permaneceram idênticas na América. Essa
problemática, bem como a adoção implícita de uma dicotomia entre situações de
africanidade e de aculturação, viria a influenciar decisivamente o debate a respeito da
formação das culturas afro-americanas na historiografia norte-americana. Por ora,
deixemos em aberto este ponto, para reatá-lo depois à discussão.
Façamos um apanhado dos fatores levados em consideração por Herskovits para
explicar o maior ou menor grau de africanismo de uma comunidade afro-americana.
Como bom discípulo do culturalismo, ele considera que os fatores preponderantes
podem ser buscados na diacronia, ou seja, na história das diferentes comunidades
negras, nos diferentes contextos nos quais se configuraram suas culturas, ainda que não
ignore totalmente fatores sincrônicos como a posição dentro das hierarquias sociais do
tempo presente. Entre os fatores sincrônicos, aos quais dá menos atenção, o autor
considera que os africanismos são mais intensos quanto mais baixa a posição ocupada
pelo indivíduo ou pela comunidade negra na escala social. Isso ocorreria porque a
cultura branca recebe maior prestígio social, sendo associada às elites, de modo que os
negros com maior acesso aos círculos sociais das elites teriam maior contato com essa
cultura e maior tendência a adotá-la como signo de prestígio.
Os fatores históricos, no entanto, ganham destaque em sua análise. Em primeiro
lugar, o critério mais decisivo seria o grau de contato entre brancos e negros na história
de determinada região. Por isso, a razão numérica entre brancos e negros seria decisiva:
em regiões com maior porcentagem relativa de negros na população, os contatos com os
brancos teriam sido atenuados em frequência e/ou importância, redundando em maior 33
preservação de africanismos. Isso ocorreria especialmente nas regiões de plantation, em que
as propriedades agrícolas, as escravarias e a porcentagem relativa de negros na população
seriam maiores. A menor porcentagem de negros, por outro lado, acusaria um modelo de
exploração econômica, no passado, baseado em pequenas propriedades e escravarias
reduzidas, criando condições para contatos mais íntimos entre brancos e negros e para uma
aculturação mais intensa destes. Observemos como, neste ponto, critérios demográficos (neste
caso, a razão numérica entre brancos e negros na formação histórica de determinada região)
ganham amplo destaque, o que veremos se repetir na discussão contemporânea sobre o
assunto.

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