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Reinterpretações

À noção de foco cultural, Herskovits adicionou o conceito de reinterpretação, que


permitia elaborar a noção boasiana de sobredeterminação do espírito sobre as influências
externas adquiridas no contato, sistematizando ainda a separação entre
“aparência exterior” e “qualidades imanentes” de um costume ou crença. Na formulação do
próprio Herskovits,

[...] a pesquisa se direcionou não para a questão de quais africanismos foram


transpostos em formas inalteradas, mas sim para a de como, no

45 Ibid., p. XLI.
46 Cf. Ibid., p. 110-142 (The acculturative process).

contato dos africanos com os europeus e com os índios americanos, a


acomodação cultural e a integração cultural foram alcançadas. Pois a essência
do processo reinterpretativo está em diferenciar a forma cultural da sanção
cultural. Sob contato, uma nova forma pode ter atribuída a si um valor já em
funcionamento ao qual ela pode ser facilmente encaixada; ou então uma forma
antiga pode ser assimilada a uma nova, sendo o exemplo mais óbvio disso os
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sincretismos mencionados entre deuses africanos e santos católicos.

A distinção entre “forma” e “sanção” equivale à distinção boasiana entre a “aparência


exterior” de um costume e suas “qualidades imanentes”, ou seja, seu significado e motivação
profundos dentro da vida de uma cultura. Essa separação oferece a Herskovits um aparato
conceitual mais sofisticado para apreciar a questão da sobrevivência de africanismos: o
caráter africano pode ter sobrevivido apenas na sanção, apenas na forma, ou em ambos. Deste
modo, é possível formular uma interpretação de um dado elemento cultural em que
permanência e mudança sejam considerados concomitantemente (uma no âmbito da função,
outra no da forma), como propunha Boas. Entre a adoção plena de valores europeus e a
preservação plena de valores africanos em forma e sanção, haveria a possibilidade de
manifestações intermediárias na “escala de aculturação”.
Como apontei no tocante à teoria boasiana, a difusão cultural tenderia a fazer com que as
formas exógenas fossem adotadas e inflexionadas para se adequarem às qualidades imanentes
endógenas de um espírito orgânico, que tenderia à estabilidade. Contudo, essa interpretação não
soluciona plenamente a situação da aculturação do negro analisada por Herskovits, que
pressuporia a adoção das sanções (“qualidades imanentes”) europeias pelos africanos e seus
descendentes. Por isso, Herskovits postula que a reinterpretação pode ocorrer também em sentido
inverso. Haveria então duas modalidades de reinterpretação: poderia ocorrer a adoção de uma
forma europeia adaptada a sanções africanas, ou então poderia haver a adaptação de uma forma
africana a uma sanção europeia. Na análise que Herskovits faz das sobrevivências africanas na
América, a primeira situação pode ser exemplificada pela estrutura familiar afro-americana, que
une uma forma europeia (o casamento monogâmico) a uma sanção africana (a poligamia),
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resultando num padrão de casamentos elásticos e uniões informais. A segunda situação, por
outro lado, estaria expressa na prática religiosa dos

47 Ibid., p. XXXVII.
48 Ibid., p. 170.

africanos protestantes nos EUA, pois as formas africanas da possessão extática, dos cantos e
das danças teriam sobrevivido, adaptadas a sanções europeias: a teologia e as crenças cristãs
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definidas em torno do monoteísmo. Numa confluência dos termos herskovitsianos e
boasianos do problema, a reinterpretação tanto podia concorrer para a preservação dos
espíritos africanos (o que seria condizente com o caráter orgânico das culturas) quanto para a
adoção do espírito europeu pelos negros (o que seria condizente com a noção de aculturação e
com a formação histórica das culturas por composição de influências).
A primeira opção – a reinterpretação de formas europeias segundo sanções africanas –
esbarraria num problema relativo à formação histórica e demográfica das populações negras
americanas. Isto porque o tráfico teria trazido escravos de regiões africanas diferentes,
portadores, portanto, de culturas bastante heterogêneas. Assim sendo, o contato cultural
colonial e escravista não poderia ser concebido como o confronto entre o espírito europeu e
um único espírito africano. Como falar, então, na preservação de uma sanção africana dentro
da comunidade negra se os escravos que a formavam não compartilhavam as mesmas
concepções e sanções? A questão remete a um dos elementos do “mito do passado negro”. A
primeira resposta de Herskovits está ancorada em um estudo dos padrões do tráfico de
escravos: para ele, os escravos não eram provenientes de toda a África, mas de uma faixa
litorânea que se estendia do Senegal até Angola, com influência mais decisiva das costas do
Ouro e dos Escravos. A preponderância das culturas dessas duas áreas centrais seria
comprovada, para o autor, pela inexistência de cultos afro-americanos a divindades oriundas
de fora dessa área, salvo exceções isoladas. Se apenas este núcleo restrito, que ele denomina
“culturas focais”, for considerado, suas populações tinham uma notável homogeneidade
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cultural, o que simplesmente afastaria o problema da heterogeneidade.
Por outro lado, a heterogeneidade não poderia ser completamente ignorada se se
considerasse a área do tráfico como um todo, incluindo não apenas as “culturas focais” das
costas do Ouro e dos Escravos, mas também todas as outras “culturas periféricas” que
forneceram escravos para as sociedades americanas. Contudo, mesmo ao longo dessa extensa
faixa litorânea, as populações compartilhariam certos traços ou orientações culturais mais
profundas, padrões de comportamento subjacentes a todas as culturas, nos quais Herskovits
pensa em termos de uma “gramática da cultura”, que

49 Ibid., p. 214.
50 constituiria uma unidade basilar que teria permitido o estabelecimento de padrões de
convergência entre costumes específicos. Para ele, existiria “um grau suficiente de
similaridade nas culturas de toda a área, de modo que um escravo de qualquer parte dela não
teria dificuldade em se adaptar a quaisquer formas específicas de comportamento africano que
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ele viesse a encontrar no Novo Mundo.” Recorrendo ao paralelo linguístico, “se é possível
comparar similaridades na gramática das línguas em toda a região da África Ocidental com o
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que podemos chamar de uma gramática da cultura, percebe-se uma situação semelhante.”
A gramática da cultura africana se organizava, para o autor, em torno das seguintes
orientações gerais: a importância dos grupos familiares e o sistema unilinear de descendência
com residência patrilocal; a geritocracia; a economia dominada pelo trabalho agrícola
exercido por homens no preparo dos campos e por mulheres no cultivo, de acordo com a
divisão da terra em unidades familiares; a existência de grupos profissionais especializados
em tarefas artesanais; a importância do culto aos ancestrais; a sofisticação dos sistemas legais
e de justiça; a concepção de um mundo comandado por grupos de grandes deuses com um
importante papel da adivinhação e da magia na vida religiosa; e, por fim, uma grande
importância das manifestações artísticas e estéticas.
No nível teórico, essa “gramática” resolvia a questão da heterogeneidade dos espíritos,
pois ela constituiria, no limite, um único “espírito profundo” da cultura africana, o que
tornaria possível, mais uma vez, pensar o encontro cultural a partir do modelo de confronto
entre dois espíritos: o europeu e o africano. É possível notar que a definição do espírito
africano ocorria prioritariamente em termos de interesse, importância ou orientação, seguindo
a tendência boasiana. Com essa formulação, Herskovits conseguiria explicar a formação das
culturas afro-americanas como um processo de reintepretação de formas europeias segundo
sanções africanas – ou seja, como uma determinação do espírito africano sobre as aquisições
formais europeias.
Em instância após instância citada da literatura relativa aos altamente aculturados
negros dos Estados Unidos, foi demonstrado como uma análise adequada dessas
formas vestigiais de práticas africanas conduz ao reconhecimento de sanções africanas
ligeiramente modificadas sustentando formas de uma instituição que são quase
inteiramente europeias. Esse princípio de desconsideração pela forma exterior
enquanto se retêm valores interiores,

51 Ibid., p. 78.bid., p. 81.característico dos africanos em todos os lugares, revela-se


assim como o mais importante fator a ser levado em conta para a compreensão da
situação aculturativa.53

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