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Transformar africanismos.

autenticamente, em provas de resistência é aceitar o pressuposto de que o


significado dos traços culturais é determinado por sua origem, sem se atentar para o fato de que traços
culturais, reais ou supostamente originários da África, podem ter significados diversos na sociologia
brasileira..

Quando se ocupam dos outros, o nagô mais "puro" é sempre tomado como ponto de referência. Nesta
perspectiva, a Umbanda, a Macumba, os Candomblés de Caboclo e de , Angola, na medida em que se
afastam do modelo, são tidos como degenerados". deturpados", "sobrevivências religiosas. menos
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interessantes", avaliações que permeiam os trabalhos que vão de Nina Rodrigues no fim do século
passado a Roger Bastide em anos recentes.

O que está subjacente neste raciocínio é que o modelo "nagô puro" representaria reahnente uma
continuidade de instituições culturais africanas que, para aqui transplantadas e conservadas graças à
memória coletiva negra, reproduziamse guardando fidelidade às origens, inclusive nos seus significados,
tornando-se assim sinais de resistência. Em contrapartida, os que se misturavam com outras tradições,
degenerando da sua pureza original, tornavam-se mais integrados. Obviamente integração e resistência
passam a ser avaliadas pelo grau de "pureza", esta definida a partir dos traços culturais encontrados nos
terreiros, e tidos como africanos.

Frednck Barth considera o grupo étnico como uma forma de' organização social em que se enfatiza a
interação. Apesar disso o grupo não se dilui, pois mantém um complexo organizado de comportamentos e
relações que marcam fronteiras étnicas entre "os de dentro" e "os de fora". Na construção e manutenção
dessas fronteiras, traços culturais são usados como marcas diferenciais; mas apenas algumas dessas
diferenças são consideradas significativas pelos atores, e não a soma total das diferenças. O foco
central da investigação é "a fronteira étnica que define o grupo e não a matéria ,cultural que ele encerra"
(Barth,1969: 15).

Por seu lado, Abner Cohen considera os grupos étnicos como grupos de interesse que manipulam parte de
sua cultura tradicional como meio de efetivar a articulação do grupo na busca do poder: Assim, a
etnicidade, antes de ser um fenômeno cultural, é vista como um fenômeno essencialmente político,
no qual normas, valores e mitos são relacionados e usados para expressar funções organizacionais. e
opera dentro de um contexto político e atual, e não como um arranjo sobrevivente e arcaico realizado no
presente pelo povo conservador (Cohen, 1969).

Para ambos os autores a cultura passa a ser não o elemento definidor da etnia, mas um arsenal geralmente
usado para marcar distinções, visto que a etnia implica uma situação de alteridade - afirmação do nós
perante os outros.

A etnia não pode ser definida apenas pela cultura, de maneira que esta pode ser manipulada pelo grupo,
movido por seus interesses, busca um espaço próprio ou esboça uma resistência.

O que me proponho é questionar a validade das comparações dos estoques culturais dos cultos afro-
brasileiros, enfim, de culturas que estão submetidas a processos históricos e sociais diferenciados, e
analisar a utilização do simbólico por diferentes grupos sociais; e o faço a partir da "glorificação do nagô"
efetuada por uma corrente de intelectuais e por um grupo religioso que se auto-identifica como tal.
Diante disso, passei a repensar a "pureza nagô" e perceber que os traços culturais invocados para atestá-la
recortam-se e combinam-se diferentemente para estabelecer o contraste e que seus significados, assim
como as palavras, admitem uma polissemia e se definem no contexto social do presente e na relação das
forças que envolvem os estruturalmente superiores e inferiores.

A identificação que esses terreiros fazem de si e dos outros, o reconhecimento social da importância
desigual que lhes é atribuída pelos próprios participantes dos cultos e pelas pessoas "de fora" serão os
tema.s desenvolvidos nesse capítulo, que visa estabelecer a configuração do prestigio num mercado de
Xangô.'

Por ora tentarei buscar os vínculos existentes entre os terreiros com o fim de estabelecer elos de
ligação entre a auto-identidade e a identidade atribuída pelos outros na medida em que esta parece
elaborada em cima da "história do terreiro", muito colada à vivência do seu dirigente e às suas
vinculações anteriores com outros centros de culto, onde, afinal, teria recebido sua formação.

Convém chamar a atenção para o fato de que os dois terreiros apontados como mais importantes, apesar
das diferenças de trajetória em relação ao legado original e à sua identidade, têm muito em comum.

Por essa via a narrativa liga O presente ao passado e remete à África. Esta é a fonte de legitimidade do
terreiro e de sua dirigente. É à base da idéia de continuidade e fidelidade à África que se constrói a
"pureza", sinal que o distingue dos torés "misturados" da cidade, nos dias de hoje, conferindo ao terreiro e
à sua dirigente uma posição de destaque na escala de prestígio em que são ordenados os centros de culto
de segmento afro-brasileiro local.

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