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Capitulo I – Candomblé de Caboclo

Serviremo-nos aqui, à larga, da recente dissertação de mestrado de SANTOS (1992), "O


dono da terra; a presença do caboclo´´nos candomblés da Bahia", que veio preencher
uma importante lacuna nos estudos das religiões afro-brasileiras que, no caso do
candomblé, tradicionalmente restringiram o foco de sua atenção ao estudo dos ritos
nagô. Esta preferência pelo rito nagô se teria devido à assimilação, pelos estudiosos,
do discurso nativo da "pureza", isto é, a suposta maior preservação, nesses ritos, dos
elementos "originais" de seus equivalentes africanos, em um processo de legitimação
da religiosidade "negra" em que os discursos e as ações dos pais e mães-de-santo e
dos intelectuais se interpenetraram numa espécie de cumplicidade.
Essa última autora mostrou como a "tradição" nagô, em Laranjeiras-SE, difere da sua
equivalente em Salvador, e, como ela tem, lá, a mesma função legitimadora de uma
"pureza nagô", a marcar distância em relação aos terreiros pejorativamente
designados "misturados", chefiados pelos "torezeiros". Esse enfoque nos será muito
útil à análise do Toré, embora invertendo o foco da atenção. De fato, a obra de
DANTAS ressente-se de um tratamento empírico pelo menos tão aprofundado dos
chamados "torezeiros misturados", quanto o que concedeu aos "nagôs puros",
embora isso se justificasse em relação aos seus propósitos teóricos. Fosse feito isso e
se teria aberto um filão empírico, talvez sob a forma teórica de um campo religioso,
muito fértil às análises, e, sob esse aspecto da oposição "negroíndio", muito mais
nítido em Sergipe e Alagoas que na Bahia.
Segundo SANTOS, não existe propriamente um "candomblé de caboclo", tomado como
uma variante independente e claramente distinta de outras "nações" do candomblé
baiano, como o ketu, o jêje ou o angola. O que existe, pelo menos hoje em dia, são os
cultos ao "caboclo" no interior das práticas das outras "nações", especialmente a
angola, mais ligada a uma "tradição" bantu que as outras, mais próximas da sudanesa.
Todavia, em todas elas há "festas" - no mínimo certos ritos privados - para os
"caboclos", mais ou menos públicas e admitidas, por vezes firmemente negadas,
conforme o grau de "pureza" nagô reividicado pelo terreiro em questão, valendo isso
mesmo para as casas mais "tradicionais" e
famosas da Bahia.
Entretanto, SANTOS não descarta a existência, no passado, de um rito especificamente
"caboclo". Para ele, o culto ao "caboclo", no candomblé da Bahia, data da segunda
metade do século XIX e é, portanto, anterior à formação da Umbanda, sugerindo até
que teria sido a matriz inspiradora desta última.
"tanto pelo amálgama de influências 'indígenas', católicas e
kardecistas quanto pelo grau de nacionalismo que se nota na
existência do caboclo".
Assim, se hoje é comum muitos terreiros denominarem-se de "nação caboclo",
"caboclo / ketu", "angola / ketu / caboclo", amiúde seus adeptos, sobretudo os mais
velhos, afirmam não existir mais o "candomblé de caboclo" de outrora, ou seja,
aqueles candomblés, não importa que nome se desse à "nação", em que a
"estrutura simbólica, fosse de ordem material, linguística ou ritual, estaria ligada
exclusivamente aos 'índios' brasileiros".
De nossa parte, obtivemos do antropólogo Ordep Serra uma referência - a que ele teve
acesso em depoimento de um pai-de santo, cujo terreiro estudou - da existência, no
passado, entre os candomblés baianos, de uma sugestiva "linha de Toré". Apesar de se
tratar de uma referência de segunda mão, e já distanciar-se bastante o momento de
seu registro, ela pode indicar que teria havido, também na Bahia, fenômeno
semelhante ao que ainda hoje há em Sergipe e Alagoas, isto é, "torés" praticados por
populações mestiças, conjuntamente com elementos mais próximos de uma
tradição "africana". Não tivemos, contudo, condições práticas de averiguar essa pista.
Deixemos, pois, apenas essa referência acerca de uma possível "linha de toré" em
Salvador.
SANTOS nota, ademais, que aquele processo de "purificação" legitimadora sofrido
pelos candomblés baianos, desde o segundo quartel de nosso século, acabou por levar
a uma gradativa diminuição do número de terreiros que cultuam abertamente ao
"caboclo". O mesmo ocorrendo com aqueles que se afastam mais da "tradição" nagô,
como os congo e angola - significativamente os mais permeados pela presença do
"caboclo".
Estes também têm procurado "purificar-se", inclusive alterando sua denominação, em
nome da legitimidade e da conquista de adeptos, processo que se verifica ainda hoje
muito fortemente.
Assim, para SANTOS, os pioneiros no estudo do candomblé, Nina Rodrigues, Arthur
Ramos e Edison Carneiro, não chegaram a inventar a expressão "candomblé de
caboclo", mas antes incorporaram-na do uso já vigente entre o povo de santo da Bahia
no século XIX . Carneiro, pelo menos, a justifica por sua utilidade para o estudo. Para o
povo de santo, porém, ela ganhou um significado político importante para a
demarcação das fronteiras que ainda hoje avivam a rivalidade histórica entre as várias
"nações" do candomblé baiano.
SANTOS , por outro lado, tenta reconstituir o que devem ter sido esses candomblés de
caboclo no passado, apoiando-se em observações de Manuel Querino, a partir de
objetos apreendidos pela polícia, em 1919, na invasão de um desses terreiros:
"Três são as entidades dirigentes que os sacerdotes e praticantes acreditavam: Jesus
Cristo, São João Evangelista e São João Batista sendo que Jesus Cristo possuia o nome
de Caboclo Bom. Dizia que adoravam com grande respeito o símbolo da cruz ao mesmo
tempo que acreditavam nas revelações dos ciganos quanto ao presente e ao futuro. A
iniciação, nesses candomblés, era feita numa choupana na mata virgem num espaço
de trintadias. Se a influência católica era notada não só pelo símbolo da cruz como
pela celebração de missas, a influência africana também o era pela forma como os
encantados chegavam "à cabeça das mulheres". O preparo das ervas diferia do
candomblé tradicional pela "quantidade e qualidade" – eram empregadas duas ervas
com o destaque para a jurema. Os atabaques seriam os mesmos do candomblé
tradicional".
Fica bem clara aqui a possibilidade de uma analogia com elementos centrais aos Torés
dos índios nordestinos, e essa "sobreposição" de elementos indígenas e africanos,
permeados por um catolicismo popular, é em tudo semelhante aos "torés
misturados" a que se refere.
Com base na memória de seus informantes, SANTOS identifica uma série de
expressões substitutivas das do candomblé "tradicional", e também a substituição dos
búzios da adivinhação por caroços de jaca e abacate, bem como a presença de
atabaques feitos de barro e couro de veado, acompanhados de cabaças, pandeiro,
ganzá, barimbau, triângulo e caxixi. Em seguida, refere uma correspôndência que lhe
foi fornecida entre nomes de encantados e orixás, em que se nota a presença de
denominativos de orígem bantu para os encantados, correspondência à qual
remetemos o leitor mais interessado nisso, e ressaltamos, aqui, apenas a utilização do
termo encantado ao invés de caboclo, o que já nos faz pensar. Quanto aos "trabalhos"
feitos nesses terreiros assim os caracteriza SANTOS:
"incluiam a observação das fases da Lua, da maré, do Sol e da chuva tidos como
referências centrais dos índios brasileiros. Além disso a consulta aos membros mais
velhos dos terreiros era obrigatória. Este fato é explicado pela visão que os adeptos
tinham da figura do Pajé tido como o mais velho, o "rei" das sociedades indígenas
brasileiras. Nesse sentido havia uma transposição simbólica do Pajé das sociedades
indígenas para o grupo de pessoas de "maior grau" dos candomblés de caboclo
fazendo com que houvesse uma espécie de "gerontocracia" na "feitura dos trabalhos"

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