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Capitulo II – Santidade

"No sertão desta capitania para as bandas de jaguaripe se levantou uma errônea
idolatria gentilica, a qual sustentava efazia os brasis deles pagãos, e deles cristãos, e
deles forros, e deles escravos, que fugiam a seus senhores para a dita idolatria
(. ..J e tinham um ídolo de pedra, a que faziam suas cerimônias e adoravam dizendo
que vinha já o seu Deus a livrá-Ias do cativeiro em que estavam, e fazê-tos senhores da
gente branca, e que os brancos haviam de ficar seus cativos .:,
(Depoimento de Gonçalo Femandes ao Santo Ofício, BA, 1592,
citado por Azzi, 1987:87).

O movimento religioso conhecido por Santidade de Jaguaripe deu-se por volta do ano
de 1585, no Recôncavo Baiano. Sua história, ainda pouco conhecida e analisada,
é um daqueles intrigantes episódios que se situam nos limites de fronteiras
culturais.
Inicialmente organizado no lugar chamado Palmeiras Compridas, a Santidade teve
como primeiro líder um índio,ex-aluno de padres jesuítas, que havendo fugido do
colégio em Tinharé, capitania de Ilhéus, fundou o movimento.
Antônio, como era chamado
o líder deste movimento antes de ser caraíba, conhecia a mitologia heróica tupinambá.
Dizia-se sobrevivente do dilúvio, fazendo-se chamar por Tamanduaré .variante de
Tamendonare, um dos gêmeos que sobreviveram à grande inundação, e um dos
principais ancestrais daquela nação (Vainfas, 1992).
Os seus seguidores, formavam um "ajuntamento eclético" de cativos e forros, que
funcionava como refúgio para os ameríndios escravizados ou aldeados,
independentemente de suas origens étnicas.
Parte deste movimento, conta Vainfas, deslocou se para o engenho de Fernão Cabral
de Taíde, o principal senhor de terras da região. (vamos estudar mais detalhadamente)
Seguiram Tomacaúna (Domingos Fernandes), mameluco enviado sob ordens do senhor
de engenho, com a incumbência de transferir o movimento para suas terras,
convencidos pelo emissário de Femão Cabral de que gozariam de liberdade de culto e
na esperança de encontrar seu paraíso.
A parte da Santidade que concordou em migrar contava com cerca de sessenta
a oitenta índios liderados por Mãe de Deus e Santinho. O líder principal não seguiu, e
sobre esta outra parte do movimento que permaneceu em seu campo de origem,
por enquanto não se tem notícia.
No engenho, os adeptos da seita construíram uma igreja, ao seu modo, e expandiram
o número de seguidores, até mesmo entre os brancos. Sobre a igreja há relatos bem
interessantes que nos dão uma idéia de como era o lugar:
"Contou Simão Dias que, à porta do terreiro, na casa erigida como igrejados
índios,ficava uma cruz de pau, e no interior, penduradas pelas paredes, diversas
tabuinhas de madeira, pintadas com uns riscados 'que eles diziam serem seus livros'.
No centro do terreiro aparecia uma estaca alta de madeira enterrada no chão, sobre a
qual se postava o ídolo de pedra 'que tinha uma cara figurada com olhos e nariz
enfeitado com paninbos velhos'; uma figura incerta - concluiu a testemunha,
guardada por um índio a que chamavam sacristão".

Outra referência que completa o panorama sobre a igreja cita um altar com castiçais,
pia de batismo e confessionário, e a figuração do ídolo como um gentio (Azzi, 1987:).
O fim deste movimento foi trágico: considerado heresia, os índios foram expulsos, o
dono do engenho punido e a igreja destruída. Entre os anos de1591 e 1592 a
Santidade foi reprimida e devassada pelo governador e pelo Santo Ofício.
Durante o processo inquisitorial, por ocasião da visitação do Santo Ofício, foi
constatada significativa participação dos brancos na Santidade. Havia freqüentadores
ilustres, como a esposa do grande senhor de engenho - Margarida da Costa -, que
confessou ter participado durante dois meses dos ritos indígenas, por ter convicção de
que se tratavade prática católica:
'Tinha para si e dizia que não podia ser aquilo demônio, senão alguma coisa santa de
Deus, pois traziam cruzes de que o demônio foge, e pois faziam reverências às cruzes e
traziam contas e nomeavam Santa Maria. "(Depoimento citado por
Azzi, 1987: 196).
Outros depoimentos, como o de Luíza Barbosa, não confirmam a livre adesão ao
movimento, sobre o que resta dúvida quanto a sua veracidade, mediante a
circunstância do relato:
"Confessando-se disse que sendo ela moça de 12 anos pouco mais ou menos, se
alevantou nesta capitania, entre os gentios e índios deste Brasil cristão, se alevantou
uma abusão chamada entre eles a santidade, como muitas vezes depois disso se
alevantou também nesta capitania.
A qual era que diziam os ditos brasis, assim cristãos como gentios, que aquela sua
santidade era um Deus que eles tinham que lhes dizia que não trabalhassem porque os
mantimentos por si próprios haviam de nascer, e que quem não cresse naquela
santidade se havia de converter em paus e pedras, e que a gente branca se havia de
converter em caça para eles comerem, e que a lei dos cristãos não prestava, e assim
diziam, e tinham muitos outros despropósitos. "(Depoimentocitado por Azzi, 1987).
Tudo leva a crer que houve uma grande penetração deste movimento na sociedade
colonial, particularmente na esfera dogmática e litúrgica da Igreja, fora isto, não se
justificaria a reação arrasadora das instituições coloniais contra ele. De caráter
eminentemente anticolonial, representou uma ameaça por causa de sua capacidade
de arregimentar escravos fugidos de toda a capitania e membros de outros estratos
étnicos e sociais, além de estimular a formação de outros núcleos de rebelião
(Vainfas, 1992).
O desafio teórico que a Santidade de ]aguaripe nos impõe é entender o caráter de seu
conteúdo católíco-tupinambá.
Das descrições do movimento podemos pinçar os componentes que são expressão de
ambigüidade: o céu, o batismo, os nomes, as orações, as confissões, as reverências ao
ídolo e os objetos que compunham a igreja (altares, mesa, sacristia, pia de
batismo, água benta, castiçais de pau, livros de folhas de casca de árvore, cadeiras
para confessar mulheres, instrumentos musicais, rosários e cruzes).
Destes componentes tomamos o céu e o batismo, por reunirem mais elementos, a
partir dos quais podemos levantar algumas idéias.
Em sua pregação, a Santidade era o verdadeiro caminho para se chegar ao céu. Porém,
"a qual céu se referia a pregação? Ao paraíso cristão ou à terra sem mal?" (dos
tupinambás). O autor admite a possibilidade da noção do paraíso cristão ter sido
integrada ao universo simbólico da Santidade. Por outro lado, cita a parábola tupi
freqüentemente enunciada pelo caraíba (pajé), de que não seria mais necessário
trabalhar, posto que, caso a Santidade triunfasse, os alimentos nasceriam
espontaneamente da terra ou seriam caçados pela ação das próprias flechas.
Isso o leva a concluir por uma "confusão entre os dois paraísos", justífícada pela
heterogeneidade dos adeptos da seita, não só índios, mas também negros
e brancos.
A cerimónia do batismo dos novatos era presidida pelo caraíba, que fazia uso de água
e de óleos no ofício. O nome do estreante era escolhido pelo chefe religioso e tanto
podia ser nome cristão como tupi.
São nomes como Papa (o do caraíba), Mãe de Deus (líder da Santidade em jaguaripe),
Santinho ou Santíssimo (auxiliar de Mãe de Deus). Bispos e vigários são também
nomeados, não ficando claro se estas nomeações denotavam a reprodução da
instituição clerical ou apenas o uso dos nomes, sem os seus significados.
Em todo caso, embora a cerimônia do batismo fosse uma afirmação do ritual católico,
o seu significado era a negação do batismo cristão. Mas aqui se coloca uma questão:
esta negação levava de volta à condição indígena ou apontava para uma purificação
do ritual católico? Embora este evento possa ser visto como a negação do batismo
cristão, por outro lado ele pode ser percebido como um aperfeiçoamento deste
sacramento.
Nesse caso, o batismo não seria a negação dos preceitos do catolicismo. Seria a
negação da prática dos padres, considerada incongruente com os seus preceitos
doutrinários.
Enfim, tanto para o tema do céu como para o tema do batismo, é necessário uma
investigação mais profunda para que se possa perceber mais a
contendo os sentidos que tiveram.

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