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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Letras

Carlos Eduardo Ferreira de Oliveira

A fábula de João Cabral, segundo José Guilherme Merquior

Rio de Janeiro

2022
CARLOS EDUARDO FERREIRA DE OLIVEIRA

A FÁBULA DE JOÃO CABRAL, SEGUNDO JOSÉ GUILHERME MERQUIOR

Trabalho de conclusão da disciplina Textos


Seminais em Teoria da Literatura / Literatura
Comparada – Teoria da Literatura e História
da Crítica: momentos decisivos; ministrado
pelo Prof. Dr. Nabil Araújo na área de Estudos
de Literatura do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro.

RIO DE JANEIRO

2022
RESUMO

O presente trabalho pretende problematizar algumas relações entre o poema


“Fábula de Anfion”, de João Cabral de Melo Neto, publicado no volume Psicologia
da composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947) e o ensaio “Nuvem civil
sonhada”, do crítico José Guilherme Merquior, coligido no livro As astúcias da
mimese (1972) amparado nos textos e discussões teóricas que envolveram a
disciplina Textos Seminais em Teoria da Literatura / Literatura Comparada,
ministrada pelo professor Mário Bruno, no Programa de Pós-Graduação em Letras
da UERJ. O texto busca relacionar as escolhas do poeta em relação as diferenças
verificadas entre o mito e a paráfrase realizada por João Cabral no poema, além de
comparar e comentar os apontamentos críticos realizados por J. G. Merquior. O
objetivo deste estudo é verificar as observações do crítico à luz de referenciais
teóricos diversos, buscando produzir outras interpretações, a considerar o aparato
investido. Por outro víeis, estas relações poderão afirmar, a validade de determinado
instrumental e a pertinência de sua aplicação no horizonte de época atual e, ainda, a
pertinência da segmentação da linguagem para formulação de juízo estético.

Palavras-chave: Linguagem. Poética. Critica. Literatura. Teoria.


ABSTRACT

The present work intends to problematize some relations between the poem "Fábula
de Anfion", by João Cabral de Melo Neto, published in the volume Psicologia da
composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947) and the essay "Nuvem civil
sonhada", by the critic José Guilherme Merquior, collected in the book As astúcias
da mimese (1972), based on the texts and theoretical discussions that involved the
course Textos Seminais em Teoria da Literatura / Literatura Comparada, taught by
professor Mário Bruno, in the Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ. The
text seeks to relate the poet's choices in relation to the differences verified between
the myth and the paraphrase made by João Cabral in the poem, as well as to
compare and comment on the critical notes made by J. G. Merquior. The objective of
this study is to verify the critic's observations in the light of various theoretical
references, seeking to produce other interpretations, considering the apparatus
invested. On the other hand, these relations will be able to affirm the validity of a
certain instrument and the pertinence of its application in the current time horizon
and, also, the pertinence of the segmentation of language for the formulation of
aesthetic judgment.

Keywords: Language. Poetics. Criticism. Literature. Theory.


SUMÁRIO

1. Um poeta e sua crise....................................................................................................................8

2. “Fábula de Anfion”.......................................................................................................................9

3. A insuficiência da linguagem e a linguagem pura da poesia...........................................11

4. Uma aporia, uma linha de fuga?..............................................................................................12

5. Considerações finais.................................................................................................................13
1. Um poeta e sua crise

O percurso crítico historiográfico que orienta a obra de João Cabral de Melo


Neto tem início com a edição do volume Pedra do sono (1942), enquanto a recepção
crítica ganha curso com a publicação do ensaio “Poesia ao norte”, por Antonio
Candido, no jornal Folha da Manhã, em junho de 1943. O ensaio crítico se pauta
pela comparação entre dois livros de poemas lançados à época, o primeiro de
autoria de João Cabral de Melo Neto, Pedra do sono, e o segundo de autoria de Rui
Guilherme Barata, Anjo dos abismos (1943). O que, a princípio, aparentava um
exercício de comparação e expansão das fronteiras literárias, se realiza, de fato,
como reconhecimento de atributos e maneirismos presentes nos poemas coligidos e
que, por conseguinte, culmina na tarefa de apontar aspectos de estilo a serem
desenvolvidos pelo poeta pernambucano. Contudo, a reflexão se organiza em torno
de análises e comparações de poemas com o intento de extrair semelhanças e
diferenças entre a fatura do estreante e dos poemas e poetas que circulavam
naquele momento. O outro poeta, objeto do ensaio, é mencionado, superficialmente,
diante das seis páginas dedicadas a Cabral, em dois sucintos parágrafos. A
consequência desse ensaio é a precisão dos comentários de Antonio Candido sobre
o vir a ser da poética cabralina, vislumbrando na limitada amostragem aspectos que
se tornaram dominantes no fazer do poeta pernambucano. 
A trajetória editorial prosseguiria com a edição de um fracassado projeto de
teatro hierático publicado como poema de vozes: Os três mal-amados (1943) e, na
sequência, o volume de poemas O engenheiro (1945). Apesar do reconhecimento
da qualidade dos poemas, a crítica da época localizava em suas camadas
subjacentes certa hesitação em afirmar um estilo próprio e, a despeito da recepção
dos poetas do Rio de Janeiro e da acolhida do livro O engenheiro, o efeito das
críticas deflagra uma crise no poeta.
Embora fosse possível identificar em O engenheiro a proposição estética da
poética cabralina, esta encontrava-se mesclada sob a influência das imagens
surrealistas, tributárias da tradição simbolista, que persistem em alguns poemas do
volume. Conforme é possível constatar na identificação precisa das influências
encontradas nesse período, segundo o apontamento crítico de Luiz Costa Lima:
Se O engenheiro representa uma etapa capital na elaboração poética de
João Cabral assim acontece porque nele entram em choque duas
configurações poemática opostas: uma em que se fundamentava a feitura
da Pedra do sono e outra que, embora neste livro de estreia já pressentida,
ainda não entrara em pleno funcionamento. À primeira chamaremos de
configuração de tipo lunar, noturno, fundada na tradição simbolista, nutrida
pelo surrealismo, embora desde já nem simbolista nem surrealista. À
segunda chamaremos de tipo concreto-solar, através da qual será levado a
cabo a reformulação da tradição mallarmaíca, agora arrancada das névoas
simbolistas. (COSTA LIMA, 1995, p. 208)

O lapso entre os comentários de Antonio Candido, em 1943, e o ensaio crítico


de Luiz Costa Lima, cuja primeira edição data de 1968, permite constatar a
hesitação que frequentava os poemas de João Cabral até que se instalasse o
cálculo e a concreção como características do artesanato cabralino e a hesitação
cedesse lugar à obsessão, como marca comum entre o poeta e a obra.
A crise instalada, porém, seria enfrentada no volume que segue no percurso
editorial do poeta. Psicologia da composição com a fábula de Anfion e Antiode
(1947), editado em Barcelona, corresponde ao despertar da reflexão crítica que vai
se estabelecer como uma das linhas de força do poeta pernambucano. Cabe nesse
ponto uma nota de apresentação, da autoria de Antonio Carlos Secchin, extraída do
volume João Cabral de Ponta a Ponta (2020):
Psicologia da composição reúne três poemas que, ironicamente,
desvinculam o gesto criador dos traços biográficos do artista, culminando na
busca depurada da “severa / forma do vazio”. A Fábula reescreve o mito
grego, substituindo uma original alegria criadora por uma ascética e
asséptica travessia no deserto, para a personagem encontrar a esterilidade
e a mudez. Antiode renega a concepção de arte como algo sublime ou
transcendente, conforme se lê no subtítulo “contra a poesia dita profunda”.
(SECCHIN, 2020, p.68) (grifos do autor) 

O conjunto proposto por Psicologia da composição com a fábula de Anfion e


Antiode aborda diretamente questões referentes à poesia e a natureza do poema.
Deste modo, o volume corresponde às indagações que orientaram as escolhas e
nutriram hesitações no poeta e, de algum modo, se fez recurso para o poeta definir,
pela via crítica da metalinguagem, a lucidez que orientava o seu gesto criador.
Partindo do volume acima apresentado, este estudo intenta problematizar
alguns aspectos críticos selecionados por José Guilherme Merquior num conjunto de
textos crítico intitulado A astúcia da mimese (1972), mais precisamente na segunda
parte do conhecido ensaio “Nuvem civil sonhada” que tem como subtítulo “A ‘poesia
da poesia’ como reflexão ontológica”.

2. “Fábula de Anfion”

O que é “Fábula de Anfion”?


“Fábula de Anfion” é o poema de abertura do livro que, sob o artifício de uma
alegoria produzida sobre o mito da fundação da cidade grega de Tebas, se empenha
em apresentar os fundamentos que sustentam a ideia da poesia pretendida pelo
poeta pernambucano. Poesia que, ascética e lúcida, ciente dos vazios e desertos da
linguagem, nutrida pelo atrito, pela escassez e fazendo dessa condição recurso de
sua feitura. O ensaio de Merquior parte de algumas interpretações vigentes do
poema. 
A título de introdução, importantes ensaios, que desenvolvem interpretações
acerca da poética de João Cabral de Melo Neto, a partir do mesmo poema, são
citados como referência e subsídio para a leitura do crítico em questão. O primeiro
crítico citado por Merquior é Othon Moacyr Garcia, com “A página branca e o
deserto”, um ensaio publicado na Revista do Livro entre setembro de 1957 e junho
de 1958 e, posteriormente, coligido no volume Esfinge Clara e outros enigmas
(1996). Conforme Merquior, “Para Othon Moacyr Garcia, Anfion procura a
esterilidade, antes e depois da construção de Tebas, isto é, do poema”
(MERQUIOR, 1972, P. 102). A interpretação de O. M. Garcia, de acordo com
Merquior, está fundada em duas hipóteses, a primeira Anfion é “o acaso
fecundante”, um eufemismo para fonte da inspiração, o poeta, e, a segunda, o
retorno a esterilidade que determinaria o fim da angústia pela impotência de realizar-
se através da insuficiência da linguagem. A síntese do ensaio de Garcia, na leitura
de Merquior, fica assim assinalada:
Embora o intérprete saiba que “a luta pela expressão” serve também de
espelho de outras lutas, de outros combates da experiência humana, o
sentido básico de sua leitura se condensa na ideia de que a Fábula versa
sobre o velho tópico da insuficiência da linguagem. (MERQUIOR, 1972,
p.102) (grifo do autor) 

O segundo movimento de Merquior é identificar uma segunda corrente de


interpretação, que lê o poema como parte de uma suposta evolução do poeta, sendo
este, um elo da cadeia, mas ainda radicado na síntese da insuficiência da
linguagem, assim demonstrada: “O significado essencial do poema se encarnaria no
gesto de Anfion ao jogar a flauta, presa de uma indomável insatisfação”.
(MERQUIOR, 1972, p.103). Nesse movimento, o crítico incluiria ainda os espanhóis
Angel Crespo e Pilar Gómez Bedate, autores do ensaio Realidad y forma en la
poesia de Cabral de Melo, que numa contraposição ao libreto Anfion (1931), de Paul
Valéry, “consideram a Fábula como o clímax dos impulsos cabralinos de ‘tendência
ao niilismo' e de ‘negação da poesia'''. Assim como no primeiro movimento, o autor
realiza uma síntese comparativa cujo objetivo é preparar o leitor para a sua
interpretação:
Estes são, até agora, os dois grandes ângulos de leitura da Fábula de
Anfion. Note-se que, muito significativamente, eles convergem para o
significado intrínseco do poema: segundo ambos, a Fábula falaria, em
última análise, da insuficiência da linguagem poética. A diferença está em
que, enquanto O. M. Garcia contempla esta limitação como absoluta, —
como algo inerente à condição de linguagem — os analistas da segunda
corrente, não a concebendo como deficiência da linguagem em si, mas
como limitação da poesia, resgatável pela sua conversão ao realismo
inspirado pela crítica social, veem essa mesma insuficiência como relativa e
condicional. Para eles não é a linguagem que é gratuita: é a linguagem da
poesia pura. Não creem em inania verba, e sim — fora de a eventualidade
da poesia passar a servir um ideal social — em “inania carmina”.
(MERQUIOR, 1972, p.104) (grifos do autor)

A interpretação de Merquior inicia pelo levantamento formal da materialidade


do poema, realizando a contagem de versos, estrofes e rubricas e segue anotando
as divisões internas e indicativos propostos pelo poeta. Tratou, ainda, das
particularidades acerca da mancha gráfica no espaço da página. Cada rubrica
assinalada por João Cabral foi convertida num tempo narrativo na preparação do
exercício crítico. Assim, a rubrica O deserto corresponderia ao “Antes da criação”, O
acaso, a “Criação de Tebas” e Anfion no deserto corresponderia a “Após a criação
de Tebas”. A perspectiva da interpretação começa enquadrando o poema
sintaticamente, localizando sujeito, predicado e identificando o encadeamento das
orações. A análise sintática, um instrumento da prosa, se faz recurso na estilística
da frase, contudo, a colocação inusual dos elementos frasais são identificadas sem
qualquer indicativo funcional, resultando num dado que não contribui na significação
do conjunto que participa.
A palavra passa a ser a unidade de avaliação na sequência, as repetições e
as classes de palavras são elementos de transição para iniciar a identificação e
comentários acerca dos recursos expressivos — a personificação de determinados
elementos. A análise do primeiro segmento, O deserto, conduz para uma fusão, que
sintetiza o herói e o deserto. O deserto como vazio, depuração da paisagem e do
herói, que se encontra fundido nela, se vincula, mesmo parcialmente, com as
questões levantadas acerca da insuficiência da linguagem. Algumas locuções são
destacadas “preciso círculo” que pela ordem adjetivo/substantivo evoca a concepção
de cálculo, adiante, já com a ordem usual, substantivo/adjetivo, “gesto puro”
denuncia o ascetismo como desejo de Anfion, a propalada depuração da linguagem.
O segmento que avança no poema é constituído a partir de uma saturação de
imagens, todo esse movimento encontra-se apartado por parênteses, partindo do
advérbio “ali” e adotando um tom evocativo, beirando o dramático. As imagens fluem
para a claridade, no entanto, a leitura de Merquior encaminha para elementos
prospectados em O engenheiro, como endosso à hipótese evolutiva da poesia
cabralina.

3. A insuficiência da linguagem e a linguagem pura da poesia

Desse ponto, se faz necessário determinar a questão que se impõe nos


apontamentos extraídos do ensaio de J. G. Merquior. Utilizando os termos — inania
verba e inania carmina — selecionados pelo crítico para assinalar as duas hipóteses
de leitura, identificadas na crítica de então, seria a leitura formalista, com a sua
vocação essencialista, o melhor instrumento de interpretação para explorar este
poema? Em que medida a tese evolutiva apenas resiste como um anacronismo
crítico após a revolução das vanguardas?
A percepção que o método aplicado por Merquior, em sua proposta de
interpretação, está organizado em uma hierarquia que privilegia a abordagem
estilística, em seus variados estratos. Entretanto, explicita uma incontornável
contradição: admitida “a insuficiência da linguagem” ou mesmo “a gratuidade da
linguagem pura da poesia” o estudo intrínseco do poema resultaria numa aporia,
fosse pela constatação da “insuficiência da linguagem” e da circularidade que tal
vício impõe, não é possível utilizar da linguagem precária para precisar a
precariedade da linguagem, tal possibilidade se converteria num exercício
tautológico, o recurso insuficiente evocado para flagrar a insuficiência seria um
exemplo e não uma explicação. A outra possibilidade, que assinala “a gratuidade da
linguagem pura da poesia”, por seu turno, está fundamentada num frágil juízo de
valor que considera a poesia um exercício de depuração da linguagem sem
objetividade, portanto, gratuita. Ocorre que, ao purificar a linguagem, restaria a
linguagem literária, apartada da história, de um lado, e as impurezas ou resíduos, de
outro. Tal argumentação está estampada no capítulo “Estilo e Estilística” da Teoria
da Literatura (1962), de René Wellek e Austin Warren, deste modo:
A linguagem é, literalmente, a matéria-prima do artista literário. Poder-se-ia
afirmar que toda a obra literária é meramente uma seleção feita numa dada
linguagem, tal como as obras de escultura já têm sido descritas como
blocos de mármore a que se desbastaram alguns pedaços. (WELLEK;
WARREN, 1962, p. 217)

A consideração essencialista da linguagem orienta por completo este critério


argumentativo, do mesmo modo em que revela a sua cabal impossibilidade. As
impurezas e resíduos revelam o que excede à poesia, como linguagem pura, ao
mesmo tempo em que ainda é definida como parte da linguagem, logo, resta
determinar o que seriam essas impurezas. Wellek e Warren recorrem ao livro
English Poetry and the English Language (1934), de F. W. Bateson para
fundamentar a ilustração anteriormente proposta na comparação com a estátua de
mármore. Conforme Bateson,
A minha tese é a de que a marca de uma época num poema não deve
imputar-se ao poeta, mas sim à linguagem. A verdadeira história da poesia
é, creio-o, a história das modificações ocorridas naquele gênero de
linguagem no qual têm sido escritos sucessivos poemas. E estas
modificações de linguagem não podem ser outras senão as motivadas pela
pressão de tendências sociais e intelectuais. (BATESON, 1934, p. 6, apud
WELLEK; WARREN, 1962, p. 217)

A concepção de Wellek e Warren quanto à relação de dependência entre a


história poética e a história linguística apontada por Bateson revela o que possa ser
considerado resíduo ou impureza da linguagem quando presente no corpo do
poema. No entanto, há um juízo equivocado nessa afirmação pois a linguagem, do
modo como está claramente explicitado no apontamento de Bateson, é, conforme
esta concepção, apenas o suporte para a marca de uma época. Portanto, a história
que se faz sujeito na anotação destacada é a história geral da linguagem, com suas
motivações e pressões, nos seus diversos estratos. Logo, a leitura demandada pelo
texto poético não pode operar exclusivamente em torno dos elementos da
linguagem, deve, segundo Bateson, identificar a marca da época na linguagem e
distinguir um elemento do outro. Assim, as motivações e pressões não seriam outra
coisa senão a experiência humana no curso da história.

4. Uma aporia, uma linha de fuga?

Posta em síntese as considerações de Merquior, cabe deste ponto extrair


argumentos e convicções, submetê-las a juízo diverso, com o objetivo de ampliar e
atualizar a base crítica do poema e, desse modo, refazendo o percurso crítico, nas
palavras de Bateson, interpretando-o com “a marca de uma outra época” atestar,
refutar ou complementar as suas conclusões. A primeira e, talvez, a questão central:
há que se enfrentar a relação com a linguagem. 
Embora o tópico da insuficiência da linguagem seja, com justiça, considerado
velho, o testemunho extemporâneo de Nietzsche, no “Ensaio de autocrítica”, de
1886, funciona como um comentário severo ao uso corrente da linguagem, a
considerar o gênero e a forma pretendida, em relação ao texto comentado. A
incorporação do ensaio ao volume O nascimento da tragédia (2020) concede a
Nietzsche quinze anos de reflexão, para refazer o percurso e admitir uma autocrítica,
em relação a forma e o conteúdo apresentado. Embora não se trate de insuficiência,
propriamente, da linguagem, o ensaio de Nietzsche, chama a atenção para a
seleção da forma que melhor atenda ao teor do que o texto pretende apresentar. A
travessia que o filólogo-filósofo faz pela cena trágica grega partindo do dualismo
entre a “compreensão lógica” e a “certeza intuitiva”, que domina os impulsos
criativos nomeados apolíneo e dionisíaco. Tal divisão se mostra relevante ainda
hoje, por conta do critério de adequação e propriedade nas escolhas necessárias
para determinado tipo de reflexão crítica. 
A “compreensão lógica”, citada alhures, carece de melhor ilustração. Assim, o
que está apontado como compreensão lógica deve ser entendido como a
experiência real ou realista, calcada na causalidade, explicável pelo encadeamento
dos fatos e capaz de constituir um ordenamento de projeção e antecipação de
fenômenos, por outro lado, o conceito que se opõe a ele, na concepção de
Nietzsche, a certeza intuitiva estaria fundada nos estados primitivos, nas pulsões,
embriaguez, desejo e no êxtase; assim, o indivíduo, e não o mundo, se faria agente
dessa manifestação-intuição. A criação orientada pela certeza intuitiva, isto é, o
dionisíaco, seria nutrida pela embriaguez enquanto a compreensão lógica, isto é, o
apolíneo, seria orientada pelo sonho.  
A crítica de Nietzsche ao seu próprio texto parte do entendimento que, ao
opor a compreensão lógica, não deveria ser o discurso racional o instrumento
adequado para a exposição do impulso dionisíaco. A modalização contida nesse
dualismo se fará, ainda hoje, recurso para formulação de juízo crítico acerca da
natureza do empenho criativo: quem e como se constitui o juízo crítico.
Retomando o argumento, a partir do ensaio de Merquior, e comparando
algumas passagens do poema e do ensaio com o apontamento extraído da leitura
de Nietzsche, notadamente o dualismo dionisíaco e apolíneo, seria possível
estabelecer um paralelo entre o poema e a consideração contida no ensaio do
filósofo-filólogo acerca da modalização discursiva.
A comparação que se faz necessária recua até a versão corrente do mito de
Anfion, na fundação de Tebas, e a apropriação desenvolvida por João Cabral de
Melo Neto. A Fábula de João Cabral guarda diferenças mais que evidentes em
relação ao mito, omite o fato de Anfion ser irmão gêmeo de Zeto, a filiação originária
de Zeus, o reinado conjunto sobre Tebas e a contrariedade com Apolo e Artemis que
resulta em sua morte. No entanto, a diferença que interessa a esse estudo é o
aparecimento da flauta no lugar da lira ofertada por Hermes, no mito original. Ocorre
que a flauta é tomada como um instrumento de associação direta ao deus Dionísio,
enquanto a lira está, por seu turno, associada ao deus Apolo. Essa diferença
objetiva deve ser acolhida em todas as suas perspectivas de modo a permitir uma
hipótese consistente para a leitura do poema.
Enquanto Nietzsche aparece perifericamente no ensaio de Merquior, a sua
presença resulta incontestável na escolha de João Cabral, permitindo a ilustração do
dualismo do filósofo alemão, quando do descarte da flauta pelo Anfion cabralino. A
versão de João Cabral, ao associar a flauta com o imotivado, o acaso, está
contestando, ainda que indiretamente, a poesia oriunda de qualquer via que não
seja lúcida. As imagens arroladas dão conta de um combate, conforme a conclusão
de Merquior, de uma constante disputa entre as duas abordagens apresentadas.
Adiante, no encaminhamento da poética cabralina, prevalecerá a lira de Apolo com a
concreção e o cálculo como referência da “compreensão lógica”.

5. Considerações finais
Encaminhando para a conclusão resta ainda a questão da insuficiência da
linguagem oposta à linguagem poética pura. Para melhor situar a conclusão desse
estudo, se faz necessário apresentar um belo comentário de Michel Foucault
anotado num ensaio, de 1963, intitulado “A Linguagem ao infinito", posteriormente
publicado em na Coleção Ditos e Escritos, vol. III. Estética. Literatura e Pintura.
Música e Cinema. (2001):
Talvez o que seja preciso chamar com todo rigor de "literatura" tenha seu
limiar de existência precisamente ali, nesse fim do século XVIII, quando
aparece uma linguagem que retoma e consome em sua fulguração outra
linguagem diferente, fazendo nascer uma figura obscura, mas dominadora
na qual atuam a morte, o espelho e o duplo, o ondeado ao infinito das
palavras. (FOUCAULT, 2001, p. 57)

Apesar da força desse argumento, Foucault parece distender a oposição tão


fortemente expressada na reflexão de Nietzsche e encaminha para uma
reconciliação em pleno domínio dos recursos discursivos, fazendo assim emergir
uma linguagem possível, dentre tantas linguagens. Conforme a sequência do
apontamento,
Esta não anunciava as leis ou as formas de uma linguagem; ela estabelecia
relações entre duas palavras. Uma muda, indecifrável, inteiramente
presente em si mesma e absoluta; a outra, tagarela, não tinha mais do que
falar a primeira palavra de acordo com formas, jogos, cruzamentos cujo
espaço media o afastamento do texto primeiro e inaudível; a Retórica
repetia sem cessar, para criaturas finitas e homens que iriam morrer, a
palavra do Infinito que não passaria jamais. Toda figura de retórica, em seu
espaço próprio, traía uma distância, mas, aproximando-se da Palavra
primeira, comunicava à segunda a densidade provisória da revelação: ela
mostrava. Hoje, o espaço da linguagem não é definido pela Retórica, mas
pela Biblioteca: pela sustentação ao infinito das linguagens fragmentares,
substituindo à dupla cadeia da retórica a linha simples, contínua, monótona
de uma linguagem entregue a si mesma, devotada a ser infinita porque não
pode mais se apoiar na palavra do infinito. Mas ela encontra em si a
possibilidade de se desdobrar, de se repetir, de fazer nascer o sistema
vertical dos espelhos, imagens de si mesma, das analogias. Uma linguagem
que não repete nenhuma palavra, nenhuma promessa, mas recua
infinitamente a morte abrindo incessantemente um espaço onde ela é
sempre o análogo de si mesma. (FOUCAULT, 2001, p. 58)

Ainda que a irrupção dos estados de palavra seja tratada com alguma
reserva, é no atrito entre os dois modos apresentados que a linguagem supera as
peias e se renova, sendo outra e ela mesma.    
Referências Bibliográficas

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FOUCAULT, Michel. Estética: Literatura e pintura, música e cinema. — Rio de


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GARCIA, Othon Moacyr. Esfinge clara e outros enigmas: ensaios estilísticos —


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