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Fernando Henrique Cardoso
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Francisco Weffort
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Diretor do Departamento Nacional do Livro:
Elmer C. Corrêa Barbosa
Programa Nacional de Apoio à Cultura /
Fundo Nacional de Cultura
Bibliografia do autor:
'* 9 3
João Cabral:
A Poesia do Menos
e outros ensaios cabralinos
164290001
TO PBO O K S
UMC
O w t- lo s ê o
Copyright © Antonio Carlos Secchin, 1999
Composição efotolitos
Art Line Produções Gráficas Ltda.
Revisão
O autor
Capa
Victor Burton
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16
Museu de tudo, J. Olympio, 1975; e A escola das facas, J. Olym
pio, 1980.
Para evitar a constante remissão às notas, cada citação ou
transcrição de versos, estrofes ou poemas virá acompanhada do
título da obra de que foi extraída; se, todavia, referir-se ao livro
que esteja sendo o objeto central do capítulo, apenas o número da
página será indicado. As Poesias completas tiveram a ortografia
por nós atualizada de acordo com a reforma de 1971. Os grifos,
salvo menções expressas, não serão nossos.
Os seis capítulos finais deste estudo constituíram a tese de
doutorado que apresentamos à UFRJ em 1982. Os capítulos ini
ciais compuseram a dissertação de mestrado, defendida, também
na UFRJ, em 1979, e aqui se estampam com algumas modifica
ções, em versão ligeiramente condensada.
A dissertação e a tese tiveram a orientação acadêmica do
professor Afrânio Coutinho. Compuseram a banca de mestrado,
além do orientador, os professores Gilberto Mendonça Teles e Sô
nia Brayner; a de doutorado, os professores Anazildo Vasconce
los da Silva, Bella Josef, Gilberto Mendonça Teles, Leodegário
A. de Azevedo Filho e Mário Camarinha da Silva. A todos, os
meus agradecimentos pelo estímulo e sugestões.
17
I — O mundo onírico
19
mente; e em dois através da função conativa da linguagem, que
não elide o peso do sujeito, ao estabelecer uma relação sem dis
farce entre ele e o objeto evocado.
A não-mediação sujeito/objeto está presente, sob outras for
mas, em vários poemas de Pedra do sono, e será atenuada pela
produção posterior de João Cabral, em que a primazia da reflexão
impedirá o fluxo integrativo entre quem vê e o que é visto. O dis
curso cabralino — em seu momento de “sono” — , além de valo
rizar a primeira pessoa do singular e de promover a fusão de sujei
to e objeto, vai optar por formas interrogativas de linguagem; ele
gerá o noturno e o sombrio para endossar o espaço onírico; traba
lhará com elementos líquidos/inconsistentes. Examinemos breve
mente a configuração dessas linhas de força da obra.
20
me suicido inutilmente
no espaço jornal.
(“Espaço jornal”, p. 384)
b) A fusão sujeito/objeto
c) O discurso interrogativo
21
Mas por detrás da cortina
que gesto meu se apagou?
(“Canção”, p. 380)
Os homens e as mulheres
adormecidos na praia
que nuvens procuram
agarrar?
(“Marinha”, p. 380)
d) O onírico e o noturno
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo
(“Poema de desintoxicação”, p. 378)
22
tocam,/ amorosamente se enlaçam”.1 Os três termos colaboram
para uma concatenação insólita do real, de que o poeta se torna
cúmplice na medida em que não só a ela cede, mas em que a busca:
O nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.
(“Poema de desintoxicação”, p. 378)
e) O líquido, o inconsistente
1 Andrade, Carlos Drummond de. A morte do leiteiro. In. Reunião. Rio de Janeiro:
J. Olympio, 1969. p. 107.
23
Os pensamentos voam
dos três vultos na janela
e atravessam a rua diante de minha mesa.
(“A poesia andando”, p. 379)
Os acontecimentos de água
põem-se a se repetir
na memória.
(“O poema e a água”, p. 385)
24
Os homens e as mulheres
adormecidos na praia
que nuvens procuram
agarrar?
(“Marinha”, p. 380)
O jardins enfurecidos,
pensamentos palavras sortilégio
sob uma lua contemplada;
jardins de minha ausência
imensa e vegetal;
ó jardins de um céu
viciosamente freqüentado:
onde o mistério maior
do sol da luz da saúde? (p. 382)
2. Crespo, Angel & Gomez Bedate, Pilar. Realidad y forma en Ia poesia de João Cabral
de Melo. Revista de cultura brasileha, Madrid: 3 (8):5-69, mar. 1964, p. 21.
25
Cabral assumiria a partir de O engenheiro. Ressalvemos, todavia,
que, além de o poeta subordinar sol e luz à transcendência de um
“mistério maior”, a possível conquista desse território diurno esbar
raria na desorganização, no caráter indomado, dos “jardins enfure
cidos” da poesia. Em Pedra do sono, as reflexões acerca da criação
acabam quase sempre valorizando a mente tumultuada do criador
em detrimento de uma posição crítica frente ao mundo criado:
No telefone do poeta
desceram vozes sem cabeça
desceu um susto desceu o medo
(“O poeta”, p. 382)
Eu penso o poema da
face sonhada, metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta o papel e a sala.
(“Poema de desintoxicação”, p. 378. Grifamos)
3 Lima, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 250.
26
II — Diluição, destruição e
reconstrução da poesia
1 Cf. Barbosa, João Alexandre. A imitação da forma. São Paulo: Duas Cidades, 1975. O
traço-chave da poesia cabralina seria a imitação que o poema efetua da forma do objeto
que ele expressa. Mas — e o próprio ensaísta assinalou o fato (cf. p. 105) — aprender
com o objeto é apreender algo do sujeito. A relação sujeito/ objeto se torna mais comple
xa na medida em que os atributos ditos objetivos do objeto são os escolhidos pela subje
tividade do poeta. Nesse sentido, apenas como “licença epistemológica” se pode admitir
a existência de uma lição intrínseca ao objeto; só assim deveremos entender as várias
aprendizagens “objetivas” a que nos referirmos ao longo do estudo.
2 Ibidem, p. 39.
27
vel similitude entre as concepções estéticas de Raimundo e aque
las que o poeta viria efetivamente a abraçar. Ocorre, porém, que,
no período em que foi escrita a obra, todos os personagens refle
tiam, em graus diversos, traços localizáveis em Pedra do sono; e,
dentre esses traços, o princípio de organização da matéria não era,
certamente, preponderante. Em Os três mal-amados ele já se insi
nua com a mesma intensidade de dois outros (de que falaremos
adiante), mas sua eleição como o grande eixo da poética de João
Cabral só prosperará de fato a partir de Psicologia da composi
ção. Examinemos, pois, as três diretrizes vigentes no livro, e veri
fiquemos em que medida a “organização da matéria” pressupõe a
retração dos valores defendidos por João e Joaquim.
28
sujeito lírico da obra de estréia. Em primeiro lugar, trata-se de um
sonho que dispensa a necessidade do noturno e do sombrio.
Ironicamente, a única referência à noite é para destacar o realismo
(desvalorizado) de uma relação amorosa confrontado à riqueza
potencial de que o mesmo acontecimento se pode revestir no
sonho diurno. Por isso, evitemos uma simplificação que consisti
ria em ver, sob a figura de João, a simples retomada do discurso
desenvolvido no livro anterior. Inexiste agora o livre trânsito de
imagens díspares. Mais do que o sonho, é o devaneio que mobili
za o personagem:
Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Teresa que
durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pega
da a mim? (p. 366. Grifamos)
29
O imaginário com seu fluxo irrefreável: é do mar que vão
partir várias metáforas de João. Um exemplo de Pedra do sono
condensaria à perfeição esse posicionamento: “não é um rio, é o
mar/ que transborda de meu olho.” (p. 384) Constata-se: uma per
cepção fundada no visual; uma subjetivação da imagem, subordi
nada à psique do criador (“meu olho”); ao mesmo tempo, este
perde o controle sobre aquela (que transborda), subordinando-se,
assim, à imagem gerada, que passa a comandar o desdobramento
do texto. Ela aprisiona o poeta, que não logra romper o cerco
rumo a um real que exista externo a seu devaneio (“Donde me
veio a idéia de que Teresa talvez participe de um universo priva
do, fechado em minha lembrança?”, p. 371-372). Com a cons
ciência desse impasse — de que, metaforizando, como resposta
subjetiva, o dado empírico, seu discurso só tende a aprofundar o
intervalo entre palavra e objeto, e a fazer deste a longínqua e
imperfeita miragem da poesia — , o personagem chega a questio
nar a intransitividade do onírico, e se aproxima do que chamaría
mos sua tentação referencial.
30
Em todo o texto, Joaquim é movido por esse efeito, e seu
monólogo só irá reforçar e expandir as áreas de seu fracasso. Co
locando a intensidade amorosa como um agente de que ele seria
vítima, seu discurso, formalmente, endossa esse jugo. Nele, como
se pôde verificar pelo exemplo, “amor” desempenha a função de
sujeito gramatical, incidindo em verbos que indicam destruição
(além de “comer”, registram-se: “devorar”, “beber”, “roer”), ao
passo que o objeto traz as marcas do enunciador, através dos pro
nomes possessivos. Desse modo, a capacidade ativa de Joaquim é
praticamente nula: a ele resta, apenas, consignar as agressões que
sofre. Não se trata mais de uma fusão na matéria cósmica, mas de
um aniquilamento da própria materialidade, numa (des)ordem
cujos modelos circulam entre o imenso e o mínimo, entre o espar
ço coletivo e o individual:
31
preendemos, então, por que o efeito amoroso, com sua mecânica
obstrutora, torna, em Joaquim, “amor” e “poesia” inconciliáveis:
32
Assim como as formas do imperfeito “acronizaram” Maria,
o personagem busca definir-se a partir de imagens atemporais
(desenho, poema). Em consonância a esse projeto de inalterabili-
dade, o universo metafórico de Raimundo se satura de signos
minerais:
33
nas para as intervenções de Joaquim. As falas de João e Raimun
do, aparentem ente fechadas em seus respectivos universos,
subentendem um núcleo comum que se alimenta dos dados forne
cidos pelo entrechoque de uma e outra, como se houvesse duas
vozes atingindo uma única consciência hesitante de linguagem.
Quase todas as intervenções de Raimundo podem ser considera
das, no nível desse “diálogo implícito”, como uma imensa antíte
se engendrada a partir de elementos oriundos da imagística de
João (ou vice-versa). Desta forma, a antítese repousa numa mes
ma base de suportes metafóricos, cujos atributos serão desenvol
vidos contrariamente pelos dois personagens:
34
movimentos de sonhos possíveis” (p. 369), ou, em outras pala
vras, uma criação deflagrada pela subjetividade incontornável do
poeta, posto que este a domine (ou exorcize) no ato de enunciá-la.
Da mesma forma que falamos da “tentação referencial” de João,
poderíamos, neste passo, falar de uma “tentação onírica” de
Raimundo. Destaquemos, ainda, a analogia entre o microcosmo
concreto do personagem e o espaço, também concreto, em que ele
se registra: a folha, o livro. A folha de papel, com seu perímetro
preciso, é mais uma metáfora do campo sólido e definido onde o
poeta quer exercitar sua depuração do concreto. Opondo-se à
nebulosa caça de uma poesia incorpórea, Raimundo se debruça
sobre a materialidade do objeto-livro, sobre “as folhas claras e
organizadas dessa floresta numerada que leva dísticos explicati
vos: poesia, poemas, versos” (p. 370).
III — A desativação onírica
Varrida de defuntos
mas pesada de morte:
como a água parada,
a fruta madura.
1 Nunes, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Petrópolis: Vozes, 1971, p. 39.
37
E morte ainda no objeto
(sem história, substância,
sem nome ou lembrança)
abismando a paisagem,
janela aberta sobre
o sonho dos mortos, (p. 341-342)
e “A viagem”:
38
a própria relevância dessa seiva: mesmo que ela faça irromper o
poema, não irrompe no poema.
Procuremos estabelecer as bases do processo de desativa
ção onírica. Integram esse processo, como dissemos, os textos
que tematizam o papel do sonho para a construção do texto. Es
pécie de aguçamento da consciência poética, que irá analisar■o
espaço onírico para aprender, por sua superação, a investir na di
reção do dado concreto. A desativação consistirá, assim, num tra
balho que, sem abandonar a semântica do sonho, irá miná-la por
dentro, retirando-lhe a aura, quer para explicitá-la como “figura
de linguagem” (o que destrói sua carga de ilusionismo), quer para,
admiti-la na esfera dojndecifrável. Mas essa segunda hipótese
não fortaleceria o aspecto mítico da poesia? Aparentemente, sim,
porque o poeta, querendo desmontar o onírico, admitirá que é
dominado por ele. Há, na obra, diversas referências a tal “mons
tro indomável”. Mas, por outro lado, ao confessar essa derrota,
João Cabral prefere expressá-la como fracasso a aliar-se ao fluxo
que o vence. Veja-se o exemplo de “A bailarina”:
A bailarina feita
de borracha e pássaro
dança no pavimento
anterior do sonho.
Da diária e lenta
borracha que mastigo.
Do inseto ou pássaro
que não sei caçar. (p. 342-343)
39
que serão sonhadas no poema “O engenheiro” . Seu percurso,
também marcado temporalmente (“A três horas de sono”), é espa-
cializado de forma ainda mais concreta na terceira estrofe, quan
do a bailarina, saída das “secretas câmaras” do poeta, atinge a
folha que a acolherá. Após “aprisionar” o objeto num espaço bem
delimitado (seguindo a lição do mal-amado Raimundo), o poeta
procede à desativação onírica. Na quarta estrofe, decompondo a
imagem, efetiva o périplo que comentamos: dessacraliza o com
ponente “borracha” como “figura de linguagem”, mas admite a
persistência fluida/inefável do “inseto ou pássaro”, que não sabe
caçar. A equiparação inseto/pássaro é processo antiilusionista que
destrói a pretensa “força necessária” que vincula objeto e ima
gem. Ao designar outras correspondências possíveis, Cabral ope
ra com o que se pode chamar metáfora alternativa.
A reincidência do vocábulo “monstro” para designar o que
se relaciona com as manifestações do inconsciente nos impede de
considerar que exista uma aliança sonho/natureza. O exemplo
mais citado para corroborar esse possível pacto costuma ser o
poema “O engenheiro”, de que transcrevemos as duas primeiras
estrofes:
40
somente aceitando a clara invasão do dia o sonho encontrai jí um
lugar: não o de um pacto, mas o de uma implícita submissãojj Uma
estrofe de “As estações” (a primavera) retoma essa relação:
Os homens podem
sonhar seus jardins
de matéria fantasma.
A terra não sonha,
floresce: na matéria
doce ao corpo: flor,
sonho fora do sono
e fora da noite, como
os gestos em que floresces
também (teu riso irregular,
o sol na tua pele), (p. 348)
E o verso nascido
de tua manhã viva,
de teu sonho extinto,
ainda leve, quente
41
A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.
É o diabo no corpo
ou o poema
que me leva a cuspir
sobre meu não higiênico?
Doce tranqüilidade
do não fazer; paz,
equilíbrio perfeito
do apetite de menos. (p. 359. Grifamos)
Doce tranqüilidade
da estátua na praça
entre a carne dos homens
que cresce e cria.
42
Doce tranqüilidade
do pensamento da pedra,
sem fuga, evaporação,
febre, vertigem, (p. 359)
as águas dissolvem
os líquidos da vida;
e o vento dispersa
os sonhos, e apaga
a inaudível palavra
futura — apenas
saída da boca,
sorvida no silêncio, (p. 359)
43
a pedra dá à frase seu grão mais vivo :
obstrui a leitura fluviante, flutuai,
açula a atenção, isca-a com o risco.
(“Catar feijão”, A educação pela pedra, p. 22. Grifamos)
Desordem na alma
que se atropela
sob esta carne
que transparece.
Desordem na alma
que de ti foge,
vaga fumaça
que se dispersa,
informe nuvem
que de ti cresce
e cuja face
nem reconheces.
44
que não se sabe
onde se perdem
e impregnam a terra
com sua morte.
Procura a ordem
que vês na pedra:
nada se gasta
mas permanece.
45
Essa presença
que reconheces
não se devora
tudo em que cresce.
pesado sólido
que ao fluido vence,
que sempre ao fundo
das coisas desce.
Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
silêncio puro,
de pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem. (p. 361)
2 Merquior, José Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972,
p. 88.
46
As duas últimas quadras indicam um sutil avanço em relação
à proposta de “A Paul Valéry” . Nesse poema, constatamos um
tipo de silêncio que não provinha de uma elaboração sistêmica,
confundindo-se antes com o próprio silêncio “natural” (“e o ven
to dispersa/ os sonhos, e apaga/ a inaudível palavra”). Agora, ele
se produz por si mesmo, e esse deslocamento patenteia a positivi-
dade da “vontade negativa”3 de atingi-lo. É um silêncio que “imó
vel fala” ; não uma intransitiva mudez do objeto que é silenciado
(pelo vento ou pela morte, por exemplo), mas uma vigorosa e ati
va afirmação de não-dizer de que o objeto é modelo, e o poeta,
ressonância. Na última estrofe (“voz de silêncio,/ mais do que a
ausência/ que as vozes ferem”) torna-se claro que João Cabral se
inclina não para a simples ausência de um real silenciado, mas
para a presença, “de pura espécie”, de um real que silencia.
O olhar do poeta, no entanto, não se concentrará, ao longo
de O engenheiro, na imobilidade do objeto. É certo que o ideal de
petrificação atinge áreas inusitadas, como demonstra o poema
“Os primos”,
47
Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é su rpresa
com o uma f lo r m esm o num canteiro.
(“A Carlos Drummond de Andrade”, p. 355. Grifamos)
camisa branca,
corpo diáfano,
fu n çõ es tran qüilas
no banho de sol.
Mas sobretudo
senti o susto
de tuas surpresas.
— É inventor,
trabalha ao ar livre
de régua em punho,
janela aberta
sobre a manhã. (p. 357)
48
O frio olhar salta pela janela
para o jardim onde anunciam
a árvore.
(O frio olhar
volta pela janela
ao cimento frio
do quarto e da alma:
calma perfeita,
pura inércia,
onde jamais penetrará
o rumor
da oculta fábrica
que cria as coisas,
do oculto impulso
que explode em coisas, (p. 353)
49
e da alma” uma desvalorização existencial frente ao “oculto im
pulso/ que explode em coisas”, e que se situa, no dístico final, “na
frágil folha/ daquele jardim” (p. 353). Estabelece-se uma dicoto-
mia entre o inanimado artificial (cimento) e o animado natural
(árvore), que será, em O engenheiro, resolvida pela metáfora da
pedra, que realiza a convergência entre o inanimado de um e o
natural de outro.
Depura-se o poeta para fazer do poema a “máquina de co
mover” de que fala a epígrafe da obra (Le Corbusier). João Cabral
experimentará, no livro seguinte, mover-se com a mineralização
do espaço poético, num nível conceituai germinado em vários
textos de O engenheiro, e que conferirá ao poema, antes de tudo,
o estatuto de máquina de como/ver o real.
50
IV — A fábula, o poema, o poeta
1) A estratégia do silêncio
51
Desde o início, o itinerário é pontilhado por imagens de sub
tração:
ao ar mineral isento
mesmo da alada
vegetação, no deserto
...Anfion,
como se preciso círculo
estivesse riscando (p: 321)
52
ciai, na dicotomia entre o tempo escuro/coberto da noite e a clari
dade do dia. Unindo os dois pólos, João Cabral identifica o orgâ
nico (vegetal) ao noturno, e o inorgânico ao diurno: “fonte” e
“pedra” são os elementos refratários à temporalidade, e por isso
coabitam, cada um a seu modo (um pela transparência, outro pela
opacidade), um “tempo claro”, suspenso como “na fábula” . O
vegetal, ao contrário, é visto como resquício de uma herança
noturna (“Ali, nada sobrou da noite/ como ervas”), e, assim, deve
ser eliminado em busca de uma “terra branca”, sintagma que
reforça o vínculo entre o inorgânico e o diurno. A quarta estrofe,
dirigindo-se ao leitor, opera um corte antiilusionista: passa do
espaço mítico da fábula ao espaço gráfico da cultura (“um livro/
na estante”).
Depois de descrita a paisagem, modelo depurado que pro
põe a Anfion a lição do vazio, surge, na terceira unidade do texto,
o instrumento que deverá possibilitar a transformação do deserto,
de espaço empírico já dado em proposta formal a ser imitada: a
flauta.
Ao sol do deserto e
no silêncio atingido
como a uma amêndoa,
sua flauta seca (p. 322)
53
Anfion, menos o seu canto possível; não é à toa que só após a
secura da flauta Anfion estará “lavado/ de todo canto” (p. 324);
uma vez mais, o criador imita a criatura... A secura é o deserto,
menos as hipóteses “de água e sono”. Anfion e a flauta se aproxi
mam, ainda, pela comum negação do espaço vegetal. Ele busca as
pedras “como frutos esquecidos/ que não quiseram/ amadurecer
(p. 321, grifamos). A flauta se mostra “sem a terra doce/ de água
e de sono” (esta, em nítida oposição à “terra branca” da unidade
anterior). A estrofe seguinte
(O sol do deserto
não intumesce a vida
como a um pão.
O sol do deserto
não choca os velhos
ovos do mistério.
Mesmo os esguios,
discretos trigais
não resistem a
o sol do deserto,
lúcido, que preside
a essa fome vazia), (p. 322-323)
54
Valéry” — se intensifica a técnica da subtração. O ciclo da expan
são/reprodução é minado em todas as frentes, seja a humana (“sua
flauta seca:/ como/ ..../ lábios”, cf. unidade anterior), seja a ani
mal (“não choca os velhos/ ovos do m istério”), ou a vegetal
(“Mesmo os esguios,/ discretos trigais/ não resistem”),
As estrofes finais do segmento ratificam as lições de silên
cio que Anfion obteve da flauta seca. A mudez do personagem
“será de mudo cimento” (p. 323, grifamos); e a imagem põe em
destaque o aspecto fabricado desse tipo de silêncio, que, como
vimos, deve ser elaborado e atingido, e não dado aprioristicamen-
te. Outras imagens de construção encerram a parte 1: “exato,
passará pelo relógio! como de uma faca o fio” (p. 323, grifamos).
O segundo segmento compreende três unidades: a) encontro
com o acaso, b) ataque do acaso, c) conseqüências do ataque. A
primeira, antes da irrupção do acaso nos dois versos finais, conti
nua a girar em torno do ciclo da esterilidade. Se a carne é símbo
lo da expansão, o esqueleto lhe contrapõe sua dura resistência:
No deserto, entre os
esqueletos do antigo
vocabulário, Anfion. (p. 323)
no deserto, mais, no
castiço linho
do meio-dia, Anfion
55
Ó acaso,raro
animal, força
de cavalo, cabeça
que ninguém viu;
ó acaso, vespa
oculta nas vagas
dobras da alva
distração; inseto
vencendo o silêncio
como um camelo
sobrevive à sede (p. 324)
<5acaso! O acaso
súbito condensou:
em esfinge, na
cachorra de esfinge
que lhe mordia
a mão escassa (p. 324. Grifamos)
o osso antigo
logo florescido
da flauta extinta (p. 324. Grifamos)
Diz a mitologia
(arejadas salas, de
56
nítidos enigmas
povoadas, mariscos
ou simples nozes
cuja noite guardada
à luz e ao ar livre
persiste, sem se dissolver)
diz, do aéreo
parto daquele milagre (p. 325)
57
entre Tebas,
entre mãos frutíferas, entre
a copada folhagem
....no verão
que, único, lhe resta
e cujas rodas
quisera fixar
nas, ainda possíveis,
secas planícies
58
diálogo entre o não e a pedra (destinado aos muros da cidade, que
também não ouvem).
Se a última estrofe desta unidade parece admitir o compo
nente onírico (“Onde a cidade/ volante, a nuvem/ civil sonhada?”,
p. 326), assinale-se que o sonho do flautista, na esteira de “O
engenheiro”, se submete à consciência diurna do criador, ou seja,
se reveste das mesmas formas claras que a vigília coordena. Em
suma: um sonho projetado; e o léxico de construção (outra analo
gia com “O engenheiro”) confirma o fato:
Desejei longamente
liso muro, e branco,
puro sol em si
Como antecipar
a árvore de som
de tal sementel
59
O gesto final de Anfion
A flauta, eu a joguei
aos peixes surdo-
mudos do mar.” (p. 327)
2) A estratégia do texto
60
sobre o criador (“Saio de meu poema/ como quem lava as mãos”).
O circuito psíquico que conduz ao texto é regido pelo “sol da
atenção” ; a natureza mineral da palavra (escrita) encontra em
“conchas” uma primeira formalização; e a palavra-pássaro desa-
brochada pode ser lida como resposta ao “pássaro que não sei
caçar” de “A bailarina”.
As estrofes 3 e 4 jogam com o questionamento de seu pró
prio tecido imagístico, pela anteposição do vocábulo “talvez”. E
o papel da lembrança — fulcro de um tipo de poesia sentimental-
evocativa — é vigorosamente posto em xeque. Com efeito, a úni
ca possibilidade evocatória da palavra cabralina se dirige para a
sólida materialidade do gesto que a lançou no texto: um passado
operacional, que desemboca diretamente na construção do poe
ma. Por isso, para designar a funcionalidade desse passado (dis
tante da mitificação do sentimentalismo autobiográfico), a ima
gem escolhida é a da prosaica “camisa vazia” , mesmo assim já
despida pelo poeta.
A parte I dizia do texto executado; a parte II situa o espaço
da folha branca, apta a acolher (ou a repelir) o verso:
61
estrofe, a praia, essencializada em sua condição mineral, será
outra metáfora do papel — matéria límpida e inorgânica onde o
poeta e seu verso se reconhecem a salvo do fluxo temporal:
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse. (p. 328)
Neste papel
pode teu sal
virar cinza;
pode o limão
virar pedra;
o sol da pele,
o trigo do corpo
virar cinza.
Neste papel
logo fenecem
as roxas, mornas
62
flores morais;
todas as fluidas
flores da pressa;
todas as úmidas
flores do sonho. (p. 329. Grifamos)
São minerais
as flores e as plantas,
as frutas, os bichos
quando em estado de palavra.
É mineral
a linha do horizonte,
64
nossos nomes, essas coisas
feitas de palavras, (p. 331)
... o s e r v i v o
q u e é u m v e r s o ,
u m o r g a n i s m o
c o m s a n g u e e s o p r o . (p . 3 5 2 )
( A á r v o r e d e s t i l a
a te r r a , g o t a a g o t a ;
a te r r a c o m p l e t a
c a i, f r u to !
Enquanto na ordem
de outro pomar
a atenção destila
palavras maduras), (p. 331-332)
65
então, nada mais
destila; evapora;
onde foi maçã
resta uma fome;
onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio. (p. 332)
3) A estratégia do impuro
66
imagístico orgânico para definir a poesia. Ora, a estratégia do
poeta será a de combater o “profundo” utilizando suas próprias
armas (dele, “profundo”), perfilhando o avesso de sua retórica —
para revelar, assim, o outro lado da “flor retórica” tradicional:
Poesia, te escrevia
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações. (p. 332-333)
Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de
duas pontas, como
uma corda), (p. 334)
67
em que, formalmente, a flor se decompõe em novos símiles, ela
aponta, em seu trajeto semântico (enquanto objeto circunscrito ao
ciclo vital), para a decomposição de si mesma:
O dia? Árido.
Venha, então, a noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor. (p. 335)
68
vital (e de suas impurezas) apenas como fator que leva ao poema,
com origem na mente “vitalista” do criador:
Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és.
... Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais (p. 336-337)
69
persistem ainda outras áreas a serem exploradas. Fala-se de uma
ausência
70
III — A máquina do real
71
§ A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada, (p. 305)
§ Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor de rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água. (p. 305)
72
p. 305). Rompendo a contigüidade previsível (água — peixes), é
nos elementos vegetal e humano que o rio encontra cumplicidade:
§ Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros, (p. 306)
Como às vezes
p a ssa com os cães
parecia o rio estagnar-se. (p. 307. Grifamos)
73
§ (É nelas [nas salas de jantar]
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa), (p. 307-308)
§ Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Camo um cão
humilde e espesso, (p. 308)
74
espesso”, e é essa imagem que irá imperar no desenvolvimento da
parte II. Basicamente, voltarão os temas propostos na parte I, o
que justifica o título comum a ambas. No entanto, trata-se de um
retorno seletivo, que intensifica o veio conceituai do texto:
§ Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem. (p. 311)
§ Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama. (p. 311)
§ A cidade é fecundada
por aquela espada
76
que se derrama,
por aquela
úmida gengiva de espada, (p. 312)
o mar se estendia,
como camisa ou lençol,
sobre seus esqueletos
de areia lavada, (p. 312)
77
Além dessa estratégia de composição, assinalemos no poe
ma um tipo de metáfora criada por pressão sintagmática, e que se
coloca em relação metonímica (de contigüidade) com o núcleo
gerador. Assim, se o rio é visto como “úmida gengiva”, o mar, em
resposta, é bandeira que tivesse dentes (p. 313). Aponte-se, ainda,
o vínculo entre a areia lavada da segunda estrofe e o mar com seu
sabão da estrofe 4 (p. 313).
Neste texto, pela primeira vez, a assepsia deixa de ser con
siderada um valor absoluto, desejável em qualquer circunstância
— pois, extremada, corre o risco de converter-se em esterilidade.
Na quinta estrofe:
§ Uma bandeira
que tivesse dentes:
como um poeta puro
polindo esqueletos,
como um roedor puro,
um polícia puro
elaborando esqueletos,
o mar,
com afã,
está sempre outra vez lavando
seu puro esqueleto de areia. (p. 313)
78
destacarão o aspecto corrosivo da assepsia marinha, por oposição
ao aspecto dissolvente do rio. Os versos restantes irão corroborar
a desvalorização da pureza repetitiva:
§ Primeiro,
o mar devolve o rio.
Fecha o mar ao rio
seus brancos lençóis.
O mar se fecha
a tudo o que no rio
;g
são flores de terra,
imagem de cão ou mendigo, (p. 314)
§ Depois,
o mar invade o rio.
Quer
o mar
destruir no rio
suas flores de terra inchada,
tudo o que nessa terra
pode crescer e explodir,
como uma ilha,
uma fruta. (p. 314)
§ Junta-se o rio
a outros rios.
Juntos,
todos os rios
preparam sua luta
de água parada (p. 315)
80
nesta parte III, a identificação será recuperada positivamente,
pois a ênfase recairá no processo (e não mais no efeito) comum a
“mangue” e “fruta”:
A mesma máquina
paciente e útil
de uma fruta;
a mesma força
invencível e anônima
de uma fruta
— trabalhando ainda seu açúcar
depois de cortada — (p. 315)
Kl
§ Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
82
é espesso e real.
Como uma maçã
é espessa.
Como um cachorro
é mais espesso do que uma maçã.
Como é mais espesso
o sangue do cachorro
do que o próprio cachorro.
Como é mais espesso
um homem
do que o sangue de um cachorro.
Como é muito mais espesso
o sangue de um homem
do que o sonho de um homem. (p. 317)
§ O que vive
incomoda de vida
o silêncio, o sono, o corpo
que sonhou cortar-se
roupas de nuvens, (p. 316)
83
o dia que se adquire
cada dia
(como uma ave
que vai cada segundo
conquistando seu vôo), (p. 318)
1 Melo Neto, João Cabral de. “D a função moderna da poesia”. In: Congresso Internacio
nal de Escritores e Encontros Intelectuais. São Paulo: Anhembi, 1957, p. 313.
85
se arma na tensão entre o fazer e o dizer2, será inegável a filiação
de O rio ao segundo termo.
Para Haroldo de Campos,
Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar, (p. 273)
86
(pois, também como gente,
não consigo me lembrar
dessas primeiras léguas
de meu caminhar).
87
Depois de alusões a vinte e seis lugarejos, o rio-narrador se
detém em Limoeiro; e, como fará mais tarde (ao falar dos “dois
Recifes”), apresenta a cidade em dupla face, mescla de progresso
e miséria:
T e m m e l h o r e s f a z e n d a s ,
t e m i n ú m e r a s b o l a n d e i r a s
P o i s , a q u i, e m L i m o e i r o ,
c o m s e u t r e m , s u a p o n t e d e fe r r o ,
c o m s e u s a lg o d o a i s ,
c o m s u a s c a r r a p a t e ir a s ,
p e r s i s t e a m e s m a s e d e ,
a in d a s e m f u n d o , d e p a l h a o u a r e ia ,
b e b e n d o t a n t o s r ia c h o s
e x t r a v i a d o s p e l a s c a p o e i r a s , (p . 2 8 0 )
L á d e n t r o d a c i d a d e
h a v i a e n c o n t r a d o o t r e m d e fe r r o .
S o u u m r io d e v á r z e a ,
n ã o p o s s o ir t ã o lig e ir o .
M e s m o q u e o m a r o s c h a m e ,
o s r io s , c o m o o s b o i s , s ã o r o n c e i r o s . (p . 2 8 1 )
T u d o p la n t a d e c a n a
n o s d o i s l a d o s d o c a m i n h o ;
e mais plantas de cana
[Os rios]
Contam por que possuem
aquela pele tão espessa;
por que todos caminham
com aquele ar descalço de negros;
por que descem tão tristes
arrastando lama e silêncio, (p. 284)
Compare-se a:
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
(O cão sem plumas, p. 306)
89
A história é uma só
que os rios sabem dizer:
a história dos engenhos
com seus fogos a morrer, (p. 284)
90
Vê-se, assim, que o discurso mais fluente que embasa a “von
tade de comunicar” não significa a negligência do “fazer”, con
quanto este não seja tematizado como o fora em obras anteriores.
A entrada no Recife é precedida por sintética recapitulação
dos solidários companheiros do Capibaribe, englobando, além
dos afluentes, os retirantes dos “três Nordestes” (Sertão, Agreste
e Zona-da-Mata). E, se o mar aparece como um espaço utópico de
libertação (da impureza também social), compreende-se a reinci
dência do símile nivelador do fluvial e do humano:
91
mangueiras” (O rio, p. 295). E, a exemplo do poema de 1950, a
lama é o elemento forte na união entre homem e rio. Em O cão
sem plum as:
§ Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha, (p. 306-307)
Em O rio:
92
vínculo entre os dois tipos de impureza é explicitamente referido
na estrofe 51, onde as “ilhas de terra preta/ [são] imagem do
homem aqui de perto” (p. 298); a marcha do rio tropeça tanto na
realidade física quanto na humana:
Sua “simpatia calada” (p. 302) vai para os homens “com raí
zes de pedra ou de cabra”, todos irmanados, na última estrofe,
pelo “comum retirar” (p. 302). E a paisagem de carência coletiva
de O cão sem plumas (“onde a fome/ estende seu batalhão de
secretas/ e íntimas formigas”, p. 318) é aqui retomada:
93
eles são gente apenas
sem nenhum nome que os distinga:
que os distinga na morte
que aqui é anônima*e seguida, (p. 300)
5 Melo Neto. João Cabral de. Duas águas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.
94
VII — A natureza rarefeita
l>5
Do mar podeis extrair,
do mar deste litoral,
um fio de luz precisa,
matemática ou metal.
Na cidade propriamente
velhos sobrados esguios
apertam ombros calcários
de cada lado de um rio.
96
Os versos finais são réplicas à estrofe 57 de O rio, onde a
irreversibilidade da desintegração derrotava o movimento vital:
D e s t a c a p it a l p o d r e
s ó a s e s t a t ís t ic a s d ã o n o t íc ia ,
a o m e d i r s u a m o r t e ,
p o i s n ã o h á o q u e m e d i r e m s u a v id a . (p . 3 0 1 )
C o n t e m p l a n d o a m a r é b a i x a
n o s m a n g u e s d o T i j i p i ó
l e m b r o a b a í a d e D u b l i n
q u e d a q u i j á m e l e m b r o u .
E m m e i o à b a c ia n e g r a
d e s t a m a r é q u a n d o e m c io ,
e i s a A l b u f e r a , V a l ê n c i a ,
o n d e o R e c i f e m e s u r g iu , (p . 2 6 6 )
e e s s a s v á r z e a s d e T i u m a
c o m s e u s e s t e n d a i s d e c a n a
v ê m d e v o l v e r - m e o s t r ig a is
d e G u a d a l a j a r a , E s p a n h a , (p . 2 6 6 )
97
Como no texto anterior, à paisagem se sucedem as figuras
humanas. Passa-se da série natural (maré, baía, várzea) à cultural
(cidade), e as novas identificações são intensificadas pelo núcleo
comum do esforço do homem:
p o r o n d e i g u a is p r o c i s s õ e s
d o t r a b a lh o , s e m a n d o r ,
v ã o l e v a r o s e u p r o d u t o
a o s m e r c a d o s d o s u o r .
T o d a s l e m b r a v a m o R e c i f e ,
e s t e e m t o d a s s e s itu a ,
e m t o d a s e m q u e é u m c r i m e
p a r a o p o v o e s t a r n a r u a (p . 2 6 7 )
P a r a q u e t o d o e s t e m u r o ?
P o r q u e is o la r e s t a s t u m b a s
d o o u t r o o s S á r io m a i s g e r a l
q u e é a p a i s a g e m d e f u n t a ? (p . 2 5 5 )
É c e m i t é r io m a r i n h o
m a s m a r i n h o d e o u t r o m a r .
F o i a b e r t o p a r a o s m o r t o s
q u e a f o g a o c a n a v ia l .
A s c o v a s n o c h ã o p a r e c e m
a s o n d a s d e q u a l q u e r m a r ,
98
mesmo as de cana, lá fora,
lambendo os muros de cal. (p. 257)
99
Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva. (p. 260)
Vale do Capibaribe
por Santa Cruz, Toritama:
cena para cronicões,
para épicas castelhanas.
No mentido alicerce de
morta civilização
a luta que sempre ocorre
não é tema de canção, (p. 252)
100
É uma espécie bem estranha:
tem algo de aparência humana,
mas seu torpor de vegetal
é mais da história natural, (p. 263)
101
aquela fácil medida
aprendida certamente
no ritmo feminino
de colinas e montanhas
que lá têm seios medidos, (p. 269)
102
correlação, será a terra espanhola a base do universo imagístico
que irá “naturalizar” as atividades culturais dos homenageados,
como se constatou em “Encontro com um poeta”.
“Diálogo” homenageia não uma pessoa, mas uma forma de
canto (andaluz). Lançando mão de um repertório de imagens que
será exemplarmente retrabalhado em Uma faca só lâmina, João
Cabral associa o cantar à seta, à faca e à espada:
A — O canto da Andaluzia
é agudo como seta
no instante de disparar
ainda mais aguda e reta.
103
de um recorte no vazio, inverte a proposta e busca uma palavra
que, aguda, se abra em trânsito para a contundência do real.
Também de alcance metalingüístico, “Alguns toureiros”
estampa diversos modos de se situar frente ao risco da criação. O
poema se encerra com o toureiro M anuel Rodríguez, em cuja
caracterização encontramos o maior número de traços que se coa
dunam com a poética de João Cabral — o controle do fluxo vital,
a tática de contenção (do gesto/ do verso), a rejeição do belo não-
funcional:
[Manuel Rodríguez,]
o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria,
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida.
104
sagem”, será incapaz, por conotar apenas a ausência, de significar
também as “figuras”. Desse modo, a retificação da metáfora-base
(Castela = conceito de mesa) é um ato de astúcia que prepara a
introdução do elemento humano:
[o poema]
que poeta daqui escreveu
com a dureza de mão
com que hoje a gente daqui
diz em silêncio seu não. (p. 247)
105
“Campo de Tarragona”, à maneira de “Imagens em Castela”, será
deslocado da série natural pelo viés “bibliográfico” com que as
metáforas de João Cabral irão saturar a paisagem, relacionando-a
a “mapa”, “carta geográfica” e face “clássica de ler” (p. 254). O
que se busca é descobrir uma sistemicidade no empírico,
N o c a m p o d e T a r r a g o n a
[a te r r a ] d á - s e s e m g u a r d a r d e s v ã o s :
c o m o p l a n t a d e e n g e n h e i r o
o u s a la d e c ir u r g iã o , (p . 2 5 3 )
106
VIII — Do concreto ao concreto
107
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia (p. 203)
108
todas formando um rosário
de que a estrada fosse a linha. (p. 209)
— Finado Severino,
quando passares em Jordão
e os demônios te atalharem
perguntando o que é que levas...
— Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.
109
dição severina. O homem se propõe uma produção de vida,
enquanto a produtividade da rezadeira se materializa apenas com
a morte:
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita-: recebe-se
na hora mesma de semear, (p. 216-217)
110
No próximo diálogo (após um monólogo em que Severino
reitera o desejo de interromper a viagem), e à semelhança do epi
sódio das excelências, a morte será vista, e não somente referida;
o protagonista será, também, mero espectador e ouvinte da ceri
mônia fúnebre. Ao enterrarem um morto, dois personagens com
param a penúria da vida à irônica melhoria de status encetada
pela morte:
É u m a c o v a g r a n d e
p a r a t e u d e f u n t o p a r c o ,
p o r é m m a i s q u e n o m u n d o
te s e n t ir á s la r g o .
A g o r a t r a b a lh a r á s
s ó p a r a ti, n ã o a m e i a s ,
c o m o a n t e s e m te r r a a lh e ia , (p . 2 1 9 )
T r a b a l h a n d o n e s s a te r r a ,
t u s o z i n h o t u d o e m p r e it a s :
s e r á s s e m e n t e , a d u b o , c o l h e it a , (p . 2 1 9 )
N ã o l e v a s s e m e n t e n a m ã o :
é s a g o r a o p r ó p r io g r ã o .
D e s p i d o v ie s t e n o c a i x ã o ,
d e s p i d o t a m b é m s e e n t e r r a o g r ã o . (p . 2 2 1 )
111
ciável da morte, a palavra de Severino ainda se pretende uma afir
mação vital:
As avenidas do centro,
onde se enterram os ricos,
são como o porto do mar:
não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa, protocolo,
e ainda mais cenografia, (p. 224)
112
esses homens expulsos do interior e marginalizados na capital, o
coveiro apresenta uma sugestão:
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia (p. 230)
— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço, (p. 231)
113
Benedito Nunes chamou “o auto dentro do Auto”2 com a transpo
sição à paisagem nordestina dos elementos que tradicionalmente
representam a celebração do nascimento de Cristo, e a esperança
num tempo mais justo que daí decorre. A identificação entre seu
José/são José, além da homonímia se faz pelo ofício de ambos (a
carpintaria) e pela alusão a Nazaré (da Mata), local de origem do
mestre carpina.
O diálogo entre José e Severino — este querendo “saltar nu
ma noite,/ fora da ponte e da vida” (p. 233) — se interrompe
quando se anuncia ao primeiro o nascimento do filho, através do
mesmo verbo (“saltar”) que acabara de designar a desistência de
viver:
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida? (p. 233)
114
darizam no mesmo refrão: “Minha pobreza tal é”. Em seguida,
enumeram-se os presentes, que visam, com poucas exceções, a
necessidades básicas de sobrevivência:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, com goiamuns
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia marinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva, (p. 239)
116
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina. (p. 241)
117
IX — A ética da corrosão
119
.J Jo j A.partir, sobretudo, de O engenheiro\ João Cabral passou a des-
r yencilhar-se de tudo o que — vinculado à_metafísica do sujeito —
não lhe permitia responder a um aprendizado da co n cretu d eA
oct j Assim. ísüa poética combate o que, na tradição lírica, pertence
j l antes à mitologia do sujejtCLdo que à carência do objeto: q onírico,
- obscuro, o confidencial — categorias que se podem associar a
uma concePÇão egocráticaj da literatura, y . ' : f. '
Uma faca só lâmina, enTSOTS dez segmentos, em suas oiten
ta e oito estrofes de quatro versos, em seus trezentos e cinqüenta
!e dois hexassílabos, é o último poema longo em que João Cabral
yocalizou as condições do “fazer” (sem que, insistamos, tal “fa-
jzer” seja unicamente “poético”, e sem que a preocupação com o
(“comunicar” não lhe seja correlata). Se a metalinguagem. explíci-
ta ou não, continuará sendo um dos eixos propulsores de seu per
curso poético, é Ujiiü faca só lâm ina/i textQ mais sistematizado,/
a matriz de que muitos poemas posteriores se valerão para reto
mar, numa^espécie de diálogo crítico, as idéias propostas neste
texto-base.
A parte inicial.(sem a nomeação alfabética que caracteriza
y rá o poema
A a 1partir do 1próximo segmento)
G _K estampa^oa^cês-gran-
,
? des núcleos de idéias fixas a desenyolv er — balai relógiç, faca/—
j - ■ na condição de comparantes sem comparados, como bem obser-
, vou Benedito Nunes2:
-< _ Xj Y^: \ /' ■
Assim como umaíbala /
i w-, . t a l '
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso I t-Cr ' X- d-
um dos lados do morto; , ;•-> /,.? c? I o
~".i Jo pá
assim como umaí bala
do chumbo mais pesado, __ bs> ■
no músculo de um homem o
pesando-o mais de um lado; r v-
— pJlJijá'- dc,: - o-
qual bala que tivesse
umfvivo mecanismoTV
-t=r-------------- - i ■ / /V
&C. í
aVí>
t
bala que possuísse o■ 1~ - -----
umícóração ativo
120
igual ao de um Relógio!
submerso em algürrrcorpo,
ao de um relngio vivo -b>
e também revoltoso,
123
a lâmina cruel”, p. 188). Nessa nova aparição, contudo, os ele-
imentos se enriquecem de novos matizes. Na bala, por exemplo,
/ fala:se da “fibra compacta” (p. 188) — e já sabemos que o elogio
jdo compacto, ou, se preferirmos, o desprezo pelo etéreo, é outra
j “idéia fixa” de João Cabral, o_c j t j o pj>c , a i / r í
! —- (A faca é o_símbolo mais potente e apto para operar e cortar
o vazio füéela que melhor e mais diz a ausência. O poeta explicita
as razões da escolha:
124
explora, a seguir, quase unicamente a ação da faca:
E mais surpreendente
ainda é sua cultura:
medra não do que come
porém do que jejua. (p. 189)
aQârninajSespida
que cresce ao se gastar,
cujo muito cortar
lhe aumenta mais o corte
E como facayque é,
fervorosa e'enérgica,
sem ajuda dispara
sua máquina perversa: (p. 189: Grifamos)
125
outra “idéia fixa”: a da força centrífuga, que explode de si mesma,
sem estímulos externos. Dentre os textos que retomam a propos
ta, citemos “Diálogo” (espada “que deserta se incendeia”, p. 265),
“Estudos para uma bailadora andaluza” (que é capaz “de incen
diar-se com nada/ de incendiar-se sozinha”, p. 128) e “A paio se
co” (Quaderna). O canto a paio seco exige, “sem tempero ou aju
da”, “o ser-se ao meio-dia” (p. 161). Colocando-se sob o signo da
claridade, da secura e do vazio, e deixando que o objeto “seja” por
si, d poeta tenta não selransferir à “atmosfera” da coisa;, opera
i nela-coisa,.desentranha-lhe o avesso. E essa penetração antiem-
páticajjreside, na poesia de João Cabral, a várias metáforas, de
*'; cirurgia, do ato jiteralmente operatório do escritor.
O segmento C enumera as precauções de que se deve cercar
r. a tríade para evitar que perca seu poder de agressão e agudeza, e
: em dois níveis: a perda no próprio elemento e no elemento em
P contato com um alvo. Assim, no primeiro caso, a bala “seus den-
^ tes já /..../ os traz rombudos” (p. 190); no segundo, os dentes “se
Q embotam mais no músculo” (p. 190). O relógio pode apresentar
um coração “espasmódico” (p. 190), ou seu ritmo pode desvir
tuar-se “com o pulso do sangue” (p. 190). Quanto,à fuca^ “a_hai-
nha.-do corpo/ pode absorverxLaço” (p. 191)j3ii “seu corte às
vezes/ tende, a tornar-se rouco” (p. 191).
Neste segmento, e no anterior, o jogo de encadeamentos
metafórico-metonímicos apresenta grau ainda maior de comple
xidade e recíproca infiltração. Indicamos abaixo o desdobramen
to dos termos iniciais:
' ^ ^ ■ 3'
J- BALA — CHUMBO — DENTES
i FACA — LÂMINA — BOCA' '
4 ' RELÓGIO — CORAÇÃO — PULSO
J 'M
Constatamos que o relógio continua sendo o elemento me
nos forte da série, na medida em que remete, por metáfora, exclu
sivamente ao mundo animado, sem apresentar a mesma consis
tência, mineral-metonímica, de chumbo e lâmina. Ainda: a bala
se enfraquecia em contato com o músculo. Ora, o relógio é cono-
tado exatamente por coração: traz em si a metáfora do que deve
ser evitado pela bala. Por outro lado, acentua-se, entre esta e a
faca, a solidariedade de suas representações: já unidas metonimi-
camente em chumbo/lâmina, terão seus respectivos desdobra
mentos metafóricos (dentes/ boca) interligados por nova relação
de contigüidade.
“Cuidado com o objeto,/ com o objeto cuidado” (p. 190).
Todo o segmento é uma incitação à vigília contra o que seja sinô
nimo de irregularidade, fraqueza ou decadência. O pulso do reló
gio não deve imitar o pulso humano, onde o sangue bate “já sem
morder mais nada” (p. 191). E o corte da faca às vezes “tende a
tornar-se rouco/ e há casos em que ferros/ degeneram em couro”
(p. 191). Estabelece-se uma hierarquia de contundência, que sub
mete o reino animal (couro) ao mineral (ferro). Na estrofe seguin
te, também o vegetal será visto como categoria inferior:
Forçoso é conservar
a faca bem oculta
pois na umidade pouco
seu relâmpago dura (p. 192)
\--
^Relâmpago” não é apenas o que brilha; significa, primor
dialmente, o que ofusca, agride em luz; essa valorização da agres
sividade é retomada duas estrofes abaixo, onde os três elementos
são equiparados a “brasa”: aquilo que, aceso, queima.
A noção de umidade também se associa, metalingüistica-
mente, à produção do discurso “confessional-romântico”,
128
(na umidade que criam
salivas de conversas,
tanto mais pegajosas
quanto mais confidências), (p. 192)
E se não a retira
quem sofre sua rapina,
menos pode arrancá-la
nenhuma mão vizinha, (p. 194)
129
espessura, pois ela “faz menos rarefeito/ todo aquele que a guarde”
(p. 195). Na introdução, o relógio possuía vivo mecanismo; agora,
é “indócil e inseto” (p. 195). A faca era “íntima”, “de uso interno”,
“habitando num corpo/ como o próprio esqueleto”; agora,
130
tla-linguagem devem desenvolver. A diluição existencial comba
lida na seção anterior encontra eco na diluição da potência lírica:
despem-se agora do
caloso da rotina,
pondo-se a funcionar
com todas suas quinas, (p. 197-198)
131
As derradeiras estrofes de Uma faca só lâmina efetuam,
como observou Benedito Nunes4, o desmonte e a inversão do per
curso metafórico do poema,
e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda,
132
X — O controle do discurso
133
— “A palavra seda” — oito estrofes em redondilha maior;
rimas em /e/.
— “Rio e/ou poço” — oito estrofes em redondilha maior;
rimas em lei.
— “Imitação da água” — oito estrofes em redondilha maior;
rimas em /i/.
— “Mulher vestida de gaiola” — doze estrofes em redondi
lha maior; rimas em /i/.
134
Os oito segmentos desse poema desenvolvem um trajei o
que põe em relevo, de um lado, a situação que se representa, e, de
outro, o questionamento da própria possibilidade de representa
ção. O movimento da bailadora se exerce numa espécie de palco
duplo, em que ao desafio da dança corresponde o desafio à lin
guagem que tentar sua apreensão:
135
gosto de chegar ao fim
do que dele se aproxima,
gosto de chegar-se ao fim,
de atingir a própria cinza. (p. 127)
de arrancar-se de si mesmo
numa primeira faísca,
nessa que, quando ela quer,
vem e acende-a fibra a fibra,
136
é impossível se dizer
se é a cavaleira ou a égua. (p. 128)
137
linear, numa só corda,
em ponto e traço, concisa,
a dicção em preto e branco
de sua perna polida, (p. 130)
138
vidirão em segmentos, porque prevalecerá o sistema de desdobra
mento de uma só imagem-base, sem a linha heterogênea (já que
tecida em campos semânticos díspares) de “Estudos para uma
bailadora andaluza”. No interior do grupo, composto por “Paisa
gem pelo telefone”, “A palavra seda”, “Rio e/ou poço”, “Imitação
da água”, “Jogos frutais”, “A mulher e a casa” e “Mulher vestida
de gaiola”, será lícito operar um novo recorte; mas assinalemos,
antes, que todos os textos se irmanam por estampar no título a
metáfora nuclear a ser desenvolvida para a elaboração do femini
no, a saber; a gaiola, a casa, a fruta, a água, o rio e/ou poço, a pala
vra (e a coisa) seda, a paisagem. O subgrupo 1, composto dos cin
co primeiros poemas acima citados, valorizará o mineral líquido;
eventualmente incluirá metáforas vegetais e incorporará o topos
nordestino; mas, sobretudo, referenciará um espaço aberto. O
subgrupo 2, composto de “A mulher e a casa” e “Mulher vestida
de gaiola”, já indica a afinidade dos textos a partir de seus pró
prios títulos: coincidência de vocábulo “mulher” e existência de
um suporte simbólico ancorado na noção de fecham ento que
“casa” e “gaiola” compartilham.
“Paisagem pelo telefone” é poema divisível em duas partes
delimitadas pelo ponto que encerra um primeiro e longo período
gramatical espraiado por sete estrofes. A primeira, com a relação
voz/luz,
139
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda (p. 135)
140
Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,
141
só uma água vertical
pode, de alguma maneira,
ser a imagem do que és
quando horizontal e queda. (p. 165-166)
142
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista
e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda. (p. 175)
143
de significação do texto: ela utiliza certos signos (ouro, seda) na
expectativa de remover-lhes as conotações já sedimentadas pelo
uso. Para combater a metáfora-clichê, o poeta percorre, inicial
mente, um trajeto de esvaziamento do signo, desobstruindo-o
daquilo que o costume lingüístico estatuíra ser sua “verdade”:
144
fície “luxuosa, falsa, acadêmica” assim é a partir de um lugar his
tórico da linguagem, embora o discurso “natural” simule um cará
ter não-situado: o que não teve “começo” certamente não terá
“fim” — ambos se perdem na “eternidade da natureza”. Nas pri
meiras estrofes do poema, João Cabral amputou dos signos os
significados comprometidos com a diluição, deixando como cica
triz um significante vazio, determinado pela ausência e pelo não.
Em seguida, re-significa os vocábulos, mas atento à perspectiva,
ao ponto que tornou possível o discurso renovado:
há algo de muscular,
de animal, carnal, pantera,
de felino, da substância
felina, ou sua maneira,
de animal, de animalmente,
de cru, de cruel, de crueza,
que sob a palavra gasta •
persiste na coisa seda. (p. 159 -160)
145
O título — “Jogos frutais” — prenuncia um componente
lúdico a intervir na fatura do texto. E, de fato, o poeta se compraz
em jogos de aproximações e de afastamentos entre a mulher e as
frutas do Nordeste. Até a sétima estrofe, as aproximações giram
em tomo da textura, dos cristais internos (cf. “Paisagem pelo tele
fone”), do motor animal, da concisão e da tensão (cf. “Estudos para
uma bailadora andaluza”) que mulher e fruta propiciam. A seguir,
se rejeitam as frutas que não ofereçam uma lição de forma, e, por
oposição, se valoriza a cana-de-açúcar, “que é pura linha” (p. 180).
E nunca é demais reiterar a técnica de deslocamento no tratamento
do tema erótico; o poeta, desviando-se (aparentemente) do objeto
feminino, efetua intensa sexualização das imagens que o conotam:
146
lava de nossa boca
como se nada. (p. 183)
e tátil:
E há em tua pele
o sol das frutas que o verão
traz no Nordeste.
É de fruta do Nordeste
tua epiderme;
mesma carnação dourada,
solar e alegre, (p. 178-179)
1 Assis, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, 2a
ed„ p. 259.
147
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
148
A mulher cabralina, mesmo em sua recusa ao externo, não
se veda de todo: está em gaiola', nova versão da mulher vestida de
água (“Paisagem pelo telefone”), desnudada em espiga (“Estudos
para uma bailadora andaluza”) ou ainda em casa que se abre em
“riso franco de varandas” (p. 153). Mas, “isenta, numa gaiola”, a
referência feminina do texto apresenta um traço específico: não
há alusão a sua forma ou movimento a não ser em termos estrita
mente defensivos. O que era oferta ostensiva em “Jogos frutais”
transmuda-se em resguardo; o fechado não surge para abrir o
compasso ao aberto, representado pela tentativa de invasão do
pássaro ao território-reduto do corpo feminino:
149
que é como se fosse roupa
cortada em malha.
150
recurso análogo ao utilizado na parte IV de O cão sem plumas
(1950):
Aquele rio
está na memória
como um cão vivo
dentro de uma sala.
Como um cão vivo
dentro de um bolso.
Como um cão vivo
debaixo dos lençóis,
debaixo da camisa,
da pele. (p. 316)
151
Em 1.2, ressurge outra imagem advinda do “repertório de
ascese” que o poeta m aneja desde “Fábula de A nfion” : a do
deserto.
152
3.1 A paio seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego, (p. 162-163)
3. 3
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente. (p. 163)
153
(“sem bosque”) e o transfere a outro sem circulação no discurso
lírico (“fio de cobre”); depois, subtrai o próprio termo inicial
(“sem qualquer pássaro”), destacando o mineral como presença
mais contundente, como permanência final. A parte 4.2 consolida
a vitória do mineral como símbolo mais efetivo do cante', “bigor
na”, “martelo” e mesmo o pássaro araponga, “que inventa o pró
prio ferro” (p. 164). A força mineral também atinge 4.3, onde o
domínio especificamente musical do cante é extrapolado para que
ele abarque, literalmente, “situações e objetos” (p. 164): “a ele
gância dos pregos”, “o arame dos insetos” (ibid.).
As estâncias finais sintetizam a didática do poema:
154
estrofe de cada parte do “poema 2”. Ausente de 1 e 11, o grifo é
uma espécie de condensador temático dos segmentos.
A primeira parte do “poema 1” arma-se na dialética entre
ocupação e resistência:
155
Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos das do Moxotó). (p. 175)
156
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento, (p. 174)
157
de um político orador
que em vez de frases, com tumbas
quis compor esta oração
toda em palavras esdrúxulas,
158
fronto se dá entre elementos igualmente portadores de consistên
cia (canavial x cidade, por exemplo), mas tal equivalência é des
feita pela adjunção metafórica do líquido ao canavial: o “mar
canavial”. Ou seja: como a cana-cupim leva à diluição, é conota-
da nas reverberações do signo “água”.
Dessa paisagem diluída, excetuam-se — metalicamente —
Recife, Moreno e Paulista:
159
Se vem numa espiral
da coisa à sua memória.
e daí à lembrança
que vestiu tais imagens
e é muito mais intensa
do que pôde a linguagem,
e afinal à presença
da realidade, prima,
que gerou a lembrança
e ainda a gera, ainda, (p. 199)
160
ta. Em Uma faca só lâmina, como vimos, a emulação (indistinta)
do real; em “De um avião”, seu componente especificamente
humano:
161
XI — As vozes de fora
163
so de quem fala está, assim, duplamente apartado da coisa de que
fala. Essa “descontaminação” do objeto traduz-se pela ausência
de empatia com que ele é tratado; o registro de sua condição é
meramente constatativo:
1
— Cemitérios gerais
onde não só estão, os mortos.
— Eles são muitos mais completos
do que todos os outros.
— Que não são só depósito
da vida que recebem, morta.
— Mas cemitérios que produzem
e nem mortos importam.
— Eles mesmos transformam
a matéria-prima que têm. (p. 103)
164
I) estrofes 1, 5, 9, 13 6 - 8 - 8-6
II) estrofes 2, 6, 10, 14 8 - 6 - 6-8
III) estrofes 3, 7, 11, 15 8 - 8 - 6 -6
IV) estrofes 4, 8, 12, 16 6 - 6 - 8-8
165
— Cemitérios autárquicos,
se bastando cm todas as fases.
— São eles mesmos que produzem
os defuntos que jazem. (p. 103)
5
— Cemitérios gerais
onde não é possível que se ache
o que é de todo cemitério:
os mármores em arte.
— Nem mesmo podem ser
inspiração para os artistas,
estes cemitérios sem vida,
frios, de estatística, (p. 103)
166
assevera a impossibilidade de “fazer arte” com os cemitérios
gerais, o que seria uma contradição irremovível pela existência
mesma do poema; o que ele recusa é uma arte em “mármores”.
Num segundo momento, a ótica do despojamento aparenta
ser bem mais restrita — vai do todo à parte, passando do cemité
rio ao morto:
2
— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
n ã o h á a m o r t e e x c e s s o .
— E l a n ã o d á a o m o r t o
m a i o r v o l u m e n e m m a i s p e s o . (p . 1 0 5 )
— A m o r t e a q u i n ã o é b a g a g e m
n e m e x c e s s o d e c a r g a .
— A q u i , e l a é o v a z i o
q u e f a z c o m q u e s e m u r c h e a s a c a .
— Q u e e s v a z i a m a i s u m a s a c a
a li á s n u n c a p l e n a .
— E l a e s v a z i a o m o r t o ,
a m o r t e a q u i , j a m a i s o e m p r e n h a .
— A m o r t e a q u i n ã o i n d i g e s t a ,
m a i s b e m , é m o r t e a z i a .
— E o q u e c o m e p o r d e n t r o
o i n v ó l u c r o q u e n a d a e n v o l v i a , (p . 1 0 5 )
167
6
— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
n ã o h á a m o r t e g o s t o ;
tá c til, s e n s o r i a l ,
c o m a u r a , a r d e b a n h o m o r n o .
— C e r t o b a f o q u e b a n h a o s v i v o s
e m v o l t a d a b a n h e i r a
d e n t r o d a q u a l o m o r t o
b a n h a n a s u a a u r é o l a e s p e s s a .
— A m o r t e a q u i é a o a r liv r e ,
s e c a , s e m o r e s s a i b o
n a t u r a l n o u t r a s m o r t e s
e n o s a b o r d e R i l k e o u d e c r a v o . (p . 1 0 6 )
7
— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
o s m o r t o s n ã o t ê m o a l i n h o
d e v e s t i r - s e a r i g o r
o u m e s m o d e d o m i n g o .
— O s m o r t o s d a q u i v ã o d e s p i d o s
e n ã o s ó d a r o u p a c o r r e t a
m a s d e t o d a s a s o u t r a s ,
m í n i m a s e t i q u e t a s , ( p . 1 0 8 )
— C e m i t é r i o s g e r a i s
q u e n ã o e x i b e m r e s t o s .
— T ã o s e m o s s o s q u e a t é p a r e c e
168
que cachorros passaram perto.
— C o m o q u e o s c e m i t é r i o s
r o e m s e u s p r ó p r i o s m o r t o s .
— ■ E c o m o s e , c o m o u m c a c h o r r o ,
a p ó s r o e r , c o b r i s s e m o s o s s o s .
— E i s p o r q u e e l e s s ã o
p a r a o t u r i s t a u m l o g r o .
— S e p e n s a : n ã o p e n s e i q u e a m o r t e
h o u v e s s e d e s f e i t o t ã o p o u c o s , (p . 1 1 0 )
§ U m a b a n d e i r a
q u e t i v e s s e d e n t e s :
q u e o m a r e s t á s e m p r e
c o m s e u s d e n t e s e s e u s a b ã o
r o e n d o s u a s p r a i a s , ( p . 3 1 3 )
O m a r , q u e s ó p r e z a a p e d r a ,
q u e f a z d e c o r a l s u a s á r v o r e s ,
l u t a p o r c u r a r o s o s s o s
d a d o e n ç a d e p o s s u i r c a r n e (p . 1 3 4 )
169
prio gesto de ilegitimação do olhar alheio. Mas não nos esqueça
mos de que o mesmo foco que desqualifica a “verdade” turística
já fora, pelo Sul e pela senatoria, colocado sob suspeição pelo
poeta.
A mineralização da alma — proposta ética de Uma faca só
lâmina — é algo situado fora do alcance desses mortos gerais,
reduzidos a um oco suporte externo (o corpo) sem que em seu
interior tenha vicejado a mínima possibilidade de problematiza-
ção existencial:
1 6
— T a l v e z p o r q u e o s m o r t o s
n ã o t e n h a m ta l r e s í d u o , a a l m a .
— T a l v e z p o r q u e e s t a t e m
c o n s i s t ê n c i a m a i s r a la .
— E s e j a n o a r f á c i l s o r v i d a
c o m o u m a g o t a e m o u t r a d e á g u a . (p . 1 1 2 )
12
— N e m c o n h e c e m a f a s e ,
p r i m a , d a p o d r i d ã o ,
e m q u e o s d e f u n t o s s e p r o j e t a m ,
q u a n d o n a d a , e m e x a l a ç ã o .
— S ó r e s t o s m i n e r a i s ,
i n f e c u n d o s , c a l c á r i o s ,
s e e n c o n t r a m n e s t e s c e m i t é r i o s ,
m e n o s c e m i t é r i o s q u e o s s á r i o s . (p . 1 1 1 )
9
— A t o d o s o s d e f u n t o s
l o g o o S e r t ã o d e s a p r o p r i a ,
p o i s n ã o q u e r d e f u n t o s p r i v a d o s
o S e r t ã o c o l e t i v i s t a .
170
— E a s s i m n ã o r e c o n h e c e
o d i r e i t o a t ú m u l o s e s t a n q u e s ,
m a s s o c i a l i z a s e u s d e f u n t o s
n u m a s d t u m b a g r a n d e , (p . 1 0 4 )
— O n d e o m o r t o n ã o é,
s ó , o h o m e m m o r t o , o d e f u n t o .
— D e m o r t o s m u i t o m a i s g e r a i s ,
b i c h o s , p l a n t a s , t u d o .
— D e m o r t o s l ã o g e r a i s
q u e n ã o s e p o d e a p a r t a ç ã o , (p . 1 0 5 )
— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
n ã o h á m o r t e i s o l a d a
m a s a m o r t e p o r o n d a s
p a r a c e r t a s c l a s s e s c o n v o c a d a s .
— N u n c a e l a v e m p a r a u m s ó m o r t o ,
m a s s e m p r e p a r a a c l a s s e ,
a s s i m c o m o o s e r v i ç o
n a s c i r c u n s c r i ç õ e s m i l i t a r e s .
— H á c l a s s e s n u m e r o s a s , c o m o
a d e S e t e n t a - e - s e t e ,
m a s s e m p r e c a d a a n o
o r e c r u t a m e n t o s e r e p e t e , ( p . 1 0 6 )
171
a morte padrão, / em série fabricada” (p. 107). E o contingente,
nivelado no espaço anônimo da terra, no calendário comum da
seca e da fome, termina ainda por ver anulados os traços de sua
eventual distinção física:“- De qualquer forma, todos,/ gêmeos e
morti-natos” (p. 108).
A noção de “morte em vida” se colhe também na subversão
do humano confrontado a outras categorias. Com efeito, a nota
sarcástica não advém apenas do fato de que o nordestino seja
situado abaixo do homem,
11
— E i s u m d e f u n t o n a d a h u m a n o
q u e n e m l e m b r a u m h o m e m , s e o f o i,
e n o q u a l n a d a m o s t r a
s e a m o r t e d o e u , o u d ó i . (p . 1 0 9 )
— S e l e m b r a a l g o , l e m b r a é a s p e d r a s ,
e s s a s d e a r n ã o i n t e l i g e n t e ,
a s p e d r a s q u e n ã o l e m b r a m
n a d a d e b i c h o o u g e n t e . ( p . 1 0 9 )
— N e s t e s c e m i t é r i o s g e r a i s
o s m o r t o s n ã o m o s t r a m s u r p r e s a .
— A m o r t e p a r a e l e s
f o i c o i s a r o t i n e ir a .
— N e n h u m t e m o a r d e t e r m o r r i d o
e m i n s t a n t â n e o o u g u i l h o t i n a , (p . 1 0 9 )
172
mo de domingo”: “— Todos morrem em prosa/ como foram, ou
dormem” (p. 109).
“Festa na Casa-grande”, o segundo texto do livro, obedece
rá a processos de escalonamento numérico semelhantes aos de
“Congresso no Polígono das Secas”, e será igualmente construído
a partir de uma ótica de dupla distância: hierárquica e espacial.
No plano hierárquico, utiliza “ritmo deputado” para falar do
cassaco; espacialmente, tem “sotaque nordestino”. Com esse últi
mo dado, como se falar de um distanciamento no espaço? Sim
plesmente porque se trata de um discurso localizado na Casa-
grande, contígua ao sertão-senzala, mas que dele não se “conta
mina”; logo, um topos reservado, que, em sua “festa”, não deixa
fresta para convidados inconvenientes.
As vinte estrofes do poema surgem, na vontade sintagmáti-
ca do autor, com numeração intercalada de cinco em cinco, acar
retando, portanto, a existência de cinco blocos:
I ) e s t r o f e s 1 , 6 , 1 1 , 1 6 ;
I I ) e s t r o f e s 2 , 7 , 1 2 , 1 7 ;
II I ) e s t r o f e s 3 , 8 , 1 3 , 1 8 ;
I V ) e s t r o f e s 4 , 9 , 1 4 , 1 9 ;
V ) e s t r o f e s 5 , 1 0 , 1 5 , 2 0 .
“ — O c a s s a c o d e e n g e n h o ! q u a n d o é . . . .” r c r i a n ç a ( e s t r o f e 6 )
■t m u l h e r ( 1 1 )
l v e l h o ( 1 6 ) .
No bloco II:
versos 1 e 2: “— O cassaco de engenho/ de longe é. ...”;
verso 3: “— De perto é que se vê”.
No bloco III, os dois primeiros versos:
173
“ — O c a s s a c o d e e n g e n h o / q u a n d o . . . .” r e s t á d o r m i n d o ( e s t r o f e 9 )
n ã o e s t á d o r m i n d o ( 5 )
n o t r a b a l h o ( 1 3 )
n ã o t r a b a l h a ( 1 8 ) .
N o b l o c o I V , o m o d e l o é :
" — ü c a s s a c o d c e n g e n h o / V E R B O a m a r e l a m e n t e "
e s t r o l e 4 : l a z
e s t r o f e 9 : v a i
e s t r o f e 1 4 : é
e s t r o l e 1 9 : v ê .
F i n a l m e n t e , o b l o c o V r e t o m a a f o r m a - p a d r ã o d e III:
d o e n t e c o m f e b r e ( e s t r o f e 5 )
p o e m a
O b s e r v e m o s
n ã o s e i n s e r e
q u e , a e x e m p l o
r i g o r o s a m e n t e
(
d a
n o
v a i m o r r e n d o
o c a r r e g a m , m o r t o
d e f u n t o
p r i m e i r a ,
m o d e l o
e j á
( 1 0 )
n o c h ã o
a ú l t i m a
g e r a l d e
( 1 5 )
( 2 0 ) .
e s t r o f e
s e u b l o c o ,
d o
p o i s n e l a a c o n j u n ç ã o “ q u a n d o ” n ã o c o m p a r e c e a o t e x t o c o m o n a s
e s t â n c i a s 5 , 1 0 e 1 5 ; é t e r m o e l í p t i c o .
O s e s q u e m a s a c i m a p e r m i t e m q u e s e e n t e n d a o d u p l o c a m i
n h o d e l e i t u r a : o u o e s p a c e j a m e n t o ( 1 , 6 , 1 1 , 1 6 e t c . ) e s t r ó f i c o
c o m identidade f o r m a l , o u a c o n t i n u i d a d e ( I , 2 , 3 , 4 e t c . ) c o m
alternância. M a s i s s o n ã o é t u d o . C h a m o u - n o s a a t e n ç ã o a r e i t e
r a ç ã o d o s i n t a g m a “ O c a s s a c o d e e n g e n h o ” e o l a r g o e m p r e g o d o
s i n a l d e d o i s p o n t o s e m f i m d e v e r s o . C o m a l o c a l i z a ç ã o d e s s e s
d o i s e l e m e n t o s n o e s p a ç o g e r a l d o p o e m a , p o d e m o s d e p r e e n d e r
o u t r o s p ó l o s s i m é t r i c o s n o i n t e r i o r d e c a d a b l o c o . A c o l u n a c e n
t r a l d e s i g n a q u e v e r s o s c o n t é m “ O c a s s a c o d e e n g e n h o ” ; a d a d i -
a s s i n a l a q u e v e r s o s s e u t i l i z a m d o s i n a l d e d o i s p o n t o s :
1) e s t r o f e s 1, 6 , 1 1 , 1 6 1 , 5 , 9 1 0 2 , 6 , 1 0 . 1 4
II) e s t r o f e s 2 , 7 , 1 2 , 1 7 1 , 5 2 , 6
III) e s t r o f e s 3 , 8 , 1 3 , 1 8 1, 1 3 2 . 1 4
I V ) e s t r o f e s 4 , 9 , 1 4 . 1 9 1, 9 1 0 , 1 4
V ) e s t r o f e s 5 , 1 0 , 1 5 , 2 0 1 2 , 6 , 1 0 , 1 4
174
O r i g o r c o m q u e J o ã o C a b r a l a r m o u a c o n j u n ç ã o e a d i s
j u n ç ã o d o s b l o c o s n o s p o d e l e v a r a i n d a a o u t r a s c o n s i d e r a ç õ e s .
A s v á r i a s v o z e s d e s s e p o e m a ( c a d a t r a v e s s ã o i n d i c a n o v a f a l a )
o c u p a m , i n d i v i d u a l m e n t e c o n s i d e r a d a s , d o i s o u q u a t r o v e r s o s .
A s s i m , a p r e s e n ç a d e d o i s p o n t o s e m ' v e r s o p a r , a l i a d a a o t r a v e s
s ã o d o v e r s o s u b s e q ü e n t e , c o n d u z à complemcntariclade d a s f a l a s ,
i n c a p a z e s d e c r i a r t e n s ã o o u d i s c o r d â n c i a : c a d a u m a r e t o m a o f i o
l i n g ü í s t i c o q u e s u a p r e d e c e s s o r a d e i x a r a s u s p e n s o n o s d o i s p o n
t o s . A d e m a i s , o s b l o c o s s e c o m p õ e m d e d u a s e s t â n c i a s p a r e s e
d u a s í m p a r e s ; a n a l o g a m e n t e , s u a s s i m i l i t u d e s s e d i v i d e m e n t r e o
p a r ( d e todos o s v e r s o s c o m d o i s p o n t o s ) e o í m p a r ( d e todos o s
v e r s o s c o m “ — O c a s s a c o d c e n g e n h o ” ).
O u t r o a s p e c t o a s e r a s s i n a l a d o é a r e i n c i d ê n c i a , n o b l o c o V ,
d a n u m e r a ç ã o d o b l o c o I n o q u e s e r e f e r e à u t i l i z a ç ã o d e d o i s p o n
t o s ( c f . e s q u e m a a c i m a ) . A m b o s , c o m o f r i s a m o s , j á e s t a v a m u n i
d o s p e l a a t i p i c i d a d e d e s u a s r e s p e c t i v a s p r i m e i r a s e s t r o f e s , c u j o
v e r s o i n i c i a l n ã o e r a e x a t a m e n t e i d ê n t i c o a o s p r i m e i r o s v e r s o s d a s
d e m a i s e s t â n c i a s d o s b l o c o s . M a s a s a f i n i d a d e s e n t r e I e V n ã o s e
e s g o t a m n e s s e d i á l o g o d e f o r m a s : é t a m b é m d i á l o g o d e c o n t e ú d o s
c o m p l e m e n t a r e s . I s i t u a i n f â n c i a e v e l h i c e d o c a s s a c o , f a l a n d o
i g u a l m e n t e d e s u a m o r t e ; l o g o , c e n t r a - s e n a v i d a e a b r e e s p a ç o
p a r a s u a e x t i n ç ã o . E m r e s p o s t a s i m é t r i c a , V c e n t r a - s e n a m o r t e ,
f a l a n d o , a i n d a , d a v i d a ( a g ô n i c a o u d o e n t e ) . N o s b l o c o s i n t e r m é
d i o s , a m o r t e n ã o é f o c a l i z a d a .
H á m a i s . U m o u t r o d a d o s e r e v e l a p e r t i n e n t e p a r a a a p r o x i
m a ç ã o d e I e V : a e x t e n s ã o e a d i s p o s i ç ã o d a s f a l a s n o i n t e r i o r d a s
e s t r o f e s . C a d a e s t â n c i a d e s s e s d o i s b l o c o s r e g i s t r a o i t o “ v o z e s ” d e
d o i s v e r s o s . N o s d e m a i s , t e m o s :
I I ) q u a t r o f a l a s d e d o i s v e r s o s , d u a s d e q u a t r o ;
I I I ) d u a s f a l a s d e d o i s , q u a t r o d e d o i s , d u a s d e d o i s ;
I V ) d u a s f a l a s d e q u a t r o , q u a t r o d e d o i s .
C o n f e r i n d o a I I I a p o s i ç ã o n u m é r i c a d e centro d o s b l o c o s ,
n o t a m o s a i n d a q u e e l e d e s e m p e n h a u m p a p e l m ediador e n t r e a s
c o n f i g u r a ç õ e s a n t i t é t i c a s d e I I e I V . A o s e r a c i o n a d o c o m “ d u a s
f a l a s d e d o i s v e r s o s ” , I I I r e p a r t e - s e e q u a n i m e m e n t e e n t r e a s “ d u a s
f a l a s ” q u e a c i o n a m I V e o s “ d o i s v e r s o s ” q u e i m p u l s i o n a m II. A
e v e n t u a l a l e g a ç ã o d e s i m p l e s c o i n c i d ê n c i a ( m a s , a e s t a a l t u r a .
s e r i a p o s s í v e l a v e n t a r o f o r t u i t o p a r a f a l a r d a o r g a n i z a ç ã o c a b r a l i -
n a ? ) d e s f a z - s e c a s o r e t o r n e m o s a o u t r o c r i t é r i o : o d a u t i l i z a ç ã o d e
d o i s p o n t o s . P o r e l e , c o n s t a t a m o s q u e o b l o c o II c o n t é m d o i s p o n
t o s n o s v e r s o s 2 e 6 ; o I V , n o s v e r s o s 1 0 e 1 4 . O I I I ? N o s v e r s o s 2
e 14, d o n d e , m a i s u m a v e z , a f u n ç ã o m e d i a d o r a d e f o r m a s .
“ — A c o n d i ç ã o c a s s a c o / é o d e n o m i n a d o r ” ( p . 1 1 2 ) : e i s a
p r o p o s t a e s t a m p a d a n a p r i m e i r a e s t r o f e . O b l o c o I e n f a t i z a r á ,
p o i s , a a p r e e n s ã o d o c a s s a c o n ã o a p e n a s c o m o o t r a b a l h a d o r d o
a ç ú c a r , m a s c o m o r e v e l a d o r d e u m a c o n t i n g ê n c i a q u e a b a r c a
t o d o s o s s e r e s . U m a v e z q u e a “ c o n d i ç ã o ” a t o d o s i g u a l a , n e l a s e
i n c l u e m a s c r i a n ç a s ( e s t r o f e 6 ) , a s m u l h e r e s ( 1 1 ) e o s v e l h o s ( 1 6 ) ,
o u s e j a , a s “ f o r ç a s m e n o r e s ” d e u m s i s t e m a d e p r o d u ç ã o q u e a c a
b a p o r d e v o r a r , s e m h i e r a r q u i a , s e u s e l e m e n t o s i n t e g r a n t e s :
6
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o é c r i a n ç a :
— P a r e c e c r u z a m e n t o
d e c a n i ç o c o m c a n a .
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
c r i a n ç a é m a i s c a n i ç o :
— P u x a m a i s b e m a o p a i
p o r q u e n ã o é m a c i ç o .
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o é c r i a n ç a :
— N ã o s ó p u x a a o c a n i ç o ,
p u x a t a m b é m à c a n a .
— M a s à c a n a d e s o c a ,
r e p e t i d a e s e m f o r ç a :
— A c a n a f i m d e r a ç a ,
d e q u a r t a o u q u i n t a f o l h a . (p . 1 1 3 )
A e s t r o f e s e b i p a r t e e m d o i s s e g m e n t o s n o q u e s e r e f e r e à
c o n s t r u ç ã o d e s e n t i d o : d o v e r s o 1 a o 8 e d o 9 a o 1 6 . O s v e r s o s i n i
c i a i s ( e i d ê n t i c o s ) d e a m b o s o s s e g m e n t o s c o n s t i t u e m u m s u p o r t e
d e e n u n c i a d o a s e r m e t a f o r i z a d o n o s s u b s e q ü e n t e s : “ — P a r e c e
c r u z a m e n t o / d e c a n i ç o c o m c a n a . ” ; “ — N ã o s ó p u x a a o c a n i ç o /
p u x a t a m b é m à c a n a . ” A s s i m , o p r e e n c h i m e n t o i m a g í s t i c o d e 1 e
9 s e e f e t i v a c o m a u t i l i z a ç ã o d o s m e s m o s v o c á b u l o s ( c a n i ç o ,
c a n a ) . N o j o g o t e c i d o e n t r e o h u m a n o e o v e g e t a l , o b s e r v e m o s ,
a i n d a e s s a v e z , a s u p r e m a c i a d e s t e s o b r e a q u e l e : a c a n a f i m d e
176
r a ç a m e l a f o r i z a a c r i a n ç a c a s s a c o ; o u s e j a : o q u e s i g n i f i c a térm i
no d e p e r c u r s o d e u m a e s p é c i e v e g e t a l s i g n i f i c a , t a m b é m , o início
d a e s p é c i e h u m a n a . T a l p o s i ç ã o d e i n f e r i o r i d a d e s e r e i t e r a n a
e s t r o f e 1 1 , c o n q u a n t o e x p r e s s a e m t e r m o s d o v e g e t a l j á i n d u s
t r i a l i z a d o :
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o é m u l h e r :
— E u m s a c o v a z i o
m a s q u e s e t e m d e p é .
— N ã o é u m s a c o c a p a z
d e c o n s e r v a r , c o n t e r , (p . 113)
A p r i n c i p a l d i f e r e n ç a e n t r e a m u l h e r , e m v i d a , e o s m o r t o s
g e r a i s d e “ C o n g r e s s o n o P o l í g o n o d a s S e c a s ” é a v e r t i c a l i d a d e d a
p o s i ç ã o f e m i n i n a ( “ q u e s e t e m d e p é . ” ), c o n t r a p o s t a à h o r i z o n t a -
l i d a d e d a q u e l e s , d e c u j a m o r t e s e d i z q u e “ e s v a z i a m a i s u m a s a c a /
a l i á s n u n c a p l e n a ” ( p . 105). P a r a t o d o s , a m e s m a i m a g e m d e i n v ó
l u c r o d o n a d a .
O b l o c o I I a c i o n a o e l e m e n t o e l i d i d o e m I: o c a s s a c o
h o m e m . O s d o i s v e r s o s i n i c i a i s d e c a d a u m a d e s u a s e s t r o f e s
s u g e r e m u m n i v e l a m e n t o e n t r e o t r a b a l h a d o r n o r d e s t i n o e o s
d e m a i s s e r e s h u m a n o s , l o g o d e s f e i t o n o s v e r s o s 3 e 4 . A s e s t r o f e s
s e d e s e n v o l v e r ã o , p o r t a n t o , a p a r t i r d a c a t e g o r i a d o menos a t r i b u í
d a a o c a s s a c o :
2
— O c a s s a c o d e e n g e n h o ,
d e l o n g e é c o m o g e n t e :
— D e p e r t o é q u e s e v ê
o q u e h á d e d i f e r e n t e , ( p . 1 1 4 )
7
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
d e l o n g e é d e o s s o e c a r n e :
— D e p e r t o é q u e s e v ê
q u e d e o u t r a q u a l i d a d e , ( p . 1 1 5 )
177
12
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
d e l o n g e é o m e s m o b a r r o :
— D e p e r t o é q u e s e v ê
q u e o d e l e f o i m a i s b a ç o . (p . 1 1 5 )
1 7
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
d e l o n g e é b r a n c o o u n e g r o :
— D e p e r t o é q u e s e v ê
q u e é a m a r e l o m e s m o . (p . 1 1 6 )
2
— N ã o h á n a d a d e h o m e m
q u e n ã o t e n h a , e m d e t a l h e ,
e l u d o p o r i n t e ir o ,
n a d a p e l a m e t a d e .
— E i g u a l , m a s a p e s a r ,
p a r e c e r e c o r t a d o
c o m a t e s o u r a c e g a
d e a l f a i a t e b a r a t o , (p . 1 1 5 )
7
— T e m a t e x t u r a b r u t a
e a o m e s m o t e m p o f r o u x a ,
m e n o s q u e a l g o d ã o z i n h o ,
s i m p r ó p r i a d a s e s t o p a s .
— E d o s p a n o s p o í d o s
c h e g a d o s a o e s t a d o
e m q u e , n o p o r t u g u ê s ,
p a n o p a s s a a s e r t r a p o . (p . 1 1 5 )
178
O d i s c u r s o , p a r a e v i t a r i n v e s t i m e n t o s a l e a t ó r i o s d e s e n t i d o ,
c r i a i m a g e n s c o m c o n s t i t u i n t e s m e t o n í m i c o s d o r e f e r e n c i a l . S e o s
" p a n o s p o í d o s " e s t ã o e m r e l a ç ã o d e c o n t i g i i i d a d e c o m o c a s s a c o
( h o m e m / v e s t i m e n t a ) , s e r á ta l e l e m e n t o c o n t í g u o a m e t á f o r a d o
h u m a n o e x t r a í d a , p o r t a n t o , d e u m r e f e r e n t e m e t o n í m i c o a o
q u e e l a c o n o l a . O m e s m o s u c e d e r a c o m a c r i a n ç a , c o n t í g u a à c a n a
e p o r e l a m e t a f o r i z a d a . P a r a a c r i a n ç a , a d e g e n e r e s c ê n c i a v e g e t a l
( c a n a f i m d e r a ç a ) f o r a o s í m i l e ; i d ê n t i c a n o ç ã o d e d e c a d ê n c i a s e
d e s c o b r e n a c a r a c t e r i z a ç ã o d o a d u l t o , a p e n a s t r a n s f e r i d a p a r a o
v e g e t a l i n d u s t r i a l i z a d o ( p a n o , e s t o p a , t r a p o ) .
O s u b g r u p o c o n s a g r a d o à c o r d o c a s s a c o i n c o r p o r a o u t r a
c a t e g o r i a a o s f o c o s i m a g í s t i c o s u t i l i z a d o s p a r a s u b s i t u a r o t r a b a
l h a d o r n o r d e s t i n o . A p ó s t e r s i d o c o t e j a d o a o v e g e t a l e a o h u m a n o
( e m c o n f r o n t o s d e q u e s a í a i n v a r i a v e l m e n t e p e r d e d o r ) , a g o r a o ê
a o m i n e r a i , s e m q u e o r e s u l t a d o s e a l t e r e :
!2
— U cassaco dc engenho
é opaco e mortiço:
Nunca aprende com os aços
de uma usina, seu brilho.
— N e m com o brilho mais cego
do cobre que ele vê
nas laeluis em que mexe
nos engenhos bangiié. (p. 1 16)
O b l o c o III a d m i t e u m a b i p a r t i ç ã o e n t r e u m s u b g r u p o c o n
c e r n e n t e a o s o n o e à v i g í l i a ( e s t r o f e s 3 e 8 ) e o u t r o r e l a t i v o à p r o
d u ç ã o e a o d e s c a n s o ( 1 3 e 1 8 ) . N o i n t e r i o r d o s s u b g r u p o s , t o d a
v i a . a s a n t í t e s e s d o s t e r m o s s e d e s f a z e m s o b o i m p é r i o d o “ m e s
m o ' ’: d o r m i r o u n ã o d o r m i r e m n a d a a l t e r a a c o n s t i t u i ç ã o f í s i c o -
p s í q u i c a d o c a s s a c o , n u m a e q u i v a l ê n c i a a n á l o g a à a n t e r i o r m e n t e
e s t a b e l e c i d a e n t r e v i d a / m o r t e :
ts
—O cassaco de engenho
quando não está dormindo:
—- li com o se seu sono
ainda o encharcasse, limo. (p. 1 17)
K s t a d o s d i s t i n t o s - - s o n o / v i g í l i a — s e t r a d u z e m , e a s s a e a -
179
m e n t e , p e l a i n d i s t i n ç ã o ; a b a r r a d e m a r c a t ó r i a s e a p a g a e m p r o l d e
u m t o r p o r t a m b é m e x i s t e n c i a l , q u e v e d a o a f l o r a m e n t o d a s m a r
c a s d a l u c i d e z :
— N ã o t e m c o m o e v i t a r
q u e o m a r a s m o o e m b e b a
e o i m p e ç a d e s u b i r
à c o n s c i ê n c i a s e c a . (p . 1 1 7 )
A s s i m , a p o u c o e p o u c o s e v a i c o n f i g u r a n d o u m l e q u e d e
c a p t a ç õ e s q u e s u b t r a i a o t r a b a l h a d o r n o r d e s t i n o q u a i s q u e r h i p ó t e
s e s d e u m a p o s t u r a c r í t i c a f r e n t e à e x i s t ê n c i a , d o m e s m o m o d o
c o m o o “ r i t m o d e p u t a d o ” j á l h e f u r t a r a a v o z . A v o z d e p u t a d a , p o
r é m , n ã o a c o d e à r e t ó r i c a p a r a a d o r n a r - s e c o m e u f e m i s m o s q u e
d i l u a m a s a r e s t a s c o n t u n d e n t e s d o e s p a ç o r e f e r e n c i a d o . E m M or
te e vida severino., e n u n c i a d o s p e l o retirante , d e p a r a m o s c o m o s
s e g u i n t e s v e r s o s : “ o s a n g u e / q u e u s a m o s t e m p o u c a t i n t a ” ( p .
2 0 4 ) ; e m “ F e s t a n a C a s a - G r a n d e ” , e s t r o f e 1 3 : “ — É c o m o s e s e u
s a n g u e , / q u e e n t r e t a n t o é m a i s r a l o ” ( p . 1 1 8 ) . A d i f e r e n ç a e n t r e o s
d o i s e x e m p l o s r e s i d e n o p o n t o d e e n u n c i a ç ã o : n u m c a s o , u m a v o z
n o t r â n s i t o d a m i s é r i a ; n o o u t r o , u m a v o z r e f e s t e l a d a n a C a s a -
g r a n d e . O q u e s e f a l a n ã o é i m u n e a o l u g a r d e o n d e s e f a l a : u m a
f r a s e i d ê n t i c a p r o f e r i d a e m d o i s e s p a ç o s d i v e r s o s n ã o é , p o r i s s o
m e s m o , i g u a l : a p o n t a r á , a n t e s , p a r a o i n t e r v a l o a b e r t o e n t r e s e u s
d o i s p ó l o s d e e m i s s ã o .
O v e r s o s e v e r i n o , s e n ã o e s c a m o t e a v a a c o n d i ç ã o - m i s é r i a ,
d e i x a v a a o m e n o s e n t r e v e r d e n t r o d e l a e s t á g i o s d e s o b r e v i v ê n c i a
c o m m e n o r p r e c a r i e d a d e ( c f . a f a l a d a s e g u n d a c i g a n a , p . 2 3 7 -
2 3 8 ) . E m “ F e s t a n a C a s a - G r a n d e ” , a o c o n t r á r i o , s ã o n e g a d a s a s
h i p ó t e s e s d a ( r e l a t i v a ) a s c e n s ã o s o c i a l , u m a v e z q u e o t r a b a l h o e
o n ã o - t r a b a l h o r e m e t e m a h o r i z o n t e s i n d i f e r e n c i a d o s :
1 3
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o n o t r a b a l h o :
— T u d o c o m q u e t r a b a l h a
l h e p a r e c e p e s a d o , (p . 1 1 8 )
1 8
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o n ã o t r a b a l h a :
180
— A s c o i s a s c o n t i n u a m
s e n d o - l h e b e m p e s a d a s , (p . 1 1 8 )
A s q u a t r o e s t r o f e s d o b l o c o I V u n e m - s e e m t o r n o d a n o ç ã o
d e ‘" a m a r e l o ” , t r a n s f i g u r a d a à d i m e n s ã o d e c o r moral q u e d e f i n e
o d e n t r o e o f o r a d o c a s s a c o :
4
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
f a z a m a r e l a m e n t e
t o d a c o i s a q u e t o c a
t o c a n d o - a , s i m p l e s m e n t e .
— E o c o n t r á r i o d o b a r r o
d a s c a s a s - d e - p u r g a r
q u e s e b o t a n o a ç ú c a r
a f i m d e o b r a n q u e a r .
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
p u r g a t u d o a o c o n t r á r i o ;
— C o m o o b a r r o , s e in filtr a ,
m a s d e i x a t u d o b a r r o . (p . 1 1 9 )
I n v e r t e - s e a l e n d a d e M i d a s , q u e p u r i f i c a v a , p e l a n o b r e z a
a m a r e l a d o o u r o , o s o b j e t o s e m q u e t o c a v a . A i r r e d u t i b i l i d a d e à
diferença ( r e p r e s e n t a d a , n o j o g o c r o m á t i c o d a e s t r o f e , p e l o bran
quear) c o r r o b o r a o q u e a f i r m á v a m o s a c e r c a d o s m e c a n i s m o s d e
n e u t r a l i z a ç ã o ( s o n o x v i g í l i a , p r o d u ç ã o x d e s c a n s o ) : o o u t r o
( b r a n c o ) s e m p r e s e n i v e l a a o m e s m o ( a m a r e l o ) n a c a r a c t e r i z a ç ã o
d o c a s s a c o .
A s e s t â n c i a s s e g u i n t e s t r a b a l h a m a d e m a r c a ç ã o d e d o i s t e r
r i t ó r i o s a n t a g ô n i c o s : o d o a m a r e l o e o d a s d e m a i s c o r e s . A n o n a
e s t r o f e s i t u a a m a r c h a d o c a s s a c o p o r “ t o d o e s s e a z u l / q u e é
P e r n a m b u c o s e m p r e ” ( p . 1 2 0 ) , o n d e o c é u s e m p r e - a z u l é i r ô n i c o
c o n t r a p o n t o à a m a r e l e c i d a e x i s t ê n c i a d o h o m e m . O a z u l c o m o
i m a g e m - m i r a g e m r e a p a r e c e n a e s t r o f e 1 4 :
— P r i m e i r o , a a g u a r d e n t e
l h e d á u m c e r t o a z u l
e e s q u e c i d o o a m a r e l o ,
e l e q u e r ir - s e a o S u l . ( p . 1 2 0 )
A l i b e r a ç ã o p r o m e t i d a p e l o á l c o o l é a m b í g u a , p o i s , s e p a r e
c e a t e n u a r a d o r d a c o n d i ç ã o c a s s a c o , a p e n a s l h e r e f o r ç a o i m p a s -
181
s c . N o d e v a n e i o e t í l i e o . o p a r a z u l / S u l , m a i s d o q u e u m a r i m a , é
e n t r e v i s t o c o m o u m a s o l u ç ã o . M a s , p o r o u t r o l a d o , o á l c o o l p o d e
a c e n d e r a c o n s t a t a ç ã o d o f r a c a s s o , c a n a l i z a n d o o i m a g i n á r i o p a r a
a d e s i s t ê n c i a f r e n t e a o d e s a f i o d e s o b r e v i v e r :
14
..A o cassaco de engenho
depois o azul é roxo:
— Já em .vez de ir-se ao Sul
deseja e ir-se morto. (p. 120)
O r o x o - m o r t e o b s t r u i o t r â n s i t o e n t r e o a m a r e l o p a l p á v e l e
u n i a z u l p o s s í v e l , s e n d o , p o r i s s o , u m s i g n o d e r e f o r ç o d a p r á t i c a
e x i s t e n c i a l e s v a z i a d a .
A e s t r o l e l l) c o m p l e m e n t a a d i s t r i b u i ç ã o c r o m á t i c a d o s
c a m p o s o p o s i t i v o s . O d e m a r c a p o s i t i v a , s i t u a d o f o r a d o a l c a n c e
c a s s a c o ,
— O cassaco de engenho
vê amarelamente
todo o rosa-Brasil
que ele liahila e não sente. (p. 121 )
e o d e m a r c a n e g a t i v a , p i n t a d o e m c o r e s a l i a d a s a o i m p é r i o d o
a m a r e l o :
O q u i n t o b l o c o a p r e s e n t a u m d a d o a u s e n t e d o s d e m a i s : u m
a c o m p a n h a m e n t o progressivo d e s e u o b j e t o . A o d e s c r e v e r a d o e n
ç a ( e s t r o f e 5 ) , a a g o n i a ( 1 0 ) , a m o r t e e o e n t e r r o ( 1 5 ) e a d e c o m p o
s i ç ã o ( 2 0 ) d o c a s s a c o , o b l o c o s e a r m a n u m a s i n t a x e d e consecuti-
vidade , d i v e r s a m e n t e d o o l h a r p r i s m á t i c o d o s b l o c o s a n t e r i o r e s ,
o n d e u m s e g u n d o o u t e r c e i r o â n g u l o n ã o s e p a u t a v a p o r u m a r e l a
ç ã o d e c a u s a / e l e i t o f r e n t e a o â n g u l o p r i m e i r o .
I r o n i c a m e n t e , a m á q u i n a d o c o r p o - t ã o v a e i i a n t e e p r e c á
r i a n a v i d a c a s s a c a — s ó i n t e n s i f i c a a p r o d u ç ã o q u a n d o a s e r v i ç o
d a m o r t e :
182
5
— P o r f o r a , s e s e t o c a
n o s e u c o r p o d e g e n t e :
— S e p e n s a q u e a c a l d e i r a
d e l e a f i n a l s e a c e n d e , (p . 1 2 1 )
10
— O c a s s a c o d e e n g e n h o
q u a n d o v a i m o r r e n d o :
— E n t ã o s e u a m a r e l o
s e i l u m i n a p o r d e n t r o , ( p . 1 2 2 )
A s s i m , o r i t m o f a b r i l / f e b r i l s e p õ e a s e r v i ç o d o s e u p r ó p r i o
a n i q u i l a m e n t o . E , c o m o ú l t i m a s u b t r a ç ã o d o t e x t o , a t é o n a d a -
m o r t e é e s v a z i a d o ; à v i d a l o g r a d a d o c a s s a c o s e s e g u e o l o g r o d o
v a z i o q u e s u a m o r t e l e g a :
1 5
— O e n t e r r o d o c a s s a c o
é o e n t e r r o d e u m c o c o :
— U n s p o u c o s e n v o l t ó r i o s
e m v o l t a d o c e n t r o o c o . (p . 1 2 3 )
20
— E o v e n t o c a n a v i a l
d á t a m b é m s u a d e m ã o :
— V a r r e - l h e o s g a s e s d a a l m a ,
l e v a n d o - a ( l a v a n d o ) , s ã o . ( p . 1 2 3 )
O s v e r m e s e o v e n t o , s u p r i m i n d o a l e m b r a n ç a d o c a s s a c o ,
s ã o o s ú l t i m o s d e s t r u i d o r e s d o “ c e n t r o o c o ” . Q u a n d o n a d a r e s t a
d e s e u c o r p o e a l m a , i n t e r r o m p e - s e a f a l a d a “ F e s t a n a C a s a -
G r a n d e ” . A h i s t ó r i a d o c a s s a c o f o i , l i t e r a l m e n t e , a d o c a s s a c o s e m
h i s t ó r i a , o u a d o h o m e m c o n d e n a d o a s o f r e r a n o n i m a m e n t e u m a
H i s t ó r i a s e m e s c a l a p r o s p e c t i v a , q u e r e d u z à s u b v i d a a p r á t i c a d e
v i d a p o s s í v e l a o h o m e m c a s s a c o .
183
XII — Sob o signo do quatro
E n t r e 1 9 5 9 e 1 9 6 1 , J o ã o C a b r a l c o m p ô s o s d e z e s s e i s p o e
m a s d e Serial, e l e v a n d o a g r a u m á x i m o a o b s t i n a ç ã o d e o r d e m n a
s u a p o e s i a . A a f i r m a ç ã o p a r e c e r á , t a l v e z , e x c e s s i v a s e n o s l e m
b r a r m o s d o r i t u a l d e r i g o r e c o n t e n ç ã o d e s e n v o l v i d o e m Uma. fa ca
só lâmina ( 1 9 5 5 ) , m a s , a í, t r a t a v a - s e d e u m e x e r c í c i o d e d e p u r a
ç ã o e m n í v e l , s o b r e t u d o , d e v e rso ; a g o r a , s e m d e s c u r a r d e s s e
a s p e c t o , e m p e n h a - s e o p o e t a e m e s t a b e l e c e r p a r a a obra inteira
p r i n c í p i o s r e g u l a r e s e r e g u l a d o r e s d e c o m p o s i ç ã o , a s s e n t a d o s n o
n ú m e r o quatro , v e r d a d e i r o f u l c r o n o r t e a d o r d o s p o e m a s - s é r i e s d e
Serial. T e n t e m o s , p o i s , l e v a n t a r o s a c e s s o s a o t e x t o - l i v r o q u e o
n u m e r a l p r o p i c i a , s e m q u e s e v e j a n a o r d e m d e l e v a n t a m e n t o
q u a l q u e r h i e r a r q u i a — j á n e s s e p a s s o c o l h e m o s a p r i m e i r a l i ç ã o
d o q u a t r o : é u m n u m e r o s e m c e n t r o , n o s e n t i d o , p o r e x e m p l o , e m
q u e o t r ê s s e r i a t o p o l o g i c a m e n t e o c e n t r o d o c i n c o : 1 - 1 - (T) 1. - 1 -
A n t e s , u m a d e n d o : a c r í t i c a d o p o e t a , e m e s c a l a p r a t i c a m e n t e u n â
n i m e , d e s t a c o u a i m p o r t â n c i a d a q u a d r a ( e , p o r e x t e n s ã o , d o q u a
t r o ) n a p r o d u ç ã o c a b r a l i n a , m a s n e g l i g e n c i o u , t a l v e z e m d e m a s i a ,
a “ c o s t u r a m i ú d a ” d o t e x t o ( e s q u e m a r í m i c o , e s t r o f a ç ã o e t c . ) . D e
n o s s a p a r t e , j u l g a m o s d i s p e n s á v e i s o s e s t u d o s c o n s a g r a d o s u n i c a
m e n t e à c o n t a g e m d e s í l a b a s , o u à v e r i f i c a ç ã o d e q u e a s r i m a s d e
t a l p o e t a t e n d e m o u n ã o a s e r e s d r ú x u l a s . M a s , n a a n á l i s e d e Qua-
derna, j á d e m o n s t r a m o s c o m o d e t e r m i n a d o s m ó d u l o s r í m i c o -
m é t r i c o - e s t r ó f i c o s e r a m prenunciadores d e c e r t o p r e e n c h i m e n t o
s e m â n t i c o ( n o c a s o , a t e m a t i z a ç ã o d o f e m i n i n o ) . E n e s s a r e l a ç ã o
c o m o c a m p o s i g n i f i c a t i v o q u e o “ e s q u e m a ” n o s i n t e r e s s a , q u a n
d o , e n t ã o , d i s p e n s a a s a s p a s c o m q u e o n o t a m o s n e s t a f r a s e . E o
q u e o c o r r e e m Serial : n e s s e l i v r o , o s d a d o s d a c o m p o s i ç ã o a t i n
185
g e m t a l h i p e r t r o f i a q u e n o s p a r e c e m i n c o m p l e t a s a s l e i t u r a s q u e
n ã o o s l e v a r e m e m c o n t a , q u e n ã o a t e n t a r e m p a r a o a r c a b o u ç o
f o r m a l q u e t o r n o u a o b r a p o s s í v e l . A d i a n t e m o s n o s s a h i p ó t e s e :
Serial d á a c e s s o a u m e s p a ç o d e s e n t i d o s l i m i t a d o p o r u m p e r í m e
t r o f o r m a l i m p l a c a v e l m e n t e c o n f i g u r a d o . E x i s t e u m a p l a n t a - b a i -
x a d e l i v r o , p r e e n c h i d a p e l o s c o r p o s d i v e r s o s q u e s ã o o s p o e m a s
i n d i v i d u a l m e n t e c o n s i d e r a d o s , O e s p a ç o f o r m a l d o d i z e r é , a s s i m ,
a n t e r i o r a q u a l q u e r d i t o . C r i a - s e , p o r t a n t o , u m a c o n e x ã o e n t r e
e s q u e m a s p r e v i a m e n t e d e s e n h a d o s e c o n t e ú d o s q u e g r a d a t i v a -
m e n t e o s o c u p a m . O s p a r â m e t r o s f o r m a i s ( r e p e t i m o s : b a s e a d o s
n o n ú m e r o q u a t r o ) c o m p õ e m a i d é i a d e u m m a c r o t e x t o a l i m e n t a
d o p o r s u a s r í g i d a s r e g r a s d e b a l i z a m e n t o , e s t a b e l e c e n d o l i n h a s
d e c o n t a t o e s e p a r a ç ã o e n t r e o s v á r i o s m i c r o t e x t o s o u p o e m a s .
A f i m d e p e r m i t i r m o s u m a a p r e e n s ã o m a i s s i n t é t i c a d o s c i r
c u i t o s d e c o n s t r u ç ã o d a o b r a , v e r i f i c a m o s e e s q u e m a t i z a m o s n o s
p o e m a s ( n u m e r a d o s n a o r d e m d e s u a a p a r i ç ã o n o l i v r o ) o s s e g u i n
t e s d a d o s : d i s p o s i ç ã o d a s r i m a s ; m e t r i f i c a ç ã o ; e s t r o f a ç ã o ( c a d a
p o e m a p o s s u i s e m p r e q u a t r o p a r t e s , c o m n ú m e r o c o n s t a n t e d e
e s t r o f e s , m a s t a l n ú m e r o s e a l t e r a d e t e x t o a t e x t o ) ; u t i l i z a ç ã o ( o u
n ã o ) d o g r i f o e m p a l a v r a s - c h a v e d o p o e m a ; e s p e c i f i c a ç ã o d o s i n a l
t i p o g r á f i c o q u e m a r c a a d i v i s ã o d a s p a r t e s o u s e g m e n t o s e m c a d a
t e x t o . U m a d e r r a d e i r a o b s e r v a ç ã o : a s e x c e ç õ e s ( s o b r e t u d o n o q u e
s e r e f e r e à m é t r i c a ) n ã o f o r a m c o m p u t a d a s n o e s q u e m a g e r a l . D e
r e s t o , a p a r c e l a d e d e s v i o s é t ã o í n f i m a q u e a n o t á - l o s s e r i a , a l é m
d e p r i v i l e g i a r o a c i d e n t a l , d e s c o n h e c e r q u e Serial s e q u e r o r g a n i
z a r e x a t a m e n t e p e l a s u p e r a ç ã o d o f o r t u i t o .
N a p á g i n a s e g u i n t e , o s n ú m e r o s à e s q u e r d a c o r r e s p o n d e m a :
1 ) “ A c a n a d o s o u t r o s ” ; 2 ) “ O a u t o m o b i l i s t a i n f u n d i o s o ” ; 3 ) “ E s
c r i t o s c o m o c o r p o ” ; 4 ) “ O s i m c o n t r a o s i m ” 5 ) “ P e r n a m b u c a n o
“ P e s c a d o r e s p e r n a m b u c a n o s ” ; 1 1 ) “ C h u v a s ” ; 1 2 ) “ V e l ó r i o d e u m
c o m e n d a d o r ” ; 1 3 ) “ U m a s e v i l h a n a p e l a E s p a n h a ” ; 1 4 ) “ F o r m a s
d o n u ” : 1 5 ) “ O r e l ó g i o ” ; 1 6 ) “ O a l p e n d r e n o c a n a v i a l ” .
186
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187
Podemos, agora, analisar cada um desses parâmetros, e seus
eventuais imbricamentos.
Rimas : dois esquemas; aabb em quatro poemas (nos 1 ,2 ,7 ,
11) e -a-a (rimas em versos pares) nos restantes. No entanto, esse
segundo bloco é divisível em duas séries, se observarmos que
quatro de seus integrantes (3, 5, 6 e 12) se unificam pela utiliza
ção do parágrafo entre os segmentos e pela ausência de grifo no
corpo dos textos. Ademais (cf. ESTROFES), compõem uma
seqüência crescente regular e completa (2-4-Ó-8) no que tange ao
número de estrofes que possuem em seus segmentos.
Métrica', há quatro textos em hexassílabos (1, 8, 11, 14),
quatro em heptassílabos (2, 5, 12, 15), quatro em octossílabos (3,
6, 9, 16) e quatro com quatro combinações diversas entre hexas
sílabos e octossílabos (4, 7, 10, 13). Os quatro grupos contêm um
número exatamente igual de estrofes: oitenta. E, se somarmos a
numeração dos poem as de cada série, chegaremos a um idêntico
total de 34 (T + 8 + 11 + 14 etc.). ratificando a não-arbitrariedade
da seqüência de textos em Serial.
Estrofes: há quatro poemas com segmentos de duas estrofes
(1,5.9, 13), quatro de quatro (2, 6, 10, 14), quatro de seis (3, 7, 11,
15), quatro de oito (4, 8, 12, 16). A numeração ascendente — cada
poema, até atingir o limite de oito estâncias por segmento, terá
necessariamente mais duas estrofes do que seu predecessor — é
outro fator que elimina qualquer aleatoriedade na ordem dos textos.
G rifo : há oito textos com vocábulos grifados. O grifo incide
em quatro categorias (substantivos comuns, substantivos pró
prios, adjetivos e verbos) e em quatro poemas atinge os substan
tivos próprios (2, 4, 11, 13).
Separação : para a separação de seus quatro segmentos, qua
tro poemas se valem de números (1, 14, 15, 16); quatro de aste
riscos (2, 8, 9, 11); quatro de parágrafos (3, 5, 6, 12); quatro de
travessões (4, 7, 10, 13).
De todos os critérios que ajudaram a montar a “quadratura”
da obra, é o último o mais diretamente relacionado ao problema
das significações no texto, e é, por isso mesmo, o critério a ser uti
lizado para sistematizar em quatro grupos de afinidades os dezes
seis poemas da obra.
Os núm eros indicam que o texto se constrói com relativa
autonomia entre seus segmentos: o olhar do poeta captará quatro
seres, objetos ou situações distintas. Assim, “A cana dos outros”
188
focaliza quatro etapas do cultivo da cana, a cargo de trabalhado
res diversos. “Formas do nu” tratará de quatro espécies animais
em suas relações com a nudez e o velamento. “O relógio” disse
minará a noção de motor entre quatro elementos: o próprio reló
gio, o pássaro, o martelo e o coração humano. Finalmente, “O
alpendre no canavial” se desenvolve em torno da temática do
tempo; cada lim dos segmentos incidirá em percepções sensoriais
específicas (paladar, olfato, audição, tato e visão).
Os asteriscos implicam a ênfase num mesmo objeto, ser ou
situação, independentemente de seu deslocamento para contextos
diversos (registrados nas quatro partes do poema). ‘‘O automobi-
lista infundioso” apresenta o tema da travessia em espaços físicos
diferentes. “Generaciones y semblanzas” confronta a verdade
íntima e a aparência social do ser humano em espaços psicosso-
ciais distintos. “Graciliano Ramos:” aponta para um único ideal
de contundência em quatro situações de fala claramente diferen
çadas. “Chuvas” descreve um único fenômeno meteorológico em
quatro áreas geográficas.
Os parágrafos remetem a textos concentrados num só ser ou
objeto, mas sem a mobilidade do grupo anterior: a mulher (“Es
critos com o corpo”), a cana (“Pernambucano em Málaga”), “O
ovo de galinha” e o “Velório de um comendador”.
Os travessões delimitam os poemas de maior autonomia no
que se refere ao agenciamento das partes (com exceção de “Uma
sevilhana pela Espanha”). A rigor, trata-se de segmentos que,
embora unidos aos demais por um parentesco semântico, se per
mitem leitura autônoma. Seu sentido não se complementa em
segmentos vizinhos, pois não são sua causa ou decorrência: rela
ção antes de afinidade do que de subordinação. E o caso de “O
sim contra o sim” (cujas partes focalizarão alternadamente pinto
res e poetas), de “Claros varones”, centrado na vida de quatro
homens nordestinos, e de “Pescadores pernambucanos”, revela
dor de quatro estratégias de pesca e de composição poética.
Diante de tantas alternativas, qual delas escolher para o aces
so à obra? A resposta é: nenhuma. Cremos que o melhor tributo
crítico que se pode prestar à poesia de Serial é aceitar o incitamen
to à “produção de séries” que o texto propõe, e sustentar que, além
das taxinomias visíveis, o discurso analítico pode estatuir mais um
conjunto na instância deixada a descoberto pelo poeta: a temática.
189
Assim, o crítico imita o movimento que deu origem ao livro, res
ponde a seu desafio exatamente no ato de desrespeito às balizas tão
meticulosamente armadas por João Cabral — vai buscá-las onde
ele presumivelmente não se importara em deixá-las traçadas. Uma
ressalva: as outras séries se baseiam em dados objetivos e mensu
ráveis. recolhidos ao longo dos dezesseis poemas; a série temática
só passa a existir em função da coerência argumentativa de quem
optou por essa nova hipótese; por não oferecer critérios já prontos,
tal série se constrói 110 interior do discurso que a demonstra: ela
não está num “antes” que a crítica simplesmente recenscaria.
Trabalharemos, pois, com dois conjuntos de quatro textos;
um deles (poemas 3, 4, 9, 15) se refere à estratégia melalingüística
de João Cabral, explícita (4 e 9) ou implícita (3 e 15), neste caso
manifestando-se na descrição da linguagem com que um objeto (o
corpo feminino e a máquina do relógio) se mostra. A outra série
(1,2. 11, 12) abarca um referente privilegiado em João Cabral: o
Nordeste — embora o objeto de um dos poemas (o comendador)
não constitua realidade privativa daquele espaço. Como no grupo
anterior, uma bipartição é possível: há um subgrupo (2, II) que
vincula Nordeste e Europa (quase sempre Espanha).
Os poemas de fatura metalingiiística (3, 4, 9. 15), se con
frontados às artes poéticas de outros livros cabralinos, não che
gam a inová-las. "O sim contra o sim" enumera oito artistas, agru
pados dois a dois por segmento, alternadamente poetas e pintores.
Esses exercícios de admiração seguem a trilha preferida pelo poe
ta em tais circunstâncias: a captação do fazer, do modo de produ
ção, e não a do produto artístico já concluído. Senão, atentemos
para as primeiras quatro estrofes do texto:
190
e com eles compõe,
de volta, o verso cicatriz.
191
Francis Ponge, outro cirurgião,
adota uma outra técnica:
gira-as nos dedos, gira
ao redor das coisas que opera.
192
e que de saber tanto
já não podia inventar nada.
193
infensos a transformações históricas. A versão mais ostensiva
desse fenômeno é localizável na prática beletrista, na veiculação
das “verdades” das frases-feitas e clichês, no torneio ornamental
do discurso. O segundo bloco do segmento 2 (dedicado a
Mondrian) alerta para a necessidade de uma postura crítica diante
de qualquer “saber prévio”; saber é desconfiar do que se sabe:
194
identificados com a produção específica de cada livro. A obses
são do rigor ultrapassa qualquer forma que a queira expressar —
por mais obsessivamente rigorosa que seja. Desse modo, o rigor
vai perdurando para deixar atrás de si o rastro insatisfeito de sua
própria trajetória.
O segmento 3 apresenta Cesário Verde e Augusto dos An
jos. João Cabral vai conceituar pictoricamente o literário, em
compasso simétrico à escrita que depreende na pintura ou nos ob
jetos que se ofertam a uma captação visual (cf. “Escritos com o
corpo”, p. 54). Cesário Verde e Augusto dos Anjos se marcam
pela antítese dos tons que os caracterizam: o claro e o escuro, res
pectivamente. O sim contra o sim, a opção entre ambos se resol
ve — como nos casos anteriores — pela opção por am bos:
195
É ainda uma discussão de perspectivas que preenche o seg
mento final do poema. O jogo claro x escuro dos versos anterio
res é substituído pela percepção do real pautada pelo binômio lon
ge x perto:
196
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:
197
O segmento tematiza o assunto a ser veiculado pelo material
escolhido na primeira parte do texto. E o assunto é solidário à for
ma que o expressa, na medida em que registra, num sentido lite
ral, o que tinha sido a metáfora mais apta para significar o mate
rial: o sol e a secura. Outra analogia pode ainda ser levantada
entre os dois segmentos: — é em suas respectivas estrofes 2 que
se revelam os signos do excesso:
198
destinatário (homem nordestino) como imagem especular do
próprio emissor:
199
Não se vê nenhum termo, nela,
em que a atenção mais se retarde,
e que, por mais significante,
possua, exclusivo, sua chave.
200
de noções comuns de “completude”, “inteireza”, “indecomponi-
bilidade” . Efetua-se, ao mesmo tempo, o elogio de um corpo e de
uma escrita, da escrita do corpo (como quer o título) e do corpo da
escrita (como também quer o poema).
Coerente com o que se preconizou (“Não se vê nenhum ter
mo, nela,/ em que a atenção mais se retarde”), o segmento 2 irá
trabalhar a onipresença da pele, mediante o jogo contrastivo lon
ge x perto:
201
é necessário estar atento para a linha de divergência semântica
que separa a mera explicação de um objeto (quadro) por outro
(mulher) em favor de suas implicações — quando, então, se abre
campo para a exploração da diferença'.
202
O terceiro segmento do poema situa a camada metafórica na
perspectiva elaborada no segmento anterior: a de um “olho per
to”. Ou seja: pela primeira vez, as imagens se vão tecer no interior
(ou na superfície) do espaço-base (o corpo), e não em sua “tradu
ção” nas gramáticas do verbo e da pintura:
203
se faz acompanhar da supremacia do tátil (pele, epiderme) sobre o
visual, diversa da confluência sensorial do segmento anterior.
O derradeiro segmento opera simultaneamente com a pre
sença e a ausência do corpo: “Está, hoje que não está,/ numa
memória mais de fora” (p. 57). Ou seja: pela primeira vez se con
signa não a forma ostensiva, mas os vestígios por ela impressos
na memória. Ausência física contrabalançada pela presença inde
lével no olhar que reteve o corpo. A transposição do empirica-
mente captado para o imaginariamente reconstruído se faz através
de uma anulação de oposições entre uma presença corpórea e uma
presença-memória. Senão, vejamos: no verso inicial, estar e não
estar se eqüivalem; o tempo verbal empregado em todo o poema
é o presente, não havendo, pois, mudança de registro que distinga
o rememorado do atual. A “memória mais de fora”, por seu turno,
anula o contraste dentro x fora; ao situar externamente uma ins
tância interna (a memória), o poeta a torna “física” como o corpo
que ela resgata:
204
Pois nessa memória é que ela,
inesperada, se incorpora:
na presença, coisa, volume,
imediata ao corpo, sólida,
205
Uma faca só lâmina (1955) foi a primeira obra cabralina a
tematizar explicitamente o relógio, e guarda afinidades com o
poema de Serial no que se refere às constelações metafóricas de
ambos. No primeiro desses textos, deparamo-nos com as seguin
tes imagens: “relógio vivo” (p. 187); “pulsando em sua gaiola” (p.
188); “com o seu coração” (p. 190); “a sua abelha cessa” (p. 190).
Elas reaparecem, com variações, em “O relógio”: a atribuição de
vida ao mecanismo se encontra na primeira estrofe (“se ouve pal
pitar um bicho”, p. 91); a comparação das caixas às gaiolas, na
segunda (“mais perto estão das gaiolas/ ao menos pelo tamanho”,
p. 91); a imagem do “coração” ocupa as duas estrofes finais (p.
99); o cessar do movimento, embora sob outra figuração, compa
rece na primeira estrofe do último segmento (“Quando por algum
motivo/ a roda de água se rompe”, p. 93).
Essas aproximações, contudo, não nos devem levar a supor
um simples reaproveitamento de material: o contexto em que as
metáforas se inscrevem é bastante diverso. A começar por um
nível de hierarquia: enquanto em Uma faca só lâmina o relógio
era gerado por imagens cujo núcleo era outro objeto, a faca, no
poema de Serial é ele que vai gerá-las. De modo simetricamente
oposto, no texto de 1955 o relógio é gerador do próprio movimen
to, enquanto no de 1961 tal força é extrínseca a seu mecanismo.
Essas características são fundamentais, pois remetem a duas con
cepções distintas de temporalidade: em Uma faca só lâmina, a
máquina assume ativamente o engendramento (e a manutenção)
de sua existência; em “O relógio”, surge apenas como registro de
um “fluido” (o tempo) que com ela não se confunde. Isso impli
cará diferença frente ao “relógio humano” (o coração), a que se
transferirá a capacidade de auto-alimentação atribuída à máquina
no texto anterior.
Importa assinalar, em ambos os poemas, a ênfase concedida
à regularidade, ao ritmo contínuo e homogêneo das engrenagens
que aferem o tempo. Esse é, a nosso ver, o ângulo que mais apro
xima os dois textos. A temporalidade não é figurada por signos de
corrosão ou mudança; o poeta não busca o efeito da passagem do
tempo sobre a superfície ou as entranhas da matéria, mas a elei
ção de objetos que, por sua estabilidade produtiva, parecem desa
fiar a inexorabilidade do fenômeno-tempo que consignam.
206
As quatro partes do poema de Serial vão insistir nessa pro
posta, atualizada em versões diversas, mas complementares. Na
primeira, a comparação relógio = pássaro permite que emerja a
analogia entre o som da máquina e o canto da ave:
e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade
207
Falamos em versões diversas e complementares do tema
“regularidade rítmica”. Diversas porque, na parte 1, ele se forma
liza em “pássaro” e “canto”; na 2, em “canto” e “martelo” ; na 3,
em “martelo” e “roda de água”; na 4, em “roda de água” e “cora
ção”. Complementares porque o segundo termo de cada parte será
o primeiro da subseqüente.
Infenso ao peremptório, o poeta inicia a parte 2 com a rela-
tivização da “certeza” obtida anteriormente: a de que o “pássaro
cantor” era a melhor imagem do relógio. Essa desconfiança se
desdobrará adiante, quando novos signos (martelo etc.) serão efe
tivamente testados para conotar o termo-base relógio.
desconhecem as variantes
e o estilo numeroso
dos pássaros que sabemos,
estejam presos ou soltos;
208
(“dir-se-ia que não importa/ a nenhum ser escutado”) também já
fora expressa em “A paio seco":
209
Observamos a mesma reelaboração restritiva da imagem
que ocorrera na passagem da parte 1 à 2. Nela, a afirmativa inicial
de correspondência entre o relógio e a ave era atenuada pela con
dicional: “O que eles [relógios] cantam, se pássaros” ; agora, a
mão operária da parte 3 cede lugar, mas sem desaparecer de todo
(“mal deve ser de operário”), à “m áquina independente” . As
estrofes subseqüentes a essa desvalorização (provisória, como se
verá) do humano se concentram no ponto nodal a ser discutido no
texto: a origem da força que faz mover o mecanismo do relógio.
O relógio-pássaro-operário-máquina vai receber uma configura
ção mineral (“roda de água”) que, isenta de vida, recorre a um
fator exógeno (um “fluido”) para poder simulá-la:
210
Ressaltemos que o objeto que dá título ao poema dele está
ausente em toda a parte 4. Do relógio se manteve apenas, por me-
tonímia, a “máquina”, transformada, por metáfora, no motor
humano, o coração. Por isso falamos da provisória desvaloriza
ção do humano, na parte 3. Agora, o texto percorre um circuito de
interiorização e, o que é fundamental, a máquina “de dentro do
hom em ” surge como produtora e ativa, em contraposição às
engrenagens minerais:
211
gens que formarão os segmentos subseqüentes. Foi esse o proce
dimento utilizado em “O relógio”, é esse o procedim ento de
“Velório de um comendador”.
Os quatro “parágrafos” do texto abordarão obsessivamente
a figura morta de um comendador, e insistirão, com ironia, no
enfoque do único elemento que lhe “sobreviveu” : a própria
comenda, a m edalha — então — inútil. O com endador surge
esvaziado de qualquer gesto ou legado que ultrapasse o nível de
crônica social dos “medalhões” ou da compulsão que tais perso
nagens experimentam para a caça de novos lauréis. Confrontada
à morte, a condição-comendador se instala numa perspectiva
rigorosamente oposta à “severina”; esta se marca por um parale
lismo entre morte e vida, situadas, ambas, na esfera semântica da
carência e do desfalque; aquela se marca pela antítese entre um
viver supostamente cheio (ou abarrotado) e um morrer que revela
o vazio.
A primeira parte do poema explora e experimenta a perti
nência do signo “água” para conotar o cadáver do comendador. O
signo receberá dois registros, e do choque de ambos provirá o
efeito humorístico do discurso: um registro centrado na hipérbo-
le, assinalando o “pleno” da vida, e um dirigido à hipossemia,
ridicularizando a pretensão do prim eiro. Esquem aticam ente,
teríamos:
212
pensarão que num canteiro,
não num caixão, está hoje.
O tamanho e as proporções
fazem o engano mais perfeito;
pois é idêntico o abaulado
de leirão e de canteiro.
E só não se enganaria
nem cairia na imagem,
alguém que entendesse muito
de jardins e reparasse: (p. 84. Grifamos)
213
A circulação de significados de uma a outra parte do texto
pode ser melhor aferida no confronto entre os segmentos 1 e 3, de
um lado, e 2 e 4, de outro. O primeiro, conforme se viu, trabalha
va com metáforas líquidas; o terceiro “responde” com o signo
“barco”. O segundo operava com metáforas da terra (flores, jar
dins); no quarto predominam elementos extraídos do solo (milho,
feijão).
Ideal de imobilismo e obsessão da comenda se consorciam
no segmento 3, onde o metal da medalha, através da hipérbole em
“âncora”, torna pertinente uma leitura de “barco” para conotar
“caixão”, ao mesmo tempo que desautoriza a comparação car-
ro/esquife:
214
Na verdade, as flores todas
fecham rápido suas tendas.
A não ser a flor eterna,
por ser metal, da comenda (p. 84)
4. A gente funerária
que cuida da finada
1 Senna, Marta de. João Cabral: tempo e memória. Rio de Janeiro: Antares, 1980, p.
156.
216
nem veste seus despojos:
ata-a em feixe de ossos. (p. 52)
Em pássaros tropicais
pintam portas, portais:
quentes, para que queimem
sobre a cal das paredes, (p. 80)
217
mente contida num limite, patenteando-se a observância desse
limite na especificidade da chuva-Galícia: tal água pertence uni
camente a tal aquário. Movimento de homogeneidade interna,
diverso do efetuado no segmento anterior (quando a chuva-pássa-
ro “migrava” para além das fronteiras sevilhanas):
Carpina é o município
de clima mais ambíguo.
Ele é Agreste em parte
e Mata a outra metade.
No meio de Carpina
atravessa uma linha
mais extraordinária:
é a chuva que a traça. (p. 79)
No Sertão masculino
a chuva sem dissimulo
demonstra o que ela é:
que seu sexo é mulher.
218
Por mais que em linhas retas
caia em cima da terra,
caída, mostra a chuva
que é feminina, em curvas, (p. 81-82)
219
A estrofe acima apresenta um dado pouco usual na poesia
cabralina: uma representação liqüefeita para designar a paisagem
espanhola. Em geral, a Espanha do poeta se materializa em torno
da agressividade e da secura; esses fatores surgem atenuados em
Serial, não só neste passo como também em “Pernambucano em
Málaga”, onde o elemento líquido é de novo acionado para confi
gurar uma postura de fragilidade:
220
XIII — O poema em trânsito
221
a) 6 poemas com 2 estrofes de 8 versos; 6 com 1 estrofe de 6 ver
sos e 1 de 10;
b ) idêntico ao anterior;
A) 6 poemas com 2 estrofes de 12 versos; 6 com 1 estrofe de 8
versos e 1 de 16;
B) idêntico ao anterior.
222
“Nas covas de Baza”— “Nas covas de Guadix”.
Intergrupal: “Coisas de cabeceira, Recife (“a”) — “Coisas de
cabeceira, Sevilha” (“b”).
A ) “The country o f the houyhnhnm s” — “The country o f the
houyhnhnms (outra composição)”.
B ) “A urbanização do regaço” — “O regaço urbanizado” .
“Comendadores jantando” — “Duas fases do jantar dos
comendadores”.
Intergrupal: “Bifurcados de habitar o tempo” (“A”) — “Habitar o
tempo” (“B”).
Observemos que a permuta não se restringe ao campo de
dois textos diversos: pode efetuar-se entre as estrofes de um úni
co poema. E um exemplo disso, na abertura do livro, “O mar e o
canavial”:
223
quatro versos iniciais de cada segmento. A lição do canavial é sua
horizontalidade; a do mar, a metódica progressão com que invade
e domina o espaço. Em conseqüência, o circuito aberto entre
ambos se interrompe quando os signos da contenção (plena hori
zontalidade, avanço gradativo) são substituídos por um universo
de expansão irrefreada; “a veemência passional da preamar”; “o
desmedido do derramar-se da cana”. A troca se efetua apenas no
nível da economia, da produção controlada.
Ao transpor para o vegetal e o mineral a lição mútua de con
cisão, o poeta reitera o olhar econômico que ele próprio já dirigiu,
em outros textos, a essas duas categorias. Portanto, é ilusório
acreditar na existência de uma poesia literalmente objetiva: quan
to mais não fosse, a estratégia da objetividade é opção subjetiva,
e o sujeito não se marca apenas através de uma presença explíci
ta. Pretender que o “culto do eu” possa ser substituído pelo “cul
to do objeto” é transitar num pensamento ingênuo, preso a uma
dicotomia epistemologicamente equivocada. O “eu”, ao falar de
si, já fala de um “outro” — topicamente localizado no próprio
emissor. O “eu”, ao falar do “outro”, fala também de si — en
quanto opção particular pela escolha desse “outro”.
As linguagens, comunicantes ou excludentes, do mar e do
canavial fornecem o modelo de apreensão da paisagem pernam
bucana em todos os poemas da primeira parte do livro, onde a
averiguação do controle (ou do descontrole) da produção se torna
o procedimento-chave. Leiamos “O sertanejo falando” :
2
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
224
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho, (p. 7-8)
225
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética; sua camadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta;
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.
*
226
indolente, de água espaço e sem tempo
(fora o do cio e da prenhez da maré), (p. 15)
227
Mas ela já veio com o lhano que virá
ao homem daqui, hoje ainda crispado:
em seu estar-se tão fluente, de Minas,
onde os alpendres diluentes, de lago. (p. 16)
228
campinadas”) a uma espacialidade marcada pela abertura percep-
tiva. O derradeiro verso fala de um lugar — o alpendre — simul
taneam ente aberto e protegido, da mesma form a que, em
“Sevilha”, a metáfora da roupa-proteção não era impeditiva do
livre movimento, da elasticidade:
§ Ao corpo do sevilhano
toda se ajusta
e ao raio de ação do corpo,
ou sua aventura.
2
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
229
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto. (p. 20-21)
Eu me refugio
nesta praia pura
onde nada existe
em que a noite pouse. (p. 328)
230
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo;
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos. (p. 19-20)
231
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão. (p. 20)
2
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
232
obstrui a leitura fluviante; flutuai,
açula a atenção, isca-a com o risco. (p. 22)
233
dizer que ele não dizia suficientemente o “menos” que há entre o
fogo e a bailadora. De outro modo: a divergência que “Estudos pa
ra uma bailadora andaluza” propusera, depois de uma aproxima
ção inicial, entre “bailadora” e “fogo”, não se restringe ao “arran
car-se de si mesma” (p. 128) de que só a primeira é capaz; alcan
ça o apagar ou o ampliar instantâneo de que falam os dois versos
finais do “p. s.” 1. Aumentando-se o vácuo entre comparado e
comparante, enfatiza-se a dimensão de insuficiência deste último,
“imagem pouca e pequena”, conforme o segundo “p.s.” (p. 19).
A correspondência discursiva entre poemas do livro atinge
grau máximo em dois textos que abordam a relação (física) entre o
homem e a terra, configurada como o feminino-matemal (fechado,
protetor). São eles: “Nas covas de Baza” e “Nas covas de Guadix”.
Falamos em “grau máximo” porque o segundo poema (na ordem,
de surgimento no livro) utiliza todos os versos do primeiro, dispos
tos em novo arranjo. Para sintetizar numa só transcrição as duas
montagens, colocamos abaixo os dezesseis versos, numerados a
cada par; a numeração da esquerda corresponde à seqüência de
“Nàs covas de Baza”; a da direita, à de “Nas covas de Guadix”:
234
Atente-se para a simetria do reaproveitamento: cada estrofe
de “Nas covas de Guadix” comporta dois “dísticos” da estrofe 1 e
dois da estrofe 2 de “Nas covas de Baza”. A soma total, por estân
cia, da ordem dos “dísticos” de “Nas covas de Baza” é idêntica: 1
+ 4 + 7 + 6 = 1 8 ; 3 + 2 + 5 + 8 = 18. É certo que, para uma tal radi
calização do processo (permuta global), muito contribui a fatura
sintática do discurso: predomínio da parataxe, e construção de
frases com sentido completo de dois em dois versos, o que os tor
na bem mais maleáveis para o jogo permutacional.
A inscrição do masculino no universo do feminino pauta-se,
conforme dissemos, por duas trilhas distintas. Por uma delas, o
feminino corporifica trânsito, fluência, espaço de não-vedamento
(cf. “Jogos frutais” e “Paisagem pelo telefone”). A segunda trilha,
que anula ou sufoca a sexualização quase sempre explícita da pri
meira, vê a conjunção sexual em nível de agressão a ser evitada,
tanto pela m ulher (“M ulher vestida de gaiola”), quanto pelo
homem que na parceira busca apenas a imagem de repouso da
vida uterina: “dormir de feto, não o dormir de falo” ; “até refechar
o homem: na capela útero” (“Fábula de um arquiteto”, p. 21).
Ora, muitas versões do feminino podem circular ambiguamente
entre as duas trilhas. A casa, por exemplo (cf. “A mulher e a
casa”), é espaço de recolhimento, mas também é local de circula
ção. Essa ambigüidade, nos poemas de Baza e de Guadix, é repre
sentada pela terra: superfície aberta à luz, mas igualmente escuri
dão e profundeza. Há apenas cinco substantivos do gênero femi
nino nos textos: terra, carne, cova, entranha e porta. Sendo a por
ta, através de um aposto, figurada como “sexo inevitável”, a
expressão da duplicidade do feminino fica assim esquematizada:
235
Vários poemas do terceiro conjunto (“A”), de temática per
nambucana, atualizam, sob formulações diversas, a oposição forte
x fraco. Assim, “Duas bananas & a bananeira” registra a agressão
do gesto de “dar banana” e a docilidade da banana-fruta (p. 24).
Com uma única exceção (que veremos adiante), a agressão é, pre-
visivelmente, atributo do termo “forte”. “Agulhas” tem como “fra
co” o macio e como “forte” a categoria do duro (estrofe 1):
236
“Tecendo a manhã”, não é preciso falar do social para que ele seja
dito:
237
na estrofe 2, mediante um trabalho contínuo e paciente (“em fra
ses curtas, então frase e frase”), que supera, pela consistência
interna e homogênea do “discurso único”, as soluções “de fora”
(“uma cheia/ lhe impondo interina outra linguagem”). E, ainda
esta vez, a força é marcada pela agressão: “em que se tem voz a
seca ele combate”.
Em “Os reinos do amarelo”, a agressão, excepcionalmente,
partirá do espaço da fragilidade. O poema antagoniza as catego
rias do brilhante e do baço; àquela corresponde, na estrofe 1, o
amarelo da fruta nordestina, “que o sol eleva de vegetal a mine
ral” (p. 34). Nessa estrofe, o poeta alude ainda a um “amarelo
aquém do vegeral” (p. 34), explicitando a seguir:
— O cassaco de engenho
faz amarelamente
toda coisa que toca
tocando-a, simplesmente.
238
e deixa em tudo nódoa:
— A que há em sua camisa,
em sua vida, no que toca. (p. 119)
239
Numa “ponta do símile” se inscreve o mineral, ligado à ação
desinfetante, sanativa (enfermaria, timol, formol). O que deve ser
limpo e curado localiza-se na outra “ponta”, e reitera a entropia a
que a vida nordestina (inclusive a vegetal) tende:
240
privilegiar sua fala mesma; todavia, a mudança não esquece o
ponto de partida, uma vez que o falar sobre, em sua forma, incor
pora aquilo a que se refere:
241
missa e produtiva) possuiria um lugar social similar ao do serta
nejo: admite-se o Yahoo, mas desde que seu suor converta apenas
em benefício dos Houyhnhnms. Quanto ao narrador, uma seme
lhança e uma divergência com João Cabral:
242
ouvir os planos-afinal para os Yahoos
com um sorriso na boca, engatilhado:
na boca que não pode balas, mas pode
um sorriso de zombaria, tiro claro. (p. 27)
243
Os bairros mais antigos de Sevilha
criaram uma urbanização do regaço,
para quem, em meio a qualquer praça,
sente o olho de alguém a espioná-lo,
para quem sente nu no meio da sala
e se veste com os cantos retirados.
244
Insolúvel: por muito o dissolvente;
igual, nas gotas de um pranto ao lado,
e nas águas do banho que o submerge,
em beatitude, e de que emerge ingasto.
245
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero. (p. 47)
246
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto, (p. 47)
247
XIV — O poeta no espelho
249
rio (“é depósito do que aí está”), desvinculado, portanto, das rigo
rosas matrizes semânticas ou formais que geraram as duas obras
anteriores — daí a alusão à ausência do “vertebrado”. Mas, se ao
livro falta a coluna, não podemos apressadamente concluir que lhe
faltem as vértebras. O trabalho com cada texto (numa totalidade
de oitenta), isoladamente considerado, não abdica do crivo orde-
nador que João Cabral imprime a sua obra. Assim, a quadra está
presente em 42 poemas, as rimas são quase exclusivamente toan-
tes e em versos pares, e os poemas que referenciam em visada
erótica o feminino se constituem monorrimicamente. Esses siste
mas de organização, todavia, não se refletem na concepção do
livro como totalidade: são estratégias formais incrustadas na
“microscopia” de cada texto, fornecendo a imagem de um museu
a que podemos aceder por inúmeras portas, e onde as salas não se
concatenam por relações causais ou cronológicas. Mas, conforme
salientamos, a reiteração de objetos afins (mesmo expostos em
salas distantes) nos permite, parcial e retrospectivamente, reperto-
riar o “tudo” que o museu prometera — e admitir, como se com
provará em breve, que a ampliação do espectro semântico cabrali-
no foi menor do que o título da obra parecia sugerir.
Um aspecto interessante a relevar nesse museu é o largo
espaço que ele concede a “retratos” (ou quadros que apresentem
um rosto humano), em sua grande maioria de artistas. Museu de
tudo, no conjunto das produções de João Cabral, é a obra que
mais referencia e reverencia a própria arte. Basta lembrar que, dos
80 poemas metalingüísticos acolhidos na antologia Poesia crítica
(1982), nada menos do que 40 pertencem ao livro de que ora nos
ocupamos. Por isso, se quisermos distribuir tematicamente as
peças desse museu, não há dúvida de que o agrupamento mais
numeroso será o que engloba o binômio “criador/criação”.
Ao menos quatro outros grupos podem ser localizados: a ) o
de seres humanos não-artistas; b ) o de objetos (à exceção dos
artísticos) e paisagens da ordem cultural; c) o de elementos e pai
sagens pertencentes à ordem natural; d) o de situações que envol
vam a problematização do tempo e da morte.
Delineadas as principais conjugações de sentido da obra,
convém salientar que alguns textos podem filiar-se a mais de um
grupo ou série. Assim “Viagem ao Sahel”: suas estrofes 1, 2 e 3
pertencem à “ordem natural” ; a derradeira tematiza o tempo.
250
O grupo “criador/criação” é um bom exemplo de como João
Cabral, aparentando incorporar novas faixas à constituição de seu
universo poético, permanece fiel a ângulos já obsessivamente tra
balhados. É verdade que, no livro, têm guarida os nomes de mui
tos criadores até então ausentes da referência cabralina. Duas
questões, porém, podem ser levantadas: a que domínios perten
cem tais artistas? O que neles se privilegia? Focalizam-se escrito
res e artistas plásticos, o que vem sendo a tônica de João Cabral
desde O engenheiro', todos os artistas homenageados possuem ao
menos um traço em comum com a concepção (e prática) cabrali
na da poesia. Em “Para Selden Rodman, antologista”, o poeta
revela: “Há um contar de si no escolher” (p. 79): o discurso do
outro como disfarce de um discurso no espelho. O olhar antolo
gista do poeta se traduz no exercício de uma identidade, no espa
ço de uma ressonância, na “luva sósia” de que fala o mesmo poe
ma. No jogo entre o rosto do artista e sua projeção na linguagem
alheia, o risco que tangencia o criador é a suposição de que sua
face já possua uma “versão final”; e, aqui, a poética de João Ca
bral parece assumir ares de “balanço definitivo”, na minuciosa
compilação, via espelho, de seus elementos constituintes. Um le
vantamento não-exaustivo indica a plasticidade (“Acompanhan
do Max Bense”, p. 4, “A escultura de Mary Vieira”, p. 12), a lumi
nosidade (“À Brasília de Oscar Niemeyer”, p. 64, “A escola de
Ulm”, p. 71), a concretude (“Díptico”, parte 1, p. 15, “Fábula de
Rafael Alberti”, p. 89), a concisão (“Joaquim do Rego Monteiro,
pintor”, p. 47), a rudeza (“Máquinas, de Vera Mindlin”, p. 62,
“Exposição Franz Weissmann”, p. 75) e a lucidez (“A insônia de
Monsieur Teste”, p. 5).
Um texto condensa todos esses atributos: referimo-nos a
“No centenário de Mondrian”. Suas duas partes vêm numeradas
como “ 1 ou 2” e “2 ou 1”, indicando a inexistência de uma ordem
prévia de acesso ao poema. Cada parte é composta por doze qua
dras de versos preponderantem ente hexassílabos, com rimas
toantes em versos pares. Os segmentos partem de situações exis
tenciais antagônicas; em “ 1 ou 2”, a tensão:
252
fim de percurso. Trabalhar, então, já a partir do ponto extremo da
condensação é o imperativo expresso nas estrofes 5 e 6, que com
pletam o circuito de aquisição de um modo de enfrentamento do
real análogo (como veremos adiante) ao da arte de Mondrian:
ou senão despolir
até o texto da estopa
ou até o grão grosseiro
da matéria de escolha (p. 16)
253
no subtítulo do livro de 1956), a lucidez se baseia na sustentação
do incômodo, espécie de punhal de uso interno a impedir o enlan-
guescimento da consciência. Para manter a ordem da atenção,
concorre um preenchimento léxico cujo ponto comum é a ênfase
na agressão ao corpo, ou à alma organicamente m aterializada
(“arde”, “brasa”, “carne viva”, “queimaduras”, “cãibras”, “incên
dio”). A alma, assim ressequida, cabe um imperativo ético: o de
não transigir, o “de chegar ao que quer”. A causticidade do sol
como imagem adequada à impiedosa vigília que o olhar crítico
deve exercer sobre si mesmo está, aliás, presente em “A insônia
de Monsieur Teste”:
254
(ou extremo) signo a que o poeta recorre para falar dessa mesma
conclusão.
Conforme dissemos, o segundo segmento (“2 ou 1”) parte
de situação contrastante à do primeiro: neste, a tensão; agora, a
dispersão:
e lançar ao fazer
a alma de mãos caídas,
e ao fazer-se, fazendo
coisas que a desafiam, (p. 19)
255
então, só essa pintura
de que foste capaz,
de que excluíste até
o nada, por demais,
e onde só conservaste
o léxico conciso
de teus perfis quadrados
a fio, e também fios,
256
Pois tal meditabúndia
certo há de ser escrita
a partir de latrinas
e diarréias propícias, (p. 10)
257
daquele justo para o abraço
que é de Cádiz, onde nascera,
258
não clareza de um copo de água,
mas interna, carnal, espessa.
259
níveis, deparamo-nos com um poema dedicado a um decanter
(série cultural) e com outros sobre a rosa de areia e o avelós (série
natural). Para o segundo nível, a natureza fornece “Impressões da
Mauritânia” (p. 26), “As águas do Recife” (p. 34), “O sol no Se
negal” (p. 38), “Viagem ao Sahel” (p. 41), “A arquitetura da cana-
de-açúcar” (p. 54), “O cabo de Santo A gostinho” (p. 85). A
ordem da cultura apresenta “Em Marraquech” (p. 20), “Na mes
quita de Fez” (p. 45), “A capela dourada do Recife” (p. 51).
“Um decanter ” é boa mostra da dimensão ética que João
Cabral costuma atribuir a objetos de pequeno porte. Sem chega
rem a constituir maioria no espectro de referência cabralino, eles
tendem, não obstante, a ser um dos eixos primordiais da vertente
filosófica do poeta: basta citarmos Uma faca só lâmina, “O reló
gio”, “Num monumento à aspirina” e “Para mascar com chiclets”
(ambos de A educação pela pedra), entre outros. “Um decanter”
não foge a essa via. Seus seis quartetos ilustram uma espécie de
pedagogia do álcool centrada inicialm ente na capacidade de
expandir o ser humano (“e fazer ainda fluir/ a alma estancada em
rolo”, p. 27) e, posteriormente, na de contribuir para que a expan
são não se transforme em diluição:
260
não no conteúdo (álcool), mas no continente (decanter), que, em
duplo sentido, contém o líquido: o guarda e lhe dá forma precisa,
contida e cristalizada em sua própria forma recipiente. O sólido e o
líquido, a contenção e a liberação, não surgem, pois, como catego
rias excludentes, mas, antes, passíveis de engenhosa articulação.
A convivência de contrários também está presente (e de
modo mais explícito) num dos poemas do subgrupo “macro-espa-
cial”, série da cultura. Trata-se de “A capela dourada do Recife”,
que promove o consórcio da contradição (no sentido de dicções
contrárias) mediante um jogo entre a abundância e a concisão:
O barroco prolixo
com todos os seus tiques,
e o reto, tão correto,
direto ao que insiste,
são linguagens que rara
mente coexistem:
só as vi na Capela
Dourada do Recife, (p. 51)
261
natureza de seu objeto (arquitetônico), complementaridade na
distribuição dentro/fora de que tal objeto é passível. Já o subgru
po “micro”, série natural, se constitui a partir da dessemelhança
de objeto: mineral, na rosa de areia de “Díptico” (parte 2), vege-
tal em “O avelós”. Também têm alcances diversos a pedagogia da
areia e a do arbusto. Em “O avelós”, há uma espécie de teleologia
ética (pautada pela agressão) para explicar o convívio de vida e
cinzas no cenário nordestino:
Na Mauritânia só deserto,
no seu texto de areia frouxa,
se descobre a rose de sable,
cristal de verso em plena prosa.
262
tais”, p. 15). Jogo recíproco de textos especulares, onde as metá
foras do primeiro são a sustentação referencial do segundo, cujas
metáforas são a sustentação referencial do anterior...
Apesar das diferenças que apontamos (de natureza e de
alcance), os elementos desse subgrupo (o avelós e a rosa de areia)
desempenham uma função análoga quanto à sintaxe que estabele
cem com o espaço que os circunda. Ambos significam uma rup
tura, uma cisão, diante do que se apresentava homogêneo: fosse o
frouxo deserto mauritano, fosse o exangue solo nordestino.
Dissolver a homotopia pela incorporação da diferença, eis o prin
cípio que aproxima os dois poemas.
O subgrupo da macro-espacialidade, série natural, conta
com vários textos que enfatizam as relações entre elementos sóli
dos e líquidos. Ora, como em “O sol no Senegal”,
263
viais. Antes, porém, transcrevamos as duas “pontas” do texto: as
estrofes 1 (parte 1, subtitulada “Os dois touros”) e 8 (parte 2, sub-
titulada “A queda de braço”) :
264
do na arena é equiparada à de “um rio/ na cheia” (p. 56). Da mes
ma forma como o touro metaforizara a luta do rio, é agora o rio
que sustenta imagisticamente o animal que se defronta com a
morte, numa reversibilidade comparante/ comparado.
A quinta série de poemas poderia, a princípio, repartir-se
entre as anteriores: a categoria do tempo é quase sempre trabalha
da em relação a um ser ou a um objeto que, de algum modo, a
expresse. Optamos por conceder-lhe autonomia não apenas em
função de sua grande incidência no livro, como também por con
siderar que ela responde dialeticamente à ótica de ocupação de
espaço que concedemos às séries da cultura e da natureza.
Dentre as várias faces com que a temática do tempo se apre
senta na obra, as mais recorrentes são a da corrosão e a da morte.
Ambas são focalizadas em duplo registro: o da especulação
(genérica) e o da verificação efetiva. No nível genérico, isto é, no
da morte, e não no do morto nomeado, o poeta considera diversas
formas de aniquilamento, seja o decorrente de causa localizada
(câncer e enfarte em “Meios de transporte”, p. 6), seja o tributário
do desgaste não-pontual, mas contínuo — o que, afinal, se con
funde com a própria ação do tempo. Para essa direção apontam os
versos de “Viagem ao Sahel”, parte 4,
265
enfarte a um táxi), a etiologia das seqüelas do tempo é provenien
te de uma produção organizada no interior do objeto, embora à
sua revelia. Daí a recusa cabralina em admitir o tempo como cate
goria autônoma e externa. Daí, também, as metáforas da corrosão
apoiarem-se em signos (ônibus, táxi) que remetem a uma ocupa
ção “de dentro”.
“W. H. Auden” (p. 25) e “O espelho partido” correspondem
à verificação prática dos postulados genéricos acima lançados.
João Cabral falara do enfarte; agora (“W. H. Auden”) fala do ser
enfartado (“pois [a morte] matou-te com a guilhotina,/ fuzil lim
po, do ataque cardíaco”, p. 25); falara do câncer, agora fala do ser
que a ele sucumbiu (Marques Rebelo),
266
“coisa”, não ao “quatro”: sua força ordenadora sobrepaira acima
dos corpos desgastáveis em que eventualmente se materializa.
Estabelece-se, assim, uma relação ambígua entre o que perdura e
o que perece, na medida em que aquele (o número) só adquire
vida através dos objetos que o tempo condena à morte.
Um dos caminhos para contornar a corrente inestancável do
tempo está traçado em “O autógrafo”:
267
No corredor tortuoso
da rua é menos denso.
268
materialidade, ademais, expressa em compartimentos estanques
(ver-escutar-apalpar), diversamente do tratamento sinestésico do
poema de Museu de tudo. Ralo, “Num bar da Calle Sierpes, Sevi
lha”, é o tempo; perde a consistência ao espraiar-se em todos os
sentidos. O que não impede — como se verá adiante — que a
obsessão cabralina com a temporalidade só esporadicam ente
abrace a hipótese de anulação de sua força corrosiva.
269
XV — A família reescrita
271
parou os pés desse potro solto?
Só o mumificá-lo, pô-lo em livro. (p. 6).
272
soa gramatical (o poeta se contava pelo que via fora de si), João
Cabral passa a incluir o personagem de si mesmo junto à matéria
que conta. O que era antes puro olhar ganha materialidade e se
agrega à série de objetos passíveis de poema. Quase 50% dos tex
tos trazem as marcas da I a pessoa, e o livro, reveladoramente, se
abre com “Menino de engenho” e se fecha com “Autocrítica” :
permeia as duas pontas da meada a condição histórica do sujeito,
balizada prospectiva (“Menino de engenho”) e retrospectivamen
te. Mas as pontas não se excluem: se elas são duas, é uno o fio que
as intermedia. Assim, no primeiro poema, se o menino é prospec-
tivo, é retrospectiva a voz que o recria:
273
biográfico, já que o evento cede lugar à perquirição ética de seu
sentido. Mas tais indagações, como vimos, estão estreitamente
vinculadas à percepção de formas: daí fazerem convergir o ético
e o estético, de tal modo que ambos os níveis se implicam recipro
camente. Nessa convergência, o tratamento autobiográfico no
livro acaba traduzindo-se por uma biografia de linguagem, com
“poemas de iniciação” a várias instâncias de produção discursiva.
Em “Autobiografia de um só dia”
Parido no quarto-dos-santos,
sem querer, nasci blasfemando,
274
sem saber, com sua frieza
disse nossa indiferença, (p. 16)
275
A Casa-grande é menos grande
do que a estrebaria e a senzala,
do que a moita morta do engenho,
de que só resta a ruína rasa.
276
apenas Siá Floripes é retratada “no trabalho”); seja por sua pró
pria dissolução na horizontalidade da classe social a que pertence.
Instalado no espaço do “senhor”, o poeta nunca diz “eu” sem res
paldar-se no “nós”. Em “Horácio” : “Quando nós, de meninos,/
vivemos a doença/ de criar passarinhos” (p. 10). Em “Cento-e-
Sete” :
277
“Tio e sobrinho”. Inexiste o desnível social (não problematizado)
do grupo anterior, mas permanece a assimetria da relação discursi
va, cujo comando pertence invariavelmente ao ser mais idoso. Se
a criança pouco fala, pode, no entanto, ouvir de igual para igual:
[O sobrinho]
lembra ainda o que ele contou
de um defunto cachaceiro
278
que levavam numa rede
ao cemitério padroeiro:
acordou gritando: “Água!”
e fez derramar-se o enterro, (p. 46)
Maré do Capibaribe,
já tens de maré o estilo;
já não saltas, cabra agreste,
andas plano e comedido: (p. 63)
Maré do Capibaribe
em frente de quem nasci,
a cem metros do combate
da foz do Pamamirim.
279
sem saber que o rio em frente
era o próprio-quase-tudo.
280
Muita coisa discorria(s),
coisas de nada ou pobreza,
pelo celulóide opaco
que em sessão contínua levas. (p. 64. Grifamos.)
Maré do Capibaribe,
mestre monótono e mudo,
que ensinaste ao antipoeta
(além de à música ser surdo?).
281
form a palpável e visível. Há uma escala decrescente de impregna
ção do movimento na matéria, até o atingimento do (literal) “pon
to morto”:
Maré do Capibaribe
na Jaqueira, onde menino,
cresci vendo-te arrastar
o passo doente e bovino.
282
veio-me o vício de ouvir
e sentir passar-me o tempo. (p. 69)
No dia-a-dia do engenho
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
283
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante
284
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho, perante
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de corumba, no caçange
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes), (p. 75)
285
em vez das redes que lá dentro,
te envolvem, dissolvem, se vão,
fica o meu mudo perfil lúcido,
cristal oposto ao fumo e ao vão. (p. 53)
286
bate sempre, e pontiagudo,
e a guerrilha vegetal
no seu infiltrar-se mudo,
conta com o tempo, suas gotas
contra o ferro inútil, viúvo. (p. 20)
287
Tanto em “Olinda revisited” quanto em “As frutas de Per
nambuco” e “A cana-de-açúcar menina” o poeta não trabalha
com o comparante “mulher”: concentra-se em outros objetos re
presentantes do feminino, categoria mais ampla de que a mulher
é um dos preenchimentos possíveis. “As frutas de Pernambuco” e
“A cana-de-açúcar menina”, em dísticos rimados, exploram duas
versões antagônicas do feminino: a do despudor e a do recato.
“Jogos frutais” já tematizara as frutas pernambucanas sob o pris
ma do contato sensual, ávido ou cauteloso. O novo poema, elidin
do a nomeação específica de cada fruta, a todas atribui um mes
mo fim — a entrega, dissolvida e “dissoluta”:
288
Registremos o endosso ético (andaluza honesta) à sensuali
dade encoberta (saias folhudas) e reprimida (sem carinhos), con
traponto à crítica ao erotismo que não guarda limites de entrega:
“de puta”. Essa concepção moralista do desejo decorre, talvez, da
arregimentação de categorias polarizadas (o lúbrico x o casto).
Em ambos os textos, a insistência na marca (positiva ou negativa)
despoja de complexidade o feminino, tornando-o, assim, propício
a um rito sumário de julgamento.
Em vários poemas a cana é plantada no solo simbólico da
contenção erótica. Na derradeira estrofe de “O fogo no canavial”,
289
44 poemas; em alguns deles, como em “Menino de engenho”, ela
ocupa o centro irradiador da visão poética e existencial do sujeito.
Um ponto comum depreendido das várias versões em que a
cana se oferece é sua capacidade de se ofertar em modelo de lin
guagem. As “puras linhas”, unidas, compõem uma frase sem
melodia (“A voz do canavial”):
290
O coqueiral tem seu idioma:
não o de lâmina, é voz redonda:
291
Clássica, a cana se renega
ante a moenda (morte) da usina:
nela, antes esbelta, linear,
chega despenteada e sem rima. (p. 71)
292
O livro termina por dois poemas de retorno: “De volta ao
cabo de Santo Agostinho” e “Autocrítica”. No primeiro, há a
consciência de que, se a viagem conduziu ao mesmo lugar, o
lugar já não é o mesmo — História como sinônimo de alteridade,
de transformação do objeto dialeticamente vinculada à mudança
de percepção de quem o acolhe:
293
Bibliografia
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8 . . Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
9 . . A escola das facas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.
10 . . Poesia crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
294
6. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem. Petrópolis: Vozes, 1967.
7. CARONE, Modesto. A poética do silêncio. São Paulo: Perspectiva,
1979.
8. CRESPO, Angel & GOMEZ BEDATE, Pilar. Realidad y forma en la
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Madrid: 3(8):5-69, mar. 1964.
9. ESCOREL, Lauro. A pedra e o rio. São Paulo: Duas Cidades, 1973.
10. FREIXIEIRO, Fábio. Da razão à emoção II. Rio de Janeiro: Tempo
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11. GARCIA, Othon Moacir. A página branca e o deserto. Revista do
Livro, Rio de Janeiro: (7):59-71, set. 1957; (8):75-85, dez. 1957;
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12. HOUAISS, Antônio. Drummond mais seis poetas e um problema.
Rio de Janeiro: Imago, 1976.
13. LEITE, Sebastião Uchoa. Participação da palavra poética.
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14 . . LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civili
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15 . . A metamorfose do silêncio. Rio de Janeiro: Eldorado 1974.
16 . . Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982.
17. LOBO, Danilo. O poema e o quadro. Brasília: Thesaurus,1981.
18. MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema. Rio de Janeiro:
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Poetas do modernismo. Antologia crítica. Brasília: INL, 1972,
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21. NUNES, Benedito. O dorso do tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.
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23. PIGNATARI, Décio. Contracomunicação. São Paulo: Perspectiva,
1971.
24. RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. O modernismo na poesia. In:
COUTINHO, Afrânio, org. A literatura no Brasil. 2a ed., Rio de
Janeiro: Sul-Americana, 1971, vol. 5.
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João Cabral de Melo Neto. São Paulo: HUCITEC, 1978.
26. SENNA, Marta de. João Cabral, tempo e memória. Rio de Janeiro:
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27. SOARES, Angélica Maria Santos. O poema, construção às avessas.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
28. ZAGURY, Eliane. A palavra e os ecos. Petrópolis: Vozes, 1971.
295
Outros ensaios
MORTE E VIDA CABRALINA*
299
marca de esquecimento, o sertão recalcou-se no discurso do poe
ta, para só reaparecer com vigor doze anos depois, em A educa
ção pela pedra. Ao ocultar-se na memória do rio-criança, que
dele não se recorda, o sertão, todavia, não deixa de vincar a paisa
gem lexical do texto: “terras de sede” , “caminhos de pedra” .
Coisas que o rio-menino, já no Agreste, nem sabe se viu, mas de
que se fez testemunha “por ouvir contar”3; e o pior cego é o que
não quer ouvir. Impossível apagar as imagens de um vazio “onde
só pedra é que ficava”4: domínio mineral de uma topografia
ostensivamente cheia de nada. Em Cabral, o sertão nasce para
anunciar a morte: sertão, serThânatos. Natureza desfalcada, palco
de atores — bichos, homens, rios — em perpétua retirada, ele
também não deixa de ser, por contraste, o emulador de uma afir
mação vital: viver nele, apesar dele. É nesse jogo entre devasta
ção e resistência que a poesia de morte e de vida cabralina vai ten
tar traduzir o sertão. Traduzi-lo num viés etimológico: atravessá-
lo, levá-lo além, de um ponto a outro: do verso do poeta ao rever
so do deserto (ou desertão) onde a vida severina pede passagem.
Traduzir o deserto solar do sertão no deserto polar da página bran
ca, pois “o sol de palavra/ é natureza fria”5.
Por enquanto, fixemos este ponto: no início, Cabral apenas
sabe que (h)ouve um sertão, sobre o qual não pode falar com juste
za. Dele falará quando o discurso poético aprender a apreendê-lo no
vazio e na vertigem da carência, numa linguagem rarefeita contra a
cultura do supérfluo. Traduzir o sertão é traduzir-se nele: deixar-se
conduzir com palavras desencapadas para o lado menos confortável
da fala, onde nem mesmo exista o consolo de uma pedra no meio do
caminho, pela simples razão de a pedra confundir-se com o cami
nho inteiro: “Por isso é que ao descer/ caminhos de pedra eu busca
va” — o rio fala, e Cabral assina. De tanto caminhar sobre palavras-
pedra, e de tanto apanhar apanhando-as, o discurso cabralino
desembarcou mais tarde em A educação pela pedra, livro que, sem
dúvida, mais explicitamente incorpora e desenvolve a temática ser
taneja. Nessa travessia, alguns poemas já foram sinalizando aquilo
que, em Cabral, o sertão viria evocar —■um modelo ético e poético:
2 ld„ ibid.
3 Id„ ibid.
4 Ibid., p. 274.
5 MELO NETO, João Cabral de. Primeiros poemas. UFRJ: Faculdade de Letras, 1990,
p. 45.
300
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.6
301
reta e explorável”, 10 como dissera em Os três m al-am ados
(1943). Essa obsessão da represa leva o poeta a imobilizar a pró
pria água do oceano:
“>Ibid., p. 369.
Ibidi., p. 175.
12 Ibid., p. 7.
13 Ibid., p. 314.
14 MELO Neto, João Cabral de, Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975,
p. 33.
15 Idem. Poesias completas. 2‘. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p. 8.
302
Desde que no Alto Sertão um rio seca,
a vegetação em volta, embora de unhas,
a lixa do Sertão
do que faz, em pedra e seco,
muito aprendeu desse tio
do Ceará mais sertanejo.19
is Ibid., p. 9.
n Ibid.
is Ibid., p. 28.
19 MELO NETO, João Cabral de. A escola das facas, Rio de Janeiro: José Olympio,
1975, p. 175.
303
poeta, que vai localizá-lo em realidades aparentemente distancia
das de seu foco de origem, Guimarães Rosa já não disse que
sertão é quando menos se espera? Pode, por exemplo, compor o
estilo das cabras mediterrâneas, sobre as quais afirma o poeta:
20 MELO Neto, João Cabral de. Museu de tudo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975,
p. 175.
Ibid., p. 13.
22 Ibid., p. 7.
304
(...) viver vale suicidar-se todo o tempo”23. O rio passa a ser
exemplo de “suicídio permanente”, e “induz ao suicídio a pressa
deles”, sobressaindo-se, nesse último verso, um componente éti
co. Já em “A fumaça no Sertão” a ênfase recai no estético: “Onde
porém, porque não pode o barroco,/ ela [fumaça] pode empinar-
se essencial, unicaule; (...) uma palm eira coluna, sem folha
gem”24. A nudez em riste do caule remete à obsessão da reta, do
caminho mais econômico e sem insterstícios, numa clara recusa
ao barroco, à volúpia da voluta. Cabral deseja um espaço que se
componha por subtração, até, quem sabe, roçar a miragem da
ausência absoluta. Esse ir direto, esse defrontar-se com a coisa
desguarnecido de acolchoamentos eufemizantes, está na origem
do que alguns acusam ser a “desumanidade” do poeta, hostil à
hipérbole e aos espasmos de comiseração. Não se encontram em
seus textos conselhos ou incitações aos miseráveis do Nordeste. E
não se procure em A educação pela pedra um único sertanejo per
sonalizado, que possua um boi, uma esperança, um chinelo. Só
encontraremos o sertanejo, figura exemplar, conjugação potencial
de traços localizáveis em séries de Severinos. ■Como rímbéiti e
figura exemplar, na planície geral da literatura brasileira, o poeta j
João Cabral dè Melo Neto, aütõFde~urna obra admirável pela coe- j
rência em rejeitar as avenidas noturnas e fáceis do lirismo, e pela j
ousadia de se embrenhar nos desvios mais íngremes da lingua-/
gem, para neles buscar as palavras e os poemas que esperam, semj
pressa, amanhecer. -------------- —------''
23 Ibid., p. 28.
24 Ibid., p. 11.
305
JOÃO CABRAL: MARCAS*
307
posteridade. Todavia, a institucionalização do novo a qualquer
preço conduz ao seguinte impasse: se o texto que não rompe nor
mas é em si previsível, também é previsível o texto que as rompa
na obediência ao rompante estatutário prescrito pela gramátiva do
novo. Conservar o dito, num caso, e conservar o processo de des
truição do dizer, no outro. Falta postular uma terceria hipótese, a
do texto que irrompe fora do dualismo, às vezes rígido e artificio-
so, entre o antigo e o moderno, e que dissove polarizações marca
das como boas ou más num gesto dialético refratário às simplifi
cações do direito e do avesso. Diríamos que, em larga medida, a
tentação do avesso condensa o fascínio e o declínio das vanguar
das. Tomemos o exemplo da paródia: com ela, supõe-se demolir
um edifício, quando, a rigor, ele é reconstruído de cabeça para
baixo no subsolo. Numa relação algo incestuosa com a lingua
gem, o texto-matriz cintila sobre os escombros, pois, pretensa-
mente aniquilado, transforma-se na grande fonte de sustentação
do novo texto que o acusa. Ao fim e ao cabo, o texto paródico ter
mina endossando, mesmo às avessas, a força fecundadora daqui
lo que pretendeu, pela derrisão, sufocar. O mais grave é que
vários procedimentos, estratégicos na linha de frente de 1922,
quando ao menos correspondiam a ataques contra a m áquina
obsoleta do tardoparnasianismo, acabaram cristalizando-se em
clichês de uma discutível tradição do contrapoético. Nem é mais
preciso que o leitor, com sua abúlica indiferença, aponte a demis
são da poesia: os próprios poetas, gostosamente, se incumbem da
tarefa. Diversos autores mimeografados, por exemplo, restringi-
ram-se a criar paródias involuntárias a certos rituais (contra-) esti
lísticos de 22. Qualquer espasmo verbal quis legitimar-se pelo
filão da poesia-minuto; desajeitadamente, inventou-se a poesia-
segundo. O desconhecimento flagrante do legado literário e cul
tural travestiu-se de “pureza primitiva de expressão”; afinal, não
é necessário “ver com olhos livres?” O veio do coloquialismo ser
viu de respaldo à indigência vocabular. Matérias que exigissem
reflexão mais densa eram a priorí descartadas, por serem “coisa
de literatos” . Assim, a desritualização da linguagem literária —
sempre empurrada pela ritualização do avesso — confinou a poe
sia, em mãos epígonas, a um receituário lúdico de ocasião, a uma
estreiteza perceptiva que, na mitificação do antinormativo, só exi
gia do escritor, no limite, uma condição: a de que não soubesse
308
escrever. Oswald de Andrade não pode ser o culpado da “contri
buição milionária de todos os erros” cometidos em seu nome:
seus próprios equívocos já são suficientes. Mas é em Oswald, cer
tamente, que podemos lastrear não somente alguns pontos de
conexão com a poesia de Cabral, como, sobretudo, pontos de des
conexão similares com que ambos os poetas trabalham frente a
certos padrões líricos. Em outros termos: a marca maior é pela
ausência, espécie de poética negativa am parada em recusas
comuns. E nítido, porém, que a operacionalização dessa recusa,
ou seja, o desdobramento desse “não”, leva a resultados inteira
mente diversos, quer no plano detalhado da microcomposição do
poema, quer no plano geral da arquitextura das respectivas obras:
uma, tramada sob o signo da premência, da euforia, da elipse, da
parataxe; outra, a cabralina, sob o signo da paciência, do ceticis
mo, da análise, da hipotaxe. A minimização do melódico, a dilui
ção de fronteiras entre o prosaico e o poético, a utilização de um
léxico sem chancela, o gosto em solapar o sublime são pontos de
contato entre os dois. Mas a densa urdidura do verso e do projeto
cabralino é algo bastante distanciado do rigor destrutivista de
Oswald, inventor de ruínas incapaz ou indesejoso de desenvolver
outro gesto que não fosse o da irrisão e da paródia, acrescido da
satisfação orgulhosa de não saber metrificar.
Um outro poeta costuma ser evocado por João Cabral na
reconstituição de seu percurso: Murilo Mendes. Se de Murilo
excluirmos a religiosidade, o hermetismo, a epifania, o encantató-
rio, os versos polimétricos, a metafísica, o salvacionismo — isto
é, se de Murilo excluirmos Murilo — , o que sobrar influenciou
Cabral. E o que resta? A escrita onírica embebida no surrealismo,
a celebração do mundo em sua ostensiva plastividade (diríamos,
até, tactilidade). Ora, o influxo onírico comparece de forma níti
da apenas no primeiro livro de Cabral, Pedra do sono (1942); já
no segundo, O engenheiro (1945), reveste-se de tonalidades bas
tante esmaecidas. Se é cronologicamente restrito o tributo cabra
lino ao autor de A poesia em pânico, encontraremos mais tarde
uma curiosa confissão no Murilo tardio de Convergência (1970):
“Joãocabralizei-me” .
Não há, portanto, na poesia brasileira, uma linhagem osten
siva onde comodamente se possa instalar a obra de João Cabral de
Melo Neto. Essa espécie de orfandade, que faz dele um autor-ilha,
309
não implica, insistimos, um processo criador isento da História,
inclusive porque uma ilha só se percebe por oposição ao conti
nente. Diante desse continente literário, com suas fam ílias e
genealogias bem assentadas, a ilha cabralina é uma poesia
encharcada de silêncio por todos os lados. Autor situado no tem
po, mas não sitiado por ele, capaz, portanto, de grafar-lhe as mar
cas da recusa, da negação, da dissonância.
Examinemos, agora, o outro aspecto da questão: a poesia de
Cabral terá forjado sucessores? Restrinjamo-nos aos principais
grupos ou tendências: a geração de 45, o concretismo, os poetas
dos CPCs, a poesia marginal. Quanto a esta, julgamos desneces
sário, aqui, xerocar o que já dissemos sobre o mimeógrafo; deste
grupo, quase nada sobrevive, vinte anos e vinte e seis poetas
depois. No que tange a 45, ouçamos o depoimento do próprio
poeta:
310
vam a representar “o mínimo múltiplo comum da linguagem”,
geraram, na prática, um máximo divisor de tendências, através de
grupos e subgrupos envolvidos em guerrilhas pelo poder literário,
com ramificações e controvérsias que até hoje perduram nas que-
relas da crônica menor de nossas letras. Seria equivocado maxi
mizar os traços formais que aproximam Cabral e concretos em
detrimento do imenso fosso ideológico que os distingue. No tex
to concretista, em sua vertente combinatória, a obra pode até ser
aberta, mas só com as chaves do dono. Poe exemplo: no poema
“Alea I, variações semânticas”, de Haroldo de Campos, há um
convite à “criatividade” do leitor, solicitado a efetuar permuta
ções aleatórias em duas palavras de cinco letras. O autor antecipa
que existem 3.628.800 combinações previstas — há mil maneiras
de preparar um poema, invente a sua... Talvez a poesia comece
na milésima primeira, aquela não legislada pela voz autoritária do
texto, que, cercando as combinações por todos os lados, reduz o
poema a um jogo de cartas e letras marcadas. João Cabral não
compartilha desse triunfalismo, dessa jubilosa certeza do verbo.
Na sua obra, ao contrário, o vínculo entre palavra e realidade será
sempre lacunoso, claudicante. Daí a necessidade das contínuas
versões e leituras com que cerca um objeto, criando metáforas
“até certo ponto”, metáforas de vigência restrita, convocadas para
serem suprimidas pela denúncia de sua própria insuficiência.
Temos, pois, a palavra como assédio maciço a uma realidade
inesgotável, a uma plenitude ilegível no todo, mas que se deixa
entreler em seus restos no poema.
A partir dessa reflexões é que podemos acercar-nos das con
figurações específicas do universo cabralino, mas não sem antes
examinarmos o registro pelo qual ele se quer demonstrar: o da
objetividade. Em que consiste a objetividade num poema? Para
tentar algumas respostas, recorramos à divisa predileta de Cabral,
reiterada em inúmeros depoimentos: a poesia deve “dar a ver” .
Tal sintagma pressupõe um ponto de visibilidade ideal e a neces
sidade da remoção de obstáculos que estejam toldando essa idea-
lidade. O problema já se instala no fato de que o instrumento apto
a clarificar a percepção é o mesmo que serve para encobri-la: a
palavra. A partir de que valores, portanto, podemos avalizar uma
percepção como mais isenta e exata do que outra? A simplifica
ção didática da expressão “poesia objetiva” esconde uma série de
311
mal-entendidos e de contradições, sobretudo se nos ativermos a
critérios de natureza estritam ente form al, considerando, por
exemplo, que seria objetivo o texto que não contivesse as marcas
lingüísticas da primeira pessoa. Nesse caso, onde catalogar as
muitas descrições (em terceira pessoa) acintosamente emociona
das dos românticos? E como classificar os textos em que o “ele”
é máscara transparente do próprio “eu”, oculto no biombo da ter
ceira pessoa? Toda obra revela simultaneamente a percepção e o
percebido, seja a percepção exterior ou interna, seja o percebido
uma pedra ou o mais inefável dos sentimentos. A objetividade
plena pressuporia eliminar-se o foco de enunciação, pois este
inflete inevitavelmente sobre aquilo que está capturando. Dar a
ver não é deixar o objeto objetivamente falar, é escolher estraté
gias discursivas propícias a uma simulação de objetividade, onde
as impregnações mais visíveis do sujeito se camuflem em prol de
uma cena em que os objetos pareçam falar de si, mas sempre por
meio do sotaque de quem os vê. Por mais que o artista deseje, a
escrita do mundo não é autografa. A fé num registro descontami-
nado foi enterrada com a hipostasia naturalista; destruída a fé,
resta a simulação, conforme lemos no poema “Dúvidas apócrifas
de Marianne Moore” (de Agrestes, 1985):
312
autobiografia em 3a pessoa. É pela marca exaustiva sobre deter
minados signos que se vai desenhando o rosto de quem a impri
me. Na “seleção dessas coisas” o poeta se reconhece.
Auscultemos, pois, em sua obra, os elementos que insistem, con
signando apenas, em sumários registro, obsessões de ordem for
mal, já apontadas à exaustão pela crítica: a quadra, a rima toante,
o isossilabismo, os versos com metrificações pares.
No poema “Graciliano Ramos:”, de Serial (1959), encontra
mos os famosos versos:
313
em Pernambuco. A observar no contingente a pequena incidência
de termos abstratos e a preferência por signos que, de algum
modo, evoquem uma experiência sensorial, como pintura, luz e
canto. Mesmo o tempo, categoria passível de indagações abstra
tas, será traduzido pela materialidade dos sentidos; dele se diz, em
“O alpendre no canavial” (Serial), que tem sabor e cheiro, que é
palpável, audível, visível. Esse (não exaustivo) repertório estabe
lece entre seus componentes redes de infiltração recíproca, seja
em caráter opositivo (água x secura, canto x silêncio), contrastivo
(Pernambuco x Espanha, rio x terra) ou complementar (poema x
pintura, homem x mulher). Do conjunto, alguns elementos —
pedra, mulher, pintura, tempo — já foram bastante analisados por
outros estudiosos. Propomo-nos aqui a verificar mais de perto o
alcance do signo cana, por entendermos que se trata de uma das
marcas que mais exemplarmente operam na confluência entre lin
guagem e metalinguagem. A cana, progressivamente, deixará de
ser capturada como simples referencial paisagístico para tomar-se
modelo de uma arquitetura textual, atravessando de permeio
outros níveis que iremos apontar.
A primeira referência data de Os três mal-amados, 1943:
“[o amor] comeu o verde ácido das plantas de cana”; relevou-se a
cor, não a forma. Já em O rio (1954), lemos: “muita folha de cana/
com sua lâmina fina” e “Que nem ondas do mar/ multiplicadas,
elas [canas] se estendem”. Agora, além da alusão à forma (“lâmi
nas”), surge outra das imagens obsessivas de Cabral: a similitude
entre o canavial e o mar. Essa aproximação, inicialmente adstrita
ao nível da plasticidade, logo desem bocará em im plicações
sociais, pelo viés do sentido metafórico de coletividade e poten
cial de insubmissão que onda e cana compartilham: no poema “O
mar e o canavial” (de A educação pela pedra, 1966), o poeta assi
nala a “veemência passional da preamar”, “o desmedido do derra
mar-se da cana”. Multiplicada, a cana indicia o poder transfigura-
dor do coletivo, o ímpeto que não aceita ser contido, como se lê
em “O vento e o canavial”, de Paisagens com figuras (1956):
Se venta no canavial
estendido sob o sol
seu tecido inanimado
faz-se sensível lençol
314
É solta sua simetria:
como a das ondas na areia
ou as ondas da multidão
lutando na praça cheia.
315
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice
que a corta em foice, um dar-se mútuo.
316
A secura do som e o despojamento da cana retilínea se cor
respondem, modulações diversas de um mesmo estilo. Já em
“Moenda da usina”, a construção do texto literário se faz sobre os
destroços e ruínas do texto da cana; antes, no canavial, “esbelta,
linear”, ela chega à usina “despenteada e sem rima” .
Pudemos, portanto, flagrar na obra de Cabral as sucessivas
(ou simultâneas) configurações que a cana foi assumindo até
alçar-se a modelo de uma produção discursiva, chegando mesmo,
em “Menino de engenho”, a constituir-se num foco de irradiação
ética e poética para o sujeito. Vimo-la feminina; é masculina em
“Tio e sobrinho” . E vegetal, mineral (“A cana de açúcar de ago
ra”) e animal (“Pernambuco em Málaga”). Em “Jogos frutais”, de
Quaderna, fora definida como “pura linha” — linha que, do ima
ginário, lança-se para todos os lugares, prestando-se, desse modo,
a uma notável pluralidade de sentidos.
Cabe-nos ainda registrar outro tema, que, sem freqüentar a
reiterada “seleção de coisas” de Cabral, assume, em seus últimos
livros, uma dimensão de tal maneira fecunda que chega inclusive
a reorientar a compreensão da poesia anterior. Referimo-nos às
relações familiares de infância, cuja presença se avoluma a partir
de A escola das facas. Tendo lançado, em 1968, suas Poesias
completas, o autor como que fechou um ciclo balizado por duas
pedras: a primeira, do sono, e a última, d’A educação. Tresleu-se
nisso um protocolo precoce de aposentadoria poética, desmentido
cab(r)almente pelo vigor criativo de A escola das facas. O teor
memorialístivo do volume, a matéria garimpada na experiência
autobiográfica concreta, franqueiam a Cabral o acesso ao grupo
dos grandes poetas brasileiros (dentre eles Bandeira e Drum-
mond) que se ocuparam da questão. Estabeleçamos, pois, à guisa
de confronto, alguns traços específicos no tratamento do tema em
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral
de Melo Neto.
No primeiro, a infância é um refúgio idílico, onde a imagem
do menino se preserva, inteiriça, da contaminação do adulto,
compondo a nostalgia de uma plenitude sem fraturas:
317
A perda é vivenciada por notações eufêmicas (“Estão todos
deitados/ Dormindo/ Profundamente”) e a sensação de alumbra-
mento acolchoa uma experiência pretérita sob a égide da alegria
— perdida, mas alegria. Se conjecturas ensombreadas de melan
colia acabam vincando o adulto (“A vida inteira que podia ter
sido e que não foi”), ele, mesmo defrontando-se com a morte,
encena-lhe o ritual pelo compasso da desdramatização:
318
encarada como um período de desafio de linguagens, sob o disfar
ce de anedotas enganosamente inócuas. Uma paráfrase do poema
“Descoberta da literatura” diria que se trata da história do garoto
João, que gostava de ler o cordel, escondido, para os trabalhado
res do engenho, apesar de temer que lhe atribuíssem a autoria dos
livretos. Um dia, sua família descobre essa prática e, muito prova
velmente, a coíbe. O poeta, em aparência, não emite juízo sobre a
coibição. Leiamos o texto, para depois verificar o que a malícia
da forma pôde acrescentar a um enredo tão simples:
No dia-a-dia do engenho,
toda a semana, durante,
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
Sentados na roda morta
de um carro de boi, sem jante,
ouviam o folheto guenzo,
a seu leitor semelhante,
com as peripécias de espanto
preditas pelos feirantes.
Embora as coisas contadas
e todo o mirabolante
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
a tensão era tão densa,
subia tão alarmante,
que o leitor que lia aquilo
como puro alto-falante,
e, sem querer, imantara
todos ali, circunstantes,
receava que confundissem
o de perto com o distante,
o ali com o espaço mágico,
seu franzino com o gigante,
e que o acabassem tomando
319
pelo autor imaginante
ou tivesse que afrontar
as brabezas do brigante.
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita morta do engenho,
um filho-engenho perante
cassacos do eito e de tudo,
se estava dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de corumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes).
320
em duplo sentido — “na moita”. A linguagem alheia, da “senza
la”, sofre duas sanções: uma intrínseca, por ser “letra analfabeta”;
outra, na medida em que o erro lingüístico é encarado como sinto
ma de desvio social: “cegos de feira,/ muitas vezes meliantes”. A
família, resguardada socialmente na Casa-grande, e graficamente
nos parênteses do texto, sabe que a tutela do discurso é arma efi
caz para garantir que as coisas permaneçam em seus devidos luga
res: o domínio formal da fala atua como emblema exteriorizado
desse poder demarcatório. A infração ao código ocorre quando
uma voz errante da Casa-grande se põe a serviço da voz “errada”
dos trabalhadores. O problema é que, recusando a chancela de ori
gem para fazer-se cúmplice da palavra alheia, o personagem não
consegue apagar a marca inicial, não consegue desalfabetizar-se
passando ingenuamente para o outro lado do discurso. Mesmo lá
manterá vivos os sinais que tentou abafar, no afã de ser apenas
“puro alto-falante”. Algumas astúcias na construção do poema
dramatizam o impasse desse discurso que bate às portas de outro,
mas sem a inocência ou o cinismo de supor que se possa instalar
sem dano dentro dele. Vai-se perceber, no poema do adulto, um
descompasso entre o desejo de imitar o cordel e as interferências
letradas que inviabilizam a empreitada; trata-se de um texto que
encena pela forma a própria impossibilidade de ser aquilo para o
qual supostamente se dirige. Senão, vejamos: o lado-cordel se
concretiza pelo teor narrativo, pela estrofe monorrímica, pelo
emprego da redondilha maior. O poeta, com as marcas de menino
de engenho (e arte), interfere nesses esquemas, dificulta-os.
Assim, se existe uma só rima, ela não será em “ão” ou “ar”, mas
em “ante”, opção que conduz a um contingente lexical infinita
mente mais restrito e sofisticado; na redondilha maior, o autor pro
move uma flutuação de tônicas, impedindo a cristalização melódi
ca dos tradicionais acentos em 3a e 7a sílabas. A forma, portanto,
transmite ao mesmo tempo os rituais do cordel e a impossibilida
de de fazer o texto soar plenamente como cordel. Essa dualidade
entre o popular e o erudito acompanhará toda a obra do poeta, atra
vés de sistemas paralelos e eventualmente cruzados de dicções em
entrechoque: a poesia de Cabral nunca desistiu de ser também a
poesia do João. Podemos, de regresso ao texto, destacar ainda as
várias implicações de seu título: ele evoca a descoberta de uma
literatura, a do cordel; a prática dessa leitura era descoberta, ao ar
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livre, e descoberta porque carente de legitimação. Finalmente,
essa literatura descoberta foi descoberta pela Casa-grande. O poe
ma não revela os efeitos imediatos da ação censória, se o menino
abriu ou não alguma brecha para continuar descobrindo a literatu
ra. Mas o gesto inibitório — a longo prazo — fermentou uma ardi
losa vingança simbólica contra a família, pois o revide diante da
censura foi a criação de um texto abastecido na própria censura:
“Descoberta da literatura”. A proibição de falar levou-o a falar da
proibição, não mais na condição de simples “alto-falante”, e sim
na de auto-falante, tentando dizer-se nesse arco de linguagem
estendido entre a Casa-grande e a “senzala”. Palavra, portanto,
plantada num hiato, e duplamente deslocada: as marcas de origem
e a empatia para com o Outro social tomarão instável o assenta
mento do poeta em qualquer dos dois pólos. Como vemos, as con
vocações biográficas da família, longe de trilharem os meandros
da reconciliação póstuma, ou da complacência sentimental, ilumi
nam uma nova leitura da poesia de Cabral, na medida em que tra
zem à tona um tenso processo de aprendizagem discursiva de que
conhecíamos apenas o resultado — a obra — , mas não a árdua ela
boração na confluência da trama tecida entre sangue e texto.
Examinamos, num primeiro momento, as marcas de João
Cabral no pocesso literário brasileiro; em seguida, estudamos
algumas das construções simbólicas obsessivas em sua poesia,
para, depois, restringirmos o campo de investigação através da
leitura mais cerrada de um texto. Arriscaríamos ainda, neste enca
minhamento final de nossas reflexões, invocar outra marca, de
ordem subjetiva: aquela impressa em seus leitores, ou, mais exa
tamente, neste leitor que agora lhes fala. Após tantos anos de fre-
qüentação atenta e amorosa de sua obra, não me cansei de sur
preender atalhos e desvios naquilo que supunha serem questões
resolvidas. Descobri neste poeta crítico que força criadora e rigor
analítico podem partilhar o mesmo solo de linhagem. Convivi
com poemas que não propõem um estoque de saberes, mas o
exercício de sucessivas desaprendizagens para aprender melhor
aquilo de que o olhar domesticado não consegue dar conta, na tra
vessia tormentosa para o novo.
O poeta, um dia, falou de um recém -nascido Severino.
Valho-me aqui dos versos que ele então escreveu, para, através
deles, definir o próprio texto de João Cabral:
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Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas
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Entrevista de João Cabral de M elo Neto *
— Creio que foi Ortega y Gasset quem tratou com mais inte
ligência o problema das gerações em arte. Endosso as idéias de
Ortega: pertencer a uma geração é um fenômeno biológico, não se
pode mudar o ano de nascimento. Mas alguns reduzem uma gera- )
ção à idéia de escola literária; nessa perspectiva, nada tenho a ver
com a escola de 45 e com seu ideário estético, formulado, aliás,
por um pequeno grupo dentre os nascidos em 1920 e adjacências.
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— Houve algum escritor brasileiro particularmente impor
tante para sua formação literária?
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dição melódica: nada inovou quanto à metrificação. Já a poesia de
Valéry sempre me pareceu secundária, uma espécie de Mallarmé
passado por água. O que me interessava nele era a explicação teó
rica de Mallarmé, seu mestre. Só que a poesia do mestre conduziu
a um beco sem saída. Todos os que se influenciaram por ele
deram um ou dois passos atrás.
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do que escrever. Admiro quem chega a um ponto de tal lucidez e
consciência de si que, em decorrência, passe a ser, potencialmen
te, capaz de tudo. Ora, quem atinge esse estágio não precisa fazer
nada, pois tudo será bastardo ou inferior em relação a seu poten
cial. É o que está em Une soirée avec monsieur Teste, de Valéry.
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não. Mas se o inconsciente agir, contra a minha vontade, e me der
uma solução que eu julgar válida, sou suficientemente cínico para
aproveitá-la.
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adolescência, tinha asco da poesia por associá-la à melodiosidade
tipo parnasiana dessa rima.
— Esse texto não podia ser mais denso. Era obra para teatro,
encomendada por Maria Clara Machado. Foi a coisa mais relaxa
da que escrevi. Pesquisei num livro sobre o folclore pernambuca
no, publicado no início do século, de autoria de Pereira da Costa.
Eu era consciente de que não tinha tendência para o teatro, não
sabia criar diálogos no sentido de polêmica. Meus diálogos vão
sempre na mesma direção, são paralelos. Observe o episódio das
pessoas defronte do cadáver: todos trazem uma imagem para a
mesma coisa. A cena do nascimento, com outras palavras, está em
Pereira da Costa. “Compadre, que na relva está deitado” é transpo
sição desse folclorista, pois no Capibaribe há lama, e não grama.
“Todo o céu e terra lhe cantam louvor” também é literal do antigo
pastoril pernambucano. O louvor das belezas do recém-nascido e
os presentes que ganha existem no pastoril. As duas ciganas estão
em Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. Eu
só alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimis
tas. Com Morte e vida severina, quis prestar uma homenagem a
todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do retirante provém do
romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore cata
lão. O encontro com os cantores de incelenças é típico do
Nordeste. Não me lembro se a mulher da janela é de origem gale
ga ou se está em Pereira da Costa. A conversa com Severino antes
de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega.
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— Se Morte e vida severina é sua obra mais relaxada, qua!
a mais tensa ?
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ria: quando leu meu livrinho sobre ele, não entendeu nada. É um
pintor-operário. Picasso diz boutades. Apollinaire só disse bestei
ras sobre pintura.
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último dia de funcionamento, todas as famílias vão preparai' a
farinha e travam diálogos com tons pessimistas ou otimistas.
Outro poema longo serão as Memórias prévias de Jerônimo de
Albuquerque. É meu antepassado; foi chamado de “o Adão per
nambucano”. No poema, Jerônimo vai narrar todas as persegui
ções e desgraças que a sua terra adotiva (ele era português)
sofreu, falará de frei Caneca, de todos os mártires.
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