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As cinco manobras da negação da ciência

ARTIGO
19 SET 2019
AUTOR
BRIAN DUNNING
IMAGEM
IQC

Sempre há uma pessoa, ou um grupo de pessoas, que contesta as


descobertas de uma área qualquer da ciência. É um fenômeno que
chamamos de negacionismo da ciência. Sejam os defensores dos
combustíveis fósseis argumentando contra a ciência do clima, ou o
pessoal que insiste em dizer que o HIV não causa aids, os negacionistas
estão à nossa volta espalhando falsas informações que podem,
inclusive, causar mortes.
As pessoas que fazem comunicação em ciência precisam se defender
desse negacionismo e, para fazê-lo, é importante entender que formas
ele assume. Aqui vamos tratar e cinco elementos que caracterizam o
negacionismo, conhecidos pela sigla (em inglês) FLICC.
O negacionismo da ciência é exatamente o que parece, a negação de
um fato científico feita de tal maneira que as pessoas que não são
especialistas no assunto, não têm opinião formada a respeito ou
ignoram os dados relevantes, são levadas a crer num ponto de vista que
discorda da ciência estabelecida.
Se você é um fabricante de cigarros que quer convencer as pessoas de
que cigarros são absolutamente saudáveis, as técnicas FLICC são as que
você vai usar em sua mensagem. Na verdade, essas técnicas são
empregadas pela maioria dos negacionistas da ciência e, uma vez que
você aprenda a identificá-las, você terá mais uma ferramenta para
distinguir ciência de verdade de pseudociência.
A sigla FLICC foi criada por John Cook em 2014 (e testada em 2017 neste
artigo), mas as cinco técnicasjá haviam sido mencionadas previamente
porPascal Diethelm e Martin McKee, em 2009, num paper do European
Journal of Public Health (1), que, por sua vez, se baseavam numa
espécie de codificação do negacionismo feita pelos irmãos Mark e Chris
Hoofnagle, em um artigo do ScienceBlogs de 2007 (2). FLICC quer dizer:
F: Fake experts (Falsos especialistas)
L: Logical fallacies (Falácias lógicas)
I: Impossible expectations (Expectativas irreais)
C: Cherry picking (Seleção a dedo ou “catação de piolho”)
C: Conspiracy theories (Teorias da conspiração)
Encontramos as técnicas de FLICC o tempo todo, mas aqui vamos ver
três casos comuns de negacionismo e aplicar cada técnica de FLICC à
ciência do clima, às culturas transgênicas e às vacinas. Comecemos
pelos falsos especialistas.
F: Falsos especialistas
A primeira coisa que sai da boca dos negacionistas é que algum
“cientista importante” concorda com eles. Um exemplo é o "Architects
& Engineers for 9/11 Truth", um grupo online com mais de 3 mil
pessoas que acredita que o atentado de 11 de setembro foi “trabalho
interno”. No entanto, analisando a lista de membros, dá para contar
nos dedos os que realmente são especialistas. Os demais são
simplesmente pessoas que assinaram a petição, sem qualquer
credencial. Ainda assim, esse grupo se apresenta ao públic o como
sendo formado por mais de 3 mil especialistas para quem, do ponto de
vista da engenharia, não haveria como as Torres Gêmeas terem
desabado a partir da colisão de dois aviões e, portanto, o que ocorreu
foi uma demolição controlada. Falsos especialistas estão por toda
parte, quase sempre se apresentam como experts, mas na verdade não
têm experiência nenhuma no assunto.
Geralmente, os falsos especialistas negacionistas atacam os
verdadeiros especialistas, a quem acusam de ser comprados ou
vendidos para determinados grupos ou empresas:

Negacionistas do aquecimento global: cientistas chamados para


contestar a tese de que o aquecimento global é causado pela atividade
humana quase nunca são climatologistas; o mais comum é que sejam
físicos ou engenheiros de outras áreas. Mesmo assim, ostentam suas
credenciais, por mais irrelevantes que sejam.
Negacionistas de transgênicos: Se você olhar aqueles mais vocais entre
os engajados em movimentos contra a agricultura moderna, raramente
vai encontrar agrônomos ou biólogos moleculares. Geralmente são
escritores, filósofos ou professores de outras áreas, quase sempre
alinhados com o movimento em favor dos orgânicos. Mas basta vestir
um jaleco branco e brandir um diploma que você consegue convencer
os leigos a embarcar na sua conversa.
Negacionistas de vacinas: Vale a pena destacar que pouquíssimos
ativistas antivacinas são médicos de verdade. Muitos deles se intitulam
médicos, mas geralmente estão em profissões como quiropraxia e
naturopatia. Mesmo quando pertencem àquela porcentagem
minúscula de médicos antivacina, representam uma fração irrelevante
da profissão e contrariam o que todos os outros afirmam.

L: Falácias lógicas
Estas são a ferramentas preferidas dos pseudocientistas, mas também
são usadas praticamente por todo o mundo o tempo todo, em todas as
esferas da vida. Falácias lógicas incluem ataques ad hominem (ataca -se
o oponente enquanto pessoa, não seu argumento), falácia do
espantalho (quando se atribui uma posição distorcida ao oponente, o
que torna mais fácil refutá-la), falácia da bola de neve (em que se parte
de uma proposição à qual encadeiam-se outras, até chegar a uma
conclusão absurda), chamarizes e distrações (quando se introduz outro
assunto para desviar a atenção do primeiro), falsas dicotomias, e
centenas de formas logicamente inválidas para defender um
argumento.
As falácias lógicas apelam à tendência do cérebro de pensar a partir de
relatos anedóticos (casos isolados, sem validade científica) e não
logicamente. Por isso, muitos argumentos logicamente falaciosos soam
convincentes. O negacionista de ciência depende disso, porque não
tem a ciência do seu lado, ao contrário do verdadeiro cientista que
segue a evidência e, portanto, não precisa recorrer a argumentos
logicamente inválidos.
Negacionistas do aquecimento global: Uma distração comum, usada
por negacionistas do clima, é alegar que cientistas nem sequer
conseguem prever como vai estar o tempo amanhã, então como
podemos confiar no que dizem sobre o clima? Este é um chamariz –
uma distração irrelevante – porque clima e tempo não têm nada a ver
um com o outro. Pense no clima como o que você tem aplicado em
poupança e investimentos, e no tempo como o dinheiro que você tem
na carteira neste momento.
Negacionistas de transgênicos: Desde que a Monsanto se tornou a face
mais visível das culturas transgênicas, o nome da empresa virou uma
espécie de palavrão para denegrir a biotecnologia. Ao amarrar a
tecnologia a todas as supostas ou imaginadas transgressões éticas e
legais da empresa, os negacionistas recorrem a várias falácias:
chamariz, ad hominem, a non-sequitur (em que a conclusão não
decorre das premissas) e a que gosto de chamar de argumentum ad
Monsantium (3) (algo como “Então, você ama a Monsanto?”).
Negacionistas de vacinas: Uma falácia da bola de neve que ouvimos
frequentemente é que se o governo pode obrigar você a vacinar seus
filhos, então isso levará a um controle total do governo sobre o seu
corpo e todos nós seremos microchipados, etc, etc, etc.
I: Expectativas impossíveis
Outro estratagema dos negacionistas é exigir ,da ciência disponível,
padrões impossíveis ou certezas absolutas, com a implicação de que se
ela não alcança esses padrões, ela é, portanto, totalmente inválida e
deve ser desconsiderada, em favor dos “fatos” preferidos pelo
negacionista.
Isso é como dizer que, se a roupa de um bombeiro não é 100% à prova
de fogo, sob quaisquer condições imagináveis, ela deve ser descartada,
e o melhor é substituí-la por uma camiseta comum borrifada com óleos
essenciais.
Nenhuma descoberta da ciência é 100% comprovada, e é nisso que
reside a força do método científico. Toda descoberta permanece aberta
a novas informações e aperfeiçoamentos, e é assim que a ciência se
torna melhor e mais forte. Por definição, o processo científico nunca
está completo: portanto, não há um padrão impossível a ser alcançado.
É preciso ter cuidado para manter as expectativas dentro do razoável e
do racional, não no impossível.
Negacionistas do aquecimento global: Tudo que se requer aqui é
mostrar que, este ano, tivemos alguns dias mais frios do que no ano
passado. Isso porque, se partirmos da expectativa de que o
aquecimento global é verdade, então os dias estarão sempre ma is
quentes, ano após ano. Não é assim que o aquecimento global
funciona, mas é fácil usar essa expectativa impossível para “mostrar”
que a afirmação e que um aquecimento global é falsa.
Negacionistas de transgênicos: Podemos dizer, com absoluta certeza,
que ninguém jamais vai ter uma reação alérgica a um produto
transgênico? É claro que não podemos prever uma coisa dessas, mesmo
depois de dezenas de trilhões de refeições com transgênicos terem sido
consumidas sem nenhum problema de saúde registrado. É uma
expectativa impossível.
Negacionistas de vacinas: As vacinas são positivamente e
absolutamente 100% seguras? Não, e como uma porcentagem mínima
de pessoas sofre reação adversa, há quem argumente que devemos
jogar todas fora.
C: Seleção a dedo ou “catação de piolho”
É o processo de selecionar apenas os dados que sustentam seu achado
preferido, descartando todos os dados que o contestam. Por exemplo,
o defensor de cosmologias alternativas que discute apenas as
conclusões de um ou dois malucos, e ignora completamente o trabalho
vasto e consistente que sustenta o modelo padrão do universo. Para
um público inocente, pode até parecer que não existem outros dados
exceto os daqueles dos malucos. A catação de piolho quase sempre
exclui informações que contradizem o que se deseja demonstrar,
enquanto a boa ciência se empenha para levar em conta a maior
quantidade possível de informações desse tipo, já que o trabalho de
testar e descartar hipóteses é essencial no método científico.
Negacionistas do aquecimento global: é fácil escolher a dedo dados
que sugerem ou que as temperaturas globais estão caindo, ou se
mantêm constantes. Tudo que se precisa é escolher uma região
específica, num período específico. Praticamente todos os vídeos do
YouTube que negam o aquecimento global apelam para esse recurso.
Negacionistas de transgênicos: Quando a Academia Nacional de
Ciências publicou, em 2016, um estudo importante mostrando que as
culturas transgênicas tiveram menos perdas causadas por insetos do
que as convencionais, os oponentes ignoraram esse fato e destacaram
que alguns insetos desenvolveram resistência a essas plantas. A
conclusão falsa é que os transgênicos tornaram o problema dos insetos
mais grave.
Negacionistas de vacinas: É fácil selecionar os poucos casos de reações
adversas a vacinas e apresentá-los como um provável efeito da
vacinação, sugerindo falsamente que a imunização é proibitivamente
perigosa.

C: Teorias da Conspiração
Quando você ouve uma teoria da conspiração é praticamente certo que
está dando ouvidos a um negacionista da ciência. “Só gente que é paga
pode discordar disso!” Negacionistas da ciência costumam usar
palavras com conotação religiosa, como dogma ou ortodoxia, para
descrever descobertas de que não gostam. “A ciência não gosta de ver
seus dogmas contestados”, alegam, como se pesquisadores fossem
pagos apenas para confirmar os cânones enraizados em seu grupo
fechado. Eles conspiram – como dizem os negacionistas – para impedir
a entrada de recém-chegados com grandes descobertas nesse clube
fechado, porque isso ameaçaria os recursos que recebem para suas
pesquisas. Porque, obviamente, fundações e investidores financiam
pesquisas para que nada de novo seja descoberto ou aprendido e vão
continuar assinado cheques enquanto tiverem como retorno apenas o
bom e velho dogma. Nossa, faz muito sentido, não é?
Negacionistas do aquecimento global: Uma das teorias da conspiração
mais familiares de hoje é dizer que os cientistas do clima estão
deliberadamente publicando dados falsos, porque um ser misterioso
está enchendo seus bolsos com um interminável fluxo de dinheiro,
vindo do setor de energia renovável.
Negacionistas de transgênicos: Uma alegação comum é a de que
produtores de sementes transgênicas conspiram para assumir o
controle de todo estoque de alimentos do planeta, para dominar o
mundo.
Negacionistas de vacinas: é claro que médicos e as Big Pharma estão
mancomunados para administrar vacinas perigosas e manter todo
mundo doente, para ter mais lucro.
Então, este é o FLICC aplicado a três pseudociências bem populares.
Provavelmente, nada aqui é novidade para quem acompanha os
podcasts do Skeptoid, e certamente ninguém fica surpreso ao saber
que negacionistas da ciência se apoiam todos nas mesma técnicas, não
importa qual ciência estejam negando. E agora que sabemos
exatamente o quê procurar, podemos reagir imediatamente quando
percebermos que estamos sendo FLICCados por um negacionista da
ciência.

Brian Dunning é escritor e comunicador de ciência, criador do podcast


Skeptoid e diretor executivo da Skeptoid Media. Este artigo foi
publicado originalmente em Skeptoid, e traduzido com permissão do
autor. O original pode ser encontrado aqui.

NOTAS

1. Diethelm, P., McKee, M. "Denialism: what is it and how should


scientists respond?" European Journal of Public Health. 20 Jan.
2009, Volume 19, Issue 1: 2-4.
2. Hoofnagle, M., Hoofnagle, C. "What Is Denialism." Denialism
Blog. ScienceBlogs, 7 Jun. 2007. Web. 28 Aug.
2019. https://web.archive.org/web/20070602173017/https://sc
ienceblogs.com/denialism/about.php

3. Dunning, B. "Argumentum ad Monsantium." SkepticBlog. The


Skeptics Society, 8 Nov. 2012. Web. 25 Aug. 2019.
<https://www.skepticblog.org/2012/11/08/argumentum-ad-
monsantium/>

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