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Atila Iamarino
Os céticos da Covid-19
Jardiel Carvalho/Folhapress
4-5 minutos

A pandemia é difícil de engolir. Para alguns, o isolamento social é mais intragável. É


difícil convencer alguém de algo quando seu salário depende de não entender aquilo, já
dizia Upton Sinclair. Imagine então quando a saúde é colocada à frente da economia.

A Covid-19 chegou de supetão, mas com a quarentena reduzindo o avanço da


pandemia, negadores da realidade ganharam tempo de se organizar. Surgem os
primeiros céticos da Covid-19, da quarentena, do lockdown ou mesmo das mortes.

Poucos questionariam usar o antibiótico azitromicina para faringite. Já para o tratamento


da Covid, não faltam opiniões, principalmente entre os que apresentam tratamentos não
como um objetivo que é procurado, mas como uma alternativa certa à necessidade de
quarentena. Onde a ciência ainda não é certa ou é certa mas contrária, substituem-na por
opiniões que transformam fatos em pontos de vista abertos à debate. Consensos viram
ideias identitárias.

Países de todo espectro político adotaram isolamento sério, da direita israelense ao


partido comunista vietnamita. Mas nada disso importa para quem precisa invalidar essas
medidas e mandar as pessoas para rua e pinta o isolamento da cor política que mais
desagradar a audiência.

Dizem que um sapo na água esquentando devagar não percebe quando ela ferve e acaba
cozido. A fábula corporativa sobre mudança gradual ignora o fato de que sapos
registram bem a temperatura ambiente e vão tentar pular da panela quando ela
ultrapassa o que toleram. Já humanos têm um órgão especializado em criar justificativas
racionais para decisões emocionais e vão fazer o possível para convencer o próximo —
e, se bobear, até o sapo— de que o planeta, digo, a panela não está aquecendo.

Quando a ciência propôs que garganta inflamada seria causada por bactérias, houve
quem questionasse. E não foram cientistas, mas, sim, comerciantes e industriais que
usavam políticos e imprensa para negar que as quarentenas que os davam tanto prejuízo
nos protegeriam de doenças como a febre amarela.

No fim do mesmo século, Thomas Edison foi mais discreto para desacreditar a ciência
desfavorável à corrente elétrica contínua de sua empresa. Contratou o engenheiro
elétrico Harold Brown para se passar por um especialista interessado no bem-estar das
pessoas que escrevia para jornais condenando a corrente alternada dos concorrentes.
Métodos parecidos viraram modelo de negócios no questionamento da relação entre
cigarro e câncer por médicos e especialistas contratados pela publicidade de empresas
de tabaco. Os mesmos especialistas contratados questionavam a relação entre poluição e
chuva ácida ou entre o uso de combustíveis fósseis e o aquecimento global, como o
livro “Merchants of Doubt” conta.

Recentemente, essa técnica foi transposta para a internet e deu origem aos 4 D’s da
propaganda feita para soterrar a verdade onde a censura não é possível: Desqualificar os
críticos, como este biólogo aqui, atacado por apresentar a realidade; Distorcer os fatos,
como a efetividade óbvia da quarentena na Europa; Distrair do problema, com
tratamentos que não funcionam ou isolamento vertical —tão efetivo quanto escolher um
canto da piscina para fazer xixi, como bem disseram no Twitter; e Desanimar a
audiência com a insistência em cada ponto desse usando “especialistas”, médicos ou
influenciadores do ódio que aceitam milhares de mortes (dos outros) como necessárias.

É o tradicional negacionismo da ciência, desta vez feito com as mãos sujas de sangue.

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