Você está na página 1de 30

2

O QUE É O NEGACIONISMO?

D
epois de passar algum tempo com terraplanistas, antivacinas, defen-
sores do design inteligente e negacionistas das alterações climáticas,
começamos a pressentir um padrão. As suas estratégias são sempre
as mesmas.70 Embora o conteúdo dos seus sistemas de crenças possa dife-
rir, todo o negacionismo parece alicerçado nos mesmos poucos erros de
argumentação humana. Isto tem sido estudado por investigadores como
Mark e Chris Hoofnagle, Pascal Diethelm e Martin McKee, John Cook e
Stephan Lewandowsky, que chegaram a um consenso em cinco fatores
comuns:71

1. Escolha das evidências que lhes convêm


2. Crença em teorias da conspiração
3. Confiança em falsos especialistas (e depreciação dos verda-
deiros)
4. Cometimento de erros lógicos
5. Estabelecimento de expetativas impossíveis para o que a
ciência consegue alcançar

59
Juntos, estes fatores formam um modelo comum para os negacio-
nistas criarem uma contranarrativa em qualquer tópico em que desejem
desafiar o consenso científico. Os irmãos Hoofnagle definem o negacio-
nismo como o «uso de táticas retóricas para dar a aparência de argumento
ou debate legítimo, quando na verdade ele não existe».72 Porque haveria
alguém de querer fazer isto? Talvez por interesses próprios. Ou ideologia.
Ou por conformidade com um conjunto de expetativas políticas. Existem
muitas razões para alguém poder desejar criar — ou talvez ser levado por
— uma falsa realidade, quando o consenso científico desafia aquilo em
que preferem acreditar. Já lá chegaremos. Primeiro, gostaria de examinar
cada um dos cinco erros acima em mais pormenor, para melhor com-
preendermos como o negacionismo é um problema para o julgamento
empírico. Mais tarde, falarei um pouco da razão para haver um guião co-
mum subjacente… e o que podemos fazer quanto a isso.
Claro que a confiança em falsos especialistas, a argumentação iló-
gica e a insistência em que a ciência tem de ser perfeita parecem coisas
muito simples, não parecem? É fácil ver o que existe de errado com estes
aspetos. Mas que dizer do problema das evidências escolhidas a dedo?
Ou da crença em teorias da conspiração? Estas chegam ao âmago do jul-
gamento científico, que supostamente deve estar embebido num esforço
de boa-fé para testar cada teoria em confronto com a realidade, em vez
de simplesmente se tentar confirmar aquilo que alguém já quer à partida
acreditar, ou chegar-se a uma conclusão sem qualquer evidência de apoio.
Os cientistas querem descobrir a verdade, não negá-la quando ela não se
conforma às suas expetativas. Se um ideólogo está completamente com-
prometido com uma teoria — rejeitando qualquer evidência contra ela e
precisando de poucas a seu favor —, como se aprenderá de experiências
futuras?
Provavelmente não surpreenderá saber que a estratégia de argumen-
tação usada pelos negacionistas se enraíza firmemente no desconheci-
mento de como a ciência funciona realmente. No meu livro The Scientific
Attitude, revejo detalhadamente algumas destas conceções erradas. Não
as vou repetir aqui, exceto para dizer que uma das características in-
trínsecas da ciência é a forma como responde à evidência. Os cientistas
preocupam-se com a evidência e estão dispostos a mudar de ideias com

60
base em nova evidência. É por isso que a ciência não pode oferecer pro-
vas, mas deve em vez disso confiar na ideia de que a crença é justificada
quando uma teoria tem evidências suficientemente credíveis e sobreviveu
a uma rigorosa testagem.73 Com a ideologia ou o dogma, é toda uma outra
história.

Os elementos do negacionismo

Como vimos no primeiro capítulo, os cinco tropos do negacionismo re-


forçam-se uns aos outros. Nenhum negacionista faz uma pausa para usar
as táticas uma a uma, mas, em vez disso, passa fluidamente da teoria da
conspiração para a manobra de diversão, da rejeição dos especialistas ou
das evidências para o fabrico de uma intrincada rede de dúvida. Ainda
assim, vale a pena analisar cada um dos cinco tropos a nível individual.
Isto não só vai estabelecer que cada um destes erros pode ser encontrado
no único exemplo de negacionismo que explorámos até agora — a Terra
Plana —, mas lançar o alicerce para os reconhecer nos outros exemplos de
negacionismo de que falaremos mais tarde: alterações climáticas, organis-
mos geneticamente modificados e coronavírus. Como afirmado, o nosso
objetivo aqui é mostrar que todo o negacionismo usa um padrão comum.
Mais tarde, discutiremos a razão.

Escolha das evidências


Se alguém quer alegar que a sua teoria pseudocientífica tem mérito cien-
tífico, escolher as evidências a seu favor pode parecer uma estratégia
atraente. Dizer-se que se acredita numa hipótese marginal unicamente
com base na fé não soa, simplesmente, muito científico. Dizer-se que se
tem verdadeiras evidências soa melhor. No entanto, para estes, é muito
importante escolher as evidências: é preciso ter apenas em conta aquelas
que apoiam as suas hipóteses e ignorar ou contestar as outras, caso con-
trário a sua teoria seria refutada.
Vimos esta tática a ser usada pelos terraplanistas quando eles nota-
ram que se pode por vezes ver a cidade de Chicago a setenta e dois quiló-
metros no lago Michigan. O que eles não mencionaram é que, em muitos

61
dias, a cidade não é visível. Seguramente que o primeiro fenómeno exige
uma explicação. Mas também o segundo. Quando se tenta explorar isto,
porém, os terraplanistas deixam bem claro que apenas lhes interessa o fac-
to de Chicago ser por vezes visível (o que é consistente com a sua teoria de
que a Terra é plana), e não estão nada curiosos em saber porque por vezes
não é visível (o que a sua teoria não consegue explicar). De facto, como
dizemos, eles rejeitam como falsa qualquer teoria científica credível que
explique ao mesmo tempo porque a cidade umas vezes é visível e outras
não, a favor da sua própria teoria, que não explica a razão por que a cidade
não é sempre visível.
Isto é um perfeito exemplo do tipo de viés de seleção que existe no
âmago desta escolha cuidadosa das evidências, que está profundamente
enraizado num frequente erro cognitivo chamado viés de confirmação.74
Com o viés de confirmação, estamos motivados a procurar factos que
sejam consistentes com o que preferimos acreditar e demasiado prontos
para ignorar quaisquer factos que não o sejam. Os que rejeitam as altera-
ções climáticas, por exemplo, insistem por vezes que a temperatura global
não subiu durante os dezassete anos entre 1998 e 2015, apenas porque
escolheram 1998 como ano de base (que teve uma temperatura artificial-
mente alta devido ao El Niño).75
O problema aqui é simplesmente de má-fé. De não procurar provas
para testar uma proposta, mas apenas para a confirmar. Mas não é assim
que a ciência funciona. Os cientistas não procuram apenas confirmação
para o que esperam que seja verdade; eles concebem testes que possam
mostrar se a sua hipótese pode ser falsa.76 Embora as experiências cruciais
sejam poucas e muito espaçadas, é a atitude corrupta de tentar confirmar
a hipótese, em vez de a testar rigorosamente, que revela o problema da
escolha enviesada das evidências. Com esta atitude, estamos mais propen-
sos a apoiar uma hipótese que há muito teria sido refutada, se tivéssemos
utilizado todas as evidências disponíveis.
Ainda assim, isto não detém a maioria dos negacionistas, que insis-
tem que os cientistas são preconceituosos só porque não detêm todo o
seu trabalho para considerar todos os factos criteriosamente seleciona-
dos pelos não-cientistas. Na FEIC 2018, encontrei numerosas pessoas que
julgavam ter o direito de ir bater à porta da ciência e dizer: «Vejam estes

62
cem pontos que a ciência não consegue explicar!» E depois, mesmo se eu
tivesse paciência para tentar fazê-lo e percorresse a lista, dando uma ex-
plicação científica para noventa e nove delas, o típico terraplanista diria:
«A-ha! Então e esta última?» O que é o mesmo que dizer que eles são ines-
crupulosamente seletivos. E não se preocupam com a refutação.77

Teorias da conspiração
A crença em teorias da conspiração é uma das mais tóxicas formas de
argumentação humana.78 Isto não significa que não existam verdadei-
ras conspirações. Watergate, o conluio das tabaqueiras para ofuscar a li-
gação entre o fumo de cigarros e o cancro e o programa da Agência de
Segurança Nacional americana da era George W. Bush para espiar secre-
tamente utilizadores civis da Internet são exemplos de conspirações da
vida real, que foram descobertas através de evidências e expostas após
investigação exaustiva.79 Em contraste com isto, o que torna a argumen-
tação da teoria da conspiração tão odiosa é o facto de, independentemente
de existirem evidências ou não, uma teoria ser declarada como uma ver-
dade, o que a põe acima do alcance da testagem ou refutação da parte
de cientistas e outros. A distinção, por conseguinte, deveria ser entre as
verdadeiras conspirações (para as quais tem de haver algumas evidências)
e as teorias da conspiração (que normalmente não apresentam qualquer
evidência credível).80
Podemos definir uma teoria da conspiração como uma «explicação
que faz referência a forças ocultas e malevolentes em busca de algum ob-
jetivo nefasto».81 Devemos acrescentar o pormenor crucial de que estas
tendem a ser «altamente especulativas [e] destituídas de qualquer base
em evidências. São puras conjeturas, sem qualquer base na realidade».82
Quando falamos do perigo das teorias da conspiração para a argumen-
tação científica, o nosso foco deveria ser, portanto, na sua natureza não
empírica, o que significa que nem sequer podem ser testadas. O proble-
ma das teorias da conspiração não é normalmente o facto de já terem
sido refutadas (embora muitas já o tenham sido), mas que milhares de
pessoas crédulas continuem a acreditar nelas mesmo depois de terem sido
desmascaradas.83
Quando se sonda um negacionista, o mais provável é encontrar

63
nele um teórico da conspiração. Tristemente, as teorias da conspiração
parecem ser bastante comuns entre a população geral. Num estudo re-
cente de Eric Oliver e Thomas Wood, descobriu-se que 50 por cento dos
Norte-americanos acreditavam pelo menos em uma teoria da conspi-
ração.84 Isto incluía as teorias a respeito do 11 de Setembro e a certidão
de nascimento de Obama, mas também a ideia de que a Food and Drug
Administration (FDA) está a reter deliberadamente a cura para o cancro
e que a Reserva Federal orquestrou intencionalmente a recessão de 2008.
(Notavelmente, a conspiração para o assassinato de JFK era tão vastamen-
te apoiada que foi excluída desta pesquisa.)85 Outras teorias da conspira-
ção comuns — que percorrem todo o espectro da popularidade e da ex-
travagância — são que os «rastos químicos» deixados pelos aviões fazem
parte de um programa secreto do governo para controlar a mente dos
cidadãos, que os tiroteios nas escolas de Sandy Hook e Parkland foram
operações orquestradas para parecerem ser realizadas por falsos inimigos,
que o governo está a ocultar a verdade sobre os OVNI e, claro, os mais «re-
lacionados com a ciência», que a Terra é plana, que o aquecimento global
é uma fraude, que algumas empresas estão a criar intencionalmente OGM
e que a COVID-19 é causada por torres de telemóveis 5G.86
Na sua forma mais básica, uma teoria da conspiração é uma crença
infundada em que qualquer coisa tremendamente improvável é, no entan-
to, verdade, mas só não nos apercebemos disso porque existe uma cam-
panha coordenada levada a cabo por pessoas poderosas para a ocultar.
Alguns têm defendido que as teorias da conspiração são especialmente
prevalecentes nos nossos tempos de grande agitação social. E, claro, isto
explica porque não são exclusivas dos tempos modernos.
Desde os tempos do grande incêndio de Roma em 64 da nossa era
que vemos teorias da conspiração em funcionamento, quando os cidadãos
de Roma ficaram desconfiados por causa de um incêndio que, durante
uma semana, consumiu quase toda a cidade — enquanto o imperador
Nero estava convenientemente fora da cidade. Começaram a crescer os
rumores de que tinha sido Nero que o iniciara para poder reconstruir a
cidade ao seu próprio gosto. Embora não existam evidências de que isto
seja verdade (nem da lenda de que Nero cantou enquanto a cidade ardia),
parece que o imperador ficou tão zangado com a acusação que criou a

64
sua própria teoria da conspiração, dizendo que, de facto, tinham sido os
cristãos os responsáveis pelo acontecido, o que levou à prevalência de os
queimar vivos.87
Aqui se compreende de imediato a razão por que as teorias da cons-
piração são um anátema para o trabalho científico. Na ciência, testamos as
nossas crenças em confronto com a realidade procurando evidências que
a refutem. Se apenas encontrarmos evidências que se ajustam à nossa teo-
ria, ela pode ser verdadeira. Mas se encontramos algumas evidências que
a contrariem, ela tem de ser posta de parte. Com as teorias da conspiração,
porém, os seus defensores não mudam de ideias mesmo perante evidências
revogatórias (e nem sequer parecem exigir muitas evidências, para além
do seu instinto, para decidirem que as suas ideias são verdadeiras). Em
vez disso, os teóricos da conspiração tendem a usar a conspiração em si
como forma de explicar qualquer falta de evidências (porque os espertos
dos conspiradores têm de as esconder) ou a presença de evidências que a
refutem (porque os cúmplices devem estar a forjá-las). Assim, a falta de
evidências a favor de uma teoria da conspiração é em parte explicada pela
conspiração em si, o que significa que os seus adeptos podem usar tanto a
existência como a falta de evidências a seu favor.
Todos os teóricos da conspiração são aquilo a que chamo «céticos de
café». Embora professem seguir os mais altos padrões de argumentação,
fazem-no inconsistentemente. Os teóricos da conspiração são famosos
pelos seus duplos critérios de evidências: insistem num padrão absurdo
de prova no que diz respeito a algo em que não querem acreditar. Já vimos
a fraqueza deste tipo de argumentação seletiva com a escolha das evidên-
cias que lhes convêm. Se se juntar a isto uma predileção pelo tipo de des-
confiança paranoica subjacente à maior parte do pensamento da teoria da
conspiração, estamos perante um quase impenetrável muro de dúvidas.
Quando um teórico da conspiração se entrega às suas suspeitas a respeito
dos alegados perigos das vacinas, rastos químicos ou o flúor — mas de-
pois vê qualquer informação contrária ou refutatória como uma prova de
encobrimento —, ele tranca-se numa caixa hermética de dúvida de que
nenhuma quantidade de factos o consegue fazer sair. Apesar de todos os
seus protestos de ceticismo, a maior parte dos teóricos da conspiração são,
de facto, bastante ingénuos.

65
A crença na Terra Plana é um ótimo exemplo disto. Vez após vez, na
FEIC 2018, ouvi apresentadores dizerem que quaisquer evidências cientí-
ficas a favor da curvatura da Terra foram forjadas. «Não houve aterragem
na Lua; isso aconteceu num cenário de Hollywood.» «Todos os pilotos
de avião e os astronautas estão por dentro da fraude.» «Aquelas fotos do
espaço são manipuladas com Photoshop.» Não só as evidências contrárias
destas alegações não fizeram com que os terraplanistas desistissem das
suas crenças como foram usadas como mais evidências de uma conspira-
ção! E, claro, dizer que o Diabo está por detrás de toda a conspiração sobre
a Terra Plana… podia haver uma maior teoria da conspiração? De facto, a
maioria dos terraplanistas teria de admitir isto.
Uma cadeia de argumentos semelhante é muitas vezes usada na nega-
ção das alterações climáticas. O presidente Trump defende há muito que
o aquecimento global é uma «fraude chinesa» com o objetivo de minar
a competitividade da indústria americana.88 Outros têm alegado que os
cientistas estão a falsificar os dados ou que estão a tirar proveito do di-
nheiro e da atenção dada ao seu trabalho. Alguns arrazoam que o complô
é ainda mais nefando — que as alterações climáticas estão a ser usadas
como um pretexto para o governo poder exercer mais regulamentação ou
domínio sobre a economia mundial. Quaisquer evidências apresentadas
para rejeitar estas alegações são explicadas como parte de uma conspira-
ção: foram falsificadas, enviesadas ou pelo menos incompletas, e a verdade
está a ser ocultada. Não há qualquer quantidade de evidências que possa
convencer um negacionista extremo porque ele desconfia das pessoas que
reúnem essas evidências.89
Então, qual é a explicação? Porque é que algumas pessoas (como os
negacionistas) se envolvem em teorias da conspiração enquanto outras
não?90 Têm surgido várias teorias psicológicas, envolvendo fatores como
uma autoconfiança exacerbada, narcisismo ou baixa autoestima.91 Um
consenso mais popular parece ser o de que as teorias da conspiração são
um mecanismo usado por algumas pessoas para lidar com sentimentos de
ansiedade e perda de controlo perante grandes eventos perturbadores. O
cérebro humano não gosta de eventos fortuitos porque não aprendemos
com eles e, por conseguinte, não podemos fazer planos a seu respeito.
Quando nos sentimos impotentes (devido à falta de compreensão, à escala

66
de um evento, ao seu impacto pessoal sobre nós ou à nossa posição social),
podemos sentir-nos atraídos para explicações que identifiquem um
inimigo que podemos confrontar. Isto não é um processo racional, e os
investigadores que têm estudado teorias de conspiração observaram que
aqueles que tendem a «seguir os seus instintos» têm mais propensão para
mergulhar em teorias da conspiração. É por isso que a ignorância tem uma
alta correlação com a crença em teorias da conspiração. Quando somos
menos capazes de compreender uma coisa por causa das nossas faculdades
analíticas, podemos sentir-nos mais ameaçados por essa coisa.92
Existe também o facto de muitos se sentirem atraídos pela ideia de um
«conhecimento oculto», porque é bom para o seu ego pensarem que são
das poucas pessoas que compreendem algo que os outros não conhecem.93
Num dos mais fascinantes estudos do pensamento subjacente à teoria da
conspiração, Roland Imhoff inventou uma teoria da conspiração fictícia e
depois mediu o número de sujeitos que acreditavam nela, dependendo do
contexto epistemológico em que era apresentada. A conspiração de Imhoff
era um disparate: ele disse que havia um fabricante alemão de alarmes de
fumo que emitia sons agudos que faziam as pessoas sentir-se nauseadas e
deprimidas. Alegava que o fabricante sabia do problema, mas se recusava
a resolvê-lo. Quando os sujeitos pensavam que esta era uma informação
secreta, ficavam muito mais inclinados a acreditar nela. Quando Imhoff a
apresentava como um facto de conhecimento comum, era menos provável
que as pessoas pensassem que era verdade.94 Não podemos deixar de
pensar naqueles seiscentos iniciados no salão em Denver. Entre os seis mil
milhões de pessoas no planeta, eles eram a autoproclamada elite da elite:
os poucos que sabiam a «verdade» sobre a forma da Terra e eram agora
exortados a despertar os outros.
Qual é o mal das teorias da conspiração? Algumas podem parecer be-
nignas, mas note-se que o fator mais influente na previsão da crença numa
teoria da conspiração é a crença numa outra. E nem todas elas serão ino-
fensivas. O que dizer do antivacinas que pensa que o governo está a ocul-
tar dados sobre o timerosal e cujo filho contagia outro com sarampo? Ou
a crença em que as alterações climáticas antropogénicas (causadas pelo
humano) não passam de uma fraude, fazendo com que os nossos líderes
se sintam justificados quando adiam decisões? À medida que se escoa o

67
tempo para evitar o desastre, as consequências humanas desta teoria da
conspiração podem acabar por se revelar incalculáveis.

Confiança em falsos especialistas


(e depreciação dos verdadeiros)
Uma das características do negacionismo é a ideia de que, até uma teoria
ser cem por cento «provada» (coisa que nunca nenhuma teoria pode ser),
tudo está aberto a debate. Com isto pretende-se implicar que, na ausência
de consenso total, é justificado preferir a opinião de alguns peritos em
detrimento de outros. E adivinhe quais os peritos que os negacionistas
vão escolher?
Como temos visto, o objetivo do negacionismo é criar uma contra-
narrativa que desafie o consenso científico em temas que chocam com
a sua ideologia preferida. Mesmo que todos ou a maioria dos cientistas
concordem que o fumo de cigarros provoca cancro, ou que as alterações
climáticas são reais, não é possível semear alguma dúvida?95 Quer isto
seja conseguido cozinhando excêntricas teorias (ou teóricos) quer desco-
brindo-as por aí, não importa. O importante não é fazer os verdadeiros
cientistas mudarem de ideias, mas, em vez disso, procurar a atenção do
público de informação científica, que muitas vezes não sabe distinguir en-
tre um especialista e outro. O objetivo é fazer parecer que existe debate,
mesmo quando ele não existe. Quando a ciência parece equívoca, ou um
resultado parece controverso, os negacionistas vencem.
No seu livro The Death of Expertise, Tom Nichols delineia o problema
de se tratar assuntos factuais e empíricos como se estivessem abertos ao
tipo de pressão partidária e discussões polarizadas que caracterizam as
nossas diferenças políticas, que se «enraízam no conflito, por vezes con-
duzidas como desacordos respeitosos mas mais frequentemente como um
jogo de hóquei sem árbitros e um convite aberto aos espectadores para ar-
remeterem sobre o gelo».96 É exatamente isto que os negacionistas tentam
fazer com assuntos científicos: transformá-los em assuntos ideológicos.97
Isto é ainda mais eficaz se se puder mostrar que os «especialistas» têm
preconceitos. Se se descobre que cientistas que clamam que as alterações
climáticas são reais (por exemplo) são liberais, ou com formação
universitária, ou financiados por alguma instituição, isso não lança

68
dúvidas sobre se podemos confiar nos seus motivos e, por conseguinte,
também nas suas conclusões? A populista desconfiança dos perigos que
Nichols discute abre aos negacionistas e outros ideólogos uma porta para
promoverem a sua própria espécie de peritos que — mesmo que se queira
argumentar que também eles podem ter preconceitos — estão pelo menos
a sustentar o outro lado numa controvérsia científica em aberto, o que
resulta num certo tipo de equilíbrio que parece justo aos desinformados
outsiders que só querem que a ciência seja «objetiva». Mas isto, claro,
conduz a um género de equivalência falsa, em que os negacionistas se
sentem justificados para confiar nos seus próprios «especialistas» —
mesmo que eles não tenham qualquer formação especializada — contra
aqueles que sentem ter preconceitos contra eles.
Conforme observado, este tipo de argumentação estava bem eviden-
te na FEIC 2018. Quando Robert Skiba subiu ao palco e disse que não
tinha qualquer formação científica mas que tinha uma bata branca, o que
mais seria isto senão uma tentativa de favorecer uma espécie de «peri-
tos» e denegrir outros, cuja única mostra de autoridade estava na forma
como se vestiam. O que conseguia com isto? A razão declarada é que o
«outro lado» consiste em especialistas que são todos preconceituosos ou
«cúmplices» de um ponto de vista particular; não podemos confiar neles
porque foram pagos ou corrompidos para não dizerem a verdade. Existe
um profundo sentido de vitimização por detrás da maior parte do nega-
cionismo, quando os seus adeptos se queixam de que os ditos cientistas
«verdadeiros» não os levam a sério nem tomam em conta os dados dos
seus próprios peritos.
Claro que as teorias da conspiração desempenham aqui um grande
papel, tal como a tática de escolher apenas as evidências que mais convêm.
Os cinco tropos do negacionismo funcionam em conjunto, fazendo com
que a confiança em falsos peritos e a rejeição dos verdadeiros especialistas
não sejam meramente características típicas do negacionismo, mas o
resultado inevitável da crença em teorias da conspiração, as expetativas
irrealistas para a ciência e todos os outros tropos. É um ciclo que se
alimenta a si próprio. Os falsos peritos fornecem uma «evidência»
escolhida a dedo (ou simplesmente inventada) que é usada para questionar
o consenso da argumentação científica. Quando esta evidência não é

69
levada a sério, podem crescer as desconfianças e surge a argumentação
tribal. As discussões científicas começam a parecer-se com as políticas,
numa guerra de «nós contra eles». Uma vez que a outra equipa tenha sido
suficientemente demonizada, é fácil procurar pistas que — para uma certa
mentalidade — podem sugerir uma conspiração, o que justifica ainda
mais a confiança nuns peritos em detrimento de quaisquer outros.
Tudo isto é erigido em torno da confiança — ou da falta dela —, tor-
nando a avaliação desapaixonada e objetiva das evidências para se resol-
ver as disputas científicas uma impossibilidade.
Ou, pelo menos, lançar em dúvida todo o processo. E a dúvida é jus-
tamente aquilo de que um negacionista precisa.

Argumentação ilógica
Existem milhares de formas de se ser ilógico. As principais fraquezas e
falácias identificadas pelos irmãos Hoofnagle e outros como as mais co-
muns no negacionismo incluem as seguintes: espantalho, pista falsa, falsa
analogia, falsa dicotomia e conclusão precipitada.98
Ficaria chocado se a maior parte dos negacionistas tivesse feito um
curso de lógica informal. Muito provavelmente nunca aprenderam nada
sobre estas falácias, nem sequer conhecem os seus nomes. E, no entanto,
são peritos na sua prática. Quando o negacionista das alterações climá-
ticas diz que o «dióxido de carbono não é o único responsável pelas al-
terações», isso é um perfeito exemplo da falácia do espantalho, onde se
imagina a versão mais fraca do argumento de um adversário porque ele
será mais fácil de derrubar. Não há virtualmente nenhum cientista sério
que negue que há muitos possíveis responsáveis pelas alterações climáti-
cas, incluindo as causas naturais. Mas não é esse o ponto. Neste momento,
as emissões de dióxido de carbono causadas pelos humanos são de longe
a mais importante e mais rápida causa do aquecimento global. Mas o ne-
gacionista não quer falar disto.99 Assim, inventa um espantalho, embora
ninguém tenha dito que a atividade humana era a única causa do aqueci-
mento global.
Da mesma maneira, quando um terraplanista diz «Sabia que existem
três «6» na assinatura do Walt Disney?», que mais poderia isto ser senão
uma pista falsa? Sim, os seis estão ali, qualquer pessoa os pode ver. (De

70
facto, quando os vemos é irritante não os podermos deixar de ver.) Mas o
que é que isso prova? Que Walt Disney estava envolvido numa conspira-
ção para ocultar a verdade sobre a Terra Plana? Se é esse o caso, exige-se
alguma verdadeira evidência que faça a ligação entre as duas coisas. A
mera assinatura é irrelevante para a forma da Terra.
Quando dependem de argumentos ilusórios como estes, os
negacionistas estão a envolver-se numa série de erros que já foram
identificados, examinados e refutados por lógicos e filósofos ao longo
dos últimos 2300 anos. Esta não é a altura nem o lugar para dar uma
longa (ou mesmo curta) aula de Lógica.100 Também não é a altura
para enumerar intermináveis exemplos da argumentação ilógica dos
negacionistas. Se desejarmos mais material para mostrar estas e outras
falácias lógicas que estão no âmago do pensamento de quem nega a terra
global, as vacinas, a evolução ou as alterações climáticas, existe uma
imensidão de recursos excelentes.101 Em capítulos posteriores, também
fornecerei mais exemplos.

Insistência em que a ciência tem de ser perfeita


As únicas pessoas que insistem que a ciência tem de ser perfeita são
aquelas que nunca fizeram qualquer ciência. No entanto, ouvimos mui-
tas vezes negacionistas estabelecerem padrões impossíveis dizendo coi-
sas como: «Consegue provar que as vacinas são cem por cento seguras?»
ou «Porque não esperamos por mais evidências do aquecimento glo-
bal?» ou «A relação causal entre o fumo de cigarros e o cancro do pul-
mão nunca foi estabelecida conclusivamente». Conforme previamente
discutido, isto não se trata de mero ceticismo, mas do tipo de negação
motivada ideologicamente que alguém usa quando não quer acreditar
no que o esmagador consenso da evidência empírica lhe está a dizer.
Tendo em conta a natureza da argumentação indutiva, haverá sempre
alguma incerteza residual na base de qualquer hipótese científica. A não
ser que abandonemos a ideia fundamental de que podem sempre aparecer
novas evidências para nos ajudar a modificar ou até rejeitar uma teoria
científica, não podemos esperar que a ciência se conforme ao mesmo pa-
drão de prova e certeza encontrada na matemática ou na lógica dedutiva.
Ainda assim, nas mãos de um negacionista, qualquer centelha de dúvida

71
pode ser exagerada para fingir que existe um debate, mesmo quando ele
é inexistente.
Os negacionistas exploram frequentemente a incerteza da ciência.
Conforme observado, são famosos pelos seus critérios duplos no exame
das evidências. Por mais evidências apresentadas, não é possível conven-
cer um negacionista a acreditar em algo que ele não queira acreditar; con-
tinuará a insistir na prova. Mas não é preciso muitas evidências para os
convencer de que a sua própria hipótese é credível, pois confiam nas suas
fontes. Isto é uma total perversão da base racional da ciência. Não há ne-
cessidade de provar que uma coisa é certa para que ela seja credível. Na
ciência, se existem evidências suficientes a favor de uma teoria — e esta foi
rigorosamente testada para ver se pode ser refutada —, então temos uma
base racional para acreditar que ela seja verdadeira, mesmo que tenhamos
sempre de aceitar a possibilidade de que alguma evidência futura a possa
mais tarde refutar.102
Negar isto é alegar efetivamente que não podemos saber nada sobre o
mundo empírico enquanto não tivermos todas as evidências. O que sig-
nifica nunca. Para um arrogante negacionista, isto pode parecer ótimo.
Mas está ele mesmo disposto a abdicar de todas as crenças científicas, jun-
tamente com todas aquelas que denigre? Sim, podemos de repente não
ter qualquer base para acreditar na teoria de Darwin da evolução pela
seleção natural. Mas também não temos justificação para a sua alternativa
preferida da conceção inteligente, nem para os antibióticos, os transplan-
tes, a edição genética. É verdade, as bases para as alterações climáticas
antropogénicas seriam anuladas, mas também o seriam todas as previsões
meteorológicas, as tábuas das marés e a ciência por detrás da agricultura.
O problema do ceticismo de café é que empurra tudo para uma ridí-
cula inconsistência. Como justificam os terraplanistas o uso dos telemó-
veis para divulgar a FEIC 2018 quando parte do seu tráfego de comunica-
ções é feito por satélites?103 E que dizer do entusiasta da homeopatia que
faz uma conversão no seu leito de morte e decide subitamente que quer
quimioterapia, afinal? Estas pessoas confiam na ciência, apenas não con-
fiam no tipo de ciência em que preferem não acreditar. Mas como pode
isto ser outra coisa senão ridículo?
Outro absurdo por detrás da insistência dos negacionistas em

72
padrões ideais para a ciência é a inferência de que até ser provada a teoria
de Darwin da evolução pela seleção natural, ou o aquecimento global,
qualquer teoria é tão boa como outra. Todos ouvimos criacionistas
dizerem que a evolução «é apenas uma teoria». Só que a conceção
inteligente também é apenas uma teoria. Mas, então, podem eles querer
saber, porque não investigar ambas e talvez «ensinar a controvérsia» nas
aulas de Biologia?
Aqui o seu engano não é meramente na questão da certeza; é também
na probabilidade. Lembre-se que o conceito de justificação se enraíza na
ideia de que a crença numa hipótese científica é proporcional à evidência a
seu favor. Algo como a teoria de Darwin da evolução pela seleção natural
está tão bem corroborado por cento e cinquenta anos de experiência
científica que forma a base para virtualmente todo o nosso conhecimento
de biologia. A evolução pela seleção natural é a espinha dorsal da genética,
da microbiologia e da biologia molecular. Num ensaio de 1973, o eminente
biólogo Theodosius Dobzhansky disse que «nada na biologia faz sentido
exceto à luz da evolução».104
Mas, ainda assim, pode alegar o negacionista, não seria melhor para a
ciência se procurássemos as certezas? Afinal de contas, por vezes o icono-
clasta tem razão. Também se riram de Galileu, não riram?105
Mas, a sério? Querem mesmo jogar esse jogo?
Em fevereiro de 2019, a Reuters publicou um artigo que dizia que a
evidência para o aquecimento global provocado pelo homem tinha atin-
gido um «padrão-ouro» de confiança, ao nível «cinco-sigma». Isto sig-
nifica que existe apenas uma hipótese num milhão de os negacionistas
das alterações climáticas terem razão. Tudo bem, isto não é o mesmo que
uma certeza. Mas está ao mesmo nível de confiança atingido em 2012
para anunciar a descoberta da partícula subatómica bosão de Higgs, que
é o bloco de construção básico de todo o universo.106 Claro, alguém podia
continuar a duvidar da evidência e alegar que se deve aceitar a alternativa
negacionista porque ela «pode» estar correta. Mas esse é um padrão ab-
surdo para uma crença.107
Como se envergonha quem não tem vergonha? Perante uma crença
ridícula, talvez o que funcione melhor seja o ridículo. Lembra-se da clássica
cena no final do filme de 1994 Doidos à Solta, quando a personagem de

73
Jim Carrey está a tentar desesperadamente convencer uma mulher a sair
com ele? Ele tenta de tudo e ela continua a recusar. Por fim, ele pede-lhe
que avalie a probabilidade de a conseguir convencer a terem um encontro.
«Uma num milhão», é a resposta. E então ele sorri e diz: «Então estás a
dizer-me que há uma hipótese…»
Ninguém quer ser este tipo.

As raízes motivacionais e psicológicas do negacionismo

Agora que compreendemos as táticas por detrás do negacionismo, surge


outra importante série de questões. Como acontece tudo isto? Qual a sua
origem? E como é que explica a forma como todos os negacionistas pare-
cem trabalhar com base num mesmo guião? Em suma, o desafio é este: se
as cinco características descritas são uma tão má forma de argumentação,
porque são tão difundidas?
Torna-se aqui importante estabelecer uma distinção entre dois pos-
síveis métodos de abordagem. Um deles é focado na forma como o nega-
cionismo é criado. O outro foca-se na razão por que as pessoas acreditam
nele. Este último costuma receber a maior parte da atenção, e conduziu
à popular — mas demasiado simplista — ideia de que o negacionismo
se deve a simples ignorância. Mas essa não pode ser toda a razão. (Com
efeito, a investigação tem demonstrado que alguns dos mais acérrimos ne-
gacionistas são os que têm uma mais vasta educação.)108 E não consegue
certamente explicar como surgiu o negacionismo. O guião é demasiado
intrincado para ter acontecido por acidente. A explicação mais provável
parece ser a de prevaricação.
Os cinco tropos formam uma estratégia que foi criada deliberada-
mente por aqueles que tinham interesse em fazer com que as pessoas ne-
gassem descobertas científicas específicas que ameaçavam as suas cren-
ças. Isto foi depois copiado em campanhas subsequentes e usado contra
diferentes descobertas científicas, até se tornar agora um plano de batalha
que pode ser usado para «combater a ciência» em praticamente qualquer
tema. O negacionismo não é um erro, é uma mentira. A desinformação é
criada intencionalmente.109

74
No seu importante livro Merchants of Doubt, Naomi Oreskes e Erik
Conway contam a história de como as empresas tabaqueiras nos anos 1950
estavam preocupadas com a publicação iminente de um estudo científico
que mostrava uma ligação entre o fumo e o cancro do pulmão.110 Em vez
de continuarem a discutir entre si a respeito de quais os cigarros que eram
mais «saudáveis», os executivos das maiores tabaqueiras uniram forças e
contrataram um publicitário para conceber uma estratégia. Combatam a
ciência, aconselhou ele. Fabriquem a dúvida. Criem todas as razões que
conseguirem para se começar a pensar que os cientistas podem estar a
ser tendenciosos e a contar apenas um lado da história. Depois ponham
a circular o vosso lado. Contratem os vossos próprios peritos. Inventem
as vossas descobertas «científicas». Publiquem anúncios de página inteira
na imprensa a pôr as descobertas dos cientistas em questão. Insistam que
qualquer alegada ligação entre o fumo e o cancro do pulmão tem de ser
provada.111
Soa-lhe familiar?
Oreskes e Conway fazem um excelente trabalho ao mostrar como as
empresas tabaqueiras criaram uma campanha de desinformação onde —
nas palavras do infame memorando de 1969 escrito por um administra-
dor de uma delas — «a dúvida é o nosso produto, uma vez que é a me-
lhor forma de competir com o “acervo de factos” que existe na mente do
público em geral. É também a forma de estabelecer controvérsia».112 Isto
permitiu que as tabaqueiras enganassem o público americano ao longo
das décadas seguintes, apelando pela «prova» ao mesmo tempo que con-
tinuavam a lucrar com a venda de cigarros. Infelizmente, esta campanha
foi tão bem-sucedida que se tornou um modelo para todo o negacionismo
subsequente — os autores chamam-lhe a «estratégia do tabaco» —, que foi
depois usado com a chuva ácida, o buraco no ozono, as alterações climá-
ticas e por aí em diante.113
Com o fumo e o cancro, a negação foi criada para servir um óbvio
interesse empresarial.114 Com as alterações climáticas, parece ter sido o
mesmo.115 Para saber mais acerca deste assunto, recomendo vivamente
o livro de Oreskes e Conway. O meu objetivo não é apresentar a história
completa do negacionismo, mas ver se podemos aprender a conversar com
um negacionista para o fazer mudar de ideias. Obviamente, isto não vai

75
funcionar com alguém que criou cinicamente uma mentira (quer acredite
mesmo nela quer não). Proponho assim que passemos aos outros — o
público do negacionismo — para avaliar as suas razões para acreditar em
algo que não inventaram e do qual não podem obter qualquer benefício
óbvio.116
É importante perceber aqui que existem muitas motivações possíveis
para o negacionismo. O interesse económico é um dos óbvios. Mas exis-
tem também razões políticas, ideológicas ou religiosas para alguém poder
preferir negar uma descoberta científica específica, o que pode ser pro-
fundamente pessoal. Quando estes interesses são explorados por aqueles
que criaram uma campanha de negação, podem atrair milhões de segui-
dores às suas hostes. A ignorância e ingenuidade podem constituir um
fator. Mas tem de haver alguma outra coisa em jogo. Quer o negacionismo
climático tenha sido criado porque servia os interesses económicos de al-
guém quer não, a questão continua a colocar-se: porque é que o negacio-
nista acredita mesmo nisso?
Por vezes, podem estar em jogo interesses pessoais do crente. Mesmo
que não sejam interesses económicos, eles podem ser poderosos. Um fu-
mador pode ter uma razão intrínseca para receber de bom grado a notícia
de que havia um «outro lado» das descobertas científicas sobre o tabaco
na década de 1950. A argumentação motivada é uma poderosa força psi-
cológica, na medida em que estamos mais inclinados a procurar informa-
ção que apoie as coisas em que queremos acreditar, em oposição aos factos
que podem causar desconforto psíquico. Se uma pessoa não quer parar de
fumar, por exemplo, não seria melhor acreditar que fumar era seguro? As
pessoas conseguem confabular todos os tipos de informação ou mentira
para si próprias, quando querem. Estudos têm mostrado que, na maior
parte dos casos, nem sequer o fazem a um nível consciente.117 Talvez
seja por isso que existe nas nossas mentes uma estreita proximidade en-
tre alguém que está «em negação» e alguém que é um «negacionista».118
Mentimos a nós mesmos como meio de com mais eficiência mentirmos
aos outros.
Setenta anos de psicologia social têm mostrado que a satisfação do ego
humano é uma parte importante do nosso comportamento. E uma parte
integrante disto é mantermos uma visão positiva de nós mesmos. O que

76
pode explicar aquelas vezes em que resolvemos a dissonância cognitiva
contando a nós mesmos uma história em que preferimos acreditar em
vez de uma verdadeira, desde que possamos ser o herói. Também envolve
garantir que apresentamos uma imagem favorável de nós próprios aos do
nosso círculo social, cuja opinião nos interessa. Assim, as nossas crenças
e comportamentos são formados numa estufa de auto-opinião, tal como
nos é refletida pelas opiniões dos outros. Será de surpreender que as
nossas crenças em assuntos empíricos se baseiem em mais do que apenas
factos, mas também nas forças psicológicas e motivacionais que moldam
todo o comportamento e crenças? Como tal, as nossas crenças empíricas
são abertas a manipulação, quer da parte dos nossos interesses quer dos
outros.
Não devíamos também subestimar o simples papel do medo. A mo-
derna neurociência, com o uso da ressonância magnética funcional, tem
demonstrado que, quando expostos a ideias que ameaçam as suas cren-
ças, os conservadores experimentam mais atividade na amígdala (base do
medo) do seu cérebro do que os liberais.119 Acontecerá o mesmo com os
negacionistas?120 Quando um pai recente ouve dizer que as vacinas po-
dem ser perigosas para o seu bebé, como pode isto não o deixar ansioso?
Quando recorre ao Google e lhe aparece desinformação alarmante, o seu
cérebro inunda-se de cortisol. Quando se vira para o seu médico de famí-
lia e ouve troçar dos seus receios — «Não acredito que está a ligar a esses
disparates» —, pode sentir-se desrespeitado, e por isso vira-se para uma
conferência antivacinas para obter mais informação. Por essa altura já é
demasiado tarde. Como um jornalista que foi expulso de uma convenção
antivacinas disse:

O AutismOne — e o mundo antivacinas como um todo — fun-


ciona como um motor de radicalização. Os pais são lá levados
com uma genuína preocupação pela saúde dos seus filhos, e um
desespero para encontrar respostas, e são recebidos com uma
variedade de novas e cada vez mais loucas alegações sobre o
establishment médico, o governo e, em última instância, os gover-
nantes secretos do mundo.121

77
Outra força psicológica por detrás do negacionismo pode ser uma
sensação de alienação e ostracismo. Claro, serem maltratados, insulta-
dos e tratados como idiotas por aqueles que estão a tentar combater o
negacionismo pode por si só causar uma sensação de alienação.122 Mas
estou a falar de algo mais profundo do que isto. Quando estive na FEIC
2018, reparei num desproporcionado número de pessoas que tinham
tido alguma espécie de trauma nas suas vidas. Por vezes em questões
de saúde, outras de relacionamentos. Muitas vezes não era especifica-
do o tipo. Mas, em cada uma das ocasiões, o terraplanista referia-se a
isso como estando de alguma forma relacionado com o momento em
que tinha «acordado» e percebido que lhe tinham mentido. Muitos deles
abraçaram um sentido de vitimização mesmo antes de se terem torna-
do terraplanistas. Descobri muito pouco na literatura psicológica acerca
disto, mas continuo convencido de que há algo a aprender desta hipóte-
se.123 Saí da convenção com a sensação de que muitos dos terraplanistas
eram pessoas quebradas por dentro. Poderia isto ser verdade também
para outros negacionistas?
Quer seja verdade quer não, parece-me claro, com base tanto na mi-
nha experiência pessoal como no estudo da literatura, que a maior parte
dos negacionistas caíram numa corrente de ressentimento e fúria contra
as «elites» ou «especialistas» que pretendem dizer-lhes a verdade. Parte
disto está relacionado com a obra de Tom Nichols anteriormente citada,
The Death of Expertise, onde ele explora o tipo de rancor populista que
tem conduzido a tanta da nossa cultura pós-verdade. Isto é mais vasto do
que o negacionismo. De facto, embora acredite que o negacionismo foi
uma das raízes da pós-verdade124, esta tem duplicado agora em apoio de
toda uma cultura de negação, envolvendo tudo, desde as alterações cli-
máticas até à vacinação e ao uso de máscaras durante uma pandemia, e
tornando o negacionismo ainda pior. À medida que as velhas linhas de
batalha são redesenhadas — por vezes ao longo das frentes dos partidos
—, torna-se mais fácil alguém sentir-se alienado. Com diferentes fontes de
informação, fragmentação, polarização e a criação de uma mentalidade de
«nós contra eles», não será de surpreender que a ciência se veja apanhada
no turbilhão da pós-verdade.
Significa isto que o negacionismo é agora simplesmente político? Em

78
parte, isto pode ser verdade. O exemplo óbvio aqui é o negacionismo das
alterações climáticas, que sofre de uma divisão partidária de 96 a 53 por
cento.125 No seu trabalho acerca do negacionismo, o cientista cognitivo
Stephan Lewandowsky argumenta que hoje em dia praticamente todos os
negacionistas se inclinam para os conservadores:

Tem havido uma erosão gradual da confiança na comunidade


científica entre os conservadores — mas não entre os liberais
— desde a década de 1970… Esta erosão de confiança coin-
cidiu com a emergência de múltiplas descobertas científicas que
desafiam as ideias conservadoras essenciais, como a crença na
importância e benefícios dos mercados não regulados… Em re-
sumo, a rejeição de evidências científicas específicas num vasto
âmbito de temas, bem como uma generalizada desconfiança
na ciência, parece concentrar-se primariamente entre a direita
política.126

Mas até Lewandowsky admite, porém, que as forças cognitivas subja-


centes que conduzem coisas como a crença em teorias da conspiração ou
o viés de confirmação não são exclusivas dos conservadores. Todos temos
os mesmos cérebros e os mesmos preconceitos cognitivos que foram for-
mados pelas mesmas forças evolucionárias.127 Assim, continua a pôr-se a
questão acerca da possibilidade de haver episódios de negacionismo «li-
beral», assunto que será considerado nos capítulos 6 e 7.
Não obstante o ângulo político, deparamo-nos com a necessidade
fundamental de perceber porque é que os negacionistas acreditam no
que acreditam, mesmo perante evidência contrária. A resposta reside
na perceção de que a questão central em jogo na formação da cren-
ça — mesmo em tópicos empíricos — pode não ser a evidência, mas a
identidade.
A identidade pode ser encontrada no seio de um contexto político,
mas esse não é, seguramente, o único lugar em que existe. As pessoas
podem descobrir um sentido de identidade na sua igreja, na sua escola,
na família, na profissão, no bairro, ou, em último caso, entre os seus
companheiros negacionistas. No seu brilhante livro Know-It-All-Society,

79
Michael Lynch mostra como as nossas crenças se transformam nas nossas
convicções, e a relação disto com a identidade.

Uma convicção é uma crença que assume o manto do compromis-


so — uma chamada à ação — porque reflete a nossa autoiden-
tidade. Reflete o tipo de pessoa a que aspiramos ser, e os tipos
de grupos e tribos a que desejamos pertencer. É por isso que os
ataques às nossas convicções nos parecem ataques à nossa iden-
tidade — porque o são. Mas é também por isso que ignoramos
frequentemente evidências contra as nossas convicções; abdicar
delas seria mudar quem nos imaginávamos ser.128

As raízes psicológicas disto podem ser encontradas no que o inves-


tigador de Yale Dan Kahan chama «cognição protetora da identidade».129
Podemos pensar que formar uma opinião sobre um tema científico é uma
simples questão de se olhar para os dados. E, de facto, quando estamos
preocupados com um tema cujos resultados não pisam uma das nossas
sagradas convicções, é esse normalmente o caso. Lembra-se da ideia de
que os negacionistas são céticos de café? Até um negacionista consegue
normalmente perceber a resposta certa a uma pergunta científica com
base nos dados, desde que não envolva uma crença central à sua autoi-
dentidade. Mas quando começamos a lidar com assuntos «controversos»
como a evolução ou as alterações climáticas (ou, para alguns, a forma da
Terra), as nossas capacidades de pensamento voam pela janela. Não só
não mudamos de ideias como nem sequer conseguimos fazer uma avalia-
ção racional das evidências.
A tensão aqui é entre o que Kahan chama «tese de compreensão da
ciência» e a cognição protetora da identidade. O modelo TCC baseia-se
na ideia de que a melhor maneira de convencer alguém de que uma
hipótese empírica é verdadeira é dar-lhe informação suficiente para ele
tomar uma decisão racional a seu respeito. Tratá-lo como um cientista. Se
alguém é racional e sabe como raciocinar com base nas evidências, deve
ser bastante simples avaliar se uma conclusão é acertada. Aqui estamos a
assumir que a única razão para alguém rejeitar uma bem fundamentada
teoria científica é se for irracional (ou estúpido, ou incompetente) ou não

80
tiver informação suficiente. Um melhor nome para isto, creio, é o «modelo
de défice de informação»130, porque estamos a assumir que qualquer
ocorrência de negacionismo pode ser remediada dando ao negacionista
mais informação. Quantas vezes temos visto os cientistas a tentar fazer
isto! Quando o negacionista das alterações climáticas diz que não há
aquecimento global desde 1998, damos-lhe mais dados de temperatura.
Quando duvida disto, podemos passar para a perda do gelo marinho.
Quando duvida disto, passamos a outra coisa qualquer. Por fim, podemos
assumir que ele é irracional e viramos-lhe simplesmente as costas. Se não
conseguimos convencer alguém com provas, porquê continuar a falar?
Mas e se o problema não é a falta de evidências suficientes? E se o problema
for o facto de estarem empenhados na cognição protetora da identidade?
Para testar isto mesmo, Kahan executou uma experiência de avalia-
ção da eficácia de um novo creme (fictício). Tanto quanto sei, não há nem
nunca houve nenhuma espécie de negacionismo (nem pensamento iden-
titário) com base em creme para a pele. Kahan preparou a experiência
com mil sujeitos, que foram primeiro alvo de um inquérito para avaliar as
suas crenças políticas e depois receberam um conjunto de dados fabrica-
dos (ver figura 2.1).131
Depois de fazermos algumas contas, todos temos a informação de
que necessitamos para ver se o creme para a pele é eficaz num eczema. À
primeira vista, pode parecer que o creme foi eficaz. Afinal, 223 das pessoas
que o usaram viram o eczema melhorar, enquanto apenas 107 das pessoas
que não o usaram viram algumas melhoras. Mas é preciso ter também em
conta aqueles cujo eczema ficou pior. Contrariamente à impressão inicial,
a conclusão apropriada a tirar é que o creme não é eficaz. Afinal, 25 por
cento das pessoas que o usaram viram o seu eczema piorar, em compara-
ção com apenas 16 por cento das pessoas que não o usaram.132
Kahan descobriu que a maior parte das pessoas era péssima a che-
gar à conclusão certa. Mas os resultados não se distinguiam em linhas
partidárias! Em vez disso, talvez previsivelmente, a única diferença nas
respostas estava entre pessoas que eram boas a matemática e as que não
o eram, o que é perfeitamente consistente com a tese da compreensão
da ciência.

81
Resultados
Eczema Eczema
melhorou piorou

Utilizadores do
novo creme 223 75
Não utilizadores
do novo creme 107 21
Figura 2.1
Dados fabricados usados como estímulo numa experiência de Kahan et al.,
«Motivated Numeracy and Enlightened Self-Government» (2013).

Resultados Resultados
Crime Crime Crime Crime
aumenta diminui diminui aumenta

Cidades que
baniram armas 223 75 223 75
Cidades que não
baniram armas 107 21 107 21
Figura 2.2
Dados fabricados usados como estímulo numa experiência de Kahan et al.,
«Motivated Numeracy and Enlightened Self-Government» (2013).

Mas depois Kahan fez uma outra versão do teste, usando exatamente
os mesmos dados, com um tópico com carga ideológica: se o controlo de
armas aumenta ou diminui o crime (ver figura 2.2).133 Na primeira itera-
ção (esquerda), os dados mostravam que o controlo das armas era corre-
lacionado com uma diminuição do crime. Na segunda (direita), mostrava
um aumento.
Aqui, os resultados foram diferentes. Como o escritor político Ezra
Klein explica no seu comentário à experiência:

Perante este problema, aconteceu uma coisa engraçada: a com-


petência matemática dos sujeitos deixou de ser um previsor do

82
seu sucesso no teste. Agora era a ideologia que conduzia as
respostas. Os liberais eram extremamente bons a resolver o
problema quando fazê-lo provava que a legislação de controlo
de armas reduzia o crime. Mas quando lhes foi apresentada a
versão do problema que sugeria que o controlo de armas tinha
falhado, as suas competências matemáticas deixavam de impor-
tar. Eles tendiam a perceber mal o problema, por muito compe-
tentes que fossem a matemática. Os conservadores exibiam o
mesmo padrão — ao contrário… Ser melhor a matemática não
só não ajudou os partidarizados a convergir para a resposta
certa como, na verdade, os afastou ainda mais. Os partidariza-
dos com baixas capacidades matemáticas tinham 25 por cento
mais hipóteses de acertar na resposta quando se adequava à
sua ideologia. Os partidarizados com mais fortes competências
matemáticas tinham 45 por cento de hipóteses de acertar na
resposta certa quando se adequava à sua ideologia… As pes-
soas não estavam a raciocinar para chegar à resposta certa.
Estavam a raciocinar para chegar à resposta que queriam que
fosse a certa.134

Poder-se-ia concluir que a política exacerba uma falha no raciocínio


humano a respeito de temas empíricos? É certo que o raciocínio e as crenças
na experiência de Kahan eram enquadradas num contexto político, mas a
política é apenas uma maneira de se formar a identidade. E se a questão sub-
jacente aqui não for meramente que a política pode interferir com as nossas
capacidades de raciocínio mas que é toda a identidade que o provoca? Talvez
a identidade seja, de facto, mais importante do que qualquer ideologia espe-
cífica. Afinal de contas, trata-se da cognição protetora da identidade.
No seu importante artigo «Ideólogos sem Questões: As Consequências
Polarizadoras das Identidades Ideológicas», Liliana Mason defende que o
fator impulsionador por detrás da polarização política não é nenhuma das
«questões» em que podemos pensar como tipicamente liberais ou con-
servadoras mas, em vez disso, o mero facto de ter um rótulo partidário
que confere uma identidade.135 O mais importante é escolher uma equipa,
para sabermos por que lado torcer no jogo político de nós contra eles.

83
Na sua pesquisa baseada em dados recolhidos por inquérito, Mason
descobriu que a força da afiliação de uma pessoa com uma identidade
política era um melhor previsor de como se sentiriam a respeito «do outro
lado» do que o conteúdo ideológico que poderia estar subjacente à identi-
dade. Os sujeitos foram inquiridos no âmbito das suas opiniões acerca de
seis questões: imigração, controlo de armas, casamento entre pessoas do
mesmo sexo, aborto, Obamacare e o défice. Depois foi-lhes perguntado o
que sentiam a respeito de casar com alguém da afiliação política contrária.
Ou de serem amigos. Ou de simplesmente passarem tempo com eles. O
que Mason descobriu foi que o rótulo baseado na identidade tinha duas
vezes mais valor preditivo para o que os sujeitos sentiam a respeito do
«outro lado» do que a sua opinião sobre qualquer um dos seis temas!136
Os conservadores eram, na verdade, muito mais moderados nas suas
opiniões políticas do que os liberais, mas não menos partidários na sua
identidade. Mason marcou esta diferença como uma entre «ideologia com
base na identidade» versus «ideologia com base nas questões».137
Mas se é com a identidade que os partidarizados se preocupam, mais
do que com o conteúdo da sua ideologia, isto pode fazer-nos perguntar
em que sentido a argumentação baseada na identidade é «ideológica».
No seu ensaio «As Pessoas Não Votam no Que Querem. Votam em
Quem São», o filósofo Kwame Anthony Appiah observa que, durante
a era Trump, os Republicanos tinham dado uma volta de quase cento
e oitenta graus na sua posição sobre a Rússia. A foto que acompanha o
artigo de Appiah mostra dois apoiantes de Trump num comício, vestidos
com T-shirts que dizem «Antes ser russo do que ser Democrata». Em
consonância com a hipótese de Mason, Appiah conclui que «a identidade
tem precedência sobre a ideologia».138É possível que o conteúdo das
crenças negacionistas seja igualmente supérfluo, ou pelo menos maleável?
E se os terraplanistas com quem falei na FEIC 2018 fossem motivados a
manter as suas crenças não porque faziam sentido para eles, mas porque
preenchiam alguma necessidade na sua psique? Davam-lhes uma equipa
por que torcer e alimentavam o seu sentimento de rancor. Talvez também
os fizessem sentir melhor na sua situação de alienados da sociedade e das
suas crenças «normativas», porque estavam agora conectados com um
grupo de pessoas que concordavam com eles e lhes diziam que tinham

84
razão. Se alguém se quer integrar, talvez o conteúdo da sua crença não
seja assim tão importante.138 Será talvez por isto que é tão difícil fazer um
negacionista mudar de ideias, porque, em certo sentido, as suas crenças
não têm verdadeiramente que ver com evidências? O conteúdo da crença
pode não ser tão importante como a identidade social que permite.
Existem poderosas forças cognitivas que nos seduzem para acredi-
tarmos no que queremos acreditar. O que as pessoas à nossa volta — que
conhecemos e em quem confiamos — querem que acreditemos.139 E hoje
em dia, quando conseguimos encontrar toda uma comunidade de outros
que concordam connosco, é muito mais fácil sustentar crenças marginais.
Seja online seja pessoalmente, quando se está numa multidão é fácil esco-
lher um lado e demonizar quem discorda connosco. Quando decidimos
em quem acreditar, talvez saibamos no que acreditar. Mas isto torna-nos
suscetíveis a manipulação e exploração por outros.
Talvez seja aqui que reside a há muito aguardada ligação entre aque-
les que criam a desinformação do negacionismo e os que meramente acre-
ditam nela. Se uma pessoa ou organização com uma agenda poderosa tem
um interesse que entra em conflito com uma descoberta científica, não é
difícil agitar as águas da partidarização ou polarização ao longo de linhas
«identitárias» para se conseguir que alguém se aproxime da sua forma de
pensar. Isto parece ser exatamente o que aconteceu com a negação empre-
sarial perante a relação entre fumo e o cancro do pulmão que teve início
na década de 1950. E aconteceu mais tarde, numa confluência de interes-
ses corporativos e políticos, com as alterações climáticas. Assim, os inte-
resses especiais conseguiram criar um sentido de identidade em torno de
temas dos quais os crentes não retiram qualquer benefício material. Mas
significa isto que todo o negacionismo é resultado de interesses externos?
Isto será muito mais difícil de provar. Enquanto a ideologia religiosa pa-
rece estar firmemente por detrás da recusa criacionista da evolução de
Darwin, quais são os interesses corporativos ou ideológicos por detrás
da Terra Plana? Ou dos antivacinas? Ou da recusa de OGM? A não ser
que invente alguma teoria da conspiração, não estou a ver a existência de
nenhum.
Por vezes as crenças erradas acontecem organicamente, devido a fa-
tores demasiado diversos para serem categorizados, e podem acabar por

85
criar uma identidade ou um grupo de interesses de raiz. Quando isto
acontece, seja qual for a razão, há outros que saltam a bordo. Afinal de
contas, talvez seja a equipa, não a ideologia. Queremos estar do lado de
alguém. E é importante recordar que não importa como seja criado, de-
vemos combater um negacionismo conversando com os crentes, não com
os tipos cínicos que o podem ter inventado. Embora possa ser útil tentar
expor uma campanha de desinformação, esta não é a principal maneira
de superar o negacionismo. Uma vez instauradas as mentiras, mesmo que
elas sejam desmascaradas já terão feito os seus estragos. Precisamos de
falar com as pessoas que acreditam nelas. Se conseguimos expor a corrup-
ção e a má-fé, tanto melhor. Mas mesmo que isso não exista, continuamos
a precisar de resistir.
Quer as mentiras sejam fabricadas por cínicos interesses exteriores
ou confabuladas pelos nossos próprios ferimentos psíquicos ou o nosso
ego, o ponto a que chegamos é o mesmo. O negacionismo não se deve
a uma falta de evidências. O que significa que não pode ser remediado
com uma simples exposição de mais factos. Os que desejam fazer com
que os negacionistas mudem de ideias têm de parar de os tratar como se
eles fossem apenas colegas mal informados que sabem raciocinar sobre
as evidências mas não possuem os dados todos. Não há quantidade de
evidências que faça um negacionista mudar de ideias, se não apreciarmos
o papel que essas crenças desempenham no reforço da sua identidade.
No seu livro tremendamente útil, How to Have Impossible
Conversations, o filósofo Peter Boghossian e o matemático James Lindsay
dão-nos este conselho surpreendente para tentarmos convencer alguém
que discorde de nós: evitar os factos!

A coisa mais difícil de aceitar para pessoas que se esforçam


para formar as suas crenças com base na evidência é que nem
toda a gente forma as suas crenças dessa maneira. O erro co-
metido por pessoas que formam as suas crenças pelas evidên-
cias é pensar que, se a pessoa com quem estão a falar tivesse
visto uma determinada evidência, ela não acreditaria no que
acredita.140

86
Em vez disso, os autores aconselham-nos a fazer perguntas como:
«Que factos ou evidências o fariam mudar de ideias?»141 Foi precisa-
mente o que fiz na FEIC 2018, embora ainda não tivesse lido o livro de
Boghossian e Lindsay. (Provavelmente porque — como colegas filósofos
— ambos usamos a estratégia de Karl Popper.)142
Neste ponto, os cinco tropos do negacionismo voltam a entrar em
jogo. Já vimos que todos formam um guião comum subjacente a toda a
argumentação negacionista. Porque é isto importante? Porque quando co-
nhecemos o guião, podemos desafiá-lo. O guião dos cinco tropos permite
aos negacionistas sentir que estão efetivamente a pensar, em vez de sim-
plesmente reforçar o que são motivados a acreditar com base na sua iden-
tidade. Não estou a dizer que aprendem este guião palavra por palavra, ou
que percebem sequer que ele existe, mas internalizam os seus elementos e
podem tornar-se bastante bons no seu uso. Mas se conseguirmos desesta-
bilizar o guião, temos uma oportunidade de os convencer. Fazê-los ques-
tionar os pontos de discussão que lhes foram fornecidos pelo seu grupo.
Por um momento, faça-os pensar por si próprios. O objetivo de se falar
com um negacionista é criar uma oportunidade para a dúvida, em que os
podemos fazer ver as coisas de diferentes pontos de vista.
Claro, é quase impossível fazer alguém mudar de crença contra a
sua vontade. Por muito bom que se seja em retórica (ou filosofia), não
se vai apanhar um negacionista numa contradição lógica e fazê-lo mu-
dar de ideias. Lembre-se que, quando desafia as crenças de alguém, está a
desafiar a sua identidade!143 Isto não equivale a dizer que não pode usar
evidências empíricas para convencer alguém; só não se esqueça de que as
evidências são uma ferramenta no seio de uma conversa mais vasta cujo
objetivo será tentar fazer o negacionista experimentar uma nova identi-
dade. Ver qual é a sensação de querer mais evidências. Ganhar uma maior
apreciação pelo que significa pensar como um cientista.
Quando desafiamos o seu guião e trabalhamos nas nossas próprias
evidências, temos de reconhecer a verdadeira razão para os negacionistas
acreditarem no que acreditam: por causa de como isso os faz sentir. O que
significa que temos de ter em conta não apenas as crenças do negacionista,
mas como justificam essas crenças. O guião é como defendem as crenças,
mas não a razão por que as têm. Eles têm-nas para resolver o seu medo,

87
ou para se sentirem menos alienados, ou para abraçarem uma identidade
social ambicionada. O que acreditam é um reflexo de quem são.144
Num âmbito mais vasto, o negacionismo é um ataque não apenas
ao conteúdo de certas teorias científicas mas aos valores e métodos que
os cientistas usam para formular aquelas teorias. Em algum sentido, os
negacionistas estão a desafiar a identidade dos cientistas! Não só igno-
ram os factos como também a forma de pensar científica. Para remediar
isto, temos de fazer mais do que apresentar aos negacionistas as evidên-
cias; temos de os fazer repensar a forma como pensam nas evidências.
Precisamos de os convidar a experimentar uma nova identidade, com
base num sistema de valores diferente.145
Mas isto significa que é necessário abandonar de uma vez por todas
o modelo do défice de informação. Não podemos converter um negacio-
nista simplesmente por preenchermos a falta de conhecimento. Mais uma
vez, isto não significa que os factos não sejam importantes — ou que não
exista um papel para a evidência —, mas que importa a forma como a
evidência é apresentada. E por quem. E o contexto epistemológico em
que a estão a receber. Mais uma vez, na FEIC 2018, os terraplanistas re-
jeitaram as minhas evidências porque não confiavam nos cientistas que
a criaram. O défice que experimentaram não era apenas de informação,
mas de confiança. Não se altera as crenças profundamente entranhadas de
uma pessoa — aquilo a que Michael Lynch chama as suas convicções —
dando-lhes simplesmente novos factos ou até uma nova forma de pensar.
Temos de os ajudar a lidar com a ameaça que essa nova informação apre-
senta para a sua identidade.

88

Você também pode gostar