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Texto 05_ O Conhecimento

Comte-Sponville
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O CONHECIMENTO
APRESENTAÇÃO DA FILOSOFIA

É por isso que há uma histó ria das ciências e é por isso No entant o, não se deve confundir conhecimentos com
que essa história é ao mesmo tempo normativa e irreversível: ciências, nem reduzir aqueles a estas. Você conhece seu en­
dereço, sua data de nascimento, seus vizinhos, seus amigos,
porque ela opõe o mais verdadeiro ao menos verdadeiro,
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e porque, nela, nunca se volta a cair nos erros já compreendi­ seus gostos, enfim mil e uma coisas que nenhuma ciência en­
dos e refutados. É o que mostram, cada um do seu modo, sina nem garante. A percepção já é um saber, a expe riên­
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cia já é um saber, ainda que vago (é o que Spinoza chamava
Bachelard e Popper. Nenhuma ciência é definitiva. Mas se a
de conhecimento do primeiro gênero), sem o qual qualquer
história das ciências é "a mais irreversível de todas as histó­
ciência seria impossível. "Verdade científica" não é portanto
rias", como diz Bachelard, é que nela o progresso é demons­
um pleonasmo : há verdades não científicas e teorias cientí­
trável e demonstrado : é que ele é "a própria dinâmica da
ficas que descobriremos um dia não serem verdadeiras.
cultura científica". Nenhuma teoria é absolutamente verda­
deira, nem mesmo absolutamente verificável. Mas deve ser Imagine, por exemplo, que você vai ser testemunha num
possível, se se trata de uma teoria científica, confrontá-la com processo... Não vão pedir que você demonstre cientificamen­
I' te este ou aquele ponto, mas simplesmente que você diga o

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,,, a experiência, testá-la, falsificá-la, como diz Popper, em ou­
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ii' tras palavras, pôr em relevo, se necessário, sua falsidade. As que acha ou, melhor ainda, o que sabe. Você pode se enga­
:!i; teorias que resistem a essas provas substituem as que sucum­ nar? Claro. É por isso que a pluralidade dos testemunhos é
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bem a elas, e as integram ou superam. Isso acarreta como que desejável. Mas essa pluralidade só tem sentido se se supõe
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uma seleção cultural das teorias (no sentido em que Darwin possível uma verdade, e não haveria justiça de outro modo.
Ir, fala de uma seleção natural das espécies), graças à qual as
Se não tivéssemos nenhum acesso à verdade, ou se a verda­
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ciências progridem - não de certezas em certezas, como às
de não existisse, que diferença haveria entre um culpado e

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vezes se imagvia, mas "por aprofundamento e rasuras", como
dizia Cavailles, em outras palavras, nas palavras de Popper,
um inocente? Entre um depoimento e uma calúnia? Entre a
justiça e um erro judiciário? E por que lutaríamos contra os
"por ensaios e eliminação dos erros". É nisso que uma teo­ negativistas, contra os obscurantistas, contra os mentirosos?
O essencial aqui é não confundir ceticismo com sofísti­
r ia científica é semp re parcial, provisó ria, relativa, sem que
ca. Ser cético, como Montaigne ou Hume, é pensar que nada
isso autorize porém a rejeitar todas elas nem a p referir a
é cert o, e há excelentes motivos para isso. Chamamos de
elas a igno rância ou a superstição - seria renunciar a co­
certeza aquilo de que não podemos duvidar. Mas o que pro­
nhecer. O progresso das ciências, tão espetacular, tão in­
conteste, é o que confirma ao mesmo temp o a relatividade va uma impotência? Durante milênios, os homens tiveram
certeza de que a Terra era imóvel: nem por isso ela deixava
(uma ciência absoluta já não p oderia progredir) e a verda­
de pelo menos parcial delas (se não houvesse nada de ver­ de se mover... Uma ce1teza seria um conhecimento demons­
dadeiro em nossas ciências, elas também não poderiam p ro­ trado. Mas nossas demonstrações só são confiáveis se nossa
razão também o é. Ora, como provar que ela é, se só pode­

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gredir e não seriam ciências).
ríamos provar por meio dela? "Para julgar as aparências que

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recebemos dos objetos", escreve Montaigne, "necessitaría­ demonstrável. A proposição "A matemática é verdadeira" só
mos de um instrumento judicatório; para verificar esse ins­ é passível de uma demonstração matemática. A proposição
!•1 trumento, necessitamos da demonstração; para verificar a de­ "As ciências experimentais são verdadeiras" não é passível
I['. monstração, de um instrumento: eis-nos andando à roda." de uma verificação experimental. Mas isso não impede que
É o círculo vicioso do conhecimento, que lhe veda aspirar se faça matemática, física ou biologia, nem que se pense que
h, ao absoluto. Sair dele? Só seria possível por meio da razão ou uma demonstração ou uma experiência valem mais e me­
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da experiência; mas nem uma nem outra é capaz de fazê-lo: lhor que uma opinião. Que tudo é incerto, não é uma razão
a experiência, porque depende dos sentidos; a razão, porque para parar de buscar a verdade. Porque tampouco é certo
depende dela mesma. "Como os sentidos não podem parar que tudo é incerto, observava ainda Pascal, e é isso que dá
. nossa disputa, sendo eles próprios cheios de incerteza", con­ razão aos céticos ao mesmo tempo que os impede de pro­
tinua Montaigne, "tem de ser a razão; nenhuma razão se es­ vá-lo. À glória do pirronismo e de Montaigne. O ceticismo
tabelecerá sem outra razão: eis-nos a recuar até o infinito." não é o contrário do racionalismo; é um racionalismo lúcido
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Só há escolha entre o círculo vicioso e a regressão ao infini­ e leva às últimas conseqüências - até o ponto em que a ra­

1 1,H: to, o que equivale a dizer que não há escolha: exatamente o zão, por rigor, chega a duvidar da sua aparente certeza. Pois
o que prova uma aparência?
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111 que torna o conhecimento possível (os sentidos, a razão, o
juízo) é o que impede erigi-la em certeza. A sofística é outra coisa: não é pensar que nada é certo,
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,li 1 Formidável fórmula de Jules Lequier: "Quando alguém mas pensar que nada é verdadeiro. Isso nem Montaigne nem
·1,i'1., crê com a fé mais inabalável que possui a verdade, deve sa­ Hume jamais escreveram. Como, se tivessem acreditado, te­
!!\ ber que crê, e não crer que sabe." À glória de Hume e da to­ riam podido filosofar e por que teriam filosofado? O ceticis­
lerância. mo é o contrário do dogmatismo. A sofística, o contrário do
;i:1 Formidável fórmula de Marcel Conche, a propósito de racionalismo, ou mesmo da filosofia. Se nada fosse verdadei­
Montaigne. Sem dúvida temos certezas, várias das quais nos ro, que restaria da nossa razão? Como poderíamos discutir,·
parecem certezas de direito (certezas absolutamente funda­ argumentar, conhecer7 "A cada qual sua verdade"? Se fos­
'I das ou justificadas); mas "a certeza de que há certezas de di­ se assim, já não haveria verdade nenhuma, porque ela só
reito nunca é mais que uma certeza de fato". Cumpre con­ vale se for universal. Que você está lendo este livro, por
cluir que a ce1teza mais sólida, a todo rigor, não prova nada: exemplo, é possível que ninguém mais, além de você, sai­
não há provas absolutamente probatórias. ba. Portanto, é universalmente verdadeiro: ninguém pode
Devemos então renunciar a pensar? De jeito nenhum. negar, em nenhum ponto do globo, em nenhuma época,
"Pode ser que haja demonstrações verdadeiras", observa Pas­ sem dar prova de ignorância ou de mentira. É nisso que "o
cal, "mas nào é certo." De fato, isso é coisa que não se pode universal é o lugar dos pensamentos", como dizia Alain, o
demonstrar - já que toda demonstração a supõe. A proposi­ que nos torna iguais, pelo menos de direito, diante do ver­
ção "Há demonstrações verdadeiras" é uma proposição in- dadeiro. A verdade não pertence a ninguém; é por isso

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APRESENTAÇÃO DA FILOSOFIA

lutamente o verdadeiro) como os sofistas (que pretendem


que o verdadeiro não existe ou está absolutamente fora de
alcance).
Entre a ignorância absoluta e o saber absoluto, há lugar
para o conhecimento e para o progresso dos conhecimen­
tos. Bom trabalho para todos!

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