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O Brasil começa o ano de 2021 não apenas assolado pela pandemia da Covid-19, que
provoca luto e danos a dezenas de milhares de famílias, mas assombrado pelo negacionismo da
ciência que busca desestimular a vacinação. O processo que envolve complexas etapas de
pesquisa cai no descrédito de parte da população, vítima de um discurso que busca deslegitimar
a ciência. Nesta entrevista, o professor Érico Andrade (UFPE) e diretor de comunicação da
Anpof convida a professora Dra. Luciana Zaterka (UFABC) para uma conversa sobre a
produção da vacina, sua eficácia, suas incertezas e a relação com negacionismo e, sobretudo,
sobre o valor da ciência nesse momento em que vivemos.
Para a professora de Filosofia da Ciência, que também é bacharel em Química, ainda
que a ciência seja uma construção humana claramente limitada, as saídas para os dilemas que
ela mesma cria não são exteriores a ela. Para ela, a ciência deve ser guiada por valores como
sustentabilidade, igualdade, democracia e respeito. Ela defende que, somente pelo
conhecimento científico, e não pela ignorância ou exclusão que poderemos ter base para
tomadas de decisão que considerem o bem da maioria, e não o interesse de alguns. Leia a
entrevista abaixo.
Temos razões para confiar em vacinas feitas em tão pouco tempo? Tem um tempo
específico para a ciência? Qual é o tempo da ciência?
Acima você falou da importância dos riscos serem minimizados. Qual a relação entre as
incertezas e o negacionismo?
Essa pergunta para quem trabalha, como eu, com Filosofia e História da Química é
fundamental. Incertezas, riscos e indeterminações fazem parte dos processos científicos. Há
muito tempo filósofos e filósofas abandonaram o mito da neutralidade científica, enxergando a
ciência como uma construção humana e claramente limitada. Porém, o argumento contra o
cientificismo não é, certamente, o negacionismo; em outras palavras, do meu ponto de vista a
saída para as incertezas e controvérsias da ciência se encontra na própria ciência. Reconhecer
possíveis controvérsias, limitações e riscos deve ser uma parte importante do processo
científico, afinal a ciência é sobretudo antidogmática.
Assim, embora possamos partir da premissa que a síntese de uma determinada nova
substância ou composto (como as vacinas) deve objetivar sobretudo um potencial benéfico para
a sociedade, sabemos que não é isso o que sempre ocorre. Do ponto de vista geral, esse
potencial benefício científico nem sempre acontece isoladamente, pois, no limite, cada nova
molécula pode ter ameaças em potencial que ainda ignoramos. Casos exemplares são dos
clorofluorcarbonetos (CFC) e do diclorodifeniltricloroetano (DDT). Neste sentido, não podemos
esquecer das questões epistêmicas internas ao conhecimento científico, como, por exemplo, o
triste caso da talidomida (C13H10N2O4), composto que existe em duas formas equivalentes
‘diferentes’, os isômeros (S) e (R), que, embora prescrito para auxiliar mulheres grávidas entre
os anos de 1957 e 1962 para minimizar os seus enjoos, possuía caráter teratógeno, ou seja,
causava vários tipos de defeitos congênitos.
Ora, pesquisas feitas após o episódio sugeriram que uma das ‘formas’, o enantiômero S
está relacionado com os efeitos da talidomida, enquanto o R é o responsável pela suas
propriedades sedativas e anti-inflamatórias. Esse caso nos mostra que a imprevisibilidade
epistêmica é intrínseca à grande parte da ciência. Mas, além dessas especificidades
epistemológicas, ligadas à estrutura e função das moléculas, outro fator que nos chama a
atenção é a complexa relação entre ética, ciência e indústria. Assim, se nos voltarmos para a
história das ciências e das técnicas veremos que em alguns casos importantes o “ethos” da
ciência se mostrou bastante problemático. Lembremos, por exemplo, da indústria tabagista que
por décadas tentou minimizar os efeitos do cigarro para a saúde humana, inclusive impedindo a
regulamentação ou mesmo as restrições ao consumo do cigarro que, comprovadamente,
provocava entre outras doenças o câncer. Esses exemplos mostram que os produtos da ciência,
muitas vezes, são imprevisíveis, porém o interessante é que ela mesma pode, em muitos casos,
resolvê-los.
Acreditamos que a saída para os dilemas que a própria ciência cria não é externa a ela.
Porém o núcleo da questão está em afirmar a importância e a confiabilidade na ciência em bases
valorativas distintas. Os valores que guiam a ciência hoje, como o controle, o progresso
desenfreado, a eficiência, o capital, a indústria, devem ser alterados por valores como
sustentabilidade, igualdade, democracia e respeito. Assim, é pelo conhecimento científico,
minimizando os riscos, aumentando a precaução, e não pela ignorância ou exclusão que
poderemos encontrar elementos importantes para a tomada de decisão, levando em consideração
não o interesse de alguns, mas o bem da maioria. Foi a ciência que descobriu, depois de muitos
estudos, a causa dos efeitos da talidomida, foi a própria ciência que demonstrou a toxicidade do
monóxido de carbono ou da nicotina. E ela mesma criou fármacos e tratamentos importantes
com relação ao câncer.
Se o ano de 2020 vai ser lembrado como o ano da pandemia da Covid-19, ele também
será lembrado como o momento em que mulheres e homens de ciência conseguiram pesquisar,
em tempo recorde, a natureza e a disseminação desse vírus, bem como meios de neutralizá-lo.
Tentar antecipar riscos, combater a ignorância ou o negacionismo, buscar aprofundar as relações
benéficas entre o âmbito científico, social, político, econômico, ambiental, farmacológico e
médico, é sem dúvida um desafio urgente. As bases da ciência contemporânea devem ser
modificadas, mas isso não tem relação com o rico e complexo mecanismo que criamos para
lidar com o mundo natural: a Ciência pública, compartilhada e voltada para o bem-comum.
Mais do que nunca, na atual pandemia, aprendemos que valores caros ao modo de vida
capitalista, como o bem individual devem ser superados pelo bem comum e a única maneira de
conseguirmos isso é por meio de uma campanha de vacinação rápida, eficaz e global. Em outras
palavras, que essa triste situação nos ajude a refletir em quais os reais valores que devem nortear
a produção e o desenvolvimento científico da humanidade.
Sem dúvida nenhuma! A ciência não é a melhor forma, mas a única maneira séria,
confiável e segura de lidar com as pandemias. É pelo esclarecimento e não pela ignorância que,
quiçá, poderemos superar esse difícil e triste momento.
Atividade
1ªQuestão) A partir da fala professora Dra. Luciana Zaterka, é possível dizer que a ciência é
neutra? De que forma ela pode ser considerada a partir de aspectos valorativos?
4ªQuestão) Na entrevista é possível verificar quantos procedimentos utilizados pela ciência para
a produção da vacina de COVID-19? Quais são eles?