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IFPA – Instituto Federal do Pará.

Disciplina: Filosofia III.


Professor: Henrique Hildebrando.

Aluno (a): LAVIGNE BARROS

Ciência e vacina: história, filosofia e método científico

01/02/2021 • Entrevista concedida a Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof) foi


fundada em 1983 durante uma reunião sobre pesquisa em Filosofia promovida pelo CNPq, em Brasília.

O Brasil começa o ano de 2021 não apenas assolado pela pandemia da Covid-19, que
provoca luto e danos a dezenas de milhares de famílias, mas assombrado pelo negacionismo da
ciência que busca desestimular a vacinação. O processo que envolve complexas etapas de
pesquisa cai no descrédito de parte da população, vítima de um discurso que busca deslegitimar
a ciência. Nesta entrevista, o professor Érico Andrade (UFPE) e diretor de comunicação da
Anpof convida a professora Dra. Luciana Zaterka (UFABC) para uma conversa sobre a
produção da vacina, sua eficácia, suas incertezas e a relação com negacionismo e, sobretudo,
sobre o valor da ciência nesse momento em que vivemos.
Para a professora de Filosofia da Ciência, que também é bacharel em Química, ainda
que a ciência seja uma construção humana claramente limitada, as saídas para os dilemas que
ela mesma cria não são exteriores a ela. Para ela, a ciência deve ser guiada por valores como
sustentabilidade, igualdade, democracia e respeito. Ela defende que, somente pelo
conhecimento científico, e não pela ignorância ou exclusão que poderemos ter base para
tomadas de decisão que considerem o bem da maioria, e não o interesse de alguns. Leia a
entrevista abaixo.

Érico Andrade: qual é a relação entre a produção do conhecimento científico e a produção


de vacina?

Luciana Zaterka: A comprovada utilização da vacinação – a forma mais segura e


eficaz de proteger as pessoas contra doenças, antes que elas entrem em contato com as
enfermidades, afinal capacitam seus sistemas imunológicos na produção de anticorpos – tem
como alicerce, sem dúvida, o saber científico. De fato, as vacinas, como qualquer produção
científica, seguem testes, protocolos e controles rigorosos. O processo inclui uma complexa
pesquisa inicial, testes em animais e humanos e, ao final, a avaliação dos resultados por
agências reguladoras. As vacinas, existentes desde o final do século XVIII, foram aplicadas,
desde então, em milhões de pessoas com eficácia e segurança. Essa segurança provém
exatamente da maneira como a ciência opera: qualquer descoberta científica necessita de
estudos exaustivos para que algumas hipóteses prossigam e outras sejam eliminadas.
Em outras palavras, para se distanciar da doxa, da mera opinião infundada, a ciência
deve permanentemente testar as hipóteses levantadas e, é claro, comprová-las por meio de
dados empíricos e protocolos para todos os procedimentos em todas as etapas. E aqui a História
e a Filosofia das Ciências, área tão desprestigiada em nosso país, torna-se um conhecimento
fundamental, pois tais protocolos não nasceram agora, mas foram sendo elaborados e
compartilhados pela comunidade cientifica no decorrer de longos períodos do desenvolvimento
científico. Não nos esqueçamos que a ciência moderna, nasce, exatamente, com a finalidade de
ser pública, compartilhada, e voltada para o bem-estar da maioria da população.
Uma vacina, de maneira geral, passa inicialmente por uma fase laboratorial em que
centenas de moléculas são analisadas até que se chegue à sua melhor composição. Aqui
homens e mulheres de ciência testam suas hipóteses, estratégias e metodologias para tentar
encontrar substâncias eficazes. A partir daqui essas substâncias são testadas em animais, como
camundongos e macacos, para se obter (ou não) comprovação dos dados iniciais obtidos nas
experimentações in vitro. Em seguida, entra-se na fase clínica em que tais componentes são
testados em humanos, com o fundamental objetivo de verificar possíveis efeitos farmacológicos,
reações adversas, visando confirmar sua segurança e eficácia. A questão do risco aqui é
fundamental.
Essa etapa é dividida em três: na primeira fase, usualmente feita com um grupo pequeno
de voluntários, adultos saudáveis, avalia-se a sua segurança, bem como se, de fato, gera
respostas imunes ao organismo. Na fase seguinte, em que centenas de voluntários – com
características semelhantes, como idade e sexo, das pessoas para as quais a vacina se destina –
recebem a imunização, avalia-se de maneira mais profunda eventuais efeitos colaterais e,
portanto, há uma preocupação minuciosa com a sua segurança e eficácia. Na fase três, de posse
de todos os dados e protocolos anteriores, a vacina é administrada para milhares de voluntários,
alguns recebem a vacina experimental e outros recebem um placebo ou substância neutra,
sem efeitos farmacológicos, conhecido como método de duplo-cego.
Ao fazer a comparação dos dois grupos é possível se chegar com clareza e precisão na
percentagem da eficácia da vacina. O objetivo principal é chegar em uma análise qualitativa e
quantitativa de sua proteção contra a doença. Por fim, e não menos importante, órgãos oficiais
de regulação científica da produção industrial da vacina e de sua aplicação à população, como a
Anvisa, devem examinar todo o processo, conceder a autorização para a produção e a
distribuição da vacina em dado território. O laboratório da indústria farmacêutica deve continuar
avaliando continuamente a vacina, mesmo nessa quarta fase, pois os estudos clínicos são
sempre realizados com um número de pessoas inferior àquele que receberá a vacina. Penso que
com esse rico, complexo, minucioso e rígido protocolo a vacina só poderia ser fruto dessa
magnífica construção humana que é a ciência.

Temos razões para confiar em vacinas feitas em tão pouco tempo? Tem um tempo
específico para a ciência? Qual é o tempo da ciência?

A questão da temporalidade é fundamental e inquieta muitas pessoas nos dias de hoje,


inclusive ao fortalecer argumentos negacionistas. Se, por um lado, é fato, por exemplo, que
desde sempre vacinas demoravam anos, quiçá décadas, para ser produzidas, com a Covid-19 a
perspectiva alterou-se radicalmente. A fase três, por exemplo, que demoraria anos para ser
concluída, (afinal, por questões éticas, não se pode contaminar os voluntários propositalmente,
tendo que esperar, então, que eles sejam expostos e contaminados pelo vírus contingentemente),
foi consideravelmente reduzida. Como? Por meio da ciência, isto é, procurando introduzir esses
voluntários em locais nos quais a incidência da doença é maior, onde existe um alto grau de
contágio, assim podendo averiguar os seus resultados, níveis de segurança e eficácia.
Aliás, o Brasil, nesse sentido, se “beneficiou” ao participar por meio de duas
instituições científicas reconhecidas para os testes de duas vacinas contra a Covid-19. Mas não
somente isso. É claro que para serem minimizados quaisquer riscos, a ciência precisa de tempo.
Efeitos colaterais podem não surgir a curto ou médio prazo, por exemplo. Ora, aqui notamos,
mais uma vez, como o desenvolvimento da ciência, seu processo mesmo, é fundamental. As
plataformas de muitas vacinas, as chamadas plug&play foram criadas, pelo menos desde
2010, como as de
mRNA (RNA mensageiro), uma tecnologia inédita que ‘ensina’ a célula a produzir proteínas, e
com isso produz uma reação de anticorpos contra a espícula do coronavírus. Assim, cientistas
criaram um modelo padrão e só trocam o material genético do vírus.
No caso da Covid-19, todos os estudos já realizados anteriormente envolvendo os vírus
SARS e MERS auxiliaram na pesquisa e produção dessas novas vacinas, pois a proteína em
questão, a Spike, já era conhecida. Aqui o tempo pode de maneira segura ser encurtado, o que
não poderia ocorrer se a proteína fosse desconhecida. Além disso, não podemos esquecer tanto a
rápida transmissão desse vírus, como a forma de contágio, que diferentemente do HIV, por
exemplo, pode ser detectado em poucos dias. Essa rapidez e facilidade, sem dúvida, acelerou
consideravelmente os estudos clínicos necessários.
Por fim, outro aspecto que não pode ser negligenciado é que a atual pandemia
conseguiu reunir recursos impensáveis em outras épocas, de fontes as mais diferenciadas que,
então, aceleraram o processo de pesquisa que sempre foi muito dispendioso. Penso que a partir
dessas reflexões notamos claramente que não tivemos pulos ou etapas sem controle, mas que
condições tanto internas como externas favoráveis a essas etapas dos processos científicos
auxiliaram, felizmente, a sua realização mais rápida.

Acima você falou da importância dos riscos serem minimizados. Qual a relação entre as
incertezas e o negacionismo?

Essa pergunta para quem trabalha, como eu, com Filosofia e História da Química é
fundamental. Incertezas, riscos e indeterminações fazem parte dos processos científicos. Há
muito tempo filósofos e filósofas abandonaram o mito da neutralidade científica, enxergando a
ciência como uma construção humana e claramente limitada. Porém, o argumento contra o
cientificismo não é, certamente, o negacionismo; em outras palavras, do meu ponto de vista a
saída para as incertezas e controvérsias da ciência se encontra na própria ciência. Reconhecer
possíveis controvérsias, limitações e riscos deve ser uma parte importante do processo
científico, afinal a ciência é sobretudo antidogmática.
Assim, embora possamos partir da premissa que a síntese de uma determinada nova
substância ou composto (como as vacinas) deve objetivar sobretudo um potencial benéfico para
a sociedade, sabemos que não é isso o que sempre ocorre. Do ponto de vista geral, esse
potencial benefício científico nem sempre acontece isoladamente, pois, no limite, cada nova
molécula pode ter ameaças em potencial que ainda ignoramos. Casos exemplares são dos
clorofluorcarbonetos (CFC) e do diclorodifeniltricloroetano (DDT). Neste sentido, não podemos
esquecer das questões epistêmicas internas ao conhecimento científico, como, por exemplo, o
triste caso da talidomida (C13H10N2O4), composto que existe em duas formas equivalentes
‘diferentes’, os isômeros (S) e (R), que, embora prescrito para auxiliar mulheres grávidas entre
os anos de 1957 e 1962 para minimizar os seus enjoos, possuía caráter teratógeno, ou seja,
causava vários tipos de defeitos congênitos.
Ora, pesquisas feitas após o episódio sugeriram que uma das ‘formas’, o enantiômero S
está relacionado com os efeitos da talidomida, enquanto o R é o responsável pela suas
propriedades sedativas e anti-inflamatórias. Esse caso nos mostra que a imprevisibilidade
epistêmica é intrínseca à grande parte da ciência. Mas, além dessas especificidades
epistemológicas, ligadas à estrutura e função das moléculas, outro fator que nos chama a
atenção é a complexa relação entre ética, ciência e indústria. Assim, se nos voltarmos para a
história das ciências e das técnicas veremos que em alguns casos importantes o “ethos” da
ciência se mostrou bastante problemático. Lembremos, por exemplo, da indústria tabagista que
por décadas tentou minimizar os efeitos do cigarro para a saúde humana, inclusive impedindo a
regulamentação ou mesmo as restrições ao consumo do cigarro que, comprovadamente,
provocava entre outras doenças o câncer. Esses exemplos mostram que os produtos da ciência,
muitas vezes, são imprevisíveis, porém o interessante é que ela mesma pode, em muitos casos,
resolvê-los.
Acreditamos que a saída para os dilemas que a própria ciência cria não é externa a ela.
Porém o núcleo da questão está em afirmar a importância e a confiabilidade na ciência em bases
valorativas distintas. Os valores que guiam a ciência hoje, como o controle, o progresso
desenfreado, a eficiência, o capital, a indústria, devem ser alterados por valores como
sustentabilidade, igualdade, democracia e respeito. Assim, é pelo conhecimento científico,
minimizando os riscos, aumentando a precaução, e não pela ignorância ou exclusão que
poderemos encontrar elementos importantes para a tomada de decisão, levando em consideração
não o interesse de alguns, mas o bem da maioria. Foi a ciência que descobriu, depois de muitos
estudos, a causa dos efeitos da talidomida, foi a própria ciência que demonstrou a toxicidade do
monóxido de carbono ou da nicotina. E ela mesma criou fármacos e tratamentos importantes
com relação ao câncer.
Se o ano de 2020 vai ser lembrado como o ano da pandemia da Covid-19, ele também
será lembrado como o momento em que mulheres e homens de ciência conseguiram pesquisar,
em tempo recorde, a natureza e a disseminação desse vírus, bem como meios de neutralizá-lo.
Tentar antecipar riscos, combater a ignorância ou o negacionismo, buscar aprofundar as relações
benéficas entre o âmbito científico, social, político, econômico, ambiental, farmacológico e
médico, é sem dúvida um desafio urgente. As bases da ciência contemporânea devem ser
modificadas, mas isso não tem relação com o rico e complexo mecanismo que criamos para
lidar com o mundo natural: a Ciência pública, compartilhada e voltada para o bem-comum.
Mais do que nunca, na atual pandemia, aprendemos que valores caros ao modo de vida
capitalista, como o bem individual devem ser superados pelo bem comum e a única maneira de
conseguirmos isso é por meio de uma campanha de vacinação rápida, eficaz e global. Em outras
palavras, que essa triste situação nos ajude a refletir em quais os reais valores que devem nortear
a produção e o desenvolvimento científico da humanidade.

A ciência é a melhor forma de lidar com pandemias como a COVID-19?

Sem dúvida nenhuma! A ciência não é a melhor forma, mas a única maneira séria,
confiável e segura de lidar com as pandemias. É pelo esclarecimento e não pela ignorância que,
quiçá, poderemos superar esse difícil e triste momento.

Atividade

1ªQuestão) A partir da fala professora Dra. Luciana Zaterka, é possível dizer que a ciência é
neutra? De que forma ela pode ser considerada a partir de aspectos valorativos?

3ªQuestão) Aponte na entrevista acima os aspectos subjetivos e objetivos que norteiam a


ciência e a produção do conhecimento científico, a partir da fabricação da vacina de Covid-19.

4ªQuestão) Na entrevista é possível verificar quantos procedimentos utilizados pela ciência para
a produção da vacina de COVID-19? Quais são eles?

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