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MORICONI:
Um cânone tradicional em uma escrita historiográfica inovadora
Cibele Hechel Colares da Costa (FURG)
UM CÂNONE TRADICIONAL
Qualquer escolha envolve, inevitavelmente, abrir mão de uma série de
elementos em função de outros, isso em qualquer que seja a situação, inclusive na
construção das histórias literárias, nas quais sempre um cânone será eleito pelo
historiador. Até mesmo naqueles casos em que o historiador pretende uma história
literária totalizadora, pois é impossível dar conta de tudo que já foi publicado. Sobre
esse aspecto Schimdt (1996) afirma que se tem um dos problemas da construção de
história literária que é a aceitação de que todas prosseguem de maneira seletiva e que
toda seleção é normativa, essa conexão é evidente, considerando-se a produção dos
cânones.
Wendell Harris (1998) para tratar da variedade dos cânones utiliza a proposta
de Altastair Fowler que classifica os cânones sob seis tipos: potenciais que consistem
em um corpus escrito em sua totalidade incluindo a literatura oral; acessíveis que são
parte do cânone potencial disponível em um momento único; seletivos que
compreendem as antologias e resenhas críticas, criadas a partir de listas de textos e
autores; oficiais que são uma mescla das listas produzidas nas obras que resultam do
cânone seletivo; pessoais que são criados por leitores de forma individual, através dos
quais eles valorizam as obras a partir de sua percepção pessoal; críticos que
consistem nas obras, como artigos ou livros de crítica literária.
Na obra em análise, o historiador literário elege um cânone e tem consciência
que ao fazer isso ele está deixando de fora uma série de obras e escritores que são
também importantes dentro da poesia brasileira do século XX. Seguindo a tipologia de
classificação de cânones apresentada², a obra de Moriconi é constituída pelo tipo de
cânone seletivo, devido ao fato de o autor fazer, conforme já mencionado, escolhas
para escrever sua narrativa e, também, crítico, pois existe um exercício crítico sobre
alguns poemas que o historiador elege em seu cânone. Ressalta-se que nem por
existir esse exercício crítico, em alguns momentos da narrativa, ela perde sua
essência de história literária, visto que exercer a criticidade faz parte, também, da
construção narrativa da história literária.
O conceito de cânone apresentado consiste em um conjunto constituído pela
poesia que, conforme Moriconi, desde o nascedouro se quis e foi lida como canônica e
devido sua ambição filosófica e estética, bem como por sua alta criatividade. Um dos
capítulos principais, que discute a questão do cânone, é o quinto capítulo, que o
historiador chama de Grandes livros, alta poesia, no qual ele apresenta um cânone de
obras que ele considera o núcleo do cânone moderno, e será neste capítulo que esta
análise de cânone irá se centrar. Para compreender as escolhas feitas por Moriconi, é
preciso entender os dois conceitos que ele apresenta e que são os conceitos de
poesia essencial e de poesia canônica. O primeiro conceito é o de poesia essencial:
Poesia essencial é ligação simples entre algumas metáforas
formando um ritmo que faz a linguagem brincar, dançar, de
verso a verso, pulando de uma estrofe para a outra. Poesia
essencial combina com metros curtos, com estancias ao gosto
popular. Um poema essencial é formado única e
exclusivamente de poesia essencial. Definido pelo outro lado,
podemos dizer: poesia essencial é a matéria de que são feitos
poemas essenciais. (MORICONI, 2002: 69)
Deste modo, a poesia essencial é aquela poesia que se pode identificar como
sendo integrante do gênero literário lírico, que é o conceito, conforme já mencionado
no início deste estudo, que Moriconi utiliza para apoiar a escrita desta história literária.
O segundo conceito importante, para que se possa compreender a seleção de obras
apresentadas a seguir, é o de poesia canônica e, sobre este, Moriconi faz a seguinte
afirmação:
Um poema canônico propriamente dito, canônico no sentido
estrito da palavra, pode e deve conter elementos, ou mesmo
longos trechos de poesia essencial, que no entanto não o
esgotam em sua realidade, pois tais trechos estão
necessariamente inseridos numa estrutura mais complexa. Há
trechos líricos em os Lusíadas, mas este poema maior de
nossa tradição define-se basicamente como épico. O gênero
épico é o fantasma que está por trás de todas as tentativas de
poesia canônica. Fantasma de um modelo, marcando um
horizonte de impossibilidade. (MORICONI, 2002: 69)
O fato de determinada poesia ser canônica não significa que ele não tenha
traços de uma poesia essencial, inclusive Moriconi afirma que ela deve conter traços
desse tipo de poesia. O que as difere, de um modo geral, é que a poesia essencial,
conforme afirma Moriconi, nem sempre começa canônica, pois muitas vezes o poeta a
constrói a fim de atingir o cânone que está posto, fato comum no modernismo
brasileiro, e, por vezes, neste movimento de tentar romper algo que esta em vigor à
poesia que era, em seu início essencial, passa a uma posição de poesia canônica, ou
seja, uma poesia mais voltada à construção e a reformação do que as críticas e as
rupturas.
Destacados os conceitos, verifica-se à apresentação das obras elencadas
por Moriconi como sendo as canônicas, dentro de toda poesia brasileira do século XX,
entre elas está Claro Enigma, de Drummond, considerada pelo historiador, como a
melhor obra de poesia do século em questão:
Meu objetivo agora é comentar um elenco de livros de poesia
que considero os mais importantes do século passado. Os
maiores. Os melhores. O núcleo de nosso cânone moderno. A
base do capital de excelência legado pelo século XX aos
tempos vindouros. Enquanto existir Brasil. A lista é
propositalmente polêmica. Apesar disso, tenho certeza de que
a maioria dos demais críticos literários e amantes de nossa
poesia concordará com ela. Trata-se de uma lista pessoal, mas
não a considero idiossincrática. Vamos a ela, organizada em
conseqüência cronológica. A Rosa do Povo, de Carlos
Drummond de Andrade (1945). Psicologia da Composição e
Antiode, de João Cabral de Melo Neto (1947). Claro Enigma,
de Carlos Drummond de Andrade (1951). Invenção de Orfeu,
de Jorge de Lima (1952). Romanceiro da Inconfidência, de
Cecília Meireles (1953). Fazendeiro do Ar, Carlos Drummond
de Andrade (1954). Contemplação de Ouro Preto, de Murilo
Mendes (1954). Morte e Vida Severina e Uma Faca Só Lâmina,
de João Cabral de Melo Neto (1956). Siciliana e Tempo
Espanhol, de Murilo Mendes (1959). Terceira Feira (reunindo
Quaderna, Dois Parlamentos e Serial), de João Cabral de Melo
Neto (1961). Lições de Coisas, de Carlos Drummond de
Andrade (1962). A Educação pela Pedra, de João Cabral de
Melo Neto (1966). Convergência, de Murilo Mendes (1966).
(MORICONI, 2002: 66 – 67)
Nessa passagem ele busca, talvez, uma identificação com os seus diversos
tipos de leitores, tanto os leitores letrados que se identificam com o fato de terem
vontade de, por vezes, fazer leituras por simples prazer, sem as cobranças com
interpretações teóricas e, também, com os não letrados que poderão pensar que se a
poesia pode ser lida sem um aparato interpretativo, pode ser lida, por qualquer pessoa
que tenha interesse por este gênero literário.
REFERÊNCIAS
BARRENTO, João. O regresso de Clio? Situação e aporias da história literária. In:
______. História literária: problemas e perspectivas. Lisboa: Apáginastantas, 1986. p.
9-31.
BEUTIN, W. et aliii. História da literatura: por que e para quê? In: BARRETO, João.
História literária: problemas e perspectivas. Lisboa: Apáginastantas, 1986. p. 111- 117.
JAUSS, Hans Robert. A História da literatura como provocação à Teoria Literária. São
Paulo: Ática, 1994.
MORICONI, Ítalo. Como e por que ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2002.