Você está na página 1de 3

FPRI. 1º Ano, 2021-2022, II SEMESTRE.

Sobre o Direito e a Justiça na Grécia Clássica de


Homero (Odisseia; Ilíada) e Hesíodo (Teogonia; Os Trabalhos e os Dias) segundo Werner Jaeger
“A Filosofia do direito é quase tão antiga como a própria Filosofia e a especulação teorética (…) Nos
antigos tempos, desde os primeiros alvores que se conhecem da filosofia naturalista dos Jónios, no
século VI a.C., e depois da fase mitológica do pensamento grego, a natureza das leis do Estado (νόμῳ
δίκαιον) foi durante muito tempo julgada idêntica à das restantes leis do Cosmos (φúσει δίκαιον),
constituindo este a φúσις (phusis/physis), dentro da qual o homem vivia encaixado como uma parte no
todo, sem nenhuma espécie de autonomia. O universo continha-o a ele e ele, contido no universo,
contemplava-o e reflectia-o, como um espelho reflecte uma imagem, sem perguntar por si nem pela
natureza do fenómeno que reside nessa reflexão. Todo o direito do Estado era considerado tão natural
como a natureza, no sentido que nós damos hoje a esta palavra, com todos os seus fundos misteriosos e
divinos, sendo a isso que ainda agora se chama com razão uma concepção cosmológica do direito
natural ou um Jusnaturalismo cosmológico. Começou por aí o pensamento grego e foi ele
indiscutivelmente quem inventou, por isso, a própria expressão "direito natural" com que desde essa
época, e sobretudo depois de generalizada mais tarde pelos romanos, se ficou a designar a Filosofia do
direito”. in MONCADA, Cabral de (1945). Filosofia do Direito e do Estado, pp. 11-12.

“Esta norma superior é a Dike que o magno invoca como uma força divina, que o nomóteta
(legislador) promulga nas suas leis… é ela que deve estabelecer entre os cidadãos um justo
equilíbrio que garante a eunomia: a repartição equitativa dos cargos, das honras e do poder
entre os indivíduos e as fações que constituem o corpo social. Deste modo, a Dike concilia e
harmoniza esses elementos para deles formar uma única comunidade, uma cidade unida”.
(VERNANT, J. P. (1987). Origens do Pensamento Grego, trad. de Manuela Torres, p. 84.
A obra de Homero é inspirada, na sua totalidade, por um pensamento “filosófico” relativo à natureza humana e às leis
eternas que governam o mundo. Não lhe escapa nada do esssencial da vida humana. O poeta contempla todo o
conhecimento particular à luz do seu conhecimento geral da essência das coisas (JAEGER, W. Paideia. A formação do
homem grego, 2013, p. 64).
(...) A perfeita harmonia da natureza e da vida humana, revelada na descrição do escudo, domina a concepção homérica
da realidade... Homero não é naturalista nem moralista. Não se entrega às experiências caóticas da vida sem tomar
posição perante elas, nem as domina de fora. As forças morais são para ele tão reais como as forças físicas. Compreende
as paixões humanas com visão penetrante e objetiva. Conhece-lhes a força primária e demoníaca, que é mais potente do
que o Homem e o arrasta. Mas, embora a sua corrente com frequência alague as margens, encontra sempre a barrá-la,
por fim, um dique inamovível. Para Homero, como para os gregos em geral, as últimas fronteiras da ética não são
convenções do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por esse amplo sentido da realidade, em
relação ao qual todo “realismo” aparece como irreal, que se baseia a força ilimitada da epopeia homérica (Ibidem: 77).
(...) No mundo em que vive, nada de grande acontece sem a cooperação de uma força divina, e a mesma coisa
acontece na epopeia... (Ibidem: 77). A epopeia conserva, assim, uma duplicidade característica. Qualquer ação deve
ser encarada ao mesmo tempo sob o ponto de vista humano e sob o ponto de vista divino. A cena desse drama
desenrola-se em dois planos. Seguimos constantemente a sua marcha sub specie das ações e projetos humanos, e dos
mais altos poderes que governam o mundo (Ibidem: 79).
(...) Hesíodo pensa que entre os homens não se deve apelar jamais para o direito do mais forte, como o falcão faz com o
rouxinol. Na primeira parte do poema (Ilíada) desvenda-se o conceito religioso de que a ideia do direito se situa no
centro da vida. Naturalmente, esse elemento ideológico não é um produto original da vida campesina primitiva e nem
sequer pertence à Grécia propriamente, na forma como encontramos em Hesíodo (...) A mais antiga fonte dessas ideias
é, na nossa opinião, Homero. É nele que se encontra o primeiro elogio da justiça. No entanto, a ideia do direito não se
encontra na Ilíada em posição de tanto destaque como na Odisseia, mais próxima, no tempo, de Hesíodo. Nesta aparece
a convicção de que os deuses são os guardiães da justiça e de que o seu reinado não seria realmente divino se não
levasse, por fim, ao triunfo da justiça. Esse é um postulado que domina toda a ação da Odisseia. Também encontramos
na Ilíada, numa famosa alegoria da Patrocleia, a convicção de que Zeus desencadeia no céu tempestades terríveis
quando na Terra os homens violam a justiça. Mas esses indícios isolados de uma concepção ética dos deuses, e mesmo
as convicções que norteiam a Odisseia, estão muito longe da paixão religiosa de Hesíodo, o profeta do direito... bebe
em Homero o conteúdo da sua ideia de direito assim como algumas locuções linguísticas características. Mas a força
reformadora com que vive essa ideia na vida real, bem como o absoluto predomínio sua concepção do governo dos
1
deuses e do sentido do mundo, inaugura uma nova época. A ideia do direito é para ele a raiz de que deverá brotar
uma sociedade melhor. A identificação da vontade divina de Zeus com a ideia do direito e a criação de uma nova
personagem divina, Dike, tão intimamente ligada a Zeus (tal como as suas as irmãs Eunomia - segurança e Eirene –
Paz, filhas de Zeus e Themis), o deus supremo, são a imediata consequência da força religiosa e da seriedade moral com
que a classe camponesa nascente e os habitantes da cidade sentiram a exigência da proteção do direito. (Ibidem: 97-98).
(...) As censuras de Hesíodo contra os senhores venais, que na sua função judicial atropelavam o direito, eram o
antecedente necessário dessa reclamação universal. É por ele que a palavra direito, dike se converte no lema da luta de
classes. A história da codificação do direito nas diversas cidades processa-se por vários séculos e sabemos muito pouco
sobre ela. Mas é aqui que encontramos o princípio que a inspirava. Direito escrito era direito igual para todos, grandes e
pequenos. Hoje, como outrora, podem continuar a ser os nobres, e não os homens do povo, os juízes. Mas estão
submetidos no futuro, nas suas decisões, às normas estabelecidas da dike. (Ibidem: 134).
Homero apresenta-nos o antigo estado de coisas. É com outro termo que designa, em geral, o direito: thémis. Zeus dava
aos reis homéricos “cetro e thémis”. Thémis era o compêndio da grandeza cavaleiresca dos primitivos reis e nobres
senhores. Etimologicamente significa “lei”. Os cavaleiros dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei
proveniente de Zeus, cujas normas criavam livremente, segundo a tradição do direito consuetudinário e o seu próprio
saber. O conceito de dike não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto thémis.
Dizia-se das partes contenciosas que “dão e recebem dike”. Assim se compendiava numa palavra só a decisão e o
cumprimento da pena. O culpado “dá dike”, o que equivale originariamente a uma indenização, ou compensação. O
lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, “recebe dike”. O juíz “reparte dike”. Assim, o significado
fundamental de dike equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. Significa ao mesmo tempo,
concretamente, o processo, a decisão e a pena (i.e. a justeza ou equidade). Simplesmente, nesse caso o significado
intuitivo não é o original, como habitualmente, mas o derivado. O alto sentido que a palavra recebe na vida da polis
posterior aos tempos homéricos não se desenvolve a partir desse significado exterior, e sobretudo técnico, mas sim do
elemento normativo que se encontra no fundo daquelas antigas formas jurídicas, conhecidas de todo mundo. Significa
que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa o próprio princípio que garante essa
exigência e no qual se poderá apoiar quem for prejudicado pela hýbris – palavra cujo significado original corresponde à
ação contrária ao direito. Enquanto thémis refere-se principalmente à autoridade do direito, à sua legalidade e à sua
validade, dike significa o cumprimento da justiça. Assim se compreende que a palavra dike se tenha convertido
necessariamente em grito de combate de uma época em que se batia pela consecução do direito uma classe que até então
o recebera apenas como thémis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à dike tornou-se de dia para dia mais
frequente, mais apaixonado e mais premente. (Ibidem: 134-135).
Mas essa palavra tinha ainda, em sua origem, uma acepção mais ampla, que a predestinava àquelas lutas: o sentido de
igualdade. Desde o início esse sentido devia estar contido nela, em germe. Para melhor compreendê-lo, é preciso ter
presente a ideia popular original, segundo a qual se tem de pagar igual com igual, devolver exatamente o que se
recebeu e dar compensação equivalente ao prejuízo causado (proporcionalidade; equidade; igualdade...). É
evidente que essa intuição fundamental deriva da esfera dos direitos reais, o que coincide com o que sabemos da
história do direito em outros povos. Esse matiz de igualdade na palavra dike mantém-se no pensamento grego através de
todos os tempos. Depende dele a própria doutrina filosófica do Estado dos séculos seguintes, a qual trata apenas de
conseguir uma nova elaboração do conceito de igualdade, que, na versão mecanizada em que subsistia no Estado
jurídico democrático, opunha-se abruptamente à doutrina aristocrática de Platão e Aristóteles sobre a desigualdade dos
homens. (Ibidem: 135)
A exigência de um direito igualitário constitui a mais alta meta para os tempos antigos. Forneceu uma medida para
decidir as questões sobre o “meu e teu”, e dar o seu a seu dono. Repete-se aqui, na esfera jurídica, o problema que na
mesma época encontramos na esfera económica e que levou à fixação de normas de peso e medida para o intercâmbio
de mercadorias (ética comercial). Procurava-se uma “medida” justa para a atribuição do direito e foi na exigência
de igualdade, implícita no conceito de dike que se encontrou essa medida. (Ibidem: 136). in JAEGER, Werner
(2013 [1936]). Paideia. A formação do homem grego, trad. Artur M. Parreira, 6.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, pp.
134-136.
Questões para reflexão e análise:
1). Pode-se falar, do seu ponto de vista, de uma perspetiva jurídico-cosmológico e existencial do direito na tradição
literária e mitológica da Grécia Clássica de Homero e Hesíodo? Justifique com 2 argumentos.
2). O que entendiam os gregos clássicos por “direito” e “justiça” e como elas eram possíveis?

2
3) Como a compreensão grega da “justiça” e do “direito” influenciou o pensamento ocidental da filosofia do direito?

Você também pode gostar