Você está na página 1de 6

1

AS DEUSAS DA JUSTIÇA.

FRANCISCO CARLOS TÁVORA DE ALBUQUERQUE CAIXETA (*)

RESUMO: Este artigo objetiva dirimir a são equivocados e contraditórios. É imperioso


confusão estabelecida em torno da figura da mencionar que até sites de pesquisa na Web, de
“Deusa da Justiça”, revisitando as origens Escritórios de Advocacia e inclusive de
mitológicas, filosóficas e históricas da questão. Faculdades de Direito disponibilizam
informações errôneas.
ABSTRACT: The present article will resolve
the confusion established about the figure of the É, pois o presente artigo jurídico no
"Justice’s Goddess", revisiting the mythological, sentido de dirimir a instalada celeuma
philosophical and historical origins of the respondendo a cândida pergunta “quem é afinal,
question. a Deusa da Justiça?”.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia do Direito. 2. DESENVOLVIMENTO.


História do Direito. Mitologia Greco-Romana.
Deusas da Justiça. (THEMIS)

Themis era filha de Urano (o céu, o


SUMÁRIO: 1.Intróito, 2. Desenvolvimento. paraíso) e de Gaia (a Terra). Faz parte, portanto,
2.1. Síntese, 3.Conclusão, Bibliografia. do mundo pré-olímpico dos Titãs, do qual ela,
Leto e outras Titânides aparecem mais tarde
1. INTRÓITO: entre os olímpicos. Era uma divindade da
segunda geração, criada, juntamente com
Nêmesis (a deusa da ética) pelas moiras1. Seu
A balança na condição de símbolo do nome significa "aquela que é posta, colocada",
Direito e da Justiça é um dos símbolos sendo considerada a personificação da Ordem e
profissionais universalmente conhecidos. do Direito divino, ratificados pelo Costume e
Contudo, a representação original não consiste pela Lei. Têmis na mitologia grega é a protetora
na balança sozinha, e sim, na balança, em dos oprimidos e significa lei, ordem e igualdade.
perfeito equilíbrio, sustentada por mãos
femininas. Têmis2 não representa a matéria em si,
como sua mãe Gaia, porém uma qualidade da
Nesse sentido, existe uma enorme terra, isto é, sua estabilidade, solidez e
confusão em relação a quem é a “Deusa da imobilidade. Ela era uma deusa que falava com
Justiça”. Enquanto para a maioria das pessoas é os homens por meio dos oráculos. Logo, Têmis
Themis (ou Têmis, as duas formas de grafia é a Deusa oracular da Terra, ela defende e fala
estão corretas), há os que acreditam que é Diké e em nome da Terra, do enraizamento da
outros que é Iustitia. Há também aqueles que humanidade em uma conscisitente ordem
desconhecem a controvérsia, e os que nem tem natural.
vontade de saber quem é a figura da mulher que
representa a “Deusa da Justiça”. Certos pensadores acreditam ser Têmis
uma abstração das noções humanas de uma
A confusão é tamanha e tão estabelecida justiça de uma cultura específica, possivelmente
que os próprios materiais e fontes de pesquisa matrifocal. Sob o prisma de uma ótica
2
arquetípica, sustentaria que Têmis não é o fruto Icnograficamente, Themis é retratada
da organização social, contudo o pressuposto empunhando uma balança, por meio da qual
para tanto. Sua existência psicológica precede e equilibra a razão com o julgamento, e/ou uma
subjaz a compreensão humana do que ela quer cornucópia4; porém nunca é representada
dizer ou ensinar. A visão arquetípica localizaria segurando uma espada.
sua origem na natureza psíquica, no inconsciente
coletivo, ao invés de a localizar na cultura e na Nessa direção, o magistrado Júlio César
consciência coletiva. Destarte, seu papel não é Ballerini Silva, em pertinente artigo de sua
secundário, e sim principal. autoria chamado "Considerações a respeito do
Conceito de Justiça na Antiguidade Greco-
Há que se ressaltar que um dos atributos Romana" reza que:
de Têmis é sua estonteante beleza, além do
poder de atração de sua dignidade. Nessa esteira, “(...) a Themis seria uma espécie de termo
Têmis foi a segunda esposa de Zeus, depois de intermediário entre a concepção divina de
Métis e antes de Hera. Suas filhas eram Eumônia Justiça (uma Justiça ditada por Zeus) e a
(a Disciplina), Dikê (a Justiça), e Eiriné (a Paz). Diké, de inspiração aberta ou zetética (ou
Relevante mencionar que foi a própria Themis melhor, menos dogmática) que se
quem fez da sua filha Diké a “Deusa da
orientava no sentido de se preocupar com
Justiça”3.
os interesses de seus destinatários. (sic)”5.
Sua outra filha com Zeus era Astréia,
Themis tem como outros símbolos,
Deusa virgem e protetora da humanidade e que
exempli gratia: a lâmpada, a manjerona e
simboliza a pureza e a inocência, pregando a
"pudenda muliebria"; possuindo esses últimos
sabedoria e ensinando aos homens atividades
dois uma relação com à fertilidade e à
caseiras, como caçar, plantar, etc. Era também
sexualidade.
uma deusa da justiça, todavia não existem
relatos explícitos e consistentes de sua
icnografia, podendo se assemelhar a de Diké.
Reza a lenda que Astréia abandonou a Terra no (DIKÉ)
término da Idade do Ouro com o fito de não ter
Consoante o abordado acima, Diké
que presenciar as aflições e sofrimentos da
(também cognominada de Dice), era filha de
humanidade ao longo das idades do Bronze e do
Zeus com Themis, viveu junto aos homens na
Ferro. No céu, ela se transformou na constelação
Idade do Ouro, e simbolizava a deusa grega dos
de Virgem, e a balança de Têmis (que Astréia
julgamentos e da justiça, vingadora das
levava consigo), tornou-se a constelação de
violações da lei.
Libra.
Equivale a deusa Iustitia da mitologia
Voltando as qualidades de Têmis, ela era
romana.
também a deusa da consciência coletiva e da
ordem social, da lei espiritual divina, paz, ajuste
Icnograficamente, Diké aparece com a
de divergências, justiça divina, encontros
mão direita sustentando uma espada (numa
sociais, juramentos, sabedoria, profecia, ordem,
alusão a força, elemento indispensável ao
nascimentos, cortes e juízes; tendo sido, além de
Direito) e com a mão esquerda, por sua vez,
tudo isso, a inventora das artes.
sustentando uma balança de pratos (referindo-se
à igualdade como meta buscada pelo Direito),
Ademais, salienta-se que Themis era a
sem que o fiel esteja no meio, equilibrado. O fiel
deusa grega guardiã dos juramentos dos homens
só vai para o meio depois da realização da
e da lei, sendo costumeiro invocá-la nos
justiça, do ato tido por justo, pronunciando o
julgamentos perante os magistrados, por esse
Direito no instante de "ison" (equilíbrio da
fato, ela foi denominada de "Deusa do
balança). Percebe-se que, nesta concepção, para
Juramento ou da Lei". Por isso, foi em várias
os gregos, o ideal de justo (Direito) era
ocasiões considerada como deusa da justiça,
identificado com o de igual (Igualdade).
título atribuído na realidade a Diké e a Iustitia.
3
Themis é representada apenas segurando uma
É de se mencionar que Diké é balança ou segurando a balança e uma
representada com os olhos bem abertos, para cornucópia.
valer-se no julgamento não só da audição, como
também da visão (a deusa romana Iustitia não Foram os artistas alemães do século XVI
aparece com os olhos abertos, mas sim, que inventaram a venda.
vendados) e descalça.
A faixa cobrindo os olhos retratava a
Nesse diapasão, Edson Alexandre da imparcialidade necessária a um julgamento justo
Silva no percuciente artigo de sua lavra e escorreito. Utilizando a venda, a deusa não vê
intitulado de “Uma história, dos primórdios aos distinção entre as partes litigantes, sejam ricos
nossos dias, da Justiça de Paz em questão” ou pobres, poderosos ou humildes, intelectuais
assevera que: ou analfabetos. Suas decisões, justas e
prudentes, não eram baseadas na personalidade,
“O povo grego antigo simbolizava a nas qualidades ou no poder dos indivíduos
justiça, através da Deusa Diké, filha de envolvidos na contenda judicial, mas sim, no
Zeus e de Themis, em cuja mão direita saber das leis. Atualmente, conservada a venda
estava a espada, segurando em sua mão nos olhos, visa-se conferir à estátua de Diké a
esquerda uma balança, possuindo os olhos imagem de uma Justiça que, cega, concede a
bem abertos, dizia-se existir o justo quando cada um o que é seu sem conhecer o litigante.
os pratos estavam em equilíbrio (ison(6)). Imparcial, não distingue ninguém. Aplicando a
Assim para os gregos o justo (o direito) todos o reto Direito.
significava o mesmo que igual (igualdade)
(sic)6”. (IUSTITIA)

Diké era também uma das Horas (horae) Posteriormente, em Roma, a figura da
que constituíam um grupo de deusas gregas que mulher passou a ser a deusa Iustitia (ou
presidiam às estações dos anos. Irene (paz), Diké Justitia), de olhos vendados, que, com as duas
(justiça) e Eunômia (disciplina) - filhas de Zeus mãos, segurava uma balança, já com o fiel ao
e Têmis - são as Horas mais velhas, estando meio. Quer dizer, Iustitia era a deusa romana
“linkadas” a legislação e ordem natural, sendo que personificava a justiça. Equivalia, a deusa
uma extensão dos atributos de Têmis. Eumônia Diké na Grécia, diferindo dela por aparecer de
se encontra relacionada com a representação da olhos vendados, simbolizando a imparcialidade
divindade da justiça. Têmis e Diké elucidam o da justiça e a igualdade dos direitos. Seus olhos
lado ético do instinto, a voz pequena e calma no são vendados (para ouvir bem) e segura uma
âmago do impulso. Já Diké para a humanidade é balança com as mãos (ato bem firme).
a função de base institual que fica em elevada Distribuía, pois a justiça por meio da balança
sintonia com o que denomina de instinto para que segurava com as duas mãos. Ela dizia
reflexão. Além delas, existem mais nove Horas, (declarava) o direito (jus) quando o fiel (lingüeta
as quais são tidas como guardiãs da ordem da balança indicadora de equilíbrio) estava
natural (ciclos presentes na natureza, estações, completamente na posição vertical.
clima, vegetação, etc). As nove Horas restantes
são: Talo, Carpo, Auxo, Acme, Anatole, Disis, Icnograficamente, portanto, a deusa deve
Dicéia, Eupória e Gimnásia 7. estar sempre de pé durante a exposição do
Direito (jus), enquanto o fiel (lingüeta da
A história diz que ela foi exilada na balança indicadora de equilíbrio) deve ficar no
constelação de Virgem. No entanto, ela foi meio, totalmente na vertical, direito (directum).
trazida de volta à Terra para corrigir as injustiças Os romanos objetivavam, destarte, alcançar a
dos homens que passaram a ocorrer. prudência, que para eles significava o equilíbrio
entre o abstrato (o ideal) e o concreto (a
Em suma, a diferença física entre Themis prática)8.
e Diké reside em que enquanto Diké segura a
balança na mão esquerda e a espada na direita,
4
Com efeito Edson Alexandre da Silva Isso pode ser comprovado nas palavras
dispõe no aludido artigo que: de Edson Alexandre da Silva:

“O povo romano da antiguidade, “No que tange ao uso da espada, as Deusas


simbolizava a justiça através da Deusa Grega e Romana distinguiam-se; enquanto
Iustitia, a qual distribuía a Justiça por meio os gregos aliavam o conhecer o direito à
da balança (com dois pratos e o fiel no força, o iudicare, os romanos importavam
meio), que ela segurava com as duas mãos. no jus-dicere, atitude firme em que o
Ficava de pé e tinha os olhos vendados e jurista segurava a balança com as duas
dizia o direito (jus), quando o fiel estava mãos, sem espada; sendo o iudex (juiz –
completamente vertical, direito romano) um particular, nos primórdios não
(directum(7)). Os romanos vislumbravam a necessariamente versado em direito”10.
prudentia, qual seja o equilíbrio entre o
abstrato e o concreto” (sic)9. Alfim, convém citar que na seara das
crendices populares, é comum as pessoas
Não se pode olvidar que as acenderem um incenso de lavanda para ter a
representações grega e romana divergem justiça sempre a seu favor todo dia 08 de janeiro,
igualmente no que tange a atitude concernente à que é a data na qual se comemora o “Dia de
espada. Enquanto Diké empunha uma espada, Iustitia”.
simbolizando a imposição da justiça pela força
(iudicare), Iustitia adota o jus-dicere, conduta na 2.1.SÍNTESE.
qual a espada fica em posição de descanso,
podendo, quando preciso, ser utilizada (versão Visando dirimir quaisquer dúvidas que
mais usual). Assim, Iustitia pode ser por ventura ainda persistam e uma melhor
representada ou segurando a balança com as compreensão e fixação do assunto em tela por
duas mãos firmemente ou segurando numa mão parte do Ilustrado Leitor, consentâneo apresentar
uma balança e na outra mão uma espada para as ilustrações icnográficas representativas das
baixo. deusas, objeto desse artigo jurídico, e suas
respectivas legendas explicativas, em suma:

“THEMIS” “DIKÉ” “ IUSTITIA”


(Mãe de Diké) DEUSA GREGA DEUSA ROMANA
DA JUSTIÇA DA JUSTIÇA
(sem venda) (com venda)
(iudicare) (jus-dicere)

3.CONCLUSÃO. sempre segura ou tão-somente uma balança ou


uma balança e uma cornucópia. Por isso, como
Themis, em relação ao assunto em pauta, pode Themis ser a “Deusa da Justiça” se jamais
é apenas a mãe de Diké. Tanto isso é verdade tem uma espada (leia-se força, “poder de
que Themis nunca carrega uma espada, a qual polícia”) para aplicar o Direito? 11
simboliza o poder coercitivo do Direito que é
indispensável à aplicação do mesmo. Themis
5
Assim, enquanto Diké é a Deusa Grega espada corresponda à habilidade que
da Justiça, Iustitia é a Deusa Romana da Justiça, emprega em manejar a balança”12.
podendo ambas ser facilmente distinguidas pela
ausência ou presença da venda nos olhos e BIBLIOGRAFIA.
posição da espada, “iudicare” e “jus-dicere”,
respectivamente. Apesar das duas representarem
a mesma coisa - “A Deusa da Justiça”, o GRIMAL, Pierre. Justiça, in Dicionário
significado de ambas diverge tendo em vista o da Mitologia Grega e Romana; 3. ed.;
modo como entendem e aplicam o Direito, Algés; Difel; Maio de 1999.
conforme se depreende de suas vestimentas e IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo
apetrechos (v.g.: venda ou falta dela, posição da Direito. 19. ed. Editora Forense: Rio de
espada, lingüeta e posição da balança, etc.) Janeiro, 2000.
SILVA, Edson Alexandre da. Uma
Faz-se mister ressaltar que existem história, dos primórdios aos nossos dias,
estatuetas e quadros de pinturas da “Deusa da da justiça de paz em questão. Disponível
Justiça”, inclusive em alguns Escritórios de em: www.jusnavigandi.com.br
Advocacia e até Fóruns e Tribunais de Justiça, [capturado em 01 de dezembro de 2007].
máxime em Salões dos Tribunais do Júri, SILVA, Júlio César Ballerini.
retratando a “Deusa da Justiça” empunhando "Considerações a respeito do conceito
para frente acima de sua cabeça uma espada com de justiça na antiguidade greco-romana"
os olhos vendados. Diante disso, quero chamar a in Revista Jurídica da PUC –
atenção do nobre Leitor para a constatação de Campinas/SP, v. 17, nº. 1, 200.
que isso se constitui num erro crasso, pois ou a
“Deusa da Justiça” se encontra desvendada com
a espada em riste ou vendada com a espada para
baixo em aguardo, jamais podendo ser Notas:
representada empunhando para cima (permitam-
me a redundância) uma espada com os olhos Francisco Carlos Távora de Albuquerque
vendados. Caixeta, Advogado/PA. Artigo em dezembro de
2007.
Ex positis, a figura da “Deusa da Justiça”
de uso comum e corrente nas sociedades nos 1
Moiras (ciclos vitais da vida, nascer,
dias de hoje é a da deusa romana da justiça crescer,etc).
“Iustitia”, pois é a que está usando venda
(imparcialidade), balança (equilíbrio nos 2
Uso Themis ou Têmis alternadamente para
julgamentos e decisões) e espada (poder mostrar que as duas formas de grafia estão
coercitivo necessário à aplicação do Direito). corretas e representam uma mesma e única
deusa.
Ao fim e ao cabo, termino, pois essas
perfunctórias e mal traçadas linhas, com o 3
célebre ensinamento do emérito Rudolf Von Fonte: www.wikipedia.com.br
Ihering, o qual em seu mundialmente famoso 4
opúsculo intitulado “A Luta pelo Direito” Cornucópia (do latim cornu copiae ou corno da
(considerado como a “Bíblia da humanidade abundância, de cornu ou chifre e copiae ou
civilizada”, por La Veleye) aduz que: abundância, muitos recursos, posses). Na
mitologia, cornucópia era um vaso no formato
“A espada sem a balança é a força bruta, de chifre, com frutas e flores que dele saíam em
a balança sem a espada é do direito abundância e expressa um antigo símbolo da
impotente; completam-se mutuamente; e fertilidade e riqueza. Miticamente relacionado a
na realidade, o verdadeiro estado de infância de Júpiter, o chifre da cabra. (Fonte:
direito só pode reinar quando a força www.wikipedia.com.br).
despendida pela justiça para empunhar a
6
5
Júlio César Ballerini Silva. Revista Jurídica da
PUC– Campinas/SP, p. 5-13.
6
Edson Alexandre da Silva. Uma história, dos
primórdios aos nossos dias, da justiça de paz em
questão, p.
7
Fonte: www.wikipedia.com.br
8
Fonte: www.wikipedia.com.br
9
Op.cit., mesma página.
10
Op.cit., mesma página.
11
Como já visto, Iustitia adota o jus-dicere,
comportamento no qual a espada está em
posição de descanso, podendo, quando
necessário, vir a ser usada.
12
Rudolf Von Ihering. A Luta pelo Direito , p. 1.

Você também pode gostar