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Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos
ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
SIL ZAFIA
Tudo muda quando sua tia Esther arranja um novo emprego na fazenda
da família Hansson, onde vive Axel, o único rapaz da cidade de Agaton, no
sul da Suécia, capaz de chamar sua atenção.
Mas não dava para ignorar o que acontecia na área VIP. Pelo que pude
entender, de onde eu estava, a organização tinha vendido ingressos VIPs para
um grupo de garotas, mas estavam impedindo que elas permanecessem ali.
Olhei para cada uma delas, percebendo o choque com o qual elas me
encaravam. O rapaz da organização arregalou os olhos, mas sem ter coragem
de dizer alguma coisa.
Sim, elas eram minhas fãs, tinham pagado por um ingresso caro para
estarem mais perto de mim, e não deixaria fazerem uma coisa dessas com
elas só por causa de aparência.
— Ele quer que a gente saia da área vip, falou que esse lugar já está
reservado, mas pagamos para estarmos aqui — uma delas disse enquanto me
seguiam.
— Você é incrível. É por isso que te amamos — uma disse, mas não
me virei para ver quem era. Não me sentia bem em ser paparicado por uma
coisa que não era mais que minha obrigação.
Agaton, Suécia
Com dezessete anos, Axel era o garoto que eu mais achava interessante
na sala, não por causa de beleza ou popularidade, ele chamava minha atenção
porque era um rapaz nerd, que sempre tirava notas excelentes, aquele tipo de
aluno que entendia todas as matérias, ainda assim, nunca levantava a mão
quando o professor fazia uma pergunta, mesmo que soubesse a resposta.
Alguém me disse que ele tocava em festas nos finais de semana. Era
isso que eu achava mais interessante nele: um rapaz com um QI altíssimo,
introvertido, que passava as noites trabalhando como DJ em festas para os
populares da escola.
Minha tia sempre me levava para trabalhar nas casas de família quando
eu não estava na escola, só que ela raramente me dava algum trocado. Dizia
que era o mínimo que eu deveria fazer para retribuir a casa, comida e as
roupas que ela me dava. Acho que “roupas” não deviam entrar naquela soma,
já que ela nunca me deixava comprar nenhuma peça que custasse mais de
doze coroas.
Então, enquanto Axel passava as férias em Estocolmo, eu me “divertia”
recolhendo a roupa suja, colocando na máquina, tirando o pó dos móveis,
trocando roupas de cama e outras coisas que tia Esther ordenava.
Cecilia Hansson, a mãe de Axel, é quem ficava feliz por ter duas
empregadas pelo preço de uma. Ela era uma mulher de quarenta e poucos
anos, que fazia luzes platinadas para esconder os fios brancos e estava sempre
com a postura reta e as roupas impecáveis. Ela nunca me olhava diretamente
nos olhos. Elton Hansson era alguns anos mais velho que ela, possuía as
mesmas sardas que Axel e, às vezes, me dava bom dia e perguntava se eu
estava bem, mas duvido que ele realmente quisesse saber o que estava se
passando na minha vida.
— Sim, senhora.
Ela saiu do quarto, mas deixou a porta aberta, para meu alívio, já que
não me sentia à vontade ao ficar em ambientes pequenos e fechados a sós
com rapazes.
Axel vestia uma bermuda cáqui e uma camiseta preta de gola V com
uns dizeres sobre Miami estampados, usava boné de aba reta virado para trás
e um tênis que parecia ser mais caro que todas as minhas roupas juntas. Eu
estava terminando de forrar sua cama com os lençóis limpos, e o observava
tirar as coisas da mala, quando ele falou comigo.
— Você, por acaso, estudou no último ano na mesma turma que eu? —
Era a primeira vez que Axel me dirigia a palavra.
Senti minha nuca esquentar e minhas mãos ficarem frias, tomada pela
vergonha.
Meu rosto ferveu de timidez. Eu não passava despercebida por ele, mas
a única coisa que lhe chamava atenção era minha pobre coleção de vestidos.
Sequer sabia meu nome.
Fiquei me perguntando como era ter dinheiro para gastar com arte e
cultura, ter tempo livre para estudar, ler, viajar nas férias. Não estava com
inveja, só curiosa por saber como era viver uma realidade diferente da minha.
— Minha mãe tinha dito algo sobre ter contratado uma empregada
nova, nunca pensei que fosse sua mãe, muito menos que ia te encontrar
aqui… Arrumando a minha cama — Axel comentou essa última frase
baixinho; me olhou brevemente e começou a organizar os livros novos nas
prateleiras que eu tinha limpado na manhã anterior.
Eu havia decorado alguns títulos dos livros que imaginei que Axel
tivesse lido, só para o caso de arrumar um tempinho e ir até a biblioteca
pública de Agaton, ver se encontrava algum. Poderia ler e depois ter assunto
para conversar com ele. Era só mais uma das minhas fantasias bobas, porque,
se isso acontecesse, eu provavelmente já teria esquecido tudo sobre o livro e
faria papel de idiota. A única coisa que minha mente conseguia guardar com
facilidade, além de tudo que eu desejava esquecer, eram letras de músicas.
— Nunca fui a esse clube — confessei. Assim como nunca tinha ido a
clube nenhum.
— Meu tio não gosta que eu saia à noite — falei em tom de desculpa.
Quando terminei de deixar sua cama impecável, fui lavar seu banheiro.
Ele não voltou a falar comigo naquela sexta-feira.
Recusar tinha sido a decisão mais sensata. Ainda assim, queria ver
Axel tocar, adoraria saber como ele era em cima de um palco e sendo o
centro das atenções, descobrir se continuava introvertido ou era uma pessoa
completamente diferente do que eu conhecia, mas precisava me conformar,
mesmo que tivesse ido até lá, usando uma roupa nada a ver, o que eu faria no
meio de toda aquela gente de nariz empinado? Iria ficar parada em frente ao
palco, o ouvindo tocar, sem saber direito onde enfiar as mãos? Entrava em
pânico só com a ideia de estar sozinha em uma festa.
— É que meu tio não gosta que eu fique no telefone até tarde —
expliquei.
— Ah, tudo bem. Só liguei mesmo para perguntar se você tem carona
para o primeiro dia de aula… ou se prefere ir de ônibus.
Considerei como seria Axel ver o lugar onde eu morava, o que ele iria
pensar, mas depois imaginei que já devia saber que eu morava na periferia.
Axel tinha esquecido, não por maldade, e sim porque estava bêbado.
Era isso.
— Pensei que você não fosse me esperar, então vim mais cedo,
imaginando que você demoraria para sair de casa.
— O que você escolher para mim está ótimo — falei gentilmente. Ele
mexeu em alguns botões e uma música de Linkin Park começou a tocar. Pelo
canto do olho o observei cantando a letra da música sem emitir som. Imaginei
que ele estaria cantando em voz alta se estivesse sozinho. Resolvi puxar
conversa ao perceber que ele não falaria muito. — Minha casa é muito longe
da sua fazenda.
— Você poderia ter me ligado para saber que horas eu estaria pronta —
falei o observando. Axel usava uma calça jeans desbotada, mas não pelo
tempo, uma camiseta de mangas longas grafite com três botões na gola V,
tênis e boné, que dessa vez estava com a aba virada para a frente. Dava para
sentir o cheiro do seu perfume.
— Não fiquei brava. Você nunca seria um babaca, nem mesmo estando
bêbado. Na verdade, você conversou muito bem ao telefone, não parecia
chapado — comentei e ele deu um sorriso discreto, sem mostrar os dentes,
mas que evidenciava suas covinhas.
Meus olhos estavam grudados nas luzes do som do carro. Não queria
que ele notasse meu sorriso bobo.
— Se está, sou muito burra, porque não faço ideia do que está falando.
Ele jogou a cabeça para trás, fez uma careta, apertou os olhos fechados
com as pontas dos dedos e soltou a respiração pesada pela boca.
Era uma sensação muito boa estar perto do garoto que eu admirava
tanto. Era incrível saber que ele me notava, que estava falando comigo,
mesmo que fosse confuso.
Sem dizer nada, ele colocou a mão nas minhas costas e me guiou pelo
corredor até a secretaria. Quando nossos horários, salas e armários estavam
encontrados, fomos para a primeira aula de História.
— Está saindo com Lucy, Axel? Desse jeito vai estar em um caixão
antes da formatura — ela disse, me fazendo sentir uma mistura de emoções
ruins me dominarem. Foi repentino, mas cruel. Meu rosto ardeu de
vergonha.
— Tal mãe, tal filha — disse uma outra garota que estava com ela.
Às vezes, era uma droga viver no sul da Suécia, onde algumas pessoas
ainda eram cheias de preconceitos. Acreditavam que eu ia crescer e virar uma
assassina a sangue frio como minha mãe. Desde o jardim de infância eu
percebia mães cochichando para seus filhos não se aproximarem de mim,
porque eu era filha de um monstro.
— Mas eu gostaria de dizer alguma coisa que pudesse fazer você sorrir.
Queria muito, Lucy, só que não sei consolar pessoas. Dizer “sinto muito” não
vai mudar nada.
— Tem razão, não deveria mesmo. Aquela garota queria te jogar para
baixo porque sente inveja.
— Droga! Não sei o que dizer, é sério! — Axel falou com a voz
chateada. — Tenho a garota mais incrível da escola nos meus braços e não
sei como animá-la.
— Precisei beber para conseguir falar com você pelo telefone, não
entende? Mesmo chapado, estava morrendo de medo de você não aceitar a
carona, de ser grossa e desligar na minha cara.
Pela primeira vez, não me senti insegura por estar sozinha com um
garoto. Ele podia fazer qualquer coisa comigo, já que todos os alunos
estavam no refeitório, mas tinha certeza que Axel nunca faria algo de ruim
contra mim.
Seu coração estava tão acelerado que podia sentir seu corpo
estremecendo.
Seu corpo estava ainda mais quente por baixo da camiseta. Me aninhei
novamente em seu peito. Passou pela minha cabeça que eu ouviria seu
coração batendo pelo resto da minha vida.
— Claro.
— Sobre o que aquelas garotas estavam falando? Sei que elas são
idiotas, mas isso afetou você. Só queria entender.
Chegar à conclusão de que, por mais que eu quisesse sumir, não teria
coragem, fazia o medo se intensificar, ser tão apavorante que me deixava sem
fala.
— Tem algo a ver com o motivo de você morar com seus tios? — Axel
insistiu, mas com gentileza.
Era uma surpresa ele não conhecer a história dos meus pais.
Praticamente todo mundo da cidade sabia — e me julgava como se fosse
minha culpa ser filha deles.
Fiz que sim com a cabeça, sentindo minha garganta travada.
Dava para sentir todo mundo da turma nos olhando, mas tentei fingir
indiferença. Nos últimos meses, Axel Hansson tinha alcançado um elevado
nível de popularidade, graças a seu sucesso como DJ (mesmo que ele não
ficasse à vontade com isso). Toda a sala sabia quem ele era, porque a maioria
já tinha ido a uma festa onde Axel se apresentava. E Lucy Peter era a garota
esquisita que todo mundo tentava evitar.
Ele abriu um sorriso tímido, sem mostrar o aparelho, e fez que sim com
a cabeça.
Me virei ainda mais na cadeira e toquei seu joelho com minha mão
direita.
— Não precisa ficar tímido comigo — dessa vez falei o mais baixo
possível, para que apenas ele ouvisse. Foi uma ousadia da minha parte dizer
aquilo, ainda mais tocá-lo daquela forma, tendo em vista que eu também era
um pouco tímida.
— Vou tentar — ele disse com seu jeito discreto e fofo.
A sala inteira se voltou para nós. Era a primeira vez que um professor
chamava a atenção de Axel. Me cortou o coração ver como ele ficou
vermelho de vergonha. Apertou os lábios e respirou fundo antes de encarar o
professor. Minha atenção estava dividida entre eles.
Não me atrevi a virar novamente para trás até o fim das aulas. O segui
ao estacionamento e entrei no carro. Ainda estava envergonhada pelo
acontecido, mas Axel não parecia chateado.
— Não posso garantir que não iria rir — ele brincou. — O que vamos
estudar?
Senti meu estômago embrulhar. Não queria que ele pensasse algo ruim
sobre mim.
Pensei em dar meia volta, dizer que não queria atrapalhar, mas acabei
entrando em seu quarto. Deixei a porta entreaberta por força do hábito de não
ficar a sós com garotos em ambientes fechados. Me aproximei devagar,
enquanto ele girava na cadeira para me encarar.
— Tanto faz. Vou mal em todas — falei antes de pensar. Ele franziu o
cenho, fazendo uma careta bonitinha.
Me senti insegura por ter tomado aquela atitude, mesmo assim, como
Axel não pediu que eu me levantasse, continuei ali. Peguei um travesseiro e o
abracei com força para me livrar do desconforto.
Axel tinha uma irmã mais velha que morava em Malmö, ela se
chamava Leonora, era veterinária e estava noiva. Era tudo que eu sabia.
— Sua irmã não conta — comentei. Ele não me olhava. Percebi que ele
se retraia ainda mais quando ficávamos muito perto.
— E você só está aqui para estudar genética — Axel disse e notei seu
rosto ficar corado. Acho que eu também corei um pouco. — Se meu pai visse
isso, tiraria sarro de mim por um mês. Ele acha que… Deixa pra lá.
— Diga!
— Ele acha que sou gay, porque vivo em festas, mas nunca trago
garotas — Axel confessou. Vi a covinha na sua bochecha e fiquei tentada a
me aproximar novamente. — Ele já teve uma conversa comigo, falando que
me aceitaria do jeito que eu fosse e tal.
Não notei a porta sendo aberta. Quando dei por mim, tia Esther já
estava atravessando o quarto com a voz alterada. Nos afastamos ao mesmo
tempo e eu me preparei para ficar de pé.
— Ela foi muito bondosa em nos contratar, mesmo sabendo tudo que
sua mãe fez — tia Esther disse quando chegamos lá fora. O border collie
passou pela porta da frente e nos seguiu pelo jardim florido e perfumado da
senhora Hansson. A noite caía com um vento frio.
— Estudar! — ela falou com deboche. — Todo mundo sabe que você é
burra como uma porta, sua morta de fome! Estudar! Tira essa ideia da cabeça.
Na cama com o filho da patroa? Quer ficar mais mal falada do que já é?
Então tia Esther agarrou meu queixo, me fazendo virar para olhar o
casarão que deixávamos para trás.
— Olha bem para essa casa — ela ordenou fincando as unhas ásperas
no meu queixo —, acha mesmo que Cecilia pensaria assim se pegasse uma
morta de fome como você na cama do filho? Eles são de outro mundo. A
gente convive, mas não se mistura. Entendeu?
Fiz que sim com a cabeça, sentindo o coração doer. Queria dizer que
ela também seria demitida se algum dos Hansson a visse chutando o
cachorro, mas me calei.
— Cecilia não trata você mal e Elton Hansson nunca te olha com
malícia. Não estrague tudo!
— Se enxergue e cuide mais da sua vida. Você é burra, não sei como
conseguiu chegar ao terceiro ano do ensino médio. Gaste seu tempo fazendo
um bom trabalho, agradando os patrões, porque vai ter sorte se conseguir
serviço em alguma casa de família. Estudo não é para pessoas como a gente.
Já devia ter percebido. Se seu tio soubesse…
— Não conta para ele, por favor — implorei tomada pelo medo. — Por
todos os anos em que te ajudei, não conta para ele.
— E vai para onde? — ela perguntou. — Não tem outro lugar para
você. Caia na real!
— Não precisa se preocupar com a gente — tia Esther falou com falsa
gentileza. — Estamos acostumadas a ir de ônibus.
— Está — menti.
— Por que não atendeu o telefone? — Axel perguntou.
Alan Peter era irmão do meu pai, um homem tão desprezível quanto
meu tio, alguém que eu não fazia questão sequer de lembrar o nome.
— Te pego às 7h30.
— Estarei te esperando.
Puxei a mochila, saí do carro e corri para casa fazendo uma prece para
que os pensamentos da minha tia se iluminassem e ela não contasse nada a
Alan Peter.
Minha cabeça doía quando desembarquei no aeroporto de Malmö.
Ainda me sentia bêbado dá última noite, como se meu sangue fosse
constituído de álcool. Meus olhos ardiam por trás das lentes de contato, mas
não as substituiria pelos óculos até chegar à fazenda. Evitava usá-los em
público cada vez mais.
Amava minha irmã com todo meu coração, e meu pai era um ídolo para
mim, mas só queria que eles parassem de falar. Minhas têmporas latejavam
cada vez mais.
Durante muito tempo, ela tinha sido a única pessoa com quem eu
conversava, com quem conseguia ficar à vontade, então ela entrou para a
faculdade e foi embora.
— Conheceu alguém?
— Não, pai. As garotas de Estocolmo... — comecei a falar com toda a
força de vontade, mas ele me interrompeu.
Meu crânio era como uma granada prestes a explodir, minha boca
estava seca e o estômago vazio se embrulhava cada vez mais conforme ele
manobrava para fora do estacionamento e tomava a rodovia para Agaton.
— Sabe que tem liberdade para falar comigo sobre o que quiser, não
sabe?
Sei disso, pai, só que agora tudo que preciso é do bom e velho silêncio.
— Sabe, filho, sua mãe e eu não temos preconceito. Saiba que não
ficaremos magoados se você nos contar que não gosta de garotas, que sente
atração por homens...
— Te aceitamos do jeito que for — ele insistiu, com uma das palmas
erguida, enquanto a outra apertava o volante.
— Não é que você parece, mas não é normal um rapaz como você
nunca ter levado uma garota em casa.
— Isso. Lucy Peter. Por que não cria coragem e a convida para sair?
Ri sem humor. Meu pai era do tipo que pensava: o não você já tem, só
precisa ir atrás da humilhação.
— Uma garota como ela não sairia com um cara como eu.
— Você iria aproveitar muito mais a vida se não fosse esse medo de
tentar.
Minha mãe fazia todo tipo de perguntas ao seguirmos para meu quarto,
no primeiro andar. O álcool ainda dominava meus reflexos, mas a dor de
cabeça estava diminuindo.
Meu cérebro demorou um momento para entender que aquilo era real,
que ela estava ali, parada ao lado da minha cama segurando um travesseiro.
— Não — pedi sem pensar, mas foi no que minha mãe disse que ela
prestou atenção.
Minha mãe começou a falar um monte de coisas, mas eu não sabia bem
o que estava respondendo. Me concentrei em abrir a mala, sem querer deixar
o quarto, ainda sem acreditar que ela estava mesmo ali.
Foi apenas depois de muito constrangimento que mamãe falou com ela
novamente, como uma ditadora, e nos deixou a sós.
Meu coração batia forte, o corpo tremia. Ela estava com um dos joelhos
sobre a cama, mexendo nos lençóis. O quarto estava claro e dava para ver a
marca da calcinha no vestido fino enquanto ela se inclinava sobre o colchão.
— Você por acaso estudou no último ano na mesma turma que eu? —
perguntei assim que notei que ela estava terminando de arrumar minha cama,
e que eu estava prestes a perder a oportunidade.
Era a primeira vez que eu me arriscava com uma garota, e sequer sabia
de onde estava tirando tanta coragem — talvez fosse por conta do álcool
ainda no corpo —, mas não queria jogar fora a oportunidade de ouvir sua
voz.
É claro que ela nunca tinha ido. Lucy era toda conceitual, tinha um
estilo próprio. Usava roupas retrô, como se quisesse dizer ao mundo que não
estava nem aí para a porra da moda, que ela tinha coisas muito mais
importantes para se preocupar do que seguir tendências que mudavam a cada
estação. E ela era simplesmente incrível demais para um clube qualquer de
Agaton.
— Meu tio não gosta que eu saia à noite — foi a desculpa mais rápida
que ela arranjou.
Por mais que eu não acreditasse que ela fosse aceitar, senti uma dor
nova no coração. Era a primeira vez que levava um fora, e não pensei que
fosse doer tanto.
A encarei por um instante, tentando lhe dizer com o olhar o quanto ela
era interessante e como eu gostava dela, que era a primeira garota que eu
convidava para sair, mas nada disso tinha importância.
Além de tudo, ainda era mais velha que eu, já que tinha repetido de
ano. Devia me achar um moleque querendo levá-la a um clube cheio de
outros moleques e pessoas fúteis.
Esperei que ela fosse para o banheiro e saí do quarto. Precisava curtir a
depressão do primeiro fora longe dela.
— E...?
Queria dizer que não tinha graça, mas meu pai não estava rindo por
mal.
— Umas perguntas aqui, outras ali, e descobri que ela ajudava a tia.
Com dois telefonemas consegui contratar Esther Peter.
— Por isso você acha que levou um fora? Filho, deixa eu te explicar as
coisas, nem todos os responsáveis deixam seus adolescentes virarem as
madrugadas em baladas.
— Não tem nada a ver. Ela é mais velha que eu, também trabalha, é
independente. É claro que foi só uma desculpa.
— Mais que você — ele jogou na minha cara. — Pode ter certeza que
ela vai aparecer no seu show amanhã. E faça o favor de ficar sóbrio e se
oferecer para levá-la em casa no fim da festa.
— Se você diz.
— Confie no seu pai. Sei quando uma garota não quer aceitar um
convite logo de primeira.
Ergui uma sobrancelha, sorrindo para Elton, que se achava o
entendedor de todas as coisas.
Depois que meu pai voltou a cuidar dos seus afazeres na fazenda,
fiquei na garagem esperando o sol se pôr. Pela fresta da porta, vi quando
Lucy passou com sua tia na direção da estrada. O vestido florido balançava
com o vento, mechas do cabelo castanho voavam em todas as direções.
Sua tia pareceu esquecer algo, porque voltou para a casa. Lucy ficou
mexendo no celular enquanto esperava. Assim que as duas sumiram de vista,
entrei e fui atrás da minha mãe.
— Você acabou de passar semanas com esses amigos. Não pode ficar
em casa por um final de semana? Sentimos sua falta.
Ela ficou toda derretida, passou uma das mãos no meu cabelo e beijou
minha bochecha.
— Vai ser difícil quando você for para a faculdade. Ficaremos só seu
pai e eu nesta casa grande.
Beijei sua testa com força e disse que a deixaria trabalhar, não queria
falar sobre faculdade.
No sábado, saí da fazenda bem cedo, antes que Lucy chegasse com sua
tia. Não aguentaria olhar para ela. Em Agaton, fui direto para o apartamento
de Steven, que estava preparando um vídeo com uma das músicas que eu
havia composto nas semanas em Estocolmo.
Ele, assim como meus outros três amigos, tinha mais de vinte anos,
mas não me tratavam como adolescente. Havia os conhecido através da
minha irmã. Era quase fácil interagir com eles, principalmente porque sempre
estávamos bebendo.
— Viu ela? — perguntei para Steven pela quarta vez, sem deixar que
os outros ouvissem. Se Mikaela, Filippa ou Christer descobrissem que havia
uma remota possibilidade de eu estar esperando uma garota, fariam da minha
noite um inferno.
— Não consegui ver — ele respondeu baixo. Era o mais discreto dos
quatro. — Me mostra a foto novamente.
Abri o aplicativo de imagens e mostrei uma das fotos que havia tirado
de Lucy na sala de aula — sem que ela percebesse, é claro.
Mikaela tinha um primo que viajava todo verão para Ibiza e deixava o
apartamento em Estocolmo na sua responsabilidade. Ela convidava Steven,
Christer, Filippa e eu. Era a segunda vez que eu passava o verão com eles.
Íamos a muitas festas em piscinas, clubes, e ela me apresentava a um monte
de gente envolvida com música, dizia que eu era sua mina de ouro, que faria
o possível para que eu ficasse famoso. Os quatro acreditavam que eu
conseguiria, por isso me davam todo apoio que eu precisava.
— Você ainda está naquele clube? — ela perguntou. Tinha uma voz
doce e era muito educada. Parecia sorrir enquanto falava comigo.
— É que meu tio não gosta que eu fique no telefone até tarde — ela
explicou. Seu humor pareceu mudar quando mencionou o tio.
— Ah, tudo bem. Só liguei mesmo para perguntar se você tem carona
para o primeiro dia de aula… ou se prefere ir de ônibus — tentei. Minha
autoestima era menos importante naquele momento.
Engoli a saliva. Onde ela morava que o ônibus escolar não passava?
Por que seu tio não a levava de carro?
Parei próximo a casa que devia ser a dela e fiquei tentando imaginar
como era lá dentro, seu quarto, a disposição dos móveis, os eletrodomésticos.
Me senti mal por ter a observado de longe por quase um ano, mas sem me
preocupar em saber nada sobre ela.
Pedir em namoro era antiquado, mas eu achava certo fazer desse jeito.
Queria que Lucy soubesse que sempre gostei dela, e que podia contar comigo
para o que fosse. Precisava desesperadamente saber como era sua vida dentro
daquelas quatro paredes da casa pequena e simples. Como seu tio a tratava,
por que ela ajudava Esther Peter nos trabalhos domésticos e o que havia
acontecido com seus pais.
Seu cabelo castanho estava preso em uma trança que caía sobre o
ombro. Como uma garota podia ser tão adorável?
Ela colocou a mochila entre as pernas e puxou a barra do vestido até
cobrir os joelhos, parecia quase tão tímida quanto eu. Quando descemos do
carro no estacionamento da Agaton Gymnasieskola, imaginei como ela
reagiria se entrelaçássemos nossos dedos, mas me contentei em apoiar a mão
nas suas costas enquanto caminhávamos.
Foi quase o melhor dia que eu já tinha passado na escola. Mesmo que
eu não tivesse dito tudo que planejei, mesmo que as pessoas me olhassem
mais que de costume, tê-la comigo já era o suficiente.
— Está saindo com Lucy, Axel? Desse jeito vai estar em um caixão
antes da formatura — uma delas falou, fazendo Lucy ficar vermelha.
Sem pensar duas vezes, peguei nossas mochilas e fui atrás dela.
Foi a primeira vez que a senti nos meus braços. O jeito como ela
chorava, o rosto contra o meu peito, falando como não era justo tudo o que
falavam dela... fez meus problemas e minhas crises de ansiedade se tornarem
muito distantes.
Eu estava diante de alguém com a qual a vida não estava sendo justa,
ainda assim não revidava. Precisava falar algo que a animasse, mas não sabia
o quê.
Lucy entrou no meu quarto com aquele sorriso sem graça. Eu queria
agir naturalmente, mas não conseguia controlar os batimentos.
— Não tenho muito tempo para ler — ela disse sem saber o quanto
ficava maravilhosa assim, jogada na cadeira, movimentando as pernas mais
desejáveis que eu já tinha visto.
Ela não ligava para o fato do meu pai ter imaginado que eu era gay ou
não se importava se eu realmente fosse?
— Mas eu não sou — tratei de esclarecer. Não queria que ela me visse
só como amigo.
Senti que o fogo tinha abrandado. Enquanto ela continuava falando,
tirei o livro do colo e me virei na sua direção, a olhando com uma coragem
que não imaginava que tinha.
Me doeu saber que ela provavelmente não tinha comido nada desde o
almoço na escola, só para fazer o trabalho depressa e poder estudar.
Tentei insistir, dizendo que ela poderia escolher o que queria comer,
mas Lucy me disse que preparava o jantar todas as noites, porque a tia
chegava cansada.
— Ofereci carona para a escola e ela aceitou. Passei o dia inteiro com
ela.
— Tipo... batem nela? — Steven girou a cadeira até ficar de frente para
mim. — Isso é muito grave, cara.
— Não sei se eles chegam a bater nela. Mas não a tratam bem. Ela tem
que ajudar a tia quando chega da escola, depois precisa fazer o jantar todas as
noites. Ela não deveria descansar e estudar?
— Talvez. Esther Peter não a trata nada bem, e Lucy parece ter medo
do tio. Não estou falando de ter respeito, estou falando de ter medo.
— Isso não parece normal. Mas se eles agredissem, você não acha que
um vizinho já teria chamado a polícia?
— Não sei — falei e fiz uma pausa. Pensar naquilo, saber que eu não
tinha certeza de nada, me deixava de estômago embrulhado. — Mudando de
assunto, se eu gravasse uns vídeos dela, você editaria para mim?
— Um remix novo?
— É.
— Isso.
— Primeiro vou falar com Lucy, saber se ela vai me deixar filmá-la.
— Ela é muito linda. Digo, pelas fotos que você me mostrou. Vai ficar
legal, seja lá o que esteja planejando. Compôs mais alguma coisa?
— E quanto a sua mãe. Já contou a ela que não vai ser o médico da
família? — ele perguntou dando risada, já que não era o dele que estava na
reta.
Meu tio roncava no sofá da sala. Tia Esther me prometeu que não
contaria nada, desde que eu não fosse uma ameaça ao seu emprego. Dei
minha palavra de que aquilo não se repetiria.
Levei mais de uma hora para conseguir serrar o primeiro lado que
prendia a grade à parede. O segundo lado demorou ainda mais, já que meus
dedos ficaram machucados. Mas não desisti. Usei toda minha força.
— Fiz sim.
— O que preparou?
— Pizza.
— Você teria gostado — ele disse e fez uma pausa. — Liguei para
perguntar se você não quer dar uma volta. Mas deixa, já sei o que vai me
dizer.
— Aqui é uma das piores áreas de Agaton. Meu tio colocou grades em
todas as janelas. Mas agora elas não são mais problema. Roubou um carro?
Axel deu partida, dirigiu para fora da cidade e pegou uma estrada
estreita, que dava para o topo de uma colina. Lá em cima, ele estacionou a
poucos metros do abismo, com a traseira do carro virada na direção da
cidade.
— Sobre o que?
— Tudo bem.
A última coisa que queria pensar era sobre meu futuro. Só de relembrar
as palavras da minha tia, sobre eu ser bonita e que poderiam ganhar um bom
dinheiro com isso, já me fazia sentir nojo.
Foi uma das melhores sensações do mundo deitar ao lado do seu corpo
e sentir o calor dos seus braços em volta de mim.
Axel riu.
— Foi com ela que descobri esse lugar. Quando Leonora entrou para a
faculdade, ela nos visitava nos feriados e vinha aqui nas noites de domingo,
antes de voltar para Malmö. Ela me trazia com ela, acendia um cigarro e
ligava o som do carro para ouvirmos música eletrônica, então me contava um
monte de histórias.
— Sua irmã parece ser muito legal.
— Você tem sorte de ter nascido numa família amorosa — falei ciente
de que, se fechasse os olhos, não conseguiria abri-los novamente.
— Sou grato por isso — Axel disse. — E agora eu tenho você para
trazer aqui. Você é tão bonita, Lucy.
Ergui a cabeça do seu peito para encará-lo. Ele assistia meu vídeo com
os olhos brilhando.
— O que você teria feito se minha tia não tivesse entrado no quarto? —
perguntei, mas não me lembro de ter ouvido a resposta. Acabei adormecendo.
Quando abri os olhos, senti que a cama balançava. Pisquei para um céu
alaranjado e me dei conta de que estava na Van em movimento. Me ergui
sobre o colchão e pulei para o banco da frente. O dia estava amanhecendo.
Levei meu violão e toquei para eles a primeira versão da canção que eu
estava compondo, inspirada em Lucy. Se chamava The Girl e tinha uma letra
que poderia ser cantada como dueto.
Christer era mais brincalhão, tirava sarro de tudo. Filippa era romântica
e muito atenciosa.
Dei de ombros, torcendo para meu rosto não ficar vermelho.
— Ainda não está pronta. Tem muita coisa que ainda quero trabalhar
— falei mudando de assunto.
— Não sou eu quem vai cantar. Serão vocês — expliquei dando risada.
— Até parece que eu teria coragem. Escrevi já imaginando como ela ficaria
nas vozes de vocês.
Notei que ela falou pessoa em vez de garota. Mais uma que também
devia apostar que eu era gay.
— É meu celular.
— Oi, mãe.
Minha mãe me viu entrar. Esperou que eu subisse para guardar meus
instrumentos.
— Até esse cachorro sente sua falta — ela disse do sofá, passando o pé
na barriga de Theodoro. — Vocês costumavam correr toda as tardes, depois
da escola.
Ele pulou sobre meu colo e começou a me lamber. Brinquei com ele
enquanto minha mãe se levantava e seguia na direção da sala de jantar. As
luzes automáticas se acenderam quando ela entrou.
Ela parou sua conversa sobre a barco novo que os Gustafsson haviam
comprado, e me olhou com atenção.
— Sei que você não leva meu trabalho como DJ a sério, que não
acredita que eu posso ir além... — Respirei fundo antes de dar a declaração.
— Não vou fazer faculdade de medicina, como você sempre sonhou. Não
vou fazer nenhuma faculdade. É com música que vou continuar trabalhando.
— Você não pode e não vai fazer isso comigo! — ela falou furiosa. —
Seu futuro está traçado, você será um excelente médico. Não estrague meu
jantar com essa besteira de música!
— Mãe, não vou ser médico — falei mais sério dessa vez.
Ela largou o garfo e levou a mão ao rosto quando percebeu que eu não
estava de brincadeira, me olhando como se eu fosse um assassino. A faca
ainda permanecia na sua mão.
— Meu filho querido não vai realizar meu sonho? É isto que está me
dizendo?
— Percebe o que está dizendo? É o seu sonho, não o meu — falei com
gentileza.
— O que você fez a sua mãe, Axel? — ouvi meu pai perguntar
paciente.
— Ele me disse que não quer ser médico! — ela não esperou que eu
respondesse. — Que vai se aventurar com essa porcaria de música.
— Cecília, a vida é dele, não nossa — meu pai disse. — Não podemos
controlar suas escolhas.
Magoava saber que ela pensava assim, que minha mãe não conseguia
me ver como alguém que tinha vontade própria, que ela não me daria nenhum
apoio se eu não seguisse de acordo com seus planos.
— Não precisa falar assim — comentei com o tom de voz baixo.
— Traidor!
— Ele vai correr atrás dos seus sonhos. Nem você nem eu podemos
decidir isso por Axel. Nosso dever é apoiá-lo no que ele escolher.
Sabia que ela iria ficar chateada, mas não pensei que teria um surto
daqueles.
Eu não era invisível, ele tinha me visto atrás de Axel, mas fez questão
de dizer que só havia um lugar disponível. Fechei a cara na hora.
— Vou me sentar com Lucy — Axel disse e virou para a esquerda, sem
ao menos agradecer o convite.
— Posso te pegar depois que seus tios dormirem para a gente dar uma
volta? — ele quis saber.
— Tudo bem — acabei aceitando, porque Axel era fofo e não dava
para negar algo a ele.
Recebi como gratidão aquele sorriso lindo de covinhas que fazia meu
coração disparar.
Mas então nossa mesa foi invadida por sete estudantes que se sentaram
sem serem convidados. Três garotas e quatro rapazes. Um deles era o que
tinha convidado Axel para sentar com eles.
Começaram a conversar com ele como se eu não estivesse ali. Uma das
meninas puxou o celular da mão de Axel e começou a tirar selfies.
— Você também é bonito — falei isso pela primeira vez. Ele pareceu
levar um choque com as minhas palavras. — Quando você sorri e as covinhas
aparecem nas suas bochechas, eu fico boba te olhando.
— Oi — sussurrei ao atender.
— Estava dormindo?
— São seus — ele disse e ergueu a mão para limpar meu queixo com
um guardanapo de papel.
Pisquei os olhos como se acordasse de um cochilo, me dando conta do
quanto devia ser ridículo me ver comendo, sempre com pressa.
— Não sei comer como uma dama, não sei me sentar como uma dama,
não sei agir como uma, então não me olhe assim — resmunguei.
— Não é feio sentir fome, Lucy. Feio é recusar comida quando se está
com o estômago vazio.
— Eu fiz uma coisa que preciso te contar, mas não quero que fique
brava comigo.
— Conversei com meu pai — ele começou, fazendo uma pausa que me
deu tempo para pensar em várias teorias. — Perguntei sobre o que aconteceu
com sua mãe.
Não se tratava mais de desejo pela garota. Eu estava fazendo um
esforço daqueles para passar por cima dos meus problemas de timidez e
continuar próximo de Lucy.
Via sua nuca, as costas da sua blusa de flores, o vestido jeans. Ela
estava de cabeça baixa.
Virei a cabeça para olhá-lo, tentando ser discreto para que o professor
não chamasse minha atenção.
— Você não fica cismado de andar com ela? — ele perguntou,
apontando a caneta para as costas de Lucy.
Franzi o cenho, pensando que ele ia me falar alguma coisa sobre o tio
dela ser perigoso.
Peguei o celular e enviei uma mensagem para o meu pai, pedindo que,
por favor, estivesse em casa à noite para conversarmos.
Meu pai queria falar sobre como eu parecia mais “vivo” essa semana.
— Alguma coisa me diz que você já sabe sobre o que é essa conversa
— falei sem tirar os olhos dele, que estava com os cotovelos apoiados nos
joelhos e as palmas das mãos apertadas uma contra a outra.
— Quando você falou dela pela primeira vez, dizendo que tinha a
achado interessante e muito bonita, fiquei pensando sobre aquilo. O
sobrenome Peter não me era estranho. Demorei quase um dia para me
lembrar porque o conhecia. O nome da família estava envolvido no
assassinato mais cruel que eu já tinha ouvido falar aqui na região. Só que
você nunca me perguntou nada. Pensei que tivesse descoberto sozinho.
— Não quero que vocês se afastem por causa disso. Algumas pessoas
não gostam de se envolver com Lucy por causa de algo que sua mãe fez. É
puro preconceito. Mas não são a maioria. Apenas um bando de cabeças
duras.
— Não vou me afastar dela por uma coisa assim, mas acho que é
melhor eu saber logo de uma vez.
— Vocês eram muito pequenos quando aconteceu, por isso você não se
lembra, mas o crime chocou todos em Agaton e nas cidades vizinhas — meu
pai começou a contar. — Os vizinhos começaram a estranhar o sumiço do pai
dela e chamaram a polícia. Quando os homens chegaram, encontraram os
cachorros...
Meu pai tossiu, depois pigarreou para limpar a garganta. Ele fez uma
pausa consideravam e, quando voltou a falar, fez meu estômago embrulhar
com o relato.
Meu queixo tremeu e minha boca ficou seca. Um nó se formou na
minha garganta. Agora Axel também sabia, e iria me olhar como todos os
outros olhavam.
Fiz uma careta ainda encarando o edredom. A vida não era justa.
— Ele me contou que sua mãe matou seu pai — Axel falava, à medida
que meu coração batia despedaçado. — Ele contou como ela fez…
— Meu pai falou que aconteceu quando éramos muito crianças. Uma
vizinha desconfiou do sumiço do seu pai e chamou a polícia. Encontraram os
cachorros comendo algumas partes, ossos enterrados no quintal, e o resto do
corpo estava no congelador.
Fez-se silêncio outra vez. Me sentia pisoteada. Eu sabia que seus olhos
estavam grudados em mim, queria que ele não me olhasse daquele jeito.
— Ele batia na minha mãe — falei baixinho. — Essa é uma das partes
que não te contaram.
Axel estava deitado ao meu lado, só que com a cabeça na direção dos
meus pés, me olhando com os olhos estreitos.
Olhei para a janela traseira da Van. Chovia forte lá fora, o vidro estava
ficando embaçado. Meu estômago revirava, eu não deveria ter comido tão
depressa.
— Não entendo como ela não procurou a polícia, era a coisa certa…
Olhei para Axel e vi o choque no seu rosto, o jeito como ele prendeu a
respiração. Nem meus tios sabiam. Era aquele olhar que eu temia a vida
inteira, por isso nunca tinha contado a ninguém, não queria que as pessoas me
olhassem assim. Mamãe também não queria, por isso ela tinha sacrificado sua
liberdade, para que ninguém soubesse.
Era a primeira vez que falava sobre aquilo com alguém que não tinha
vivenciado de perto.
— Acabou. Ele está morto, não pode mais te machucar. Não precisa
mais ter medo, Lucy.
— Eu tenho medo todos os dias. Tenho medo por ser garota, ser frágil
e não poder me defender. Tenho medo toda vez que as garotas começam a
sair da sala, e sinto que vou ficar sozinha com os garotos, tenho medo que a
porta se feche e eles me machuquem. Tenho medo de ir sozinha à sala do
diretor, tenho medo quando faço prova e acabo ficando por último com o
professor. Tenho muito medo quando minha tia arranja um emprego novo,
assim como tive quando começamos a trabalhar na sua casa. Eu tenho medo
de precisar ficar sozinha com seu pai. Tenho muito, mais muito medo do meu
tio Alan Peter, e de todos os seus amigos nojentos, dos olhares que eles me
dão, das vezes em que eu os peguei me espiando trocar de roupa. Tenho tanto
medo que empurro a cama para bloquear a porta do meu quarto. Tenho todos
esses medos porque uma vez eu já pensei que estava segura, pensei que o
único monstro estava morto. Tinha doze anos quando fui estuprada
novamente, dessa vez pelo filho dos patrões da casa que minha tia trabalhava.
Foi quando eu aprendi que nunca ficaria segura. Tia Esther disse que a culpa
era minha, que eu me insinuava para ele, que chamava a atenção dos homens.
— Fiz uma pausa para dar uma risada sarcástica. — Eu tinha doze anos, era
uma criança e não sabia nada sobre insinuação. Mas aprendi que qualquer
homem pode me estuprar se tiver oportunidade, e que eu não devo baixar a
guarda nunca. Não gosto de como o meu corpo é, das curvas, não gosto de ter
coxas grossas, não gosto da minha bunda nem dos meus seios, porque meu
corpo chama a atenção dos garotos, por isso uso vestidos até abaixo dos
joelhos e sempre prendo o cabelo. Até gostaria de usar uma calça jeans
apertada e uma blusa que mostrasse minha barriga, mas o medo de acontecer
de novo é muito maior. Mesmo fazendo tudo isso, quando uso um pouco de
maquiagem, Alan Peter fala que tenho cara de puta. Por todos esses motivos,
eu sou garota e vivo com medo.
— Não precisa ter medo de mim — ele sussurrou. — Não são todos os
homens. Eu nunca faria mal a você. Meu pai também não… Sinto muito por
tudo que aconteceu com você. É uma droga que tudo que eu possa dizer é
“sinto muito”.
— Como acabou indo morar com seus tios? E a família da sua mãe?
— Minha mãe fugiu de casa para morar com meu pai. Sua família não
a perdoou por isso. Quando souberam o que ela tinha feito, a desprezaram
ainda mais. Nunca me procuraram. Quando soube da ajuda que o governo
pagaria para cuidarem de mim, Alan Peter veio correndo. Ele é irmão mais
velho do meu pai. Como todos os outros, acha que minha mãe é um monstro
e as vezes me olha como se eu estivesse me tornando assim também.
— Ele já fez…?
Ele passou a ponta dos dedos abaixo dos meus cílios inferiores,
afastando as lágrimas.
Sem pensar, deslizei a mão pelo seu peitoral até alcançar seus braços,
onde pude sentir a firmeza dos músculos. Engoli a saliva.
— Eu acredito — murmurei.
— E quanto a esse outro cara, que era filho dos patrões, onde posso
encontrá-lo?
— Ele foi embora logo depois do que aconteceu. Nunca mais o vi,
graças a Deus. Não sei para onde foi e não quero saber.
— Não quero mais pensar nisso. Podemos parar por aqui? — pedi
baixinho.
— Ele…
— Por favor, Ax — insisti, saí de seu peito e me arrastei para os
bancos da frente. Sentei no do carona e ele veio para o do motorista. —
Promete que nunca vai contar isso a ninguém?
— Claro, Lucy.
Houve uma longa pausa na conversa. Eu temia o que ele poderia estar
pensando. A chuva não diminuía lá fora.
— E o quê?
— Acho que ela se interessou pelo meu jeito caipira, nerd e esquisito.
Deve ter considerado minha timidez como um desafio. Começamos a beber
juntos e eu acordei na cama dela. Isso se seguiu durante alguns finais de
semana. Até ela perceber que não poderia mudar meu jeito, então me deu um
fora.
— Teve outras? — Minha voz saiu rouca depois de uma longa pausa,
mas eu precisava saber.
— Ela é bonita?
— Sim, ela é bem bonita, mas não faz muito meu tipo.
— Qual é seu tipo?
— Você.
— Eu?
Axel se inclinou para frente e me beijou outra vez. Pisei na ponta dos
seus tênis e passei meus braços ao redor do seu pescoço, ficando mais alta.
Afastei os lábios e sua língua entrou, encontrando a minha. Foi melhor do
que eu imaginava que seria. A chuva continuava caindo. Sentia seus braços
me apertarem mais forte, sua boca ir mais rápido.
Seu rosto tímido apareceu na tela. Ficamos nos encarando por alguns
segundos, até me lembrar de pegar os fones de ouvido.
— Não é justo — falei fazendo cara feia —, não tenho nada seu.
Também quero sentir seu cheiro.
— Foi o melhor beijo que já dei — Axel disse. — Foi o primeiro que
dei sem estar bêbado. Então é como se fosse a primeira vez.
— Você aceita… — ele começou, mas fez uma pausa para respirar
fundo outra vez. — Quer… Quer namorar comigo, Lucy?
— Mal posso acreditar. Pensei que você fosse recusar ou dizer que ia
pensar.
— É uma das poucas coisas que não tenho vergonha de fazer. Você é
uma princesa e realmente gosto de você. Não sei como demonstrar, mas eu
gosto.
— Tenho mais que certeza — ele disse mostrando o quanto era mais
maduro que seus dezessete anos. — As coisas vão melhorar. Tenha fé.
— Minha mãe arruma o cabelo lá, frequenta aquele lugar quase toda
semana. Conheço a dona, ela é meio extravagante, mas tenho certeza que é
boa pessoa. Se eu conversar com ela...
— Faria isso por mim? — perguntei perplexa, com o rosto sério. Isso
seria mais do que me pagar um lanche para fazer meu estômago parar de
roncar. — Você é tímido. Não dá para fazer uma coisa dessas bêbado.
— Por quê? — questionei curiosa. Não dava para imaginar uma mãe
decepcionada com um rapaz ótimo como ele.
Tive que rir. Ele não era o filho perfeito, afinal. Mas não pude deixar
de imaginá-lo de jaleco branco.
— Não vou fazer faculdade, Lucy. Não quero ser médico. É com
música que eu quero trabalhar. Mas ela acha que só estou perdendo meu
tempo, que depois que eu acordar desse sonho, vai ser tarde.
— Você vai me ver tocar no sábado, não vai? É minha namorada e vai
ser uma noite muito importante para mim. Um agente de Malmö virá, se ele
gostar de mim, pode me convidar para fazer uma apresentação em um lugar
maior.
— Tenho certeza que ele vai gostar. Que horas você vai tocar?
— Começo às 21h.
— É muito cedo. Eles ainda vão estar acordados. Vou ter que pedir
permissão.
— Não, Ax. — Seria muito pior. — Alan Peter não é como um pai que
está preocupado com meu futuro, ele não quer meu bem, só quer me
infernizar. Deixa que eu falo. Vou tentar negociar com ele.
Não queria dizer a Axel que Alan Peter nunca me daria permissão, não
queria desanimá-lo. Mesmo assim, eu tentaria.
— Você não sabe como fica adorável dormindo. Queria que estivesse
aqui comigo.
— Lucy…
— Quer namorar comigo mesmo sabendo que eu não quero nem pensar
em fazer sexo? Não ainda…
— Eu já sabia.
— Tenho certeza que Lucy gosta de pedalar — ela comentou com Axel
e me deu outro beliscão. — Pelo tanto que essa garota come, se não andar de
bicicleta todos os dias vai acabar virando uma baleia.
— Tia!
— Nada que alguém diga vai mudar o que sinto por você. Não
esquenta.
Esse gesto simples foi capaz de fazer um milagre com meu humor.
Abri um sorriso exibindo meus dentes e olhei na direção do para-brisa. Dei
de cara com um buquê de flores pequeno amarrado com uma fita de cetim cor
de rosa.
— Sim, mas você estava preocupada demais com sua tia para perceber.
Sem mais enrolação, estiquei a mão e puxei o buquê para meu colo.
Aspirei o perfume e suspirei. Parecia um sonho. Era como se eu tivesse
dormido e acordado na vida dessa nova garota que suspirava, recebia flores e
era tratada como uma princesa. Eu não queria acordar de jeito nenhum.
— Tudo para ver você sorrindo desse jeito — ele sussurrou. — Minha
princesa.
— Essa é a ideia.
— Saí cedo de casa para comprar as flores, acabei não comendo nada.
Se importa se eu parar em uma padaria?
Axel pediu dois cafés e dois croissants, então escolhemos uma das
poucas mesas para dois vazias. Comecei a comer assim que me sentei,
passando manteiga na massa folhada quentinha.
Senti meu corpo tremer e minha pele se arrepiar. Ele não fazia ideia do
que aquilo significava para mim, a confusão de emoções que me dominaram.
Engoli a saliva, sem ter força para erguer a cabeça e encará-lo.
— No seu aniversário, vou te levar para comer tudo que tem vontade.
O que acha?
— Espero que a vida retribua tudo que está fazendo por mim, porque
eu não tenho como pagar — falei com a voz emocionada.
Quando nos afastamos, seu rosto estava vermelho e minha pele ardia.
— Preciso trabalhar. Não quero abusar da sorte. Vou falar com meus
tios hoje sobre ir à festa amanhã.
— Mas não vou poder ir te ver hoje, vou passar o dia inteiro fora
amanhã. Só vou poder te ver às oito horas, quando eu estiver indo para o
clube.
Tia Esther apertou meu cotovelo com tanta força que eu pensei que
fosse quebrar o osso.
— Ele já sabe que você é tão burra que fez o segundo ano duas vezes?
— ela falou com sarcasmo.
— E o que vai fazer quando a mãe dele descobrir? O que vai fazer
quando eu for mandada embora? Se não sabe, vou te dizer: Alan vai acabar
com você!
— Nem pense nisso, ou quem vai te dar uma surra sou eu.
— A única razão para eu te aturar na minha casa todos esses anos é que
Alan parou de descontar o estresse em mim desde que você apareceu. Ele fica
muito satisfeito em te dar umas lições. Sente que está se vingando pelo
assassinato do irmão…
Com nojo, fui me sentar sozinha nos fundos do ônibus. Mas ela acabou
me seguindo.
— Falo essas coisas para o seu bem. A única coisa que um rapaz como
ele pode querer com uma morta de fome como você…
— Peça a Alan para ir a essa festa, mas não diga que está namorando
ou ele te espanca. E caso ele não deixe, o que é bem provável, não saia
escondida ou será muito pior.
— O filho deles é DJ. Ele se chama Axel e estuda na mesma turma que
eu desde o ano passado.
— Sim…
— Meu nome está na lista, tio. É amanhã, às nove da noite. Posso ir?
Nunca fui à uma festa. Todo mundo da sala vai estar lá.
— Não, Lucy. Não estou brincando. — Sua mão apertou meu maxilar.
— Você vai ficar de babá amanhã. Não vai?
— Sim, tio — respondi ficando de pé. Quando passei por ele, senti sua
mão beliscando minha bunda. Minha nuca ficou gelada de pavor.
Me odiei por baixar a cabeça, por ter tanto medo. Apesar disso, eu
sabia que medo era meu melhor instinto de preservação, o medo me impedia
de fazer besteira e acabar me dando muito mal.
— Não faz essa cara — tia Esther murmurou ao meu lado, enquanto eu
mexia a massa de espaguete na água fervendo. — Você nem teria roupa para
usar em um lugar como aquele.
Me afastei dela e esfreguei a manga do cardigã contra o rosto.
Quando fui tomar banho, um milagre tinha acontecido: tia Esther havia
lavado o banheiro.
— Claro, Ax.
— Acho que ela me vê mais como um garoto, sabe? Não acho que ela
saiba que eu sinto desejo por ela. — Agradeci em pensamentos ao vinho por
me permitir falar aquilo em voz alta.
— Claro. A questão é que ela tem algumas barreiras que precisam ser
respeitadas, mas como eu faço pra deixar ela saber que a desejo sem parecer
insistente? Não quero apressar as coisas, ainda assim, queria deixar ela saber
o quanto a desejo, mesmo que espere o tempo que for preciso. Não sei, eu
sinto que ela me vê como um menino.
— Isso. — Mesmo com o vinho, senti meu rosto arder. — Mas sem
parecer que estou forçando a barra. Sei que isso não vai acontecer tão cedo.
Só queria que ela começasse a pensar na ideia do sexo...
Só que eu não conseguiria fazer isso sozinho, não sabia como agir com
ela. Um simples abraço poderia estragar tudo. Não conseguia fazer com que
as coisas acontecessem naturalmente. Ela me excitava, fazia meu corpo
queimar. Seus lábios, sua pele, seu corpo, era tudo que eu mais desejava, mas
tinha medo que ela sentisse uma das minhas ereções e pensasse algo ruim
sobre mim.
Era muito difícil quando não se tinha muita experiência nem coragem
suficiente para falar a respeito.
— Eu sei. Entendi o ponto que você quer chegar. Mas não deixa de ser
fofo o fato de você ter me procurado para conversar sobre o jeito certo de
tratar uma garota.
— Diga que a deseja, que você quer fazer isso com ela. Que às vezes
você sente como se ela não te enxergasse como homem, mas que você é, e
que sente atração por ela dessa forma, porém que vai ser paciente e esperar o
tempo dela. Que não quer pressionar, só quer que ela te enxergue do jeito
certo.
— Não lido bem com elogios. Não sei se devo acreditar, se devo ser
simpático, se devo ficar sério.
— Você sabe que eu estava bêbado na maior parte do tempo, não sabe?
— Acho que essa garota já está te fazendo bem, mas espero que ela te
faça relaxar muito mais — dito isso, ela apertou minha mão que estava sobre
meu joelho. — Não quero te assustar, mas você está crescendo como músico.
Vai chegar uma hora em que precisará se reunir com outros empresários,
donos de gravadoras, organizadores de festivais, e não se pode fazer tudo
bêbado. Seu trabalho não se resume apenas a compor e tocar em festas.
— Pensei que você pudesse resolver tudo isso para mim — brinquei,
conseguindo enfim encará-la novamente. — Obrigado por me ouvir. Não sei
de onde tirar coragem, mas vou seguir seu conselho e conversar com Lucy.
— Lucy?
— É o nome da minha namorada — falei com orgulho. — Agora
preciso ir. Vi uma coisa que é a cara dela numa loja aqui na rua. Espero que
ainda esteja aberta. Ela vai no meu show amanhã.
Fiquei de pé, enchi minha taça outra vez e bebi mais um pouco de
incentivo, para que eu pudesse ir até a loja sem ter nenhuma crise de
ansiedade.
— Também pensei que fosse. Meus tios vão sair com um casal e vou
ficar de babá do filho deles — lamentei. — Eles sempre saem juntos e me
deixam com a criança.
— Não acredito, Lucy. Queria tanto que você fosse. Até falei para os
meus amigos que minha namorada estaria me assistindo. Eles perguntaram se
você era imaginária.
— Também estou.
— Encontre outra babá para o menino. Lucy está botando as tripas para
fora desde a hora do almoço — ela disse para Alan Peter ao telefone. —
Cecilia nos dispensou mais cedo para que eu a levasse ao médico.
— E não vai. Foi só alguma coisa que deve ter comido. É o que dá ter o
olho maior que a barriga.
Só liguei para Axel quando os vi saindo e tive certeza de que não iriam
voltar.
— Estou livre. Como faço para chegar nesse clube? Sabe que ônibus eu
preciso pegar?
— Achei a sua cara — ele disse. — Olha, já estou aqui no clube e não
posso sair, mas vou pedir para Steven ir te buscar. É um amigo meu. Não
precisa ter medo, ele é de confiança.
Pensei em vestir uma meia calça por baixo, mas não fazia tanto frio
naquele sábado. Não queria que Axel pensasse que eu não tinha gostado do
comprimento do vestido, ainda assim, não me sentia confiante o suficiente.
— Oi — respondi.
Era alto, pele clara, forte e tinha a cabeça raspada. Parecia ter vinte e
poucos anos. Uma voz tranquilizadora e um sorriso simpático, mas eu não
confiava em simpatia.
— É. É sim.
Steven fez sinal para que eu o seguisse. Passamos pela fila gigantesca
de meninas de salto alto e rapazes atléticos. Vi um monte de gente da escola,
inclusive as pessoas que tinham sentado na nossa mesa. Eles acenaram para
mim da fila.
Nunca vou esquecer a emoção que senti ao estar lá dentro pela primeira
vez. As luzes, a música eletrônica, as dançarinas se equilibrando em balanços
que pendiam do teto, parecia um mundo novo e incrível. Esqueci de Alan
Peter, de Cecilia Hansson, do meu vestido curto e todas as coisas ruins que já
tinha passado.
Havia duas garotas esperando por nós na entrada. Uma era negra com
rosto de anjo, de cabelos encaracolados e compridos. Usava um vestido preto
justo e saltos altos. A outra era uma loira de cabelos na altura do queixo,
tinha olhos azuis e lábios muito carnudos; usava calça jeans rasgada nas
coxas e uma blusa transparente que deixava à vista todo seu sutiã preto. Ela
era alta, com um olhar agressivo e muito sexy.
Filippa apertou minha mão e Mikaela me olhou de cima. Ela tinha mais
de 1,70m e ainda estava de salto. Me senti a menor adolescente do mundo.
Imaginei Axel beijando aqueles lábios carnudos. Se ela desse em cima dele
novamente, duvido que ele me escolheria. Eu não me escolheria.
Não aceitei outro copo. Não era a primeira vez que eu bebia. Álcool
sempre esteve presente na minha casa. Alan Peter me fez experimentar
quando eu ainda era muito nova, por isso eu tinha consciência que a manhã
do dia seguinte poderia ser terrível se não me controlasse. Precisava pegar
leve.
Santa vodca!
— Vejo que tem muitas garotas aqui hoje — Axel começou a falar no
microfone, sua voz atingindo cada canto do Clube. As meninas gritaram no
salão. — Sim, tem muitas garotas. Algumas levaram horas se arrumando para
vir até aqui, outras não demoraram tanto. Sei que tem muitas de vocês que se
sentem frustradas por não atingirem o padrão de beleza que julgam ideal e,
mesmo que caras como eu as elogiem, vocês não vão dar muita bola. Eu só
queria que soubessem que há alguém que acha vocês bonitas do jeito que
vocês são, alguém que não mudaria nada em vocês, que as acham perfeitas.
Garotas, vocês são incríveis, e o que vocês acham que são defeitos, são as
qualidades que as fazem únicas. Eu tenho uma garota, e ela é perfeita para
mim. Não canso de lhe dizer isso, mas acho que ela não me dá muita bola.
Essa música é para cada uma de vocês. Mandem os padrões se foderem,
porque vocês já são lindas do jeito que são.
— Essa é a garota que faz meu mundo parar toda vez que ela sorri —
Axel disse ainda no microfone e olhou para mim.
De repente, percebi que Mikaela não era ameaça. Mesmo que ela fosse
milhares de anos luz mais bonita que eu. Era de mim que Axel gostava, e eu
não ia ficar cheia de paranoia por ser baixinha, por não ter aquele olhar sexy,
por não ser como ela. Porque o único rapaz do universo inteiro que me
importava, me achava bonita do jeito que eu era. E era comigo que ele estava.
Não respondi, mas era Axel que merecia tudo. E, pela primeira vez na
vida, tive certeza e fé em uma coisa: que sua música conquistaria o mundo.
Quando a apresentação acabou, eu já me sentia parte de algo muito
maior do que jamais imaginei participar.
Era empolgante estar ali, bem ao seu lado, perto de todas aquelas
pessoas felizes, e sabendo que Axel era responsável por espalhar aquela
energia positiva.
Não era hora para sentir um aperto no peito causado pelo ciúme de ver
meu namorado com aquela mulher maravilhosa. Mordi o lábio ao me dar
conta de que ter ciúmes dos dois seria ridículo. Primeiramente, se ela o
quisesse teria ficado com ele. Ponto Final.
Seus lábios tinham gosto de vodca e cigarro, mas eu não liguei, retribui
na mesma intensidade, fazendo uma nota mental para lhe contar como ele
perdia a vergonha quando estava bêbado. Meus pés saíram do chão quando
ele me girou. Encostei a testa na sua e tentei recuperar o fôlego. O clube
Sensations transformava-se em um borrão colorido ao nosso redor.
Seu sorriso era cheio de confiança. Talvez porque aquele era seu lugar:
o palco. Era sua área. A música era o que fazia se sentir à vontade. Aquele
era seu dom, e Axel sabia disso.
Me lembro de ter pensado que para mim a noite não estava começando,
que ela já deveria estar acabando, que meus tios iriam voltar daquele jantar e
que eu precisava estar em casa. Só que eu também tinha bebido, e todas
aquelas luzes e sorrisos me fizeram entrar no banco de trás da caminhonete
de Steven, onde me espremi com Axel e as outras garotas.
Era a primeira vez que me divertia tanto, que ninguém estava olhando
para mim e torcendo o nariz por eu ser Lucy Peter.
— O que? — Axel perguntou, mas ela fez sinal para que ele esperasse.
As luzes dos postes faziam seu sorriso brilhar. Ele nunca mostrava o
aparelho daquele jeito sem a vodca. Quase comentei isso. Seu sorriso era
sempre tão tímido. Mas aquela era a sua noite, seu momento, e não queria
estragar nada.
Reparei que seus olhos se fixaram na minha boca e ele engoliu a saliva.
Seu polegar direito atingiu minha boca, fazendo cócegas no meu lábio
inferior, antes de ele me beijar. Meus braços estavam caídos ao lado do meu
corpo e eu não conseguia movê-los. Sabia que não era assim que eu devia me
sentir ou agir, que era para ficar empolgada com aquilo, mas eram muitos
traumas que eu não conseguia superar. Mesmo que fosse Axel Hansson, o
garoto mais incrível da escola. Eu ainda era Lucy Peter, a garota que morria
de medo de ficar sozinha com homens.
— Sei que sou tímido demais, que pareço idiota, babaca, e só estou
falando isso porque bebi mais do que deveria, ainda assim, eu sou homem,
Lucy. E você não faz ideia do quanto eu queria que a gente fizesse mais que
só beijar, como eu fantasio que você seja sem essas roupas. Imagino você nua
desde o ano passado. Penso nisso todas as noites desde que te vi pela primeira
vez.
— Ax — sussurrei numa mistura de súplica e desespero.
Abri um sorriso aliviada por saber que, apesar da bebedeira, ele ainda
era o príncipe por quem eu era apaixonada. Que, para quem tinha caráter, o
álcool não era desculpa para invadir os limites de uma garota, e que tinha
ficado assustada atoa. Mas eu não seria Lucy Peter se não tivesse esses
momentos de pânico.
— Claro.
— Não...
— Vem, tem um banco ali — ele disse me puxando mais para dentro
do jardim, até um banco de ferro, com a tinta azul desbotada, embaixo de um
poste de praça com luz amarelada.
Nos sentamos.
— Não! — Quase confessei que estava com vergonha de usar algo tão
curto. — Eu aguento.
— Fico feliz que tenha gostado — Axel disse e sorriu, mas sem
mostrar o aparelho, o que indicava que a embriaguez estava passando e a
timidez voltaria. — Não sei se falei coisa com coisa. Estava morrendo de
medo de você me xingar por causa dos vídeos.
Dessa vez fui eu que me inclinei para mais perto e o beijei. Minhas
mãos agarraram a gola da sua camisa e eu gostei de sentir seu peito
musculoso contra meus antebraços. Gostei de como uma de suas mãos
apertou forte bem abaixo das minhas costelas, e como a outra subiu mais um
pouco na minha coxa. Adorei a sensação da sua pele em chamas contra a
minha e relaxei nos seus braços.
Quando o Toyota de Axel parou na esquina da minha rua, os primeiros
raios de sol apareciam por trás das casas pequenas.
Acho que não foram exatamente essas palavras que Axel usou, mas
provavelmente tinha sido isso que senhor Hansson havia pensado. Devia ser
um desgosto, ainda assim, pelo menos ele não se opôs.
Soprei uma mexa de cabelo que estava caída sobre a testa e olhei
melancolicamente para a janela do quarto, onde as grades tinham sido
soldadas. Bem, eu poderia passar correndo pela sala, onde Alan Peter estava
assistindo a uma partida de futebol, e fugir pela porta, para encontrar Axel e
jantar. Seria ótimo, mas e depois?
Faltavam poucas semanas para fazer dezoito anos, então a coisa toda ia
ficar muito feia para o meu lado. Havia um hotel de quinta numa área
peculiar de Agaton. Justamente ali que Alan Peter fazia planos de me levar
todas as noites posteriores ao meu aniversário. O dono do hotel não se
importava em alugar quartos por uma ou duas horas para que seus hóspedes
trouxessem uma prostituta.
Pela tela do celular podia ver que seu pai também estava esperando
pela resposta, como se temesse que eu fosse dar um fora no seu filho.
Pelo menos Alan Peter tinha poupado meu rosto. Ri com sarcasmo.
— Tudo bem.
— Foi alguma coisa que eu disse ou fiz com você ontem, não foi? Só
me diga o que foi! Lucy, eu tinha bebido demais, não lembro...
— Você não fez nem disse nada demais — murmurei com medo dos
meus tios ouvirem a conversa.
— Foi ele? Só me diz se foi ele! — ele falou com uma fúria que nunca
pensei que o garoto tímido tivesse. — Foi seu tio?
— Se entrar aí, vai ser muito pior para mim — argumentei aos
sussurros. — Ele só vai ficar mais furioso comigo.
Eles vão matar Alan Peter! Foi o que minha mente processou. A ideia
só pareceu horrível porque eu não queria que Axel tivesse o sangue podre do
meu tio nas mãos. Não queria que ele tivesse o mesmo destino da minha mãe.
Eu nunca soube o que era ver um adulto levantar a mão para mim.
Depois que conheci Lucy, pude enxergar melhor a sorte que tinha.
Me lembrava de como ela tinha ficado quando lhe contei que sabia o
que sua mãe tinha feito. Como aquela garota meiga pareceu ainda mais frágil,
murchando os ombros, se encolhendo. Suas palavras, o jeito como Lucy
contou os detalhes, rondavam minha cabeça a todo momento. Saber que a
garota que eu amava tinha sido estuprada quando ainda era um bebê me
destruía. Era uma sensação terrível, uma revolta enorme. Ela tinha passado
por aquilo na época em que não deveria ter recebido nada mais além de
carinho.
Por mais que a amasse, que desejasse ajudá-la no seu futuro, não
poderia fazer nada para arrancar aquela dor do seu peito, aquelas lembranças.
Não dava nem para imaginar o trauma de ver a mãe matar aquele monstro na
sua frente, quando ele ainda estava sobre ela. Depois ser levada para um
abrigo onde não conhecia ninguém. Ser separada da única mulher que amava,
estar longe da mãe no seu aniversário de cinco anos, viver tendo pesadelos,
só para depois ser entregue a um casal que continuaria a maltratando, que a
deixaria ser estuprada novamente, que batia, que humilhava.
Não sei se poderia chamar aquilo de lar. Não se eu tomasse como base
o lugar limpo e seguro onde cresci. Mas aquilo era tudo que Lucy havia
conhecido desde criança. Amor, proteção e carinho foi algo que ela não
recebeu em casa durante a maior parte da vida.
Será que ela sabia que seu tio estava cometendo um crime cada vez que
lhe agredia? Será que ela tinha noção de que aquele não era o modo como os
suecos educavam seus filhos? Que a sua realidade não era a correta?
Não se tratava de ter que trabalhar, de ajudar sua tia, mas sim de ser
humilhada, explorada, de não ser considerara por eles como um indivíduo
que merecia total respeito.
Mais uma vez me senti egoísta por pensar que ela estava chateada ao
telefone por algo que eu tinha feito quando estava bêbado. Já sabendo de tudo
que ela passava em casa, era minha obrigação suspeitar que seu tio iria atacá-
la, caso descobrisse que ela tinha fugido pela janela para ir me ver tocar.
— Acho que passei dos limites com Lucy na noite passada — comentei
com meu pai, que me entregava uma das prateleiras para fixar na parede da
garagem, onde ele guardaria uma nova coleção de ferramentas.
— Como assim? — ele perguntou distraído, selecionando qual seria a
próxima prateleira a me entregar.
— Ela está estranha. Bebi demais no show, você já sabe. Lucy estava lá
e eu precisava fazer a melhor apresentação de todas. Queria que ela sentisse
orgulho de mim, que ficasse feliz em me ver tocar. Eu tinha gravado alguns
vídeos dela, e Steven os editou para que eu usasse no show.
— Ela gostou?
— Não te contou? Ela estava... — Meu pai fez uma pausa, me dei
conta de que tinha percebido a farsa. — Aquilo era só encenação? Ela não
estava doente de verdade?
— É uma longa história. Não era vocês que ela estava tentando
enganar. Precisava mentir para a tia, só assim conseguiria ir ao meu show.
— Por que não termina de montar essas prateleiras e vai conversar com
ela? Se a família é mais conservadora e a mantém sob rédea curta, o melhor
seria você falar com o tio, explicar que estão namorando e que tem boas
intenções com ela.
Engoli em seco. Não havia contado a meu pai a espécie de família que
Lucy tinha. Ela havia me pedido segredo absoluto, e mesmo que ele fosse
meu pai, eu não tinha direito de contar seu segredo a mais ninguém.
Foi o tal do Alan Peter que atendeu. Era mais alto que eu, magro, mas
com uma barriga saliente, caída sobre a calça de sarja. Seu cabelo, com
entradas de calvície, parecia estar oleoso e despenteado.
Entendi, naquele momento, como ele devia manipular Lucy, para que
ela não contasse a ninguém o que acontecia ali. Ele tinha um espírito ruim, a
casa transmitia uma energia desagradável, além do odor desagradável que
exalava do homem.
— Vou chamá-la.
Só quando ele saiu da minha frente, é que me dei conta de que tinha ido
até a casa dela sem ser convidado e sem ter bebido nada que pudesse me dar
coragem.
Alguns minutos depois, que mais pareceram horas ali fora, ela apareceu
na porta. Usava roupas mais largas que as de costume.
Não a esperei terminar, o alívio foi tão grande que a abracei com força.
Para meu espanto, Lucy me empurrou, soltando um grunhido como se eu a
tivesse tocado em uma ferida.
Dei um passo para entrar naquela casa, mas ela se colocou na minha
frente, segurando meu peito com as palmas das mãos.
— Se entrar aí, vai ser muito pior para mim. Ele só vai ficar mais
furioso comigo.
Tirei o celular do bolso e liguei para meu pai. Tinha ciência do quanto
minha mãe estava sendo difícil nos últimos dias, de como ela jogava na
minha cara, cada vez que me via, que eu era uma decepção por não querer
fazer faculdade.
Não era nem de longe a melhor hora para fazer aquilo, sem contar que
eu só tinha dezessete anos, mas meu pai não se opôs quando lhe contei que
Lucy estava sendo espancada por estar namorando comigo, e que precisava
levá-la para nossa casa.
Liguei também para meus amigos Steven e Christer. Não sabia se havia
algum dos amigos de Alan Peter lá dentro, e não queria arriscar sozinho com
meu pai.
Quando ela entrou, me senti péssimo por não ter tomado aquela decisão
antes, por ter deixado chegar naquele ponto.
Logo, uma das portas se abriu e ela surgiu. Carregava uma mochila nas
costas e uma trouxa feita com um lençol apertada contra o peito. As lágrimas
escorriam pelas bochechas vermelhas.
O homem ficou ainda mais furioso quando percebeu que iriamos levá-
la embora. As ofensas aumentaram. Os xingamentos eram da pior espécie
possível.
Lucy parecia tão frágil, tão judiada quando chegou até nós. Pequena e
indefesa diante de um monstro.
— Acabou — murmurei contra seu ouvido, passando um braço ao
redor dos seus ombros, sem saber se aquilo iria machucá-la, e a levei dali.
— Não vou te deixar aqui fora, tenho medo de você fugir — Axel disse
ao abrir a porta para que eu descesse do Toyota.
Apertei os lábios. Muitos animais eram mais bem tratados que eu. Não
me ofenderia, desde que não fosse desencadear uma confusão para Axel.
E era. Axel nunca tinha levado uma namorada para conhecer sua mãe,
e a primeira era a sobrinha da empregada, filha de uma assassina e estava
vindo se hospedar na casa. Alan Peter me mandaria do inferno para lá se eu
chegasse com um garoto em casa dizendo que ele ficaria conosco.
Apertei a alça da mochila tão forte que meus dedos ficaram dormentes.
Passamos pelo vestíbulo e entramos na sala iluminada. Cecilia estava sentada
no sofá branco e impecável lendo um livro.
— O que vai dizer a ela? — perguntei baixinho. Mas ele estava tão
nervoso que não conseguiu responder. A timidez tinha voltado com força
total. Claramente, Axel se dava melhor com o pai. Apertei sua mão e
acrescentei: — Posso mesmo ficar no celeiro.
— Mãe? — ele a chamou com a voz rouca. Fiquei com pena de vê-lo
tão constrangido.
— Lucy vai ficar com a gente — ele disse sem cerimônia. — Ela saiu
da casa dos tios.
— Ela foi espancada — senhor Hansson disse dois tons mais alto que o
normal. — O tio dela...
— Lucy foi espancada pelo tio porque está namorando nosso filho —
senhor Hansson disse com autoridade.
— É por sua causa que nosso filho perde noites de sono em boates —
ela disse olhando para o marido furiosa. — Você o incentivou, deu apoio, me
convenceu a assinar aquela emancipação ridícula. Axel tem que ir para a
faculdade, vai ser um médico brilhante, não pode desperdiçar a vida com uma
garota como Lucy.
Mordi o canto interno da bochecha para não dar risada da cara que
senhora Hansson fez.
— Ninguém vai a lugar algum — senhor Hansson disse mais alto que
todos, então baixou o tom. — Cecilia, nosso filho tem uma namorada, uma
adolescente adorável que também gosta dele. Não sabe como eu desejava que
ele arranjasse alguém.
— Mamãe vai fazer da nossa vida um inferno, mas pelo menos você
terá comida e vai estar em segurança. E nossa casa cheira bem melhor do que
o lugar onde você morava.
Ia dizer para Axel não pensar naquilo, mas os gritos de sua mãe me
interromperam. Ela berrava ao telefone, estava demitindo minha tia.
Fiz que não com a cabeça. Aquilo não fazia eu me sentir melhor.
— Alan Peter vai bater nela quando souber que ela foi despedida. Vai
precisar ficar uma semana em casa até se recuperar dos machucados —
sussurrei sem saber ao certo como me sentir. Seria a primeira vez que estaria
de fora dos socos e dos gritos. E mesmo sabendo que nunca tinha machucado
minha tia, me sentia responsável pelo que aconteceria.
— Você não pode se culpar por uma coisa que não tem nada a ver —
Axel disse pegando a mochila das minhas mãos. — Sua tia é adulta, eram
vocês que sustentavam a casa, ela não depende do seu tio. Pode dar o fora.
— Recebi três mil coroas para tocar da última vez. Se mamãe tivesse
me expulsado, eu não iria deixar faltar nada para você, meu amor.
— Se acha que é melhor assim, para todo mundo e para sua carreira,
está tudo bem. Acredite, as palavras da sua mãe não são nada comparadas a
morar com meus tios.
— Você...
— É minha irmã. Minha mãe já deve ter ligado. — Dito isso, Axel
atendeu.
Sem muita cerimônia, fui até o banheiro e acendi a luz. Seria muita
falsidade dizer que não me sentia feliz por estar naquela casa, longe das
imundices do meu tio. Um lar onde eu não precisava arrastar a cama para
bloquear a porta. Só não sabia quanto tempo aquilo iria durar. A única certeza
que tinha era que daria meu melhor para fazer por merecer um namorado
como Axel.
— Sim, irmã.
— Lucy também é tímida. Não tanto quanto eu, mas é. Não quero que
ela fique constrangida com nada, já basta eu não ser capaz de frear a boca da
nossa mãe.
— Não se preocupe. Convivi muito tempo com você, sei lidar com
pessoas tímidas. Agora me conta, o tio dela é um escroto mesmo?
Não estava. Uma legging velha e um suéter puído não é o que você
deseja vestir no primeiro jantar com os pais do namorado, mas não queria
deixar senhor Hansson/meu estômago esperando.
— Seu tio te trancou no quarto o dia todo, não te deixou comer — ele
disse.
Dei de ombros. Não era nenhuma novidade para mim, mas para os
Hansson, aquilo era algo cruel e muito distante das suas realidades. Até
Cecilia se deteve por um momento, antes de pegar o próximo sushi.
— Leonora pediu para levar Lucy até Malmö amanhã à noite. Ela quer
conhecer a garota que fez você enfrentar a timidez.
— Vai gostar dela — ele me disse sem muita segurança na voz. Estava
usando os óculos, e quando ficava envergonhado, os empurrava com o dedo
indicador. O aparelho brilhava pelos seus lábios entreabertos.
— Ela sabe sobre minha mãe? — resolvi perguntar logo.
— É isso que quer para nosso filho? — ouvi a voz de Cecilia perguntar
das portas duplas. — Que ele namore a filha de uma das piores assassinas da
Suécia? Que ele ande por aí com alguém que pode surtar e fazer o mesmo
que a assassina da mãe dela? Como acha que vou conseguir dormir à noite?
— Pensei que nada que ela pudesse falar fosse estragar seu jantar —
ouvi Axel dizer atrás de mim.
— Sinto muito por tudo. Sinto tanto que nem sei como me expressar.
Foi um erro pensar que dava para deixar você perto da minha mãe. Ela é mais
cruel do que imaginei. Vamos arranjar um apartamento. Só nós dois.
— Eu amo tanto você, minha Lucy — ele disse de um jeito que fez eu
me sentir estranha. Mas um tipo de estranheza boa. Uma espécie de calor. —
Desculpa por ter uma mãe...
— Por conseguir salvá-la do seu tio, mas não ser capaz de te livrar da
conversa constrangedora com meu pai.
— Lucy, eu preferia morrer do que ter essa conversa com meu pai na
sua frente, você não faz ideia do quanto sou tímido.
— Vocês são jovens. Já tive a idade de vocês. Posso aceitar que não vá
para a faculdade, como planejamos, filho. Posso receber você aqui, Lucy.
Posso dar apoio, mas não vou tolerar uma gravidez.
— Não queria contar que a gente não faz ainda — sussurrei. — Seu pai
parece muito feliz por você estar namorando. Acho que ele não vai mais se
preocupar com isso.
— Eu preciso beber — Axel disse, roçando os lábios no meu pescoço,
inconsciente do que aquilo me causava. — Se ele tirasse uma camisinha do
bolso e me entregasse na sua frente, te juro que teria morrido.
— Nunca.
— Mas, quando ficar muito famoso, dará muitas entrevistas, vai ter que
enfrentar isso. Não dá para ficar aparecendo na TV bêbado.
— Tenho certeza. Você foi incrível naquele show. Tudo que disse
sobre as garotas... Você fará muito sucesso.
— Obrigado por ter fé. Às vezes, fica difícil com tudo que minha mãe
diz.
Olhei a mochila sobre a cama de Axel. Quase todas as roupas que havia
trazido estavam na trouxa de lençol, no banco de trás do Toyota. Não tinha
dado tempo de pegar meus poucos cosméticos. Só o perfume. Estalei os
dedos, enquanto Axel ligava o notebook na escrivaninha. Já passava das dez
horas da noite. Não imaginava que essa parte fosse ser constrangedora.
— Tá...
Praguejei contra tia Esther por não ter me dado um centavo nas últimas
semanas. Precisava arranjar um jeito de ganhar dinheiro o mais rápido
possível. Alguém tinha que me dar um emprego. Eu necessitava dessa
chance.
Mas, naquele momento, não havia dinheiro, muito menos as coisas que
precisava para passar a primeira noite inteira com meu namorado. Teria que
me contentar com uma calça de moletom e uma camiseta desbotada da banda
Abba.
Quando pensei em pedir uma toalha de banho a Axel, foi que me dei
conta de que não havíamos conversado sobre isso. Vir morar na fazenda
Hansson não estava nos planos. Eu tinha trabalhado como doméstica ali.
Talvez, se eu conseguisse cuidar da limpeza da casa sozinha, Cecilia não
fosse tão cruel comigo.
Ele tirou os fones e girou a cadeira para me olhar. Olhei para baixo, me
certificando de que a calcinha estava bem escondida atrás da camiseta e da
calça que eu segurava contra o peito.
Pensei em falar algo, mas não sabia o que, então fui para o banheiro.
Quando saí, me sentindo um desastre da moda, ele ainda estava no notebook.
Caminhei na sua direção e fiz carinho na sua bochecha até ver a covinha
aparecer. Ouvi o som de uma música nos headphones, antes que ele desse
pausa e os tirasse. Axel passou um braço em volta da minha cintura e me
puxou desajeitado para seu colo, o que fez meu tórax queimar.
— Certeza?
Fiz que sim com a cabeça, apoiando as mãos nos seus ombros.
— Você está tão cheirosa! Nem parece que usou meu shampoo. —
Axel se inclinou para cheirar meu pescoço e deslizou a mão numa mecha do
meu cabelo úmido. — Quer usar o secador? Acho que tem um no quarto de
Leonora.
— Esse é o problema. Não era para você me achar fofo. Queria ser
alguém que faz você se sentir protegida, que faz você sentir desejo. Não um
tímido fofo que...
— E eu vou me deitar.
Isso era um grande avanço. Ele tinha feito eu recuperar algo que
imaginava ter perdido completamente: minha confiança nas pessoas.
Minha boca se abriu formando um O com o que vi. Axel era... Gostoso.
Muito, muito gostoso. Havia sardinhas nos seus ombros, tinha uma estrutura
óssea muito favorável. Mechas do cabelo molhado estavam caídas sobre a
testa. O vi se virar para pegar os óculos na escrivaninha e os colocar. Quando
ele se virou para abrir o closet, a toalha escorregou. Ele a segurou bem
depressa, mas foi o suficiente para que eu pudesse ver a marca da sunga e
metade do seu bumbum. Alguma coisa se contraiu dentro de mim. De
repente, fazia muito calor. O edredom estava me esquentando muito, até
minhas roupas eram demais. Senti o suor se formar na nuca e me remexi nos
lençóis.
Sem saber o que se passava comigo, Axel apanhou uma peça de roupa
e voltou ao banheiro.
Ele passou os braços em volta de mim e puxou meu corpo para perto
do seu.
Corei.
— A mesma coisa, mas lá é muito mais frio que aqui. Parece que o
aquecedor está ligado no máximo.
— Reparei numa coisa — ele sussurrou. Sua voz estava mais grossa
que o normal.
— Você não parece mais ter medo de mim, de ficar sozinha comigo.
— Não quero mais esperar — sussurrei contra seus lábios com uma
confiança que mal sabia que tinha.
Axel fez que sim com a cabeça, mordendo o lábio inferior que tinha
atingido um lindo tom avermelhado. Ele engoliu em seco e escorregou a mão
por cima da estampa do Abba, até atingir a barra da camiseta. Sorri com
satisfação quando senti sua mão entrando por baixo, acariciando minha
barriga. Como se nossos pensamentos estivessem sincronizados, empurramos
o edredom com nossas pernas. Foi ele que se aproximou dessa vez, enfiando
a mão por baixo do meu corpo, me apertando contra ele. Nem a dor dos
machucados foi capaz de diminuir o prazer que senti quando nossos quadris
se tocaram.
— Aqui — falei.
Foi ele quem gemeu dessa vez, trincando o maxilar, enquanto seu dedo
acariciava meu mamilo, fazendo meu desejo aumentar.
— Quero que você goste, Lucy — ele sussurrou com a voz rouca. —
Quero que me peça o que quiser, que reclame se eu te machucar, que diga do
que gosta, que gema se sentir vontade. Não tenha vergonha.
— Não estou com vergonha — falei acariciando seu queixo. Ele tinha
feito a barba e a pele estava lisinha.
Sua mão apertou mais forte meu seio quando ele afundou a boca na
minha. Escorreguei a mão para baixo, até tocá-lo por cima da bermuda. Senti
seu corpo se retesar quando esfreguei a palma da mão até o final.
Mordi a ponta do dedo com mais força, deslizando a mão pelo seu
peito, acariciando sua barriga, fitando seus olhos, que analisavam cada
centímetro do meu corpo.
Percebi que ele não usava cueca quando enfiei a mão por baixo do cós.
Arfei sentindo algo dentro de mim palpitar, e não era o coração. O segurei na
palma da minha mão e o fechei com meus dedos, movimentando devagar só
para ouvi-lo gemer novamente.
Ele riu, mais voltou a ficar sério quando fiz mais rápido.
— Você não faz ideia do quanto eu queria isso — ele murmurou com a
voz mais áspera que o normal, antes de pressionar o dedo sobre a minha
calcinha, mais forte dessa vez, me fazendo gritar.
— Vou fazer de novo — ele disse com o sorriso torto. — Não grite,
Lucy!
Só que, dessa vez, ele afastou a calcinha para o lado, e foi tão gostoso
que precisei me agarrar no travesseiro, torcendo para ele nunca parar.
— Estou sentindo — dizer aquilo fez meu coração bater mais rápido,
porque percebi que algo melhor ainda estava por vir.
Seus lábios se curvaram num sorriso que teria tirado meu fôlego, se eu
ainda conseguisse respirar. Senti seus lábios no meu pescoço, nos ombros, no
outro seio, no meu umbigo. Axel se ergueu e observou meu quadril, tocando
as linhas brancas e irregulares como se minhas estrias fossem uma obra de
arte. Fiquei arrepiada quando ele as beijou, como se as adorasse, como se me
fizessem única.
Foi a primeira vez que gostei de sentir dor. Me movi com ele,
desesperada com aquela explosão de prazer. Seu vai e vem me fazia querer
cada vez mais. Gemi baixinho contra seu ombro. O vi abandonar-se ao
prazer, apoiando a cabeça na minha clavícula, gemendo de olhos fechados,
mordendo os lábios, dizendo o quanto eu era deliciosa.
Ele piscou.
— Tenho que tirar, Lucy. Não aguento mais segurar — ele falou
ofegante.
— Por quê?
Ele não respondeu com palavras, mas voltou a se mover ainda mais
rápido. Vi seus olhos revirarem antes de ele grunhir, enterrando tão fundo
que pensei que ia me partir ao meio. Fui ficando mais excitada, mais quente.
Sentindo meu corpo inteiro vibrar, ansiando por algo que estava prestes a
acontecer. Mas, para meu desespero, Axel parou novamente, quando senti
alguma coisa jorrar dentro de mim, os gemidos cessaram e ele se
desencaixou.
— Isso foi a melhor coisa que eu já fiz em toda a minha vida — ele
disse com a voz rouca, o rosto vermelho e suado, beijando a ponta do meu
nariz.
Respirei fundo e mordi o lábio.
— Dentro de você.
— Sim.
— Não. Não faço — falei, mas ele não entendeu o que eu queria dizer.
Então percebi que eu podia mais que isso. Que não só ele tinha direito.
Que assim como eu tinha o feito chegar lá, ele também tinha que me
recompensar. E só dependia de mim.
Não fui discreta, não comecei devagar. Não tinha vergonha de também
querer gozar. Se nós dois estávamos fazendo, por que só ele merecia chegar
lá?
— Goza para mim, vai — ele disse contra meu outro seio, antes de
segurar meu mamilo entre seus dentes. Foi a gota d’água. Encostei meus
lábios no topo da sua cabeça um milésimo de segundo antes de explodir num
êxtase cruel, violento e delicioso.
Nos encaramos sem fôlego. Seu rosto estava vermelho, seu queixo
erguido, o cabelo bagunçado.
Nunca pensei que seria tão espontâneo, sem planos, sem preparação,
sem uma tremenda ansiedade.
Lucy me tinha nas mãos naquele momento. Meu coração, meu corpo,
tudo em mim só conseguia pensar em beijar, lamber, chupar e morder cada
parte do seu corpo, enquanto ela ainda me via apenas como o cara fofo.
Chegava a ser irônico.
— Esse é o problema. Não era para você me achar fofo. Queria ser
alguém que faz você se sentir protegida, que faz você sentir desejo. Não um
tímido fofo que…
Abracei seu corpo e a puxei para meu peito, feliz por ter Lucy comigo.
— A mesma coisa, mas lá é muito mais frio que aqui. Parece que o
aquecedor está ligado no máximo.
Não sabia se deveria apagar a luz. Fechei os olhos para dormir, mas
não havia sinal de sono.
— O quê?
— Você não parece mais ter medo de mim, de ficar sozinha comigo.
— Não quero mais esperar — ela disse contra meus lábios, tão
provocante que varreu o que restava da minha consciência.
Passei a mão sobre a camiseta, sentindo seu calor. Enfiei a mão por
baixo da barra e percorri sua barriga com meus dedos, me aventurando por
sua pele em chamas. Suas últimas palavras ecoavam na minha mente. Ela não
queria mais esperar, e eu enlouqueceria se continuasse tentando.
— Onde queima?
Então ela pegou minha mão e a guiou entre nossos corpos. A toquei
por cima da calcinha, fazendo um esforço para não afastar o tecido e invadi-la
de uma vez.
Apertei mais forte e me afoguei no seu beijo. Senti sua mão passando
pela minha barriga, até parar em cima do calção de malha fina. Seus dedos
me apertaram, me levando à melhor das loucuras.
Parecia um sonho.
— Você não faz ideia do quanto eu queria isso — falei, temendo que
não fosse aguentar de tanto tesão.
— Seus pais! — ela disse quando se deu conta do barulho que fez.
— Eu também te amo.
Fui indo mais rápido, cada vez mais fundo, até que não dava mais para
suportar. Tentei sair, não podia gozar dentro dela, mas Lucy não deixou. Me
puxou de volta com suas pernas, dizendo que era aquilo que ela queria. Como
poderia negar algo à mulher que estava me dando a melhor noite da minha
vida? Abandonei a consciência e deixei o tesão me guiar, até pensar que não
fosse conseguir suportar a explosão do mais delicioso e cruel prazer.
Saí de dentro dela e me joguei ao seu lado. A boca estava seca, mal
conseguia respirar, o suor escorria pelos nossos corpos.
— Você gozou.
— Sim.
Ela me guiou para tocar seus seios, que balançavam com o movimento.
Observei todo seu corpo, a pele macia, as muitas curvas, as linhas claras em
volta do seu quadril, os furinhos na parte abaixo das coxas que apareciam a
cada sentada, os mamilos pequenos e rosados, a barriga, o pescoço, os braços,
o rosto, tudo!
— Acho que seu pai vai expulsar nós dois — comentei. — Não
consegui segurar. Estava muito gostoso.
Sabia que, quando meu corpo esfriasse, minhas costelas iriam doer
como nunca. Mas tinha valido a pena. Meu interior ainda latejava, me
lembrando a cada instante que aquele prazer tinha sido real, que fazer sexo do
jeito certo era maravilhoso.
— Ah, claro. Vou procurar. Quer comer alguma coisa? Beber algo?
Me perguntei com que cara iria olhar para os Hansson no dia seguinte.
Era a primeira vez que iria passar a noite ali e já chegava dando escândalo.
Mas, se reclamassem, ia dizer que a culpa era do filho deles. Quem mandava
ser tão gostoso? Eu não tinha culpa de nada.
Dei de ombros e sorri, perplexa com a reviravolta que minha vida tinha
dado. Precisaria ser ainda mais forte e aguentar tudo que Cecilia iria fazer
para me ridicularizar. Não queria e não poderia ir embora dali. Sabia que
Alan Peter ia me espancar todo dia se eu voltasse para casa, e não ia suportar
apanhar tanto. Pior ainda seria perder Ax.
Me vi implorando para ficar com Axel para sempre. Para ser aceita de
verdade por aquela família, mas também ter sabedoria para aguentar de
cabeça erguida se Cecilia Hansson nunca me aprovasse. E havia Leonora.
— Por que não trouxe você para cá ontem? — ele resmungou mais
para ele mesmo do que para mim. — Poderia ter evitado isso.
— Por favor, estou bem. Logo vai sarar. Não estrague nossa noite
pensando nisso. Te amo e essas têm sido as melhores horas da minha vida.
Ele deu aquele meu tipo de sorriso preferido. O tímido, com os olhos
focados para baixo.
— Não entendi.
— Fazer xixi. Depois vou até o carro pegar o resto das minhas coisas.
Acho que é melhor fazer isso sem que sua mãe veja — expliquei.
— Quer que eu busque para você? — Axel quis saber com a voz
sonolenta.
Atravessei o quarto nua e fui para o banheiro. Lavei o rosto e sorri para
o reflexo no espelho. Não tinha dormido quase nada, mas me sentia plena,
feliz. Fiz xixi e voltei ao quarto, vesti a calça de moletom e a camiseta velha.
Os músculos das minhas coxas doíam um pouco, mas as costelas estavam
melhores.
Não pensei duas vezes. Rezando para não escorregar, corri na direção
das escadas, apertando a trouxa de lençol contra o peito. No primeiro degrau,
ouvi sua voz chamar meu nome. Muito perto.
Alan Peter estava atrás de mim. Pensei que nunca fosse conseguir
chegar à varanda a tempo, mas o cachorro me ajudou. Alcancei a maçaneta
da porta e ouvi o urro de dor do border collie, quando o desgraçado do meu
tio o atirou para longe com um chute na barriga. Me encolhi, sabendo
exatamente como doía. Me sentindo covarde, por não correr e pegar o
cachorro no colo, girei a maçaneta e entrei no vestíbulo depressa, mas antes
que pudesse trancar a porta, Alan Peter atravessou na frente e a empurrou.
Só deu tempo de dar dois passos na direção das escadas, então senti o
puxão de cabelo. Ele me jogou contra a parede, mas consegui me equilibrar e
tentei correr outra vez, foi então que seus braços alcançaram a trouxa de
roupas que eu carregava. Vi meus trapos se espalharem na sala de estar dos
Hansson, as calcinhas velhas caindo pelo carpete de Cecilia.
— Você vai comigo, putinha — ele disse com a voz nojenta. — Vai
começar a trabalhar naquele hotel hoje mesmo.
— Sai daqui! — ordenei, mas ele era grande. E eu não tinha muito
mais que um metro e meio. Seu soco acertou meu queixo em cheio. Seu
corpo me encurralou contra a parede. Bati a cabeça contra um quadro de
Cecilia. Quando seu punho fechado golpeou minha costela já machucada, a
dor foi tanta que vi a sala girar.
— Vou experimentar você primeiro, saber o que tem de tão bom para
enfeitiçar o garoto Hansson — ele ameaçou, mas não soltei o aparador. E os
quadros da família caíram quando o móvel pendeu para o chão.
Não queria incomodar os Hansson com a baixaria dos Peter, mas tinha
que fazer isso.
O estalo veio antes da dor. Meu maxilar trincou e meu grito ficou preso
em algum lugar dentro daquele estupor de dor insana. Alan Peter tinha
torcido meu braço para trás. Meu corpo inteiro foi dominado por aquela
agonia. Doía mais que qualquer outra surra que ele já tinha me dado. Fez meu
corpo perder as forças. Meus joelhos fraquejaram, mas meu tio me segurou
em seus braços antes que eu caísse.
Por trás das lágrimas nos olhos, vi Cecilia pegar alguma coisa e acertar
na cabeça dele, enquanto gritava pelos homens da casa.
Era desesperador saber que ela tinha sido agredida de forma tão brutal
na sala da minha casa, que nem ali Lucy estava segura.
Como ainda poderia acreditar nas pessoas, na vida, como ela ainda
poderia se sentir protegida após mais um trauma?
Lucy não acreditaria mais em mim, não teria mais fé de que poderia
ajudá-la a se reerguer.
— A culpa não foi sua — meu pai disse, como se soubesse exatamente
o que eu estava pensando.
Mamãe não parecia muito feliz com aquilo. Ela ainda estava tentando
se recuperar do caos que tinha sido nosso amanhecer. Mencionou, em todas
as vezes que teve oportunidade, que aquilo era culpa de Lucy, por trazer os
problemas da sua família até nossa fazenda. Só que, no fundo, ela mal
conseguia disfarçar a preocupação com minha namorada. Tinha ido para cima
de Alan Peter sem pestanejar, acertando a cabeça dele com o primeiro objeto
que alcançou no meio da confusão. Foi ela quem ligou para a polícia
enquanto eu o socava, descontando pelo menos uma parcela do ódio e da
revolta que sentia.
Acordar, depois da melhor noite que você já teve, e ver sua namorada
sendo espancada é algo que te afeta profundamente. Saber que chegou tarde
demais, que o braço dela foi torcido até quebrar, enquanto você vestia as
calças, para poder sair do quarto, só faz aumentar a sensação de impotência.
— Mãe, por favor, não dê um dos seus shows aqui — pedi por entre os
dentes, com o rosto já ardendo de vergonha.
— Não sei porque ainda perde seu tempo — falei. Estávamos sentados
nas cadeiras azuis da recepção do bloco cirúrgico. Por sorte, o diretor do
hospital tinha sido amigo do meu pai, quando estudavam na Agaton
Gymnasieskola, e prometeu que cuidaria para que Lucy ficasse confortável e
se recuperasse o mais rápido possível. — Você deveria ir para casa.
Por mais que eu quisesse ficar ali, não podia negar isso a minha mãe. A
acompanhei até o restaurante. Não sentia fome alguma, só que ela não
entendia isso. Praticamente forçou a comida a descer pela minha garganta.
Depois que ela me repreendeu uma vez e chamou a atenção de outros pessoas
que estavam no local, me deixando com vontade de ser enterrado vivo, cedi a
seus caprichos.
— Não foi uma queda ou algum outro tipo de acidente. Seu tio torceu
seu braço até partir o osso — falei, tirando os óculos e limpando as lentes na
camiseta. — Então, mãe, não é só um braço quebrado, é mais uma lembrança
ruim para persegui-la.
Desejei poder pedir que ela pegasse leve dali em diante, que tratasse
Lucy bem porque, acima de ser a garota que eu amava, ela merecia todo
respeito do mundo. Mas minha garganta se fechou e não consegui dizer nada
daquilo.
— Vocês não tiveram culpa de nada. Fizeram o que precisava ser feito
— Mikaela disse.
Meus amigos não ficaram muito tempo. Lucy ainda estava inconsciente
quando eles deixaram o quarto. Já minha mãe ficou o tempo todo por ali.
Enquanto eu mexia no celular, para ver se o tempo passava, ela se levantava
da poltrona e se aproximava de Lucy, tocava suas mãos, verificando a
temperatura, arrumava uma mecha de cabelo mais bagunçada, checava todos
os aparelhos, então voltava a se sentar.
Outra vez, sugeri que ela fosse para casa descansar, mas ela se recusou.
Leonora prometeu vir assim que pudesse. Estava em choque com que
havia acontecido.
— Não foi nada — Axel disse. — Me sinto um mentiroso por ter dito
que ia te proteger, mas não consegui.
Axel fez que sim com a cabeça. Parecia terrivelmente cansado e triste.
Olhei em volta e vi que havia flores sobre uma mesa embaixo de uma janela
coberta por persianas.
— Quase 19h.
— Mas ele é meu tutor — falei depressa. — Tem minha guarda e ainda
não fiz dezoito anos...
— Meu pai sabe disso. Deixe que ele cuide das coisas.
Não sabia viver de outro jeito a não ser como saco de pancadas. Meu
corpo e meu psicológico estavam acostumados com isso.
Precisava dar o melhor de mim para viver desse novo modo, mas sem
querer abusar da boa vontade de ninguém. Sabia que precisava de um
equilíbrio, só tinha que aprender como consegui-lo.
Sabia que Cecilia ainda devia me odiar. Ela tinha quebrado um porta-
retratos na cabeça de Alan Peter, mas isso não significava que me aprovava.
Tentei pigarrear para limpar a garganta, não sabia como fazer aquilo
funcionar. Era bem provável que ela só me desprezasse ainda mais.
— Primeiro de tudo, obrigada — comecei timidamente, enrolando a
barra da camisola entre os dedos do braço engessado.
— Não.
— E o que tenho a ver com isso? Acha mesmo que vou te dar uma
mala de presente? Pelo amor...
— Quer que eu volte sozinha para a casa que você e sua família
destruíram, para que me agache pela sala e cate sua roupa íntima?
— Lembra que minha irmã tinha pedido para te levar a Malmö hoje,
pois queria te conhecer?
— Sim. Leonora. Mas acho que as coisas saíram um pouco dos planos
— falei e ele se aconchegou mais perto de mim, segurando com todo cuidado
meus dedos abaixo do gesso.
— Não — ele disse depressa. — Deveria, mas meu pai conversou com
o chefe do hospital. Eles estudaram juntos. Ele ficou feliz em deixar a nora do
meu pai mais confortável.
— Então tudo bem. Vou ficar feliz em conhecer sua irmã, apesar de
não ser em circunstâncias tão boas.
— Tem mais alguma coisa que queira dizer? Gosto de pensar que
podemos falar tudo um para o outro.
Seu rosto ficou corado. Não pude evitar erguer a mão para acariciar
suas sardinhas. O aparelho aparecia entre seus lábios levemente abertos.
— Foi... — ele fez uma pausa, seus olhos azuis oscilavam entre meus
olhos e lábios.
— Incrível.
— E inesperado. Sabe... Dá um frio na barriga só de relembrar — ele
disse e deu risada, como se ficasse constrangido com os próprios
pensamentos. — Quando você ficou por cima. Caralho, Lucy, foi mais do
que perfeito.
Axel mordeu o lábio. Como alguém podia ter um sorriso tão adorável?
Meus dedos tocaram sua covinha. Me inclinei para frente e ele encurtou a
distância entre nossas bocas.
— Obrigada por ter sido tão maravilhoso comigo. Faz tão pouco tempo
que começamos a andar juntos.
— Não faz nem duas semanas — ele disse. — Mas passei o segundo
ano inteiro te namorando mentalmente, então...
— Nada disso — falei tocando seu lábio macio com a ponta do meu
dedo indicador. — Você me resgatou. Alan Peter fez o que fez hoje, mas
você me salvou. A gente não podia imaginar que ele estaria na espreita.
— Não precisa me prometer nada, meu amor. A única coisa que quero
é que fique comigo, que a gente fique junto, e que você não me deixe para
trás quando for embora para Estocolmo...
Uma mulher na casa dos vinte anos entrou pelo quarto. Era loira,
sardenta e com os olhos tão azuis quanto os de Axel. Era bonita, mas parecia
não dar tanta importância para a aparência. Com um jeans básico azul claro e
um suéter bege, Leonora não lembrava em nada o visual impecável da sua
mãe.
Ela parou ao lado do irmão, que se virou para abraçá-la. Os dois eram
incrivelmente parecidos, até no sorriso.
— Essa é a minha namorada, Lucy — ele disse quando a soltou,
orgulhoso como se estivesse dizendo que estava namorando a nova princesa
da Suécia.
— Você é tão bonita! — ela disse segurando meu rosto entre suas
mãos. — Está toda quebrada, mas é linda.
— Contou sim.
— Foi um dos meus melhores feitos — ela disse e se virou para olhar o
irmão com admiração. — Estão falando sobre você em Malmö. Tem um
bando de viciados em raves que mal podem esperar para te ver tocar lá.
— Mikaela fechou dois shows para sexta e sábado — Axel disse todo
feliz. — Queria saber se podemos passar o fim de semana na sua casa. Lucy e
eu.
— Não me empolgar? Você vai ser famoso, Axel! Tenho certeza disso
— ela garantiu e se virou para me olhar. — Lucy, já viu as letras que ele
compõe?
O vi ficar corado.
— E não precisa. Você irá muito mais longe com sua música!
Mas, quando eles partiram, cerca de meia hora depois Cecilia voltou
trazendo uma mochila com mudas de roupa para seu filho. Ela se aproximou
da cama, se inclinou na minha direção e sussurrou.
Com a toalha nos ombros, ele empurrou a poltrona até bem perto da
minha cama.
Sua reação fez meu estômago revirar. Foi como se ele nunca tivesse
pensado na possibilidade terrível de engravidar uma garota, e de repente
todos os seus sonhos caíssem por terra. Abriu a boca para falar, mas estava
chocado demais para conseguir dizer alguma coisa.
— Quero que considere cada palavra que vou dizer — ele começou,
sentado ao meu lado na cama estreita, segurando uma das minhas mãos e me
olhando bem sério.
Fiquei tão emocionada que não consegui chorar. Axel esperava que eu
fosse alguém na vida. Ele acreditava que, em algum lugar do meu cérebro
lento, eu poderia me destacar e ser uma profissional de respeito. Ele não
queria que eu fosse simplesmente sua companheira, alguém que viveria à sua
sombra.
Ele abriu um sorriso lindo e beijou a minha mão que estava segurando.
— Mas não acredito que dê para recuperar o tempo perdido. Tem muita
coisa que não consegui aprender na escola. Fui empurrando com a barriga.
Respirei fundo e olhei para meu braço envolto em gesso, onde seus
amigos haviam rabiscado seus nomes. Tanta coisa havia mudado. Uma
pessoa em seu psicológico saudável odiaria ficar no hospital. Para mim, foi a
primeira vez em anos que consegui descansar e recuperar o sono. Me sentia
renovada. Ainda mais agora, com a possibilidade de um futuro promissor
(não que eu realmente acreditasse que poderia entrar na faculdade).
Cecilia Hansson era uma mulher desequilibrada. Ao mesmo tempo em
que me humilhava como um capacho em casa, estava me levando com seu
filho para comprar roupas, depois da escola, na sexta-feira, porque não queria
que Axel fosse visto com uma molambenta, como ela mesma disse. Também
era engraçado ela estar se preocupando tanto com o visual do filho para o
show em Malmö, quando não suportava que ele fosse DJ.
— Meu filho tem um show em Malmö hoje — ela disse com orgulho,
me fazendo arregalar os olhos. — Precisamos de algumas peças, e não
podemos demorar.
Olhei para Ax perplexa. Sua mãe odiava com todas as forças que ele
fosse DJ, mas falava disso com tanto orgulho. Como entender? Ele parecia
não estranhar, na certa estava acostumado com a personalidade bipolar da
senhora Hansson.
Engoli em seco, sem saber ao certo como agir. Axel estava do outro
lado, na seção masculina, olhando desinteressadamente para os cabides.
Fazer compras talvez não fosse seu forte.
Então, segurando meu braço bom com força, até fazer suas unhas
cravarem na minha pele, ela baixou o tom de voz e rosnou.
Respirei fundo, puxando meu braço das suas garras, segurei os vestidos
com mais força e abri um sorriso tão falso quanto o dela.
— Temos que separar o que vamos levar e partir. Preciso chegar cedo a
Malmö.
O segurei na palma da mão e pude ler meu nome nele. Lucy Peter.
— Use para suas emergências de garota. Axel disse que vai se dedicar
aos estudos. Fico aliviado. Posso mantê-la muito bem sem que precise
trabalhar.
— Obrigado por ter sido simpática com minha mãe — Axel disse
quando estávamos sozinhos no carro. — Por ter tornado as coisas mais fáceis.
Sei que ela precisa de tratamento psiquiátrico, mas fica pior quando é
contrariada. Não entendo o motivo dela, de uma hora para outra, resolver te
comprar todas aquelas roupas. Talvez...
— Não acredito que mamãe fez isso — ele disse sacudindo a cabeça,
mas sem parecer realmente chateado.
— Não, minha princesa. Você não pediu. Ela comprou porque quis.
Leonora havia arrumado o quarto de hóspedes para o que ela estava
chamando de “o casal mais apaixonado de Agaton”. Seu apartamento não era
grande e sofisticado como a casa de fazenda dos Hansson, mas era arejado,
bem decorado e aconchegante. Seu noivo, Evert, era simpático, porém
reservado. Nos recebeu com cordialidade e nos deixou à vontade para que
nos aprontássemos para o show.
Não fiquei enciumada. Não havia razão para isso. Mesmo que Mikaela
estivesse usando um top que exibia um abdômen definido, que não dobrava
quando ela sentava. Seu cabelo loiro platinado balançava, enquanto ela ria e
gesticulava para os amigos, os lábios se moviam com sensualidade, o olhar
era fatal, mesmo assim, não fiquei insegura.
Arregalei os olhos, mas fiz que sim com a cabeça. Axel passou o braço
em volta da minha cintura e se inclinou para encostar o rosto no meu. A
garota ficou do outro lado. Me perguntaram o que havia acontecido com meu
braço, e Axel respondeu que tinha sido um acidente. Perguntaram se podiam
postar a foto no Instagram e me marcar. Ficaram chocados quando falei que
não usava Instagram. Afinal, o que eu teria para postar em uma rede social?
Quem, além de Axel, se importaria?
Eu sabia que tudo aquilo o teria deixado vermelho como uma pimenta
se estivesse sóbrio. Mas, graças ao álcool, ele se limitou a dar aquele sorriso
tímido de covinhas.
— Não tive tempo de praticar essa semana — ele sussurrou para que só
eu ouvisse.
Quando Axel disse que eu era Lucy, a garota que ele amava
exatamente do jeito que era, o vídeo com minhas imagens apareceu no telão.
Para minha surpresa, algumas garotas na plateia começaram a gritar meu
nome. Arregalei os olhos, perto dele no palco, sem saber como agir. Então
Axel me beijou.
O palco era seu lugar, a música era sua vida. Eu faria qualquer coisa
para apoiá-lo na sua carreira. Axel Hansson já estava juntando os primeiros
fãs, era simpático e respeitoso com todos, principalmente as garotas, dizendo
coisas que as faziam se sentir melhores. Sim, ele estava no caminho.
Ele estava suado, cansado, mas abria os sorrisos mais fofos para as
lentes das câmeras. Não dava para dizer quem parecia mais orgulhosa:
Mikaela ou Leonora. Steven e Christer ajudaram a retirar seus equipamentos
do palco, enquanto Filippa organizava a fila de pessoas e instruía a todos a
marcarem Axel nas fotos.
Ser despertada com beijos no pescoço era algo com que eu poderia me
acostumar muito bem.
Nos agarramos um ao outro, minha mão escorregou por dentro da sua
calça, encontrando a ereção. Me sentei sobre seu quadril e, só de calcinha, me
movi sobre ele, iniciando a transa que terminamos embaixo do chuveiro, com
o sabonete escorregando nos nossos corpos e o som da água caindo, abafando
nossos gemidos.
O segundo show pareceu ficar ainda mais lotado. Ele fez algumas
modificações, tocou músicas diferentes e apontou para garotas com estilos
diferenciados, dizendo o quanto eram lindas e especiais.
— Quem?
— Você precisa finalizar com Where Is The Party e Until The End —
Christer falou colocando a mão no ombro de Axel. — É bem provável que
vão querer uma música exclusiva sua.
— The Girl vai ficar perfeita com a adição do seu vocal — Filippa
disse para Christer. — Deveria ser o primeiro lançamento.
Pelo que entendi, aquelas eram músicas que ele tinha produzido
sozinho, desde a composição até as batidas, e Christer e Filippa faziam os
vocais.
Seu pai piscou para mim, enquanto Axel dava aquele sorriso tímido.
Sua mãe parecia avulsa na cena, sem demonstrar a menor empatia pela
felicidade do filho. Pelo menos não me insultou, enquanto jantávamos
comida chinesa.
Como se não desse para ficar mais perfeito, ouvi a canção The Girl,
que estava quase finalizada. Falava sobre acreditar em si mesmo, dizia que
todos os sonhos poderiam se transformar em realidade, mas falava
principalmente a respeito de encontrar felicidade na garota solitária que
sentava do outro lado da sala de aula.
Não deveria me sentir assim. Aquele era seu sonho. Era egoísmo da
minha parte querê-lo só para mim.
Me remexi na cadeira.
— Lucy não pode faltar tantas aulas — foi a primeira coisa que ele
disse.
— Não estou pedindo para que faça isso. Você só tem dezessete anos.
Não vou te incentivar a faltar aula ou ir para longe de Lucy. É você quem
deve tomar a decisão.
— O tempo que precisar. Tudo pelo DJ! — ela disse após engolir o
queijo. — Se você conseguir contrato com essa gravadora, estamos feitos.
— Ligue para seu pai — Mikaela pediu. — Eles querem uma resposta
ainda esta noite.
Axel fez que sim com a cabeça, levantou-se pedindo licença e foi para
a calçada.
Não era Cecilia que me preocupava, era a saudade que sentiria do meu
príncipe.
Meu cabelo estava preso em duas tranças, estava usando meu vestido
jeans com elástico na cintura e a camiseta de estampa de margaridas, com um
casaco por cima, meias de lã e as velhas e inseparáveis botas marrons. Mordi
o lábio ao sentir o coração bater um pouco mais rápido. Era a primeira vez
que eu ficava a sós com ela.
— Você é a agente dele. Axel é tímido, travado. O que ele faria lá sem
você? Acredito que farão reuniões. Não pode encarar tudo ficando bêbado
para ter coragem. Ele precisa de você — expliquei.
— Não tem ciúmes? Não estou reclamando, longe disso. É bem melhor
que não tenha. Só quero entender.
— Tenho pernas longas, sou magra, sei que sou bonita, porque em
qualquer lugar aonde vou as pessoas olham para mim com desejo. Eu sei que
sou atraente. Enquanto você... Não estou dizendo que é feia, você tem sua
beleza. Mas não é magra, usa esses vestidos que às vezes parece que roubou
da sua avó, não tem postura, seu cabelo... Você nem hidrata! E come sem
nenhum freio.
Levei a mão livre do gesso até a minha cintura. Era notável que eu
estava ficando mais cheinha agora que comia com tanta frequência. Talvez
desse para esconder duas Mikaelas agachadas atrás de mim e, não, eu
realmente não hidratava o cabelo. Mesmo assim, não era educado da parte
dela dizer essas coisas.
Tive que rir quando percebi que ela estava o tempo todo querendo falar
da minha autoestima.
Pelo que entendi, ela estava incomodada por eu não sentir ciúmes.
Queria que ele estivesse ali para ver como tinha virado o assunto
principal. Ele diria que só estavam se aproximando tanto por ele ser DJ, e não
ficaria deslumbrado com tanta atenção.
Meu coração doía quando eu me virava no meu assento para lhe dizer
algo durante a aula, mas encontrava a cadeira vazia. Doía porque agora era
senhor Hansson que me levava para escola na caminhonete Ford, e não mais
Axel. Minha garganta se fechava quando, depois de jantar, com Cecilia
apontando cada um dos meus defeitos quando Elton não estava por perto, eu
subia para seu quarto e o encontrava vazio.
Os livros continuavam nas prateleiras, mas seus instrumentos tinham
partido com ele. O menino tímido com miopia, que costumava sentar sozinho
na hora do almoço, agora estava num hotel em Estocolmo, passava o dia
usando lentes de contato, e cada coisa nova que ele fazia era postada e
registrada em uma rede social.
Para aguentar a barra, focava nos livros, nas fórmulas, regras e datas
históricas. A cada matéria nova que eu conseguia compreender, sentia mais
esperança de entrar para a faculdade. Como Axel havia me dito, eu queria ser
alguém, mesmo que nunca tivesse me permitido ter esse tipo de fantasia. Se
eu acreditasse, e me dedicasse, talvez chegasse lá.
Trocava poucas palavras com tia Esther. Na maioria das vezes, ela me
implorava para retirar as queixas contra Alan Peter. Em sua defesa, ela dizia
que ele era um bom homem por nunca ter me estuprado. As vezes em que ele
passou a mão na minha bunda ou se esfregou em mim não significavam nada
para ela.
Então, depois de passarmos uma noite juntos para matar a saudade, ele
me levaria para visitar minha mãe.
Não sei o que me deixava mais ansiosa: ver meu príncipe ou mamãe.
Os amava tanto.
— Que frase?
— Você escreveria alguma coisa para mim com sua letra, e eu tatuaria.
— E eu também teria uma frase sua, com sua letra, marcada no meu
corpo. Adorei, de verdade. Quero fazer.
Ele abriu um sorriso tão lindo que me fez querer atravessar a tela do
celular para beijá-lo.
— Você já o conheceu?
— A sorte vai estar a nosso favor. Vocês vão assinar — falei com toda
a fé que cabia no meu coração.
— Princesa...
— Diga.
— Também te amo mais do que consigo dizer. Vai ser tão bom quando
pudermos ter nosso próprio lar. Quer dizer, sou muito grata por estar aqui,
mas sua mãe...
— Sim. Vou pegar o trem às 14h16. Chegarei por volta das 19h50.
— Claro... A menos que não ache que seja uma boa ideia.
— Vai ser sim. Tenho certeza que ela vai ficar feliz em te conhecer.
Ele abriu um sorriso, mas sem deixar aparecer o aparelho. Parece que
estava praticando esse tipo de sorriso ainda mais tímido, onde os dentes
nunca apareciam. Se ele pudesse ver o quanto era adorável, mesmo de óculos
e aparelho, sofreria bem menos.
— Nos vemos ainda esta semana, Lucy — ele disse e suas bochechas
ficaram mais coradas. — Espero que descanse no trem, porque planejo
termos uma noite longa.
O jeito que ele mordeu o lábio fez meu corpo inteiro se acender.
— Sabe como foi difícil, para mim, aceitar isso tudo, não sabe? — ela
me questionou.
— Estou ciente.
— Espero que tenha valido a pena. Traga meu filho a salvo de volta
para casa. Estamos todos com muita saudade.
Eu não sabia muito bem como agir diante desse novo temperamento,
por isso acenei com a cabeça e me virei para seguir até o carro, porque
alguma coisa na sua expressão corporal me fazia pensar que Cecilia Hansson
iria me abraçar.
— Obrigada, de verdade, por ter sido mais que um tutor para mim nos
últimos dias. O senhor fez tantos sacrifícios...
Queria dizer que ele tinha sido muito mais do que eu conhecia como
pai, mas teria começado a chorar. Pensei em abraçá-lo, só que eu não sabia
muito bem o jeito menos constrangedor de fazer isso. Axel tinha sido a única
pessoa que eu tinha abraçado nos últimos dois anos — já que ano passado
não havia dinheiro suficiente para uma passagem de ida e volta até a capital
do país.
— Aqui também...
— Eles fazem isso com todos que chegam. Sempre quis vir aqui — ele
se justificou falando bem próximo do meu ouvido. — É um lugar bem
conhecido na cidade.
Mordi a bochecha por dentro. Era tão impressionante ver tantas pessoas
felizes ao mesmo tempo, longe de Agaton, dos olhares desconfiados das
pessoas que me conheciam, de Cecilia, da tristeza de tia Esther. Só nós dois
em uma cidade grande.
Ele fez algo que nunca tinha feito antes. Me repreendeu com o olhar.
Como se quisesse dizer: não acredito que vai estragar esta noite pensando em
dinheiro! Só então, voltou sua atenção ao menu.
Fomos direto para o elevador. Sua suíte ficava no quinto andar. Se não
fosse pelo mensageiro ao nosso lado, teríamos nos agarrado ali mesmo, coisa
que fizemos assim que fechamos a porta. Não reparei muito na decoração, só
que havia uma sala e um quarto em um salão para dois ambientes. Nossas
mãos trabalharam depressa, arrancando as roupas e os calçados. Quando
fiquei só de lingerie, Axel estava ajoelhado aos meus pés, e admirou o
conjunto de renda branca, extravagância que eu tinha comprado com o cartão
de crédito, exclusivamente para aquela noite.
Mas não tive tempo de respirar, muito menos me recuperar, ele estava
se erguendo sobre mim, se inclinando até sua boca alcançar meu seio. Com
uma mão ele tirou meu sutiã, com a outra ele se posicionou.
— Você não gostava das minhas calcinhas velhas — falei por impulso,
sem medir as palavras. — Digo...
Pisquei os olhos. Cecilia tinha dado uma dica do que seu filho poderia
me dar de aniversário?
Segurei uma calcinha de tiras finas nas laterais. Sua brancura fazia eu
me sentir desejada.
— Sim.
Primeiro tomamos um café da manhã reforçado, com rostos cansados e
olheiras fundas. Menos de duas horas de sono após uma maratona de sexo.
Não tinha como não gostar de Ax, ainda mais quando contasse tudo
que ele e sua família haviam feito por mim.
Quando estacionamos, o sol ainda estava nascendo, por volta das oito
horas da manhã. Fazia 4°C. Ele passou o braço em volta do meu ombro, me
protegendo do vento frio, enquanto caminhávamos até a entrada, carregando
o bolo com a outra mão.
— Tudo será diferente daqui para frente, meu amor — ele disse
colocando uma mecha fina de cabelo atrás da minha orelha, em seguida
acariciando minha bochecha com seu polegar.
— Axel me tirou da casa dos meus tios, depois que Alan Peter me
bateu porque eu tinha fugido para encontrá-lo — confessei sabendo que não
seria repreendida, enquanto nos acomodávamos nos bancos de cimento.
— E onde você está vivendo?
Mamãe esticou a mão sobre a mesa e apertou a mão de Axel com força,
os olhos cheios de lágrimas.
— Obrigada por salvar minha filha, por ouvi-la, por aceitar de onde ela
veio sem julgá-la, por lhe dar uma vida digna.
— Lucy é minha vida agora — ele disse olhando nos olhos dela. —
Farei o melhor por sua filha.
— É tão bom vê-la sorrindo! Por favor, tenham sabedoria para superar
os problemas.
— Teremos — Ax disse.
Comemos o bolo com colherzinhas de plástico, conversando sobre
meus planos para a faculdade, a carreira de Axel e em como poderia visitá-la
quando nos mudássemos para Estocolmo.
— Só engordei um pouquinho.
Não liguei para a dor, ainda mais com Axel segurando minha mão.
“Ontem é história,
E o amanhã é um mistério.”
Mikaela estava feliz por ter investido tanto nele. Como sua agente,
receberia uma porcentagem de tudo que Axel faturasse.
Não deveria dizer. Eu sabia que não poderia estragar a carreira dele por
causa disso. Ax não merecia. Era seu sonho, seu trabalho, sua esperança...
— Claro.
... mas ele era meu melhor amigo. As coisas não poderiam ser as
mesmas se eu escondesse isso dele.
— O que aconteceu? — Axel perguntou, enquanto Mikaela se
levantava.
— Foi ele que... — minha voz falhava. — Quando eu tinha doze anos...
— Tive meus motivos! Você sabe que não faria uma coisa dessas à toa.
Estamos voltando para casa.... — Pausa. — Sim, elas estão comigo... Sim,
vamos parar em algum lugar.
Desligou.
— É o meu trabalho, Axel! Sabe que movi céus e terras para você ter
essa oportunidade! — ela gritou, fazendo com que eu me encolhesse. —
Acha que foi fácil? Era sua carreira, caralho! Você ia tocar no Tomorrow is
Mystery, ia assinar a porra de um contrato fodido que te abriria portas. Ano
que vem você provavelmente sairia na sua primeira turnê. De Ibiza à Miami.
Eu acho que mereço uma bela de uma explicação para ter estragado a porra
toda!
Sabia que Axel não contaria uma coisa daquelas. Era meu segredo. Eu
não queria que ninguém soubesse tudo que tinha acontecido comigo.
Quando terminou de falar, ele andou até mim e envolveu meu corpo
como se seus braços fossem asas.
— Sou eu que sinto muito por ter feito você passar por isso. Que você
teve que relembrar tanta coisa ruim, e que seu aniversário acabou desse jeito.
Fiz que sim com a cabeça. Ele se levantou, pegou algumas coisas na
mala e entrou no banheiro.
— O quê?
Tentei com todas as forças, mas não deu para evitar a lembrança do
meu próprio pai...
Não me sentia mais humana, e sim uma criatura que todo mundo
detestava. Um saco de pancadas.
— Você contou para alguém... na época? — ouvi a voz de Mikaela.
Parecia distante.
— Que desgraçada! Por que tem tanta mulher que não honra a vagina
que tem? — ela resmungou. — Axel te ama muito, fez aquilo sem nem
pensar nele.
Me senti tão pequena que pensei que fosse desaparecer. Ela me sacudia
lentamente, balançando para frente e para trás, cantarolando alguma canção
de ninar que eu não conhecia. Até que outros braços nos envolveram.
Senti o cheiro de Axel, o calor do seu corpo nas minhas costas. Os dois
ficaram me abraçando por um longo tempo, até que ele começou a afastar
meu cabelo grudado nas lágrimas.
— Não insista nisso, por favor — Axel pediu. — Não vou forçá-la a
fazer isso só para me justificar daqueles socos.
— Acha que estou preocupada com isso? Tem mais pessoas que
querem fazer parceria com você! Não te contei porque o lance com a
Dreamer Records era quase certo. Lucy tem que denunciar porque nenhum
homem pode abusar de uma garota e sair impune. Ele é famoso, caga
dinheiro, tem uma república de fãs, uma gravadora que prega a ideia de que
devemos acreditar nos nossos sonhos. Aquele escroto influencia pessoas,
enquanto Lucy está assim! Ele é uma farsa! Vai saber quantas mulheres ele
não já abusou. Quantas crianças ele ainda pode estuprar. Se Lucy for à
polícia, se ela soltar uma nota na imprensa, o castelinho de vidro dele vai
desmoronar.
— Ela tem razão. Você pode salvar outras garotas, fazê-lo pagar. Mas
só depende de você.
— Não faça isso por mim, mas pelo que ele causou a você, pela sua
dor, pelos anos que aguentou tudo sozinha, pela sua mãe, por outras garotas
que ele tenha assediado e que também não tiveram coragem de dar queixa.
Bastou uma ligação para seu pai contatar o advogado da família, que
era seu irmão mais novo.
Eu não sabia porque nunca fui muito ligada em informações desse tipo,
mas no nosso país, as leis contra crimes sexuais tinham evoluído no último
ano, e o ato não precisava nem ser acompanhado de violência para ser
considerado estupro. Eles julgavam e condenavam escrotos como Guto
Bergman com mais eficiência que a maioria dos outros países, independente
da classe social e do prestígio que o agressor tinha.
Saí de lá com um peso tirado das minhas costas. Mesmo que ele não
fosse condenado, eu tinha feito minha parte.
Eles falavam orgulhosos da atitude do jovem Axel, por ele não ter se
intimidado diante de alguém com tanto prestígio como Guto Bergman, por
ele ter sido homem, mesmo sendo tão novo, e ter colocado os princípios
acima da sua carreira.
Ax era como um herói para a família, por ter dado uma surra no dono
da gravadora ao invés de ignorar os fatos e ter assinado o contrato.
Falei sobre como ele fazia para aterrorizar minha mãe, como ele a
espancava, como colocava em sua cabeça que aquele era o único lugar ao
qual ela poderia pertencer, ser aceita, que sua família tinha virado as costas e
que ela não conseguiria sobreviver sem ele. Que ele a amava tanto que
precisava educá-la, moldá-la para que mamãe se transformasse em alguém
melhor, através das surras, dos estupros. Ele também dizia que me amava...
— Nunca pensei que você tivesse passado por nada disso — Cecilia
disse entre soluços, levantando e vindo se sentar ao meu lado, colocando as
mãos por cima das de Elton, que segurava as minhas com força. — Você
sempre foi tão calada, tão quieta, obediente. Como o mundo seria mais justo
se as pessoas tivessem liberdade de se abrirem, conversar, procurar ajuda.
Fui contando minha vida de trás para frente, até chegar a primeira
infância e o que tinha feito minha mãe assassinar o monstro do meu pai.
Também chorei, mas era mais por sentir que ninguém estava me
julgando. E ter Axel do meu lado fazia toda a diferença.
— Valeu por descer o soco na cara daquele escroto que chegou onde
chegou usando os outros como degraus — Vincent disse. Seu semblante
exibia a repulsa que ele sentia por falar de Guto Bergman. — Lucy, você não
está sozinha. Ele é o tipo de idiota que pensa que uma garota é obrigada a
ficar com ele por causa da sua fama e dinheiro. Já o vi assediar agentes,
garçonetes, jornalistas e garotas que estavam ali para se divertirem. E,
Mikaela, parabéns pela sua postura.
Para minha felicidade ainda maior, Axel Hansson foi enaltecido pelo
público. Os sites, os canais de TV, as rádios queriam entrevistas com ele,
queriam ensaios fotográficos. Outras gravadoras apareceram e patrocinadores
surgiram para financiar seu primeiro vídeoclipe, no qual ele não seria o
centro das atenções, mas sim os donos das duas vozes que cantavam “The
Girl”, Christer e Filippa. Era legal, no fim das contas, que um casal de negros
estrelasse um clipe e recebessem todo o prestígio, enquanto Axel fazia apenas
uma pequena participação.
Cecilia não era exatamente uma sogra amável, e também não tinha se
contentado 100% com o caminho que seu filho escolheu seguir. Não. Ela era
irônica, sádica, mal-humorada, porém gostava de justiça.
Ela até me deu a ideia de abrir uma espécie de blog onde garotas
vítimas como eu pudessem desabafar. Cecilia encarava bem o fato de eu não
me importar em estar engordando. Dizia que eu era um exemplo para muitas
garotas, e que Axel jamais deixaria de me amar por uns quilinhos a mais.
Passei a me sentir segura em sua companhia, a gostar de ir às compras
com ela, ao supermercado ou acompanhá-la em um café. Até começou a me
ensinar a dirigir, mas foi Steven que finalizou a tarefa, já que Elton não tinha
muito tempo.
Aos poucos, percebi que Cecilia Hansson era o mais próximo que eu
tinha de uma amiga. Por isso, ela foi a primeira pessoa para quem mostrei o
teste de gravidez que tinha dado positivo.
Por mais que eu quisesse dar a notícia, deixei que ela ligasse primeiro
para Axel e contasse que ele, com apenas dezessete anos, iria ser pai.
Elton disse que seria legal contar logo à família toda que um novo
membro estava a caminho.
— Vamos fazer dar certo — ele disse com a voz doce, enchendo meu
peito de felicidade. — Já passamos por tanta coisa. Parece que a vida nos deu
um presente.
Me entregou as flores.
Primeiro ele me beijou em um abraço apertado, depois se ajoelhou e
ficou um instante olhando para minha barriga com admiração, antes de
apertar seus lábios contra ela.
— E eu adoraria adiar até o final da noite, mas sabe como sou ansioso
— Axel disse e me entregou a caixinha dourada.
— Lucy Peter — ele começou a falar, dessa vez não parecia tímido —,
me daria a honra de ser minha esposa?
Todos a nossa volta tinham parado para assistir, mas eu só tinha olhos
para ele.
Passamos noites muito intensas. Não dava para medir a felicidade que
era quando estávamos juntos. Ax nunca perdia a oportunidade de fazer
carinho na minha barriga, de conversar com a criança crescendo no meu
útero.
Maria seria uma menina amada e protegida pelos pais, tios, avós e
amigos.
O porco Bergman foi preso após várias acusações e não teve recurso
que o fizesse aguardar o julgamento em liberdade. O império Dreamer
Records havia desmoronado.
Visitei mamãe algumas vezes. Como ela tinha previsto, seria avó.
Axel escolheu nosso destino de lua de mel, que ele podia pagar com
uma parte do cachê dos shows que tinha feito recentemente.
Quando estava pronta, usando o vestido mais lindo que uma noiva
poderia desejar, me deixaram sozinha para esperar Elton que, na falta do meu
pai, me conduziria ao altar.
Não prestei atenção em quase nada que o juiz de paz disse. Meus
pensamentos estavam congelados nele. Fazia muito frio, porém o mais puro
amor me esquentava por dentro.
— Eu te amo — Axel disse após colocar a aliança no meu dedo. — Te
amo tanto.
— Eu também te
Dei risada, enquanto meu esposo abria a porta do carro para que eu
entrasse.
— Eu te amo, Axel.
— Eles são seus pais também — ele disse beijando a ponta do meu
nariz. — Acredite, eles te consideram como filha. Minha Lucy Hansson.
Mamãe ainda cumpriria pena pelo assassinato do meu pai por mais
quatro anos, mas ficaria em regime semiaberto, o que era uma vitória muito
grande para quem pensou que morreria na prisão.
— Sinta, ela está se mexendo! — falei puxando sua mão para colocá-la
exatamente onde sentia Maria se movendo.
Ele se inclinou, beijando a região, e começou a cantarolar The Girl para
nossa filha.
Pensei se aquele amor duraria para sempre. Apesar das sardinhas, dos
traços de menino, e de ainda não ter feito dezoito anos, Axel não era mais um
garoto. Ele tinha todas as atitudes de homem de verdade, com um caráter
exemplar e um coração enorme.
Sim, eu sabia que aquele amor duraria para sempre. Axel fazia eu me
sentir como se fosse a única garota do mundo, como se ninguém jamais
pudesse roubar o meu lugar. Ele me amava exatamente como eu era.
Olhei para baixo e sorri, enquanto ele brincava com minha barriga.
Nem todas as princesas vivem em um castelo...
"Porque você sempre esteve lá por mim
Quando eu mais precisei de você"
— Você nunca esteve naquele programa, nem mesmo nas quatro vezes
em que ganhou o Grammy.
— Tudo bem.
Mas não dava para ignorar o que acontecia na área VIP. Pelo que pude
entender, de onde eu estava, a organização tinha vendido ingressos VIPs para
um grupo de garotas, mas estavam impedindo que elas permanecessem ali.
Olhei para cada uma delas, percebendo o choque com o qual elas me
encaravam. O rapaz da organização arregalou os olhos, mas sem ter coragem
de dizer alguma coisa.
A primeira entrou na frente das outras e me abraçou com força, falando
o quanto me amava e gostava das minhas músicas.
Sim, elas eram minhas fãs, tinham pagado por um ingresso caro para
estarem mais perto de mim, e não deixaria fazerem uma coisa dessas com
elas só por causa de aparência.
— Ele quer que a gente saia da área vip, falou que esse lugar já está
reservado, mas pagamos para estarmos aqui — uma delas disse enquanto me
seguiam.
— Somos suas fãs. Por que queriam que a gente saísse? — a mais
curvilínea quis saber.
— Você é incrível. É por isso que te amamos — uma disse, mas não
me virei para ver quem era. Não me sentia bem em ser paparicado por uma
coisa que não era mais que minha obrigação.
— Em Estocolmo — respondi.
Abri um sorriso para ela, mesmo que não estivesse com o melhor dos
meus humores.
O outro DJ, que estava encerrando sua apresentação, deu lugar para
que eu iniciasse a minha.
Ainda na lua de mel, naquele hotel incrível nas Ilhas Maldivas, ela
tinha me feito um pedido.
— Se eu pudesse controlar...
— Talvez possa. Você conseguiu diminuir o consumo.
Não me sentia muito à vontade com a ideia, mas não pensei que fosse
tão difícil. Nas três primeiras sessões, não consegui dizer uma palavra. A
psicóloga me analisava da sua mesa, com os óculos na ponta do nariz, e um
olhar que parecia atravessar minha alma, como se ela conseguisse saber tudo
que eu estava pensando.
Tinha sido horrível passar uma hora por semana, imóvel na cadeira
daquele consultório, sem progredir. Mas tinha prometido a minha esposa, não
queria decepcioná-la.
— Minha filha vai nascer daqui a três meses — murmurei sete minutos
antes da quarta sessão terminar. — E eu não quero mais ser desse jeito.
Quero me curar dessa timidez antes que ela nasça, para que possa ser um pai
melhor.
Só queria poder passar aquela data com ela, mas estávamos fazendo
sacrifícios por um bem maior.
Minha observação fez com que o público feminino gritasse. Sorri, grato
por elas lembrarem daquilo — há anos eu tinha parado de ter aquela conversa
com elas, imaginando que já estava batido. Subi na mesa de som e deixei a
música instrumental tocando mais baixo.
A ansiedade que sentia agora não era nem de longe comparada a agonia
que me atormentava na adolescência. Mesmo assim, as mãos estavam suadas
e o coração batia depressa. Era a primeira vez em que seria entrevistado por
Agnella, apresentadora conhecida por fazer as perguntas mais evasivas aos
seus convidados; o talk show semanal mais famoso dos Estados Unidos, se
não do mundo. Eu quase nunca participava de entrevistas em programas de
rede nacional sozinho. Geralmente ia acompanhado de cantores ou bandas
que faziam colaborações comigo, ou até mesmo outros DJ’S.
Pensei que ia travar quando ela se encaminhou para sua cadeira triunfal
atrás da mesa com o slogan do programa. Ainda rindo, ela olhou para a
câmera principal.
Após alguns goles, devolvi a xícara à mesa. Olhei para o público, mas
estava tão nervoso que mal enxergava as pessoas.
— É a sua musa.
— Sim, ela é.
— Parabéns!
Meu rosto esquentou de novo. Tentei sorrir, mas não sei se saiu mais
parecido com uma careta.
— Cinquenta e sete.
Cocei a cabeça.
Respirei fundo. A última coisa que eu esperava era falar sobre aquele
projeto tão pessoal, que na verdade não era meu, e sim de Lucy. Ela estava à
frente de tudo, tinha escolhido os países depois de muita análise, estava em
contato com os profissionais que trabalhariam nas instituições, tanto
voluntários quanto funcionários registrados. Envolvida na construção física,
nos trabalhos sociais, tudo.
Eu queria muito que ela parasse de falar sobre aqueles projetos. Não
pretendíamos trazer a público. Havia milhares de institutos precisando
urgentemente de doações. Nosso objetivo não era pedir para que as pessoas
nos ajudassem. Conseguiríamos fazer aquilo com nosso próprio dinheiro, sem
ter que pedir ao público, porque preferíamos que eles doassem para outras
instituições mais necessitadas.
Tive que rir. Eu não costumava ser entrevistado sobre questões tão
pessoais, era sempre sobre música, por isso eu ainda não tinha aceitado ir
àquele programa. Sabia que não ficaria à vontade.
Olhei para a tela bem na hora em que apareceu uma foto antiga minha
usando os malditos óculos. Senti meu rosto ferver de vergonha. Desde os
dezessete anos não era visto em público usando aquelas armações. Aquilo era
uma vergonha que nem os meses de terapia me fizeram superar. Os fãs não
sabiam que eu usava óculos.
A segunda era ainda pior, porque dava para ver o aparelho dentário. Na
terceira, as sardas estavam em evidência. Eu sabia que tinha sido tirada por
Lucy no refeitório da Agaton Gymnasieskola. Na quarta foto, ela estava
comigo, com o cabelo despenteado e as bochechas vermelhas, fazendo
aumentar a saudade que sentia dela. Não conseguia nem pensar em como
haviam conseguido aquelas fotos. As seguintes eram tão humilhantes que eu
não podia nem olhar diretamente. Me faziam desejar que o chão se abrisse
para que eu pudesse me jogar.
— E você não teria uns óculos aqui no estúdio para nos mostrar como
fica? Conheço muitas mulheres que adoram homens de óculos.
— Você fez show hoje à tarde, não quer dar um descanso para seus
olhos?
Engoli em seco.
— Sabe quem me deu isso? — ela quis saber.
Tinha sido muito presente, mesmo com a carreira. Não marcava shows
nas segundas, terças e quartas desde que Lucy havia começado a viajar nas
jornadas humanitárias a países carentes. Ela estava envolvida nos trabalhos
sociais desde o segundo ano da faculdade de direito, e dividíamos os dias
para ficarmos em casa, assim as crianças sempre tinham um ou outro por
perto. Prezávamos muito pela família, para estarmos sempre ao lado deles.
Esse ano estava sendo uma exceção que me deixava com uma saudade
imensa.
Eu estava fazendo shows todos os dias, por isso não poderia ir para
casa, Lucy estava finalizando o semestre do doutorado e as crianças ainda
estavam em aula, antes do recesso de fim de ano.
— Uma ótima causa! Acho que ela é a única que pode me ajudar a te
convencer a usar isso daqui, e conseguirmos uma foto exclusiva do Axel
adulto de óculos.
De nós dois, Lucy sempre foi a menos tradicional. Segurou meu rosto
com as duas mãos e me deu um beijo apaixonado. Só quando ela me largou,
as outras crianças entraram na disputa por um abraço meu.
Brinquei com eles, comentando que Maria estava banguela outra vez,
que Thomas parecia mais alto do que eu recordava, e se Jessica tinha ficado
com medo de viajar de avião. Dos cinco, ela era a única que sempre teve
medo de voar.
Foi então que Lucy viu uma matéria em um telejornal sueco. Duas
crianças — um menino de 13 anos e uma menina de 9 — haviam sido
resgatadas após viverem anos de maus-tratos. O pai mantinha eles e a mãe, na
maior parte do tempo, em cárcere privado. Os deixava por dias sem comer,
abusando sexualmente deles e os torturando de formas horríveis.
Lucy chorou sem parar até as duas da manhã. Depois de cochilar por
alguns minutos, despertei de madrugada e encarei seus olhos vermelhos, o
rosto inchado.
Minha esposa não tinha um útero, mas sim uma máquina copiadora.
Maria era sua xérox e Noah idêntico a mim quando eu era criança. Quando
ele dava risada ou fazia birra, era como se eu estivesse olhando através de um
espelho do tempo. Mas ele não era quieto e comportado como sempre fui. Era
levado e hiperativo, o que exigia ainda mais trabalho.
Quando Noah fez um ano, Lucy assistiu outro caso no jornal que
revirava o estômago de qualquer um. Um homem em Moçambique obrigava
a filha de dez anos a se prostituir. Crianças sendo exploradas pelos próprios
pais daquela forma, apesar de revoltante, não era nenhuma novidade.
Assistindo àquela notícia, ela se virou para mim com os olhos cheios
de lágrimas. A encarei de volta, sabendo exatamente o que ela estava
pensando, e dei um aceno de cabeça.
— Nós vamos dar conta de mais uma — falei para tentar animá-la.
Me sentia tão mal que, apesar do cansaço, não conseguia dormir. Numa
cabana simples, onde ficávamos quando íamos à África, Lucy me abraçava e
tentava secar minhas lágrimas, me garantindo que, por mais que não
pudéssemos ajudar a todos, ainda fazíamos a diferença na vida daqueles
poucos.
Olhando para aquela mulher tão forte, sentada ao meu lado no sofá
daquele programa de tv, rodeada dos nossos filhos, eu só conseguia pensar
que ela era o melhor ser humano do planeta, e que nem todas as princesas
viviam em um castelo.
— Tem espaço para todos? — Agnella quis saber. Ela havia chamado o
intervalo comercial.
Puxei Maria, que estava com nove anos para meu colo. Lucy, sentada
ao meu lado, ficou segurando Noah de três anos, enquanto Sandra de doze,
Jessica de catorze e Thomas de dezoito se sentaram ao seu lado.
Foi a primeira vez que falei abertamente sobre as adoções, mas sem
mencionar o passado com as famílias biológicas. A última coisa que
queríamos era expor suas vidas pessoais.
— Somos uma família que o destino uniu — Jessica disse. Ela era a
mais falante de nós, e sempre sabia o que dizer nos momentos certos. Queria
ser apresentadora de TV, como Agnella.
Estava tão feliz por tê-los ali que nem me lembrava que tinha colocado
os óculos.
Thomas era mais alto que eu, pele negra, cabelo moicano, e um porte
que o fazia parecer mais velho. Estava no último ano do ensino médio e
queria fazer medicina. Minha mãe, enfim, teria um parente médico na
família. Ele era o neto que se dava melhor com ela, que sabia exatamente
como lidar com seu temperamento difícil.
Sandra, dona de olhos verdes que contrastavam com a pele, era a mais
reservada e também a mais preocupada em cuidar dos gatos e cachorros que
criávamos. Nos finais de semana, quando tinha folga, eu costumava levá-la
para Malmö, onde ela passava dois dias ajudando minha irmã na clínica
veterinária.
Leonora e Evert não tiveram filhos. Eles cuidavam dos meus com todo
amor e carinho.
Não sei como Lucy teve coragem de passar por tudo aquilo de novo
para termos Noah, que apesar de ser um furacão, também era muito
carinhoso.
Meu pai adorava quando todo mundo ia para a fazenda. Amava nossos
cinco filhos sem distinção.
— Não. Devemos tudo que temos a eles. Ser gentil com todos é o
mínimo que devemos fazer.
Foi então que ela nos contou porque tinha tanto interesse em me
entrevistar. Ela sabia sobre o passado de Lucy, nos acompanhava há alguns
anos e sempre quis nos levar ao programa, mas nunca tinha conseguido. Nos
confidenciou que foi violentada por dois dos seus tios biológicos, e só deixou
de sofrer abuso quando a mãe, dependente química e sem condições de criá-
la, a levou para um orfanato.
Ela disse que entendia nosso lado de não querer falar abertamente à
mídia sobre as instituições que estávamos construindo, assim como os
projetos sociais em que erámos envolvidos, mas acreditava que boas ações
deveriam, sim, ser divulgadas, e que merecíamos ser reconhecidos pelo nosso
trabalho.
Lucy gemeu mais alto. Agarrei sua cintura e a joguei sobre os lençóis,
me afundando no seu corpo, devorando sua boca.
Cada encontro com ela não era o bastante. A única coisa que aquietava
meu coração era saber que tinha o resto da minha vida para fazê-la feliz e que
nosso amor ia durar até que a morte nos separasse.
Fim.
Não sei exatamente por onde começar, mas vamos lá!
Nem todos os príncipes usam coroa não foi o livro que mais me diverti
escrevendo, mas foi que mais me emocionou, que mais me arrancou lágrimas
e soluços de desespero, que me ensinou a enxergar as pessoas de uma nova
maneira.
Não vou citar nomes, porque minha memória não está nada boa e tenho
certeza que acabarei me esquecendo de citar várias pessoas, e não quero
deixar ninguém chateado.
Quero agradecer as meninas que leram o livro quando ele ainda era um
rascunho, desde 2017, e acreditaram que eu seria capaz de escrever um
romance "fofo". Obrigada a todos do grupo de leitoras, por entenderem meus
surtos e me apoiarem sempre que preciso.
Será que o que acontece nos bastidores fica mesmo nos bastidores?
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