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Copyright © 2020 Sil Zafia

Capa e Diagramação: Silmara Záfia

Revisão: Sophia Castro

Publicado independente por Sil Zafia.

Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos
ou situações da vida real terá sido mera coincidência.

NEM TODOS OS PRÍNCIPES USAM COROA

SIL ZAFIA

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eletrônico ou mecânico, fotocopiada ou gravado sem autorização expressa da
autora.

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reserva à propriedade de todos os direitos desta edição.
Lucy Peter leva uma vida miserável, acostumada a ser maltratada pelos
tios, com quem foi obrigada a morar desde os quatro anos de idade, após uma
tragédia.

Tudo muda quando sua tia Esther arranja um novo emprego na fazenda
da família Hansson, onde vive Axel, o único rapaz da cidade de Agaton, no
sul da Suécia, capaz de chamar sua atenção.

O problema é que nunca trocaram um único olhar e, enquanto o rapaz


bonito e inteligente frequenta badaladas festas em que se apresenta como DJ,
Lucy vive no lado pobre da cidade, forçada a viver sob os constantes maus-
tratos do tio dominador.

Será que Axel poderá salvá-la?

Duas realidades completamente opostas irão se misturar em um


romance proibido e inesquecível.
∞∞∞

Dedicado a todas as garotas que, de alguma forma, viveram ou


ainda vivem situações como as de Lucy.
∞∞∞

"Estações, elas vão mudar


A vida vai fazer você crescer
Os sonhos vão fazer você chorar, chorar, chorar
Tudo é temporário
Tudo vai passar
O amor nunca morrerá..."

(Imagine Dragons - Birds)


1 - Agaton, onde se passa a maior parte do livro, é uma cidade fictícia,
com lugares e economia inspirados em outras cidades que existem no sul da
Suécia.

2 - Até alguns anos atrás, empregadas domésticas não eram muito


comuns na Suécia. Eles possuem uma cultura diferente da nossa, e a ideia de
ter alguém “limpando a sua sujeira” não era bem vista entre eles. Apenas em
2006, o governo facilitou a contratação de faxineiras.[1]

3 – Este livro é um Spin Off independente da série Nos Bastidores.


Conta como seria se o casal principal de Segredos da Fama tivesse se
conhecido em circustâncias diferentes. Não é preciso ter lido os outros
volumes da série antes, pois trata-se de uma história paralela.

4 - Aviso de conteúdo sensível. O livro contém cenas que podem


desencadear (GATILHOS) alguma desordem de estresse pós-traumático. AO
SE SENTIR DESCONFORTÁVEL EM ALGUM TRECHO DO LIVRO,
ABADONE A LEITURA IMEDIATAMENTE.
Para ouvir a playlist no Spotify das músicas que inspiraram este livro, cliquei
aqui.
Aquela era a primeira vez em que eu chegaria atrasado. Nunca me
atrasava para um show. Sempre estava no palco alguns minutos antes de
começar minhas apresentações. Pontualidade era uma marca não só dos DJ’S
como também dos suecos.

Mas não dava para ignorar o que acontecia na área VIP. Pelo que pude
entender, de onde eu estava, a organização tinha vendido ingressos VIPs para
um grupo de garotas, mas estavam impedindo que elas permanecessem ali.

Não precisava me aproximar para saber exatamente do que se tratava.


Elas não eram como as top models que os organizadores costumavam
selecionar para aparecer nos vídeos e lives dos shows. Não eram magras e
altas, não usavam decotes que exibiam os seios siliconados.

Eram mulheres comuns.

Respirei profundamente e fechei a mão em punho quando vi que um


homem da equipe insistia para que elas deixassem a área VIP. Virei o rosto e
olhei para Mikaela, uma loira atraente, com quase 1,80m de altura e que
certamente seria selecionada para estar naquele lugar. Ela mexia no celular e
não tinha notado o que acontecia a poucos metros de onde esperávamos para
subir ao palco.

Ciente de que eles poderiam nunca mais me contratar para tocar


naquele clube, pulei por cima da grade e passei pelos seguranças.

— Ax, você vai entrar agora! — ouvi Mikaela reclamar, mas eu já


estava me distanciando dela.

— Já que não querem vocês aqui, gostariam de assistir ao show ao meu


lado no palco? — perguntei sem rodeios.

— Axel Hansson! — uma das garotas falou surpresa ao me ver,


levando uma das mãos à boca.

Olhei para cada uma delas, percebendo o choque com o qual elas me
encaravam. O rapaz da organização arregalou os olhos, mas sem ter coragem
de dizer alguma coisa.

A primeira entrou na frente das outras e me abraçou com força, falando


o quanto me amava e gostava das minhas músicas.

Sim, elas eram minhas fãs, tinham pagado por um ingresso caro para
estarem mais perto de mim, e não deixaria fazerem uma coisa dessas com
elas só por causa de aparência.

— Preciso começar o show agora, se quiserem passar esse tempo


comigo, é só me acompanharem. Vai ter bebidas para todas — acrescentei,
me soltando do abraço da garota com delicadeza. Vi que ela chorava e senti
um caroço travar minha garganta, mesmo assim consegui disfarçar. —
Vamos?

Elas fizeram que sim com a cabeça, pareciam muito empolgadas.

— Ele quer que a gente saia da área vip, falou que esse lugar já está
reservado, mas pagamos para estarmos aqui — uma delas disse enquanto me
seguiam.

— Vamos reembolsá-las — o cara da organização informou, vindo


atrás de nós.
— Somos suas fãs. Por que queriam que a gente saísse? — a mais
curvilínea quis saber.

— Foi uma falha da organização. Mas acreditem, ficar no palco é bem


melhor que na área VIP — tentei parecer o mais amigável possível.

— Você é incrível. É por isso que te amamos — uma disse, mas não
me virei para ver quem era. Não me sentia bem em ser paparicado por uma
coisa que não era mais que minha obrigação.

Vi os olhos de Mikaela quase saltando das órbitas.

— Você se atrasou! — ela rosnou para mim, mas a ignorei,


gesticulando para que as garotas me seguissem pelas escadas de acesso ao
palco.

— Podemos tirar fotos? — ouvi uma perguntar.

— Podem ficar à vontade.

— Por que fez isso? — uma delas foi mais curiosa.

— Vocês me fizeram lembrar uma garota incrível que conheci alguns


anos atrás, quando estava na escola.

— E onde essa garota está agora?


10 anos antes...

Agaton, Suécia

Era estranho estar trabalhando na casa de um colega da minha turma,


mesmo que nunca tivéssemos conversado uma única vez em todo o ano no
qual dividimos a mesma sala de aula, era esquisito. Minha tia tinha arranjado
esse emprego em julho, e Axel tinha viajado para Estocolmo no mês de junho
para suas férias de verão, por isso ele ainda não havia me visto recolhendo
suas cuecas e camisetas pela casa.

Não que eu pensasse que ele era o tipo de rapaz bagunceiro.

Com dezessete anos, Axel era o garoto que eu mais achava interessante
na sala, não por causa de beleza ou popularidade, ele chamava minha atenção
porque era um rapaz nerd, que sempre tirava notas excelentes, aquele tipo de
aluno que entendia todas as matérias, ainda assim, nunca levantava a mão
quando o professor fazia uma pergunta, mesmo que soubesse a resposta.

Sentado no meio da fileira da parede esquerda, Axel permanecia na


dele em todas as aulas. Sua bunda ficava apoiada na ponta do assento onde
ele praticamente se deitava. Às vezes, quando alguém contava uma piada ou
um aluno respondia com um erro absurdo, ele ria baixinho e covinhas
apareciam em suas bochechas. Meu rosto virava automaticamente na sua
direção sempre que algo era motivo de piada na aula, só para vê-lo sorrir.

Axel não tinha muitos amigos. No intervalo, ele geralmente se sentava


sozinho e ficava mexendo no celular enquanto comia. Quase não era notado.

Eu tinha essa tendência a gostar de garotos quietos e inteligentes. Os


bonitões e musculosos e populares não costumavam despertar minha atenção.
Não que Axel fosse feio, ele tinha sua beleza, um corpo bem definido, as
coxas grossas e uma bunda bem desenhada por baixo dos jeans rasgados;
ombros largos. Não era muito alto, cerca de 1,75m. Tinha olhos azuis, que
quase sempre estavam cobertos pelos óculos de grau, usava aparelho dental e
tinha o cabelo da cor de trigo. Ele também possuía sardas no nariz e nas
bochechas e, mesmo com dezessete anos, se ele ficasse um dia ou dois sem
fazer a barba, ela aparecia cheia e serrada. Sempre que o sinal tocava, ele era
o primeiro a levantar para ir embora.

Alguém me disse que ele tocava em festas nos finais de semana. Era
isso que eu achava mais interessante nele: um rapaz com um QI altíssimo,
introvertido, que passava as noites trabalhando como DJ em festas para os
populares da escola.

Muitas vezes me perguntei como seria vê-lo tocar em uma dessas


festas, mas nunca tinha acontecido, primeiro porque eu não era convidada, e
segundo porque meu tio não me deixaria ir.

E lá estava eu abrindo a porta do seu quarto para deixar tudo arrumado


para recebê-lo. Não que aquele fosse meu emprego, o serviço era de tia
Esther, com quem eu morava desde os quatro anos, quando minha mãe matou
meu pai e foi para a prisão perpétua.

Minha tia sempre me levava para trabalhar nas casas de família quando
eu não estava na escola, só que ela raramente me dava algum trocado. Dizia
que era o mínimo que eu deveria fazer para retribuir a casa, comida e as
roupas que ela me dava. Acho que “roupas” não deviam entrar naquela soma,
já que ela nunca me deixava comprar nenhuma peça que custasse mais de
doze coroas.
Então, enquanto Axel passava as férias em Estocolmo, eu me “divertia”
recolhendo a roupa suja, colocando na máquina, tirando o pó dos móveis,
trocando roupas de cama e outras coisas que tia Esther ordenava.

Cecilia Hansson, a mãe de Axel, é quem ficava feliz por ter duas
empregadas pelo preço de uma. Ela era uma mulher de quarenta e poucos
anos, que fazia luzes platinadas para esconder os fios brancos e estava sempre
com a postura reta e as roupas impecáveis. Ela nunca me olhava diretamente
nos olhos. Elton Hansson era alguns anos mais velho que ela, possuía as
mesmas sardas que Axel e, às vezes, me dava bom dia e perguntava se eu
estava bem, mas duvido que ele realmente quisesse saber o que estava se
passando na minha vida.

De volta à realidade, entrei no quarto segurando o cesto de roupas


vazio embaixo do braço esquerdo. Estava retirando as fronhas dos
travesseiros quando a porta se abriu de repente. Me virei, ciente do vestido de
estampa desbotada que eu usava para trabalhar, e como meu cabelo estava
preso em um rabo de cavalo frouxo, com várias mechas escapando.

Cecilia Hansson apareceu primeiro, seguida por Axel, que segurava a


alça de uma mala de rodinhas e carregava nas costas um violão dentro da
capa, não estava usando óculos. Os dois ficaram na porta me olhando por um
instante. Larguei o travesseiro e passei a língua pelos lábios.

— Vou deixá-los sozinhos — falei depressa.

— Nem pense em largar essa cama desarrumada — Cecilia me


repreendeu. — Já deveria ter terminado isso. Continue!

— Sim, senhora Hansson — falei com respeito, já habituada a ser


tratada assim.

Tirei a fronha do segundo travesseiro e a joguei no cesto ao lado da


cama, depois retirei os outros lençóis, enquanto Cecilia enchia seu filho de
perguntas sobre as férias. Ela segurava o rosto dele com as duas mãos e
enchia suas bochechas e testa de beijos, como uma mãe muito carinhosa.
Educado, ele respondia tudo que a mãe queria saber, com toda paciência do
mundo, ficando vermelho quando ela passava dos limites, mas sem protestar.

Os dois me ignoravam, como a maioria dos patrões sempre fazia. Era


melhor assim.

— Termine de arrumar isso e lave o banheiro — Cecilia disse ao soltar


o rosto do filho.

As bochechas dele estavam incendiando de tão coradas, realçando seu


bronzeado de verão.

— Sim, senhora.

Ela saiu do quarto, mas deixou a porta aberta, para meu alívio, já que
não me sentia à vontade ao ficar em ambientes pequenos e fechados a sós
com rapazes.

Axel vestia uma bermuda cáqui e uma camiseta preta de gola V com
uns dizeres sobre Miami estampados, usava boné de aba reta virado para trás
e um tênis que parecia ser mais caro que todas as minhas roupas juntas. Eu
estava terminando de forrar sua cama com os lençóis limpos, e o observava
tirar as coisas da mala, quando ele falou comigo.

— Você, por acaso, estudou no último ano na mesma turma que eu? —
Era a primeira vez que Axel me dirigia a palavra.

Senti minha nuca esquentar e minhas mãos ficarem frias, tomada pela
vergonha.

— Sim… eu era da sua turma. — Minha voz saiu com dificuldade,


minhas narinas ardiam com o ar seco que passava por elas.

— Te reconheci pelo vestido — ele disse e apontou para meu vestido


velho e desbotado. — Você sempre usa esses vestidos.

Meu rosto ferveu de timidez. Eu não passava despercebida por ele, mas
a única coisa que lhe chamava atenção era minha pobre coleção de vestidos.
Sequer sabia meu nome.

— Você se chama Lucy, não é? — Axel perguntou, me fazendo engolir


o último pensamento. Minha pulsação martelava contra meus tímpanos.

— Isso — sussurrei surpresa por saber que o garoto, que eu tinha


observado durante todo o segundo ano do ensino médio, sabia meu nome.

— Não me lembro de você no primeiro ano — ele comentou,


segurando um Macbook que tinha acabado de tirar da mala.

— Repeti o segundo ano — confessei e meu rosto ardeu ainda mais.


Ele me olhou como se não acreditasse que alguém podia repetir de ano.

— Ah — foi tudo que Axel conseguiu dizer. Colocou o Mac em cima


da sua escrivaninha e começou a tirar alguns livros da mala.

Fiquei me perguntando como era ter dinheiro para gastar com arte e
cultura, ter tempo livre para estudar, ler, viajar nas férias. Não estava com
inveja, só curiosa por saber como era viver uma realidade diferente da minha.

— Minha mãe tinha dito algo sobre ter contratado uma empregada
nova, nunca pensei que fosse sua mãe, muito menos que ia te encontrar
aqui… Arrumando a minha cama — Axel comentou essa última frase
baixinho; me olhou brevemente e começou a organizar os livros novos nas
prateleiras que eu tinha limpado na manhã anterior.

Eu havia decorado alguns títulos dos livros que imaginei que Axel
tivesse lido, só para o caso de arrumar um tempinho e ir até a biblioteca
pública de Agaton, ver se encontrava algum. Poderia ler e depois ter assunto
para conversar com ele. Era só mais uma das minhas fantasias bobas, porque,
se isso acontecesse, eu provavelmente já teria esquecido tudo sobre o livro e
faria papel de idiota. A única coisa que minha mente conseguia guardar com
facilidade, além de tudo que eu desejava esquecer, eram letras de músicas.

Agora, era tão constrangedor tê-lo ali me observando vestir seus


travesseiros com as fronhas limpas e com cheiro de amaciante.

— Ela não é minha mãe, é minha tia — comentei tentando manter a


conversa por mais alguns instantes.

— Ah — ele balbuciou novamente. — Você já foi ao clube Sensations


nas noites de sábado? Sempre toco lá e nunca te vi.

Minha pulsação acelerou ainda mais.

— Nunca fui a esse clube — confessei. Assim como nunca tinha ido a
clube nenhum.

— Imaginei. Vou tocar lá amanhã. Gostaria de ir? Posso conseguir um


ingresso…

Axel estava, tipo, me convidando para ir a uma festa com ele ou só


queria que eu o visse tocar?

— Meu tio não gosta que eu saia à noite — falei em tom de desculpa.

Ele ficou me encarando por alguns segundos, antes de dar um aceno de


cabeça e voltar sua atenção para a mala.

Quando terminei de deixar sua cama impecável, fui lavar seu banheiro.
Ele não voltou a falar comigo naquela sexta-feira.

No sábado, ele não estava na fazenda Hansson até o fim do nosso


expediente, o que me deixava curiosa para saber que vida ele levava além da
escola, o que fazia fora de casa o dia todo.

Em casa, enquanto preparava o jantar, ouvindo as gargalhadas do meu


tio, Alan Peter, e seus amigos nojentos assistindo a alguma luta na TV e
arrotando cerveja, eu pensei que poderia ter aceitado o convite de Axel para ir
ao tal clube. Eu esperaria meu tio entrar em coma alcoólico e fugiria pela
porta silenciosamente. Iria sair e voltar antes que ele acordasse, mas eu não
tinha roupa nem calçados para ir a um lugar daqueles, muito menos dinheiro
para comprar qualquer coisa lá.

Recusar tinha sido a decisão mais sensata. Ainda assim, queria ver
Axel tocar, adoraria saber como ele era em cima de um palco e sendo o
centro das atenções, descobrir se continuava introvertido ou era uma pessoa
completamente diferente do que eu conhecia, mas precisava me conformar,
mesmo que tivesse ido até lá, usando uma roupa nada a ver, o que eu faria no
meio de toda aquela gente de nariz empinado? Iria ficar parada em frente ao
palco, o ouvindo tocar, sem saber direito onde enfiar as mãos? Entrava em
pânico só com a ideia de estar sozinha em uma festa.

Sim, eu tinha tomado a decisão certa. Apesar disso, queria vê-lo.

Acabei indo dormir, feliz porque no dia seguinte seria domingo, eu


poderia pegar minha bicicleta e sair sem destino por algumas horas.

O domingo era meu dia preferido da semana. Eu costumava acordar


cedo, fazia minhas tarefas domésticas, preparava um lanche com as coisas
que encontrava na geladeira e saía para pedalar pelas fazendas nos arredores
de Agaton. Eu me sentia livre nessas horas, sentia que as coisas poderiam
mudar na minha vida, desde que eu pensasse positivo. Às vezes, eu entrava
na floresta, largava a bicicleta no chão, me sentava com as costas apoiadas
nas raízes de alguma árvore e só ficava lá esvaziando a mente dos problemas,
dos preconceitos que sofria, das brigas constantes em casa, o consumo de
drogas do meu tio e dos seus amigos tarados e imundos, do meu destino. Só
tentava não pensar em nada, já que quase não havia boas memórias para
recordar.

Então, no final da tarde, voltava para casa e encarava todo o inferno de


novo.

Enquanto o sono chegava, pensei na ideia de passar de bicicleta pela


fazenda da família Hansson, para ver se via Axel por lá. Quem sabe Cecilia
estivesse precisando de uma mãozinha no almoço de domingo. Mordi o lábio
ao me dar conta do quanto estava sendo psicopata. Adormeci tentando me
convencer de que ter aqueles pensamentos não era saudável.
Acordei no meio da madrugada com meu celular tocando. Atendi
rápido antes que o som despertasse meu tio.

— Alô — sussurrei para o número desconhecido.

—Lucy? — ouvi a voz de Axel perguntar. Olhei o display com a


pulsação acelerando, eram 2h33 da madrugada, eu só podia estar sonhando.
— Quem é? — perguntei sentindo o ar sumir.

— Ax… — ele respondeu. Dava para ouvir música alta e gente


conversando. — Sua tia trabalha na minha casa. Eu era da sua sala, lembra?

— Me lembro de você, Ax — sussurrei rezando com todas as forças


para não ser um sonho. Mas por que diabos ele me ligaria? — como
conseguiu meu número?

— Peguei no celular da minha mãe — ele confessou. — Estava salvo


com seu nome, mas fiquei com medo de ser o celular da sua tia.

Meu coração começou a expandir dentro do peito, me fazendo tremer.


Axel Hansson tinha procurado meu número no celular da sua mãe!

— Você ainda está naquele clube? — perguntei. Se ele fosse esperto,


saberia que eu estava sorrindo pelo tom da minha voz.

— Estou… — ouvi Axel suspirar. — Fiquei imaginando que fosse


pular a janela do seu quarto e viria me ver, mas você não apareceu.

Sua voz era bonita ao telefone, me fazia sentir vontade de nunca


desligar.

— Eu não tinha ingresso — sussurrei com medo dos meus tios


ouvirem.

— Você está falando tão baixinho. Estou atrapalhando?

— É que meu tio não gosta que eu fique no telefone até tarde —
expliquei.

— Ah, tudo bem. Só liguei mesmo para perguntar se você tem carona
para o primeiro dia de aula… ou se prefere ir de ônibus.

— Não tenho carona e o ônibus escolar não passa no meu bairro.


Costumo ir de bicicleta.

— Posso passar na sua casa na segunda para te dar carona? — ele


perguntou de um jeito fofo.

Considerei como seria Axel ver o lugar onde eu morava, o que ele iria
pensar, mas depois imaginei que já devia saber que eu morava na periferia.

— Seria muito bom — sussurrei com gentileza.

— Ótimo! — ele pareceu animado. — Você tem WhatsApp?

— Não, mas posso baixar...

— Salva meu número e me passa sua localização pelo aplicativo. Vou


deixar você dormir. Te vejo na segunda, não esqueça que eu vou passar aí
para te pegar.

— Não vou esquecer — respondi num dos momentos mais felizes da


minha vida.

— Te vejo na segunda, tenha um bom domingo.

— Você também — eu disse e ele desligou.

Como eu conseguiria dormir depois disso? Fiquei horas acordada,


repassando toda a conversa e o que poderia ter feito ele me ligar aquela hora
da madrugada.

Opção 1: ele estava bêbado.

Opção 2: ele estava drogado.

Opção 3: ele estava bêbado e drogado.

Também considerei a possibilidade de ele só estar fazendo uma


brincadeira comigo, afinal, não sabia muito sobre ele.

Na manhã de domingo, enquanto deixava o almoço encaminhado, a


certeza de que ele viria estava cada vez mais distante. Se ele estivesse
bêbado, já teria esquecido aquilo. Mandei minha localização por WhatsApp, e
fiquei um tempão encarando sua foto de perfil, mas ele só respondeu com um
emoji de “ok”. Saí com minha bicicleta antes que meus tios acordassem e
pedalei até uma floresta que era cortada pelo rio Höje, onde acabei
adormecendo na grama úmida. Voltei para casa cedo naquela tarde, porque
estava desesperada sem sinal de celular, esperando que ele fosse mandar uma
mensagem confirmando a carona, o que não aconteceu.

Axel tinha esquecido, não por maldade, e sim porque estava bêbado.
Era isso.

Ainda assim, acordei às 4h30 da madrugada para tentar me arrumar.


Escolhi um vestido que minha tia havia comprado em um brechó, e que
provavelmente tinha pertencido a uma morta. Ele era branco com florzinhas
azuis, sem mangas e todo aberto na frente com botões, não tinha nada de
gracioso, mas pelo menos Axel nunca tinha me visto com ele. Como se ele
fosse notar! Calcei minhas botas marrons de cano curto e vesti uma jaqueta
com rasgos causados pelos anos de uso, e não porque eu já tinha comprado
assim. Enfiei um caderno novo na mochila e fiz uma trança que começava
logo acima da minha orelha esquerda e acabava jogada sobre meu ombro
direito. Pensei em passar batom, mas corria o risco de cruzar com Alan Peter
antes de sair de casa, e ele faria comentários sobre eu parecer uma puta de
batom, então não passei. Não queria que nada atrapalhasse meu humor no
primeiro dia de aula do último ano do ensino médio.

Faltando uma hora para o sinal na escola tocar, eu já estava sentada na


calçada, por sorte não tinha cruzado com meu tio. Minha tia passou por mim
para trabalhar e disse para eu não me meter em confusão logo no primeiro
dia. Fiz que sim com a cabeça e ela foi embora.

Fiquei sentada lá observando as pessoas que saiam de casa para


trabalhar e algumas garotas que voltavam da balada, com os sapatos de salto
alto na mão e o andar trôpego.

Cerca de vinte minutos depois de estar esperando, vi um Toyota sedan


cinza escuro virando a esquina. Meu coração acelerou quando o carro parou
na minha frente e a janela do passageiro baixou. Vi seu rosto quando ele se
inclinou para abrir a porta para que eu entrasse.

Senti a respiração difícil e tentei manter a calma. Havia um caderno


com um iPhone prata em cima e fones de ouvido conectados sobre o banco
do carona.

Ele se apressou em tirar os objetos e colocá-los sobre o painel do carro.


Na pressa, ele acabou deixando o iPhone cair no chão do carro e precisou se
contorcer para alcançá-lo próximo aos pedais. Axel parecia tão nervoso
quanto eu, o que me fez sorrir. Entrei e fechei a porta. O carro deslizou
silencioso pela minha rua, enquanto eu colocava o cinto de segurança.

— Pensei que você não fosse me esperar, então vim mais cedo,
imaginando que você demoraria para sair de casa.

— Fiquei com medo de você passar e eu não estar aqui — confessei


colocando a mochila nos meus pés.

— Eu teria esperado — Axel disse. — Agora vamos chegar muito cedo


na escola, mas não tem problema.
— É, não tem.

— Quer ouvir alguma música ou rádio? — ele perguntou ao ligar o


som.

— O que você escolher para mim está ótimo — falei gentilmente. Ele
mexeu em alguns botões e uma música de Linkin Park começou a tocar. Pelo
canto do olho o observei cantando a letra da música sem emitir som. Imaginei
que ele estaria cantando em voz alta se estivesse sozinho. Resolvi puxar
conversa ao perceber que ele não falaria muito. — Minha casa é muito longe
da sua fazenda.

— Não tem problema. Posso te dar carona todos os dias, só precisamos


combinar o horário certo.

— Você poderia ter me ligado para saber que horas eu estaria pronta —
falei o observando. Axel usava uma calça jeans desbotada, mas não pelo
tempo, uma camiseta de mangas longas grafite com três botões na gola V,
tênis e boné, que dessa vez estava com a aba virada para a frente. Dava para
sentir o cheiro do seu perfume.

— Tinha medo de você não me atender — ele murmurou, me lançando


um breve olhar.

— Você não ficou com medo na outra madrugada — insisti.

— Depois de quase uma garrafa de vodca, a coragem sempre aparece


— ele admitiu, confirmando minha teoria de que estava bêbado. — Mas não
pense que te liguei só porque estava chapado. Eu precisava da bebida para ter
coragem. Não fique brava, sei que fui um babaca ao te ligar aquela hora.

— Não fiquei brava. Você nunca seria um babaca, nem mesmo estando
bêbado. Na verdade, você conversou muito bem ao telefone, não parecia
chapado — comentei e ele deu um sorriso discreto, sem mostrar os dentes,
mas que evidenciava suas covinhas.

— Você está linda — Axel me elogiou ao me lançar outro olhar,


parecia estar com medo de dizer aquilo.

— Não precisa ser gentil — falei enrolando a barra do vestido da


morta, que vinha até abaixo dos meus joelhos.

— Não é gentileza, eu gosto do seu estilo, do jeito que se veste, que


prende o cabelo. Já vi algumas meninas da escola tentando te imitar, mas não
ficou muito legal.

Ergui as sobrancelhas surpresa com suas palavras. Eu não achava que


tinha um estilo, só usava vestidos rodados e até o joelho porque não gostava
de chamar atenção para o meu corpo. Quanto ao cabelo, só o prendia em
tranças porque não me sentia segura o suficiente para soltá-lo. Apesar disso,
meu coração bateu bem rápido por saber que ele reparava em mim. Eu não
era a única que ficava observando os outros. Só que Axel era muito discreto,
já que eu nunca tinha visto ele olhando na minha direção. Caso tivesse visto,
sofreria um infarto.

— Obrigada — sussurrei sem ter coragem de olhar nos seus olhos. —


Falou sério quando disse que poderia me dar carona todos os dias?

Meus olhos estavam grudados nas luzes do som do carro. Não queria
que ele notasse meu sorriso bobo.

— Claro que falei. Você quer?

— Seria muito bom. É bem cansativo ir todos os dias de bicicleta à


escola e depois ainda ir à fazenda. Fico muito agradecida pela gentileza.

— Não precisa agradecer — ele disse com o tom de voz sério.

Estávamos chegando ao estacionamento da escola. Axel escolheu uma


vaga próxima à entrada e parou.

— Planejei um monte de coisas para te falar, perguntas para fazer,


então você está aqui e tudo some — ele murmurou, parecia chateado.
— Como assim? — perguntei com o cenho franzido.

— Não está na cara?

— Se está, sou muito burra, porque não faço ideia do que está falando.

Ele jogou a cabeça para trás, fez uma careta, apertou os olhos fechados
com as pontas dos dedos e soltou a respiração pesada pela boca.

— Quer me contar por WhatsApp? Juro que não estou entendendo —


falei com o tom de voz leve, mas ele bateu as mãos contra o volante e abriu a
porta do carro. Ao sair, alcançou o caderno e celular sobre o painel, tentou
desconectar os fones, mas seus dedos se atrapalharam e ele acabou enfiando a
bagunça de celular e fios dentro do bolso de um jeito bem furioso.

Saí do carro espantada e sem entender nada.

— O problema sou eu? — perguntei ao colocar a mochila nas costas.

— Você não tem culpa por eu ser um babaca.

Seguimos para os degraus da escola. Éramos os primeiros a chegar.

O último ano do ensino médio, pensei ao atravessar as portas. Senti o


calor da sua mão nas minhas costas, conforme ele me guiava pelo corredor
até a secretaria, onde pegaríamos nossos horários. Acabei entrando no
banheiro do corredor com a desculpa de que precisava fazer xixi. Dei uma
boa olhada no espelho, lembrando de Axel me dizendo que gostava do meu
estilo e que já tinha visto algumas garotas tentando imitar.

— Eu nem sabia que tinha estilo — sussurrei para meu reflexo.

Era uma sensação muito boa estar perto do garoto que eu admirava
tanto. Era incrível saber que ele me notava, que estava falando comigo,
mesmo que fosse confuso.

Abri um sorriso para o espelho e deslizei as mãos pela minha trança,


lembrando que Axel gostava do jeito como eu prendia o cabelo. Uma emoção
nova fez meu coração bater muito forte e minha pele se arrepiar. Percebi que
estava muito feliz por ter ficado perto dele por alguns minutos. Era estranho
querer tanto estar com alguém, querer vê-lo, ouvir sua voz. Mesmo sendo
estranho, eu estava gostando do sentimento e, ainda que parecesse
inimaginável, Axel iria me dar carona todos os dias.

Mordi o lábio, explodindo com uma felicidade desconhecida e deixei o


banheiro. O corredor já estava cheio de alunos espalhando suas risadas e
conversas.

Axel estava escorado na parede oposta ao banheiro, com o pé esquerdo


apoiado na parede, segurando o caderno, o olhar voltado para os próprios
tênis, como se quisesse parecer invisível.

— Você me esperou — comentei surpresa ao me aproximar, desviando


das pessoas que entravam.

Sem dizer nada, ele colocou a mão nas minhas costas e me guiou pelo
corredor até a secretaria. Quando nossos horários, salas e armários estavam
encontrados, fomos para a primeira aula de História.

Na sala havia dois assentos livres na parede esquerda. Sem trocar


nenhuma palavra, simplesmente caminhamos até aquela fileira. Me sentei na
segunda carteira e ele se acomodou na de trás. Vários alunos passavam perto
de nós e o cumprimentavam, diziam que ele tinha arrasado no clube
Sensations. Axel erguia o dedo indicador e médio, em um cumprimento mais
que discreto, e acenava com a cabeça, mas não parecia feliz com os elogios.
Era como se ele estivesse prestes a enfiar a cabeça em um buraco.

Na hora do almoço, também não decidimos nada, apenas seguimos o


fluxo de alunos, nos servimos e acabamos escolhendo uma mesa mais
afastada, como se ficarmos juntos fosse a coisa certa.

— A próxima aula é de Biologia — sussurrei, enquanto ele comia, mas


sem mexer no celular como costumava fazer. — Sou a pessoa mais burra do
mundo se tratando de Biologia.
— Não é tão difícil se você prestar atenção, é só… — ele estava
dizendo, mas foi interrompido por uma garota que se apoiou nas costas da
cadeira vazia.

— Está saindo com Lucy, Axel? Desse jeito vai estar em um caixão
antes da formatura — ela disse, me fazendo sentir uma mistura de emoções
ruins me dominarem. Foi repentino, mas cruel. Meu rosto ardeu de
vergonha.

— Tal mãe, tal filha — disse uma outra garota que estava com ela.

Meus olhos queimaram. Não acreditei que essas comparações idiotas já


estavam acontecendo no primeiro dia.

Empurrei a cadeira e atravessei o refeitório com passos largos, indo na


direção do meu local de fuga, o ginásio da escola. Desci as escadas correndo
com lágrimas nublando minha visão e me enfiei por trás da arquibancada,
passando por cima dos apoios de metal e me sentando na escuridão.

Às vezes, era uma droga viver no sul da Suécia, onde algumas pessoas
ainda eram cheias de preconceitos. Acreditavam que eu ia crescer e virar uma
assassina a sangue frio como minha mãe. Desde o jardim de infância eu
percebia mães cochichando para seus filhos não se aproximarem de mim,
porque eu era filha de um monstro.

O vi se aproximando no escuro, seus tênis caros passando por cima dos


apoios. Ele se sentou perto de mim e respirou fundo.

— Eu não sou ela! — falei com raiva. — As pessoas se afastam de


mim por uma coisa que não fiz, como se eu tivesse uma doença contagiosa.
Isso não é justo!

Axel alcançou minha mão e me puxou meio desajeitado para junto


dele. Fui sem pensar. Apoiei a cabeça no seu peito e senti seus braços me
envolverem. A força de um abraço me pegou desprevenida e me senti
protegida como não me lembrava de já ter sentido. As lágrimas continuavam
escorrendo, mas não tentei impedir. Deixei que elas encharcassem sua
camiseta.
— Não sei o que falar — ele sussurrou.

— Então não fale — respondi depois de um soluço.

— Mas eu gostaria de dizer alguma coisa que pudesse fazer você sorrir.
Queria muito, Lucy, só que não sei consolar pessoas. Dizer “sinto muito” não
vai mudar nada.

— Só de você estar aqui já faz muita diferença — respondi baixinho,


com meus lábios inchados contra sua camiseta. — Sei que não devia me
importar com a opinião dos outros…

— Tem razão, não deveria mesmo. Aquela garota queria te jogar para
baixo porque sente inveja.

— Inveja? — perguntei perplexa. — Inveja dos meus vestidos de


brechó? Da mochila que eu uso desde a oitava série? Inveja das horas de
trabalho, das minhas notas baixas?

— Droga! Não sei o que dizer, é sério! — Axel falou com a voz
chateada. — Tenho a garota mais incrível da escola nos meus braços e não
sei como animá-la.

— A garota mais incrível da escola?


Como estava com a cabeça apoiada no seu peito, notei que seus
batimentos cardíacos ficaram mais rápidos.

— Quando perguntei se você tinha estudado na mesma turma que eu,


só estava arranjando assunto, o que prova que também não sei puxar conversa
— ele disse e seu coração bateu ainda mais forte. — Eu sabia quem você era,
porque ainda me lembro de te ver entrando na sala atrasada no primeiro dia
de aula. Você estava vermelha e envergonhada, com os olhos arregalados,
sua respiração ofegante, e me lembro de ter te achado a garota mais meiga
que já conheci.

Estava mordendo a unha do dedão. Naquele momento, era meu coração


que batia acelerado.

— Por que nunca falou comigo? Você sentava sozinho no almoço e eu


também.

— Precisei beber para conseguir falar com você pelo telefone, não
entende? Mesmo chapado, estava morrendo de medo de você não aceitar a
carona, de ser grossa e desligar na minha cara.

— Você é muito tímido? — questionei e ergui o rosto para encará-lo


sem me importar com meus olhos inchados.

— Mais do que imagina — ele admitiu.

— Que meigo! — comentei o encarando sob a luz fraca que entrava


pelas frestas da arquibancada, ainda com os braços em volta do seu tórax.

Pela primeira vez, não me senti insegura por estar sozinha com um
garoto. Ele podia fazer qualquer coisa comigo, já que todos os alunos
estavam no refeitório, mas tinha certeza que Axel nunca faria algo de ruim
contra mim.

Ele se moveu um pouco, mas não se afastou. Seus braços estavam em


volta dos meus ombros. Só naquele instante é que me dei conta do quanto
estávamos próximos.
— Não tem nada de meigo em ser tímido. Não é nem um pouco legal!
Você é meiga, eu sou um babaca. Lucy, você não imagina o quanto me odeio
por ser assim, por não ter tido a capacidade de me aproximar de você e te
convidar para alguma festa ou simplesmente pedir seu telefone. Me odeio, de
verdade, mas não consigo me livrar dessa vergonha que me faz travar.

Seu coração estava tão acelerado que podia sentir seu corpo
estremecendo.

— Você não é um babaca. Sabe como é difícil encontrar um rapaz


como você hoje em dia? Aliás, eu teria adorado se você tivesse falado
comigo no segundo ano.

— Viu só o que eu perdi por ter essa timidez doentia? — ele


resmungou chateado.

— Como você toca nas festas se tem tanta vergonha? — perguntei


curiosa, notando que seu rosto estava corado.

— Eu bebo — ele confessou. — É o único jeito de conseguir tocar. E


ser DJ não é um passatempo, é o que quero fazer para sempre, então preciso
me esforçar muito.

Seu corpo estava ainda mais quente por baixo da camiseta. Me aninhei
novamente em seu peito. Passou pela minha cabeça que eu ouviria seu
coração batendo pelo resto da minha vida.

— Mesmo tímido, você conseguiu melhorar meu humor — sussurrei.

Ele riu e eu mordi o lábio sentindo sua temperatura me esquentar.


Minhas bochechas também estavam coradas.

— Posso fazer uma pergunta? — ele quis saber depois de pigarrear


para limpar a garganta.

— Claro.
— Sobre o que aquelas garotas estavam falando? Sei que elas são
idiotas, mas isso afetou você. Só queria entender.

Senti a dura realidade me atingir de novo. Cenas de treze anos atrás


inundaram minha cabeça. Coisas que nenhuma criança deveria presenciar.
Então as memórias horríveis desfilaram na minha mente, fazendo minhas
entranhas doerem.

Me encolhi no peito de Axel e senti as lágrimas voltando.

Um medo horrível me dominou, fez meu corpo sacudir com os


arrepios. Algo que eu estava tentando ignorar havia dias. Eu faria dezoito
anos dali a poucas semanas, então conheceria o inferno de verdade.

Eu poderia fugir? Sim, poderia. Só que, em uma cidade onde todos


olhavam para mim com desprezo, ninguém me daria emprego. Eu já tinha
procurado muito. Como disse, vivia em uma região onde sofria preconceito
pelo que minha mãe fez, e eu não teria chance de conseguir algum serviço
decente. Poderia ir para outra cidade, sim. Mas eu não era corajosa,
determinada e nem destemida. Não era valente como essas garotas que lemos
nos livros. Eu tinha crescido como um cachorro que apanha do dono e ainda
volta para seu lado, era submissa, acostumada a obedecer, a não ter ambições,
a abaixar a cabeça e aceitar tudo que acontecia comigo. Não tinha estrutura
psicológica para fugir de casa para um mundo que eu sabia muito bem que
poderia ser pior que meu tio.

Chegar à conclusão de que, por mais que eu quisesse sumir, não teria
coragem, fazia o medo se intensificar, ser tão apavorante que me deixava sem
fala.

— Tem algo a ver com o motivo de você morar com seus tios? — Axel
insistiu, mas com gentileza.

Era uma surpresa ele não conhecer a história dos meus pais.
Praticamente todo mundo da cidade sabia — e me julgava como se fosse
minha culpa ser filha deles.
Fiz que sim com a cabeça, sentindo minha garganta travada.

— Tudo bem se não quiser me contar agora — ele murmurou.

— Obrigada — falei aos sussurros.

— Me conte quando se sentir à vontade. Talvez eu possa fazer alguma


coisa para te ajudar.

Por minha causa, um dos melhores alunos da escola estava chegando


atrasado na primeira aula de Biologia.

Mesmo com o olhar espantado e um tanto furioso do professor, Axel


permaneceu com sua mão esquerda na base da minha coluna e me guiou até
nossos lugares.

Dava para sentir todo mundo da turma nos olhando, mas tentei fingir
indiferença. Nos últimos meses, Axel Hansson tinha alcançado um elevado
nível de popularidade, graças a seu sucesso como DJ (mesmo que ele não
ficasse à vontade com isso). Toda a sala sabia quem ele era, porque a maioria
já tinha ido a uma festa onde Axel se apresentava. E Lucy Peter era a garota
esquisita que todo mundo tentava evitar.

Às vezes, ouvia as pessoas cochichando sobre eu ser uma bomba


relógio, prestes a explodir e ferir alguém, como minha mãe tinha feito.
Diziam que estava no meu sangue, que era perigoso chegar muito perto de
mim. Eu apenas abaixava a cabeça e seguia meu caminho, me convencendo
de que não precisava da companhia daquelas pessoas na minha vida, mas
morrendo de tristeza por ser tão sozinha.

Talvez pelo seu boletim impecável, o professor não chamou atenção de


Axel por chegar atrasado. Também me ignorou, para meu alívio. Percebi que
as duas meninas que haviam me insultado se sentavam na fileira ao lado da
nossa. Não sabia seus nomes, já que não eram importantes para mim.
A aula seguiu, enquanto eu tentava a todo custo prestar atenção na
matéria. Notei que as duas garotas cochichavam uma com a outra e olhavam
na minha direção. Me virei e vi Axel fazendo anotações em seu caderno,
como se o resto do mundo não existisse, apenas ele, o professor e a aula de
Biologia.

— Ei — o chamei baixinho, na intenção de provocar aquelas garotas


inconvenientes.

— Oi — ele respondeu ao tirar os olhos do caderno, com a caneta


suspensa no ar.

Na fileira ao lado, as duas pararam de cochichar.

— Poderíamos estudar juntos depois — falei para que até elas


ouvissem.

Ele abriu um sorriso tímido, sem mostrar o aparelho, e fez que sim com
a cabeça.

— Quem sabe minhas notas melhorem — comentei retribuindo seu


sorriso.

— Não é tão difícil de aprender — Axel disse baixinho. — Vamos


melhorar suas notas.

Meu sorriso se alargou e notei as bochechas de Axel ficando coradas.


Com minha visão periférica, consegui captar os pescoços das garotas virados
na nossa direção, como se fôssemos da conta delas.

Me virei ainda mais na cadeira e toquei seu joelho com minha mão
direita.

— Não precisa ficar tímido comigo — dessa vez falei o mais baixo
possível, para que apenas ele ouvisse. Foi uma ousadia da minha parte dizer
aquilo, ainda mais tocá-lo daquela forma, tendo em vista que eu também era
um pouco tímida.
— Vou tentar — ele disse com seu jeito discreto e fofo.

— Senhor Hansson, já que está tão atento à aula, poderia me dizer


como ocorre a determinação do sexo? — o professor perguntou fazendo
minha pele arder.

A sala inteira se voltou para nós. Era a primeira vez que um professor
chamava a atenção de Axel. Me cortou o coração ver como ele ficou
vermelho de vergonha. Apertou os lábios e respirou fundo antes de encarar o
professor. Minha atenção estava dividida entre eles.

— Ocorre durante a fertilização, com presença ou ausência do


cromossomo Y, que define a especialização das gônadas em testículos ou
ovários.

Me endireitei rapidamente na carteira, com medo de que o professor


me fizesse uma pergunta também. Todo mundo iria rir porque eu não tinha
prestado atenção na aula e não saberia a resposta.

Por um milagre divino, o professor me ignorou, me livrando de passar


vergonha. Quando ele continuou a aula, e as atenções se dispersaram, peguei
meu celular na mochila e enviei uma mensagem de texto para Ax.

“Me desculpa por te atrapalhar e fazer o professor chamar sua atenção”


e acrescentei um emoji triste.

“Não foi nada. Eu sobrevivo” ele respondeu usando um emoji com um


sorriso discreto.

Não me atrevi a virar novamente para trás até o fim das aulas. O segui
ao estacionamento e entrei no carro. Ainda estava envergonhada pelo
acontecido, mas Axel não parecia chateado.

— Me desculpa, de verdade — sussurrei quando ele deu partida.

— Pelo quê? — ele perguntou como se não se lembrasse mais.


— Pelo que aconteceu na aula de Biologia. Você ficou vermelho na
frente de todo mundo.

— Não foi nada demais — Axel me garantiu. A luz da tarde iluminava


seu rosto, destacando as sardas e os cílios loiros e cheios. — Foi bem melhor
ele ter chamado minha atenção do que a sua.

— Isso é verdade. Eu ficaria tão nervosa que teria respondido com


alguma coisa bem idiota, todo mundo ia rir de mim. Até você.

— Não posso garantir que não iria rir — ele brincou. — O que vamos
estudar?

— Não sei. Preciso fazer as tarefas da sua casa primeiro, só depois


posso estudar — respondi, enquanto Ax dirigia.

— Minha mãe te paga um salário para trabalhar? — ele quis saber.

— Não. Eu faço para ajudar minha tia.

— E ela divide o salário com você? — Ax parecia preocupado.

— Mal dá para as despesas de casa — falei timidamente e dei de


ombros. — Meu tio Alan Peter está desempregado e…

— Vocês duas bancam as despesas da casa — ele concluiu com a voz


estranha.

Senti meu estômago embrulhar. Não queria que ele pensasse algo ruim
sobre mim.

— Já tentei arranjar um emprego em alguma loja ou lanchonete, mas


ninguém me chamou, por causa da história da minha mãe. Sabe como as
pessoas são aqui em Agaton.

— O que aconteceu com sua mãe? — ele perguntou e eu franzi o cenho


fechando a cara.
Fiquei em silêncio até chegarmos à fazenda Hansson. Axel não insistiu,
o que foi bom para que eu tentasse colocar a cabeça no lugar e organizar a
mente com todas as coisas que estava sentindo.
Desci do carro sem agradecer pela carona e corri até a porta dos fundos
arrastando minha mochila velha, passando pelo border collie preto e branco
que corria em direção ao Toyota. O cachorro pertencia ao senhor Hansson, se
chamava Theodoro e era tratado como um membro da família, recebendo
muito mais carinho e cuidados do que eu recebia em casa. Não olhei para trás
para vê-lo pular em Axel quando ele descesse do carro.

Tia Esther estava limpando o forno da cozinha dos Hansson.

— Chegou mais cedo — ela comentou ao me ver entrando apressada.

— Não vim de bicicleta, vim de carona — respondi com indiferença,


torcendo para que ela não quisesse saber com quem. — O que preciso fazer?

Ela me passou a lista de afazeres e eu corri pela casa para executar o


mais rápido possível.

Quando acabei minhas obrigações, meu estômago estava roncando,


mas tentei ignorar isso. Despistei minha tia, subi até o andar de cima e bati na
porta do quarto de Axel.

— Está aberta — ele resmungou lá de dentro.

Abri a porta e o vi sentado ao lado da escrivaninha, tocava violão e


fazia anotações em um caderno. Havia um teclado elétrico sobre a
escrivaninha. Ele estava usando os óculos de grau, e mechas do seu cabelo
caíam sobre a testa. Theodoro estava tirando um cochilo em cima da cama de
lençóis caros. Seu rabo, que lembrava um espanador, pendia para fora do
colchão.

Pensei em dar meia volta, dizer que não queria atrapalhar, mas acabei
entrando em seu quarto. Deixei a porta entreaberta por força do hábito de não
ficar a sós com garotos em ambientes fechados. Me aproximei devagar,
enquanto ele girava na cadeira para me encarar.

— Ainda está a fim de me ajudar a estudar? — perguntei com o melhor


dos meus sorrisos.

— Claro. — Axel empurrou o teclado e o caderno para o lado, apoiou


o violão no chão e levantou-se da cadeira. — Senta aqui.

Me sentei na cadeira giratória vermelha e Axel se sentou na sua cama.


O cachorro nem se deu ao trabalho de se mexer.

— Por qual matéria quer começar? — ele quis saber.

— Tanto faz. Vou mal em todas — falei antes de pensar. Ele franziu o
cenho, fazendo uma careta bonitinha.

— O segredo é ler, sempre revisar o que foi estudado, treinar seu


cérebro para armazenar informações.

— Não tenho muito tempo para ler — confessei me balançando na


cadeira.

— É nosso último ano. Você precisa se dedicar, colocar os estudos


como prioridade.

Ri baixinho. Prioridade… Ele jamais entenderia que minha prioridade


era sobreviver.

— Vamos revisar a matéria de Biologia, então — sugeri. Não queria


admitir que não tinha ambições em melhorar minhas notas, que eu não iria
para a faculdade, que só estava ali porque gostava da sua companhia.

Axel alcançou o livro de Biologia e se arrastou na cama até ficar com


as costas apoiadas na cabeceira cinza acolchoada. Fiquei de pé, fui até sua
cama e me sentei ao seu lado. Notei a tensão dominar seu corpo.

Me senti insegura por ter tomado aquela atitude, mesmo assim, como
Axel não pediu que eu me levantasse, continuei ali. Peguei um travesseiro e o
abracei com força para me livrar do desconforto.

Ele começou a ler a matéria e explicar detalhadamente cada tópico,


enquanto eu tentava acompanhar. Me encostei na cabeceira macia e senti o
peso do cansaço por ter trabalhado tão rápido e sem ter comido nada. Podia
sentir o cheiro do perfume que ele usava. Imaginei como seria me inclinar e
aspirar seu pescoço. Aposto que Axel ficaria vermelho. Mordi o lábio
sabendo que não teria coragem de fazer aquilo, estar perto dele já me era
suficiente.

— Está conseguindo entender? — ele quis saber, ajustando os óculos


acima do nariz.

— Pode repetir a última parte? Acabei me distraindo — assumi e meu


estômago roncou. Por sorte, Axel ignorou.

— É a primeira vez que tem uma garota na minha cama — ele


sussurrou e deu um sorriso —, além da minha irmã.

Axel tinha uma irmã mais velha que morava em Malmö, ela se
chamava Leonora, era veterinária e estava noiva. Era tudo que eu sabia.

— Sua irmã não conta — comentei. Ele não me olhava. Percebi que ele
se retraia ainda mais quando ficávamos muito perto.

Me afastei discretamente. Não queria incomodar.

— E você só está aqui para estudar genética — Axel disse e notei seu
rosto ficar corado. Acho que eu também corei um pouco. — Se meu pai visse
isso, tiraria sarro de mim por um mês. Ele acha que… Deixa pra lá.

— Diga!

— Ele acha que sou gay, porque vivo em festas, mas nunca trago
garotas — Axel confessou. Vi a covinha na sua bochecha e fiquei tentada a
me aproximar novamente. — Ele já teve uma conversa comigo, falando que
me aceitaria do jeito que eu fosse e tal.

Senti um aperto no coração. E se ele fosse mesmo gay? Por que eu


ficaria decepcionada? Estávamos ali só para estudar, não é mesmo?

— Mas eu não sou — ele falou com segurança. — Gosto de garotas.


Só sou muito…

— Tímido! — completei empolgada.

— Isso! Você entende.

— Claro que entendo. Se serve de consolo, também é a primeira vez


que estou na cama com um garoto. E ninguém acha que sou lésbica por causa
disso.

Axel colocou o livro de lado e virou o tronco na minha direção. Parecia


fazer um esforço enorme para conseguir me olhar nos olhos.

Minha respiração ficou acelerada. Me perguntei o que diabos estava


acontecendo entre nós. Ele ficava tímido, eu sentia minhas mãos trêmulas e a
respiração acelerada, mesmo assim estávamos ali, e parecia que ambos
sentíamos vontade de nos aproximar mais.

Eu nunca tive um amigo. Era assim que os amigos se sentiam?


Estávamos começando a ser amigos? Eu não compreendia a confusão de
sentimentos, mas estava gostando da sensação.

Com a mão apoiada no colchão, Axel se aproximou um pouco mais de


mim. Precisei respirar pela boca. Ele umedeceu o lábio inferior, carnudo e
rosado, e olhou para minha boca. O ar que chegava aos meus pulmões não
era suficiente. Eu iria sufocar e meu coração parecia estar se dilatando.

Amigos? uma vozinha na minha mente perguntou quando eu também


me aproximei. Parecem mais que amigos.

Não notei a porta sendo aberta. Quando dei por mim, tia Esther já
estava atravessando o quarto com a voz alterada. Nos afastamos ao mesmo
tempo e eu me preparei para ficar de pé.

— Perdeu o juízo, menina? — minha tia falou com rispidez e agarrou


meu cotovelo, me fazendo levantar. Theodoro abriu os olhos e levantou num
salto, dando um latido que foi ignorado por nós. — Te procurei pela casa
inteira. Perguntei de você até para Cecilia! Imagina se ela te pega no quarto
de Axel! Estaríamos na rua!

— Só estávamos estudando — Axel disse ao se levantar. — Não


estávamos fazendo nada demais.

— Nada demais! — minha tia repetiu com sarcasmo.

— Não se meta — pedi a ele com todo o apelo que consegui


demonstrar com um olhar. — Pelo amor de Deus, não se meta!

Saímos do quarto e eu bati a porta. Fui pega de surpresa por um tapa na


minha nuca que me deixou tonta por um segundo.

— Trancada no quarto com o filho do patrão, enquanto eu te procurava


para irmos embora? — ela rosnou e deu outro tapa na minha cabeça.

Pisquei os olhos e procurei clarear a mente, conforme ela me puxava


pelas escadas. Tentei me apoiar no corrimão de madeira envernizada. Eram
doze degraus, os quais desci tropeçando.

À medida que era arrastada pela sala de estar, pensei em dizer em


minha defesa que não estávamos trancados no quarto, que a porta se
encontrava entreaberta, mas eu sabia que estava errada. Primeiro, não tinha
avisado e já havia passado da hora de irmos embora. Segundo, se Cecilia
Hansson descobrisse, estaríamos arruinadas. Ela iria não só mandar minha tia
embora como também contaria para todas as senhoras de família importante
de Agaton o que eu tinha feito.

Que mãe de família quer uma empregada que a sobrinha se enfia no


quarto do filho na primeira oportunidade?

— Ela foi muito bondosa em nos contratar, mesmo sabendo tudo que
sua mãe fez — tia Esther disse quando chegamos lá fora. O border collie
passou pela porta da frente e nos seguiu pelo jardim florido e perfumado da
senhora Hansson. A noite caía com um vento frio.

— Axel só estava me ajudando a estudar, estamos na mesma classe.

— Estudar! — ela falou com deboche. — Todo mundo sabe que você é
burra como uma porta, sua morta de fome! Estudar! Tira essa ideia da cabeça.
Na cama com o filho da patroa? Quer ficar mais mal falada do que já é?

— Não quero — falei depressa, enquanto seguíamos para o ponto de


ônibus. Ela ainda estava apertando meu cotovelo.

— Não podemos perder esse emprego! Os Hansson são a melhor


família para quem já trabalhamos. Não se enfie na cama com ele. Pelo amor
de Deus, Lucy! Quer que a gente passe fome por sua culpa? — tia Esther
gritou tão alto que fez Theodoro começar a rosnar para ela.

— A gente só estava estudando — repetia baixinho, enquanto ela o


empurrava com a ponta do mocassim. — Ela não teria razão para demitir a
senhora.

Como o cachorro não se aquietava, me desvencilhei da mão de tia


Esther e ergui o dedo indicador em sinal de comando para que ele se sentasse,
fazendo carinho em sua cabeça quando me obedeceu.

Então tia Esther agarrou meu queixo, me fazendo virar para olhar o
casarão que deixávamos para trás.

— Olha bem para essa casa — ela ordenou fincando as unhas ásperas
no meu queixo —, acha mesmo que Cecilia pensaria assim se pegasse uma
morta de fome como você na cama do filho? Eles são de outro mundo. A
gente convive, mas não se mistura. Entendeu?

Fiz que sim com a cabeça, sentindo o coração doer. Queria dizer que
ela também seria demitida se algum dos Hansson a visse chutando o
cachorro, mas me calei.

Meu celular começou a tocar dentro da mochila pendurada no ombro


de tia Esther, mas ela não me deixou pegá-lo. Eu sabia que era Axel.

Quando chegamos ao ponto de ônibus, já havia escurecido


completamente e Theodoro tinha ficado para trás.

— Não sou morta de fome — murmurei baixinho ao me apoiar na


coluna do ponto para me proteger do vento frio.

— Cecilia não trata você mal e Elton Hansson nunca te olha com
malícia. Não estrague tudo!

— Não sou morta de fome — repeti com um resmungo. — O governo


paga um salário para vocês cuidarem de mim.

— Não venha falar daquela miséria que recebemos.

— Renderia mais se Alan Peter não gastasse mais da metade com


cerveja e cocaína — teimei, arriscando levar uma surra ali mesmo. Meu
celular continuava tocando.

— Se enxergue e cuide mais da sua vida. Você é burra, não sei como
conseguiu chegar ao terceiro ano do ensino médio. Gaste seu tempo fazendo
um bom trabalho, agradando os patrões, porque vai ter sorte se conseguir
serviço em alguma casa de família. Estudo não é para pessoas como a gente.
Já devia ter percebido. Se seu tio soubesse…
— Não conta para ele, por favor — implorei tomada pelo medo. — Por
todos os anos em que te ajudei, não conta para ele.

— Alan tem razão.

— Ele não tem! — berrei nervosa.

— Você é bonita, podemos ganhar um bom dinheiro com você.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Não acreditava que tia Esther ia


concordar com o escroto do meu tio.

— Eu fujo de casa antes — ameacei sem muita segurança.

— E vai para onde? — ela perguntou. — Não tem outro lugar para
você. Caia na real!

Vi faróis se aproximando e me preparei para pegar o ônibus. Mas


quando parou, descobri que não era o transporte público, e sim um Toyota
sedan com um rapaz tímido e de óculos de grau na direção.

— Levo vocês para casa — ele disse.

— Não precisa se preocupar com a gente — tia Esther falou com falsa
gentileza. — Estamos acostumadas a ir de ônibus.

— Estou indo à cidade, levo vocês — ele insistiu e abriu a porta do


carona.

Por impulso, sequei as lágrimas e corri, entrando no carro e me


sentando ao lado de Axel.

— Está tudo bem? — ele sussurrou.

Minha tia se acomodou no banco de trás.

— Está — menti.
— Por que não atendeu o telefone? — Axel perguntou.

— Depois eu explico — falei me virando para tia Esther. — Me dê


minha mochila.

Ela entregou de má vontade.

Ficamos em silêncio enquanto ele dirigia. Meu coração havia parado de


doer porque eu tinha percebido que Axel se importava comigo. Era a primeira
pessoa além da minha mãe. Meus tios só tinham me pegado para criar por
causa da ajuda do governo.

Alan Peter era irmão do meu pai, um homem tão desprezível quanto
meu tio, alguém que eu não fazia questão sequer de lembrar o nome.

Quando Axel parou em frente de casa, tia Esther agradeceu milhões de


vezes pela carona e desceu do carro. Abri a porta, mas Axel segurou com
força na alça da minha mochila.

— Ouvi seu estômago roncar várias vezes — ele disse me deixando


envergonhada. — Vamos sair e comer alguma coisa? Sei que está com fome.
Você escolhe o lugar.

— Não posso — falei com tristeza.

— Por favor, Lucy, não me dê um fora — ele pediu com um olhar


triste. — Não sabe como é difícil criar coragem…

— Não estou te dando um fora — disse ainda mais triste. — Sou eu


quem prepara o jantar todas as noites, porque minha tia chega cansada. Não
posso sair.

Axel umedeceu o lábio carnudo, ainda segurando na alça da mochila.

— O que seus tios fazem com você?

Eu quase chorei. Mas acabei me segurando.


— Fica tranquilo. Está tudo bem. Nos vemos amanhã. Você ainda vai
me dar carona?

Ele deu um meio sorriso.

— Te pego às 7h30.

— Estarei te esperando.

Puxei a mochila, saí do carro e corri para casa fazendo uma prece para
que os pensamentos da minha tia se iluminassem e ela não contasse nada a
Alan Peter.
Minha cabeça doía quando desembarquei no aeroporto de Malmö.
Ainda me sentia bêbado dá última noite, como se meu sangue fosse
constituído de álcool. Meus olhos ardiam por trás das lentes de contato, mas
não as substituiria pelos óculos até chegar à fazenda. Evitava usá-los em
público cada vez mais.

Meu pai me esperava no portão de desembarque. Leonora, minha irmã


mais velha, estava com ele. Me abraçaram bem forte e me encheram de
perguntas a respeito da minha segunda viagem de férias sozinho.

Amava minha irmã com todo meu coração, e meu pai era um ídolo para
mim, mas só queria que eles parassem de falar. Minhas têmporas latejavam
cada vez mais.

Leonora se despediu de nós ao lado do carro, prometendo que nos


visitaria com seu noivo o mais rápido possível. Quando ela deu as costas e
caminhou pelo estacionamento, senti o primeiro sinal do vazio que voltaria a
ocupar meu peito.

Durante muito tempo, ela tinha sido a única pessoa com quem eu
conversava, com quem conseguia ficar à vontade, então ela entrou para a
faculdade e foi embora.

— Conheceu alguém?
— Não, pai. As garotas de Estocolmo... — comecei a falar com toda a
força de vontade, mas ele me interrompeu.

— Não falei especificamente de garotas. Falei sobre alguém.

Meu crânio era como uma granada prestes a explodir, minha boca
estava seca e o estômago vazio se embrulhava cada vez mais conforme ele
manobrava para fora do estacionamento e tomava a rodovia para Agaton.

— Sabe que tem liberdade para falar comigo sobre o que quiser, não
sabe?

Sei disso, pai, só que agora tudo que preciso é do bom e velho silêncio.

— Claro — respondi tentando não parecer tão mal-humorado.

— Sabe, filho, sua mãe e eu não temos preconceito. Saiba que não
ficaremos magoados se você nos contar que não gosta de garotas, que sente
atração por homens...

— Pai! — O som da minha própria voz causava pontadas na minha


cabeça.

— Te aceitamos do jeito que for — ele insistiu, com uma das palmas
erguida, enquanto a outra apertava o volante.

— Pareço gay? — murmurei sentindo a tensão no maxilar, grato por só


estarmos nós dois no carro e não haver testemunhas.

— Não é que você parece, mas não é normal um rapaz como você
nunca ter levado uma garota em casa.

— Não curto homens, mas obrigada por me aceitar — falei com um


traço de sarcasmo na voz. Se não se importavam com minha orientação
sexual, porque não poderiam entender que eu simplesmente não conseguia
chegar em uma garota?

Havia uma sensação de vazio que me controlava, que não me


abandonava um só dia. Uma coisa que fazia o sangue se concentrar no meu
rosto, que deixava um caroço na garganta, o coração acelerado e as mãos
suadas. Aquilo não me permitia ter amigos na escola, dar em cima de garotas
ou simplesmente responder à pergunta de um professor. O simples fato de ir à
escola já era uma tortura.

Às vezes, quando anoitecia, e ficava sozinho no meu quarto, esse vazio


ia me consumindo até que eu sentia vontade de morrer, só para acabar com
aquela dor. E quando a agonia começava a aliviar, me sentia um lixo por
pensar na morte enquanto existiam tantas pessoas afundadas em merdas
piores que a minha.

— Você ainda pensa naquela garota do colégio? — meu pai resolveu


puxar assunto de outro jeito.

— Nem sei se ela estará na minha turma no último ano.

— Como é mesmo o nome dela?

— Lucy — resmunguei tentando pensar em algo que pudesse falar para


deixá-lo satisfeito.

— Isso. Lucy Peter. Por que não cria coragem e a convida para sair?

Ri sem humor. Meu pai era do tipo que pensava: o não você já tem, só
precisa ir atrás da humilhação.

— Uma garota como ela não sairia com um cara como eu.

— Você iria aproveitar muito mais a vida se não fosse esse medo de
tentar.

— Já tento. Toco quase todos os finais de semana em festas lotadas.

— Bêbado não conta.


Nosso border collie estava ao lado da minha mãe na varanda quando
chegamos à fazenda. Havia uma gravata borboleta vermelha em seu pescoço,
e ele parecia o cachorro mais respeitável de toda a Suécia.

— Você não me engana, Theodoro — falei ao descer do carro, o


chamando com um assobio.

Ele desceu as escadas como o cachorro doido e amoroso que era, e se


lançou contra mim, batendo as patas dianteiras na minha barriga.

O abracei, sentindo o cheiro do shampoo para cachorros.

Subi as escadas tentando equilibrar a mala, o violão pendurado nas


costas, com minha mãe agarrada a minha cintura e Theodoro se jogando
contra mim a cada degrau. Antes de entrar em casa, lhe dei a atenção que ele
merecia e prometi que sairia depois para uma corrida juntos.

Minha mãe fazia todo tipo de perguntas ao seguirmos para meu quarto,
no primeiro andar. O álcool ainda dominava meus reflexos, mas a dor de
cabeça estava diminuindo.

Ela abriu a porta para que eu entrasse.

Meu cérebro demorou um momento para entender que aquilo era real,
que ela estava ali, parada ao lado da minha cama segurando um travesseiro.

Lucy Peter olhou na nossa direção sobre o ombro e, quando sorriu, me


senti mais sóbrio que nunca.

— Vou deixá-los sozinhos. — Ouvi sua voz me garantindo que aquilo


era real.

— Não — pedi sem pensar, mas foi no que minha mãe disse que ela
prestou atenção.

— Sim, senhora Hansson — murmurou envergonhada. Foi aí que me


dei conta de que ela não estava ali por mim. Devia ser filha da mulher que
havia sido contratada para ajudar a cuidar da casa.

Minha mãe começou a falar um monte de coisas, mas eu não sabia bem
o que estava respondendo. Me concentrei em abrir a mala, sem querer deixar
o quarto, ainda sem acreditar que ela estava mesmo ali.

— Seu pai conversou com você sobre...?

— Sim, ele conversou — me apressei em dizer, temendo que ela


começasse com aquela história de eu ser gay na frente de Lucy. Meu rosto
queimou de vergonha só com a possibilidade.

Foi apenas depois de muito constrangimento que mamãe falou com ela
novamente, como uma ditadora, e nos deixou a sós.

Meu coração batia forte, o corpo tremia. Ela estava com um dos joelhos
sobre a cama, mexendo nos lençóis. O quarto estava claro e dava para ver a
marca da calcinha no vestido fino enquanto ela se inclinava sobre o colchão.

Engoli a saliva, respirando pela boca e forcei os olhos a se fixarem em


outro lugar. O mal-estar da ressaca tinha sido substituído por outra agonia, e
eu não podia deixar que ela percebesse.

Foquei nos seus cabelos cheios, a pele do seu pescoço, as mãos


trabalhando rápido.

— Você por acaso estudou no último ano na mesma turma que eu? —
perguntei assim que notei que ela estava terminando de arrumar minha cama,
e que eu estava prestes a perder a oportunidade.

— Sim… eu era da sua turma — respondeu como se também estivesse


constrangida, seus olhos claros pareciam maiores, brilhavam.
— Te reconheci pelo vestido — falei a primeira idiotice que me veio à
cabeça.

As perguntas que se seguiram, apenas para mantê-la falando comigo,


eram tão humilhantes que eu não fazia nem questão de lembrar.

Era a primeira vez que eu me arriscava com uma garota, e sequer sabia
de onde estava tirando tanta coragem — talvez fosse por conta do álcool
ainda no corpo —, mas não queria jogar fora a oportunidade de ouvir sua
voz.

— Você já foi ao clube Sensations nas noites de sábado? Sempre toco


lá e nunca te vi — perguntei como se ouvisse a voz do meu pai repetindo sem
parar “convida ela para sair”.

— Nunca fui a esse clube — respondeu.

É claro que ela nunca tinha ido. Lucy era toda conceitual, tinha um
estilo próprio. Usava roupas retrô, como se quisesse dizer ao mundo que não
estava nem aí para a porra da moda, que ela tinha coisas muito mais
importantes para se preocupar do que seguir tendências que mudavam a cada
estação. E ela era simplesmente incrível demais para um clube qualquer de
Agaton.

— Imaginei. Vou tocar lá amanhã. Gostaria de ir? Posso conseguir um


ingresso… — O não eu já tinha, mas se estava me arriscando tanto, por que
não correr atrás da humilhação?

— Meu tio não gosta que eu saia à noite — foi a desculpa mais rápida
que ela arranjou.

Por mais que eu não acreditasse que ela fosse aceitar, senti uma dor
nova no coração. Era a primeira vez que levava um fora, e não pensei que
fosse doer tanto.

A encarei por um instante, tentando lhe dizer com o olhar o quanto ela
era interessante e como eu gostava dela, que era a primeira garota que eu
convidava para sair, mas nada disso tinha importância.

Além de tudo, ainda era mais velha que eu, já que tinha repetido de
ano. Devia me achar um moleque querendo levá-la a um clube cheio de
outros moleques e pessoas fúteis.

Olhei para seus lábios carnudos, o furinho discreto no queixo, e aceitei


que nunca iria beijá-la. Acenei com a cabeça e voltei a tirar coisas da mala,
desejando que abrisse um buraco no chão para que eu pudesse me jogar.

Esperei que ela fosse para o banheiro e saí do quarto. Precisava curtir a
depressão do primeiro fora longe dela.

Me escondi na garagem, sentando sobre o capô no Toyota Sedan que


meus pais haviam me dado no meu aniversário de dezessete anos.

— Gostou da surpresa? — meu pai perguntou ao se aproximar com


duas garrafas de cerveja.

Me entregou uma e se sentou ao meu lado.

— Fiz como você disse e me arrisquei — falei abrindo a garrafa e


bebendo o primeiro gole. Aquilo era tudo que eu precisava.

— E...?

— Ela me deu um fora.

Ele deu risada.

— O primeiro a gente não esquece.

Queria dizer que não tinha graça, mas meu pai não estava rindo por
mal.

— Foi você que arranjou para que ela trabalhasse aqui?

— Umas perguntas aqui, outras ali, e descobri que ela ajudava a tia.
Com dois telefonemas consegui contratar Esther Peter.

— Ela mora com os tios, não é?

Meu pai fez que sim com a cabeça.

— Sabe, ela é muito especial. Por que eu não tive capacidade de


raciocinar e convidá-la para jantar. Todas as garotas gostam de comer.
Poderia chamá-la para comer uma pizza, sorvete, sanduíche, um bolo, sushi,
qualquer coisa. Mas não, tinha que estragar a oportunidade a convidando para
uma balada.

Revirei os olhos, nem a cerveja me fazia relaxar.

— E o que ela respondeu? — Meu pai se divertia.

— Que seu tio não gosta que ela saia à noite.

— Por isso você acha que levou um fora? Filho, deixa eu te explicar as
coisas, nem todos os responsáveis deixam seus adolescentes virarem as
madrugadas em baladas.

— Não tem nada a ver. Ela é mais velha que eu, também trabalha, é
independente. É claro que foi só uma desculpa.

— Vai ver ela só estava se fazendo de difícil. Algumas garotas gostam


de fazer charme.

— E você entende tudo de garotas — brinquei.

— Mais que você — ele jogou na minha cara. — Pode ter certeza que
ela vai aparecer no seu show amanhã. E faça o favor de ficar sóbrio e se
oferecer para levá-la em casa no fim da festa.

— Se você diz.

— Confie no seu pai. Sei quando uma garota não quer aceitar um
convite logo de primeira.
Ergui uma sobrancelha, sorrindo para Elton, que se achava o
entendedor de todas as coisas.
Depois que meu pai voltou a cuidar dos seus afazeres na fazenda,
fiquei na garagem esperando o sol se pôr. Pela fresta da porta, vi quando
Lucy passou com sua tia na direção da estrada. O vestido florido balançava
com o vento, mechas do cabelo castanho voavam em todas as direções.

Sua tia pareceu esquecer algo, porque voltou para a casa. Lucy ficou
mexendo no celular enquanto esperava. Assim que as duas sumiram de vista,
entrei e fui atrás da minha mãe.

— Preciso do seu celular — falei entrando no escritório.

Ela estava sentada à mesa, analisando as contas dos negócios da


fazenda, com os óculos de grau na ponta do nariz. Meu pai trabalhava com o
cultivo de batatas, cevada e trigo, mas a agricultura só era possível em seis
meses do ano, os mais quentes. Durante o inverno, nossa economia girava
apenas em torno da pecuária — com o gado e os cavalos de raça. O equilíbrio
dos rendimentos, para que durassem nos meses mais frios, ficava por conta
da minha mãe.

Concentrada nos números, ela só apontou com o dedo na direção do


aparelho, sem se incomodar em perguntar por que eu queria.

Na agenda, encontrei o número de Lucy salvo e roubei a informação


para mim.
— Vou passar o dia na cidade amanhã. Volto no domingo — informei.

Ela ergueu os olhos e me encarou.

— Você acabou de passar semanas com esses amigos. Não pode ficar
em casa por um final de semana? Sentimos sua falta.

— Vou me apresentar em uma festa à noite — falei em tom de


desculpas. — Preciso me preparar.

Ela respirou fundo e revirou os olhos.

— É o último ano do ensino médio. Você sempre foi o aluno mais


aplicado da turma, mas não pode se descuidar. Essas festas são uma perda de
tempo...

— Tudo bem, mãe — a interrompi antes que iniciasse um de seus


sermões. Coloquei o aparelho sobre a mesa, dei a volta e passei os braços em
volta do seu corpo. — Já disse o quanto você está linda hoje?

Ela ficou toda derretida, passou uma das mãos no meu cabelo e beijou
minha bochecha.

— Vai ser difícil quando você for para a faculdade. Ficaremos só seu
pai e eu nesta casa grande.

Beijei sua testa com força e disse que a deixaria trabalhar, não queria
falar sobre faculdade.

No sábado, saí da fazenda bem cedo, antes que Lucy chegasse com sua
tia. Não aguentaria olhar para ela. Em Agaton, fui direto para o apartamento
de Steven, que estava preparando um vídeo com uma das músicas que eu
havia composto nas semanas em Estocolmo.

Ele, assim como meus outros três amigos, tinha mais de vinte anos,
mas não me tratavam como adolescente. Havia os conhecido através da
minha irmã. Era quase fácil interagir com eles, principalmente porque sempre
estávamos bebendo.

Tomei apenas três shots de vodca no camarim do clube Sensations.


Não era suficiente para me deixar bêbado, mas o bastante para suportar a
ansiedade crescente.

Olhava para o telefone, contando os minutos para entrar no palco.

— Viu ela? — perguntei para Steven pela quarta vez, sem deixar que
os outros ouvissem. Se Mikaela, Filippa ou Christer descobrissem que havia
uma remota possibilidade de eu estar esperando uma garota, fariam da minha
noite um inferno.

— Não consegui ver — ele respondeu baixo. Era o mais discreto dos
quatro. — Me mostra a foto novamente.

Abri o aplicativo de imagens e mostrei uma das fotos que havia tirado
de Lucy na sala de aula — sem que ela percebesse, é claro.

— Não a vi, mas sabe como as garotas se transformam quando usam


muita maquiagem. A gente mal as reconhece. Vou dar mais uma olhada. Se a
encontrar na fila, a convido para cá.

— Não precisa. Ela não vem.

— Por que ela não viria? — perguntou com sua positividade.

A ansiedade estava acabando comigo. Mesmo que Lucy tivesse me dito


não, existia aquela parcela de esperança de que ela fosse aparecer.

— Estão te chamando para subir ao palco — Mikaela informou alguns


minutos depois, vindo na minha direção e se enroscando no meu braço. —
Estocolmo foi o máximo, né? Conhecemos tanta gente.
— Não lembro da maior parte — falei inquieto.

Mikaela tinha um primo que viajava todo verão para Ibiza e deixava o
apartamento em Estocolmo na sua responsabilidade. Ela convidava Steven,
Christer, Filippa e eu. Era a segunda vez que eu passava o verão com eles.
Íamos a muitas festas em piscinas, clubes, e ela me apresentava a um monte
de gente envolvida com música, dizia que eu era sua mina de ouro, que faria
o possível para que eu ficasse famoso. Os quatro acreditavam que eu
conseguiria, por isso me davam todo apoio que eu precisava.

Steven apareceu na porta e balançou a cabeça em negação, fazendo


sinal de que não tinha encontrado Lucy.

O desgraçado do meu coração se apertou como se ela tivesse me dado


esperanças.

Com Mikaela agarrada no meu braço, alcancei uma garrafa de vodca e


abri o lacre com os dentes enquanto me dirigia ao palco. Bebi direto do
gargalo. Qualquer coisa para amenizar aquela sensação ruim no peito.

Acho que eu tocava muito melhor assim, talvez porque conseguia


conversar com a plateia, que meus amigos insistiam que só estava ali para me
ver.

Misteriosamente, o público do clube gostava de me ouvir falar. As


garotas gritavam, os caras aplaudiam, enquanto meu corpo e minha mente
flutuavam num estado de embriaguez que beirava a inconsciência.

Nos dias que sucediam as festas, geralmente precisava que meus


amigos mostrassem vídeos dos shows para eu ter certeza de que não tinha
feito nenhuma merda.

Quando acordei após o meio dia do domingo seguinte, vi que Lucy


Peter havia me mandado sua localização. Conseguia me lembrar de ter ligado
para ela às 2h da madrugada. Ela tinha atendido antes que o nervosismo
trouxesse a sobriedade de volta.

— Você ainda está naquele clube? — ela perguntou. Tinha uma voz
doce e era muito educada. Parecia sorrir enquanto falava comigo.

— Estou — falei ao me afastar dos meus amigos, que fumavam e


davam risada nos fundos do clube. — Fiquei imaginando que fosse pular a
janela do seu quarto e viria me ver, mas você não apareceu.

— Eu não tinha ingresso — ela disse aos sussurros.

— Você está falando tão baixinho. Estou atrapalhando?

São mais de 2h da manhã, Ax. É claro que você está atrapalhando! A


voz da consciência gritava.

— É que meu tio não gosta que eu fique no telefone até tarde — ela
explicou. Seu humor pareceu mudar quando mencionou o tio.

Senti algo ruim no estômago. E se ela realmente não tivesse aceitado o


convite por causa do tio? Pensei nela trabalhando na minha casa. Será que era
realmente independente?

Lucy sempre se sentava sozinha na hora do almoço, não andava com


ninguém. Costumava pensar que o resto dos alunos era insuportável demais
para que ela se interessasse pela amizade de algum deles.

E se não fosse isso? Se seus tios fossem como aqueles parentes


controladores? Podia ser apenas paranoia, mas não custava tentar uma
aproximação novamente, afinal, Lucy tinha atendido minha ligação de
madrugada sem desligar na minha cara.

Minha mente começou a fantasiar centenas de explicações para ela não


ter amigos, para estar em casa em um sábado à noite. A maioria delas
envolvia um tio escroto.
Onde estavam seus pais?

— Ah, tudo bem. Só liguei mesmo para perguntar se você tem carona
para o primeiro dia de aula… ou se prefere ir de ônibus — tentei. Minha
autoestima era menos importante naquele momento.

Algo me dizia para insistir em me aproximar.

— Não tenho carona e o ônibus escolar não passa no meu bairro.


Costumo ir de bicicleta — Lucy disse com delicadeza.

Engoli a saliva. Onde ela morava que o ônibus escolar não passava?
Por que seu tio não a levava de carro?

— Posso passar na sua casa na segunda para te dar carona?

— Seria muito bom!

Aquelas palavras mudaram toda a minha perspectiva. Lucy tinha um


tio que não a deixava sair à noite nem gostava que ela fizesse amizade. Ela
não agia daquele jeito porque se achava superior aos outros jovens de
Agaton, mas porque não tinha liberdade para isso.

Pensei em todas as coisas que poderia dizer para responder sua


mensagem com a localização. Mas não consegui digitar nada além de um
emoji.

Durante todo o domingo, me perguntei o que ela estava fazendo e se


havia a possibilidade dos seus tios a forçarem a trabalhar.

Morávamos em um país desenvolvido e que prezava pela liberdade. A


mídia pintava um quadro com uma Suécia perfeita, mas ainda existia
violência e exploração. Ainda mais porque cada família vivia sua vida
isoladamente, uma não se intrometia nos problemas da outra.

No domingo à noite, depois de uma mistura de remédio para o fígado,


enjoo e analgésico, me sentia melhor da ressaca. Após jantar na casa do meu
tio Kristofer, onde meus primos pequenos me fizeram percorrer toda a casa
com eles pendurados nos meus ombros, peguei o carro e segui a localização
que ela havia me enviado.

Fui parar em um bairro distante. Parecia muito com as casas que o


governo cedia para as pessoas de baixa renda. Eram estreitas e possuíam
apenas o andar térreo.

Nunca tinha pensado que a condição financeira da minha família era


superior a outras de Agaton. A maioria das pessoas que conhecia possuía o
mesmo padrão de vida. Ali estava um bairro que quase ninguém frequentava.

Parei próximo a casa que devia ser a dela e fiquei tentando imaginar
como era lá dentro, seu quarto, a disposição dos móveis, os eletrodomésticos.
Me senti mal por ter a observado de longe por quase um ano, mas sem me
preocupar em saber nada sobre ela.

Desliguei o carro e puxei a maçaneta para sair. Mesmo sóbrio, estava


disposto a bater na sua porta e verificar como ela estava, descobrir quem era
o homem que não a deixava sair para uma festa.

Será que Lucy já tinha jantado? E se sentisse vontade de comer alguma


coisa que não tivesse na sua casa, ou que sua tia simplesmente não estivesse
disposta a cozinhar para ela? Eu poderia perguntar o que ela queria, ir até o
centro e comprar. Comeríamos no pequeno gramado em frente à casa.

Observei a construção mais atentamente. Era muito parecida com as


outras casas da rua. Não havia portão de garagem, o que deveria significar
que talvez não possuíssem carro.

Vi uma bicicleta azul apoiada na parede lateral da pequena varanda.


Deduzi que pertencia a Lucy.

Então a porta da frente se abriu. Fiquei imóvel quando a vi sair


carregando sacos de lixo. Usava roupas de moletom e seu cabelo estava
despenteado. Lucy cruzou o gramado até as latas de lixo no canto da calçada.
Ela não olhou para o carro, muito menos me viu, mas parecia muito cansada.
Quando decidi fazer sinal de luz com os faróis, ela já estava com o pé
na varanda novamente e não percebeu.
No primeiro dia de aula, a busquei em sua casa como combinado.
Tinha passado o resto da noite ensaiando uma maneira de dizer o quanto a
achava maravilhosa, até pesquisei cenas de declarações de amor em séries.

Pedir em namoro era antiquado, mas eu achava certo fazer desse jeito.
Queria que Lucy soubesse que sempre gostei dela, e que podia contar comigo
para o que fosse. Precisava desesperadamente saber como era sua vida dentro
daquelas quatro paredes da casa pequena e simples. Como seu tio a tratava,
por que ela ajudava Esther Peter nos trabalhos domésticos e o que havia
acontecido com seus pais.

Virei a esquina da sua rua quarenta minutos antes do sinal bater na


escola. A vi sentada na calçada. Usava botas curtas, exibindo as panturrilhas
grossas. Lucy não era magra como Mikaela, Filippa ou a maioria das garotas
que eu conhecia. Era uma graça, toda linda e curvilínea.

Parei o carro e me estiquei para abrir a porta do carona. Só quando ela


entrou no carro me dei conta de que tinha colocado o caderno e o celular
sobre o banco. Na pressa para tirar dali, deixei o aparelho cair próximo aos
meus pés. Me estiquei para alcançá-lo, parecendo um idiota, e com isso perdi
toda a coragem de falar as coisas que havia pensado.

Seu cabelo castanho estava preso em uma trança que caía sobre o
ombro. Como uma garota podia ser tão adorável?
Ela colocou a mochila entre as pernas e puxou a barra do vestido até
cobrir os joelhos, parecia quase tão tímida quanto eu. Quando descemos do
carro no estacionamento da Agaton Gymnasieskola, imaginei como ela
reagiria se entrelaçássemos nossos dedos, mas me contentei em apoiar a mão
nas suas costas enquanto caminhávamos.

Foi quase o melhor dia que eu já tinha passado na escola. Mesmo que
eu não tivesse dito tudo que planejei, mesmo que as pessoas me olhassem
mais que de costume, tê-la comigo já era o suficiente.

Sentamos juntos durante as aulas. Dava para ver as cabeças se virando


para nos olhar sempre que trocávamos algumas palavras. Me perguntei se era
tão estranho assim eu estar com uma garota. Talvez não fosse só meu pai que
pensasse que eu era gay. Mesmo que fosse isso, não era educado da parte
deles estarem tão curiosos.

No almoço, escolhemos uma mesa afastada. Tudo parecia perfeito, até


que duas garotas se aproximaram sem serem convidadas.

— Está saindo com Lucy, Axel? Desse jeito vai estar em um caixão
antes da formatura — uma delas falou, fazendo Lucy ficar vermelha.

— Tal mãe, tal filha — a outra disse.

Lucy empurrou a cadeira e saiu correndo.

Sem pensar duas vezes, peguei nossas mochilas e fui atrás dela.

Demorei a encontrá-la porque não sabia bem onde procurar. Comecei


pelo pátio, com medo que ela tivesse ido se esconder no banheiro feminino,
onde eu não poderia entrar. Acabei lhe achando escondida atrás das
arquibancadas do ginásio.

Foi a primeira vez que a senti nos meus braços. O jeito como ela
chorava, o rosto contra o meu peito, falando como não era justo tudo o que
falavam dela... fez meus problemas e minhas crises de ansiedade se tornarem
muito distantes.
Eu estava diante de alguém com a qual a vida não estava sendo justa,
ainda assim não revidava. Precisava falar algo que a animasse, mas não sabia
o quê.

A curiosidade de saber porque ela morava com seus tios só aumentava.


Me sentia cada vez mais babaca por não ter me aproximado antes. Sabia que
algo tinha acontecido entre seus pais, e isso estava afetando muito sua vida,
mas ela não queria falar a respeito, e eu não poderia insistir.

Lucy entrou no meu quarto com aquele sorriso sem graça. Eu queria
agir naturalmente, mas não conseguia controlar os batimentos.

— Ainda está a fim de me ajudar a estudar? — ela quis saber.

— Claro. — Fechei o caderno, onde estava começando a compor uma


música inspirada nela. Não queria que ela visse ainda. Não tinha certeza se a
deixaria ouvir nem quando estivesse pronta. — Senta aqui.

Levantei da cadeira giratória e fui até a cama, onde nosso cachorro


cochilava.

Quando ela se sentou e seu vestido florido subiu de leve, revelando


metade da coxa, meu coração quase explodiu. Encarei a pele macia por um
segundo, engolindo a saliva, e me perguntando como seria tocá-la, sabendo
que aquela visão me perseguiria depois.

— Por qual matéria quer começar? — perguntei por entre os dentes.

Lucy não percebeu. Começou a se balançar lentamente enquanto


falava. O quarto parecia ter ficado pequeno demais, sufocante.

— Tanto faz. Vou mal em todas.

Mal conseguia escutá-la.


— O segredo é ler, sempre revisar o que foi estudado, treinar seu
cérebro para armazenar informações — falei num tom robótico.

— Não tenho muito tempo para ler — ela disse sem saber o quanto
ficava maravilhosa assim, jogada na cadeira, movimentando as pernas mais
desejáveis que eu já tinha visto.

— É nosso último ano. Você precisa se dedicar, colocar os estudos


como prioridade.

— Vamos revisar a matéria de Biologia, então — ela sugeriu.

Me arrastei até me apoiar na cabeceira, abri o livro e comecei a


procurar o assunto que precisávamos revisar. Então ela levantou-se e veio se
acomodar ao meu lado, na cama.

Senti um arrepio na espinha, um comichão lá dentro. Ela estava tão


empenhada em me provar que não conseguiria aprender que não se deu conta
de que seu vestido estava escorregando pelas coxas, quase chegando ao seu
quadril.

Me concentrei no livro que, por muita, muita, muita sorte mesmo,


estava sobre meu colo, escondendo o desejo que sentia por ela. Comecei a
ler, explicando vagamente, tentando me concentrar, esperando que a ereção
passasse.

Perguntei se Lucy estava conseguindo entender e ela me pediu para


repetir a última parte. Acabei mudando de assunto. Falei um pouco sobre
mim, mas evitando encará-la, por medo que meu coração parasse. No
nervosismo, acabei falando que meu pai achava que eu era gay. Lucy pareceu
não se importar. Não consegui me decidir se isso era algo bom ou ruim.

Ela não ligava para o fato do meu pai ter imaginado que eu era gay ou
não se importava se eu realmente fosse?

— Mas eu não sou — tratei de esclarecer. Não queria que ela me visse
só como amigo.
Senti que o fogo tinha abrandado. Enquanto ela continuava falando,
tirei o livro do colo e me virei na sua direção, a olhando com uma coragem
que não imaginava que tinha.

Será que ela não conseguia perceber o quanto eu gostava dela?

Se eu tivesse bebido um pouco, poderia falar sem rodeios. Mesmo


assim, beijá-la não parecia tão difícil agora. Ela estava tão perto que podia
sentir seu cheiro doce.

Mas Esther Peter entrou no quarto e começou a insultar Lucy como se


estivéssemos trepando como animais.

— Só estávamos estudando — falei me levantando da cama. — Não


estávamos fazendo nada demais.

— Nada demais! — a mulher grunhiu na minha direção.

— Não se meta — Lucy implorou. — Pelo amor de Deus, não se meta!

Fiquei parado enquanto Esther Peter a levava do quarto. Theodoro


saltou da cama e as seguiu. Eu sabia que elas iriam para a cidade. Corri para o
banheiro, tirei as roupas e tomei o banho mais eficiente e rápido da história,
vestindo uma roupa limpa, escovando os dentes e descendo as escadas em
menos de cinco minutos, enquanto aproveitava e ligava para Lucy.

As alcancei no ponto de ônibus e ofereci carona. A tia orgulhosa não


queria aceitar, mas sua sobrinha entrou no carro sem cerimônia.

O clima estava pesado. Elas ficaram em um silêncio que só foi


quebrado pelo ronco do estômago de Lucy.

Me doeu saber que ela provavelmente não tinha comido nada desde o
almoço na escola, só para fazer o trabalho depressa e poder estudar.

— Vamos sair e comer alguma coisa? — convidei quando chegamos à


sua casa. — Sei que está com fome. Você escolhe o lugar.
— Não posso — ela respondeu com melancolia.

Tentei insistir, dizendo que ela poderia escolher o que queria comer,
mas Lucy me disse que preparava o jantar todas as noites, porque a tia
chegava cansada.

E quanto a Lucy? Estudar e trabalhar não era muito mais cansativo?

— O que seus tios fazem com você?

Lucy não respondeu, mas sei que a pergunta a abalou.

Meu pai estava em uma reunião com outros fazendeiros de Agaton e


não podia conversar comigo naquela noite, por isso procurei Steven.

— Passei um tempo com Lucy — contei sem rodeios.

Steven arqueou as sobrancelhas. Sua cabeça careca brilhava com a luz


amarelada do seu escritório. Ele prestava serviços de edição de vídeos para
alguns músicos da região, e mexia no computador enquanto falávamos.

— Sério? E como foi?

— Ofereci carona para a escola e ela aceitou. Passei o dia inteiro com
ela.

— Conseguiu? Depois de tanto tempo. Por que a cara de poucos


amigos? Ela não é como você pensava?

— Não é isso. Lucy é muito melhor do que eu imaginava, mas acho


que seus tios a maltratam.

— Tipo... batem nela? — Steven girou a cadeira até ficar de frente para
mim. — Isso é muito grave, cara.
— Não sei se eles chegam a bater nela. Mas não a tratam bem. Ela tem
que ajudar a tia quando chega da escola, depois precisa fazer o jantar todas as
noites. Ela não deveria descansar e estudar?

— Você acha que eles a exploram?

— Talvez. Esther Peter não a trata nada bem, e Lucy parece ter medo
do tio. Não estou falando de ter respeito, estou falando de ter medo.

— Isso não parece normal. Mas se eles agredissem, você não acha que
um vizinho já teria chamado a polícia?

— Não sei — falei e fiz uma pausa. Pensar naquilo, saber que eu não
tinha certeza de nada, me deixava de estômago embrulhado. — Mudando de
assunto, se eu gravasse uns vídeos dela, você editaria para mim?

— Claro. Qual a ideia?

— Ainda estou pensando a respeito. Acho que ficaria legal se exibisse


como um vídeoclipe em uma música que estou remixando.

— Um remix novo?

— É.

— Vai dar tempo de preparar para a próxima apresentação no sábado?

— Está quase pronto — garanti.

— E o que vai usar para gravar os vídeos dela?

Tirei o celular do bolso e balancei.

— Isso.

— Não prefere pegar minha câmera emprestada?

— Primeiro vou falar com Lucy, saber se ela vai me deixar filmá-la.
— Ela é muito linda. Digo, pelas fotos que você me mostrou. Vai ficar
legal, seja lá o que esteja planejando. Compôs mais alguma coisa?

— Estou trabalhando nisso também.

— E quanto a sua mãe. Já contou a ela que não vai ser o médico da
família? — ele perguntou dando risada, já que não era o dele que estava na
reta.

— Ainda não. Estou procurando o momento certo.


Preparei um jantar rápido, como prato principal uma salada simples de
batatas. Engoli a comida e corri para meu quarto com uma ferramenta
escondida dentro do vestido.

Meu tio roncava no sofá da sala. Tia Esther me prometeu que não
contaria nada, desde que eu não fosse uma ameaça ao seu emprego. Dei
minha palavra de que aquilo não se repetiria.

Dentro do quarto, arrastei minha cama até colocá-la na frente da porta,


para impedir que ela não fosse aberta. Era assim que eu fazia sempre que
precisava de privacidade, já que eles não me deixavam ter uma chave.

Dominada por um sexto sentido, me apoiei na janela, tirei uma serra


pequena de dentro do vestido, que eu tinha roubado da gaveta de ferramentas
de Alan Peter, e comecei a serrar o canto inferior direito da grade que
protegia a janela do meu quarto.

Levei mais de uma hora para conseguir serrar o primeiro lado que
prendia a grade à parede. O segundo lado demorou ainda mais, já que meus
dedos ficaram machucados. Mas não desisti. Usei toda minha força.

Sorri satisfeita quando acabei o trabalho. Conseguia empurrar a grade


por alguns centímetros suficientes para que eu pudesse passar pelo espaço.
Depois a coloquei de volta e amarrei as partes serradas com tiras de borracha
da mesma cor da grade. Ninguém perceberia.

Meu corpo estava exausto quando empurrei a cama e me arrastei até o


banheiro. Tinha sido um dia longo e eu não via a hora de cair nos lençóis.
Após o banho, vesti uma legging e uma camiseta velha, penteei meus cabelos
e me enfiei embaixo do cobertor. Só então me permiti pensar sobre os
acontecimentos do dia. Me perguntei o que teria acontecido se tia Esther não
tivesse nos interrompido.

Cantarolando uma baladinha romântica, peguei meu celular e abri o


WhatsApp, coloquei na foto de perfil de Axel e fiquei a olhando, imaginando
adormecer vendo seu rosto. Deslizei as pontas dos dedos pela tela e ouvi o
som do toque do celular. A princípio imaginei que eu tinha ligado para ele
sem querer, mas logo entendi que era Axel que estava me ligando.

— Uma vez li numa revistinha, dessas de relacionamento, que se um


cara só te liga depois da meia noite é porque ele não quer nada sério com
você — foi a primeira coisa que falei ao atender.

— Te liguei mais cedo, só que você não atendeu — Axel se defendeu.

— É que estava ocupada levando bronca da minha tia — falei sentando


na minha cama com o coração na mão. Como eu tinha a capacidade de falar
as coisas sem pensar daquele jeito? — O que está fazendo? Você não dorme?

— Acabei de chegar da casa de um amigo — Axel disse e eu pude


ouvir sua risada. — É por isso que meu pai acha que sou gay. Até tarde
ensaiando na casa dos amigos.

Eu ri também, baixinho, claro.

— E você, o que está fazendo?

— Me preparando para dormir.


— Fez o jantar? — ele quis saber.

— Fiz sim.

— O que preparou?

— Salada com as batatas que tia Esther trouxe da sua fazenda —


expliquei. — Nada muito sofisticado.

— Aposto que estava muito boa.

— E o que você jantou? — foi a minha vez de perguntar.

— Pizza.

— Aposto que estava muito boa — falei usando suas palavras,


tentando não pensar em uma deliciosa fatia cheia de queijo.

— Você teria gostado — ele disse e fez uma pausa. — Liguei para
perguntar se você não quer dar uma volta. Mas deixa, já sei o que vai me
dizer.

— Eu quero! — falei com convicção.

— Sério? — Axel pareceu incrédulo.

— Seríssimo. Vou fugir pela janela.

— Estou na fazenda. Chego aí em vinte minutos.

— Espera na esquina. Não quero que ninguém te veja.

Ele desligou e eu pulei da cama. Calcei as botas, vesti um suéter que


tinha sido da minha tia e que cobria meu quadril. Fiz uma trança nos cabelos
e dei duas borrifadas de perfume no pescoço, onde esfreguei os pulsos.
Enrolei um edredom e coloquei na cama para imitar meu corpo, em seguida o
cobri com o cobertor. Parecia bem tosco, mas era tudo que eu tinha no
momento.
Tirei as tiras de borracha e empurrei a grade. Quase fiquei presa, mas
acabei passando. Escondi as tiras na grama crescida e me esgueirei pelas
sombras até a calçada, onde uma mini van estava parada. Quase dei meia
volta, mas tomei coragem e me aproximei. A porta do carona se abriu e eu
entrei depressa. Respirei aliviada quando o vi atrás do volante.

— Serrei as grades da minha janela — confessei.

— Há grades na sua janela?

— Aqui é uma das piores áreas de Agaton. Meu tio colocou grades em
todas as janelas. Mas agora elas não são mais problema. Roubou um carro?

— É do meu pai. A gente só usa quando sai para pescar.

— Ah — sussurrei me movendo no banco e sentindo dor no corpo


cansado.

Axel deu partida, dirigiu para fora da cidade e pegou uma estrada
estreita, que dava para o topo de uma colina. Lá em cima, ele estacionou a
poucos metros do abismo, com a traseira do carro virada na direção da
cidade.

— Vem — ele me chamou ao desligar o motor.

Se contorcendo, Axel passou para o banco de trás. O segui e me


deparei com a ausência de bancos na traseira do automóvel. Em seus lugares
havia um colchão, vários cobertores e travesseiros que formavam uma cama.

Com os olhos pesados de sono, me sentei com as pernas dobradas e o


observei abrir a porta traseira da Van, assim, de onde estávamos podíamos
ver as estrelas e as luzes da cidade.

— Quer conversar? — Axel perguntou.

— Sobre o que?

— Seus pais, seus tios…


— Não — falei com sinceridade. — Foi um dia cansativo. Não quero
conversar sobre isso.

— Tudo bem.

Ele se acomodou com as costas apoiadas nos travesseiros e olhou para


o céu. Me perguntei como seria estar no seu lugar, ter uma família que o
amava, ser inteligente, ter uma casa confortável, carros para sair a hora que
quisesse, dinheiro. Não sentia inveja, era só curiosidade de saber como era.
Ter um porto seguro, alguém para abraçar, um futuro decente e apoio.

A última coisa que queria pensar era sobre meu futuro. Só de relembrar
as palavras da minha tia, sobre eu ser bonita e que poderiam ganhar um bom
dinheiro com isso, já me fazia sentir nojo.

Meu coração doeu e meus olhos queimaram.

— Posso encostar a cabeça no seu peito? — perguntei e ele esticou a


mão para me puxar.

Foi uma das melhores sensações do mundo deitar ao lado do seu corpo
e sentir o calor dos seus braços em volta de mim.

— Já trouxe muitas garotas aqui? — sondei.

Axel riu.

— Você é a primeira, já que minha irmã não conta.

— Você vinha aqui com sua irmã? — perguntei curiosa.

— Foi com ela que descobri esse lugar. Quando Leonora entrou para a
faculdade, ela nos visitava nos feriados e vinha aqui nas noites de domingo,
antes de voltar para Malmö. Ela me trazia com ela, acendia um cigarro e
ligava o som do carro para ouvirmos música eletrônica, então me contava um
monte de histórias.
— Sua irmã parece ser muito legal.

— Ela era. Mesmo que eu fosse só um garoto, Leonora conversava


comigo como se tivéssemos a mesma idade. Até me deixava fumar. Foi com
ela que aprendi a gostar de música eletrônica, só que ela mudou depois que
conheceu o noivo. Parou de fumar, de ouvir esse tipo de música, virou adulta
e acabamos nos distanciando.

— Ela cresceu — comentei com um bocejo.

— Sei disso e entendo.

— Você tem sorte de ter nascido numa família amorosa — falei ciente
de que, se fechasse os olhos, não conseguiria abri-los novamente.

— Sou grato por isso — Axel disse. — E agora eu tenho você para
trazer aqui. Você é tão bonita, Lucy.

— Estou parecendo mais um espantalho com essas roupas — brinquei,


mas era verdade.

— Se existisse algum espantalho parecido com você, eu o roubaria para


mim — Axel disse e alcançou o iPhone no bolso da calça.

Ligando a câmera, ele começou a me filmar com a luz do flash acesa.


Ergui a mão para tapar meu rosto, só que ele a puxou para baixo. Irritada e
me divertindo ao mesmo tempo, acabei sorrindo enquanto olhava para a tela
por um segundo, só para me ver com a cabeça apoiada no seu peito.

Ele parou de filmar um pouco depois, então me mostrou o vídeo.

— Veja como você é incrível — Axel disse.

Mechas do meu cabelo escapavam em vários pontos da trança e minhas


bochechas estavam coradas, sem mencionar a cor do suéter velho que era
horrível.

— Apague isso! — exigi ao desviar os olhos do celular.


— Nunca — Axel me contradisse.

Ergui a cabeça do seu peito para encará-lo. Ele assistia meu vídeo com
os olhos brilhando.

Parecia um sonho que o garoto que eu mais admirava estava ali


comigo. Voltei a me apoiar no seu peito e fechei os olhos, consciente de que
poderia não conseguir abri-los novamente.

— O que você teria feito se minha tia não tivesse entrado no quarto? —
perguntei, mas não me lembro de ter ouvido a resposta. Acabei adormecendo.

Quando abri os olhos, senti que a cama balançava. Pisquei para um céu
alaranjado e me dei conta de que estava na Van em movimento. Me ergui
sobre o colchão e pulei para o banco da frente. O dia estava amanhecendo.

Axel dirigia com cara de quem tinha acabado de acordar. Chequei o


celular e vi que eram 6h17. Torci para chegar em casa antes da minha tia
acordar.

— Volto para te buscar às 7h30 — Axel disse quando parou na esquina


de casa.

— Estarei esperando — garanti e pulei do carro.

Prendi a respiração, enquanto corria para minha casa, e só voltei a


respirar quando estava dentro do meu quarto, aliviada por não ter sido pega.
Na quarta, após a escola, levei Lucy até a fazenda, fiz o retorno e voltei
para Agaton. Fazia planos de treinar a noite inteira no estúdio que Christer e
Filippa dividiam no centro da cidade.

Steven estava ocupado trabalhando, Mikaela tinha ido à Malmö, e


tínhamos o estúdio só para nós.

Levei meu violão e toquei para eles a primeira versão da canção que eu
estava compondo, inspirada em Lucy. Se chamava The Girl e tinha uma letra
que poderia ser cantada como dueto.

Filippa bateu palmas quando terminei de cantar. Seus olhos brilhavam.

— Está incrível. Quando pretende lançar? — Christer quis saber.

— Quero esperar um pouco, ver como as coisas vão acontecer até o


próximo verão.

— Foi inspirada em alguém? — Filippa perguntou curiosa, enrolando


uma mecha do cabelo encaracolado na ponta do dedo indicador. Ela, assim
como Christer, tinha um tom de pele negra muito bonito.

Christer era mais brincalhão, tirava sarro de tudo. Filippa era romântica
e muito atenciosa.
Dei de ombros, torcendo para meu rosto não ficar vermelho.

— Ainda não está pronta. Tem muita coisa que ainda quero trabalhar
— falei mudando de assunto.

— As garotas da cidade vão enlouquecer quando você cantá-la —


Christer comentou.

— Não sou eu quem vai cantar. Serão vocês — expliquei dando risada.
— Até parece que eu teria coragem. Escrevi já imaginando como ela ficaria
nas vozes de vocês.

— Ah, obrigada por pensar na gente! — Filippa veio me abraçar. Ela


passou os braços em torno dos meus ombros e me apertou, enlacei sua
cintura, mas o violão ficou entre nós. — Essa pessoa, para quem você
compôs, vai ficar muito apaixonada. Seja lá quem for.

Notei que ela falou pessoa em vez de garota. Mais uma que também
devia apostar que eu era gay.

— Ax, você está vibrando — ela disse me soltando.

— É meu celular.

O tirei do bolso e vi que minha mãe estava ligando. Precisei respirar


fundo e atender. Uma ligação dela geralmente não significava boas notícias.

Coloquei o violão no chão e saí para a sala ao lado.

— Oi, mãe.

— Onde está? Preparei um jantar especial e você não está em casa.

— Estou no centro de Agaton ensaiando. Pensei em pedir alguma coisa


e comer por aqui.

— Ensaiando para quê? Vem para cá, filho. Preciso aproveitar. Só


tenho mais alguns meses com você em casa.
— Mãe... — tentei argumentar, mas sabia que ela não levaria em
consideração meu trabalho enquanto não tivéssemos uma conversa séria.

— Venha depressa! — ela exigiu antes de desligar.

Voltei a sala onde meus amigos estavam e, sem nenhuma animação,


expliquei que tinha um assunto para resolver. Saí do prédio onde ficava o
estúdio, peguei o carro no estacionamento e segui na direção sudoeste, onde
peguei a estrada Nytt Fält, que recebera aquele nome graças às terras que
foram desmatadas para o cultivo de cereais. Sete quilômetros depois, eu
estava chegando em casa.

Minha mãe me viu entrar. Esperou que eu subisse para guardar meus
instrumentos.

— Até esse cachorro sente sua falta — ela disse do sofá, passando o pé
na barriga de Theodoro. — Vocês costumavam correr toda as tardes, depois
da escola.

— Vou fazer isso após o jantar — me defendi. — Vem, Theodoro.

Ele pulou sobre meu colo e começou a me lamber. Brinquei com ele
enquanto minha mãe se levantava e seguia na direção da sala de jantar. As
luzes automáticas se acenderam quando ela entrou.

— Onde está meu pai? — perguntei me levantando e a seguindo.

— Leonora precisava de alguns medicamentos que não encontrou em


Malmö, então ele foi até Lund tentar encontrar. Se conseguisse, ia levar para
ela.

— Ah — murmurei. Minha irmã tinha uma clínica veterinária.

Minha mãe abriu o forno e tirou de lá uma travessa com um salmão


assado fumegante, decorado com vários legumes.

— Quer ajuda? — perguntei sentindo o cheiro delicioso do peixe.


— Não, querido. Já arrumei a mesa.

Nos sentamos nos lugares habituais e começamos a nos servir da


salada.

— Preciso conversar sobre um assunto sério — falei quando já estava


terminando de comer o salmão, ciente de que se falasse sobre aquilo antes
perderia o apetite.

Ela parou sua conversa sobre a barco novo que os Gustafsson haviam
comprado, e me olhou com atenção.

— Sei que você não leva meu trabalho como DJ a sério, que não
acredita que eu posso ir além... — Respirei fundo antes de dar a declaração.
— Não vou fazer faculdade de medicina, como você sempre sonhou. Não
vou fazer nenhuma faculdade. É com música que vou continuar trabalhando.

Ela me encarou como se eu tivesse lhe dado um tiro e ainda estivesse


apontando a arma para sua cabeça. Seus olhos estavam vidrados. Demorou
um tempo até as lágrimas começarem a rolar.

Os talheres ficaram suspensos no ar, suas mãos tremiam. Não queria


magoar minha mãe assim, mas aquele não era meu sonho, era o dela. Eu não
poderia continuar omitindo minha decisão, mesmo que doesse, dizer a
verdade de uma vez era melhor.

— Você não pode e não vai fazer isso comigo! — ela falou furiosa. —
Seu futuro está traçado, você será um excelente médico. Não estrague meu
jantar com essa besteira de música!

— Mãe, não vou ser médico — falei mais sério dessa vez.

Ela largou o garfo e levou a mão ao rosto quando percebeu que eu não
estava de brincadeira, me olhando como se eu fosse um assassino. A faca
ainda permanecia na sua mão.

— Meu filho querido não vai realizar meu sonho? É isto que está me
dizendo?

— Percebe o que está dizendo? É o seu sonho, não o meu — falei com
gentileza.

— Não quero saber! — ela gritou, gesticulando com a faca na minha


direção antes de se levantar.

Alcançou o celular no balcão e fez uma chamada.

— Elton, seu filho quer me matar — berrou para o telefone, ainda


balançando a faca. Notei que ela disse seu filho em vez de nosso. Então
colocou o celular no viva-voz.

— O que você fez a sua mãe, Axel? — ouvi meu pai perguntar
paciente.

— Ele me disse que não quer ser médico! — ela não esperou que eu
respondesse. — Que vai se aventurar com essa porcaria de música.

— Ei! — reclamei. — Não chame minha música de porcaria.

— Cecília, a vida é dele, não nossa — meu pai disse. — Não podemos
controlar suas escolhas.

— Então você já sabia — minha mãe disse parecendo ainda mais


ferida. — Isso é exclusivamente culpa sua. Me fez assinar aquela maldita
emancipação, só para nosso filho tocar naquelas espeluncas!

— Não são espeluncas. Ele toca no melhor clube de Agaton — ele


argumentou.

— Se deixam um garoto de dezessete anos se apresentar, é uma


espelunca sim!

Magoava saber que ela pensava assim, que minha mãe não conseguia
me ver como alguém que tinha vontade própria, que ela não me daria nenhum
apoio se eu não seguisse de acordo com seus planos.
— Não precisa falar assim — comentei com o tom de voz baixo.

— Não menospreze assim o nosso filho, só porque ele não é um


fantoche que você gostaria de manipular.

— Traidor!

— Ele vai correr atrás dos seus sonhos. Nem você nem eu podemos
decidir isso por Axel. Nosso dever é apoiá-lo no que ele escolher.

— Me poupe dessa baboseira! — ela disse e desligou na cara do meu


pai. Foi até a mesa e arremessou a travessa de salmão contra o balcão,
fazendo com que vários utensílios voassem para o chão e se quebrassem.

Sabia que ela iria ficar chateada, mas não pensei que teria um surto
daqueles.

Me levantei, fui até a área onde ficavam os produtos de limpeza, peguei


uma pá e uma vassoura, voltei a copa e comecei a juntar os cacos de vidro.
Ela estava com as mãos apoiadas na mesa, ainda me encarava com olhos
vidrados, mas se retirou enquanto eu limpava.

Ao terminar, troquei de roupa e levei Theodoro para uma corrida.


Quando retornamos, meu pai já tinha voltado e as coisas estavam mais
calmas em casa.
Na terça e quarta não aconteceu nada de extraordinário. Fui de carona
para a escola com Axel, nos sentamos juntos no almoço e comemos,
enquanto ele tentava enfiar um pouco de conhecimento na minha cabeça
dura.

Na fazenda Hansson, me mantive afastada do seu quarto e as coisas se


saíram bem.

Axel estava ensaiando muito para a próxima apresentação no clube


Sensations, por isso só nos víamos na escola.

— E aí, Axel? — cumprimentou um rapaz atlético da nossa turma.

Estávamos carregando nossas bandejas para uma mesa vazia. Eu o


seguia e vi quando o garoto encostou o ombro no dele como se fossem
melhores amigos, me bloqueando.

— E aí? — Axel respondeu.

— Quer se sentar na nossa mesa? Temos uma vaga.

Eu não era invisível, ele tinha me visto atrás de Axel, mas fez questão
de dizer que só havia um lugar disponível. Fechei a cara na hora.

— Vou me sentar com Lucy — Axel disse e virou para a esquerda, sem
ao menos agradecer o convite.

Apressei o passo para alcançá-lo e coloquei a bandeja sobre a mesa.

— Perdeu a chance de sentar com os populares — comentei ao me


acomodar na cadeira ao seu lado.

Ele revirou os olhos azuis de um jeito que me fez suspirar.

— Posso te pegar depois que seus tios dormirem para a gente dar uma
volta? — ele quis saber.

— Eu adoraria — respondi empolgada.

Comecei a comer e, quando ergui os olhos do prato, ele estava me


filmando. Tentei arrancar o celular da sua mão, mas fracassei.

— Para! — exigi bem séria. — Apaga isso.

— Você se importa se eu montar um vídeo com essas cenas?

— É claro que me importo — falei. — Por que você montaria um


vídeo meu?

— É uma coisa para minhas apresentações, mas é surpresa. Por favor,


Lucy!

— Tudo bem — acabei aceitando, porque Axel era fofo e não dava
para negar algo a ele.

Recebi como gratidão aquele sorriso lindo de covinhas que fazia meu
coração disparar.

Mas então nossa mesa foi invadida por sete estudantes que se sentaram
sem serem convidados. Três garotas e quatro rapazes. Um deles era o que
tinha convidado Axel para sentar com eles.

Começaram a conversar com ele como se eu não estivesse ali. Uma das
meninas puxou o celular da mão de Axel e começou a tirar selfies.

— Tenho que fazer uma pesquisa na biblioteca com Lucy — Axel


disse ao pegar seu iPhone de volta e se levantou, alcançando sua mochila da
Nike que estava pendurada no encosto da cadeira.

Peguei minha mochila velha e fiquei de pé.

— Bonito o seu vestido, Lucy — uma das garotas falou. A olhei, já


imaginando que ela estava debochando, mas vi que ela usava o cabelo do
mesmo jeito que eu tinha usado na segunda, e estava com um vestido florido.

Franzi o cenho ao notar a semelhança com meu estilo.

Naquele dia eu usava um vestido jeans com elástico na cintura, sem


mangas, que exibia meus joelhos, com uma blusa de malha com estampa de
margaridas por dentro. Meu cabelo se dividia em duas tranças que estavam
jogadas sobre meus ombros.

— Obrigada — respondi bem séria, ainda sem acreditar no que tinha


visto.

Axel colocou a mão na minha coluna e me guiou para longe do


refeitório, na direção do pátio.

— Você está esnobando a elite do colégio — comentei.

— Eles só estão falando comigo porque estou me saindo bem como DJ


— ele disse.

— É impressão minha ou aquela garota estava tentando me copiar?

— Ela sempre faz isso. Você nunca percebeu?

Caminhamos até a escada que dava para o pátio. Estava vazia.


Descemos dois degraus e Axel parou. Fiquei o observando abrir a mochila e
pegar uma câmera profissional.
— Um amigo me emprestou — ele explicou antes de ligá-la.

Cruzei os braços, parada na escada, com as bochechas coradas e a


respiração entrecortada. Olhei através da porta de vidro, para o pátio vazio lá
fora. Ouvi o barulho do zoom da câmera quando a lente se aproximou do meu
rosto. Mordi o lábio, me permitindo ser filmada, já que parecia tão importante
para ele.

— Você é muito linda — Axel sussurrou, passando o polegar pela


minha bochecha.

— Obrigada — sussurrei de volta, olhando para a lente.

— Não precisa agradecer. É a verdade. Por isso que as garotas tentam


te imitar, Lucy. Você não precisa fazer nada para chamar atenção além do
que já faz, você é bonita sem nenhum esforço.

Meu coração estava no céu da boca com as suas palavras.

Pensei em dizer que usava aqueles vestidos folgados exatamente


porque não queria chamar a atenção para meu corpo. Só que eu não queria
estragar o momento.

— Você também é bonito — falei isso pela primeira vez. Ele pareceu
levar um choque com as minhas palavras. — Quando você sorri e as covinhas
aparecem nas suas bochechas, eu fico boba te olhando.

Enfiei a mão na mochila e alcancei meu celular, liguei a câmera e puxei


a dele para longe do seu rosto, então comecei a filmá-lo. Axel se afastou, até
estar com as costas contra a parede, e olhou para os próprios tênis com o
rosto vermelho. Ele parecia querer implorar para que eu parasse.

— Suas sardas são lindas — cochichei me aproximando com a câmera


focada no seu rosto. Estiquei a mão livre e fiz carinho na sua bochecha,
sentindo a aspereza da barba por fazer. — Olha para mim, Ax.

Ele deu aquele sorriso tímido e ergueu o olhar lentamente. As esferas


azuis estavam brilhando. Fiquei desconcertada. Abaixei o celular e continuei
o encarando, até que ele desviou o olhar para meus lábios e engoliu a saliva.

Demorou alguns instantes até eu me dar conta de uma coisa. Eu queria


que Axel me beijasse. Queria naquele momento. Arregalei os olhos com o
pensamento. Era a primeira vez que uma ideia como aquela se passava pela
minha cabeça.

Dei um passo à frente e engoli a saliva também. Se eu me esticasse na


ponta dos pés, poderia apertar meus lábios contra os dele. Mas se Axel não
quisesse isso? Se ele me afastasse? Eu morreria de vergonha.

Ele estava encurralado contra a parede e não parecia nada à vontade.

Eu não teria coragem de beijar. Olhei para nossos pés e tentei


compreender as coisas, mas eu não sabia o que ele queria.

Ouvi o ruído do zoom novamente e olhei para a câmera focada no meu


rosto. Coloquei o celular na mochila e estiquei a mão para pegar a dele; a
apertei bem forte, entrelaçando nossos dedos, observando como o tom da
minha pele ficava em contraste com a sua.

Comecei a puxá-lo pelos degraus até sairmos no corredor. Axel


continuava me filmando, focando em nossas mãos dadas. Sorri para a lente e
empurrei a porta do banheiro masculino, sabendo que ele não me
acompanharia no feminino. Lá dentro, soltei sua mão e abri a mochila para
procurar um batom líquido cor de rosa. O passei diante do espelho com
manchas de corrosão.

O sinal estava tocando quando guardei o batom. Peguei sua mão e o


puxei para fora. Caminhamos pelos corredores de mãos dadas, com Axel
ainda fazendo o vídeo, até nossa sala. Passamos pelas três garotas que tinham
se sentado com a gente. Elas ficaram nos olhando e sussurrando de uma para
a outra. Quando ocupamos nossos lugares, ele desligou a câmera e a guardou.

O professor logo estava na sala, começando a copiar a matéria. Tirei o


caderno e tentei acompanhar a explicação. Então meu celular vibrou com
uma nova mensagem. Era de Axel.

Desbloqueei a tela depressa para ler.

“É uma merda ser tímido” Axel tinha dito.

O professor olhou na minha direção bem na hora, escondi o celular


com o caderno e franzi o cenho. Na primeira oportunidade, respondi com
emojis de interrogação, sem saber o que ele queria dizer com aquilo.

Uma nova mensagem chegou.

“Eu queria ter te beijado”.

Fiquei imóvel encarando a tela do celular com olhos arregalados.

“Nas escadas” Axel explicou.

Os segundos se passaram, se transformaram em minutos, e eu ainda


estava paralisada. Senti a ponta do seu tênis cutucar minha panturrilha, então
forcei meus dedos a responderem.

“Eu queria que você tivesse me beijado”.

Alan Peter tinha transformado a sala de casa em um salão de jogos,


onde uma nuvem de fumaça contaminava quem passasse por perto. Havia
cinco homens com ele. Estavam comendo pizzas e brigando entre si. Meu
estômago estava quase colado nas costas de tanta fome, mas não tive
coragem de entrar no meio daqueles nojentos para pegar uma fatia de pizza,
por mais que estivesse morrendo de vontade.

Me esgueirei para a cozinha, praticamente toda a louça da casa estava


amontoada na pia. Fiz uma careta ao ver aquilo, mesmo que tia Esther ficasse
furiosa, eu não ia lavar. Não ficaria na cozinha com aqueles escrotos pela
casa. Enquanto procurava na geladeira o que podia usar para fazer um
sanduíche, vi que cartas de baralho voavam e alguém tinha levado um soco.

Me apressei em ir para meu quarto. Puxei a cama até bloquear a porta e


tirei minhas roupas. Alan Peter sabia como transformar a casa em um
chiqueiro.

Comi o sanduíche no chão do quarto, pensando em dar uma geral no


meu guarda-roupas, mas estava exausta. Me deitei na cama para descansar
cinco minutinhos e acabei pegando no sono. Acordei com o celular vibrando
embaixo da minha bochecha. Era Axel.

— Oi — sussurrei ao atender.

— Estava dormindo?

— Acabei cochilando depois que cheguei da sua casa.

— Estou na esquina da sua rua. Seus tios já dormiram? — Axel


perguntou.

— Acho que sim. — A vontade de vê-lo me fez pular da cama,


eufórica. — Me dá quinze minutos?

— Claro. Não vou sair daqui.

— Não demoro, mas tome cuidado, aqui é um bairro perigoso! — o


adverti antes de desligar.

Afastei a cama da porta e espiei pelo corredor escuro. Estava


silencioso. Corri para o banheiro, sendo recepcionada por bitucas de cigarro e
pinos de cocaína. Se Axel entrasse na minha casa em um dia como aquele, eu
morreria de tanta vergonha.

Mesmo com a bexiga cheia, ignorei o vaso, me recusando a sentar


naquela nojeira cheia de respingos que os vagabundos amigos de Alan Peter
deixavam. Tomei um banho rápido, escovei os dentes de olhos fechados para
não vomitar, e corri de volta para meu quarto. A casa de quatro cômodos
ainda estava em silêncio.

Joguei a toalha no chão e, ainda nua, dei uma borrifada do meu


perfume em cada orelha, esfregando os pulsos logo em seguida. Vesti a
primeira calcinha que encontrei, calças de moletom quentinhas, uma camiseta
regata e um suéter velho e comprido. Prendi o cabelo no alto da cabeça e dei
uma rápida olhada no espelho, eu estava horrorosa. Axel ia agradecer por não
ter me beijado quando me visse, mas pelo menos tinha ficado aquecida, já
que estava ouvindo trovões.

Olhei pela janela e vi os primeiros pingos caírem. Calcei minhas


galochas vermelhas e me espremi pela grade serrada ao som do ronco do meu
estômago.

Corri apressada pela calçada, sem me importar em tentar me esconder


nas sombras, sendo atingida pelos pingos de chuva. Quando me aproximei da
mini van, a porta do carona se abriu. Meu peito estava explodindo com as
batidas violentas do meu coração quando olhei para Axel. Ele deu aquele
sorriso tímido de covinhas que esvaziou minha mente por um momento.

— Oi — sussurrei com a respiração falhando.

— Oi, Lucy — ele respondeu dando partida, sem parecer notar o


desastre fashionista que eu era.

O aquecedor do carro estava ligado e logo senti calor. Me estiquei para


tirar o suéter e, só depois que fiz isso, percebi que estava sem sutiã, mas não
ia vestir de volta.

— Para onde vamos? — perguntei ao perceber que seguíamos rumo ao


centro de Agaton.

— Sua barriga está roncando — Axel comentou. — Vamos comer


alguma coisa. Sem desculpas.

Envergonhada, coloquei o suéter em cima do meu estômago para


abafar um possível novo ronco.

Fiquei em silêncio quando ele parou a van no estacionamento de uma


lanchonete aberta. A chuva caía mais forte agora. Axel alcançou um casaco
de lona na parte de trás do veículo, o vestiu e colocou o capuz antes de sair
do carro.

Enquanto ele se afastava, repensei sobre o quanto gostava daquele


rapaz. Se Axel não me beijasse essa madrugada, eu o beijaria, já que ele tinha
dito que queria isso.

Além da minha mãe, ele era a única pessoa que demonstrava se


importar em dezessete anos.

Com a chuva e a gritaria de pensamentos, levei um susto quando ele


abriu a porta do motorista e entrou carregando dois sacos de plástico. Ele os
abriu e colocou oito cheeseburgers sobre uma bandeja de papelão. Do outro
saco, ele tirou uma embalagem de isopor com uma porção de batatas fritas e
dois copos grandes de refrigerante.

Não falei nada, simplesmente alcancei um cheeseburger e dei uma


mordida, enquanto Axel abria as embalagens de catchup e mostarda. Se ele
tinha comprado aquela comida para mim, por que fazer cerimônia?

Senti um pouco de ânsia quando a comida gordurosa caiu no meu


estômago vazio, mas ignorei a sensação. Continuei comendo sem bons
modos, intercalando mordidas de cheeseburgers, goles de refrigerante e
punhados de batatas fritas cobertas com catchup.

Eu já estava acabando o quarto sanduíche quando olhei para a bandeja


e vi que Axel ainda estava no segundo.

— Você vai comer esses dois? — perguntei sem pensar direito.

— São seus — ele disse e ergueu a mão para limpar meu queixo com
um guardanapo de papel.
Pisquei os olhos como se acordasse de um cochilo, me dando conta do
quanto devia ser ridículo me ver comendo, sempre com pressa.

— Não sei comer como uma dama, não sei me sentar como uma dama,
não sei agir como uma, então não me olhe assim — resmunguei.

— Você não faz ideia da satisfação que é te ver comendo.

— Minha tia tem razão, sou mesmo uma morta de fome.

— Não é feio sentir fome, Lucy. Feio é recusar comida quando se está
com o estômago vazio.

— Você é um grande filósofo — brinquei antes de alcançar o quinto


cheeseburger. Comi o resto em silêncio, enquanto Axel dirigia para o topo da
colina. Quando chegamos lá, eu estava com a barriga prestes a explodir, mas
feliz.

Axel me ofereceu um chiclete de menta e aceitei. Ele enfiou dois na


boca e respirou pesadamente.

— Eu fiz uma coisa que preciso te contar, mas não quero que fique
brava comigo.

— Diga — murmurei com a pulsação acelerada.

— Vem — Axel disse passando para a parte traseira da mini van.

O segui e me aninhei em alguns travesseiros, sem querer demonstrar


estar preocupada.

— Conversei com meu pai — ele começou, fazendo uma pausa que me
deu tempo para pensar em várias teorias. — Perguntei sobre o que aconteceu
com sua mãe.
Não se tratava mais de desejo pela garota. Eu estava fazendo um
esforço daqueles para passar por cima dos meus problemas de timidez e
continuar próximo de Lucy.

As pessoas na escola tentavam esnobá-la pelo simples fato de não


serem tão autênticas como ela. Alguns ainda tentavam se aproximar, puxar
conversa, mas ela não dava bola. Parecia só ter olhos para mim, o que era
demais. Não que eu quisesse que ela se afastasse de todos e convivesse só
comigo. Nada disso. Mas era legal saber que ela pensava como eu, até certo
ponto, e não se deslumbrava quando os populares da escola vinham nos
procurar.

Eu tinha pegado emprestado a câmera de Steven, porque tive uma ideia


para minha próxima apresentação no clube Sensations, e precisava filmá-la
em momentos espontâneos. Ela fez uma careta adorável quando lhe perguntei
se ela não se importava de ser filmada, depois acabou cedendo.

Mas fomos atrapalhados por alguns alunos da nossa turma, que se


sentaram como se suas presenças fossem tão interessantes que eles estavam
nos prestigiando com elas. Uma das meninas pegou meu celular e começou a
tirar selfies. Mas nenhum estava falando com Lucy, talvez porque não tivesse
coragem o suficiente. Ela tinha o queixo mais empinado que o seu e, mesmo
que não fosse bem na escola, às vezes parecia anos luz mais madura e
inteligente que qualquer outro aluno.
Peguei meu celular de volta, sem me importar em ser um cavalheiro, já
que estavam fazendo de conta que Lucy não estava ali, e os informei que
precisávamos pesquisar algo na biblioteca. Ela me acompanhou, tirando sarro
de mim, dizendo que eu estava esnobando a elite do colégio.

Senti vontade de falar que quem era a elite de Agaton Gymnasieskola


era ela, mas fiquei quieto.

Na aula de biologia, após ter perdido outra oportunidade de beijá-la.


Mandei uma mensagem.

“É uma merda ser tímido”.

Ela me respondeu com várias interrogações.

Precisava ser mais específico.

“Eu queria ter te beijado”.

Fiquei encarando a tela, esperando uma nova mensagem aparecer.

“Nas escadas” insisti.

Via sua nuca, as costas da sua blusa de flores, o vestido jeans. Ela
estava de cabeça baixa.

Seu silêncio me trouxe uma ansiedade daquelas. Impaciente, estiquei o


pé e cutuquei sua panturrilha.

Um minuto depois, recebi uma mensagem de volta.

“Eu queria que você tivesse me beijado”.

Mal tive tempo de curtir o momento. O aluno atrás de mim apertou a


ponta da caneta no meu braço.

Virei a cabeça para olhá-lo, tentando ser discreto para que o professor
não chamasse minha atenção.
— Você não fica cismado de andar com ela? — ele perguntou,
apontando a caneta para as costas de Lucy.

Franzi o cenho, pensando que ele ia me falar alguma coisa sobre o tio
dela ser perigoso.

— A mãe dela fatiou o próprio marido como um presunto. Eu teria


medo.

Engoli a saliva e me virei devagar na cadeira, com a frase ecoando na


minha mente. Era sobre isso que aquelas garotas estavam falando no primeiro
dia de aula?

A mãe dela era uma assassina?

Se aquele cara não estivesse mentindo, a mulher era bem perigosa.

— Se eu fosse você, dormiria com um olho aberto — ouvi ele me


dizer.

Peguei o celular e enviei uma mensagem para o meu pai, pedindo que,
por favor, estivesse em casa à noite para conversarmos.

Meu pai queria falar sobre como eu parecia mais “vivo” essa semana.

— Preciso conversar com você sobre morte — cortei sua empolgação.

Ele se sentou ao meu lado na varanda.

— Esse é um daqueles momentos que dá vontade de fumar, mesmo que


eu não faça isso.

— Alguma coisa me diz que você já sabe sobre o que é essa conversa
— falei sem tirar os olhos dele, que estava com os cotovelos apoiados nos
joelhos e as palmas das mãos apertadas uma contra a outra.

Virando o pescoço devagar, ele me olhou.

— Imagino do que se trata — meu pai disse.

Ajustei os óculos que estavam começando a escorregar pelo meu nariz.


Era como se houvesse um boneco de neve se chocando frenético contra as
paredes do meu estômago.

— O que aconteceu aos pais de Lucy? — perguntei. Uma parcela de


mim não queria realmente saber. Mas meu lado calculista insistia que era
melhor ter conhecimento sobre o assunto, só assim eu estaria preparado
quando alguém mencionasse isso novamente.

— Quando você falou dela pela primeira vez, dizendo que tinha a
achado interessante e muito bonita, fiquei pensando sobre aquilo. O
sobrenome Peter não me era estranho. Demorei quase um dia para me
lembrar porque o conhecia. O nome da família estava envolvido no
assassinato mais cruel que eu já tinha ouvido falar aqui na região. Só que
você nunca me perguntou nada. Pensei que tivesse descoberto sozinho.

— Na segunda, umas garotas chegaram na nossa mesa e comentaram


algo sobre eu estar andando com Lucy, e que eu poderia acabar em um caixão
antes da formatura. Lucy ficou bem mal. Perguntei do que se tratava, mas ela
não quis responder. Hoje, um cara perguntou se eu não ficava cismado de
andar com ela. Me disse que sua mãe tinha fatiado o marido como se ele
fosse um presunto.

— Não quero que vocês se afastem por causa disso. Algumas pessoas
não gostam de se envolver com Lucy por causa de algo que sua mãe fez. É
puro preconceito. Mas não são a maioria. Apenas um bando de cabeças
duras.

— Não vou me afastar dela por uma coisa assim, mas acho que é
melhor eu saber logo de uma vez.
— Vocês eram muito pequenos quando aconteceu, por isso você não se
lembra, mas o crime chocou todos em Agaton e nas cidades vizinhas — meu
pai começou a contar. — Os vizinhos começaram a estranhar o sumiço do pai
dela e chamaram a polícia. Quando os homens chegaram, encontraram os
cachorros...

Meu pai tossiu, depois pigarreou para limpar a garganta. Ele fez uma
pausa consideravam e, quando voltou a falar, fez meu estômago embrulhar
com o relato.
Meu queixo tremeu e minha boca ficou seca. Um nó se formou na
minha garganta. Agora Axel também sabia, e iria me olhar como todos os
outros olhavam.

— E o que ele disse? — perguntei com a cabeça baixa, enrolando a


borda de um cobertor entre os dedos, com vontade de cair no choro, porque
não queria que ele tivesse medo de mim, que se afastasse. Eu não tinha
ninguém que se importava comigo até semana passada. Tinha sido rápido,
mas não queria perder sua companhia, sua amizade.

Fiz uma careta ainda encarando o edredom. A vida não era justa.

— Ele me contou que sua mãe matou seu pai — Axel falava, à medida
que meu coração batia despedaçado. — Ele contou como ela fez…

— E o que exatamente ele contou? — perguntei querendo acabar logo


com aquilo.

— Meu pai falou que aconteceu quando éramos muito crianças. Uma
vizinha desconfiou do sumiço do seu pai e chamou a polícia. Encontraram os
cachorros comendo algumas partes, ossos enterrados no quintal, e o resto do
corpo estava no congelador.

Houve uma pausa. Senti os seis cheeseburgers revirando dentro do


meu estômago em conjunto com as batatas fritas. Não me atrevia a encarar
Axel.

— Ela tinha cortado e separado as partes em saquinhos, como fazem


nos açougues… — ele falava com cuidado. — Mas não conseguiram
descobrir se ela… — Axel precisou limpar a garganta. — Se ela comia… se
ela dava para você comer.

Fez-se silêncio outra vez. Me sentia pisoteada. Eu sabia que seus olhos
estavam grudados em mim, queria que ele não me olhasse daquele jeito.

— Nunca encontraram um motivo. Ela confessou, mas… — ele


continuou e se deteve.

Respirei profundamente e engoli o nó na garganta.

— Ele batia na minha mãe — falei baixinho. — Essa é uma das partes
que não te contaram.

— Não… — Axel murmurou.

— Ninguém além de nós duas sabe o que realmente aconteceu — falei


sentindo a respiração passar barulhenta pelas minhas narinas. Eu não sabia
como continuar aquela conversa. Não fazia ideia do que falar em seguida.

— Ela poderia ter ido à polícia — ele comentou timidamente. — Se ele


a machucava… Sua mãe poderia ter denunciado, se separado.

— Não… ela não faria isso — falei prendendo a respiração. Meus


nervos estavam vibrando com a ansiedade. Eu conseguia compreender a
mente dela naquele instante, o quanto seria difícil para ela contar a alguém o
que acontecia na nossa casa, porque para mim era quase impossível dizer isso
em voz alta. — Mamãe não contou à polícia nada sobre os maus-tratos. Ela
queria dar um fim nele, queria que eu tivesse uma vida normal.

Voltei a respirar outra vez como se estivesse saindo de um longo


momento debaixo d´água.
— Ela não comia… Não comemos os pedaços. Ela só deu aos
cachorros para desaparecer com os restos — admiti.

Axel estava deitado ao meu lado, só que com a cabeça na direção dos
meus pés, me olhando com os olhos estreitos.

— Você era tão pequena… Como sabe?

— Eu a visito de tempos em tempos. Quando consigo economizar


dinheiro para a passagem até Estocolmo. O presídio fica nos arredores. Tia
Esther vai comigo, mas só eu entro. Conversamos sobre isso todas as vezes.
Minha mãe é a única pessoa que me conhece de verdade, que sabe meus
segredos.

— Eu também quero conhecer, quero que me conte… Ele também


batia em você…?

Olhei para a janela traseira da Van. Chovia forte lá fora, o vidro estava
ficando embaçado. Meu estômago revirava, eu não deveria ter comido tão
depressa.

Fiz que sim com a cabeça devagar.

— Não entendo como ela não procurou a polícia, era a coisa certa…

— Porque ela não queria que fizessem exames em mim, que


descobrissem — minha voz era só um silvo baixo, meus olhos estavam
arregalados, as lágrimas escorriam — que ele abusava de mim.

Olhei para Axel e vi o choque no seu rosto, o jeito como ele prendeu a
respiração. Nem meus tios sabiam. Era aquele olhar que eu temia a vida
inteira, por isso nunca tinha contado a ninguém, não queria que as pessoas me
olhassem assim. Mamãe também não queria, por isso ela tinha sacrificado sua
liberdade, para que ninguém soubesse.

Eu tinha começado a falar, precisava ir em frente. Não queria que ele


pensasse coisas ruins sobre minha mãe.
— Meu pai me estuprava desde que eu tinha começado a dar os
primeiros passos — confessei. — Ele obrigava mamãe a assistir. Ela não
tinha coragem de ir até a delegacia e dizer que o homem que ela amava, que
tinha escolhido para viver, tinha se transformado em um monstro. Mas,
principalmente, ela não queria me expor, não queria que as pessoas me
olhassem como a criança que sofreu abuso do pai. É difícil para você
entender. Não foi nem de longe a decisão mais inteligente, mas ela não queria
fugir e acabar na rua. Desejava que ele desaparecesse. Planejou aquilo
durante muito tempo, até ter coragem… você pode julgá-la como achar que
deve, só que você não pode dizer exatamente o que ela deveria ter feito,
porque você não viveu aquilo, não sabe o terror psicológico que meu pai
fazia com ela.

— Lucy… eu… — Axel se aproximou de mim fazendo a van balançar.

Era a primeira vez que falava sobre aquilo com alguém que não tinha
vivenciado de perto.

— Tem algumas coisas que parecem ficar gravadas na nossa mente.


Ele estava em cima de mim e eu tentava pensar em outra coisa, que eu ia
fazer cinco anos em poucas semanas, que mamãe ia fazer um bolo de
morangos e compraria uma boneca, caso conseguisse pegar algum dinheiro
na carteira dele. Eu tentava me agarrar àquilo a todo custo, mas era inevitável
ignorar a dor e os ruídos que ele e a cama faziam. Mamãe o acertou pelas
costas, com a faca de carnes. Ele tentou lutar, sangrou em cima de mim…
Não tive meu bolo de morangos nem ganhei uma boneca. Quando fiz cinco
anos, estava num abrigo até a justiça decidir o que faria comigo. Eu fechava
os olhos e conseguia reviver a cena claramente, não que quisesse, mas era
inevitável, como ainda é. Durante muitos anos eu sonhei que ele apareceria
no meio da noite para fazer aquilo de novo. Eu tentava não dormir, só para
não ter pesadelos. Mas eu ainda tenho muito medo.

Só percebi que estava tremendo quando Axel me puxou para seus


braços e tentou secar minhas lágrimas.

— Acabou. Ele está morto, não pode mais te machucar. Não precisa
mais ter medo, Lucy.

Suas palavras fizeram uma enxurrada de lembranças me pegar de jeito.

— Eu tenho medo todos os dias. Tenho medo por ser garota, ser frágil
e não poder me defender. Tenho medo toda vez que as garotas começam a
sair da sala, e sinto que vou ficar sozinha com os garotos, tenho medo que a
porta se feche e eles me machuquem. Tenho medo de ir sozinha à sala do
diretor, tenho medo quando faço prova e acabo ficando por último com o
professor. Tenho muito medo quando minha tia arranja um emprego novo,
assim como tive quando começamos a trabalhar na sua casa. Eu tenho medo
de precisar ficar sozinha com seu pai. Tenho muito, mais muito medo do meu
tio Alan Peter, e de todos os seus amigos nojentos, dos olhares que eles me
dão, das vezes em que eu os peguei me espiando trocar de roupa. Tenho tanto
medo que empurro a cama para bloquear a porta do meu quarto. Tenho todos
esses medos porque uma vez eu já pensei que estava segura, pensei que o
único monstro estava morto. Tinha doze anos quando fui estuprada
novamente, dessa vez pelo filho dos patrões da casa que minha tia trabalhava.
Foi quando eu aprendi que nunca ficaria segura. Tia Esther disse que a culpa
era minha, que eu me insinuava para ele, que chamava a atenção dos homens.
— Fiz uma pausa para dar uma risada sarcástica. — Eu tinha doze anos, era
uma criança e não sabia nada sobre insinuação. Mas aprendi que qualquer
homem pode me estuprar se tiver oportunidade, e que eu não devo baixar a
guarda nunca. Não gosto de como o meu corpo é, das curvas, não gosto de ter
coxas grossas, não gosto da minha bunda nem dos meus seios, porque meu
corpo chama a atenção dos garotos, por isso uso vestidos até abaixo dos
joelhos e sempre prendo o cabelo. Até gostaria de usar uma calça jeans
apertada e uma blusa que mostrasse minha barriga, mas o medo de acontecer
de novo é muito maior. Mesmo fazendo tudo isso, quando uso um pouco de
maquiagem, Alan Peter fala que tenho cara de puta. Por todos esses motivos,
eu sou garota e vivo com medo.

Os braços de Axel estavam bem apertados em volta do meu corpo,


sentia sua respiração contra minha testa.

— Não precisa ter medo de mim — ele sussurrou. — Não são todos os
homens. Eu nunca faria mal a você. Meu pai também não… Sinto muito por
tudo que aconteceu com você. É uma droga que tudo que eu possa dizer é
“sinto muito”.

— Não acredito que guardei isso por todos esses anos.

— Como acabou indo morar com seus tios? E a família da sua mãe?

— Minha mãe fugiu de casa para morar com meu pai. Sua família não
a perdoou por isso. Quando souberam o que ela tinha feito, a desprezaram
ainda mais. Nunca me procuraram. Quando soube da ajuda que o governo
pagaria para cuidarem de mim, Alan Peter veio correndo. Ele é irmão mais
velho do meu pai. Como todos os outros, acha que minha mãe é um monstro
e as vezes me olha como se eu estivesse me tornando assim também.

— Ele já fez…?

— Ele nunca tentou de verdade — sussurrei e mordi o lábio. — Apesar


de todos os olhares e das vezes em que ele passa e se esfrega em mim quando
estou preparando o jantar.

— Ele já te bateu? — Axel quis saber.

Dei uma risada sem humor.

— Ele sempre me bate — falei e ouvi seus dentes trincarem. — Mas o


pior ainda está por vir. Ele quer que eu comece a me prostituir quando fizer
dezoito anos, diz que sou bonita e que vai ganhar muito dinheiro comigo, que
com dezoito anos não terá nenhum problema para ele. Já tentei milhares de
vezes arrumar um emprego, qualquer emprego que eu pudesse me manter. Às
vezes, fujo da escola e passo o dia perambulando em cada estabelecimento,
mas todo mundo me conhece aqui em Agaton, me olham como se eu fosse
uma assassina perigosa, os donos de bares e lanchonetes não querem que seus
clientes me vejam trabalhando pra eles, acham que eu vou espantar a
clientela. Imaginei muitas vezes fugir sem rumo, mas não tenho dinheiro, não
tenho coragem, tudo que tenho é medo de acabar nas mãos de gente como
meu pai. Então eu vou ficando.
— Sobre seu pai, se sua mãe não tivesse acabado com ele, eu mesmo o
mataria — Axel disse por entre os dentes, seu corpo também tremia. — Eu
faria pior do que sua mãe fez. Quanto a seu tio, se ele voltar a tocar nesse
assunto de prostituição, se ele ou qualquer um dos vagabundos dos amigos
dele te olharem de um jeito que você não goste, pode me ligar, a qualquer
hora. Largo qualquer coisa que estiver fazendo e vou arrebentar a cara de
quem quer que seja.

— Você faria mesmo isso? — perguntei, me inclinando em seu peito


para encará-lo.

Ele passou a ponta dos dedos abaixo dos meus cílios inferiores,
afastando as lágrimas.

— Quando os garotos maiores começaram a me bater na escola, minha


mãe me obrigou a fazer todas as aulas de artes marciais que existia em
Agaton. Acredite, eu posso quebrar os dentes de qualquer um, ainda mais
estando com ódio.

Sem pensar, deslizei a mão pelo seu peitoral até alcançar seus braços,
onde pude sentir a firmeza dos músculos. Engoli a saliva.

— Eu acredito — murmurei.

— E quanto a esse outro cara, que era filho dos patrões, onde posso
encontrá-lo?

— Ele foi embora logo depois do que aconteceu. Nunca mais o vi,
graças a Deus. Não sei para onde foi e não quero saber.

— Me diga o nome e o sobrenome.

— Não quero mais pensar nisso. Podemos parar por aqui? — pedi
baixinho.

— Ele…
— Por favor, Ax — insisti, saí de seu peito e me arrastei para os
bancos da frente. Sentei no do carona e ele veio para o do motorista. —
Promete que nunca vai contar isso a ninguém?

Morria de medo que alguém da escola descobrisse, do que poderiam


pensar.

— Claro, Lucy.

Houve uma longa pausa na conversa. Eu temia o que ele poderia estar
pensando. A chuva não diminuía lá fora.

— Você nunca namorou? — ele quis saber.

Dei um sorriso sem graça, sentindo as bochechas corarem.

— Não. Nunca fiquei com nenhum garoto. E você?

Axel ficou calado por um momento. Tinha alguém.


— Não durou nem dois meses — ele confessou finalmente.

— Alguém da escola? — perguntei chocada, com uma sensação ruim


na boca do estômago.

— Não. Ela é seis anos mais velha que eu.

— Ah — murmurei com os olhos arregalados. — Mas vocês ainda se


veem?

Axel se calou, encarando o para-brisa embaçado, com o rosto corado.

— Eu te contei um monte de coisas. É a sua vez de se abrir.

— Trabalhamos juntos, é ela que organiza as festas onde toco.

— E você não sente falta dela? Não pensa em voltar? — perguntei só


para me torturar.

— Não foi nada demais. A gente não se apaixonou e começou a


namorar. Não foi desse jeito. Não tenho esse tipo de sentimento por ela, se é
isso que quer saber.

Axel ainda encarava o para-brisa.


— E de que jeito foi? — insisti.

— Ela me conheceu quando comecei a tocar. Tínhamos amigos em


comum. Me arranjou a primeira festa e…

— E o quê?

— Acho que ela se interessou pelo meu jeito caipira, nerd e esquisito.
Deve ter considerado minha timidez como um desafio. Começamos a beber
juntos e eu acordei na cama dela. Isso se seguiu durante alguns finais de
semana. Até ela perceber que não poderia mudar meu jeito, então me deu um
fora.

— Foi ela que tirou sua virgindade? — Só me dei conta do nível da


pergunta depois que já tinha feito.

— Sim, mas nem sequer lembro direito como aconteceu. Em nenhuma


das vezes eu estava sóbrio.

— Mas você gostava de ficar com ela? — continuei com o


interrogatório.

— Eu estava fazendo sexo — ele disse, sacudiu os ombros e deu


partida na van. — Que homem não gosta de sexo?

De repente, eu comecei a vê-lo de outro jeito, como se saber daquilo


tivesse tirado sua inocência e seu jeito fofo. Como se ele não fosse mais o
garoto que sentava atrás de mim na aula, mas um homem feito.

— Teve outras? — Minha voz saiu rouca depois de uma longa pausa,
mas eu precisava saber.

— Não — ele confessou. — Foi só Mikaela.

— Ela é bonita?

— Sim, ela é bem bonita, mas não faz muito meu tipo.
— Qual é seu tipo?

— Você.

Estávamos na rua da minha casa.

— Eu?

— É. — Dessa vez Axel me olhou. — Seu jeito meigo me faz querer te


carregar no colo, cuidar de você. É tão linda. Não precisa de maquiagens
demoradas nem roupas de marca. Você é perfeita do jeito que é. Não conheço
nenhuma garota tão original e incrível assim.

Quando ele terminou de falar, me dei conta de que era o momento


certo. Eu queria e ele também. Se não nos beijássemos agora, eu desistiria
disso. Observei seus lábios por um instante e comecei a me aproximar
devagar, mas na metade do caminho, quando notei que ele não estava vindo,
desisti. Beijei sua bochecha.

Tínhamos parado de respirar.

— Nos vemos amanhã? — perguntei um pouco decepcionada com ele.

— Te pego às 7h30. E não se esqueça, me ligue imediatamente se seu


tio te ameaçar. Vou ficar feliz em quebrar todos os dentes dele.

Acabei dando um sorriso.

— E depois de quebrar os dentes de Alan Peter, o que faremos?

— Não pensei nisso ainda — Axel admitiu.

Me virei na direção da porta e a abri. Dei um longo suspiro antes de


sair correndo para a chuva. Minha casa era a quinta da rua. Ouvi passos atrás
de mim, mas continuei correndo, até que uma mão agarrou meu cotovelo e
me fez parar.

Quando me virei na direção de onde tinha vindo, vi seu rosto se


inclinando. Seus lábios encontraram os meus. Foi chocante. Os pingos caiam
sobre nós, encharcando nossas roupas. Senti o gosto da chuva na sua boca.
Ele apertou meus braços e depois abraçou minha cintura. A chuva era fria,
mas seu corpo estava quente. Nossas bocas se afastarem e eu pisquei para
conseguir enxergá-lo através dos cílios molhados.

Axel se inclinou para frente e me beijou outra vez. Pisei na ponta dos
seus tênis e passei meus braços ao redor do seu pescoço, ficando mais alta.
Afastei os lábios e sua língua entrou, encontrando a minha. Foi melhor do
que eu imaginava que seria. A chuva continuava caindo. Sentia seus braços
me apertarem mais forte, sua boca ir mais rápido.

— Volta comigo para o carro? — ele pediu quando paramos. Estava


sem fôlego. Eu também estava.

— Preciso ir para casa.

— Só mais alguns minutos, por favor, Lucy!

— Amanhã — falei tirando os braços do seu pescoço, me virando e


correndo para casa debaixo de chuva, me sentindo como se estivesse nas
nuvens.
Dançava em volta do quarto, cantarolando baixinho e secando meus
cabelos com uma toalha de banho, quando vi a tela do celular piscar. Meus
dedos indicador e médio direitos estavam apertados contra meus lábios. Era
como se fosse meu primeiro beijo. Preferia pensar que era, não queria
relembrar as coisas ruins do passado.

Alcancei o celular e vi que não se tratava de uma chamada de voz, e


sim de vídeo. Atendi rapidamente.

Seu rosto tímido apareceu na tela. Ficamos nos encarando por alguns
segundos, até me lembrar de pegar os fones de ouvido.

Os alcancei sobre a penteadeira bagunçada, os conectei no celular e


encaixei nas minhas orelhas.

— Oi! — cochichei, iluminada pelo flash da câmera frontal. Larguei a


toalha no chão e me joguei na cama, entrando depressa debaixo do cobertor.

— Oi — ele respondeu caminhando pelo quarto. — Você esqueceu seu


suéter na van.

Axel balançou a peça de roupa horrível na frente da câmera.

— Pode me trazer pela manhã?


— Eu nunca vou devolver. Tem seu cheirinho — ele disse encostando
o suéter ridículo no nariz e aspirando o cheiro antes de se deitar.

— Não é justo — falei fazendo cara feia —, não tenho nada seu.
Também quero sentir seu cheiro.

Axel sorriu e esfregou a mão contra o rosto, escondendo as covinhas.


Alguns segundos depois, apagou a luz do quarto e seu rosto ficou iluminado
apenas pelo flash frontal.

— Você gostou… do beijo? — Mesmo na luz fraca, eu podia ver seu


rosto corado. Seus olhos piscavam ansiosos.

— Sim, eu gostei — respondi mordendo o lábio. Queria beijá-lo de


novo.

— Mas você me largou sozinho na chuva, saiu correndo. Não quis


voltar para a van. Ficou com medo de mim? Fiz alguma coisa que te
assustou?

— Não é isso — falei com determinação. — Já passa das quatro horas


da manhã. Preciso dormir um pouco. Já é difícil aprender alguma coisa
descansada, imagina com sono. Sei que não vai fazer muita diferença...

— Desculpa, não quero atrapalhar.

— Não está atrapalhando — falei e dei um bocejo incontrolável. — E


você gostou de me beijar?

— Foi o melhor beijo que já dei — Axel disse. — Foi o primeiro que
dei sem estar bêbado. Então é como se fosse a primeira vez.

— Também é como se fosse meu primeiro beijo — confessei, sentindo


como se a vida sorrisse para mim. Algo inédito.

— Queria te perguntar uma coisa antes de deixar você dormir.

— Pode perguntar, Ax.


Ele respirou fundo. As covinhas estavam nas suas bochechas. Era o
garoto mais adorável do mundo, mesmo que não fosse mais virgem, ainda era
meigo e fofo.

— Você aceita… — ele começou, mas fez uma pausa para respirar
fundo outra vez. — Quer… Quer namorar comigo, Lucy?

Me sentei na cama com os olhos arregalados, a boca formando um O e


a mão no peito esquerdo, com o coração prestes a explodir.

— Eu quero! — respondi antes que Axel mudasse de ideia. — Eu


quero namorar com você!

Só pensei no que aquilo significava depois que já havia respondido.


Tinha sido pedida em namoro pelo garoto mais incrível do mundo. Eu ia ter
um troço!

— Mal posso acreditar. Pensei que você fosse recusar ou dizer que ia
pensar.

— Você não tem vergonha de andar comigo? — eu quis saber.

— É uma das poucas coisas que não tenho vergonha de fazer. Você é
uma princesa e realmente gosto de você. Não sei como demonstrar, mas eu
gosto.

— Eu tenho vergonha da minha vida miserável, de você ouvir meu


estômago roncando. Tem certeza que é isso que você quer?

— Tenho mais que certeza — ele disse mostrando o quanto era mais
maduro que seus dezessete anos. — As coisas vão melhorar. Tenha fé.

— Fé em que? — Pisquei os olhos depressa, não queria chorar.

— Em você. Você disse que já procurou trabalho em vários lugares em


Agaton…
— Várias vezes — o interrompi.

— Já foi naquele salão de beleza na Kungsgatan? — ele perguntou.

— Um com a fachada de granito? Acho que se chama Felicious. Algo


assim.

— Isso. Já tentou conseguir alguma coisa lá?

— Não! — falei dando risada. — O lugar é um luxo! Só a alta


sociedade de Agaton é cliente de lá. Não sou tão ambiciosa assim, Ax.

— Minha mãe arruma o cabelo lá, frequenta aquele lugar quase toda
semana. Conheço a dona, ela é meio extravagante, mas tenho certeza que é
boa pessoa. Se eu conversar com ela...

— Faria isso por mim? — perguntei perplexa, com o rosto sério. Isso
seria mais do que me pagar um lanche para fazer meu estômago parar de
roncar. — Você é tímido. Não dá para fazer uma coisa dessas bêbado.

— Faço um esforço por você — Axel disse e sorriu.

— Duvido que ela vá me aceitar — falei sem querer ter falsas


esperanças.

— Só vamos saber quando tentarmos. Fé, Lucy.

Mordi o lábio e o encarei.

— Obrigada por tudo. Ninguém nunca se esforçou assim por mim. De


todo meu coração, obrigada.

— Eu que agradeço por me deixar fazer parte da sua vida. Preciso


agradecer a minha mãe também, por ela ter contratado sua tia, se eu não te
encontrasse na minha casa, nunca teria coragem de falar com você, mas
minha mãe anda chateada comigo essa semana.

— Por quê? — questionei curiosa. Não dava para imaginar uma mãe
decepcionada com um rapaz ótimo como ele.

— Só porque mencionei que talvez eu não vá para a faculdade de


medicina como ela sempre sonhou.

Tive que rir. Ele não era o filho perfeito, afinal. Mas não pude deixar
de imaginá-lo de jaleco branco.

— Não vou fazer faculdade, Lucy. Não quero ser médico. É com
música que eu quero trabalhar. Mas ela acha que só estou perdendo meu
tempo, que depois que eu acordar desse sonho, vai ser tarde.

— Eu acredito em você. Nunca o vi tocar, mas creio que pode ir longe.

— Você vai me ver tocar no sábado, não vai? É minha namorada e vai
ser uma noite muito importante para mim. Um agente de Malmö virá, se ele
gostar de mim, pode me convidar para fazer uma apresentação em um lugar
maior.

— Tenho certeza que ele vai gostar. Que horas você vai tocar?

— Começo às 21h.

— É muito cedo. Eles ainda vão estar acordados. Vou ter que pedir
permissão.

— Quer que eu fale com seu tio? — Axel se ofereceu.

— Não, Ax. — Seria muito pior. — Alan Peter não é como um pai que
está preocupado com meu futuro, ele não quer meu bem, só quer me
infernizar. Deixa que eu falo. Vou tentar negociar com ele.

Não queria dizer a Axel que Alan Peter nunca me daria permissão, não
queria desanimá-lo. Mesmo assim, eu tentaria.

— Ok. Vou deixar você descansar. Só não desliga o telefone, Lucy,


quero te ver dormindo.
— Sério? — perguntei com a cara de surpresa e uma das sobrancelhas
arqueadas.

— Você não sabe como fica adorável dormindo. Queria que estivesse
aqui comigo.

— Você faz meu coração bater muito forte — confessei. — Mas eu


acho que… Você ia querer…

— Lucy…

— Quer namorar comigo mesmo sabendo que eu não quero nem pensar
em fazer sexo? Não ainda…

— Eu nunca forçaria você a fazer uma coisa que não se sente à


vontade, não insistiria nisso. Por que não confia em mim?

— Confio, só estou esclarecendo como são as coisas.

— Eu já sabia.

O olhei por mais alguns instantes antes de me deitar, aninhando a


cabeça no travesseiro e puxando o cobertor até meus ombros. Coloquei o
celular encostado na parede, de frente para meu rosto e fechei os olhos.
Adormeci ouvindo sua respiração.
Só estava garoando quando saí às 7h32 da manhã. Para meu choque, tia
Esther se encontrava parada na calçada embaixo de um guarda-chuva roxo,
conversando com Axel. Ele estava com as costas apoiadas na porta do
carona, braços cruzados, usando jaqueta de couro, calça jeans escura e botas
pretas.

O termômetro devia estar marcando por volta de 8°C naquela manhã.


Eu estava usando meias de lã marrons, minhas botas velhas, um vestido verde
de algodão, um cardigã preto e uma jaqueta jeans por cima. Corri para o
carro, fazendo a mochila bater nas minhas costas, e parei ao lado da minha
tia.

— Bom dia — os cumprimentei, segurando nas alças da mochila.

— Bom dia! — tia Esther respondeu ao passar a mão em volta dos


meus ombros, mas só para me dar um beliscão ardido. Ela era mais alta que
eu catorze centímetros, alta e magra, cabelos loiros muito claros, a pele seca e
com marcas de expressão. Sempre usava saias de cintura alta que desciam até
metade das panturrilhas, sapatos mocassins e blusas sem graça. Não que eu
fosse um exemplo de moda. No frio ela usava um sobretudo preto e meias de
lã escuras.

— Tenho certeza que Lucy gosta de pedalar — ela comentou com Axel
e me deu outro beliscão. — Pelo tanto que essa garota come, se não andar de
bicicleta todos os dias vai acabar virando uma baleia.

Arregalei os olhos com aquela mentira.

— Tia!

— Pegue sua bicicleta, querida, pare de abusar da boa vontade dos


outros.

Outro beliscão, dessa vez mais forte.

Empurrei seu braço e me afastei dela com o rosto vermelho de raiva.

— Tenho certeza que Lucy ia continuar linda de qualquer jeito — Axel


disse e colocou a mão na minha cintura, abriu a porta do carona e eu entrei.

Tia Esther ficou parada na calçada, me fuzilando com os olhos. Teria


me dado umas bofetadas se pudesse.

Quando ele deu partida, tirei a jaqueta e o cardigã para examinar os


beliscões. Ela tinha me deixado marcas vermelhas, mas o pior era a
humilhação. Eu já deveria estar mais que acostumada, só que agora eu tinha
um namorado e não queria que ele visse essas baixarias familiares.

Vesti o suéter e a jaqueta de volta e olhei para o rapaz na direção.

— Desculpa por isso — pedi timidamente.

— Nada que alguém diga vai mudar o que sinto por você. Não
esquenta.

— Você não existe — sussurrei me inclinando na sua direção. Mesmo


dirigindo, ele virou o rosto para mim e apertamos nossos lábios um contra o
outro.

Esse gesto simples foi capaz de fazer um milagre com meu humor.
Abri um sorriso exibindo meus dentes e olhei na direção do para-brisa. Dei
de cara com um buquê de flores pequeno amarrado com uma fita de cetim cor
de rosa.

Meu queixo caiu diante daquilo. Pelo canto do olho, vi a covinha na


sua bochecha direita.

— Essas flores lindas já estavam aqui quando entrei? — perguntei.

— Sim, mas você estava preocupada demais com sua tia para perceber.

— Elas só estão aí pegando uma carona ou…? — Tentei fazer cara de


indiferente, mas não sei se deu certo.

— São para a garota mais incrível da escola — Axel brincou.

Sem mais enrolação, estiquei a mão e puxei o buquê para meu colo.
Aspirei o perfume e suspirei. Parecia um sonho. Era como se eu tivesse
dormido e acordado na vida dessa nova garota que suspirava, recebia flores e
era tratada como uma princesa. Eu não queria acordar de jeito nenhum.

— Nunca. Recebi. Flores! — falei cada palavra lentamente, ainda


perplexa. — Também nunca pensei que isso aconteceria comigo.

— Tudo para ver você sorrindo desse jeito — ele sussurrou. — Minha
princesa.

— Você está fazendo mesmo eu me sentir como uma princesa — falei


fitando seus olhos azuis.

— Essa é a ideia.

— Por favor, universo, não me deixa acordar! — implorei fazendo


Axel rir.

— Saí cedo de casa para comprar as flores, acabei não comendo nada.
Se importa se eu parar em uma padaria?

Pisquei os olhos duas vezes. Eu nunca comia nada antes de ir para a


escola e ainda era chamada de morta de fome.
— Vai me pagar um croissant? — brinquei, mas toda brincadeira tem
um fundo de verdade.

— Te compro a padaria inteira se você quiser — Axel disse com o


sorriso meigo. — Estou brincando, não tenho tanto dinheiro!

— Só um croissant está ótimo. Não sou tão ambiciosa, lembra?

Ele fez que sim com a cabeça, ainda sorrindo.

O carro parou ao lado da padaria, minhas botas fizeram barulho ao


atravessarmos o estacionamento de pedra. O lugar era aconchegante, com
luzes amareladas e cortinas listradas de azul e amarelo. Estava cheio de
pessoas conversando enquanto esperavam seus pedidos. Dei uma rápida
olhada no balcão de bolos. Vi um de morangos e lembrei da minha mãe. No
mesmo momento em que eu estava num lugar tão agradável, ela acordava
para mais um dia no presídio. Meu coração doeu tanto que precisei engolir o
nó na garganta.

Axel pediu dois cafés e dois croissants, então escolhemos uma das
poucas mesas para dois vazias. Comecei a comer assim que me sentei,
passando manteiga na massa folhada quentinha.

Ele levantou-se da cadeira e se dirigiu aos balcões. Continuei comendo


e bebendo café. Axel voltou com uma fatia de bolo com um morango em
cima e colocou diante de mim.

Senti meu corpo tremer e minha pele se arrepiar. Ele não fazia ideia do
que aquilo significava para mim, a confusão de emoções que me dominaram.
Engoli a saliva, sem ter força para erguer a cabeça e encará-lo.

— Meu aniversário é só daqui a algumas semanas — comentei


tentando manter o humor inabalável.

— Vi você olhando o balcão de bolos e sabia que não ia ter coragem de


me pedir. Gosta de morangos, não é?
Pisquei bem rápido. Não poderia chorar.

— No seu aniversário, vou te levar para comer tudo que tem vontade.
O que acha?

— Espero que a vida retribua tudo que está fazendo por mim, porque
eu não tenho como pagar — falei com a voz emocionada.

— Não faço essas coisas esperando algo em troca. Só quero te ver


feliz, mesmo que seja… — Axel não acabou de falar, me estiquei para a
frente e o beijei na boca, sem me importar que eu ainda não soubesse fazer
isso direito, sem dar a mínima para as pessoas à nossa volta e as regras de
etiqueta. Senti gosto de café nos seus lábios, sua língua quente. Ele
correspondeu.

Quando nos afastamos, seu rosto estava vermelho e minha pele ardia.

Sabia que poderia encontrar pessoas cochichando e nos observando se


olhasse em volta, mas não estava nem aí para elas.

Terminei o croissant e devorei o bolo. Só me lembrei de perguntar se


Axel queria um pedaço quando já estava no fim. Mas ele disse que não
queria, com toda a educação do mundo.

Voltamos para o carro de mãos dadas debaixo da garoa fria.

— Desde criança, eu sempre asso um bolo quando vou visitar mamãe


— murmurei, enquanto ele dirigia para a escola. — Não é sempre que a
polícia deixa passar… Mas você me fez lembrar dela.

— Quero conhecê-la. Quando pensa em ir visitá-la?

— Não sei — lamentei. — Costumo ir no dia do meu aniversário. Mas,


como meu tio não está trabalhando, é difícil guardar dinheiro. Sou
especialista em economia, mas não tem como economizar quando não está
entrando nada.
— Ele pelo menos procura trabalho? — Axel perguntou indignado.

Dei de ombros. Alan Peter era um vagabundo.


Entramos na escola. Os corredores já estavam cheios quando passamos
de mãos dadas. Eu carregava as flores para deixá-las em um copo de água na
secretaria. Não queria que murchassem.

Matilda, uma senhora de cinquenta e poucos anos com aparência


tipicamente sueca, disse que elas eram lindas e que iam ficar em boas mãos.

— Ganhei do meu namorado — falei toda pomposa, com o queixo


erguido e o sorriso largo.

— Axel é um bom rapaz! — ela o elogiou. — Escolheu muito bem.

Segurando as alças da mochila velha pendurada nas minhas costas, me


virei para o rapaz encostado na parede próximo a porta. Segurava o caderno
na mão direita; a esquerda estava dentro do bolso. Os olhos azuis estavam
focados nas botas pretas, como se estivesse em um mundo só dele. Estava
fingindo não ter ouvido a senhora Matilda falando.

Deixamos a secretaria com minhas flores em segurança e fomos para


nossa primeira aula. Um número maior de alunos parava em frente à carteira
de Axel para cumprimentá-lo, diziam que a festa de sábado seria um estouro,
que todo mundo estaria lá. E assim, ele ia ficando cada vez mais retraído, até
ter se afundado no assento, batucando a caneta contra o caderno.
Vi duas meninas usando vestidos jeans com elástico na cintura e blusas
com estampas de flores por baixo. Franzi o cenho chocada com a semelhança
com as roupas que eu tinha usado no dia anterior. Ou eu estava ficando
maluca ou era muita coincidência. Uma delas acenou para mim quando me
viu encarando-a, parecia simpática.

— Preciso ir até Malmö para comprar um amplificador antes que as


lojas fechem — Axel disse, enquanto almoçávamos. — Depois vou passar o
resto da noite treinando.

— Você vai se sair bem, tenho certeza.

— Vamos comigo até Malmö? Podemos jantar depois. Gosta de


comida japonesa?

— Preciso trabalhar. Não quero abusar da sorte. Vou falar com meus
tios hoje sobre ir à festa amanhã.

— Mas não vou poder ir te ver hoje, vou passar o dia inteiro fora
amanhã. Só vou poder te ver às oito horas, quando eu estiver indo para o
clube.

— Vou sentir sua falta, mas não posso abusar.

Ele me levou à fazenda antes de ir à Malmö, mesmo eu dizendo que


poderia ir de ônibus. Trabalhei como uma escrava até depois do anoitecer.
Quando entramos no ônibus de volta para casa, meu corpo estava exausto.

— Axel me convidou para ir ao clube Sensations amanhã às 21h. Acha


que Alan Peter vai me deixar ir? — perguntei para tia Esther arriscando levar
uns beliscões.

— Se Cecilia descobrir que vocês estão andando juntos…


— Estamos namorando — falei depressa.

Tia Esther apertou meu cotovelo com tanta força que eu pensei que
fosse quebrar o osso.

— Ele já sabe que você é tão burra que fez o segundo ano duas vezes?
— ela falou com sarcasmo.

— Sim, Axel sabe! E não se importa — falei com desprezo.

— E o que vai fazer quando a mãe dele descobrir? O que vai fazer
quando eu for mandada embora? Se não sabe, vou te dizer: Alan vai acabar
com você!

— Então acha que ele não vai me deixar ir ao clube amanhã?

Ela deu uma gargalhada.

— Ele te odeia, Lucy! Acha que te deixaria ter esse gostinho? E


termina com esse garoto. Não quero que sobre para mim.

— Não vou terminar — falei por entre os dentes. — Me dá cobertura


para eu sair escondida? É só deixar a porta destrancada.

— Nem pense nisso, ou quem vai te dar uma surra sou eu.

— De nada por te ajudar todos os dias — resmunguei.

— A única razão para eu te aturar na minha casa todos esses anos é que
Alan parou de descontar o estresse em mim desde que você apareceu. Ele fica
muito satisfeito em te dar umas lições. Sente que está se vingando pelo
assassinato do irmão…

Com nojo, fui me sentar sozinha nos fundos do ônibus. Mas ela acabou
me seguindo.

— Me admira você estar andando com ele. Morre de medo de garotos.


Já superou aquele trauma? — ela quis saber. — É por que ele é rico?
— Não vou nem responder.

— Falo essas coisas para o seu bem. A única coisa que um rapaz como
ele pode querer com uma morta de fome como você…

— Para! — gritei fazendo todos no ônibus olharem para nós.

— Peça a Alan para ir a essa festa, mas não diga que está namorando
ou ele te espanca. E caso ele não deixe, o que é bem provável, não saia
escondida ou será muito pior.

Fiz que sim com a cabeça e passei o resto do caminho encarando a


janela ao meu lado.

Dei sorte ao chegar em casa e encontrar Alan Peter sozinho. Estava


assistindo uma luta na TV e seu lutador favorito estava ganhando.

— Peça — tia Esther me incentivou.

Com o coração acelerado e o medo que fazia minha espinha congelar,


me aproximei a passos lentos do meu tio. Ele me olhou curioso e bateu a mão
contra o assento ao seu lado para que me sentasse.

Na cozinha, tia Esther começou a descascar os legumes.

— Posso te perguntar uma coisa? — comecei mordendo o canto


interno da bochecha. Minhas pernas tremiam por baixo da meia calça.

— Pergunte o que quiser — Alan Peter disse, esticou a mão e a


deslizou nos meus cabelos. Minha pele formigou. Fiquei tentada a me afastar,
mas consegui resistir. Sentia ânsia só de ficar perto dele.

— Sabe a família Hansson, para quem tia Esther trabalha?

— Sei. — O dedo indicador pálido e fino de Alan Peter escorregou


pela minha bochecha.

— O filho deles é DJ. Ele se chama Axel e estuda na mesma turma que
eu desde o ano passado.

— Sim…

— Então, ele colocou o nome de todo mundo da sala na lista VIP do


clube Sensations. Podemos entrar de graça — menti.

— Que alma boa.

— Meu nome está na lista, tio. É amanhã, às nove da noite. Posso ir?
Nunca fui à uma festa. Todo mundo da sala vai estar lá.

— É uma pena, mas sua tia e eu também ganhamos um convite. Vamos


jantar com os Morgan amanhã às 20h. De graça. Eles ganharam um sorteio. E
você vai ficar cuidando do filho deles.

Pisquei os olhos incrédula.

— Está brincando, não é? — perguntei.

— Não, Lucy. Não estou brincando. — Sua mão apertou meu maxilar.
— Você vai ficar de babá amanhã. Não vai?

— Sim, tio — respondi ficando de pé. Quando passei por ele, senti sua
mão beliscando minha bunda. Minha nuca ficou gelada de pavor.

Caminhei apressada na direção da cozinha, de onde dava para ver a


sala bagunçada através do balcão. Comecei a ajudar tia Esther, ignorando as
lágrimas que escorriam, desejando ser valente o suficiente para enfrentá-lo,
mas sabendo que não seria assim.

Me odiei por baixar a cabeça, por ter tanto medo. Apesar disso, eu
sabia que medo era meu melhor instinto de preservação, o medo me impedia
de fazer besteira e acabar me dando muito mal.

— Não faz essa cara — tia Esther murmurou ao meu lado, enquanto eu
mexia a massa de espaguete na água fervendo. — Você nem teria roupa para
usar em um lugar como aquele.
Me afastei dela e esfreguei a manga do cardigã contra o rosto.

Não consegui comer. Organizei um pouco a bagunça da sala, tirando o


lixo e limpando o chão, enquanto meus tios comiam; lavei a louça
praguejando contra a vida, e fui para meu quarto.

“Não vou poder ir à festa. Preciso ficar de babá amanhã à noite”


acrescentei um emoji chorando e mandei para Axel. A mensagem ficou
apenas com uma flechinha, indicando que ele não tinha recebido.

Quando fui tomar banho, um milagre tinha acontecido: tia Esther havia
lavado o banheiro.

Olhei meu rosto inchado no espelho e mentalizei as palavras fé e


paciência. Se eu conseguisse algum trabalho naquele salão de beleza que
Cecilia Hansson frequentava, as coisas poderiam melhorar.

Mas quem eu estava enganando? O salão Felicious ficava na Rua


Kungsgatan, próximo aos cafés e lojas de grife mais chiques de Agaton,
frequentado pelos suecos de narizes empinados, só gente da alta sociedade.
Não tinha chance para Lucy Peter.

Escovei os dentes e fui me deitar. Axel ainda não tinha recebido a


mensagem. Fiquei encarando o teto no escuro até pegar no sono.
Havia um pensamento rondando minha cabeça. Parecia idiota e até
egoísta me preocupar com aquilo, mas precisava conversar com alguém, e ela
era a única pessoa com quem eu teria o mínimo de coragem para isso.

Digitei o código de acesso ao seu apartamento e subi as escadas até o


segundo andar. A loira já estava me esperando quando bati duas vezes na
porta.

— Entra — ouvi sua voz abafada.

Girei a maçaneta, entrei e tirei os tênis, os deixando no hall de entrada,


ao lado dos seus sapatos. Ela estava sentada com as pernas dobradas no sofá,
o notebook sobre o colo. As pernas lisas e magras estavam cobertas por um
jeans justo, parte da sua barriga exposta pela blusa curta.

— Pode pegar duas taças? — perguntei me sentando no sofá da frente.

Ela ergueu os olhos da tela e me olhou, em seguida voltou sua atenção


para a garrafa de Balders Blod 2013 na minha mão.

— Claro, Ax.

Caminhou descalça na direção da cozinha, voltou pouco tempo depois


com duas taças de vinho, o saca-rolhas e um prato com fatias de queijo grevé,
que ela colocou sobre a mesinha de centro.
Peguei uma fatia de queijo e comecei a comer enquanto abria a garrafa.
Servi sua taça e enchi a minha muito além do que a educação sugeria. Bebi
alguns goles antes de começarmos a conversar.

— Tem uma garota...

— É mesmo? — Mikaela perguntou surpresa, girando o vinho na taça


antes do primeiro gole.

— A gente está namorando.

Suas sobrancelhas se ergueram com o espanto.

— E quando você pretendia me contar? — ela quis saber.

— Estou contando — falei com a expressão séria, sentindo as primeiras


reações à bebida.

— E em que posso te ajudar?

Mikaela se afastou do notebook, se apoiando no outro braço do sofá e


me olhando com curiosidade enquanto bebia.

— A gente se gosta muito. Acredito que ela gosta de mim, que é


sincera. Mas... — Precisei limpar a garganta para continuar falando, mesmo
que a sensação de relaxamento começasse a se espalhar pelo meu corpo. —
Acho que ela não me vê como homem.

— O quê? Como assim?

Peguei outra fatia de queijo e levei à boca. Ela fez o mesmo.

— Acho que ela me vê mais como um garoto, sabe? Não acho que ela
saiba que eu sinto desejo por ela. — Agradeci em pensamentos ao vinho por
me permitir falar aquilo em voz alta.

— Você acha que, mesmo namorando, continua na “friendzone”? —


perguntou fazendo aspas com os dedos.
— Imagino que ela não me vê assim, que não consegue pensar em sexo
e em mim, entende?

— Mas você é bem atraente e, que eu me lembre, beija muito bem —


disse e deu de ombros. — A gente não deu certo porque trabalhamos juntos.
Não seria nada profissional.

— Claro. A questão é que ela tem algumas barreiras que precisam ser
respeitadas, mas como eu faço pra deixar ela saber que a desejo sem parecer
insistente? Não quero apressar as coisas, ainda assim, queria deixar ela saber
o quanto a desejo, mesmo que espere o tempo que for preciso. Não sei, eu
sinto que ela me vê como um menino.

— Você não é mais um menino há muito tempo, você é maduro para a


sua idade e mais decente do que muitos homens de trinta anos. Se ela não
consegue enxergar isso...

— Como fazer para ela enxergar?

— Quer que ela saiba que você quer transar?

— Isso. — Mesmo com o vinho, senti meu rosto arder. — Mas sem
parecer que estou forçando a barra. Sei que isso não vai acontecer tão cedo.
Só queria que ela começasse a pensar na ideia do sexo...

Não queria entrar em detalhes da vida de Lucy com Mikaela, mesmo


assim precisava de uma opinião feminina. Não conseguia perceber que Lucy
sentia desejo por mim. Ela era doce, amorosa, carinhosa, mas não tinha nada
de sexual nos seus gestos. E, com toda a paciência do mundo, queria fazê-la
se dar conta de que poderia seguir em frente, que as agressões e traumas
faziam parte de um passado que ela precisaria deixar para trás.

Só que eu não conseguiria fazer isso sozinho, não sabia como agir com
ela. Um simples abraço poderia estragar tudo. Não conseguia fazer com que
as coisas acontecessem naturalmente. Ela me excitava, fazia meu corpo
queimar. Seus lábios, sua pele, seu corpo, era tudo que eu mais desejava, mas
tinha medo que ela sentisse uma das minhas ereções e pensasse algo ruim
sobre mim.

Era muito difícil quando não se tinha muita experiência nem coragem
suficiente para falar a respeito.

— Você é um fofo, sabia?

— Não quero parecer um fofo.

— Eu sei. Entendi o ponto que você quer chegar. Mas não deixa de ser
fofo o fato de você ter me procurado para conversar sobre o jeito certo de
tratar uma garota.

— Steven não saberia dizer, porque ele não é mulher — argumentei.

— Perfeito o seu pensamento. Nenhum homem pode ensinar ao outro


como tratar uma mulher melhor do que nós mulheres podemos. Enfim,
infelizmente, acho que não tem muito o que você possa fazer para resolver
isso, além de se sentar com ela e conversar. Essa garota deve ser tímida. Não
tanto quanto você, óbvio, mas deve ter um pouco de timidez, sim. Acho que
não seria nada legal você começar a avançar o sinal. Uma passada de mão, se
ela não estiver à vontade, pode deixá-la muito constrangida. Não tem nada
melhor do que conversar.

— Como? — insisti sentindo o desespero que seria.

— Diga que a deseja, que você quer fazer isso com ela. Que às vezes
você sente como se ela não te enxergasse como homem, mas que você é, e
que sente atração por ela dessa forma, porém que vai ser paciente e esperar o
tempo dela. Que não quer pressionar, só quer que ela te enxergue do jeito
certo.

— Pode repetir para eu gravar? — brinquei e Mikaela deu risada.

— É como imagino que você está se sentindo. Você é incrível, Axel —


ela disse com sinceridade. — Mas é tão retraído que não consegue expressar
o que sente. Muitas vezes, parece que você é indiferente às coisas que
acontecem ao seu redor. Quando alguém vem te elogiar, te dar os parabéns
pelas suas apresentações maravilhosas, parece que você não dá bola, que nem
liga.

— Não lido bem com elogios. Não sei se devo acreditar, se devo ser
simpático, se devo ficar sério.

— Sei disso. Te conheço o suficiente para saber que você se fecha


dentro da sua própria cabeça, e o quanto é difícil permitir que alguém se
aproxime, que faça parte da sua vida. Você é tímido até comigo! Passamos
semanas transando e você ainda precisa de uma garrafa de vinho para
conversarmos — ela disse apontando para a garrafa pela metade.

Engoli em seco e olhei para minha taça.

— Você sabe que eu estava bêbado na maior parte do tempo, não sabe?

— Sim, eu sei — ela disse. — E agora você não tem coragem de me


olhar nos olhos só por lembrar daquilo.

Me forcei a erguer o olhar e encará-la, mas o máximo que consegui foi


olhar sua boca. Os lábios carnudos estavam vermelhos por conta do vinho.

Ela se levantou do sofá e veio sentar ao meu lado.

— Acho que essa garota já está te fazendo bem, mas espero que ela te
faça relaxar muito mais — dito isso, ela apertou minha mão que estava sobre
meu joelho. — Não quero te assustar, mas você está crescendo como músico.
Vai chegar uma hora em que precisará se reunir com outros empresários,
donos de gravadoras, organizadores de festivais, e não se pode fazer tudo
bêbado. Seu trabalho não se resume apenas a compor e tocar em festas.

— Pensei que você pudesse resolver tudo isso para mim — brinquei,
conseguindo enfim encará-la novamente. — Obrigado por me ouvir. Não sei
de onde tirar coragem, mas vou seguir seu conselho e conversar com Lucy.

— Lucy?
— É o nome da minha namorada — falei com orgulho. — Agora
preciso ir. Vi uma coisa que é a cara dela numa loja aqui na rua. Espero que
ainda esteja aberta. Ela vai no meu show amanhã.

Fiquei de pé, enchi minha taça outra vez e bebi mais um pouco de
incentivo, para que eu pudesse ir até a loja sem ter nenhuma crise de
ansiedade.

Segui para o hall de entrada, onde calcei os tênis.

Mikaela parou de braços cruzados há alguns passos de mim.

— Essa Lucy tem muita sorte de ter um namorado como você.

Dei um aceno de cabeça e saí. Era eu quem tinha sorte.


Acordei com o celular tocando. O dia estava amanhecendo. Era Axel.

— Bom dia — murmurei com a voz sonolenta.

— Como assim, vai ficar de babá? É alguma pegadinha? — Sua voz


estava irritada.

— Também pensei que fosse. Meus tios vão sair com um casal e vou
ficar de babá do filho deles — lamentei. — Eles sempre saem juntos e me
deixam com a criança.

— Não acredito, Lucy. Queria tanto que você fosse. Até falei para os
meus amigos que minha namorada estaria me assistindo. Eles perguntaram se
você era imaginária.

— Desculpa, eu também queria ir. Queria muito.

— Escuta, eu comprei uma coisa para você em Malmö. Passei em casa


para pegar umas roupas e deixei em cima da minha cama numa sacola preta.
Pegue quando chegar, ok?

— Não vou te ver hoje, não é? — perguntei com o coração apertado.

— Estou de saída para Malmö. Preciso comprar outro aparelho e


depois organizar algumas coisas para a festa. Tem certeza que não pode ir?
— Só se eu arranjar um clone — brinquei, mas sem nenhuma graça. —
Boa sorte na apresentação.

— Obrigado. Estou com saudades.

— Também estou.

Entrei no quarto de Axel escondida assim que cheguei à fazenda


Hansson. Havia mesmo uma sacola de papelão preta sobre a cama arrumada.
Me perguntei onde ele tinha passado a noite, mas procurei não me abalar com
as ideias. Abri a sacola, afastei o papel de seda laranja e encontrei duas peças
de roupa. As retirei do pacote. Era um vestido marfim, de algodão bordado,
drapeado no busto, sem mangas, franzido na cintura, e com botões na parte
de trás. Era lindo, delicado e a minha cara. Fiquei de queixo caído. A outra
peça era uma jaqueta de couro preta. No fundo da sacola encontrei um colar
dourado com um pingente escrito Lucy e brincos de pérolas.

Minhas mãos estavam tremendo. Enfiei tudo dentro da minha mochila


e saí do quarto antes de ser pega, sabendo que precisava ir àquela festa.

Depois do almoço, fiz uma cena e corri para vomitar no quintal,


forçando o dedo na garganta. Senhor Hansson pareceu preocupado quando
fingi que estava com muita dor de estômago. Ele me mandou descansar, mas
minha tia me colocou para trabalhar assim que ele saiu de perto. Fiquei
correndo para o banheiro, enfiando o dedo na garganta, a cada meia hora, até
Cecilia Hansson nos mandar embora para casa.

Consegui deixar tia Esther preocupada.

— Encontre outra babá para o menino. Lucy está botando as tripas para
fora desde a hora do almoço — ela disse para Alan Peter ao telefone. —
Cecilia nos dispensou mais cedo para que eu a levasse ao médico.

— Não vou levá-la ao médico para passar um remédio caro! — ouvi


Alan Peter gritando. — Mande-a deitar assim que chegar em casa, vai ficar
boa logo.

— Também acho — ela disse antes de desligar.

— Não preciso ir ao médico — falei com a voz moribunda.

— E não vai. Foi só alguma coisa que deve ter comido. É o que dá ter o
olho maior que a barriga.

— Nem me fale em comida! — implorei com a mão na boca. Tinha


fingido tanto que até eu estava acreditando naquilo.

Tudo para ver meu namorado tocar.

Ao chegar em casa, me joguei no sofá e fiquei gemendo. Alan Peter me


lançou um olhar mal-humorado e me mandou tomar um antiácido. Fiz que
sim com a cabeça e me arrastei à cozinha. Para aumentar o drama, corri até o
banheiro e fingi estar vomitando outra vez.

Só liguei para Axel quando os vi saindo e tive certeza de que não iriam
voltar.

Ele atendeu no segundo toque.

— Estou livre. Como faço para chegar nesse clube? Sabe que ônibus eu
preciso pegar?

— O que aconteceu? — Axel quis saber.

— Fingi que estava doente e arrumaram outra babá — falei vitoriosa.


— Todo mundo acreditou. Até sua mãe. Mereço um Oscar.

— Você é demais, Lucy!

— Você que é. Amei a roupa!

— Achei a sua cara — ele disse. — Olha, já estou aqui no clube e não
posso sair, mas vou pedir para Steven ir te buscar. É um amigo meu. Não
precisa ter medo, ele é de confiança.

— Tem certeza? — perguntei sentindo aquela vozinha dizendo que não


seria seguro.

— Tenho — Axel disse com convicção, me fazendo ficar mais


tranquila. — Você já está pronta?

— Ainda vou me arrumar.

— Quanto tempo vai levar?

— Quarenta minutos — respondi. — Diga para ele me esperar na


esquina.

— Tudo bem. A gente se vê logo.

— Até daqui a pouco.

Pulei pelo corredor, enquanto seguia para a cozinha. Era minha


primeira festa e não saberia nem onde colocar as mãos, mas estava
empolgada. Ia ver meu namorado tocar.

— Meu namorado! — gritei sozinha, enchendo um prato com as sobras


de espaguete da noite anterior. Esquentei no micro-ondas e comi em dois
minutos.

Tomei um banho, esfregando cada parte do meu corpo com uma


esponja, escovei os dentes e fui para o quarto. Vesti a melhor lingerie que
tinha. Não que eu fosse mostrar para alguém, mas era bom saber que estava
com uma roupa de baixo razoável. Arranquei a etiqueta do vestido e o
coloquei. Olhei no espelho e dei uma volta. Tinha ficado perfeito no meu
corpo, mas só vinha até metade das minhas coxas. Eu não usava algo tão
curto desde os doze anos. Mordi o lábio. Nada podia ser perfeito?

Pensei em vestir uma meia calça por baixo, mas não fazia tanto frio
naquele sábado. Não queria que Axel pensasse que eu não tinha gostado do
comprimento do vestido, ainda assim, não me sentia confiante o suficiente.

Passei um pouco de colônia e desodorante antes de vestir a jaqueta.


Espalhei hidratante pelas pernas e tentei olhar o espelho outra vez. Dava para
ver os músculos nas coxas, adquiridos por anos pedalando minha velha
bicicleta pela cidade. Não entendia como as garotas se sentiam bem usando
roupas tão curtas. Era como se eu estivesse nua.

Fiz a coisa mais prudente: cobri o espelho com um lençol. Se eu não


me visse, não pensaria em estar vulgar. Usei o espelho do meu estojo de
sombras para passar máscara nos cílios, até deixá-los bem longos e curvados,
usei batom vermelho e prendi a parte de cima dos meus cabelos com uma
trança arrepiada. Deixei o resto solto. Ele estava quase alcançando meu
quadril.

Calcei as velhas botas e coloquei o colar dourado com meu nome, os


brincos de pérolas, alcancei o celular, empurrei a cama para bloquear a porta
e passei pelas grades da janela.

Vi uma caminhonete preta parada na esquina. Tinha sido bobagem


pensar que cobrir o espelho ia resolver. Dava para sentir o vento frio contra
minhas coxas. Era uma sensação nova. Me vi puxando o vestido para baixo,
enquanto caminhava com passos vacilantes.

— Steven é amigo de Axel. É de confiança! — sussurrei ao me


aproximar do carro. Minhas pernas tremiam.

— Lucy? — o ouvi chamar da janela do motorista.

Engoli em seco tentando afastar o pânico.

— Oi — respondi.

Ele saiu do carro e deu a volta para abrir a porta do carona.

Era alto, pele clara, forte e tinha a cabeça raspada. Parecia ter vinte e
poucos anos. Uma voz tranquilizadora e um sorriso simpático, mas eu não
confiava em simpatia.

A caminhonete era alta. Segurei a parte de trás do meu vestido


enquanto subia e engoli a saliva quando Steven fechou a porta.

— Axel deve estar começando a tocar agora — ele comentou ao dar


partida. — É a sua primeira vez no clube?

— Sim — minha voz quase não saiu. Eu olhava para a maçaneta da


porta a todo momento.

— E vai ficar no backstage. Isso é legal.

— É. É sim.

Vi quando o carro passou pela Catedral de Agaton e contornou a


Kungsgatan, passando em frente a luxuosa fachada de mármore do salão
Felicious. Dali a dez minutos, com o trânsito livre, estacionamos perto de
uma fila enorme de pessoas bem vestidas. A vaga estava sendo guardada por
um rapaz de pele negra com o cabelo black power. Também aparentava ter
vinte e poucos anos.

Agradeci a Deus num sussurro quando desci do carro sã e salva.

— Ax começou a tocar — o rapaz negro falou para Steven.

— Imaginei. Essa é Lucy, a namorada de Ax — ele me apresentou.

— Então você não é imaginária! — ele brincou. — Sou Christer.


Vamos entrar?

Steven fez sinal para que eu o seguisse. Passamos pela fila gigantesca
de meninas de salto alto e rapazes atléticos. Vi um monte de gente da escola,
inclusive as pessoas que tinham sentado na nossa mesa. Eles acenaram para
mim da fila.

Sorri timidamente na direção deles, seguindo os rapazes. Ao nos


aproximarmos da porta, pude ouvir a música alta que tocava lá dentro. Meu
corpo se arrepiou, mas não foi de medo, muito menos de frio. Andei mais
rápido até alcançar os seguranças na porta. Meu coração batia de um jeito
novo. Estalei os dedos ansiosa e não contive a vontade de sorrir quando
Christer falou para um dos seguranças que eu era a namorada do DJ.

Passamos na frente de quem esperava para ser revistado e entramos no


clube Sensations.

Nunca vou esquecer a emoção que senti ao estar lá dentro pela primeira
vez. As luzes, a música eletrônica, as dançarinas se equilibrando em balanços
que pendiam do teto, parecia um mundo novo e incrível. Esqueci de Alan
Peter, de Cecilia Hansson, do meu vestido curto e todas as coisas ruins que já
tinha passado.

Havia duas garotas esperando por nós na entrada. Uma era negra com
rosto de anjo, de cabelos encaracolados e compridos. Usava um vestido preto
justo e saltos altos. A outra era uma loira de cabelos na altura do queixo,
tinha olhos azuis e lábios muito carnudos; usava calça jeans rasgada nas
coxas e uma blusa transparente que deixava à vista todo seu sutiã preto. Ela
era alta, com um olhar agressivo e muito sexy.

— Vai caber todas aquelas pessoas aqui dentro? — perguntei para


Steven, vendo sua careca brilhar com as luzes coloridas. O lugar já estava
cheio.

— Tem que caber — ele respondeu com um sorriso brincalhão. —


Tem uma festa grande em Malmö hoje, mas eles preferiram vir para cá ver
Ax tocar.

— Ele é demais — comentei sentindo minha vergonha minimizada


pelas emoções positivas. Procurei pelo palco e encontrei, mas não consegui
enxergar Axel de onde estávamos.

— Vou te apresentar às garotas. Esta é Filippa — Steven disse


gesticulando para a garota negra. — E esta é Mikaela.
Fiquei encarando a mulher sexy e intimidadora à minha frente.

— Me chamo Lucy — falei.

Filippa apertou minha mão e Mikaela me olhou de cima. Ela tinha mais
de 1,70m e ainda estava de salto. Me senti a menor adolescente do mundo.
Imaginei Axel beijando aqueles lábios carnudos. Se ela desse em cima dele
novamente, duvido que ele me escolheria. Eu não me escolheria.

— Vamos para o palco? — Mikaela perguntou desviando o olhar para


Christer.

— Vamos — ele respondeu.

— Não ligue pra Mikaela — Steven sussurrou perto do meu ouvido —,


ela tem essa marra, mas no fundo, bem no fundo, é legal.

Dei um sorriso amarelo, envergonhada por ele ter percebido minha


reação à garota que tirou a virgindade do meu namorado.

A música estava cada vez mais agitada. Atravessamos o clube andando


perto um do outro, exceto por Mikaela que ia dançando na frente. Vi uns
garotos muito loucos pulando ao som das batidas e me perguntei se, caso eu
bebesse a mesma coisa que eles, também ficaria daquele jeito. Era um mundo
completamente diferente do meu.

As garrafas e os copos passavam de mão em mão, os baldes de gelo


cintilavam em cima das mesas altas, redondas e estreitas, que só cabiam a
bebida.

Não conseguia me arrepender de ter vindo.

Até passarmos pelo segurança que guardava a entrada do backstage, eu


ainda não tinha conseguido ver Axel. Entramos por trás do palco e subimos
os degraus. Então eu o vi. Usava jeans justo na bunda e nas coxas, tênis e
camiseta branca. Os headphones estavam acima das suas orelhas, com a alça
na testa. Sem nos ver, ele bebeu alguns goles direto do gargalo de uma
garrafa de vodca. Mal pude acreditar quando o vi mexendo o corpo ao som da
música.

Pisquei os olhos. Percebi que já estava apaixonada por Axel desde o


ano passado. Percebi também que nem todos os príncipes usavam coroa,
alguns usavam headphones. Mordi o lábio orgulhosa dele.

Mikaela, Filippa, Christer e Steven dançavam ao meu lado.

Filippa me ofereceu um copo de vidro contendo uma bebida cor de rosa


com rodelas de morango no fundo, cubos de gelo e um canudinho. Aceitei e
comecei a beber. Era doce, deliciosa e fazia minha garganta arder.

A batida foi mudando e entrou outra música. Quando Axel se virou na


nossa direção e me viu, eu já havia bebido tudo.

Ele esticou a mão para me puxar. A peguei e o beijei sem inibições,


sem me importar com a multidão nos assistindo.

— Você está linda demais — ele disse, enquanto eu esfregava o


polegar pelos seus lábios para tirar a marca de batom vermelho que eu tinha
deixado nele. — Muito linda!

Recebi o sorriso mais bonito que um garoto poderia me dar.

Quando ele começou a tocar um remix de New Rules da Dua Lipa, eu


já estava no segundo copo daquela bebida deliciosa e Axel tinha secado a
garrafa de vodca.

Não aceitei outro copo. Não era a primeira vez que eu bebia. Álcool
sempre esteve presente na minha casa. Alan Peter me fez experimentar
quando eu ainda era muito nova, por isso eu tinha consciência que a manhã
do dia seguinte poderia ser terrível se não me controlasse. Precisava pegar
leve.

A música da Dua Lipa acabou e, ao invés de outra começar


imediatamente, Axel pegou um microfone, que estava sobre seu
equipamento, e com facilidade subiu na mesa de som.

Se eu não tivesse certeza de que aquele era mesmo meu namorado,


imaginaria que ele tinha um irmão gêmeo. O garoto tímido que sentava atrás
de mim na escola jamais subiria em cima da mesa de som com uma multidão
o assistindo.

Santa vodca!

— Vejo que tem muitas garotas aqui hoje — Axel começou a falar no
microfone, sua voz atingindo cada canto do Clube. As meninas gritaram no
salão. — Sim, tem muitas garotas. Algumas levaram horas se arrumando para
vir até aqui, outras não demoraram tanto. Sei que tem muitas de vocês que se
sentem frustradas por não atingirem o padrão de beleza que julgam ideal e,
mesmo que caras como eu as elogiem, vocês não vão dar muita bola. Eu só
queria que soubessem que há alguém que acha vocês bonitas do jeito que
vocês são, alguém que não mudaria nada em vocês, que as acham perfeitas.
Garotas, vocês são incríveis, e o que vocês acham que são defeitos, são as
qualidades que as fazem únicas. Eu tenho uma garota, e ela é perfeita para
mim. Não canso de lhe dizer isso, mas acho que ela não me dá muita bola.
Essa música é para cada uma de vocês. Mandem os padrões se foderem,
porque vocês já são lindas do jeito que são.

Eu estava em choque quando ele acabou de falar. As meninas


continuavam gritando. As batidas da música começaram quando Axel descia
da mesa. Ele veio na minha direção, segurou minha mão e olhou para o telão
atrás do palco, onde seu nome brilhava.

— Essa é a garota que faz meu mundo parar toda vez que ela sorri —
Axel disse ainda no microfone e olhou para mim.

Não sabia descrever o que estava sentindo naquele momento. Olhei


para o telão e me vi nele. Começou com o vídeo que ele tinha feito na mini
van do seu pai, comigo com a cabeça no seu peito, o cabelo bagunçado e o
suéter horroroso.

— Para mim, você é a garota mais linda do mundo — Axel sussurrou


quando me puxou para mais perto.

Eu continuava atônita observando a montagem dos meus vídeos


passando ao som de Just The Way You Are do Bruno Mars.

— Você é o garoto mais perfeito do mundo! — falei apertando meus


lábios contra os seus sem me importar que tivesse um fotógrafo ali, com
Mikaela, com o hálito de vodca na sua boca, muito menos a opinião das
garotas do colégio. Eu só queria demonstrar o quanto estava grata por ele.

De repente, percebi que Mikaela não era ameaça. Mesmo que ela fosse
milhares de anos luz mais bonita que eu. Era de mim que Axel gostava, e eu
não ia ficar cheia de paranoia por ser baixinha, por não ter aquele olhar sexy,
por não ser como ela. Porque o único rapaz do universo inteiro que me
importava, me achava bonita do jeito que eu era. E era comigo que ele estava.

— Obrigada — murmurei contra seu ouvido após o beijo que tirou


nosso fôlego.

— Se eu pudesse, te daria o mundo — ele disse.

Não respondi, mas era Axel que merecia tudo. E, pela primeira vez na
vida, tive certeza e fé em uma coisa: que sua música conquistaria o mundo.
Quando a apresentação acabou, eu já me sentia parte de algo muito
maior do que jamais imaginei participar.

Era empolgante estar ali, bem ao seu lado, perto de todas aquelas
pessoas felizes, e sabendo que Axel era responsável por espalhar aquela
energia positiva.

— Foi o melhor show de todos! — Mikaela disse orgulhosa, com as


mãos postas encarando o rapaz cheio de sardas e com o aparelho visível no
seu sorriso largo.

A timidez de Axel tinha desaparecido totalmente quando Mikaela o


agarrou com os braços finos, e o cabelo loiro sacudindo, enquanto eles
pulavam comemorando.

Não era hora para sentir um aperto no peito causado pelo ciúme de ver
meu namorado com aquela mulher maravilhosa. Mordi o lábio ao me dar
conta de que ter ciúmes dos dois seria ridículo. Primeiramente, se ela o
quisesse teria ficado com ele. Ponto Final.

Sem ameaças. Sem competições. Mikaela não ia tentar roubar meu


namorado. E... mesmo que ela tentasse, Axel gostava de mim, não é mesmo?

Minha segurança se reforçou quando ele saiu dos braços magros da


loira e me agarrou ali na frente de todo mundo.

Seus lábios tinham gosto de vodca e cigarro, mas eu não liguei, retribui
na mesma intensidade, fazendo uma nota mental para lhe contar como ele
perdia a vergonha quando estava bêbado. Meus pés saíram do chão quando
ele me girou. Encostei a testa na sua e tentei recuperar o fôlego. O clube
Sensations transformava-se em um borrão colorido ao nosso redor.

— Foi o melhor show que já vi — comentei, enquanto ele me colocava


de volta no chão.

— Você já assistiu outros DJ’S? — Axel quis saber.

— Não, mas tenho certeza que, não importa quantos DJ’S se


apresentando eu tivesse visto, esse ganharia de todos — falei.

Seu sorriso era cheio de confiança. Talvez porque aquele era seu lugar:
o palco. Era sua área. A música era o que fazia se sentir à vontade. Aquele
era seu dom, e Axel sabia disso.

Vê-lo tão seguro de si mesmo era novidade para mim.

— After na casa de Mikaela — Christer anunciou entre os abraços e


felicitações.

— A noite só está começando — Filippa cantarolou.

Me lembro de ter pensado que para mim a noite não estava começando,
que ela já deveria estar acabando, que meus tios iriam voltar daquele jantar e
que eu precisava estar em casa. Só que eu também tinha bebido, e todas
aquelas luzes e sorrisos me fizeram entrar no banco de trás da caminhonete
de Steven, onde me espremi com Axel e as outras garotas.

Era a primeira vez que me divertia tanto, que ninguém estava olhando
para mim e torcendo o nariz por eu ser Lucy Peter.

— Alô? — Mikaela berrou ao telefone quando descemos na calçada de


um prédio de cinco andares. — Sim. Ele pode!

— O que? — Axel perguntou, mas ela fez sinal para que ele esperasse.

— Eles te querem sexta-feira que vem em Malmö! — ela anunciou aos


gritos. — Adoraram o show!

Houve mais gritos de parabéns e abraços antes de finalmente


começarem a se dirigir à entrada do prédio.

— Vem cá — Axel me puxou pela mão, me guiando para atravessar a


rua em direção a uma área verde que havia do outro lado.

As luzes dos postes faziam seu sorriso brilhar. Ele nunca mostrava o
aparelho daquele jeito sem a vodca. Quase comentei isso. Seu sorriso era
sempre tão tímido. Mas aquela era a sua noite, seu momento, e não queria
estragar nada.

— Você vai conquistar o mundo — falei quando coloquei os pés na


calçada. — Tenho certeza disso!

— E você estará lá comigo, perto do palco, todas as vezes — ele disse


passando a mão no meu cabelo.

— Todas — confirmei, mas a verdade é que eu não sabia nem se


continuaria viva quando voltasse para casa.

— Essa é a melhor noite da minha vida — Axel disse me guiando para


uma abertura na cerca viva, por onde passamos, entrando em um jardim. —
Porque você veio.

— Também é a melhor noite da minha vida — garanti mordendo o


lábio.

Reparei que seus olhos se fixaram na minha boca e ele engoliu a saliva.

— E poderia ser melhor — Axel murmurou com o timbre de voz


diferente. — Seria perfeito.
Também engoli a saliva. De repente, todos os meus sentidos ficaram
em alerta e os sinais de embriaguez sumiram com aquelas simples palavras,
pois sabia o que elas significavam.

Seus dedos deslizaram pela minha testa. Olhei em volta, procurando


pela abertura na cerca viva, por onde tínhamos acabado de entrar.

— Lucy? — ele me chamou e voltei a encará-lo. Seus olhos azuis


pareciam pegar fogo.

— Acho que deveríamos voltar e subir para o apartamento. Nunca fui a


uma after — tentei argumentar.

— Tenho certeza de que não irão faltar oportunidades. Mas prefiro


ficar aqui com você.

— Ah... — sussurrei com os olhos arregalados.

Seu polegar direito atingiu minha boca, fazendo cócegas no meu lábio
inferior, antes de ele me beijar. Meus braços estavam caídos ao lado do meu
corpo e eu não conseguia movê-los. Sabia que não era assim que eu devia me
sentir ou agir, que era para ficar empolgada com aquilo, mas eram muitos
traumas que eu não conseguia superar. Mesmo que fosse Axel Hansson, o
garoto mais incrível da escola. Eu ainda era Lucy Peter, a garota que morria
de medo de ficar sozinha com homens.

— Você sabe que eu queria muito mais que te beijar, não é?

Sua pergunta me tirou o fôlego.

— Sei que sou tímido demais, que pareço idiota, babaca, e só estou
falando isso porque bebi mais do que deveria, ainda assim, eu sou homem,
Lucy. E você não faz ideia do quanto eu queria que a gente fizesse mais que
só beijar, como eu fantasio que você seja sem essas roupas. Imagino você nua
desde o ano passado. Penso nisso todas as noites desde que te vi pela primeira
vez.
— Ax — sussurrei numa mistura de súplica e desespero.

— Quero você. Meu corpo, meus instintos, minha carne, meus


pensamentos, tudo em mim sonha com esse momento. Mas, minha princesa,
nada disso me faria perder o controle. Sempre vou respeitá-la. Não sou eu
quem decido. É você. Só você, Lucy. Só estou dizendo essas coisas porque
sequei uma garrafa de vodca e não quero que você pense que sou um babaca
tímido e assexual. Mesmo com a timidez, sou homem. Entende?

Fiz que sim com a cabeça, tentando retomar o controle da minha


respiração.

— Não quero te fazer pressão nem nada disso. Só queria esclarecer


como me sinto.

— Não te acho idiota nem babaca, muito menos assexual. Você é


muito sexy, na verdade — falei para tentar amenizar aquele clima tenso. — É
muito mais sexy do que pensa. Mas ainda tem muita coisa que não consigo
sequer pensar em fazer. E sexo é uma delas.

— Você me disse e eu aceito esperar o tempo que precisar. Saiba que,


quando eu conseguir fazer você se sentir à vontade, e com vontade, e a
gente... Vou ser o cara mais sortudo do mundo.

Abri um sorriso aliviada por saber que, apesar da bebedeira, ele ainda
era o príncipe por quem eu era apaixonada. Que, para quem tinha caráter, o
álcool não era desculpa para invadir os limites de uma garota, e que tinha
ficado assustada atoa. Mas eu não seria Lucy Peter se não tivesse esses
momentos de pânico.

— Posso te perguntar uma coisa? — meu príncipe quis saber.

— Claro.

— Eu não te deixo nem um pouquinho excitada?

Precisei limpar a garganta para responder.


— Acho que deveríamos mesmo ir até o apartamento da sua agente e
nos juntar aos outros — falei tentando escapar daquela conversa e ao mesmo
tempo pensando a respeito.

Gostava quando ele me beijava, amava seu carinho, mas pensar se


ficava excitada ou não ia além das minhas barreiras.

— Tem certeza que quer se reunir a mais garrafas de bebida e muita


fumaça? — Axel perguntou com a sobrancelha loira arqueada.

— Não...

— Vem, tem um banco ali — ele disse me puxando mais para dentro
do jardim, até um banco de ferro, com a tinta azul desbotada, embaixo de um
poste de praça com luz amarelada.

Nos sentamos.

— Obrigada pelos presentes — disse tocando o pingente com meu


nome. — São as coisas mais bonitas que já tive.

— Pensei em pedir a Filippa que me ajudasse a escolher, mas quando


vi essas roupas na vitrine achei a sua cara.

Instantaneamente puxei a barra do vestido na tentativa de cobrir o


máximo possível das minhas coxas.

— Está com frio? — ele quis saber. — Podemos ir para a


caminhonete...

— Não! — Quase confessei que estava com vergonha de usar algo tão
curto. — Eu aguento.

— Deixei minha jaqueta no clube. Que droga!

— Não tem problema. Você pode me abraçar — comentei erguendo as


sobrancelhas.
No mesmo instante seus braços envolveram minha cintura e eu fui
puxada para seu colo.

— Obrigado, de verdade, por ter feito o impossível para vir. Significou


muito para mim — ele disse ao esfregar as mãos no meu braço e na minha
coxa, sem saber o quanto aquele toque me deixava desconfortável.

Fechei os olhos por um instante e prometi a mim mesma que ia lutar


contra os pensamentos ruins e as terríveis lembranças. Axel não era um
escroto desgraçado que ia me machucar.

— Também significou muito para mim, e aquilo com a música do


Bruno Mars foi incrível! — falei me lembrando do clipe com meus vídeos
medonhos. — E tudo que você disse para aquelas garotas foi surpreendente.

— Fico feliz que tenha gostado — Axel disse e sorriu, mas sem
mostrar o aparelho, o que indicava que a embriaguez estava passando e a
timidez voltaria. — Não sei se falei coisa com coisa. Estava morrendo de
medo de você me xingar por causa dos vídeos.

— Todo mundo adorou e eu fiquei lisonjeada. Apesar de que estava


parecendo um espantalho na maioria daqueles vídeos, foi maravilhoso...

— Eu amo você — Axel me interrompeu, fazendo meu coração


disparar como um criminoso em fuga. — Não é de agora. Eu já te amava
muito antes de falar com você pela primeira vez, Lucy.

— Eu também te amo, Axel — sussurrei com a voz trêmula, porque se


falasse mais alto acabaria chorando.

Dessa vez fui eu que me inclinei para mais perto e o beijei. Minhas
mãos agarraram a gola da sua camisa e eu gostei de sentir seu peito
musculoso contra meus antebraços. Gostei de como uma de suas mãos
apertou forte bem abaixo das minhas costelas, e como a outra subiu mais um
pouco na minha coxa. Adorei a sensação da sua pele em chamas contra a
minha e relaxei nos seus braços.
Quando o Toyota de Axel parou na esquina da minha rua, os primeiros
raios de sol apareciam por trás das casas pequenas.

Eu estava tão apaixonada que só conseguia imaginar o quanto me


sentia feliz.

Corri até a janela e suspirei antes de retirar as borrachas para afastar a


grade.

— Ele me ama! — cochichei para mim mesma com o peito quase


explodindo de paixão.

No momento em que entrei pela janela do meu quarto, toda aquela


felicidade foi roubada de mim.

Alan Peter me esperava na penumbra, sentado na minha cama.


As bochechas de Axel estavam coradas e sua respiração ofegante,
enquanto ele ajudava Elton Hansson a instalar prateleiras na garagem e
tentava manter uma conversa comigo por chamada de vídeo. Havia contado
ao senhor Hansson que estava namorando a sobrinha e ajudante da
empregada.

Acho que não foram exatamente essas palavras que Axel usou, mas
provavelmente tinha sido isso que senhor Hansson havia pensado. Devia ser
um desgosto, ainda assim, pelo menos ele não se opôs.

— Depois que acabarmos aqui, e eu tomar um banho, posso passar aí


para a gente sair e jantar? Pizza ou comida japonesa? — Axel perguntou
limpando o suor da testa.

Um cinto cheio de ferramentas estava preso à cintura de Elton


Hansson, mas era o filho que fazia o trabalho mais duro.

Meu estômago traiçoeiro e sem noção roncou com a ideia de jantar


comida japonesa.

Soprei uma mexa de cabelo que estava caída sobre a testa e olhei
melancolicamente para a janela do quarto, onde as grades tinham sido
soldadas. Bem, eu poderia passar correndo pela sala, onde Alan Peter estava
assistindo a uma partida de futebol, e fugir pela porta, para encontrar Axel e
jantar. Seria ótimo, mas e depois?

O depois me assustava ao ponto de recusar o convite do meu


namorado. Não queria ser espancada de novo. Doía cada vez que eu
respirava.

Faltavam poucas semanas para fazer dezoito anos, então a coisa toda ia
ficar muito feia para o meu lado. Havia um hotel de quinta numa área
peculiar de Agaton. Justamente ali que Alan Peter fazia planos de me levar
todas as noites posteriores ao meu aniversário. O dono do hotel não se
importava em alugar quartos por uma ou duas horas para que seus hóspedes
trouxessem uma prostituta.

Minha garganta se fechava com a ideia. Sabia que precisava planejar


uma fuga o mais rápido possível, encarar o mundo lá fora, que poderia ser
bem pior que Alan Peter, mas eu não ia ficar para ver acontecer.

Só que não conseguia ter ideias naquele momento. Não tinha me


arrependido de ter ido ao clube Sensations, mas não estava com meu melhor
humor.

— E aí? — Axel perguntou.

Pela tela do celular podia ver que seu pai também estava esperando
pela resposta, como se temesse que eu fosse dar um fora no seu filho.

Engoli em seco, sentindo o estômago roncar em parceria com o latejar


na região das costelas.

Pelo menos Alan Peter tinha poupado meu rosto. Ri com sarcasmo.

— Pizza ou comida japonesa?

— Não posso sair hoje — respondi. — Não quero abusar da sorte.

— E se eu passar aí mais tarde, depois que eles dormirem? Eu levo a


comida e a gente vai...
— Não posso sair, Axel! — Minha garganta estava se fechando e podia
sentir as lágrimas se formando.

— Ok. — Ele pareceu magoado. — Vou terminar isso daqui. Depois


nos falamos.

— Tudo bem.

Quando ele desligou, me levantei da cama devagar e fui até a janela,


onde tinha pendurado a toalha molhada para que a brisa fria a deixasse
gelada. Fiz uma bola com a toalha, ergui o suéter largo e a coloquei
exatamente dois centímetros à esquerda do pedaço de esparadrapo (onde
Alan Peter tinha feito um corte com a ponta do sapato, entre meu umbigo e a
costela esquerda).

A dor me fez encolher os ombros, mas trinquei o maxilar e resisti,


pressionando a toalha contra a massa roxa que tinha virado minhas costelas.
Doía tanto que faziam as lágrimas escorrerem involuntárias, mas imaginava
que a toalha gelada ia ajudar a amenizar a dor. Não encontrei forças para
fazer o processo do lado direito, que estava bem pior, e me deitei encolhida
na cama, ainda mantendo a toalha na mesma posição, até que a dor amenizou
e peguei no sono.

Despertei com as pancadas na porta.

— Só vim chamá-la porque ele é filho dos patrões e não quero


problemas — Alan Peter resmungou na porta entreaberta. — Levanta logo,
não deixe o garoto Hansson esperando!

Saí da cama o mais rápido que meus machucados permitiram e


cambaleei para fora do quarto, tentando arrumar o cabelo e as roupas. Entrei
no banheiro e lavei o rosto, antes de atravessar a sala depressa, ainda assim,
sendo invadida pelo fedor de cerveja que vinha dali.
— Ficou maluco? — perguntei para Axel que estava com as costas
apoiadas contra a coluna de madeira que sustentava o pequeno quadrado de
telhado que cobria a entrada da porta.

— Você está estranha comigo e eu sabia que não me responderia a


verdade pelo telefone — ele se defendeu.

— Não estou estranha...

— Está sim! — Axel se afastou da coluna, se colocando na minha


frente, as costas largas por dentro da jaqueta de couro tapando a luz
amarelada que pendia do telhado, como Alan Peter tinha feito enquanto me
chutava.

— Não — sussurrei com as lembranças me fazendo encolher.

— Foi alguma coisa que eu disse ou fiz com você ontem, não foi? Só
me diga o que foi! Lucy, eu tinha bebido demais, não lembro...

— Você não fez nem disse nada demais — murmurei com medo dos
meus tios ouvirem a conversa.

— E por que está agindo como se fosse me dar um pé na bunda? Tenho


certeza que estraguei tudo, mas posso prometer que nunca mais vou beber.

— Seu caráter não mudou — falei o encarando para que ele


acreditasse. — E não vou te dar um pé na bunda, é só que...

Não consegui terminar de falar.

Aconteceu muito rápido.

Num instante, Axel estava fechando os braços com força em torno da


minha cintura, e no outro eu tinha o empurrado como se seu abraço fosse me
matar. Não pude controlar o gemido desesperado que soltei por entre os
dentes cerrados. Perdi o fôlego sentindo a dor me queimar por dentro. Mas
ele voltou quando parei de empurrá-lo. Com rapidez e o olhar duro, Axel
ergueu meu suéter até acima do meu sutiã, mas não foi nos meus seios que
seus olhos azuis congelaram, foram nos machucados no meu tórax.

— Foi ele? Só me diz se foi ele! — ele falou com uma fúria que nunca
pensei que o garoto tímido tivesse. — Foi seu tio?

Fiz que sim com a cabeça.

— Ele descobriu que eu tinha serrado as grades da janela. Estava me


esperando...

O rapaz com as bochechas fervendo de raiva tentou passar por mim,


enquanto soltava uma torrente de palavrões, mas me coloquei na sua frente
com as palmas das mãos viradas na direção do seu peito.

— Se entrar aí, vai ser muito pior para mim — argumentei aos
sussurros. — Ele só vai ficar mais furioso comigo.

Alguma coisa pareceu clarear nos pensamentos de Axel, porque ele se


deteve e a tensão deixou seu semblante.

Pegou o celular no bolso e ligou para alguém.

— Pai, preciso da sua ajuda. É uma coisa séria... — Não consegui


entender o resto dos seus sussurros, mas ele desligou e tornou a ligar para
outra pessoa.

Eles vão matar Alan Peter! Foi o que minha mente processou. A ideia
só pareceu horrível porque eu não queria que Axel tivesse o sangue podre do
meu tio nas mãos. Não queria que ele tivesse o mesmo destino da minha mãe.

— Vá até seu quarto e arrume suas coisas o mais rápido possível, só o


que for mais importante — Axel disse antes que eu pudesse pedi-lo para
parar. — Acabou Lucy, vou te levar embora daqui e ele nunca mais vai
encostar um dedo em você.

Soltei a respiração que estava prendendo.


— E por que chamou seu pai e...?

— Para o caso do seu tio tentar nos impedir.

Fiz que sim com a cabeça e entrei.

Imagens de Cecilia Hansson me enxotando da casa como se eu fosse


um cachorro povoaram minha mente, mesmo assim não parei, pois julgava
que Cecilia não poderia ser pior que Alan Peter.

Corri para meu quarto e comecei a juntar as coisas essenciais, como


documentos, a foto da minha mãe e as roupas menos velhas. Fui enfiando
tudo dentro da mochila da escola. Quando ficou cheia, fiz uma trouxa com
meus farrapos dentro do lençol da cama.

— Lucy! — Ouvi a voz de Axel me chamando da sala.

Surpreendentemente, tive tempo de sentir vergonha por ele ver o


muquifo onde eu morava e me perguntei o que ele poderia pensar.

Sacudi a cabeça, coloquei a mochila nas costas com o maior cuidado


possível e peguei minha trouxa de roupas. Quando atravessei o corredor, vi
Axel cercado por Steven e Christer, que seguravam um taco de hockey cada
um. Mal pude ver Elton Hansson ao lado da porta, minha visão ficou
embaçada pelas lágrimas que escorriam quentes pelo meu rosto.

— Acabou — Axel sussurrou contra meu ouvido ao passar o braço


protetor em torno dos meus ombros, em meio aos gritos, xingamentos e
ameaças que tomaram conta da sala.

Simplesmente deixei que me guiasse para fora, antes de lançar um


último olhar para minha tia Esther. Algo no seu olhar me fez pensar que ela
também queria ser resgatada.

Fomos escoltados por Steven e seu taco de hockey até o Toyota de


Axel. Christer vinha logo atrás com senhor Hansson.
Ainda podia ouvir a fúria nos gritos de Alan Peter mesmo com os
vidros do carro fechados.

As lágrimas escorreram e se acumularam na gola do suéter até Axel


estacionar na frente da varanda da sua casa. Steven e Christer fizeram o
retorno e voltaram para a cidade.

Engoli a saliva e sequei as lágrimas das bochechas, enquanto Elton


Hansson descia do seu carro e se aproximava para falar com o filho.

— O que vamos dizer a sua mãe? — ele quis saber.

Foi aí que a ficha caiu. Cecilia iria pirar.


Bater em crianças no nosso país é crime desde 1979. Os pais estão
proibidos de submeter seus filhos a castigos corporais ou emocionais, isso
também vale para seus responsáveis legais.

Minha irmã e eu fomos educados com amor e respeito, nunca


precisamos que nossos pais aplicassem lições que nos humilhassem.

Eu nunca soube o que era ver um adulto levantar a mão para mim.
Depois que conheci Lucy, pude enxergar melhor a sorte que tinha.

Me lembrava de como ela tinha ficado quando lhe contei que sabia o
que sua mãe tinha feito. Como aquela garota meiga pareceu ainda mais frágil,
murchando os ombros, se encolhendo. Suas palavras, o jeito como Lucy
contou os detalhes, rondavam minha cabeça a todo momento. Saber que a
garota que eu amava tinha sido estuprada quando ainda era um bebê me
destruía. Era uma sensação terrível, uma revolta enorme. Ela tinha passado
por aquilo na época em que não deveria ter recebido nada mais além de
carinho.

Por mais que a amasse, que desejasse ajudá-la no seu futuro, não
poderia fazer nada para arrancar aquela dor do seu peito, aquelas lembranças.
Não dava nem para imaginar o trauma de ver a mãe matar aquele monstro na
sua frente, quando ele ainda estava sobre ela. Depois ser levada para um
abrigo onde não conhecia ninguém. Ser separada da única mulher que amava,
estar longe da mãe no seu aniversário de cinco anos, viver tendo pesadelos,
só para depois ser entregue a um casal que continuaria a maltratando, que a
deixaria ser estuprada novamente, que batia, que humilhava.

Lucy não era a única. E eu só queria ter o poder de aniquilar todos os


estupradores e agressores.

Mesmo que existisse uma lei que protegesse as crianças suecas, o


governo ou a polícia não estavam presentes em todas as casas para saber tudo
que se passava dentro de um lar.

Não sei se poderia chamar aquilo de lar. Não se eu tomasse como base
o lugar limpo e seguro onde cresci. Mas aquilo era tudo que Lucy havia
conhecido desde criança. Amor, proteção e carinho foi algo que ela não
recebeu em casa durante a maior parte da vida.

Será que ela sabia que seu tio estava cometendo um crime cada vez que
lhe agredia? Será que ela tinha noção de que aquele não era o modo como os
suecos educavam seus filhos? Que a sua realidade não era a correta?

Não se tratava de ter que trabalhar, de ajudar sua tia, mas sim de ser
humilhada, explorada, de não ser considerara por eles como um indivíduo
que merecia total respeito.

Mais uma vez me senti egoísta por pensar que ela estava chateada ao
telefone por algo que eu tinha feito quando estava bêbado. Já sabendo de tudo
que ela passava em casa, era minha obrigação suspeitar que seu tio iria atacá-
la, caso descobrisse que ela tinha fugido pela janela para ir me ver tocar.

Ao invés de ser lógico, só consegui pensar que ela estava brava


comigo, que eu tinha passado dos limites após o show, depois de vários
drinques e aquele plano de deixá-la saber que eu sentia desejo por ela.

— Acho que passei dos limites com Lucy na noite passada — comentei
com meu pai, que me entregava uma das prateleiras para fixar na parede da
garagem, onde ele guardaria uma nova coleção de ferramentas.
— Como assim? — ele perguntou distraído, selecionando qual seria a
próxima prateleira a me entregar.

— Ela está estranha. Bebi demais no show, você já sabe. Lucy estava lá
e eu precisava fazer a melhor apresentação de todas. Queria que ela sentisse
orgulho de mim, que ficasse feliz em me ver tocar. Eu tinha gravado alguns
vídeos dela, e Steven os editou para que eu usasse no show.

— Ela gostou?

— Sim, ela ficou emocionada. Falei com as garotas da plateia, tentando


expressar o quanto cada uma era linda a sua maneira, que elas não deveriam
desperdiçar tanto tempo e energia se preocupando com padrões. Todo mundo
pareceu gostar.

— Tenho muito orgulho de você. Sinto que te eduquei da melhor


maneira possível, mesmo que sua mãe pense diferente. Mas por que acha que
Lucy pode ter ficado chateada depois disso? Espera... — Ele coçou a cabeça e
largou as prateleiras que estava mexendo, se virando na minha direção e
cruzando os braços. — Lucy foi no seu show depois de ter passado tão mal
ontem?

— Ela estava passando mal? — perguntei fingindo demência.

— Não te contou? Ela estava... — Meu pai fez uma pausa, me dei
conta de que tinha percebido a farsa. — Aquilo era só encenação? Ela não
estava doente de verdade?

Passei a mão no suor que se formava na minha testa e joguei o cabelo


para trás.

— É uma longa história. Não era vocês que ela estava tentando
enganar. Precisava mentir para a tia, só assim conseguiria ir ao meu show.

Meu pai franziu o cenho.

— Como eu disse, longa história. O importante é que, depois que


saímos do clube, eu posso ter sido um babaca com ela. Acho que insisti muito
com uma coisa e acabei ultrapassando seus limites. Agora, na chamada de
vídeo, ela me tratou como se não me conhecesse mais.

— Por que não termina de montar essas prateleiras e vai conversar com
ela? Se a família é mais conservadora e a mantém sob rédea curta, o melhor
seria você falar com o tio, explicar que estão namorando e que tem boas
intenções com ela.

Engoli em seco. Não havia contado a meu pai a espécie de família que
Lucy tinha. Ela havia me pedido segredo absoluto, e mesmo que ele fosse
meu pai, eu não tinha direito de contar seu segredo a mais ninguém.

— Vou fazer isso.

Continuei a tarefa e meu pai mudou de assunto, falando sobre alguns


homens que prestavam serviço temporário na fazenda, ajudando na parte
agrícola, e como alguns estavam planejando escapar para países mais quentes
quando a temporada de inverno rigoroso chegasse.

— Você também deveria tirar férias com a minha mãe — sugeri


tentando trabalhar mais rápido.

— E deixaria a fazenda com quem? Esqueceu que nos meses de


inverno precisamos ter cuidado redobrado com os animais?

Não tive coragem de responder. Eu era o filho que não seguiria os


negócios do pai nem seria o profissional que a mãe tanto sonhava. Ou seja,
uma decepção.

Estacionei o carro e segui para a varanda da casa onde eu tinha pensado


em bater uma semana antes.

Foi o tal do Alan Peter que atendeu. Era mais alto que eu, magro, mas
com uma barriga saliente, caída sobre a calça de sarja. Seu cabelo, com
entradas de calvície, parecia estar oleoso e despenteado.

— Sou Axel Hansson. Lucy está? — perguntei sem encará-lo. O


homem não aparentava ter força física, mas algo na sua expressão fazia eu me
sentir mal.

Entendi, naquele momento, como ele devia manipular Lucy, para que
ela não contasse a ninguém o que acontecia ali. Ele tinha um espírito ruim, a
casa transmitia uma energia desagradável, além do odor desagradável que
exalava do homem.

— Vou chamá-la.

Só quando ele saiu da minha frente, é que me dei conta de que tinha ido
até a casa dela sem ser convidado e sem ter bebido nada que pudesse me dar
coragem.

Me apoiei na coluna da pequena varanda e cruzei os braços. Ouvi o


berro abafado do homem e as batidas na porta.

Alguns minutos depois, que mais pareceram horas ali fora, ela apareceu
na porta. Usava roupas mais largas que as de costume.

— Ficou maluco? — perguntou furiosa.

Meu peito doeu.

— Você está estranha comigo e eu sabia que não me responderia a


verdade pelo telefone — murmurei envergonhado, pressentindo que Lucy
não iria me perdoar, seja lá o que eu tivesse feito ou falado.

— Não estou estranha...

Insisti que ela estava enquanto tentava me aproximar.

— Não — ela negou como se tivesse medo de mim, como se eu fosse


lhe machucar.
— Foi alguma coisa que eu disse ou fiz com você ontem, não foi? —
questionei sentindo o peso das palavras. Assumir que havia errado era
doloroso, mas não saber exatamente o que tinha feito era ainda pior. — Só
me diga o que foi! Lucy, eu tinha bebido demais, não lembro...

— Você não fez nem disse nada demais.

— E por que está agindo como se fosse me dar um pé na bunda? — A


sensação de que iria perdê-la só crescia, dominando meus nervos. — Tenho
certeza que estraguei tudo, mas posso prometer que nunca mais vou beber.

— Seu caráter não mudou. E não vou te dar um pé na bunda, é só que...

Não a esperei terminar, o alívio foi tão grande que a abracei com força.
Para meu espanto, Lucy me empurrou, soltando um grunhido como se eu a
tivesse tocado em uma ferida.

Os pensamentos trabalharam rápido. Deduzi no mesmo instante que o


tio havia descoberto que ela andava escapando pela janela.

Ergui seu suéter sem me importar com o cavalheirismo e vi as feridas e


os hematomas nas suas costelas. Foi horrível saber que aquela garota
maravilhosa, tão frágil e que já tinha sofrido tanto, havia sido espancada por
um homem que tinha quase o dobre do seu tamanho.

Me fez perder um pouco da fé na humanidade. Uma sensação tão ruim


de impotência que eu não conseguiria jamais descrever.

Perguntei se tinha sido ele, já sabendo da resposta. Minha voz tremia.

— Ele descobriu que eu tinha serrado as grades da janela. Estava me


esperando...

Dei um passo para entrar naquela casa, mas ela se colocou na minha
frente, segurando meu peito com as palmas das mãos.

— Se entrar aí, vai ser muito pior para mim. Ele só vai ficar mais
furioso comigo.

Ela tinha razão. Eu precisava raciocinar. Só dar umas pancadas naquele


desgraçado não iria poupá-la daquela vida. Eu precisava ter muito mais
coragem do que jamais havia tido.

Tirei o celular do bolso e liguei para meu pai. Tinha ciência do quanto
minha mãe estava sendo difícil nos últimos dias, de como ela jogava na
minha cara, cada vez que me via, que eu era uma decepção por não querer
fazer faculdade.

Não era nem de longe a melhor hora para fazer aquilo, sem contar que
eu só tinha dezessete anos, mas meu pai não se opôs quando lhe contei que
Lucy estava sendo espancada por estar namorando comigo, e que precisava
levá-la para nossa casa.

Liguei também para meus amigos Steven e Christer. Não sabia se havia
algum dos amigos de Alan Peter lá dentro, e não queria arriscar sozinho com
meu pai.

— Vá até seu quarto e arrume suas coisas o mais rápido possível, só o


que for mais importante — pedi tentando parecer determinado. — Acabou,
Lucy, vou te levar embora daqui e ele nunca mais vai encostar um dedo em
você.

Para minha surpresa, Lucy não se negou. Seus olhos se iluminaram,


como se ela tivesse esperado a vida inteira pelo momento em que alguém a
tiraria daquele inferno.

Quando ela entrou, me senti péssimo por não ter tomado aquela decisão
antes, por ter deixado chegar naquele ponto.

Meu reforço não demorou a chegar, como se eles tivessem vindo


voando.

— Posso quebrar a cara dele? — Christer perguntou segurando um taco


de hockey. Steven trazia outro.
— Ninguém vai quebrar a cara de ninguém — meu pai falou com
autoridade. — Não pagamos violência com mais violência.

— Droga — Christer resmungou sem que meu pai ouvisse.

Girei a maçaneta e entrei na casa.

— O que está acontecendo? — o desgraçado exigiu saber. Esther Peter


arregalou os olhos quando me viu.

— Você não tem vergonha de espancar uma garota? — meu pai


perguntou com a voz letal.

— Ela foi chorando contar para vocês? — Alan Peter perguntou, se


levantando do sofá e tropeçando em garrafas, indo na direção do pequeno
corredor, onde havia três portas. — É uma putinha mesmo. Lucy, vem aqui
sua filha de uma puta desgraçada!

— Como é que é? — Christer quis saber, mas eu já estava avançando


na direção do homem, recordando os golpes que tinha aprendido nas aulas de
defesa pessoal.

Steven e meu pai atravessaram na minha frente.

Uma gritaria começou.

— Lucy! — gritei para o corredor.

Logo, uma das portas se abriu e ela surgiu. Carregava uma mochila nas
costas e uma trouxa feita com um lençol apertada contra o peito. As lágrimas
escorriam pelas bochechas vermelhas.

O homem ficou ainda mais furioso quando percebeu que iriamos levá-
la embora. As ofensas aumentaram. Os xingamentos eram da pior espécie
possível.

Lucy parecia tão frágil, tão judiada quando chegou até nós. Pequena e
indefesa diante de um monstro.
— Acabou — murmurei contra seu ouvido, passando um braço ao
redor dos seus ombros, sem saber se aquilo iria machucá-la, e a levei dali.
— Não vou te deixar aqui fora, tenho medo de você fugir — Axel disse
ao abrir a porta para que eu descesse do Toyota.

Ele tinha razão. Eu fugiria.

— E se eu ficar no celeiro? — perguntei enquanto tirava minha


mochila do carro. — Não quero causar problemas.

— Nem eu permitiria isso — senhor Hansson respondeu pelo filho. Ele


se voltou para mim e colocou a mão sobre meu ombro. — Não tiramos você
da sua casa para colocá-la no meio do feno como se fosse um animal.

Apertei os lábios. Muitos animais eram mais bem tratados que eu. Não
me ofenderia, desde que não fosse desencadear uma confusão para Axel.

Mesmo assim, ele estava colocando a mão com cuidado na base da


minha coluna e me guiando em direção a casa. O border collie veio correndo,
ofegante e abanando o rabo. Me encolhi com medo de que ele pulasse em
cima de mim, mas senhor Hansson deu o comando para que Theodoro
parasse. Fiquei calma. Cada passo, cada respiração me causava dor nas
costelas, mas não queria preocupá-los, então dei meu máximo para ignorar a
dor.

Quando coloquei o pé no primeiro degrau de acesso a casa, um caroço


se instalou na minha garganta. Não seria mais obrigada a fazer as coisas
horríveis que Alan Peter queria. Ele não poderia mais me levar àquele hotel
imundo nem muito menos me forçar a fazer programa.

Respirei tão fundo que as costelas queimaram. Virei a cabeça e olhei


para o rapaz ao meu lado. Suas bochechas estavam muito coradas, como se
ele estivesse fazendo a coisa mais constrangedora da sua vida.

E era. Axel nunca tinha levado uma namorada para conhecer sua mãe,
e a primeira era a sobrinha da empregada, filha de uma assassina e estava
vindo se hospedar na casa. Alan Peter me mandaria do inferno para lá se eu
chegasse com um garoto em casa dizendo que ele ficaria conosco.

— Cecilia não é Alan Peter — sussurrei quando ele girou a maçaneta.

Travei os pés, com medo de entrar.

— Vem — ele disse me incentivando.

— Está frio, Lucy — senhor Hansson disse atrás de mim. — Entre.

Apertei a alça da mochila tão forte que meus dedos ficaram dormentes.
Passamos pelo vestíbulo e entramos na sala iluminada. Cecilia estava sentada
no sofá branco e impecável lendo um livro.

— O que vai dizer a ela? — perguntei baixinho. Mas ele estava tão
nervoso que não conseguiu responder. A timidez tinha voltado com força
total. Claramente, Axel se dava melhor com o pai. Apertei sua mão e
acrescentei: — Posso mesmo ficar no celeiro.

— Mãe? — ele a chamou com a voz rouca. Fiquei com pena de vê-lo
tão constrangido.

Com o cabelo arrumado e as roupas bem passadas, a senhora Hansson


ergueu o olhar do livro e encarou o filho. Em seguida, ajustando os óculos de
leitura, ela me olhou por um segundo, antes de voltar sua atenção para a
mochila nas minhas mãos.
— Sim? — ela quis saber.

— Lucy vai ficar com a gente — ele disse sem cerimônia. — Ela saiu
da casa dos tios.

Cecilia se deteve por um momento, imóvel, com o livro aberto nas


mãos.

— Não temos dependência de empregados — ela falou vagamente. —


Procure um motel para passar a noite. Tenho certeza que seus tios vão aceitá-
la de volta.

— Ela foi espancada — senhor Hansson disse dois tons mais alto que o
normal. — O tio dela...

— E o que temos a ver com isso? — a mulher disse com desdém,


fazendo eu me encolher ao lado de Axel.

— Lucy foi espancada pelo tio porque está namorando nosso filho —
senhor Hansson disse com autoridade.

— O quê? — Cecilia olhou para mim horrorizada. Em seguida, voltou


sua atenção para o filho. — Sabe quem é essa daí? Sabe o que a mãe dela
fez?

Suas palavras não me chocaram. Tinha escutado palavras como aquelas


a vida toda.

— Cecilia! — Elton Hansson esbravejou.

— É por sua causa que nosso filho perde noites de sono em boates —
ela disse olhando para o marido furiosa. — Você o incentivou, deu apoio, me
convenceu a assinar aquela emancipação ridícula. Axel tem que ir para a
faculdade, vai ser um médico brilhante, não pode desperdiçar a vida com uma
garota como Lucy.

— É simples, mamãe — Axel se pronunciou —, Lucy e eu estamos


juntos, e não vou permitir que ela volte para a casa dos tios e seja espancada
novamente. Se você não pode aceitá-la aqui em casa, tudo bem, ela vai
embora. Mas eu vou com ela.

Mordi o canto interno da bochecha para não dar risada da cara que
senhora Hansson fez.

— Ninguém vai a lugar algum — senhor Hansson disse mais alto que
todos, então baixou o tom. — Cecilia, nosso filho tem uma namorada, uma
adolescente adorável que também gosta dele. Não sabe como eu desejava que
ele arranjasse alguém.

Elton Hansson parecia muito orgulhoso do filho, e não dava a mínima


para o que minha mãe tinha feito.

— Você acha que me preocupava o fato de Axel não andar com


garotas? Acha que me importo de ele ser gay? — ela teimou se aproximando
da gente e colocando suas mãos nas bochechas do filho, que atingiu o coro
novamente. — Querido, não precisa trazer a filha da pior criminosa que
Agaton já viu, só para fingir que gosta de mulheres. Vou te amar do mesmo
jeito.

— Não sou gay! — Axel praticamente rugiu. — Gosto de mulheres.


Amo Lucy. E não quero mais que diga essas coisas na frente da minha
namorada.

Ela piscou e olhou para mim com cara de nojo.

— Te deixei trabalhar aqui, apesar de tudo que sua mãe...

— Subam — senhor Hansson disse, a interrompendo. — Axel,


acomode Lucy onde achar melhor. Vou até Agaton comprar alguma coisa
para o jantar.

— Eu não permito — ela começou novamente.

— Somos dois contra um, e garanto que Leonora também ficaria do


lado de Axel, então não seja inconveniente.

Sem mais o que dizer, Elton Hansson se virou e deixou a casa.

O rosto de Axel ainda estava corado quando ele me guiou até as


escadas.

— Não queria mesmo causar isso tudo — sussurrei em tom de


desculpas.

— Mamãe vai fazer da nossa vida um inferno, mas pelo menos você
terá comida e vai estar em segurança. E nossa casa cheira bem melhor do que
o lugar onde você morava.

— Meu tio é um porco — comentei envergonhada.

— Acabou, minha princesa — ele disse e deu aquele sorriso tímido. —


Só espero que me perdoe por não ter lhe trazido para cá antes. Teria evitado o
pior.

Ia dizer para Axel não pensar naquilo, mas os gritos de sua mãe me
interromperam. Ela berrava ao telefone, estava demitindo minha tia.

— Vai ficar tudo bem — Ax sussurrou. — Vamos subir?

— Tia Esther vai me odiar para sempre — comentei me sentindo


muito, muito mal.

— Ela alguma vez já te defendeu? — ele quis saber. Estávamos


chegando ao topo das escadas.

Fiz que não com a cabeça. Aquilo não fazia eu me sentir melhor.

— Alan Peter vai bater nela quando souber que ela foi despedida. Vai
precisar ficar uma semana em casa até se recuperar dos machucados —
sussurrei sem saber ao certo como me sentir. Seria a primeira vez que estaria
de fora dos socos e dos gritos. E mesmo sabendo que nunca tinha machucado
minha tia, me sentia responsável pelo que aconteceria.
— Você não pode se culpar por uma coisa que não tem nada a ver —
Axel disse pegando a mochila das minhas mãos. — Sua tia é adulta, eram
vocês que sustentavam a casa, ela não depende do seu tio. Pode dar o fora.

— Algumas pessoas simplesmente não conseguem fugir.

Entramos no seu quarto.

Pisquei os olhos, era como observar de um novo ângulo. Tinha muita


coisa passando pela minha cabeça.

— E se ela tivesse dito para você ir comigo? — perguntei. — Quando


você disse que, se ela não me aceitasse, você iria embora também.

— Minha mãe não faria isso.

— E se tivesse feito, o que a gente ia fazer?

— Poderia alugar um apartamento. Tenho dinheiro guardado, Lucy.


Nunca gastei um centavo dos cachês dos shows.

Meu queixo caiu.

— Recebi três mil coroas para tocar da última vez. Se mamãe tivesse
me expulsado, eu não iria deixar faltar nada para você, meu amor.

O jeito que ele falou fez meu coração disparar.

— Então por que estamos aqui?

— Como falei, guardo tudo que recebo nos shows. Estou


economizando para montar um estúdio em Estocolmo, quando acabar o
ensino médio. Meus pais me dão mesada, então consigo guardar cada centavo
para comprar os equipamentos e me manter na capital.

— Você... — Precisei pigarrear, minha voz não queria sair. — Você


vai embora depois da formatura?
Fui tomada pelo desespero. Tinha me acostumado com Axel muito
rápido. Nos adaptamos logo a tudo que nos faz bem. O pensamento de perdê-
lo foi brutal. A ideia de nos afastarmos doía mais que minhas costelas.

— Nós vamos — ele disse com gentileza e estendeu a mão para


acariciar minha bochecha. — A não ser que não queira me acompanhar, que
tenha algo aqui em Agaton que te prenda.

— Nada! — respondi depressa, com medo de que Ax mudasse de


ideia. — Nada me prende. Quero ir com você.

Sorri de alívio e expectativa.

— Aqui em casa é mais confortável e seguro. Tenho consciência do


quanto minha mãe pode ser cruel com as palavras, mas ela nunca te faria mal
fisicamente. Temos ela e meu pai para cuidar de você. Não vai se sentir
sozinha.

Fiz que sim com a cabeça.

— Se acha que é melhor assim, para todo mundo e para sua carreira,
está tudo bem. Acredite, as palavras da sua mãe não são nada comparadas a
morar com meus tios.

— Você...

— O que? — questionei quando ele não concluiu a fala.

— Quer ficar aqui no meu quarto ou prefere...? A casa é grande, pode


escolher outro quarto se achar que vai ter mais privacidade.

Engoli a saliva. Não tinha pensado naquilo.

— Não quer que eu durma com você? — perguntei.

Axel ficou bem vermelho.

— Claro que quero. Só não sei se é isso que você quer.


— Prefiro dividir o quarto com você, sendo assim. Imagino que seu pai
ia ficar um pouco decepcionado. Ele parece tão orgulhoso de você ter
alguém.

Ele abriu aquele sorriso, em seguida, pegou o celular que começou a


tocar no bolso da sua calça jeans.

— É minha irmã. Minha mãe já deve ter ligado. — Dito isso, Axel
atendeu.

Sem muita cerimônia, fui até o banheiro e acendi a luz. Seria muita
falsidade dizer que não me sentia feliz por estar naquela casa, longe das
imundices do meu tio. Um lar onde eu não precisava arrastar a cama para
bloquear a porta. Só não sabia quanto tempo aquilo iria durar. A única certeza
que tinha era que daria meu melhor para fazer por merecer um namorado
como Axel.

Pisquei emocionada e ergui o suéter. Passei os dedos em volta dos


hematomas. Cada vez que olhava para eles, era como se estivessem piores.
Respirando devagar, para não agravar a dor, alcancei a toalha de rosto,
molhei na torneira da pia e a estendi na janelinha, para que ficasse gelada o
suficiente, assim aliviaria aquela dor.

Quando acabei, apaguei a luz e fiquei observando Axel pela porta


entreaberta. Ele tinha colocado o celular no viva-voz e parecia arranjar
espaço no seu closet. Mordi o lábio com a ideia de colocar meus farrapos ao
lado das suas roupas de marca. Seria bem mais razoável manter minhas
roupas em uma caixa debaixo da cama.

— Ela está exagerando — ele falava com a irmã. — Leonora, você


sabe como mamãe é.

— Ela disse que vocês subestimaram a inteligência dela. — A irmã de


Axel tinha uma voz suave. — Vocês disseram que a tal garota tinha sido
espancada, mas mamãe pode jurar que ela estava em ótimo estado.

— Eu não ia erguer a roupa de Lucy na frente dos nossos pais só para


mamãe ter certeza.

— Você gosta mesmo dela?

— Sim — ele disse e, mesmo de costas, eu sabia o quanto ele estava


tímido.

— Gosta o suficiente para trazê-la para morar em casa, mesmo


enfrentando nossa mãe? — Leonora insistiu.

— Sim, irmã.

— Então mamãe não será um problema. Você nunca liga para os


chiliques dela. De qualquer forma, quero conhecer essa garota que
conquistou seu coração.

Ouvi seu riso acanhado.

— Lucy também é tímida. Não tanto quanto eu, mas é. Não quero que
ela fique constrangida com nada, já basta eu não ser capaz de frear a boca da
nossa mãe.

— Não se preocupe. Convivi muito tempo com você, sei lidar com
pessoas tímidas. Agora me conta, o tio dela é um escroto mesmo?

Ouvi batidas na porta e a voz do senhor Hansson.

— Trouxe o jantar — ele gritou. — Venham logo.

Engoli em seco por dois motivos: 1) estava morrendo de fome, 2)


nunca tinha jantado com os Hansson.
— Está pronta? — Axel perguntou ao desligar o celular.

Não estava. Uma legging velha e um suéter puído não é o que você
deseja vestir no primeiro jantar com os pais do namorado, mas não queria
deixar senhor Hansson/meu estômago esperando.

Ax segurou na minha mão enquanto descíamos as escadas que limpei


tantas vezes. Nos últimos degraus, meus olhos brilharam. Havia uma barca
enorme de sushi sobre a mesa de jantar, onde as portas duplas estavam
abertas.

— Gosta de sushi? — ele quis saber, com aquele jeito inseguro.

Uma vez, meus tios tinham ido a um restaurante japonês e não


conseguiram comer tudo. Os Peter são aquele tipo de família que pede para
embrulharem as sobras, então eles trouxeram os restos em uma embalagem
de isopor. Eu comi e adorei.

— Sim — respondi brevemente.

Na sala, vi senhor Hansson sentada à cabeceira e Cecilia ao seu lado


direito. Havia dois lugares ao seu lado esquerdo. Me perguntei qual dos dois
tinha posto a mesa. Era difícil pensar nela colocando um lugar para mim.

Com toda gentileza, Ax puxou a cadeira mais próxima do senhor


Hansson para que eu me sentasse.

— Aprendeu direitinho — seu pai comentou com um sorriso


orgulhoso.

— Nosso filho sempre será um cavalheiro — Cecilia acrescentou. —


Independente de não estar com uma...

— Mãe — Ax a interrompeu baixo, porém com autoridade.

Começaram a se servir, separando seus pauzinhos e os segurando com


toda destreza.

— O que foi? — meu namorado quis saber quando não ataquei a


comida.

Encolhi os ombros. O casal me assistia.

— Não sei comer com esses pauzinhos — admiti.

— Tudo bem — ele disse se levantando. — Te ensino, mas hoje não.


Foi um dia muito difícil para você ainda ter que aprender alguma coisa. Vou
pegar um garfo.

— Se chama hashi! — Cecilia Hansson praticamente rosnou.

Axel logo voltou e me entregou o talher, colocando molho dentro do


meu pratinho. Não esperei outro comando. Não havia o que esperar. Espetei o
garfo na primeira tira de salmão cru que pude alcançar, mergulhei no molho e
levei até a boca. Meu paladar foi tomado pelo molho adocicado. Fechei os
olhos e fiquei sentindo a textura e o sabor do salmão na minha boca,
mastigando devagar.

Comer era um dos melhores prazeres da vida e, naquele momento, me


fez esquecer a dor nas costelas. Passada a primeira explosão de sabor, espetei
a segunda peça de sushi da barca, depois a terceira, até perder as contas e o
fôlego.
— Eles não te deixaram comer... — ouvi Axel sussurrar.

— O que? — balbuciei com a boca cheia.

— Seu tio te trancou no quarto o dia todo, não te deixou comer — ele
disse.

Pelo canto do olho, vi senhor Hansson deixar cair os hashis sobre a


mesa.

Dei de ombros. Não era nenhuma novidade para mim, mas para os
Hansson, aquilo era algo cruel e muito distante das suas realidades. Até
Cecilia se deteve por um momento, antes de pegar o próximo sushi.

— Acabou — sussurrei mais para mim mesma que para eles ao


perceber que minhas mãos tremiam. Não era nervosismo ou timidez, era só
fome. Fazendo uma pausa, com o garfo pairando no ar, passei os olhos
brevemente em cada um deles, sem encará-los.

Me dei conta de que era a primeira refeição familiar que eu tinha em


mais de uma década. Os jantares com Alan Peter estavam longe daquilo.
Nunca nos sentávamos à mesa todos juntos, porque não havia motivo para
fazermos isso. Na maioria das vezes, eu comia de pé na cozinha, segurando o
prato com uma das mãos e fazendo o garfo trabalhar o mais rápido possível, a
fim de me ver logo livre da presença do meu tio. Com um nó na garganta,
percebi que estava mais à vontade naquela sala de jantar do que jamais tinha
me sentido.

Quando as lágrimas escorreram, soube que não era de melancolia por


todos os anos, mas sim de felicidade pelo agora.

— Eu só... — comecei, mas senhora Hansson me interrompeu soltando


um resmungo.

— Pelo amor de Deus! — A ouvi reclamar.

— É a primeira vez em muitos anos que participo de um jantar em


família — falei. — Estava com tanta fome que não sabia o que doía mais:
meu estômago ou os hematomas da surra que meu tio me deu. Agora estou
jantando com vocês. Sei que não tenho bons modos, que não sou digna de
estar sentada aqui. Mas estou! E estou tão feliz, por me sentir protegida, que
estou chorando. Então, senhora Hansson, vou comer até sentir que vou
explodir, e nada que a senhora resmungue vai estragar este momento.

Segurei o garfo com mais firmeza e voltei a atacar a barca de sushi.

Ela afastou a cadeira com rispidez e se levantou, jogou o guardanapo


de linho sobre a mesa e deixou o cômodo.

— Se ela estivesse realmente com fome, ficaria — murmurei sabendo


que iria me arrepender da minha atitude depois.

— Você está certa, Lucy — senhor Hansson disse. — A coisa mais


importante das refeições é comer, não manter as aparências. E você é digna
de estar aqui sim. Se ama meu filho, será tratada com um membro da família.

— Obrigada, senhor Hansson.

— Me chame de Elton — ele pediu e fiz que sim com a cabeça. —


Agora pode voltar a comer. Mas guarde espaço para a sobremesa. Temos
sorvete.

— Obrigada, Elton — falei abrindo um sorriso. Era um estado de


calma que não conseguia nem descrever.

— Leonora pediu para levar Lucy até Malmö amanhã à noite. Ela quer
conhecer a garota que fez você enfrentar a timidez.

Axel se encolheu, mas logo tornou a ficar ereto.

— Vai gostar dela — ele me disse sem muita segurança na voz. Estava
usando os óculos, e quando ficava envergonhado, os empurrava com o dedo
indicador. O aparelho brilhava pelos seus lábios entreabertos.
— Ela sabe sobre minha mãe? — resolvi perguntar logo.

— Sim. Leonora era criança, mas lembra do caso — Elton respondeu.

— E mesmo que não tivesse se lembrado, mamãe faria questão de lhe


contar — Axel resmungou.

— Agaton é uma cidade pequena, Lucy — senhor Hansson continuou.


— Fatalidades como essa nunca são esquecidas.

— É isso que quer para nosso filho? — ouvi a voz de Cecilia perguntar
das portas duplas. — Que ele namore a filha de uma das piores assassinas da
Suécia? Que ele ande por aí com alguém que pode surtar e fazer o mesmo
que a assassina da mãe dela? Como acha que vou conseguir dormir à noite?

Ouvir falarem daquele jeito de mamãe era meu calcanhar de Aquiles.


Não havia sorvete que me fizesse continuar ali — não estando com a barriga
estourando de tanto sushi.

Afastei a cadeira e atravessei a sala de jantar, passei por Cecilia e corri


para a porta da sala. A brisa fria refrescou minhas lágrimas quando alcancei a
varanda.

— Pensei que nada que ela pudesse falar fosse estragar seu jantar —
ouvi Axel dizer atrás de mim.

— Falar assim dela... — sussurrei abraçando meus próprios ombros. —


Dói tanto crescer vendo as pessoas falarem essas coisas da minha mãe,
quando ela só fez isso para me salvar.

Seus braços me envolveram e Axel beijou o topo da minha cabeça.

— Sinto muito por tudo. Sinto tanto que nem sei como me expressar.
Foi um erro pensar que dava para deixar você perto da minha mãe. Ela é mais
cruel do que imaginei. Vamos arranjar um apartamento. Só nós dois.

Estiquei a mão e afastei as lágrimas, decidindo que já tinha dado o


tempo para a dor me castigar.

— Nada disso — falei. — Você vai continuar guardando dinheiro para


o estúdio em Estocolmo. Aguento alguns meses com sua mãe por uma vida
nova. Então seremos só nós dois em uma cidade grande, onde não haja
ninguém para me julgar.

— Eu amo tanto você, minha Lucy — ele disse de um jeito que fez eu
me sentir estranha. Mas um tipo de estranheza boa. Uma espécie de calor. —
Desculpa por ter uma mãe...

— Shiii — sussurrei erguendo a mão para trás e tocando seus lábios


com meus dedos. Eram tão macios. Me virei devagar, tomando cuidado para
não prejudicar as costelas. — Não escolhemos nossas mães.

Ele ficou parado, me encarando com a respiração difícil. Deslizei as


pontas dos dedos contra seus lábios. Aquele toque me deixava inquieta. De
repente, o queria tanto que parecia não haver mais tempo. O queria como
nunca quis.
Fiquei na ponta dos pés e beijei seus lábios. Foi com ansiedade que
senti seus dedos escorregarem pela parte de trás do meu pescoço, as pontas
pressionando meu couro cabeludo. Aquilo me deixou inquieta como eu nunca
tinha ficado.

O abracei mais forte. Os machucados doeram, mas forcei a mente a não


se concentrar na dor. Nossos lábios se afastaram por um instante. Ergui o
olhar, com a testa pressionada na sua, e encarei seus olhos por trás dos
óculos. Ele me olhou por apenas um segundo, antes de desviar para baixo,
com a respiração entrecortada.

— Sinto muito — Axel disse.

— Pelo quê? — sussurrei.

— Por conseguir salvá-la do seu tio, mas não ser capaz de te livrar da
conversa constrangedora com meu pai.

— Não estou entendendo — falei procurando respostas no seu rosto


vermelho.

Axel mordeu o lábio.

— Ele está vindo para cá falar com a gente sobre...


— Sexo? — perguntei.

Ele fez uma careta e baixou ainda mais o tom de voz.

— E camisinhas, gravidez na adolescência... Ele não sabe que a gente


não transa.

Também fiquei vermelha.

— Ah — foi tudo que consegui dizer.

Me libertando do seu abraço, ele me puxou para nos sentarmos nos


degraus de entrada.

— Isso é tão constrangedor que chega a doer — Axel murmurou


parecendo uma criança desamparada. — Ele é o melhor pai do mundo, mas
isso vai além do que consigo aguentar. Você poderia ir até a cozinha e me
trazer qualquer coisa que tenha álcool? Preciso beber, mas ele não vai me
deixar pegar.

— Relaxa — tentei acalmá-lo, mesmo que também estivesse a ponto de


surtar. Segurei sua mão bem forte e beijei sua bochecha. — Conta até dez, vai
passar rápido.

— Lucy, eu preferia morrer do que ter essa conversa com meu pai na
sua frente, você não faz ideia do quanto sou tímido.

Ouvi senhor Hansson pigarrear atrás de nós. Seu filho se encolheu


tanto que pensei que fosse desaparecer. As solas dos mocassins fizeram
barulho contra o piso da varanda. Vi suas pernas descerem três degraus para
ficar de frente para nós. Ergui o olhar e encarei o homem alto a minha frente.

— Preciso conversar com vocês dois — Elton começou.

— Sobre o que? — perguntei dando o máximo de mim para não me


encolher como Axel.

— Vocês são jovens. Já tive a idade de vocês. Posso aceitar que não vá
para a faculdade, como planejamos, filho. Posso receber você aqui, Lucy.
Posso dar apoio, mas não vou tolerar uma gravidez.

O rapaz tímido gemeu em desespero.

— Senhor Hansson — o chamei, erguendo a cabeça com segurança


para que ele respeitasse minhas palavras. Axel havia me salvado, era minha
vez de retribuir. — Desculpe interrompê-lo, mas sou fruto de dois
adolescentes. Passei minha vida inteira levando as consequências de uma
gravidez não planejada dos meus pais nas costas. Eu sou uma consequência.
Tenho total noção de que tem medo que isso aconteça com Axel. Mas, posso
afirmar com segurança, que ninguém tem mais medo de engravidar que eu.
Então, não precisa se preocupar. Sou responsável quanto a isso, porque nunca
vou me permitir cometer o mesmo erro que minha mãe. Eu nunca faria sexo
sem ter duzentos porcento de segurança.

Mordi o lábio quando terminei de falar, mas continuei de cabeça


erguida, encarando senhor Hansson.

— Escolheu bem, filho — ele disse depois de me encarar por um


momento. — Vou contar a Cecilia que você não está grávida. Ela estava
desesperada.

Axel se limitou a movimentar a cabeça em sinal positivo uma única


vez.

— Obrigado, obrigado, obrigado, obrigado, obrigado — meu príncipe


agradeceu, enterrando a cabeça na minha clavícula assim que seu pai voltou
para dentro de casa.

O abracei e beijei a covinha na sua bochecha. No fim das contas, não


passávamos de duas crianças desamparadas. O cachorro estava parado com as
patas dianteiras no primeiro degrau da entrada, e nos olhava com respeito.

— Não queria contar que a gente não faz ainda — sussurrei. — Seu pai
parece muito feliz por você estar namorando. Acho que ele não vai mais se
preocupar com isso.
— Eu preciso beber — Axel disse, roçando os lábios no meu pescoço,
inconsciente do que aquilo me causava. — Se ele tirasse uma camisinha do
bolso e me entregasse na sua frente, te juro que teria morrido.

— Sei que teria — comentei, enquanto Theodoro subia os degraus para


se aninhar aos pés de Axel. Fiz carinho na cabeça do cachorro, deixando os
dedos deslizarem no pelo macio. — Você já experimentou tocar em público
são?

— Totalmente são? — ele perguntou, se erguendo numa posição digna


novamente.

— Sem uma gota de álcool no sangue.

— Nunca.

— Mas, quando ficar muito famoso, dará muitas entrevistas, vai ter que
enfrentar isso. Não dá para ficar aparecendo na TV bêbado.

— Acha que vou fazer sucesso? Acredita mesmo nisso, Lucy?

— Tenho certeza. Você foi incrível naquele show. Tudo que disse
sobre as garotas... Você fará muito sucesso.

— Obrigado por ter fé. Às vezes, fica difícil com tudo que minha mãe
diz.

O beijei, porque não sabia mais o que dizer.


Estava ainda mais ansiosa quando subimos para seu quarto. Havia
várias chamadas perdidas de tia Esther no meu celular. Observei a tela,
respirei fundo e desliguei o aparelho. Não era forte o suficiente para ler as
mensagens de texto.

Olhei a mochila sobre a cama de Axel. Quase todas as roupas que havia
trazido estavam na trouxa de lençol, no banco de trás do Toyota. Não tinha
dado tempo de pegar meus poucos cosméticos. Só o perfume. Estalei os
dedos, enquanto Axel ligava o notebook na escrivaninha. Já passava das dez
horas da noite. Não imaginava que essa parte fosse ser constrangedora.

— Vou tomar um banho — murmurei sentindo o rosto esquentar.

— Tudo bem — Axel disse olhando sobre o ombro, balançando na


cadeira giratória. — Vou trabalhar um pouco numa música.

— Tá...

Abri o zíper da mochila e comecei a procurar alguma peça de roupa


que não fosse horrível. Protestei em pensamentos quando não encontrei nada
além de trapos. Por algum motivo, sentia que deveria me arrumar para aquela
noite, lavar o cabelo, passar hidratante na pele, usar uma camisola bonita,
afinal, íamos dormir juntos.
Mordi o lábio ao perceber que não tinha uma única calcinha em bom
estado ali na mochila. Não que fosse minha intenção mostrá-la para Axel,
mas a gente sempre quer estar com uma roupa íntima nova em ocasiões
especiais, como o ano novo por exemplo. E eu sabia que aquela era a
primeira noite do resto da minha vida, por isso significava tanto.

Praguejei contra tia Esther por não ter me dado um centavo nas últimas
semanas. Precisava arranjar um jeito de ganhar dinheiro o mais rápido
possível. Alguém tinha que me dar um emprego. Eu necessitava dessa
chance.

Pensei em como tinha falado com senhor Hansson lá fora, no quanto


tinha sido confiante. Talvez eu fosse capaz de arranjar um trabalho, desde que
acreditasse nisso.

Mas, naquele momento, não havia dinheiro, muito menos as coisas que
precisava para passar a primeira noite inteira com meu namorado. Teria que
me contentar com uma calça de moletom e uma camiseta desbotada da banda
Abba.

Quando pensei em pedir uma toalha de banho a Axel, foi que me dei
conta de que não havíamos conversado sobre isso. Vir morar na fazenda
Hansson não estava nos planos. Eu tinha trabalhado como doméstica ali.
Talvez, se eu conseguisse cuidar da limpeza da casa sozinha, Cecilia não
fosse tão cruel comigo.

— Posso usar seu shampoo? — perguntei para o rapaz concentrado no


notebook.

Ele tirou os fones e girou a cadeira para me olhar. Olhei para baixo, me
certificando de que a calcinha estava bem escondida atrás da camiseta e da
calça que eu segurava contra o peito.

— Pode, mas é masculino — ele disse e franziu o cenho. — Quer que


eu pegue da minha mãe?

— Não precisa! — falei depressa. A última coisa que queria era


perturbá-la. — Uso o seu.

— Amanhã, depois da escola, passamos em algum lugar e compramos


o que precisar — Axel disse.

Pensei em falar algo, mas não sabia o que, então fui para o banheiro.
Quando saí, me sentindo um desastre da moda, ele ainda estava no notebook.
Caminhei na sua direção e fiz carinho na sua bochecha até ver a covinha
aparecer. Ouvi o som de uma música nos headphones, antes que ele desse
pausa e os tirasse. Axel passou um braço em volta da minha cintura e me
puxou desajeitado para seu colo, o que fez meu tórax queimar.

Trinquei o maxilar, ainda assim, deixei escapar um grunhido.

— Desculpa — ele pediu com os olhos preocupados.

— Não foi nada — menti. — Só arde um pouquinho.

— Deveria ter te levado direto ao médico.

— Não! — protestei. Dar entrada em um hospital por ter apanhado era


uma vergonha que eu não precisava passar. — Estou bem.

— Certeza?

Fiz que sim com a cabeça, apoiando as mãos nos seus ombros.

— Você está tão cheirosa! Nem parece que usou meu shampoo. —
Axel se inclinou para cheirar meu pescoço e deslizou a mão numa mecha do
meu cabelo úmido. — Quer usar o secador? Acho que tem um no quarto de
Leonora.

— Não. Estou bem. — Mordi o lábio. — Teria vestido uma camisola,


mas...

— Você está linda.

— Acho que está mentindo. Pareço um garoto.


— Não. Não parece — ele disse engolindo a saliva. — Você tem
curvas, Lucy, seria mais complicado se usasse uma camisola. Não significa
que eu não queira ver. Quero. Quero muito. Mas seria mais difícil.

— Você é tão fofo.

— Esse é o problema. Não era para você me achar fofo. Queria ser
alguém que faz você se sentir protegida, que faz você sentir desejo. Não um
tímido fofo que...

O calei pressionando minha boca contra a sua, segurando seu rosto


com as duas mãos. Minha língua tocou seu aparelho, depois mordi seu lábio
inferior. Nossos corpos ficaram mais próximos. Não usava sutiã, por isso foi
estranho sentir seu peito contra o meu. Me fez pensar como seria se ele
erguesse minha camiseta e colocasse as mãos nos meus seios. Desejei que ele
fizesse isso. Mas Axel era decente, e não faria nada do tipo.

Quando percebi o rumo que meus pensamentos tomavam, me afastei


dele, o encarando sem fôlego.

— Vou tomar um banho — ele disse olhando meus lábios, parecia


ansioso.

— E eu vou me deitar.

Saí do seu colo sentindo a pele arder. Tropecei na perna da


escrivaninha, mas consegui me equilibrar novamente.

— Em que lado da cama você dorme? — perguntei ao me aproximar


do móvel.

— Daquele — ele disse apontando para minha esquerda, o lado que


ficava mais próximo da porta do quarto, depois virou-se na direção do
banheiro, puxando a camiseta para tirá-la.

Pisquei perplexa ao ver a pele bronzeada das suas costas aparecendo


gradativamente. Me sentei na cama e fiz bico quando ele entrou no banheiro e
trancou a porta. O imaginei puxando as calças de moletom pelos quadris e me
dei conta de que queria muito ver sua bunda. Queria tocá-la.

Aquelas eram sensações com as quais não estava acostumada a lidar.


Nunca tinha desejado ver um garoto pelado, muito menos apertar seu
bumbum. Estava acontecendo tudo tão de repente que me tirava o fôlego e
fazia algumas partes do meu corpo palpitarem.

Mordi o lábio por um longo instante, me decidindo se ia espiar pelo


buraco da fechadura ou não. Queria tanto que fiquei de pé novamente,
apertando a barra da camiseta, andando na ponta dos pés até a porta do
banheiro. Mas me detive quando estava me inclinando para espiar. Se fosse
comigo, não iria gostar nada que alguém me olhasse em um momento tão
íntimo.

Com passos apressados, voltei para a cama e me enfiei embaixo das


cobertas, me perguntando o que estava acontecendo comigo. Não consegui
parar de imaginá-lo com a água escorrendo pelo corpo. Percebi que não me
sentia mais insegura por estar sozinha com Axel. Nenhum pouco insegura.

Isso era um grande avanço. Ele tinha feito eu recuperar algo que
imaginava ter perdido completamente: minha confiança nas pessoas.

Quando a porta do banheiro se abriu, já havia o imaginado de inúmeras


formas. Para fingir que estava dormindo, cobri parte da cabeça com o
edredom e o observei sair com a toalha presa em volta do quadril.

Minha boca se abriu formando um O com o que vi. Axel era... Gostoso.
Muito, muito gostoso. Havia sardinhas nos seus ombros, tinha uma estrutura
óssea muito favorável. Mechas do cabelo molhado estavam caídas sobre a
testa. O vi se virar para pegar os óculos na escrivaninha e os colocar. Quando
ele se virou para abrir o closet, a toalha escorregou. Ele a segurou bem
depressa, mas foi o suficiente para que eu pudesse ver a marca da sunga e
metade do seu bumbum. Alguma coisa se contraiu dentro de mim. De
repente, fazia muito calor. O edredom estava me esquentando muito, até
minhas roupas eram demais. Senti o suor se formar na nuca e me remexi nos
lençóis.
Sem saber o que se passava comigo, Axel apanhou uma peça de roupa
e voltou ao banheiro.

Poucos instantes depois, ele estava se aproximando da cama usando um


calção de malha que favorecia muito seu físico. Ele afastou o edredom e se
deitou ao meu lado. Me movi inquieta.

— Acordada? — ele quis saber. Estava perfumado e com o hálito


fresco.

— Estou — confirmei. — Obrigada por ter me resgatado.

Ele passou os braços em volta de mim e puxou meu corpo para perto
do seu.

— Eu teria ficado muito satisfeito em quebrar os dentes do verme do


seu tio, mas meu pai... — Axel se deteve e me encarou, colocando a mão
direita na minha testa. — Você está tão quente! Está com febre?

Corei.

— Não é febre. Só estou com calor — falei afastando o edredom. —


Muito calor.

Desejei arrancar aquela calça de moletom para ver se aliviava e, antes


que pudesse pensar nas consequências, fiz isso.

Vi seu peito descendo e subindo com a respiração ofegante.

— O que vestia para dormir em casa? — ele quis saber, me observando


colocar a calça no chão. Por sorte, a camiseta era grande e cobria meu
quadril.

— A mesma coisa, mas lá é muito mais frio que aqui. Parece que o
aquecedor está ligado no máximo.

— Pode tirar a camiseta também, se achar que vai se sentir melhor —


ele disse soando inocente.

— Acho que não vai ser necessário — menti.

Fez-se silêncio. O sono parecia estar distante de nós. Queria perguntar


o que Axel estava pensando, desejava que ele me puxasse para seus braços
novamente, mas havia muita tensão entre nós.

— Reparei numa coisa — ele sussurrou. Sua voz estava mais grossa
que o normal.

— O quê? — perguntei depressa.

— Você não parece mais ter medo de mim, de ficar sozinha comigo.

— Eu não tenho — falei me apoiando no cotovelo para encará-lo. —


Você faz eu me sentir protegida. Muito protegida. Sei que nada de ruim vai
acontecer comigo.

Ele sorriu e se virou na minha direção. Com a boca entreaberta, dava


para ver seus caninos inferiores, que se destacavam entre os outros dentes.
Axel puxou a ponta do edredom e cobriu meu quadril.

— Assim é melhor. Não vou conseguir parar de olhar suas pernas, se


ficar com elas de fora — ele sussurrou.

— Mas não me importo que você olhe — falei afastando o edredom


novamente, o prendendo entre as minhas coxas.

O ar parecia não chegar direito aos meus pulmões. Algo no olhar de


Axel me fez pensar que ele não se importaria com a minha calcinha ter
estampas de ovelhinhas. Me aproximei e o beijei, porque sabia que ele estava
em um daqueles momentos em que ficava travado. Demorou um segundo até
ele colocar a mão na minha nuca suada, segurando meu cabelo como tinha
feito na varanda.

— Não quero mais esperar — sussurrei contra seus lábios com uma
confiança que mal sabia que tinha.
Axel fez que sim com a cabeça, mordendo o lábio inferior que tinha
atingido um lindo tom avermelhado. Ele engoliu em seco e escorregou a mão
por cima da estampa do Abba, até atingir a barra da camiseta. Sorri com
satisfação quando senti sua mão entrando por baixo, acariciando minha
barriga. Como se nossos pensamentos estivessem sincronizados, empurramos
o edredom com nossas pernas. Foi ele que se aproximou dessa vez, enfiando
a mão por baixo do meu corpo, me apertando contra ele. Nem a dor dos
machucados foi capaz de diminuir o prazer que senti quando nossos quadris
se tocaram.

— Por que queima tanto? — perguntei, beijando seu maxilar.

— Onde queima? — ele quis saber.

Peguei sua mão e a guiei até lá embaixo.

— Aqui — falei.

Seus dedos me acariciaram por cima da calcinha, provocando uma


onda de calor e prazer ainda mais violenta, mas nada em mim queria que ele
se afastasse. Gemi contra seu pescoço. O amava tanto que não queria mais
ficar longe dele.

— É assim que me sinto quando fico perto de você — Axel confessou,


apertando mais forte dessa vez, enquanto a outra mão escorregava nas minhas
costelas, tocando os hematomas, até atingir um dos meus seios.

Foi ele quem gemeu dessa vez, trincando o maxilar, enquanto seu dedo
acariciava meu mamilo, fazendo meu desejo aumentar.

— Quero que você goste, Lucy — ele sussurrou com a voz rouca. —
Quero que me peça o que quiser, que reclame se eu te machucar, que diga do
que gosta, que gema se sentir vontade. Não tenha vergonha.

— Não estou com vergonha — falei acariciando seu queixo. Ele tinha
feito a barba e a pele estava lisinha.

Sua mão apertou mais forte meu seio quando ele afundou a boca na
minha. Escorreguei a mão para baixo, até tocá-lo por cima da bermuda. Senti
seu corpo se retesar quando esfreguei a palma da mão até o final.

— Você é tão deliciosa, minha princesa — ele disse, chupando a pele


do meu pescoço, apertando o outro seio. Não queria que tirasse as mãos de
mim nunca, mas ele tirou. Se inclinou sobre mim e começou a puxar minha
camiseta.

Me ergui para ajudá-lo a me despir. Encostei a cabeça no travesseiro e


mordi a ponta do dedo indicador, enquanto ele arremessava minha roupa para
longe. Em seguida, seus olhos encontraram meu corpo. Pareceram pegar fogo
quando ele me viu nua pela primeira vez.

Nunca tinha me importado com as estrias no quadril nem com a celulite


nas minhas coxas, porque ninguém além de mim as via, mas confesso que
senti uma pontinha de insegurança ao me dar conta que a única mulher com
quem ele já tinha feito sexo era uma deusa da sensualidade, que não devia ter
uma única estria e a pele lisinha.

— Você é tão perfeita, Lucy — suas palavras elevaram minha


autoestima novamente.

Mordi a ponta do dedo com mais força, deslizando a mão pelo seu
peito, acariciando sua barriga, fitando seus olhos, que analisavam cada
centímetro do meu corpo.

— Parece um sonho — Axel acrescentou puxando minha mão de volta


para cima do seu calção.

Percebi que ele não usava cueca quando enfiei a mão por baixo do cós.
Arfei sentindo algo dentro de mim palpitar, e não era o coração. O segurei na
palma da minha mão e o fechei com meus dedos, movimentando devagar só
para ouvi-lo gemer novamente.

Seus lábios se afastaram, exibindo os dentes trincados, e um grunhido


escapou de sua garganta, enquanto ele revirava os olhos.

— Não estamos sonhando — sussurrei o fazendo me encarar,


apertando mais forte. — Você nunca esteve tão lindo como está agora.

Ele riu, mais voltou a ficar sério quando fiz mais rápido.

— Você não faz ideia do quanto eu queria isso — ele murmurou com a
voz mais áspera que o normal, antes de pressionar o dedo sobre a minha
calcinha, mais forte dessa vez, me fazendo gritar.

Mordi o lábio envergonhada.

— Seus pais — falei arfando.

— Vou fazer de novo — ele disse com o sorriso torto. — Não grite,
Lucy!

Só que, dessa vez, ele afastou a calcinha para o lado, e foi tão gostoso
que precisei me agarrar no travesseiro, torcendo para ele nunca parar.

— Assim, Ax — sussurrei, me contraindo e tampando o rosto com o


travesseiro para poder gemer.

Senti seu calor quando se inclinou sobre meu corpo. Mordi o


travesseiro quando sua língua tocou meu mamilo. Foi uma loucura quando
ele o mordeu. Arfei, agradecendo ao destino por ter colocado aquele príncipe
na minha vida. Senti sua boca sugar meu mamilo e pensei que não ia aguentar
quando seu dedo me penetrou. Estava ainda mais apaixonada por ele. Nem
me importava mais com a calcinha de ovelhinhas e as estrias, porque Axel
me amava como eu era.

Ele afastou o travesseiro e me encarou.

— Quero te fazer sentir prazer.

Pisquei perplexa. Se sentisse mais prazer do que já estava sentindo, os


Hansson iriam invadir o quarto e me expulsar da casa.

— Estou sentindo — dizer aquilo fez meu coração bater mais rápido,
porque percebi que algo melhor ainda estava por vir.

Seus lábios se curvaram num sorriso que teria tirado meu fôlego, se eu
ainda conseguisse respirar. Senti seus lábios no meu pescoço, nos ombros, no
outro seio, no meu umbigo. Axel se ergueu e observou meu quadril, tocando
as linhas brancas e irregulares como se minhas estrias fossem uma obra de
arte. Fiquei arrepiada quando ele as beijou, como se as adorasse, como se me
fizessem única.

— Eu te amo tanto — ele disse voltando a me encarar.

Perceber que ele tirava o calção me fez pulsar de vontade. A paixão me


fazia querer implorar para que ele se afundasse dentro de mim.

— Ainda me acha linda depois de ver meus defeitos? — não pude


deixar de perguntar.

— Os hematomas vão sumir — Axel disse bem sério. — Os


machucados vão sarar. E ninguém nunca mais vai te machucar desse jeito,
porque eu não vou deixar.

O ar desapareceu. Pensei que meu coração fosse atravessar meu peito.


Ele achou que eu estava falando sobre os hematomas da surra de Alan Peter,
não da celulite e das estrias. Tinha como ficar ainda mais apaixonada?

— Eu também te amo — sussurrei com medo de chorar se falasse mais


alguma coisa.

Foi sua vez de tirar minha calcinha devagar. Se posicionou entre


minhas coxas e deitou-se sobre mim, beijando meus lábios, acariciando
minha bochecha, movendo o quadril contra o meu. Com sua língua no meu
pescoço, cedi ao desejo de apalpar sua bunda. Era macia, firme e deliciosa.
Senti sua carne entre meus dedos, a belisquei e a forcei para baixo, fazendo
nossos corpos se apertarem um contra o outro. Axel se apoiou no cotovelo e
levou a mão direita até lá embaixo, se posicionando, até começar a me
penetrar. Começou devagar, me dilatando, dando tempo para que eu me
acostumasse com aquela invasão deliciosa. Mas descobri que era mais
desesperada que ele quando segurei sua bunda com as duas mãos e puxei seu
quadril com força para enterrá-lo dentro de mim.

Foi a primeira vez que gostei de sentir dor. Me movi com ele,
desesperada com aquela explosão de prazer. Seu vai e vem me fazia querer
cada vez mais. Gemi baixinho contra seu ombro. O vi abandonar-se ao
prazer, apoiando a cabeça na minha clavícula, gemendo de olhos fechados,
mordendo os lábios, dizendo o quanto eu era deliciosa.

Enrosquei meus tornozelos nas suas coxas e me entreguei por


completo, ignorando tudo que já tinha afetado meu psicológico. Desliguei a
mente do resto e me concentrei apenas no prazer. Foi a melhor coisa que já
fiz. Sabia que nunca iria me cansar de vê-lo daquele jeito, grunhindo, se
declarando, me comendo. Eu pedia mais contra seu ouvido, e Axel fazia. Seu
quadril batia contra o meu, e cada estocada me levava a loucura. Me senti
mulher, me senti dele. Não porque ele fosse meu dono, mas porque ele me
conhecia e me adorava exatamente como eu era.

As molas da cama rangiam na mesma velocidade que Axel se movia,


cada vez mais alto. O suor escorria no seu peito, me molhando. Então
comecei a sentir alguma coisa diferente, o desejo cada vez mais louco de ter
aquilo, tão devastador que eu perdi os sentidos. Ia ficar melhor, eu sabia
disso. Mas Axel começou a se afastar de repente, me olhando com os olhos
em chamas, o rosto de menino tinha se transformado em homem de verdade.
O suor fazia seus músculos se destacarem.

— Não para — implorei, tentando segurar seu quadril contra o meu


com os pés. — Por favor, Axel, continua.

Ele piscou.

— Tenho que tirar, Lucy. Não aguento mais segurar — ele falou
ofegante.

— Por quê?

— Não posso gozar dentro de você — Axel disse me olhando, como se


eu devesse entender.

Mas suas palavras transformaram meu desejo numa necessidade


insana.

— Mas eu quero isso — falei chupando seu lábio inferior, apertando


sua bunda novamente para que ele me penetrasse. — Por favor.

Ele não respondeu com palavras, mas voltou a se mover ainda mais
rápido. Vi seus olhos revirarem antes de ele grunhir, enterrando tão fundo
que pensei que ia me partir ao meio. Fui ficando mais excitada, mais quente.
Sentindo meu corpo inteiro vibrar, ansiando por algo que estava prestes a
acontecer. Mas, para meu desespero, Axel parou novamente, quando senti
alguma coisa jorrar dentro de mim, os gemidos cessaram e ele se
desencaixou.

Pisquei confusa e frustrada. Queria mais.

— Isso foi a melhor coisa que eu já fiz em toda a minha vida — ele
disse com a voz rouca, o rosto vermelho e suado, beijando a ponta do meu
nariz.
Respirei fundo e mordi o lábio.

— Você gozou — sussurrei.

— Dentro de você.

— Sim.

— Não faz a menor ideia do quanto isso é bom.

— Não. Não faço — falei, mas ele não entendeu o que eu queria dizer.

Então percebi que eu podia mais que isso. Que não só ele tinha direito.
Que assim como eu tinha o feito chegar lá, ele também tinha que me
recompensar. E só dependia de mim.

— Também quero gozar — falei o empurrando para que ele ficasse de


barriga para cima na cama. Sentindo que ainda estava ereto, ignorei o líquido
entre as minhas coxas e montei sobre ele.

Axel se contorceu quando nos encaixamos. Ele trincou o maxilar e os


caninos apareceram.

— Porra, Lucy — ele gemeu, virando a cabeça para me olhar melhor.

Não fui discreta, não comecei devagar. Não tinha vergonha de também
querer gozar. Se nós dois estávamos fazendo, por que só ele merecia chegar
lá?

— Fica quietinho, meu amor — sussurrei movimentando o meu


quadril, experimentando a sensação de ficar por cima.

Puxei suas mãos para meus seios e fui aumentando a velocidade,


conforme a sensação ia ficando melhor, até estar gemendo novamente. Axel
sentou e eu agarrei sua cintura com minhas pernas, rebolando sobre ele sem
nenhum pudor. Era muito melhor estar no comando, porque eu sabia
exatamente a velocidade e a pressão que eu precisava. E foi ficando mais
forte e louco. Ele também se moveu. Abocanhando meu seio e sugando meu
mamilo, gemendo contra minha pele novamente.

— Goza para mim, vai — ele disse contra meu outro seio, antes de
segurar meu mamilo entre seus dentes. Foi a gota d’água. Encostei meus
lábios no topo da sua cabeça um milésimo de segundo antes de explodir num
êxtase cruel, violento e delicioso.

Mas ele não parou. Me abraçou bem forte e se levantou da cama


comigo enroscada nele. Não deu tempo de me recuperar. Senti minhas costas
baterem contra a parede quando ele me apoiou, segurando minhas coxas por
baixo e me penetrando mais fundo. Em poucos segundos, estávamos
gemendo novamente. Ele era tão sexy suado, tão homem com aqueles
gemidos, que eu sabia que nunca encontraria ninguém como Axel.

Vibrei quando ele chegou ao clímax novamente, se apoiando em mim e


me abraçando, gemendo como se fosse morrer de tanto prazer.

Nos encaramos sem fôlego. Seu rosto estava vermelho, seu queixo
erguido, o cabelo bagunçado.

— Te amo cada vez mais — confessou.

— Eu também — falei, entendendo exatamente o que ele queria dizer.


Lucy não era a primeira, mas era a mais importante. Sem dúvidas, não
estar bêbado fazia tudo ser muito melhor.

Assim como no primeiro beijo, eu tinha fantasiado nossa primeira vez


de muitas maneiras. Imaginava que ela, um dia, me diria que estava pronta.
Eu procuraria o melhor hotel, reservaria uma suíte e faria de tudo para que
aquele momento fosse perfeito. Pensei até em fazermos na Van, com a porta
traseira aberta e as estrelas brilhando...

Nunca pensei que seria tão espontâneo, sem planos, sem preparação,
sem uma tremenda ansiedade.

Ela tinha tomado banho e se sentado no meu colo, seu cheiro se


misturava ao aroma do meu shampoo, o cabelo úmido encostava na minha
pele quente, me provocando arrepios. Lucy se moveu, sem fazer ideia do
quanto era tentador tê-la no meu colo. Seu cabelo escorregou pelas costas,
deixando a pele do pescoço descoberta. Senti vontade de me inclinar e passar
a língua naquela pele, beijar seu maxilar, morder o lóbulo da sua orelha,
enrolar seus cabelos no meu punho e passar a língua lentamente abaixo da
sua nuca, por baixo da gola da camiseta da banda Abba, enquanto minhas
mãos subiam por dentro da blusa, até encontrar um dos seios. Queria sentir os
bicos ficando duros entre os meus dedos, queria apertá-los, ainda a lambendo,
seu quadril se movendo de um jeito lento e sexy sobre a minha ereção...
Pensar nessas coisas acabava comigo.
— Você está tão cheirosa! Nem parece que usou meu shampoo —
murmurei me inclinando para cheirá-la, imaginando como seria fazer tudo
aquilo. Dava para sentir seu calor, a maciez enlouquecedora da pele. E era
perigoso demais tê-la no meu colo.

— Quer usar o secador? Acho que tem um no quarto de Leonora —


sugeri, na esperança de que ela se levantasse antes que pudesse sentir a
maldita ereção. Não queria que ela ficasse assustada, que tivesse medo de
passar uma noite inteira comigo.

— Não. Estou bem — Lucy disse antes de morder o lábio, me fazendo


entrar em desespero. O coração batia forte como nunca havia feito antes. —
Teria vestido uma camisola, mas…

— Você está linda — falei tentando controlar a respiração, puxando o


ar pela boca.

— Acho que está mentindo. Pareço um garoto — Lucy brincou.

— Não. Não parece — disse com mais rispidez do que pretendia. Eu


não queria ser o cara que não aguentava ficar perto dela assim, sem entrar em
desespero. — Você tem curvas, Lucy, seria mais complicado se usasse uma
camisola. Não significa que eu não queira ver. Quero. Quero muito. Mas
seria mais difícil…

… controlar a ereção, minha mente completou, mas eu nunca diria isso


a ela.

— Você é tão fofo.

Lucy me tinha nas mãos naquele momento. Meu coração, meu corpo,
tudo em mim só conseguia pensar em beijar, lamber, chupar e morder cada
parte do seu corpo, enquanto ela ainda me via apenas como o cara fofo.
Chegava a ser irônico.

— Esse é o problema. Não era para você me achar fofo. Queria ser
alguém que faz você se sentir protegida, que faz você sentir desejo. Não um
tímido fofo que…

Seu beijo interrompeu minhas reclamações. Foi incrível como ela


segurou meu rosto, apertando meu maxilar, como se ela também estivesse
sentindo alguma coisa mais intensa que o carinho de sempre. Gostei como ela
virou o corpo na minha direção e seus seios se apertaram contra mim. Senti
seus dentes mordendo minha boca, sua língua lambendo a minha. Era o beijo
mais quente que havíamos dado. Meu desejo era de segurar sua nuca, puxar
seus cabelos e escorregar a boca no seu pescoço, mas me controlei,
colocando a mão na sua cintura.

De repente, ela se afastou. Os lábios estavam entreabertos e


avermelhados. Lucy também respirava com dificuldade.

— Vou tomar um banho — falei em tom de desculpas, porque não


conseguia mais suportar aquilo.

Precisava respirar, necessitava de um alívio, ainda que momentâneo,


porque a noite seria muito longa. Mesmo que fosse um sonho tê-la ali no meu
quarto, se pudesse ficar com uma compressa de gelo dentro da cueca, talvez
conseguisse dormir. Mas isso não era possível, e só me restava arder por toda
a madrugada em uma febre para a qual eu não teria um remédio.

— Acordada? — perguntei quando voltei do banheiro.

— Estou — ela sussurrou. — Obrigada por ter me resgatado.

Abracei seu corpo e a puxei para meu peito, feliz por ter Lucy comigo.

— Eu teria ficado muito satisfeito em quebrar os dentes do verme do


seu tio, mas meu pai... — comecei a falar, mas percebi o quanto ela estava
quente. Coloquei a mão na sua testa. Parecia estar doente. — Você está tão
quente! Está com febre?
Se fosse febre, seus machucados poderiam estar inflamados.

— Não é febre. Só estou com calor — Lucy disse e afastou o edredom.


— Muito calor.

Fiquei sem reação quando ela tirou a calça de repente. Praticamente


afundei nos lençóis. Se ela tivesse a mínima noção do quanto suas pernas
eram sensuais, não me torturaria daquele jeito.

— O que vestia para dormir em casa? — perguntei. Não conseguia


mais respirar. O coração parecia estar subindo pela garganta.

— A mesma coisa, mas lá é muito mais frio que aqui. Parece que o
aquecedor está ligado no máximo.

— Pode tirar a camiseta também, se achar que vai se sentir melhor —


murmurei sem pensar.

— Acho que não vai ser necessário.

Voltamos a ficar em silêncio. Queria abraçá-la de novo, mas não tinha


condições. Era mais prudente não me enroscar naquele corpo sexy, coberto
apenas por uma camiseta.

Não sabia se deveria apagar a luz. Fechei os olhos para dormir, mas
não havia sinal de sono.

— Reparei numa coisa — disse alguns minutos depois, quebrando o


silêncio enquanto encarava o teto.

— O quê?

— Você não parece mais ter medo de mim, de ficar sozinha comigo.

— Eu não tenho. — Lucy se moveu, virando o corpo na minha direção


e se apoiando no cotovelo. — Você faz eu me sentir protegida. Muito
protegida. Sei que nada de ruim vai acontecer comigo.
Me virei também, mas a visão do seu quadril era enlouquecedora.
Puxei o edredom para cobri-la, sabendo que era uma falta de respeito comê-la
com os olhos.

— Assim é melhor. Não vou conseguir parar de olhar suas pernas, se


ficar com elas de fora.

— Mas não me importo que você olhe — Lucy disse, afastando a


coberta e revelando o corpo outra vez.

Seu gesto e suas palavras me atingiram como uma granada no meu


peito. Tentei ficar imóvel. Não sabia mais como agir. Não queria faltar com o
respeito, não queria mais sentir aquela agonia.

Foi Lucy que se aproximou e me beijou.

— Não quero mais esperar — ela disse contra meus lábios, tão
provocante que varreu o que restava da minha consciência.

Passei a mão sobre a camiseta, sentindo seu calor. Enfiei a mão por
baixo da barra e percorri sua barriga com meus dedos, me aventurando por
sua pele em chamas. Suas últimas palavras ecoavam na minha mente. Ela não
queria mais esperar, e eu enlouqueceria se continuasse tentando.

Afastamos totalmente o edredom, deixando nossos corpos livres. A


puxei para mim depressa, a apertando, deixando que ela sentisse meu desejo.

— Por que queima tanto? — minha namorada perguntou.

— Onde queima?

Então ela pegou minha mão e a guiou entre nossos corpos. A toquei
por cima da calcinha, fazendo um esforço para não afastar o tecido e invadi-la
de uma vez.

— É assim que me sinto quando fico perto de você — confessei,


aliviado por não precisar mais fingir que não a desejava desesperadamente.
A acariciei mais forte, procurando seus seios com a outra mão. Apertar
um deles fez o tesão aumentar. Bati os dentes quando circulei o bico com a
ponta do dedão, o sentido enrijecer.

— Quero que você goste, Lucy — supliquei. Precisava fazer do melhor


jeito, para que ela não desistisse de mim. — Quero que me peça o que quiser,
que reclame se eu te machucar, que diga do que gosta, que gema se sentir
vontade. Não tenha vergonha.

— Não estou com vergonha — ela sussurrou.

Apertei mais forte e me afoguei no seu beijo. Senti sua mão passando
pela minha barriga, até parar em cima do calção de malha fina. Seus dedos
me apertaram, me levando à melhor das loucuras.

Comecei a me mover depressa, tentando provar cada parte do seu corpo


com minha língua. Puxei sua camiseta até tirá-la. Lucy mordeu o dedo
indicador e eu perdi a noção de tudo. Seu corpo era tão incrivelmente sexy
que chegava a me causar dor.

— Você é tão perfeita, Lucy — comentei sem conseguir achar palavra


mais original.

Parecia um sonho.

Suas mãos escorregaram para dentro do calção e me tocaram. Soltei um


grunhido incontrolável quando ela começou a me massagear.

— Não estamos sonhando — ela sussurrou, me apertando mais forte.


— Você nunca esteve tão lindo como está agora.

Tive que rir.

— Você não faz ideia do quanto eu queria isso — falei, temendo que
não fosse aguentar de tanto tesão.

A acariciei de novo sobre a calcinha, e ela me surpreendeu com um


grito.

— Seus pais! — ela disse quando se deu conta do barulho que fez.

Eu não ligava se meus pais estavam no quarto ao lado. Só Lucy me


importava naquela noite.

— Vou fazer de novo. Não grite, Lucy!

Afastei a calcinha e deixei meus dedos escorregarem lá dentro. Era a


melhor coisa que eu já tinha tocado.

— Assim, Ax — gemeu agarrada ao travesseiro.

Me inclinei sobre ela e devorei um dos seus seios, a penetrando com


meu dedo, sentindo seu calor, molhada, fervendo. Lambi seu pescoço,
clavícula, ombros, seio, barriga e a observei novamente, memorizando cada
detalhe que a fazia ser única.

— Eu te amo tanto — me declarei enquanto tirava o calção. Não podia


mais adiar aquele momento.

— Ainda me acha linda depois de ver meus defeitos? — Lucy quis


saber. Foi então que consegui prestar atenção nos ferimentos. Estava tão
concentrado na sua perfeição que mal os tinha visto.

— Os hematomas vão sumir — falei sem querer deixar a tristeza e a


revolta estragarem meu humor. — Os machucados vão sarar. E ninguém
nunca mais vai te machucar desse jeito, porque eu não vou deixar.

— Eu também te amo.

Tirei sua calcinha e me concentrei para ir com cuidado, a invadindo


devagar, enquanto a beijava com carinho. Mas Lucy segurou na minha bunda
e me puxou com tudo, me fazendo preenchê-la por completo. Senti seu corpo
ficar tenso por um instante. Pensei em parar e perguntar se estava doendo,
mas cedi a tentação e fui em frente.
As molas começaram a ranger, mas não consegui diminuir o ritmo.
Pelo contrário, ia aumentando, entrando e saindo cada vez mais rápido, ao
som dos seus gemidos contra meu ouvido.

— Mais rápido, Ax — ela exigiu.

Me afundei dentro dela, sentindo o calor me consumir, me fazendo


suar. Apertei seu quadril por baixo do meu e comecei a acelerar. Seus lábios
no meu pescoço despertavam uma infinidade de arrepios diferentes.

Fui indo mais rápido, cada vez mais fundo, até que não dava mais para
suportar. Tentei sair, não podia gozar dentro dela, mas Lucy não deixou. Me
puxou de volta com suas pernas, dizendo que era aquilo que ela queria. Como
poderia negar algo à mulher que estava me dando a melhor noite da minha
vida? Abandonei a consciência e deixei o tesão me guiar, até pensar que não
fosse conseguir suportar a explosão do mais delicioso e cruel prazer.

Saí de dentro dela e me joguei ao seu lado. A boca estava seca, mal
conseguia respirar, o suor escorria pelos nossos corpos.

— Isso foi a melhor coisa que eu já fiz em toda a minha vida —


comentei, me virando e beijando a ponta do seu nariz.

— Você gozou.

— Dentro de você — comentei sorrindo.

— Sim.

— Não faz a menor ideia do quanto isso é bom.

— Não. Não faço — ela disse séria, me trazendo de volta à realidade.

Pisquei os olhos, tentando raciocinar, me dando conta de que não tinha


sido tão bom para ela quanto havia sido para mim.

— Também quero gozar — Lucy declarou, me empurrando contra os


lençóis e montando sobre meu quadril. Me contorci quando a penetrei
novamente.

— Porra, Lucy — gemi ao ver a mulher mais linda do mundo


cavalgando sobre mim.

— Fica quietinho, meu amor — ela ordenou.

Senti que pertencia a ela, que nossos corpos e nossas vidas se


completavam.

Ela me guiou para tocar seus seios, que balançavam com o movimento.
Observei todo seu corpo, a pele macia, as muitas curvas, as linhas claras em
volta do seu quadril, os furinhos na parte abaixo das coxas que apareciam a
cada sentada, os mamilos pequenos e rosados, a barriga, o pescoço, os braços,
o rosto, tudo!

Me sentei com ela encaixada. Lucy começou a rebolar contra mim.


Percebi que seus gemidos estavam ficando mais intensos, que ela mal
conseguia ficar de olhos abertos de tanto tesão.

Quando imaginei que ela ia atingir o orgasmo, inclinei a cabeça e


abocanhei um dos seios deliciosos, os chupando depressa.

— Goza para mim, vai — murmurei indo até o outro seio. Me


agarrando com força, Lucy se contorceu entre gemidos, atingindo um clímax
ainda mais forte e audível que o meu.

Como se já estivesse viciado no seu sexo, a segurei forte e, arrumando


forças não sei de onde, levantei da cama e a levei até a parede, onde apoiei
suas costas e continuei as estocadas. Não havia mais limites, era como se
existisse apenas nós dois no mundo àquela noite. Perdi a razão quando ela
agarrou meu tórax com as pernas e braços, seus dedos se enroscando no meu
cabelo, nossas bocas experimentando o corpo um do outro, o suor na pele, o
som dos nossos quadris batendo um contra o outro, os gemidos... Lucy tomou
conta de cada um dos meus sentidos, como se não existisse mais nada que eu
pudesse desejar além dela.
Ainda me abraçando, ele me colocou no chão e me beijou. Nossos
corpos ainda tremiam.

— Precisamos de um banho — ele disse me puxando na direção do


banheiro.

— Acho que seu pai vai expulsar nós dois — comentei. — Não
consegui segurar. Estava muito gostoso.

— Se ele ouviu, deve estar abrindo uma garrafa de champagne nesse


momento — Axel disse ligando o chuveiro.

Passamos sabonete um no outro, nos beijando e nos acariciando com


uma adoração ainda maior. Não havia nada que eu amasse mais que ele.
Nenhum lugar do mundo onde desejasse estar mais do que em seus braços.

Axel Hansson tinha me tirado do inferno, me dado uma escolha, uma


dignidade que tinha sido roubada de mim desde que nasci. Ele era meu
príncipe, meu namorado, meu salvador. Alguém por quem eu largaria tudo.

— Preciso de água — ele disse secando o cabelo, enquanto eu tirava o


lençol molhado da cama.

Sabia que, quando meu corpo esfriasse, minhas costelas iriam doer
como nunca. Mas tinha valido a pena. Meu interior ainda latejava, me
lembrando a cada instante que aquele prazer tinha sido real, que fazer sexo do
jeito certo era maravilhoso.

— Pode me trazer alguma coisa para dor? — perguntei.

Ainda estava nua, mas não me importava. Se Axel gostava do meu


corpo, por que escondê-lo dele?

— Te machuquei? — ele perguntou com os olhos chocados.

— Não! — falei depressa. — Meus machucados vão voltar a doer.


Estou sentindo.

— Ah, claro. Vou procurar. Quer comer alguma coisa? Beber algo?

— Só água e um bom analgésico — falei com um sorriso.

Ele me beijou antes de vestir o calção e deixar o quarto.

Me perguntei com que cara iria olhar para os Hansson no dia seguinte.
Era a primeira vez que iria passar a noite ali e já chegava dando escândalo.
Mas, se reclamassem, ia dizer que a culpa era do filho deles. Quem mandava
ser tão gostoso? Eu não tinha culpa de nada.

Dei de ombros e sorri, perplexa com a reviravolta que minha vida tinha
dado. Precisaria ser ainda mais forte e aguentar tudo que Cecilia iria fazer
para me ridicularizar. Não queria e não poderia ir embora dali. Sabia que
Alan Peter ia me espancar todo dia se eu voltasse para casa, e não ia suportar
apanhar tanto. Pior ainda seria perder Ax.

Nunca tinha ficado deprimida de verdade, porque minha vida miserável


era tudo que eu conhecia. Nunca tive amigos, por isso não sentia falta de tê-
los. Mas encontrar alguém maravilhoso, que me tinha resgatado e me
mostrado que era possível ser feliz, que estava lutando por mim, e depois
perdê-lo, seria insuportável.

Me vi implorando para ficar com Axel para sempre. Para ser aceita de
verdade por aquela família, mas também ter sabedoria para aguentar de
cabeça erguida se Cecilia Hansson nunca me aprovasse. E havia Leonora.

Terminei de trocar os lençóis e fui até o espelho na parede próximo a


porta do quarto. Observei as marcas rosadas que a boca de Axel havia
deixado em mim, tão delicadas em comparação às marcas da violência do
meu tio. Cerrei os dentes e comecei a puxar o esparadrapo que havia
colocado sobre o corte na minha barriga, causado pelo bico do sapato de Alan
Peter.. Estava encharcado e precisava de atenção.

Estava gemendo, com medo de puxar depressa, quando Axel voltou


com uma garrafa de água, uma taça de sorvete e uma malinha de
medicamentos embaixo do braço.

Ele colocou o sorvete e a água sobre a escrivaninha e puxou minha


mão para assumir meu lugar naquela tarefa. Senti um incômodo quando seus
dedos tocaram a massa roxa.

— Por que não trouxe você para cá ontem? — ele resmungou mais
para ele mesmo do que para mim. — Poderia ter evitado isso.

— Como você iria saber? — perguntei, percebendo a raiva que tomava


conta da sua expressão. Não queria que ficasse aborrecido.

— Eu deveria! Prometi que ia cuidar de você, que ia te proteger.

— Por favor, estou bem. Logo vai sarar. Não estrague nossa noite
pensando nisso. Te amo e essas têm sido as melhores horas da minha vida.

— Eu vou arrebentar a cara dele — Axel disse por entre os dentes. —


Sem meu pai saber.

Me distraindo, ele puxou o esparadrapo rápido. Arfei tentando parecer


o mais forte possível, enquanto ele limpava o corte com algodão embebido
em antisséptico e o cobria com um novo curativo. Espalhou um gel
refrescante nas minhas costelas e finalizou me dando um comprimido para
que eu bebesse.
— Você daria um bom médico — comentei com um sorriso, após um
último gole de água. — Mas vai ser um DJ ainda melhor.

Ele deu aquele meu tipo de sorriso preferido. O tímido, com os olhos
focados para baixo.

Dividimos a taça de sorvete e nos aninhamos de conchinha na sua


cama. Nunca tinha me sentido tão protegida para dormir.

O quarto estava escuro, mas relâmpagos começaram a iluminá-lo.

— Vou procurar Theodoro. Ele tem medo de trovões — Axel disse


daquele jeito fofo. — Posso deixá-lo dormir aqui?

— É claro! O quarto é seu.

— Mas você não se importa?

— Amo aquele cachorro — garanti.

Ele deu um sorriso sincero.

— Isso é muito bom. Seria desagradável se você não gostasse de


cachorros.

— Amo todos os bichos.

Ele se levantou e saiu do quarto novamente. Ouvi seus passos se


afastarem e seu sussurro chamando pelo border collie. Me dei conta do
quanto ele era protetor, não só comigo.

Logo, os dois passaram pela porta. Theodoro se acomodou no tapete ao


lado da cama, parecendo o cachorro mais feliz do mundo. Acariciei sua
cabeça e fiz festinha na sua barriga antes de me enroscar novamente com seu
dono. Estava começando a chover.

— Você tem uma anaconda — comentei depois de um bocejo.


— O quê? — ele quis saber.

— Uma anaconda! — repeti.

— Não entendi.

— Seu pênis — expliquei baixinho. — Parece uma anaconda.


Axconda.

Ele enfiou a cabeça na minha clavícula e deu risada, morrendo de


vergonha.

— É um elogio, Ax — o lembrei. — Outros homens ficariam


orgulhosos.

— Outros homens saberiam usar.

— Você soube! — o garanti. — Muito bem. Eu gozei. Você não


percebeu?

Ele riu novamente, entrelaçando nossos dedos da mão e beijando meu


ombro.

— Podemos praticar todas as noites? — ele quis saber, como se ainda


restassem dúvidas que eu fosse querer isso.

— Só a noite é muito pouco. É melhor praticarmos sempre que


tivermos oportunidade.

— Acho justo. Muito justo.

— Ax? — o chamei de novo.

— Oi, minha princesa.

— Você não liga de eu ter celulite? — não pude deixar de perguntar.

— Que celulite? — ele quis saber.


— Nas minhas coxas, na bunda.

— Aqueles furinhos adoráveis? — ele perguntou da maneira mais


inocente possível. — Você é gostosa, Lucy. Toda mulher gostosa tem. E você
é muito, muito, muito gostosa.

Foi minha vez de dar risada.

— Acho que não preciso perguntar das estrias — acrescentei.

— Eu amo tudo em você.

— Também amo tudo em você.

O senti me abraçar mais forte, antes de pegar no sono na proteção dos


seus braços.

Acordei para fazer xixi e vi que já estava amanhecendo. Lembrei da


minha meta de cuidar da casa para agradar Cecilia e me levantei depressa.
Axel passou um braço em volta da minha cintura e me impediu de ficar de
pé.

— Onde vai, meu amor? — ele perguntou com um bocejo.

Me virei e o vi piscar os olhos lindos.

— Fazer xixi. Depois vou até o carro pegar o resto das minhas coisas.
Acho que é melhor fazer isso sem que sua mãe veja — expliquei.

Tinha parado de chover.

— Quer que eu busque para você? — Axel quis saber com a voz
sonolenta.

— Não. Pode dormir. Eu já volto.

Atravessei o quarto nua e fui para o banheiro. Lavei o rosto e sorri para
o reflexo no espelho. Não tinha dormido quase nada, mas me sentia plena,
feliz. Fiz xixi e voltei ao quarto, vesti a calça de moletom e a camiseta velha.
Os músculos das minhas coxas doíam um pouco, mas as costelas estavam
melhores.

Deixei que Theodoro me acompanhasse pelas escadas e me seguisse


até a porta da frente. Peguei as chaves do Toyota no gancho pendurado no
vestíbulo e destranquei a fechadura, abrindo a porta e sentindo vento frio da
manhã. Theodoro parou na varanda, enquanto eu descia os degraus, me
abraçando para me proteger do frio. Quando cheguei ao gramado, ele
começou a rosnar.

Corri até o carro, desativei o alarme e abri a porta de trás. Peguei a


trouxa com minhas roupas e voltei a travar o carro.

Theodoro rosnava ainda mais quando dei o primeiro passo de volta na


direção da casa. Olhei para o chão, me apoiando no Toyota, e percebi uma
coisa que me fez ficar com os sentidos em alerta. Haviam pegadas indicando
que alguém tinha andado em volta do carro depois da tempestade. Pegadas
grandes que deixaram buracos no gramado.

Senti o ar ficar escasso e olhei para o cachorro na varanda, latindo


desesperado para me alertar.

Não pensei duas vezes. Rezando para não escorregar, corri na direção
das escadas, apertando a trouxa de lençol contra o peito. No primeiro degrau,
ouvi sua voz chamar meu nome. Muito perto.

Theodoro começou a descer, como uma fera protegendo uma


garotinha.

Alan Peter estava atrás de mim. Pensei que nunca fosse conseguir
chegar à varanda a tempo, mas o cachorro me ajudou. Alcancei a maçaneta
da porta e ouvi o urro de dor do border collie, quando o desgraçado do meu
tio o atirou para longe com um chute na barriga. Me encolhi, sabendo
exatamente como doía. Me sentindo covarde, por não correr e pegar o
cachorro no colo, girei a maçaneta e entrei no vestíbulo depressa, mas antes
que pudesse trancar a porta, Alan Peter atravessou na frente e a empurrou.
Só deu tempo de dar dois passos na direção das escadas, então senti o
puxão de cabelo. Ele me jogou contra a parede, mas consegui me equilibrar e
tentei correr outra vez, foi então que seus braços alcançaram a trouxa de
roupas que eu carregava. Vi meus trapos se espalharem na sala de estar dos
Hansson, as calcinhas velhas caindo pelo carpete de Cecilia.

— Vai embora! — rosnei me virando para encará-lo.

— Você vai comigo, putinha — ele disse com a voz nojenta. — Vai
começar a trabalhar naquele hotel hoje mesmo.

— Sai daqui! — ordenei, mas ele era grande. E eu não tinha muito
mais que um metro e meio. Seu soco acertou meu queixo em cheio. Seu
corpo me encurralou contra a parede. Bati a cabeça contra um quadro de
Cecilia. Quando seu punho fechado golpeou minha costela já machucada, a
dor foi tanta que vi a sala girar.

— Vai embora — repeti inútil, me segurando no aparador com todo o


desespero que sentia, enquanto Alan Peter me puxava para ir com ele.

— Vou experimentar você primeiro, saber o que tem de tão bom para
enfeitiçar o garoto Hansson — ele ameaçou, mas não soltei o aparador. E os
quadros da família caíram quando o móvel pendeu para o chão.

Não queria incomodar os Hansson com a baixaria dos Peter, mas tinha
que fazer isso.

Gritei por socorro, caída no chão, enquanto ouvia Theodoro latindo do


outro lado da porta. Minhas mãos vacilaram quando vi que o aparador não
me salvaria. Peguei o primeiro porta-retratos e joguei contra a cabeça de Alan
Peter.

— Puta desgraçada — ele murmurou, alcançando um tufo do meu


cabelo e me puxando para cima.

Me ergui depressa, antes que ele arrancasse meu couro cabeludo.


Tentei segurar no sofá, mas meus dedos se fecharam em volta do nada
quando Alan Peter me empurrou de novo, na direção da porta.

Minhas mãos tatearam o vazio, em busca de alguma coisa para me


agarrar, consegui olhar para trás a tempo de ver Cecilia Hansson descendo as
escadas.

— Me ajuda — implorei conseguindo virar o corpo na direção dela.

O estalo veio antes da dor. Meu maxilar trincou e meu grito ficou preso
em algum lugar dentro daquele estupor de dor insana. Alan Peter tinha
torcido meu braço para trás. Meu corpo inteiro foi dominado por aquela
agonia. Doía mais que qualquer outra surra que ele já tinha me dado. Fez meu
corpo perder as forças. Meus joelhos fraquejaram, mas meu tio me segurou
em seus braços antes que eu caísse.

Por trás das lágrimas nos olhos, vi Cecilia pegar alguma coisa e acertar
na cabeça dele, enquanto gritava pelos homens da casa.

Alan Peter estava abrindo a porta, me arrastando com o braço em volta


da minha cintura, quando vi Axel atravessar o vestíbulo. O soco que ele deu
no meu tio fez nós dois cairmos no chão. Bati a cabeça na quina da porta já
aberta e tudo se apagou.
A sensação de impotência aumentava a cada instante. Deixava a
impressão de que eu não faria a diferença na vida de ninguém, que meus
esforços para transformar uma única vida eram em vão. Parecia que a
maldade que existia no mundo sempre iria ser maior para pessoas sofridas
como Lucy.

Era desesperador saber que ela tinha sido agredida de forma tão brutal
na sala da minha casa, que nem ali Lucy estava segura.

Não dava para descrever como eu tinha me sentido inútil ao ouvir o


som do seu osso se quebrando, que aquilo estava acontecendo dentro do meu
lar — um lugar que sempre me remeteu à ordem e segurança.

A garota que eu amava tinha apanhado de novo, havia sido arrastada,


insultada e humilhada enquanto eu dormia no andar de cima, apenas um dia
depois de ela ser espancada pelo mesmo monstro. Aquela mulher tão
especial, que nunca mereceu nenhuma das crueldades que recebeu,
experimentou uma dor tão forte que a fez perder os sentidos.

Como ainda poderia acreditar nas pessoas, na vida, como ela ainda
poderia se sentir protegida após mais um trauma?

Lucy não acreditaria mais em mim, não teria mais fé de que poderia
ajudá-la a se reerguer.
— A culpa não foi sua — meu pai disse, como se soubesse exatamente
o que eu estava pensando.

Uma enfermeira cuidava da minha mão. Eu tinha socado o rosto


daquele desgraçado tão forte que pedaços dos seus dentes tinham perfurado
minha pele. Para uma mínima satisfação, ele não poderia sorrir tão cedo.

Aquilo deveria doer, mas eu não sentia nada.

Os policiais faziam perguntas à minha mãe no corredor. Meu pai e eu


já havíamos respondido tudo que eles precisavam saber, a princípio.
Havíamos ligado para meu tio paterno Kristofer, advogado da família. Ele
cuidaria do processo contra os vários crimes que Alan Peter tinha cometido,
para que ele fosse sentenciado como merecia. Também se encarregaria para
que meu pai assumisse a guarda legal de Lucy até que ela atingisse a maior
idade.

Mamãe não parecia muito feliz com aquilo. Ela ainda estava tentando
se recuperar do caos que tinha sido nosso amanhecer. Mencionou, em todas
as vezes que teve oportunidade, que aquilo era culpa de Lucy, por trazer os
problemas da sua família até nossa fazenda. Só que, no fundo, ela mal
conseguia disfarçar a preocupação com minha namorada. Tinha ido para cima
de Alan Peter sem pestanejar, acertando a cabeça dele com o primeiro objeto
que alcançou no meio da confusão. Foi ela quem ligou para a polícia
enquanto eu o socava, descontando pelo menos uma parcela do ódio e da
revolta que sentia.

Acordar, depois da melhor noite que você já teve, e ver sua namorada
sendo espancada é algo que te afeta profundamente. Saber que chegou tarde
demais, que o braço dela foi torcido até quebrar, enquanto você vestia as
calças, para poder sair do quarto, só faz aumentar a sensação de impotência.

— Como está? — minha mãe perguntou ao entrar no quarto, se


aproximando e passando a mão no meu rosto.

— Como ela está? — rebati arrumando os óculos que escorregavam


nas lágrimas.
— Ainda estava inconsciente quando foi sedada para a cirurgia. Está
doendo? — ela quis saber, então voltou sua atenção para a enfermeira. —
Não aplicou anestesia no meu filho?

A enfermeira a olhou perplexa.

— Mãe, por favor, não dê um dos seus shows aqui — pedi por entre os
dentes, com o rosto já ardendo de vergonha.

— E por que está chorando? — perguntou, fazendo com que a


enfermeira soltasse uma gargalhada.

— Acho que essas lágrimas são de preocupação com a namorada — a


mulher disse, finalizando o curativo na minha mão. — Não precisou de
pontos. Se tiver cuidado, vai cicatrizar rápido. Mesmo que tenha sido o herói
do dia, precisa se curar.

Revirei os olhos, um herói chegava a tempo. Já havia um curativo na


minha testa, então fui liberado para deixar aquela sala.

Minha mãe tentou me convencer a ir embora para casa.

— Não sei porque ainda perde seu tempo — falei. Estávamos sentados
nas cadeiras azuis da recepção do bloco cirúrgico. Por sorte, o diretor do
hospital tinha sido amigo do meu pai, quando estudavam na Agaton
Gymnasieskola, e prometeu que cuidaria para que Lucy ficasse confortável e
se recuperasse o mais rápido possível. — Você deveria ir para casa.

— E deixar meu filho ferido aqui?

Fechei os olhos com força, desejando poder ficar em silêncio.

— A cirurgia ainda vai demorar um pouco. Pelo menos me acompanhe


até o restaurante. Não comi nada ainda.
— E meu pai?

— Seu tio e ele estão resolvendo as coisas na delegacia.

Por mais que eu quisesse ficar ali, não podia negar isso a minha mãe. A
acompanhei até o restaurante. Não sentia fome alguma, só que ela não
entendia isso. Praticamente forçou a comida a descer pela minha garganta.
Depois que ela me repreendeu uma vez e chamou a atenção de outros pessoas
que estavam no local, me deixando com vontade de ser enterrado vivo, cedi a
seus caprichos.

Ao entardecer, Lucy foi transferida para o apartamento. Observei


ansioso quando a trouxeram na maca, depois a passaram para a cama. Tinha o
rosto pálido, o cabelo solto e bagunçado, os olhos cerrados.

Me sentei na cama quando o último enfermeiro nos deixou a sós.


Toquei o gesso que abrangia todo o braço, passei a mão nos seus cabelos e
pedi com todas as forças para que ela acordasse, que ainda conseguisse seguir
em frente após mais um trauma.

— Foi só um braço quebrado — minha mãe disse quando notou as


lágrimas escorrendo pelo meu rosto de novo.

— Não foi uma queda ou algum outro tipo de acidente. Seu tio torceu
seu braço até partir o osso — falei, tirando os óculos e limpando as lentes na
camiseta. — Então, mãe, não é só um braço quebrado, é mais uma lembrança
ruim para persegui-la.

— Ela vai se recuperar — falou enquanto passava a mão pelo meu


rosto.

— Sabe por que o desgraçado invadiu nossa casa? — perguntei e ela


deu de ombros. — Ele pretendia obrigar Lucy a se prostituir. Ela era sua
fonte de renda. Entende por que eu precisava tirá-la daquela casa? É tão
pequena e indefesa para ter passado a vida sendo espancada.

Pelo canto do olho, vi minha mãe ir até a poltrona se sentar. Seus


ombros sacudiram e ela não pode conter os soluços.

Desejei poder pedir que ela pegasse leve dali em diante, que tratasse
Lucy bem porque, acima de ser a garota que eu amava, ela merecia todo
respeito do mundo. Mas minha garganta se fechou e não consegui dizer nada
daquilo.

Meus amigos chegaram minutos depois. Trouxeram vasos de flores e


espalharam pelo quarto.

Filippa me abraçou com força.

— Sinto muito, Ax!

— Se eu imaginasse que isso poderia acontecer, teria passado a noite


na sua casa — Steven comentou. — Teria ficado a noite inteira de guarda.

— Vocês não tiveram culpa de nada. Fizeram o que precisava ser feito
— Mikaela disse.

— É difícil aceitar — murmurei.

— Ele vai ficar preso por um longo tempo — Christer disse ao se


apoiar na bancada ao lado da cama. — Vai cumprir a pena que merece.

Fechei os punhos, me perguntando se ele teria mesmo o julgamento


que merecia.

Meus amigos não ficaram muito tempo. Lucy ainda estava inconsciente
quando eles deixaram o quarto. Já minha mãe ficou o tempo todo por ali.
Enquanto eu mexia no celular, para ver se o tempo passava, ela se levantava
da poltrona e se aproximava de Lucy, tocava suas mãos, verificando a
temperatura, arrumava uma mecha de cabelo mais bagunçada, checava todos
os aparelhos, então voltava a se sentar.
Outra vez, sugeri que ela fosse para casa descansar, mas ela se recusou.

Leonora prometeu vir assim que pudesse. Estava em choque com que
havia acontecido.

Lucy só abriu os olhos ao anoitecer.


Pisquei os olhos no quarto pálido. Era como se meu corpo flutuasse,
relaxado, a mente navegando em águas rasas.

Vi o rosto do garoto tímido se aproximar depressa, quando ele pulou da


poltrona. Havia uma faixa de curativo na sua testa, o lábio inferior estava
inchado e cortado, mas era comigo que ele parecia preocupado. Pisquei e
tentei sorrir para tranquilizá-lo, mas não sei se resolveu.

Havia um acesso intravenoso no meu braço direito, bem na parte de


dentro do cotovelo. O outro braço estava engessado do ombro até a mão,
deixando apenas os dedos livres. Olhei para baixo e vi a camisola esquisita de
hospital. Axel me alcançou e colocou os braços em cima da cama, segurando
minha mão entre as suas. Uma de suas mãos estava enfaixada.

— Vou chamar a médica — ouvi a voz de Elton Hansson soar pelo


quarto antes de vê-lo sair para o corredor.

— O que aconteceu? — perguntei.

— Você desmaiou — Axel disse erguendo a mão livre para tocar


minha bochecha.

— Com você! — expliquei. — Quero saber o que aconteceu com você.

Ele deu de ombros como se isso não fosse importante.


— Quebrei os dentes dele — Axel disse. — Aquele porco não ficou
quieto, é claro. Mas consegui quebrar todos os dentes da frente.

— Ele fez isso? — perguntei erguendo o braço livre do gesso para


tocar sua bochecha, sem encostar no machucado na maçã direita do seu rosto.
Em seguida coloquei a outra mão sobre a sua enfaixada. — E isso?

— Não foi nada — Axel disse. — Me sinto um mentiroso por ter dito
que ia te proteger, mas não consegui.

Ainda zonza, sacudi a cabeça, o que piorou meu estado.

— Você me salvou novamente! Ele teria me levado se você não tivesse


aparecido.

Terminando de dizer isso, levei a mão boa até a boca e arregalei os


olhos.

— Sua mãe! — sussurrei. — Sua mãe tentou me ajudar.

— Ela conseguiu cortar a testa dele, mas ele não a machucou.

— Graças a Deus! Eu não me perdoaria — falei aliviada. — Ele


quebrou meu braço não foi?

Axel fez que sim com a cabeça. Parecia terrivelmente cansado e triste.
Olhei em volta e vi que havia flores sobre uma mesa embaixo de uma janela
coberta por persianas.

— Meus amigos passaram mais cedo e deixaram as flores — ele disse


com aquele jeito tímido.

— Que horas são?

— Quase 19h.

— Dormi o dia todo?


— Você passou por uma cirurgia, por causa da fratura — ele explicou.

— O que aconteceu com Alan Peter? — Não pude deixar de perguntar.

— Polícia — Axel disse simplesmente.

— Mas ele é meu tutor — falei depressa. — Tem minha guarda e ainda
não fiz dezoito anos...

— Meu pai sabe disso. Deixe que ele cuide das coisas.

Assenti com um vinco na testa. Precisava aprender a lidar com alguém


cuidando “das coisas”, das minhas coisas. A vontade que dava era de sair
correndo para meu antigo quarto e pedir perdão a meus tios, dizer que ia me
comportar e implorar para que parassem de me bater, não porque eu
realmente queria voltar, mas porque ser submissa a eles era tudo que eu
conhecia.

Não sabia viver de outro jeito a não ser como saco de pancadas. Meu
corpo e meu psicológico estavam acostumados com isso.

Precisava dar o melhor de mim para viver desse novo modo, mas sem
querer abusar da boa vontade de ninguém. Sabia que precisava de um
equilíbrio, só tinha que aprender como consegui-lo.

— Tá — falei mordendo o lábio, só então me dando conta do quanto


estava machucado. Ouvi passos se aproximando e olhei para a porta, tomada
pelo pânico de serem meus tios.

Uma médica de cabelo ruivo se aproximou e fez um exame minucioso


em mim, descobrindo que eu estava lúcida. Sentia dor em várias partes do
corpo, mas os analgésicos ajudavam.

Quando a médica saiu, e eu toquei a camisola com a mão boa, me


assustei com uma lembrança. Estava levando minha trouxa de roupas para
dentro quando Alan Peter me alcançou. Arregalei os olhos, sentindo o rosto
esquentar com o constrangimento.
— Minhas calcinhas! — sussurrei ao me lembrar de vê-las caírem e se
espalharem pelo carpete. Soltei um gemido de frustração.

— O que foi? Está doendo? — Axel perguntou, sentando-se na cama,


sem saber onde poderia colocar as mãos.

— Não! — falei depressa para não preocupá-lo. Olhei para senhor


Hansson e me senti ainda mais constrangida. Será que os pais de Axel tinham
voltado para casa e visto minhas lingeries com as estampas desbotadas e os
elásticos frouxos? — O senhor passou o dia aqui?

Minha voz representava meu desespero.

— Sim — ele disse se aproximando um pouco mais da cama. — Só fui


até a delegacia, mas Cecilia não se afastou por nada.

— Obrigada! — sussurrei agradecida e voltei a olhar para Ax. — Posso


falar com sua mãe um minuto? É coisa de mulher.

— Você...? — Ax piscou as pálpebras, ficando corado. — Precisa de


alguma coisa... da farmácia?

Seus olhos se voltaram para o pai, como se Elton Hansson pudesse


salvá-lo e dizer como comprar absorventes.

— Não se preocupe. É só uma coisinha que queria falar com ela —


falei tentando parecer o mais despreocupada possível.

— Vou chamá-la — Elton disse por fim, deixando a sala depressa.

Sabia que Cecilia ainda devia me odiar. Ela tinha quebrado um porta-
retratos na cabeça de Alan Peter, mas isso não significava que me aprovava.

Quando surgiu, com seus cabelos platinados perfeitamente alinhados,


usando um terninho bege e calças de alfaiataria, Ax deixou a sala.

Tentei pigarrear para limpar a garganta, não sabia como fazer aquilo
funcionar. Era bem provável que ela só me desprezasse ainda mais.
— Primeiro de tudo, obrigada — comecei timidamente, enrolando a
barra da camisola entre os dedos do braço engessado.

— Ele estava estragando meus porta-retratos, eu precisava fazer


alguma coisa — ela disse como se fizesse pouco caso. Como se aquelas peças
de decoração fossem muito mais importantes que a vida da garota que seu
filho amava.

— Claro. Não sei se estou em condições de te pedir alguma coisa.


Tenho quase certeza que não, mas não tenho mais ninguém a quem possa
recorrer — fiz uma pausa e ela fez sinal com os dedos para que eu
continuasse. — É muito constrangedor, mas acontece que, quando Axel foi
me buscar na casa dos meus tios ontem, não tive tempo de arrumar minhas
coisas direito. Sabe... Coloquei a maioria num lençol e fiz uma trouxa.

Minhas bochechas ardiam de vergonha.

— Não tinha uma mala? — ela perguntou horrorizada.

— Não.

— E o que tenho a ver com isso? Acha mesmo que vou te dar uma
mala de presente? Pelo amor...

— Não! Não! — protestei depressa. — Não é isso, senhora Hansson. É


que eu estava justamente indo buscá-la no carro de Axel quando meu tio
apareceu. Não tinha tirado ela do carro ontem porque não queria chegar
daquele jeito com uma trouxa de roupas.

Dei de ombros, mas a vergonha aumentava a cada palavra. Ela fez o


mesmo gesto de desdém para que eu prosseguisse.

— Meu tio puxou da minha mão e o nó se desfez. A senhora não deve


ter prestado atenção por causa da briga, mas todas as minhas roupas velhas e
minhas calcinhas, mais velhas ainda, se espalharam no chão da sua sala.
Ela piscou.

— A senhora não tem noção do quanto são horríveis e vergonhosas. A


maioria está velha demais. Tenho consciência de que não vou ter alta hoje.
Por isso, peço do fundo do meu coração, que vá até a fazenda e as recolha.

Senhora Hansson continuava me encarando.

— Por favor — insisti.

— Quer que eu volte sozinha para a casa que você e sua família
destruíram, para que me agache pela sala e cate sua roupa íntima?

— A última coisa que quero é que Axel e senhor Hansson vejam —


murmurei sentindo a derrota se aproximar.

Ela girou nos calcanhares, me dando as costas e caminhando depressa


até a porta. Colocou a mão no portal e bufou.

— Chamem um psiquiatra — ela disse para os homens Hansson que


estavam no corredor. — A pancada na cabeça afetou os miolos dela.

— É um neurologista, mãe — ouvi Axel resmungar ao voltar para


dentro do quarto.

— O quê? — ela perguntou perdida.

— Neurologista. Se Lucy sofreu algum dano cerebral, ela precisa de


um neurologista!

Suspirei derrotada. Só me restava rezar para que duendes e trolls


entrassem pela casa e roubassem tudo.

— Não foi nada — falei, enquanto ele beijava minha testa.

— Fizeram alguns exames quando você chegou. Disseram que não


tinha sofrido nenhum dano interno, além da fratura no braço — ele explicou.
— Só deram alguns pontos no corte da sua cabeça.
Instintivamente, ergui o braço bom e toquei o curativo acima da minha
nuca.

— Estou bem — tentei soar confiante e olhei para Cecilia, implorando


com o olhar para que ela não tocasse mais no assunto.

Torcendo o nariz, ela tornou a deixar o quarto.

— Não leve tanto para o lado pessoal — Elton disse ao entrar no


quarto outra vez. — Claro que tem a diferença social, mas ela está mais
chateada pelo fato de Ax dizer que não vai fazer faculdade e logo depois
trazer você para casa. Ela é uma mãe superprotetora, só quer o melhor para
nosso filho.

— Ela passa dos limites — Ax sussurrou de braços cruzados.

— Entendo perfeitamente — falei. — Agora preciso saber sobre meu


tio. Ele vai ficar mesmo preso?

— Nosso advogado vai cuidar de tudo — senhor Hansson disse


brevemente. — Não se preocupe, ele não vai encostar um dedo em você.
Nunca mais, Lucy. Vou cuidar pessoalmente disso.

Pisquei para afastar as lágrimas que começavam a se formar.

— Obrigada — consegui sussurrar. Por mais que eu fizesse um


discurso, não seria suficiente para expressar minha gratidão.

— Pai — Ax o chamou —, pode nos deixar a sós por alguns minutos?

Senhor Hansson assentiu com o sorriso que lembrava um pouco o


sorriso tímido de Axel, e deixou o quarto.
— Gostaria de te contar, de antemão, o que está para acontecer — Axel
começou quando ficamos sozinhos. — Surpresas às vezes podem não ser tão
legais assim.

Abri um sorriso, o incentivando a continuar, e alcancei sua mão.

— Lembra que minha irmã tinha pedido para te levar a Malmö hoje,
pois queria te conhecer?

— Sim. Leonora. Mas acho que as coisas saíram um pouco dos planos
— falei e ele se aconchegou mais perto de mim, segurando com todo cuidado
meus dedos abaixo do gesso.

— Ela resolveu vir assim que soube o que aconteceu. Pensamos em


pedir alguma coisa e jantar todo mundo aqui. Assim vocês podem se
conhecer — ele disse e deu o sorriso tímido. — Mas só se você quiser. A
gente cancela tudo se não estiver à vontade.

— Mas o pessoal do hospital não vai se incomodar? — Olhei ao redor,


me dando conta de que estava em um quarto privado, ciente de que o serviço
de saúde público para jovens me colocaria em um quarto compartilhado. —
Não está gastando dinheiro com esse quarto, está?

— Não — ele disse depressa. — Deveria, mas meu pai conversou com
o chefe do hospital. Eles estudaram juntos. Ele ficou feliz em deixar a nora do
meu pai mais confortável.

Dei risada com o termo “nora”.

— Então tudo bem. Vou ficar feliz em conhecer sua irmã, apesar de
não ser em circunstâncias tão boas.

— Que bom. Pedimos comida italiana. Gosta?

— Gosto de todas as comidas — falei sentindo o estômago comemorar.

— Ela deve chegar em alguns minutos — Axel disse e observou nossos


dedos por um momento, abriu a boca, mas a fechou novamente.

— Tem mais alguma coisa que queira dizer? Gosto de pensar que
podemos falar tudo um para o outro.

Era verdade, já nos conhecíamos o suficiente para não guardar


segredos. Exceto pelas calcinhas.

— Só quero te dizer — ele sussurrou e ergueu o olhar para me encarar


—, que você me fez a pessoa mais feliz do mundo... ontem.

Seu rosto ficou corado. Não pude evitar erguer a mão para acariciar
suas sardinhas. O aparelho aparecia entre seus lábios levemente abertos.

— Não imaginava que fosse acontecer tão depressa — continuou. —


Acho que não estar esperando fez ser ainda mais perfeito.

— Foi a noite mais feliz da minha vida — sussurrei, apoiando a mão


no seu ombro, sentindo o rosto corar com as lembranças mais quentes.

— Foi... — ele fez uma pausa, seus olhos azuis oscilavam entre meus
olhos e lábios.

— Incrível.
— E inesperado. Sabe... Dá um frio na barriga só de relembrar — ele
disse e deu risada, como se ficasse constrangido com os próprios
pensamentos. — Quando você ficou por cima. Caralho, Lucy, foi mais do
que perfeito.

Mordi o lábio, me lembrando da sensação de tê-lo dentro de mim, de


me mover sobre seu quadril, de sermos um só. A respiração ficou mais
difícil.

— Acho que fiquei bem desinibida — confessei.

— Isso é bom. Isso é muito, muito bom mesmo. Encontramos uma


coisa que conseguimos fazer sem que um de nós fique travado.

— É. Não ficamos nem um pouco travados — comentei sorrindo.

Axel mordeu o lábio. Como alguém podia ter um sorriso tão adorável?
Meus dedos tocaram sua covinha. Me inclinei para frente e ele encurtou a
distância entre nossas bocas.

Beijá-lo fazia o sentimento aumentar. Sentir seu corpo tão perto do


meu fazia o mundo parecer mais simples, mesmo que eu estivesse toda
quebrada da surra do meu tio.

— Obrigada por ter sido tão maravilhoso comigo. Faz tão pouco tempo
que começamos a andar juntos.

— Não faz nem duas semanas — ele disse. — Mas passei o segundo
ano inteiro te namorando mentalmente, então...

— Parece que já namoramos há muito tempo — concluí. — Porque eu


também tinha encontros mentais com você.

Demos risada juntos. Éramos um tipo de casal muito peculiar. Axel


nunca, uma única vez no tempo em que o conhecia, havia me decepcionado.
Cada dia, cada hora, cada minuto que passávamos juntos, ele me provava que
ainda existiam pessoas boas no mundo, que nem todos os garotos eram
escrotos e perigosos, e que um romance não precisava ser tóxico para ser tão
intenso.

— Não quero ir embora da sua casa — confessei. — Antes de você,


não sabia como era ter uma vida normal, ter alguém que me protegesse tanto
ou mais que minha mãe.

— Mas eu não fui capaz de te proteger, minha princesa — Axel


lamentou. — Era tudo que eu mais queria. Prometi que não ia deixar nada de
ruim acontecer com você e não fui capaz de cumprir minha palavra.

— Nada disso — falei tocando seu lábio macio com a ponta do meu
dedo indicador. — Você me resgatou. Alan Peter fez o que fez hoje, mas
você me salvou. A gente não podia imaginar que ele estaria na espreita.

— Não está decepcionada comigo? — ele quis saber.

— Jamais — falei com firmeza. — Tudo o que sinto por você, e


também pelo seu pai, é gratidão.

— Não vou mais prometer que vou te proteger...

— Não precisa me prometer nada, meu amor. A única coisa que quero
é que fique comigo, que a gente fique junto, e que você não me deixe para
trás quando for embora para Estocolmo...

— Quem vai embora para Estocolmo? — ouvi uma voz feminina


perguntar, e fiquei com medo de ser Cecilia, mas logo vi que não era.

Uma mulher na casa dos vinte anos entrou pelo quarto. Era loira,
sardenta e com os olhos tão azuis quanto os de Axel. Era bonita, mas parecia
não dar tanta importância para a aparência. Com um jeans básico azul claro e
um suéter bege, Leonora não lembrava em nada o visual impecável da sua
mãe.

Ela parou ao lado do irmão, que se virou para abraçá-la. Os dois eram
incrivelmente parecidos, até no sorriso.
— Essa é a minha namorada, Lucy — ele disse quando a soltou,
orgulhoso como se estivesse dizendo que estava namorando a nova princesa
da Suécia.

— Você é tão bonita! — ela disse segurando meu rosto entre suas
mãos. — Está toda quebrada, mas é linda.

Não pude deixar de dar risada.

— Obrigada — falei com gentileza. — Axel me falou muito sobre


você, Leonora.

— Ele contou que fui eu que o ensinei a gostar de música eletrônica?

— Contou sim.

— Foi um dos meus melhores feitos — ela disse e se virou para olhar o
irmão com admiração. — Estão falando sobre você em Malmö. Tem um
bando de viciados em raves que mal podem esperar para te ver tocar lá.

— Mikaela fechou dois shows para sexta e sábado — Axel disse todo
feliz. — Queria saber se podemos passar o fim de semana na sua casa. Lucy e
eu.

— Claro! Vou avisar ao pessoal para comprar os ingressos. Vai lotar! E


Estocolmo será o próximo passo. Depois, uma temporada em Ibiza.

— Não se empolga tanto — Axel disse.

— Não me empolgar? Você vai ser famoso, Axel! Tenho certeza disso
— ela garantiu e se virou para me olhar. — Lucy, já viu as letras que ele
compõe?

O vi ficar corado.

— Não — falei negando com a cabeça.

— São maravilhosas. Ele não é só um DJ que toca em festas...


— Pelo amor de Deus, vamos parar de falar de mim — Axel implorou.
— Onde estão nossos pais?

— Foram buscar o jantar na recepção — Leonora explicou. — E como


mamãe está reagindo?

— Decepcionada — Axel disse. — Mas está sendo mais pelo fato de


que não vou para a faculdade.

— E não precisa. Você irá muito mais longe com sua música!

— Até tu, Brutus? — Cecilia Hansson choramingou ao entrar pelo


quarto carregando uma sacola de comidas.

— Mamãe! — Leonora depressa pegou a sacola e a colocou sobre a


bancada.

Os Hansson começaram a abrir as embalagens descartáveis, o que fez


com que o cheiro delicioso de comida italiana se espalhasse pelo quarto. Eles
se serviram e se acomodaram onde podiam, conversando animadamente
sobre a clínica veterinária que Leonora estava abrindo. Devorei a comida
assim que Axel a colocou na minha frente, me servindo de garfadas fartas, só
para não perder o costume.

Me deram pudim de chocolate do hospital como sobremesa.

Os Hansson iriam voltar para a fazenda, mas Axel ficaria comigo. E


nada que seus pais dissessem o faria mudar de ideia. Quando todos se
despediram, só consegui pensar nas minhas calcinhas jogadas no chão da
sala. Gemi baixinho, pelo menos Axel não as veria.

Mas, quando eles partiram, cerca de meia hora depois Cecilia voltou
trazendo uma mochila com mudas de roupa para seu filho. Ela se aproximou
da cama, se inclinou na minha direção e sussurrou.

— Catei todos aqueles trapos antes que Elton e Leonora entrassem na


casa. Os coloquei em uma mala no Closet de Axel — sua voz soava fria. —
Você me deve mais uma, sua esquisitinha!

Balancei a cabeça positivamente.

— Tenho certeza que devo. Obrigada!


Havia outra questão que precisava resolver. Mas grave e
constrangedora que as calcinhas. Só que, nesse caso, não podia pedir ajuda a
mais ninguém além de Axel. Se eu dissesse para Cecilia que tínhamos feito
sexo sem camisinha, e que eu não tomava anticoncepcional, ela faria pior que
Alan Peter. Até senhor Hansson iria surtar, depois de eu ter feito todo aquele
discurso sobre responsabilidade e sexo seguro.

Juntei as mãos e esperei que Axel saísse do banheiro. Agora que eu


sabia como ele era sem roupas, ficava mais difícil resistir à tentação de espiá-
lo tomando banho.

Quando parei de ouvir barulho de água, ensaiei as palavras que


poderiam deixá-lo menos constrangido. Minutos depois, seu perfume atingiu
o quarto. Ele apareceu no vão da porta usando calças de moletom cinza e uma
camiseta branca de mangas longas. Suspirei ao vê-lo secando o cabelo com
uma toalha e caminhando na minha direção como se não fosse o garoto mais
adorável do mundo. Me senti suja e desarrumada. O cheiro de remédios
estava impregnado no meu corpo, e sabia que nenhuma enfermeira me tiraria
da cama àquela hora da noite para me dar um banho.

Com a toalha nos ombros, ele empurrou a poltrona até bem perto da
minha cama.

— Posso apagar a luz agora? — Ax quis saber.


— Espera! — pedi. — Tem uma coisa que precisamos resolver.

Ele se deteve, ainda curvado na direção da poltrona. Os olhos estavam


mais claros que o normal, o rosto cansado, olheiras fundas.

— Senta — sussurrei. — Você está cansado.

Ele obedeceu e me olhou com receio, o maxilar trincado.

— A gente não usou camisinha e eu definitivamente não tomo pílula


— falei tão depressa que arregalei os olhos ao fechar a boca.

Sua reação fez meu estômago revirar. Foi como se ele nunca tivesse
pensado na possibilidade terrível de engravidar uma garota, e de repente
todos os seus sonhos caíssem por terra. Abriu a boca para falar, mas estava
chocado demais para conseguir dizer alguma coisa.

— Tem aquela pílula do dia seguinte — murmurei. — Acho que ainda


posso tomar.

— Claro — ele disse como se acordasse de um pesadelo, levantou-se e


pegou o celular sobre a bancada onde estavam suas coisas. Voltou à poltrona
e caiu sobre ela, exausto. — Minha mãe te mataria se você ficasse grávida, e
meu pai... Ele mataria nós dois. Vou pesquisar sobre essa pílula.

Balancei a cabeça positivamente e esperei, enquanto seus olhos


oscilavam lendo as palavras diante dos seus olhos.

— Vai funcionar — Ax disse com segurança, em seguida murchou os


ombros. — Só tenho que ir até a farmácia e dizer que preciso de uma pílula
do dia seguinte.

— Me passa o celular — falei com praticidade. — Eu ligo e peço para


entregarem aqui. Você só precisa receber.

Assim fizemos. Tomei a pílula como mandavam as instruções, fazendo


nota mental de procurar uma ginecologista no dia seguinte, já que estava no
hospital, e pedir que indicasse um anticoncepcional.

Axel se aninhou à poltrona e me ignorou quando falei que ele poderia


ficar com a cama, já que eu tinha dormido o dia inteiro. À meia noite, uma
enfermeira apareceu e injetou medicação na minha veia. Adormeci antes que
ela saísse do quarto.

Acordei no dia seguinte com a voz do senhor Hansson insistindo para


que seu filho fosse à escola. Pisquei os olhos e bocejei, antes de começar a
argumentar em favor do meu sogro. Minutos depois, um Axel ainda mais
exausto que na noite anterior, era escoltado pelo pai para fora do quarto.
Assim que fiquei sozinha, me abandonei em sono profundo novamente.

Quando uma enfermeira me acordou dizendo que era hora do banho,


forcei minhas pálpebras a ficarem abertas. Foi constrangedor ficar nua na sua
frente, mas a sensação de limpeza logo afastou isso. Gentilmente, perguntei
se ela poderia pentear meus cabelos, já que um braço estava quebrado e o
outro quase impossibilitado por causa do soro.

Ela concordou. Me perguntei se sua simpatia era parte do seu trabalho


ou era devido a alguma gorjeta de Elton Hansson. Decidi rápido que não me
importava. Fechei os olhos e relaxei, enquanto ela passava cuidadosamente
uma escova do meu couro cabeludo até as pontas. Quando acabou, eu estava
cochilando outra vez.

Fui acordada para o almoço. Me perguntei se tanto sono se devia aos


remédios ou ao acúmulo de exaustão e medo por tantos anos. Mesmo que
estivesse machucada, com o braço quebrado, me sentia mais leve e segura do
que em qualquer outro dia da minha vida.

Terminei o pudim de sobremesa e me entreguei novamente ao sono


maravilhoso. Só acordei no final da tarde, com os Hansson e os amigos de
Axel no quarto. Ergui a mão devagar para esfregar os olhos, enquanto meu
namorado beijava minha testa. Havia novos buquês de rosas e algumas
guloseimas sobre a mesinha ao lado da janela.

A moça negra com cara de anjo, que eu lembrava que se chamava


Filippa, foi a primeira a se aproximar da cama. Ela se inclinou para beijar
meu rosto e pude sentir cheiro de morango nos seus cabelos.

Estava tão relaxada e descansada que os cumprimentei como se fossem


meus melhores amigos. Sorri até para Cecilia, mesmo que sua cara me fizesse
pensar que ela derreteria a qualquer momento.

Após cerca de quarenta minutos, Mikaela, Steven, Christer e Filippa


precisaram deixar o quarto para que dois homens da polícia entrassem para
me fazer perguntas. Soube que Alan Peter estava sendo mantido preso em
Agaton mesmo.

Inacreditavelmente, Cecilia tinha aceitado tia Esther para trabalhar


outra vez na fazenda. Eu não entendia, também não queria fazer perguntas
sobre isso.

Na penúltima noite em que passei no hospital, Axel e eu tivemos uma


longa conversa sobre meu futuro.

Todas as tardes, ele chegava e me fazia o resumo do que havia


aprendido na escola, tentando me fazer entender a matéria. Naquele dia, ele
parecia mais ansioso que o normal. Imaginei que fosse por causa do show
que ele faria em Malmö no dia seguinte.

— Quero que considere cada palavra que vou dizer — ele começou,
sentado ao meu lado na cama estreita, segurando uma das minhas mãos e me
olhando bem sério.

Balancei a cabeça positivamente.

— Sei o quanto quer trabalhar, posso imaginar o quanto pode ser


constrangedor depender de mim para tudo. Entendo que você queira ter seu
próprio dinheiro.
— Axel, meu amor — sussurrei —, sei o quanto é nobre da sua parte
tudo que está fazendo comigo, mas não posso depender dos seus pais.

— Me deixa terminar — ele pediu parecendo fazer um esforço enorme


para continuar falando. — Te disse que poderia te ajudar a conseguir um
emprego naquele salão de beleza. Mas isso foi antes de eu pensar melhor no
assunto, no futuro. Não acho que trabalhar agora seja bom para você. Por
favor, não me leve a mal, mas é nosso último ano na escola. Se conseguir um
emprego, você terá um pouco de dinheiro para comprar as coisas que precisa,
mas é só isso. Se voltar da escola e aproveitar o tempo para estudar, você
poderá ir para a faculdade. E isso vai ser uma recompensa muito maior que
um salário de meio período.

— Faculdade... — sussurrei como se fantasiasse com algo impossível.

— Não quero que seja só a namorada do músico, a esposa do DJ. Eu


quero que você seja Lucy, alguém que conseguiu ir muito mais longe do que
achou que poderia. E você é capaz, minha princesa, não precisa ser a garota
que vai me acompanhar a todo lugar. Quero, e espero que também queira,
que seja alguém importante também, reconhecida pelo seu trabalho.

Pisquei os olhos, ainda sem querer acreditar que haveria um futuro


diferente.

— É só pelo terceiro ano — continuou. — Meu pai vai te dar uma


mesada, como faz comigo, e você não vai precisar pedir dinheiro para
comprar suas coisas. Só vai ter que se dedicar aos estudos.

Fiquei tão emocionada que não consegui chorar. Axel esperava que eu
fosse alguém na vida. Ele acreditava que, em algum lugar do meu cérebro
lento, eu poderia me destacar e ser uma profissional de respeito. Ele não
queria que eu fosse simplesmente sua companheira, alguém que viveria à sua
sombra.

— Deve haver alguma coisa que você deseje fazer, estudar... —


sussurrou.
— Quando eu tinha entre doze e treze anos, cheguei a sonhar em ser
advogada ou juíza, para colocar na cadeia estupradores — confessei.

Ele abriu um sorriso lindo e beijou a minha mão que estava segurando.

— Mas não acredito que dê para recuperar o tempo perdido. Tem muita
coisa que não consegui aprender na escola. Fui empurrando com a barriga.

— Assim como acredita que posso ser um grande músico, tenho fé em


você também, minha princesa. Você pode fazer o que quiser, desde que se
dedique.

Respirei fundo e olhei para meu braço envolto em gesso, onde seus
amigos haviam rabiscado seus nomes. Tanta coisa havia mudado. Uma
pessoa em seu psicológico saudável odiaria ficar no hospital. Para mim, foi a
primeira vez em anos que consegui descansar e recuperar o sono. Me sentia
renovada. Ainda mais agora, com a possibilidade de um futuro promissor
(não que eu realmente acreditasse que poderia entrar na faculdade).
Cecilia Hansson era uma mulher desequilibrada. Ao mesmo tempo em
que me humilhava como um capacho em casa, estava me levando com seu
filho para comprar roupas, depois da escola, na sexta-feira, porque não queria
que Axel fosse visto com uma molambenta, como ela mesma disse. Também
era engraçado ela estar se preocupando tanto com o visual do filho para o
show em Malmö, quando não suportava que ele fosse DJ.

Me limitei a observar como seu humor se transformou assim que


entramos na loja, na qual eu jamais pensaria em poder comprar alguma peça.
Ela sorriu com a simpatia na medida certa, assim que uma atendente se
aproximou.

— Meu filho tem um show em Malmö hoje — ela disse com orgulho,
me fazendo arregalar os olhos. — Precisamos de algumas peças, e não
podemos demorar.

Olhei para Ax perplexa. Sua mãe odiava com todas as forças que ele
fosse DJ, mas falava disso com tanto orgulho. Como entender? Ele parecia
não estranhar, na certa estava acostumado com a personalidade bipolar da
senhora Hansson.

— E essa é Lucy, minha nora — disse gesticulando na minha direção,


sem demonstrar desdém. — Ela tem um estilo vintage, acho que poderá
gostar de alguns vestidos da coleção.
Antes que eu pudesse assimilar as palavras “Lucy” e “nora” juntas na
mesma frase pronunciada por Cecilia, ela estava enroscando o braço no meu.

— Venha, querida. Vamos dar uma olhada naquela arara.

Ela puxou cabides e os colocou diante do meu corpo, me girando em


frente ao espelho e me analisando. Separou todos que eu, perdida, aprovei
com um sorriso amarelo, formando uma pilha de roupas sobre um puff de
veludo.

Estiquei a mão e alcancei a etiqueta de um vestido rose gold, drapeado


no busto, de alças que descia rodado até os meus joelhos. Vi que valia mais
que um salário da minha tia.

— Não olhe as etiquetas. Se gostar, levaremos — ela me disse.

Engoli em seco, sem saber ao certo como agir. Axel estava do outro
lado, na seção masculina, olhando desinteressadamente para os cabides.
Fazer compras talvez não fosse seu forte.

Sua mãe me empurrou para um provador, me incentivando a


experimentar tudo. Era surreal, mas do que eu poderia lidar. Tive dificuldade
de me despir e experimentar as peças, por causa do gesso, ainda assim, girei
diante do espelho admirando os vestidos que se pareciam com os meus
achados de brechó, só que milhares de vezes mais sofisticados. Me senti,
como Axel costumava me chamar, uma princesa. Mas não queria que aquilo
me deslumbrasse. Algo me fazia ficar em alerta.

— Serviram, querida? — Cecilia perguntou quando saí carregando as


roupas, em claro e bom som para que todos ouvissem.

Fiz que sim com a cabeça.

Então, segurando meu braço bom com força, até fazer suas unhas
cravarem na minha pele, ela baixou o tom de voz e rosnou.

— Se convencer meu filho a ir para a faculdade e abandonar essa


estupidez de música, vou parar de implicar com você — ela murmurou. —
Serei a sogra dos sonhos, só tem que me ajudar. Acredito que também queira
o melhor para Axel.

Ela estava sorrindo outra vez, de um jeito que me assustava.

Nunca poderia concordar em persuadir Axel a largar seu sonho para


viver o da sua mãe.

Respirei fundo, puxando meu braço das suas garras, segurei os vestidos
com mais força e abri um sorriso tão falso quanto o dela.

— Apenas o melhor para Axel — falei por entre os dentes, como um


boneco de ventríloquo. Caminhei depressa até o caixa e joguei a pilha de
vestidos caros sobre o balcão. Se ela achava que ia me comprar com roupas,
perderia seu dinheiro.

Fiz questão de deixá-la carregar as sacolas até o carro, afinal, eu ainda


precisava me precaver quanto a fazer esforço físico. Abri os melhores e
maiores sorrisos falsos e agradeci imensamente pelo guarda-roupas novo,
peças que eu poderia colocar ao lado das roupas de Axel.

Ela sorria afetada e dispensava meus agradecimentos gesticulando com


a mão, como alguém que amava fazer caridade, enquanto Axel nos olhava, na
certa se perguntando o que tínhamos cheirado.

Cecilia acomodou-se no banco de trás, enquanto me sentei ao lado do


seu filho, no banco da frente do Toyota e sorriu por tanto tempo que cheguei
a pensar que os músculos do seu rosto estavam paralisados. Flagrei Axel
olhando para a mãe pelo retrovisor várias vezes, com a testa franzida e os
olhos curiosos.

A fazenda Hansson estava funcionando a todo vapor, com vários


funcionários trabalhando para dar conta de tudo antes que o inverno
chegasse.

Tia Esther estava limpando a cristaleira da sala de jantar quando


entramos na casa. Ela me olhou brevemente, mas logo desviou, como eu
costumava fazer quando encarava um patrão. Me vi movendo os pés na
direção dela, considerando seriamente pegar uma flanela e ajudá-la para que
terminasse mais rápido.

Axel segurou meu pulso, me detendo.

— Temos que separar o que vamos levar e partir. Preciso chegar cedo a
Malmö.

— Tudo bem — concordei.

O segui pelas escadas, enquanto ele carregava todas as sacolas. No


quarto, separei alguns vestidos novos e coloquei na mala, ao lado das coisas
de Axel, já que eu não queria levá-los na mochila velha. Escondi uma dúzia
de calcinhas velhas entre um dos vestidos, junto com o sutiã melhorzinho que
possuía.

Quando Axel estava fechando o zíper da mala, após colocarmos nossos


produtos de higiene e meus remédios, senhor Hansson entrou no quarto sem
bater. Ele se aproximou e me estendeu um cartão.

O segurei na palma da mão e pude ler meu nome nele. Lucy Peter.

— Use para suas emergências de garota. Axel disse que vai se dedicar
aos estudos. Fico aliviado. Posso mantê-la muito bem sem que precise
trabalhar.

— Não precisa, senhor Han... Elton — me corrigi depressa. — É muita


gentileza, mas...

— Você trabalhou sem ganhar um centavo aqui e em várias outras


casas de família, é o mínimo que posso fazer.
— Precisava ajudar nas despesas — argumentei, mas ele ergueu a
palma da mão para que eu parasse.

— Trabalhar duro, em troca de um teto e um pouco de comida é


escravidão — ele disse e trincou o maxilar, como se pensasse em seu filho
vivendo nas mesmas condições que eu. — Além disso, é melhor você ter um
cartão, assim não terá que pedir quando precisar comprar... coisas de garotas.

Dei um aceno de cabeça e fechei a mão em torno do cartão. Enquanto


Axel arrastava a mala para fora do quarto, garanti a senhor Hansson que seria
prudente e só usaria em caso de necessidade. Ele parecia não se importar.

— Obrigado por ter sido simpática com minha mãe — Axel disse
quando estávamos sozinhos no carro. — Por ter tornado as coisas mais fáceis.
Sei que ela precisa de tratamento psiquiátrico, mas fica pior quando é
contrariada. Não entendo o motivo dela, de uma hora para outra, resolver te
comprar todas aquelas roupas. Talvez...

— Ela estava tentando me comprar — contei, não porque queria fazer


fofoca ou colocá-lo contra a mãe, mas porque Axel era meu melhor e único
amigo. — Ela realmente está preocupada com você não ir para a faculdade,
então pensou que eu poderia te convencer a largar a música, se me comprasse
alguns vestidos. Até prometeu ser boazinha comigo.

— Não acredito que mamãe fez isso — ele disse sacudindo a cabeça,
mas sem parecer realmente chateado.

— Fui muito malvada por aceitar todos aqueles presentes?

— Não, minha princesa. Você não pediu. Ela comprou porque quis.
Leonora havia arrumado o quarto de hóspedes para o que ela estava
chamando de “o casal mais apaixonado de Agaton”. Seu apartamento não era
grande e sofisticado como a casa de fazenda dos Hansson, mas era arejado,
bem decorado e aconchegante. Seu noivo, Evert, era simpático, porém
reservado. Nos recebeu com cordialidade e nos deixou à vontade para que
nos aprontássemos para o show.

Axel e todos os seus amigos iriam nos encontrar em um restaurante,


para que comêssemos uma pizza antes de irmos à casa de shows mais
badalada de Malmö. Axel bebia um shot de vodca e conversava com Mikaela
ao celular.

Havíamos gastado cerca de meia hora a mais do banho, fazendo um


sexo delicioso. Graças aos dias no hospital, a gente tinha aprendido a sentir
prazer sem fazer tanto barulho. Mas eu confesso que não via a hora de
estarmos em um lugar onde eu pudesse gemer sem me preocupar de sermos
pegos. Quanto à precaução, fazíamos sempre com camisinha, porque nenhum
dos dois queria ser assassinado pelos pais de Axel.

Mordi o lábio, lembrando do último orgasmo, enquanto retirava o


plástico que envolvia o gesso sempre que tomava banho, e me sentei na cama
de casal, de frente para um espelho de corpo inteiro. Estava usando o vestido
rose gold, máscara para cílios e batom vermelho, já que Alan Peter estava
enjaulado e não poderia me chamar de puta. Coloquei o colar de ouro com
meu nome, que Axel havia me dado, e trabalhei com dificuldades fazendo
uma trança frouxa jogada sobre meu ombro esquerdo. Deixei alguns fios
soltos, para contrastar com a delicadeza do vestido, e me inclinei para calçar
as velhas botas marrons. Quando acabei de calçá-las, ergui os olhos
analisando o visual. O tecido fino da saia do vestido havia escorregado para
meus quadris, revelando minhas pernas. Observei os furinhos na parte de trás
das minhas coxas e os toquei, me sentindo à vontade por ter celulite.

Me dei conta do quanto seria bobagem me preocupar com elas. Não


havia nada que eu pudesse deixar de fazer só por ter celulite, já que eu não
tinha nenhuma pretensão de ganhar dinheiro com um corpo perfeito. Passei a
mão por elas, as admirando e aceitando que faziam parte de mim, portanto,
não deveria me envergonhar delas.

— Você está maravilhosa, linda, incrível! — Axel me elogiou quando


desligou o telefone, se aproximando e me abraçando por trás. — Esse batom
é daqueles que não sai?

— Não — respondi virando para encarar meu príncipe.

— Acho que dá tempo de retocar — ele disse encostando os lábios nos


meus. Sua língua encontrou a minha, me fazendo incendiar de desejo. O
gosto de vodca estava na sua boca. Ele me empurrou contra a cama e se
deitou por cima do meu corpo. Enlacei seu pescoço com o braço engessado e
o senti apertar o quadril contra o meu. — Dá vontade de cancelar o show só
para ficar aqui com você.

Seus lábios alcançaram a parte mais sensível do meu pescoço,


chuparam a pele. Me encolhi por baixo dele, tentada a puxar sua camiseta
nova.

— É a sua carreira — consegui sussurrar após um gemido.

— É — ele murmurou preguiçosamente, rolando de cima de mim e


indo na direção do banheiro.

Me levantei o mais depressa que o gesso permitia e levei o batom até o


banheiro, onde Ax tentava limpar as marcas vermelhas. Acabamos nos
beijando de novo, dessa vez, com tanta paixão que seu aparelho machucou
minha língua.

Nos recompomos e conseguimos deixar o quarto. Evert e Leonora nos


esperavam no vestíbulo, já usando seus casacos. Os acompanhamos pelas
escadas do prédio e fomos em carros separados até o restaurante, onde
Mikaela, Filippa, Steven e Christer já estavam acomodados em uma grande
mesa redonda.

Acabei descobrindo, enquanto todos conversavam e bebiam taças de


vinho, que tinha sido Leonora a apresentar Axel a Mikaela. Os dois se
olharam por um breve segundo, como se estivessem lembrando de algo que
nunca deveria ser mencionado.

Não fiquei enciumada. Não havia razão para isso. Mesmo que Mikaela
estivesse usando um top que exibia um abdômen definido, que não dobrava
quando ela sentava. Seu cabelo loiro platinado balançava, enquanto ela ria e
gesticulava para os amigos, os lábios se moviam com sensualidade, o olhar
era fatal, mesmo assim, não fiquei insegura.

Quando os pratos foram retirados, Axel já estava embriagado de vodca


e vinho, e sorria como o homem mais confiante da mesa, quando um grupo
de rapazes e moças se aproximou para falar com ele. Tinham ingressos para
sua apresentação no clube de Malmö e perguntaram se podiam tirar uma foto
ao seu lado.

Apoiei a taça de vinho de volta na mesa, meio que em choque. Ficamos


em silêncio por um instante, processando a ideia de que um grupo de pessoas
havia reconhecido Axel Hansson — o garoto de dezessete anos, que sentava
quieto na fileira do canto e almoçava sozinho na escola — e gostariam de ter
uma foto com ele.

— C-Cl-Claro — ele respondeu também surpreso, antes de se levantar.

Enquanto os jovens se revezavam para sair em uma foto com Axel,


comentavam como estavam ansiosos pelo show, dizendo que já tinham
dirigido algumas vezes até Agaton para vê-lo tocar no clube Sensations.

— Tem namorada? — uma das moças perguntou sem inibição.

— Tenho — ele disse, desta vez sem gaguejar, e gesticulou na minha


direção com aquele sorriso de quem tinha muito orgulho de ser meu
namorado. — Lucy.

Apertei a mão de cada um deles, enquanto comentavam o quanto


adoravam o som que meu namorado fazia.

— Podemos tirar uma foto com você? — a moça quis saber.

Arregalei os olhos, mas fiz que sim com a cabeça. Axel passou o braço
em volta da minha cintura e se inclinou para encostar o rosto no meu. A
garota ficou do outro lado. Me perguntaram o que havia acontecido com meu
braço, e Axel respondeu que tinha sido um acidente. Perguntaram se podiam
postar a foto no Instagram e me marcar. Ficaram chocados quando falei que
não usava Instagram. Afinal, o que eu teria para postar em uma rede social?
Quem, além de Axel, se importaria?

— Vocês precisam conhecer Mikaela, a empresária dele — falei


gesticulando na direção dela. — É ela que organiza todos os shows.

O grupo voltou a atenção para a loira sexy, que se levantou com


determinação e sorriu enquanto os cumprimentava. Posamos para mais fotos.

— Mikaela Andersson — ela disse quando perguntaram seu Instagram.


— Podem me marcar em tudo. Vou segui-los de volta.

Os jovens agradeceram, desejaram um ótimo show e nos devolveram a


privacidade.

Após o choque inicial, os homens da mesa bateram nas costas de Axel,


enquanto as mulheres repetiam o quanto tinha sido surreal.

— Aquela garota ficou visivelmente com inveja de você — Filippa


comentou me olhando.

— De mim? — perguntei sem entender.

— Você é a namorada do DJ — ela explicou. — Axel é lindo.

— Meu irmão é mesmo um gato — Leonora disse tentando beliscar a


bochecha do irmão, que conseguiu se afastar bem a tempo.

Eu sabia que tudo aquilo o teria deixado vermelho como uma pimenta
se estivesse sóbrio. Mas, graças ao álcool, ele se limitou a dar aquele sorriso
tímido de covinhas.

Eram quase 21h de sexta. Me peguei pensando o que estava fazendo há


uma semana: chorando no quarto porque Alan Peter não tinha me dado
permissão para ir à festa do sábado.

Agora ele estava preso por me bater, além de outras acusações, e eu


estava naquele restaurante posando para fotos com o astro da noite.

Não dava para dizer que a sensação de reviravolta era boa. As


lembranças de toda uma vida faziam meu estômago embrulhar e meu coração
ficar apertado.

— Precisa criar um Instagram para você — Ax disse me puxando das


lembranças. — Posso fazer isso?

Todos já estavam se levantando e procurando seus casacos.

— Tudo bem — respondi distraída, os seguindo para o estacionamento.


Ele segurou minha mão com firmeza até estarmos diante da porta do Toyota,
que Axel abriu para que eu entrasse.

O clube de Malmö era uma boate enorme e sofisticada na parte central


da cidade, com uma fachada iluminada que dava para a avenida principal de
Malmö. Entramos por uma porta de acesso na rua de trás, onde os carros
ficaram estacionados.

Alguns homens usando jaquetas pretas com o slogan do clube


bordados em cores neon apareceram para transportar os aparelhos de som que
Axel trazia. Antes de atravessarmos a porta, ele segurou minha mão com
firmeza e encostou os lábios nos meus bem depressa.

— Não tive tempo de praticar essa semana — ele sussurrou para que só
eu ouvisse.

— Mesmo assim, vai arrasar — assegurei passando a mão no seu


cabelo, jogando para trás uma mecha que caía sobre o olho.

— É tão bom que esteja aqui — ele disse agradecido.

— Vem! — Mikaela interrompeu nossa cena, chamando da porta com


impaciência.

A seguimos e fomos guiados por um segurança até uma sala grande e


iluminada. Havia uma mesa comprida com frutas e queijos, além de uma
variedade de bebidas alcoólicas e energéticos. Axel se encaminhou até lá,
preparando um drink.

Pensei em sugerir que talvez ele pudesse experimentar subir no palco


com menos álcool no sangue, porém, como estava se comportando bem,
fiquei quieta.

Seus amigos, assim como Leonora e Evert, começaram a desfrutar das


bebidas a sua disposição. Como eu ainda estava tomando medicamentos,
fiquei só na comida.

— Axel Hansson poderá responder algumas perguntas para um canal


no YouTube sobre música eletrônica? — ouvi uma mulher usando
headphones perguntar a Mikaela.
Aquela era a maneira mais discreta de perguntar se ele poderia dar uma
entrevista?

— Depois do show — Mikaela respondeu.

— Temos também alguns influencers do Instagram que gostariam de


entrevistá-lo. Todos envolvidos com música eletrônica — a mulher
continuou.

— Ele dará três entrevistas — Mikaela explicou com habilidade. —


Vocês escolhem.

— E quanto a tirar fotos com o público?

— No máximo sete. Dessa vez, nós escolheremos — a loira disse.

— Ótimo! — A mulher pareceu satisfeita. — Aproveitem o camarim.


O show deve começar em 43 minutos.

Como suspeitava, ele arrasou.

O clube de Malmö tinha uma estrutura ainda maior e melhor que o


clube Sensations, em Agaton. Havia jatos de fumaça e fogo, que
acompanhavam a apresentação de algumas músicas. Ele tinha aperfeiçoado o
discurso sobre as garotas, que fez o público enlouquecer.

Quando Axel disse que eu era Lucy, a garota que ele amava
exatamente do jeito que era, o vídeo com minhas imagens apareceu no telão.
Para minha surpresa, algumas garotas na plateia começaram a gritar meu
nome. Arregalei os olhos, perto dele no palco, sem saber como agir. Então
Axel me beijou.

— Garotas, eu juro, vocês são incríveis de qualquer jeito — ele disse


ao se virar novamente para a plateia, que gritava enlouquecida com as mãos
para cima. Havia pessoas sobre os ombros de outras. Uma garota segurava
um pedaço de papelão com o nome do meu namorado escrito em letras
graúdas.
Perplexa era a palavra certa para descrever meu estado.

Então, a música ficou mais rápida e ele moveu os quadris no ritmo.

O palco era seu lugar, a música era sua vida. Eu faria qualquer coisa
para apoiá-lo na sua carreira. Axel Hansson já estava juntando os primeiros
fãs, era simpático e respeitoso com todos, principalmente as garotas, dizendo
coisas que as faziam se sentir melhores. Sim, ele estava no caminho.

Quando o show acabou, levamos algum tempo para chegar ao


camarim, porque Axel tirou fotos com quase todo mundo que começou a se
aglomerar na grade na lateral do palco.

Ele estava suado, cansado, mas abria os sorrisos mais fofos para as
lentes das câmeras. Não dava para dizer quem parecia mais orgulhosa:
Mikaela ou Leonora. Steven e Christer ajudaram a retirar seus equipamentos
do palco, enquanto Filippa organizava a fila de pessoas e instruía a todos a
marcarem Axel nas fotos.

Enfim, quando ele acabou as fotos e entrevistas, pensei que poderíamos


escapar para longe e comemorarmos o sucesso do show a sós, em algum
lugar onde pudéssemos gemer e fazer barulho. Mas a turma já tinha planos de
continuar a festa no camarim.

Beberam até as cinco horas da manhã.

Quando chegamos ao apartamento de Leonora, estávamos exaustos.


Axel desmaiou sobre a cama assim que tirou os tênis e as lentes de contato.
Me despi devagar, porque não estava bêbada, em seguida me enfiei embaixo
do cobertor. Sentindo minha presença, ele me puxou para mais perto e nos
enroscamos um no outro.

Acordamos após o meio-dia.

Ser despertada com beijos no pescoço era algo com que eu poderia me
acostumar muito bem.
Nos agarramos um ao outro, minha mão escorregou por dentro da sua
calça, encontrando a ereção. Me sentei sobre seu quadril e, só de calcinha, me
movi sobre ele, iniciando a transa que terminamos embaixo do chuveiro, com
o sabonete escorregando nos nossos corpos e o som da água caindo, abafando
nossos gemidos.

O segundo show pareceu ficar ainda mais lotado. Ele fez algumas
modificações, tocou músicas diferentes e apontou para garotas com estilos
diferenciados, dizendo o quanto eram lindas e especiais.

Como o público já esperava que ele fosse atendê-los na grade ao lado


do palco, se aglomeraram antes que o show acabasse.

Dessa vez, eram tantas pessoas, principalmente garotas, querendo uma


foto ao seu lado, que Mikaela precisou interromper antes que todos fossem
atendidos. Foi com relutância que ele nos seguiu para o camarim.

— Não quero dar falsas esperanças, mas alguém de uma grande


gravadora estava no camarote — Mikaela anunciou de queixo erguido,
olhando para Axel com admiração.

— Quem?

— Gente grande, gente de Estocolmo — ela disse vagamente.

— Será que gostaram? — Axel perguntou com insegurança.

— Todo mundo gostou — Steven disse sorrindo para o amigo. Sua


careca brilhava de suor. — Foi brutal.

— Você precisa finalizar com Where Is The Party e Until The End —
Christer falou colocando a mão no ombro de Axel. — É bem provável que
vão querer uma música exclusiva sua.

— The Girl vai ficar perfeita com a adição do seu vocal — Filippa
disse para Christer. — Deveria ser o primeiro lançamento.
Pelo que entendi, aquelas eram músicas que ele tinha produzido
sozinho, desde a composição até as batidas, e Christer e Filippa faziam os
vocais.

A farra acabou mais cedo e quando chegamos ao apartamento da minha


cunhada, ele estava praticamente sóbrio, ansioso para descobrir se alguém de
uma gravadora da capital ligaria nos próximos dias.
A clínica veterinária que Leonora Hansson estava abrindo era metade
particular e metade pública, para cuidar de animais abandonados.

No domingo, antes de voltarmos para Agaton, fomos conhecer as


dependências da clínica. Havia um canil com sete animais, entre cães e gatos,
já abrigados e sendo cuidados por Leonora. Era emocionante ver como ela e
Axel amavam bichinhos. Meu namorado dedicou tempo a dar carinho a cada
um dos animais que havia ali, os segurando no colo e conversando com eles,
enquanto a irmã os examinava e aplicava medicamentos.

Quando dei por mim, estava secando as lágrimas na manga da jaqueta,


pensando no quanto os Hansson estavam fazendo a diferença nas vidas
daqueles bichinhos que foram maltratados, assim como eu. Eles eram pessoas
de um coração enorme e caloroso. Me vi desejando que fossem
multiplicados, para que mais vidas como a minha ou de cachorros e gatinhos
fossem salvas.

Carreguei um filhotinho no colo — um gato que tinha sido batizado de


Romero. Ele encostou seu focinho gelado no meu pescoço e ronronou,
enquanto Leonora trocava o curativo da sua pata que havia sido queimada.

Ela queria resgatar o maior número de bichinhos que conseguisse, e


estava com um número de telefone para atender chamados. Axel e eu
prometemos ajudá-la com a divulgação, agora que o número de seguidores
dele crescia rápido. Até meu novo perfil estava sendo seguido, porque as
pessoas em Malmö não sabiam que minha mãe estava em um presídio.

Cecilia me fuzilava com o olhar, enquanto Axel e eu contávamos para


senhor Hansson como as apresentações tinham sido incríveis. Mostrei para
meu sogro seu filho dando entrevistas, em vídeos que gravei no meu celular.

— Parece que até o final do ensino médio você já estará sendo


convidado para se apresentar em festivais — Elton disse todo contente.

— Não só aqui na Suécia, como em outros países da Europa — fiz a


observação como a namorada mais empolgada.

— Acho que deveria lançar aquela música... — senhor Hansson puxou


pela memória. — The Girl. Posso apostar que a compôs inspirado em
alguém.

Seu pai piscou para mim, enquanto Axel dava aquele sorriso tímido.
Sua mãe parecia avulsa na cena, sem demonstrar a menor empatia pela
felicidade do filho. Pelo menos não me insultou, enquanto jantávamos
comida chinesa.

Fomos para a cama cedo, mas não exatamente para dormir.

Como se não desse para ficar mais perfeito, ouvi a canção The Girl,
que estava quase finalizada. Falava sobre acreditar em si mesmo, dizia que
todos os sonhos poderiam se transformar em realidade, mas falava
principalmente a respeito de encontrar felicidade na garota solitária que
sentava do outro lado da sala de aula.

Fiquei arrepiada, fantasiando vê-lo tocá-la em um show lotado.

O círculo de amigos do meu namorado era bem pequeno, mas todos


concordavam que essa deveria ser sua música de estreia. Eles tinham razão.
A menos de vinte dias para meu aniversário de dezoito anos, Axel
dividia seu tempo entre a música e minhas aulas de reforço, me incentivando
a ler cada vez mais e fazer atividades que desafiassem meu cérebro. Ele era
um professor excelente, e muitas vezes precisávamos interromper a aula para
atender ao desejo dos nossos corpos adolescentes e insaciáveis.

Algumas noites, pegávamos a Van do senhor Hansson e dirigíamos até


o topo da colina, onde podíamos fazer todo o barulho do mundo, sem
incomodar ninguém.

Certo dia, depois do jantar, fiquei para colocar a louça na lavadora e


Axel subiu para o quarto. Cecilia aproveitou o momento para me recriminar,
dizendo que eu havia extorquido seu dinheiro com falsas promessas, como
era oportunista, aproveitadora, folgada e cretina. Ela queria devolver à loja os
vestidos que eu ainda não tinha “contaminado com minhas bactérias
molambentas”.

Ri quando ela disse que não poderia nem pensar na quantidade de


germes que eu passava para Axel. Rir era a única coisa que me restava.

Se ela soubesse que estávamos planejando ir até Estocolmo, na


intenção de visitar mamãe no dia do meu aniversário, cairia dura no chão.

— Experimentei todos os vestidos ainda na loja — falei com a


sobrancelha arqueada. — Não lembra? Todos já estão contaminados com
minhas bactérias!

— Eu ia te comprar calçados e roupa íntima para jogar aqueles trapos


fora, e é assim que me retribui, enganando meu filho, se aproveitando,
iludindo...

Revirei os olhos e a deixei falando sozinha. No quarto, ao entrar, ouvi


Axel ao telefone.

— ... nos encontrarmos...?

Me detive no meio do quarto, ouvindo sua voz vinda do banheiro.


— Mas já jantei — ele continuava. — Não pode ser outro dia? —
pausou enquanto eu, curiosa, esperava imóvel. — Tudo bem, a gente se
encontra lá.

Querendo disfarçar que estava ouvindo a conversa, caminhei até a


escrivaninha e abri minha mochila, ao ouvir dar descarga e abrir a porta do
banheiro.

— Vai sair? — perguntei tomada por um sentimento estranho no


estômago, algo que me impedia de sorrir.

Quem estava ligando queria encontrá-lo ainda essa noite.

— Vamos? — ele perguntou abrindo o closet para pegar uma jaqueta?


— Não é nada demais, eu acho. Mikaela quer me ver, para contar algo
pessoalmente.

Soltei a respiração que não sabia que estava segurando. Eu tinha


acabado de sentir ciúmes? Abri um sorriso e coloquei o livro que segurava de
volta na mochila, me sentindo ridícula e, ao mesmo tempo, aliviada.
Caminhei até o closet e peguei um casaco que estava pendurado no meu lado
do guarda-roupas. O vesti, passei batom e rímel, calcei as botas e refiz a
trança, enquanto Axel colocava as lentes de contato e mexia em alguns papéis
sobre a escrivaninha.

Fomos a um restaurante no centro, próximo a Catedral de Agaton.


Mikaela já estava em uma mesa e limitou-se a acenar com a cabeça para mim
quando nos aproximamos.

— O quanto você realmente estaria disposto a fazer pela sua carreira?


— ela perguntou quando nos sentamos. Estava usando calça jeans clara, um
cropped branco e brincos de argola, mesmo que fizesse 7°C lá fora.

— Tudo — Axel respondeu dando de ombros. — Desde que não


prejudique ninguém.

— Ótimo. Porque alguém ligou de Estocolmo.


— Quem? — perguntamos ao mesmo tempo.

— Um produtor da Dreamer Records. Eles querem que você vá até lá e


mostre o que anda produzindo. Expliquei que você ainda está no ensino
médio, mesmo assim eles não querem esperar.

— Eles me querem pra já? — Axel perguntou com o cenho franzido.

— Isso mesmo — Mikaela respondeu prendendo o cabelo platinado


atrás da orelha. — Se gostarem do seu som, vão querer que você entre em
estúdio nas próximas semanas, para te lançarem no Tomorrow is Mystery
Sweden, em novembro.

Axel ficou parado encarando sua empresária, com os dedos da mão


esquerda batucando sobre a mesa. Um garçom ao lado aguardava que
fizéssemos os pedidos.

— Água, por favor — pedi.

— Vinho e uma porção de queijo grevé — Mikaela falou sem tirar os


olhos de Ax.

Eu sabia o que todo aquele silêncio significava. Se ele aceitasse a


proposta, precisaria faltar às aulas nas próximas semanas. Significava me
deixar sozinha em Agaton. Se eu realmente quisesse ter uma carreira também
não poderia desviar o foco dos estudos para acompanhá-lo.

Vi uma ponte sendo construída entre nós, se encompridando depressa.


Meu coração se apertou e senti um nó na garganta ao imaginar que Axel iria
embora muito mais cedo do que imaginava.

Não deveria me sentir assim. Aquele era seu sonho. Era egoísmo da
minha parte querê-lo só para mim.

Me remexi na cadeira.

— Lucy não pode faltar tantas aulas — foi a primeira coisa que ele
disse.

Vi Mikaela mover o rosto na minha direção, e pensei depressa que me


lançaria um olhar de desprezo, mas tudo que seu olhar me transmitiu foi
empatia.

— Não estou pedindo para que faça isso. Você só tem dezessete anos.
Não vou te incentivar a faltar aula ou ir para longe de Lucy. É você quem
deve tomar a decisão.

— Ele vai — falei com tanta determinação que até eu me surpreendi.

— Não vou te deixar sozinha...

— Não vou estar sozinha — o tranquilizei, ainda que a ideia me


apavorasse. Cecilia iria me torturar psicologicamente o tempo todo. — Você
pode faltar alguns dias de aula e ainda conseguirá se formar, mas eu não.

— Tem certeza? — Axel havia se virado na minha direção e segurava


minha mão com firmeza. — Prometi que não te deixaria.

Engoli o nó na garganta e ergui a cabeça.

— É a sua carreira. E serão só alguns dias.

— Vou precisar conversar com meu pai — ele disse lentamente,


voltando o corpo na direção da loira sentada do outro lado da mesa. O
garçom estava lhe servindo uma taça de vinho e ela mordia o primeiro pedaço
de queijo. — Você está livre para ir comigo? Pode ficar esse tempo todo em
Estocolmo?

— O tempo que precisar. Tudo pelo DJ! — ela disse após engolir o
queijo. — Se você conseguir contrato com essa gravadora, estamos feitos.

— Tenho certeza que vai conseguir. O número de seguidores de Axel


só sobe — comentei.

Ele deu um sorriso torto e me olhou.


— Além de tocar pesado, você diz coisas lindas nas suas apresentações
— acrescentei baixinho.

— Você levanta a autoestima do público feminino — Mikaela


completou minha observação. — Seu discurso e aquele vídeo de Lucy em
momentos naturais é seu diferencial. Isso é demais. Você, mesmo tímido,
conseguiu achar um jeito de conquistar a plateia.

— Minha mãe vai surtar — ele disse me encarando com preocupação.

Eu sabia o que aqueles olhos queriam dizer. Que Cecilia descontaria a


raiva em mim. Só que, depois de meu pai e Alan Peter, a crueldade da minha
sogra pouco me atingiria. Desde que ela não colocasse minha mãe no meio.

— Vou ficar bem — garanti. — Passarei a maior parte do tempo


estudando. Não desperdice essa chance.

— Ligue para seu pai — Mikaela pediu. — Eles querem uma resposta
ainda esta noite.

Axel fez que sim com a cabeça, levantou-se pedindo licença e foi para
a calçada.

Bebi um gole da garrafa de água que o garçom havia colocado diante


de mim.

Não era Cecilia que me preocupava, era a saudade que sentiria do meu
príncipe.

— Você é uma figura, Lucy — a loira comentou, mordendo um pedaço


de queijo bem devagar, me analisando com um olhar estranho.

Meu cabelo estava preso em duas tranças, estava usando meu vestido
jeans com elástico na cintura e a camiseta de estampa de margaridas, com um
casaco por cima, meias de lã e as velhas e inseparáveis botas marrons. Mordi
o lábio ao sentir o coração bater um pouco mais rápido. Era a primeira vez
que eu ficava a sós com ela.

— Por quê? — murmurei passando os dedos por toda a circunferência


do copo.

— Não se importa que eu vá sozinha com seu namorado para


Estocolmo? — Seu olhar não era desafiador, era mais de curiosidade.

Pensei a respeito por um breve instante.

— Você é a agente dele. Axel é tímido, travado. O que ele faria lá sem
você? Acredito que farão reuniões. Não pode encarar tudo ficando bêbado
para ter coragem. Ele precisa de você — expliquei.

Ela riu e passou a mão no cabelo, o jogando de lado, apoiando as


costas no encosto da cadeira. Franziu o cenho e me olhou com ainda mais
curiosidade.

— Você sabe... sobre...?

— Sobre vocês? Eu sei — respondi e me arrumei na cadeira,


endireitando os ombros.

Por um longo momento, ela me assistiu beber alguns goles de água.


Quando voltou a falar, era como se ela estivesse profundamente interessada
em me desvendar.

— Não tem ciúmes? Não estou reclamando, longe disso. É bem melhor
que não tenha. Só quero entender.

— Não tenho ciúmes.

Talvez, no começo, eu ficasse incomodada com o fato de a ex-


namorada dele ser tão bonita e sexy, mas agora me sentia mais confiante. Ele
me fazia ser assim.

— Tenho pernas longas, sou magra, sei que sou bonita, porque em
qualquer lugar aonde vou as pessoas olham para mim com desejo. Eu sei que
sou atraente. Enquanto você... Não estou dizendo que é feia, você tem sua
beleza. Mas não é magra, usa esses vestidos que às vezes parece que roubou
da sua avó, não tem postura, seu cabelo... Você nem hidrata! E come sem
nenhum freio.

Levei a mão livre do gesso até a minha cintura. Era notável que eu
estava ficando mais cheinha agora que comia com tanta frequência. Talvez
desse para esconder duas Mikaelas agachadas atrás de mim e, não, eu
realmente não hidratava o cabelo. Mesmo assim, não era educado da parte
dela dizer essas coisas.

— Lucy, eu me mato para ter a aparência que tenho! Faço dietas


mirabolantes, gasto com cremes, invisto em mim, sou a ex do seu namorado,
vamos viajar juntos para Estocolmo, e você não sente ciúmes! Me diz, pelo
amor de Deus, como ser tão confiante? Eu preciso saber, porque parece que,
por mais que eu me mate para ser como sou, nunca vou ter nem metade da
sua autoestima.

Tive que rir quando percebi que ela estava o tempo todo querendo falar
da minha autoestima.

— Acho que nós duas conhecemos muito bem o caráter de Axel —


falei a encarando para que percebesse que eu estava sendo sincera.

— Sim, claro. Ele é e continuará sendo fiel a você, mas... Sabe, na


maioria das vezes é exaustivo ser como eu, nunca me sinto satisfeita com o
que vejo diante do espelho, e aparece você, uma garota de dezessete anos que
não se sente ameaçada por mim.

Pelo que entendi, ela estava incomodada por eu não sentir ciúmes.

— Tenho celulite e estrias no quadril — confessei, o que a deixou


ainda mais chocada. — Mikaela, vou te falar o que penso. Como você disse,
tenho só dezessete anos e posso não ter razão, mesmo assim, acredito no meu
ponto de vista. As pessoas que buscam só a aparência em outra pessoa nada
mais querem do que um troféu para exibir aos outros. É basicamente ficar
com alguém que não gosta de verdade, para mostrar para pessoas que você
despreza, aquilo que você não é. Entenda. Não quero dizer que está errada em
ser tão vaidosa, mas tudo que as pessoas enxergam é que você é um troféu
para ser exibido. O que realmente importa não está no seu corpo ou no seu
cabelo, mas sim dentro de você. Se precisa se matar fazendo dieta para
agradar os outros, acho que está só se enganando. Pensa bem, nenhum dos
seus amigos deixaria de te amar se, por acaso, você engordasse uns quilinhos.
Se eles te deixassem de lado por causa disso, talvez não fossem seus amigos
de verdade. Claro que existe toda uma questão de saúde, mas já está magra,
Mikaela. Amar a si mesma e se aceitar faz bem para a saúde também, e
muito.

Ela bateu palmas quando acabei de falar, chamando a atenção de


algumas pessoas a nossa volta.

— Você daria uma ótima influencer, sabia? De verdade, Lucy. Te


admiro muito mais agora. Tem toda razão, mesmo com seu jeito simples e
esse visual nada sedutor, encontrou alguém que te ama de verdade, enquanto
eu pulo de um relacionamento para o outro num piscar de olhos. Axel e você
têm ideais tão parecidos. Vocês se completam.

— Ele me salvou — falei emocionada.

— Não, foi você que o salvou — Mikaela disse me fazendo arregalar


os olhos. — Mesmo antes de começarem a namorar, você já tinha mudado a
vida dele. Sempre foi tão tímido, sério e reservado. Então ele te conheceu e as
coisas mudaram. Agora ele sorri muito mais, conversa, acredita nele mesmo.
Sabe — ela fez uma pausa e deu um sorriso acanhado, como eu nunca tinha
visto —, quando a gente estava ficando, na última vez que transamos, ele me
chamou de Lucy. Aconteceu no final do ano passado. Isso me irritou tanto,
que eu tive que descobrir quem era você. Depois de pressionar Steven, ele me
contou que Axel gostava de uma garota da escola, mas que não dava bola
para ele. Fiquei puta com ele e terminei. Axel já era apaixonado por você
desde o ano passado. Quando ficava comigo, era com você que ele
fantasiava.

— Não sei o que dizer — sussurrei. Não conversava com quase


ninguém além das poucas pessoas com quem tinha intimidade, então não
sabia mais o que falar. Só conseguia considerar que ele pensava em mim
quando estava com ela, e dizer isso não iria ajudá-la.

— Ele fez uma música para você — Mikaela disse. — Você


transformou a vida dele, mesmo antes de estarem juntos. E foi uma mudança
muito boa. Espero que seja uma inspiração para mim também.
Axel fazia chamadas de vídeo todas as noites. Como era de se esperar,
o pessoal da gravadora tinha adorado suas músicas e pediu que ele
trabalhasse em mais algumas, que deveriam ser lançadas no festival de
novembro. Por isso, ele passava a maior parte do dia no estúdio.

Na escola, as pessoas acompanhavam sua nova vida através dos Stories


no Instagram. Todo mundo o seguia, até os professores, porque parece que
todo mundo sentia prazer em dizer que estudava na mesma escola que Axel
Hansson. Também começaram a me seguir, porque Axel postava fotos que
tínhamos tirado juntos e me marcava. Meu celular sempre vibrava com
notificações.

Queria que ele estivesse ali para ver como tinha virado o assunto
principal. Ele diria que só estavam se aproximando tanto por ele ser DJ, e não
ficaria deslumbrado com tanta atenção.

Sentia sua falta.

Meu coração doía quando eu me virava no meu assento para lhe dizer
algo durante a aula, mas encontrava a cadeira vazia. Doía porque agora era
senhor Hansson que me levava para escola na caminhonete Ford, e não mais
Axel. Minha garganta se fechava quando, depois de jantar, com Cecilia
apontando cada um dos meus defeitos quando Elton não estava por perto, eu
subia para seu quarto e o encontrava vazio.
Os livros continuavam nas prateleiras, mas seus instrumentos tinham
partido com ele. O menino tímido com miopia, que costumava sentar sozinho
na hora do almoço, agora estava num hotel em Estocolmo, passava o dia
usando lentes de contato, e cada coisa nova que ele fazia era postada e
registrada em uma rede social.

E eu realmente sentia saudades.

Para aguentar a barra, focava nos livros, nas fórmulas, regras e datas
históricas. A cada matéria nova que eu conseguia compreender, sentia mais
esperança de entrar para a faculdade. Como Axel havia me dito, eu queria ser
alguém, mesmo que nunca tivesse me permitido ter esse tipo de fantasia. Se
eu acreditasse, e me dedicasse, talvez chegasse lá.

O gesso pinicava, enquanto eu passava os olhos pelas linhas do livro,


leitura que só era interrompida pelas chamadas de vídeo do meu príncipe ou
para uma pausa onde eu descia até a cozinha, me certificando de que não
encontraria Cecilia no caminho, e assaltava a geladeira.

Trocava poucas palavras com tia Esther. Na maioria das vezes, ela me
implorava para retirar as queixas contra Alan Peter. Em sua defesa, ela dizia
que ele era um bom homem por nunca ter me estuprado. As vezes em que ele
passou a mão na minha bunda ou se esfregou em mim não significavam nada
para ela.

Eu não entendia. Tia Esther estava trabalhando, Alan Peter preso,


mesmo assim ela ainda o queria de volta. Era sua chance de se livrar daquele
vagabundo viciado, mas ainda parecia terrivelmente presa a ele, como se
Alan Peter pudesse manipulá-la da cadeia, através do pensamento.

Elton me contou que ele não conseguiria aguardar julgamento em


liberdade, que ficaria preso o tempo todo, que eu poderia ficar mais aliviada.
Senhor Hansson não descuidava de mim. Dirigia até a escola pontualmente
para me buscar, perguntava se havia algum lugar aonde eu queria ir, e me
levava quando eu precisava. No começo, foi muito difícil entrar no carro com
outro homem que não fosse Axel. Mesmo tendo absoluta certeza que Elton
Hansson não era um estuprador miserável, me sentia apavorada. Minhas
mãos tremiam, a pele ardia de pavor. Mas, depois de uma semana, me senti
mais tranquila, até conversava com ele no caminho sobre o progresso do
nosso amado Axel na capital.

Ele estava tão orgulhoso do filho.

Ao contrário de Cecilia. A mulher havia surtado quando voltamos para


casa e Axel contou que iria para Estocolmo, onde uma gravadora desejava
assinar contrato com ele. Ela jogou a culpa toda em mim, como se eu fosse a
dona da gravadora Dreamer Records. Mas nada podia fazer, Axel era
emancipado e, como a opinião do seu pai era a única que ele considerava,
partiu dois dias depois.

Me segurei, enquanto ele levava a mala e os equipamentos do seu


quarto até o Toyota. Sorri e segurei sua mão, o encorajando, quando era
possível. Fui mais forte do que pensei que poderia ser, mas quando ele deu
partida, e acelerou até seu carro desaparecer na paisagem, eu desabei em
lágrimas no chão da varanda.

O border collie ficou ao meu lado, com uma postura elegante, se


mostrando companheiro.

Na escola, os professores aceitaram ignorar suas faltas, afinal, suas


notas eram exemplares, e ele voltaria antes dos exames do outono.

Algumas garotas, usando vestidos estampados vintage, pediram para


ver meu gesso, onde Axel havia escrito o trecho da música que ele fez para
mim. Perguntaram se podiam assinar também. Mesmo encurralada pelas três
que me cercavam, pedi licença e me afastei.

— Ela é esquisita — uma delas disse pelas minhas costas.

— É esquizofrênica, como a mãe.

— Tenho tanto medo do que ela possa fazer com Axel...


Mas meus dias longe dele estavam contados. Ia pegar um ônibus para
Estocolmo, onde ele estaria me esperando para me levar até o hotel onde
estava hospedado, um dia antes do meu aniversário de dezoito anos.

Então, depois de passarmos uma noite juntos para matar a saudade, ele
me levaria para visitar minha mãe.

Não sei o que me deixava mais ansiosa: ver meu príncipe ou mamãe.
Os amava tanto.

— Pensei em uma coisa que poderíamos fazer para marcar seu


primeiro aniversário comigo — ele disse todo tímido, encarando a câmera do
celular com olhos vermelhos por causa das lentes. Ele insistia em passar o
máximo de tempo com elas, e nunca saía do quarto de óculos.

— O quê? — perguntei empolgada.

— Tatuagens — falou acanhado. — Não nossos nomes. Isso é muito


brega. Mesmo que você não tope, e por favor não se sinta pressionada, mas
quero fazer.

— Gostei da ideia — respondi com sinceridade. Não tinha pensado em


fazer tatuagens porque eu não planejava muita coisa além de sobreviver um
dia após o outro. — O que acha que podemos tatuar?

— Uma frase — ele disse parecendo aliviado por eu gostar.

— Que frase?

— Você escreveria alguma coisa para mim com sua letra, e eu tatuaria.

— E eu também teria uma frase sua, com sua letra, marcada no meu
corpo. Adorei, de verdade. Quero fazer.
Ele abriu um sorriso tão lindo que me fez querer atravessar a tela do
celular para beijá-lo.

— Queria tanto que estivesse aqui — sussurrou.

— Em breve — respondi tentando parecer mais forte do que era. — Só


precisamos segurar mais uns dias.

— Sim. Vou atazanar Mikaela para ela conseguir que eu assine o


contrato com o dono da gravadora quando você estiver aqui, para que
possamos voltar juntos. As músicas estão quase prontas.

— Você já o conheceu?

— Não. É um DJ muito prestigiado. Está em turnê pelas Américas.


Mas vai estar aqui quando você vier.

— A sorte vai estar a nosso favor. Vocês vão assinar — falei com toda
a fé que cabia no meu coração.

— Lucy, se eu conseguir esse contrato, estarei feito. Sabe, vou tocar


naquele festival.

— O Tomorrow is Mystery Sweden? — perguntei.

— Sim. A Dreamer Record é tão importante que tem um palco só dela.


O festival dura uma semana. As festas mais incríveis do mundo. Mikaela
disse que talvez eu possa não só tocar no palco da gravadora, como também
no principal. Palco Principal!

— Isso é mais que fantástico, não é?

Dava para ver a felicidade nos seus olhos.

— Sim, meu amor. Meu nome iria aparecer em todos os banners de


divulgação, meu show seria transmitido em rede nacional e em todos os
canais da MTV do mundo.
Meu coração se encheu de orgulho. Tinha valido muito a pena apoiá-lo,
mesmo que sua falta me deixasse com um buraco no peito, mesmo que a
saudade castigasse.

— Vai valer cada dia que estamos separados — falei baixinho.

— Princesa...

— Diga.

— O cachê para tocar no palco principal é muito mais do que eu


precisaria para montar um estúdio aqui. Vou poder comprar seus livros e todo
material para a faculdade — ele disse com tanto carinho que senti como se
estivesse ao meu lado, me abraçando e me enchendo de beijos. — Se tudo der
certo, quando voltar, posso usar o dinheiro que estava guardando para irmos
morar sozinhos na cidade, longe da minha mãe. O que acha?

— Só você e eu? — perguntei toda boba. — Ainda este ano?

— Sim, minha princesa — ele disse e mordeu o lábio. — Se quiser,


pode começar a procurar um apartamento. Poderá decorá-lo do seu jeito.

Eu ri, ansiosa com a ideia de termos o nosso cantinho.

— Te amo mais do que você pode imaginar — Ax disse.

— Também te amo mais do que consigo dizer. Vai ser tão bom quando
pudermos ter nosso próprio lar. Quer dizer, sou muito grata por estar aqui,
mas sua mãe...

— Entendo, meu amor. Sei o quanto está se sacrificando para que eu


esteja aqui. Aceitar morar com meus pais para que eu economizasse, me dar
apoio na vinda para cá, ser tão carinhosa. Você é a melhor namorada do
mundo.

— Sabe que vou te matar de beijos quando a gente se encontrar, não


sabe? — perguntei me aninhando nos travesseiros.
— Conto com isso — ele respondeu e se inclinou para pegar alguma
coisa, voltando a posição alguns segundos depois com meu suéter verde
horroroso, o cheirando. — Ainda tem seu perfume.

Suspirei. Não existia ninguém como ele.

— Já reservou a passagem? — quis saber.

— Sim. Vou pegar o trem às 14h16. Chegarei por volta das 19h50.

— Vou fazer a reserva em um restaurante e encomendar um bolo de


morangos para sua mãe.

— Vai comigo visitá-la? — perguntei com a sobrancelha erguida. Pelo


que eu sabia, ninguém além de mim a tinha visitado em quase catorze anos.

— Claro... A menos que não ache que seja uma boa ideia.

— Vai ser sim. Tenho certeza que ela vai ficar feliz em te conhecer.

Ele abriu um sorriso, mas sem deixar aparecer o aparelho. Parece que
estava praticando esse tipo de sorriso ainda mais tímido, onde os dentes
nunca apareciam. Se ele pudesse ver o quanto era adorável, mesmo de óculos
e aparelho, sofreria bem menos.

— Nos vemos ainda esta semana, Lucy — ele disse e suas bochechas
ficaram mais coradas. — Espero que descanse no trem, porque planejo
termos uma noite longa.

O jeito que ele mordeu o lábio fez meu corpo inteiro se acender.

Nos imaginei em tantas posições que mal consegui murmurar: — A


noite inteira...
Considerei que Cecilia me desejaria uma péssima viagem, e que me
perdesse na Estação Central de Estocolmo e nunca mais voltasse. Mas ela me
surpreendeu.

— Comprei um sobretudo — me disse estendendo uma sacola de uma


loja especializada em roupas de inverno —, luvas e um cachecol. — Em
Estocolmo é bem mais frio que aqui, nessa época do ano.

Olhei para seu rosto, procurando a máscara de cinismo e falsidade, mas


não encontrei.

— Obrigada — respondi séria.

— Está levando o cartão de crédito? — perguntou e fiz que sim com a


cabeça. — O carregador do celular? Não quero que se desencontre de Axel na
estação.

— Está na minha bolsa, senhora Hansson.

— Sabe como foi difícil, para mim, aceitar isso tudo, não sabe? — ela
me questionou.

— Estou ciente.

— Espero que tenha valido a pena. Traga meu filho a salvo de volta
para casa. Estamos todos com muita saudade.

Eu não sabia muito bem como agir diante desse novo temperamento,
por isso acenei com a cabeça e me virei para seguir até o carro, porque
alguma coisa na sua expressão corporal me fazia pensar que Cecilia Hansson
iria me abraçar.

Elton me desejou feliz aniversário adiantado. Ele disse que o


sobretudo, as luvas e o cachecol eram um presente dele e de Cecilia, mas que
ela não queria admitir que estava me dando algo de aniversário.

— Obrigada, de verdade, por ter sido mais que um tutor para mim nos
últimos dias. O senhor fez tantos sacrifícios...

— Já te disse uma vez, se Axel a ama, a tratarei como uma filha.

Queria dizer que ele tinha sido muito mais do que eu conhecia como
pai, mas teria começado a chorar. Pensei em abraçá-lo, só que eu não sabia
muito bem o jeito menos constrangedor de fazer isso. Axel tinha sido a única
pessoa que eu tinha abraçado nos últimos dois anos — já que ano passado
não havia dinheiro suficiente para uma passagem de ida e volta até a capital
do país.

Retirei o sobretudo da sacola. Era preto, quentinho e cobria até meus


joelhos. O vesti quando faltavam vinte minutos para chegar à estação, calcei
as luvas, passei o cachecol em volta do pescoço e observei a paisagem
noturna passando depressa.

Borboletas se sacudiam dentro do meu estômago. Repassei na cabeça


todas as vezes que me lembrava de ter ido até Estocolmo visitar mamãe.
Haviam sido apenas cinco. Em catorze anos mamãe só tinha recebido minha
visita cinco vezes.

Isso poderia mudar quando eu me mudasse com Axel para a capital,


depois do ensino médio.

Com a mente cheia de pensamentos positivos, peguei a mala e andei


pelo vagão até a saída mais próxima.

Havia um garoto do sul da Suécia, tímido, acanhado, usando um casaco


preto e um gorro cinza. Estava muito frio. Seus olhos azuis vasculhavam cada
saída do trem, e uma nuvem de vapor flutuava na frente do seu rosto,
passando através dos lábios entreabertos.

Quando coloquei o pé na estação, nossos olhos se encontraram. Ignorei


as pessoas ao redor e o fato de que não era nada educado beijar o namorado
em público, e corri em sua direção, agarrada a alça da mala, que só soltei para
segurar em seu pescoço.

Axel me abraçou tão forte que me tirou do chão. Segurando com


firmeza em minha cintura, ele me beijou com desespero. Retribui, me
afogando nos seus lábios, com a paixão intensa, desejando que fôssemos mais
além.

— Você tirou o gesso — ele disse ao me colocar de volta ao chão.

— Tirei hoje de manhã — respondi fazendo carinho no seu rosto, o


admirando.

— Está tão linda. Como conseguiu ficar ainda mais bonita?

Abri meu melhor sorriso.

Axel pegou a alça da mala, colocou a mão na minha cintura e me guiou


até o estacionamento. Me sentei no banco do passageiro, enquanto ele
colocava minha bagagem no porta-malas. Quando entrou no carro, passou a
mão por trás do meu pescoço e segurou os fios da minha nuca, os puxando.
Nos jogamos um contra o outro e nos entregamos a um beijo longo que tirou
nosso fôlego. Nossas línguas se encontraram, se tocaram, se provaram no
desespero de compensar o tempo que não voltaria atrás.

— Beijar é muito melhor do que eu lembrava — ele disse com a testa


apoiada na minha, respirando ofegante contra minha boca.
— Senti tanta saudade — murmurei com as mãos agarradas nos seus
ombros. — A cama ficou tão fria.

— Aqui também...

Quando Axel havia me dito que reservaria um restaurante para


jantarmos, imaginei que seria um lugar discreto e silencioso, com algumas
mesas vazias e um garçom usando camisa branca, que nos serviria um vinho,
ou algo do tipo.

O restaurante ficava na Rua Västerlånggatan, na parte velha de


Estocolmo. Ao passarmos pela porta, senti como se fizéssemos uma viagem
no tempo. Me vi dentro de uma taberna viking, com conversas altas, risadas e
garçons vestidos a caráter.

Fomos recebidos com uma simpatia que eu nunca tinha visto em


nenhum estabelecimento de Agaton. Olhei para Axel com espanto, quando
anunciaram em voz alta nosso nome e, em seguida, os clientes bateram com
seus copos e punhos contra as mesas, comemorando nossa chegada.

— Eles fazem isso com todos que chegam. Sempre quis vir aqui — ele
se justificou falando bem próximo do meu ouvido. — É um lugar bem
conhecido na cidade.

— Uau — comentei olhando em volta, vendo alguns clientes usando


chapéus vikings e brindado seus cálices. — Parece que todo mundo está se
divertindo.

Precisamos desviar das pessoas para conseguirmos alcançar nossa mesa


para dois — uma das poucas do restaurante, já que 90% das mesas eram
coletivas. O lugar estava lotado.

Mordi a bochecha por dentro. Era tão impressionante ver tantas pessoas
felizes ao mesmo tempo, longe de Agaton, dos olhares desconfiados das
pessoas que me conheciam, de Cecilia, da tristeza de tia Esther. Só nós dois
em uma cidade grande.

Me senti contagiada pela alegria das pessoas no restaurante. Olhei para


Axel, que observava tudo com um sorriso de menino, como se não fosse a
pessoa mais tímida que eu conhecia. E, pelo seu hálito, sabia que não havia
bebido.

Estiquei o braço para alcançar sua mão.

— Adorei o lugar — falei alto, para que ele me ouvisse através do


barulho. — Tem uma energia muito positiva.

Axel balançou a cabeça e me disse para escolher um prato do cardápio.

Meus olhos abismados percorreram a lista de pratos. Não havia como


nosso jantar sair por menos de 500 coroas. 500 coroas!

Estreitei os olhos e baixei o cardápio até poder espiá-lo do outro lado


da mesa. Ax analisava a variedade de pratos com atenção e o rosto sereno,
como se não tivesse que pagar a conta no final. Observei as pessoas ao redor
e tentei calcular quanto o restaurante arrecadaria em uma noite como aquela.

Então, como se sentisse que estava sendo observado, Axel ergueu os


olhos do cardápio e me encarou.

— Já escolheu? — moveu os lábios perguntando.

— É caro! — quase gritei.

Ele fez algo que nunca tinha feito antes. Me repreendeu com o olhar.
Como se quisesse dizer: não acredito que vai estragar esta noite pensando em
dinheiro! Só então, voltou sua atenção ao menu.

Franzi os lábios. Se ele tinha me levado até ali, e se sabia da fama do


lugar, também deveria estar preparado para o preço salgado.

Me arrumei na cadeira, endireitei os ombros e tentei fingir costume.


— Vou querer o salmão defumado — falei de queixo erguido, tentando
me passar por rica e fina —, com batatas e molho branco.

Ax deu um sorriso de aprovação, e chamou um garçom viking, que


veio todo pomposo.

Tivemos alguns minutos para experimentar a cerveja da casa. Axel teve


que mostrar o documento que comprovava sua emancipação para conseguir
comprar bebida alcoólica. Confidenciei ao funcionário viking que no dia
seguinte seria meu aniversário de dezoito anos, e ele fez vista grossa.

A cerveja era forte, assim como o tempero do nosso jantar


escandinavo, servido em utensílios e talheres medievais, que combinavam
com os castiçais de velas no centro da nossa mesa.

Axel comeu carne de alce com legumes e purê de batatas, enquanto


experimentava hidromel.

— A bebida sagrada dos vikings — ele disse erguendo o cálice de


hidromel, sorrindo sem ter vergonha de ninguém ao seu redor. Naquele
momento, duvido que se importaria de compartilhar a mesa com
desconhecidos.

Dei um longo gole na minha cerveja, produzida artesanalmente no


próprio restaurante, e respirei profundamente, me sentindo feliz e confortável
diante da algazarra da clientela.

Após a sobremesa, permanecemos na mesa para assistirmos à


apresentação ao vivo, onde um músico tocava canções antigas e alegres em
instrumentos exóticos.

Quando deixamos o restaurante, entramos em um beco medieval, com


pavimentação de pedra, ladeado de casas de comércio com arquitetura gótica,
e continuamos descendo na direção da Rua Munkbroleden, até alcançarmos a
beira-mar. Caminhamos de mãos dadas no frio intenso, conversando sobre o
tempo que passamos separados. Em seguida, voltamos ao carro e partimos
para o hotel, que ficava também em Gamla stan, o centro histórico da capital.

— Estávamos hospedados em outro hotel, mas o pessoal da gravadora


conseguiu uma vaga neste hoje de manhã — Axel explicou, enquanto um
mensageiro pegava minha bagagem. — Porque, talvez, eu assine contrato
amanhã à noite.

— E é aqui que o dono da Dreamer Records se hospeda — conclui.

Era um hotel luxuoso, até para os padrões dos Hansson. Com


elevadores lustrosos, escadaria larga, lustres de cristais (pelo menos parecia),
lareira, sofás elegantes e confortáveis.

Fomos direto para o elevador. Sua suíte ficava no quinto andar. Se não
fosse pelo mensageiro ao nosso lado, teríamos nos agarrado ali mesmo, coisa
que fizemos assim que fechamos a porta. Não reparei muito na decoração, só
que havia uma sala e um quarto em um salão para dois ambientes. Nossas
mãos trabalharam depressa, arrancando as roupas e os calçados. Quando
fiquei só de lingerie, Axel estava ajoelhado aos meus pés, e admirou o
conjunto de renda branca, extravagância que eu tinha comprado com o cartão
de crédito, exclusivamente para aquela noite.

Surpreso, seus olhos se demoraram no meu corpo, senti sua língua


percorrendo minhas coxas, seu rosto se afundando entre elas, me fazendo
soltar um gemido. Agarrei seu cabelo, ansiosa para que sua boca encontrasse
meu sexo. Quando ele fez, foi por cima da renda da calcinha, joguei a cabeça
para trás e gemi, desejando que ele não parasse nunca.

Aconteceu de repente, tanto que demorei a entender. Ele tinha segurado


a lateral da peça com os dentes e puxado com a mão. A renda frágil e
delicada rasgou e caiu aos meus pés. Pisquei perplexa, pensando em quanto
tempo tinha demorado para me decidir se a compraria com o cartão que
senhor Hansson havia me dado.

Então, sua língua estava mergulhando no meu interior, me invadindo


quente, me acariciando, me fazendo ferver de prazer. Chamei seu nome entre
gemidos, sentindo as pernas fraquejarem.
Como se soubesse do meu desespero, Ax ficou de pé e me pegou no
colo, me levando até a cama, me colocando deitada sobre os lençóis macios e
perfumados, usando apenas o sutiã de renda. Sem cerimônia, ele abriu
minhas pernas e se acomodou entre elas, se inclinando até sua boca estar me
comendo novamente, a língua me tocando em cada milímetro, me fazendo
arquear as costas, envolvida pela doce agonia. Quanto mais eu gemia, mas ele
chupava gostoso, mordia, sugava.

— Assim — pedi quando Ax acertou o ponto certo. Implorei para que


fosse mais rápido e gritei quando o orgasmo chegou.

Mas não tive tempo de respirar, muito menos me recuperar, ele estava
se erguendo sobre mim, se inclinando até sua boca alcançar meu seio. Com
uma mão ele tirou meu sutiã, com a outra ele se posicionou.

Já estava morrendo de desejo só na penetração, ainda mais com meu


mamilo na sua boca.

Foi uma loucura. Sobre os lençóis, no sofá da sala, apoiados no batente


da janela, no banheiro, na cama novamente.

Naquela madrugada, o menino tímido não se revelou nenhuma vez. Era


apenas o homem que estava disposto a fazer tudo para me dar

Axel me entregou um embrulho prateado e me encheu de beijos assim


que abri os olhos.

— Feliz aniversário, minha princesa! — ele disse com as covinhas


lindas no rosto, os braços me puxando para seu peito.

— Obrigada — falei baixinho, enquanto ele cantarolava Parabéns para


você contra meu ouvido.

Seria meu melhor aniversário. Tinha certeza disso.


— O que tem aqui? — perguntei tocando o embrulho, o apalpando,
sentindo que havia alguma peça de roupa lá dentro.

— Abre — ele disse ficando tímido, me observando, enquanto eu


desfazia o nó.

Retirei um pacote transparente de dentro do embrulho, cheio de


calcinhas de renda branca.

— Você não gostava das minhas calcinhas velhas — falei por impulso,
sem medir as palavras. — Digo...

— Não é isso — ele respondeu ficando vermelho. — Minha mãe tinha


comentado com meu pai algo sobre você estar precisando de roupa íntima.
Achei que você fosse gostar.

Pisquei os olhos. Cecilia tinha dado uma dica do que seu filho poderia
me dar de aniversário?

— Adorei! — falei abrindo o pacote, as colocando diante de mim. Com


uma contagem rápida, percebi que havia mais de vinte. Eram tão lindas e
delicadas. — Só fiquei surpresa. Estava mesmo precisando. Sabe... Comprei
uma nova com o cartão de crédito que seu pai me deu, mas você rasgou.

Ele se moveu, acanhado, abaixando a cabeça e rindo com a lembrança.

— Foi muito bom fazer isso — sussurrou. — Se você deixar, quero


fazer de novo.

— Foi muito erótico, na verdade.

Segurei uma calcinha de tiras finas nas laterais. Sua brancura fazia eu
me sentir desejada.

— Já te imagino rasgando essa daqui — sussurrei e Ax veio para cima


de mim, beijando meu queixo, meu maxilar.

— Depois que visitarmos sua mãe, vamos ao estúdio fazer as


tatuagens. Você pensou em alguma frase?

— Sim.
Primeiro tomamos um café da manhã reforçado, com rostos cansados e
olheiras fundas. Menos de duas horas de sono após uma maratona de sexo.

Depois de pegarmos o bolo em uma padaria próxima ao hotel, partimos


para o presídio.

Era meu aniversário de dezoito anos. Axel dirigia enquanto contava


sobre as poucas vezes em que me aventurei a visitar mamãe. Ele ouvia
atentamente, perguntando se ela iria gostar dele.

Não tinha como não gostar de Ax, ainda mais quando contasse tudo
que ele e sua família haviam feito por mim.

Quando estacionamos, o sol ainda estava nascendo, por volta das oito
horas da manhã. Fazia 4°C. Ele passou o braço em volta do meu ombro, me
protegendo do vento frio, enquanto caminhávamos até a entrada, carregando
o bolo com a outra mão.

Após passarmos por toda a parte constrangedora e burocrática da


inspeção dos visitantes, fomos encaminhados a uma sala pequena e
claustrofóbica, onde deveríamos esperar sermos chamados.

— Foi aqui que comemorei meu aniversário de dezesseis anos — falei


baixinho, batucando os pés como sinal de ansiedade. — Ano passado, não
pude vir. Foi um dia solitário. Meus tios não se lembravam que era meu
aniversário, ou simplesmente não se importavam.

— Tudo será diferente daqui para frente, meu amor — ele disse
colocando uma mecha fina de cabelo atrás da minha orelha, em seguida
acariciando minha bochecha com seu polegar.

— Obrigada por ter transformado minha vida, Axel — falei com


gratidão.

— Você também transformou a minha, Lucy. Entrei em uma loja e


comprei lingerie para você. Ainda não consigo acreditar que tive coragem.

Sorri com satisfação.

— Sabe — sussurrei segurando sua mão —, talvez você possa começar


a beber menos antes dos shows.

— Você acha que consigo?

— Sim, meu amor. Tenho certeza de que se sairá muito bem.

Ele balançou a cabeça positivamente. Logo, um carcereiro estava nos


chamando pelo nome.

Fomos encaminhados ao grande salão, cheio de mesas e bancos de


cimento, onde os presidiários recebiam os visitantes. Naquela manhã, só
havia uma mulher de cabelos castanhos e ondulados ocupando o salão. Seus
olhos verde musgo se arregalaram quando ela nos viu.

Não consegui controlar a emoção, larguei a mão de Axel e apressei os


passos até estar nos braços da minha mãe.

Meu coração não cabia de tanta felicidade. A emoção escapou de


dentro de mim em forma de lágrimas. Seus braços magros me apertaram com
força, seus lábios beijaram o topo da minha cabeça.

— Ah, minha pequena — ela disse com a voz emocionada. — Feliz


aniversário!

— Senti tanta saudade, mamãe — choraminguei contra seu ombro, me


sentindo uma criancinha entre seus braços.

— Também senti, querida. Estou tão feliz que veio!

— Não consegui dinheiro no ano passado, Alan Peter não estava


trabalhando, e a situação não andava muito boa — expliquei. — Sinto muito,
queria tanto ter vindo.

— Eu sei, filha, não se preocupe. Você está aqui agora.

Ela segurou meus ombros e me analisou, os olhos brilhando de


orgulho, o sorriso se alargando, as lágrimas escorrendo pelas bochechas. Era
mais alta que eu cerca de dez centímetros, o rosto sardento, pequenas rugas
começando a aparecer em volta dos olhos.

— Quem é ele? — perguntou quando seus olhos se afastaram de mim.

Levei um segundo para me lembrar que Axel estava ali, de pé


segurando um delicioso bolo de morangos.

— Meu namorado — falei sentindo a felicidade transbordar ainda


mais.

Ele colocou o bolo sobre a mesa e esticou a mão para cumprimentar


mamãe.

— Axel Hansson — disse baixo. Apesar da timidez, apertou a mão de


mamãe com firmeza.

Ela levou alguns segundos para encará-lo, com os olhos estreitados,


antes de os cantos dos seus lábios se curvarem para cima e soltar a mão dele.

— Axel me tirou da casa dos meus tios, depois que Alan Peter me
bateu porque eu tinha fugido para encontrá-lo — confessei sabendo que não
seria repreendida, enquanto nos acomodávamos nos bancos de cimento.
— E onde você está vivendo?

— Comigo, na casa dos meus pais — foi Axel que respondeu —,


enquanto acabamos o ensino médio.

Respirei fundo. Era um pouco constrangedor saber que ela concluiu


que estávamos fazendo sexo.

— Tia Esther estava trabalhando na casa dos Hansson, e eu ia ajudá-la,


você sabe... Sempre tive que fazer isso.

— E seus pais aceitaram que Lucy fosse morar lá?

— Sim, meu pai ajudou a tirá-la de dentro da casa daquele...

— Mãe, Alan Peter ia me obrigar a fazer programa — murmurei


horrorizada com o futuro que quase tive.

Comecei a detalhar os principais acontecimentos dos últimos dois anos,


até chegar na parte em que comecei a namorar o filho dos patrões e os planos
que fazíamos para o futuro. Preferi ocultar a parte em que Cecilia me
humilhava e o fato de Alan Peter ter quebrado meu braço, assim ela não
sofreria tanto.

Mamãe esticou a mão sobre a mesa e apertou a mão de Axel com força,
os olhos cheios de lágrimas.

— Obrigada por salvar minha filha, por ouvi-la, por aceitar de onde ela
veio sem julgá-la, por lhe dar uma vida digna.

— Lucy é minha vida agora — ele disse olhando nos olhos dela. —
Farei o melhor por sua filha.

— É tão bom vê-la sorrindo! Por favor, tenham sabedoria para superar
os problemas.

— Teremos — Ax disse.
Comemos o bolo com colherzinhas de plástico, conversando sobre
meus planos para a faculdade, a carreira de Axel e em como poderia visitá-la
quando nos mudássemos para Estocolmo.

Quando o tempo de visitas acabou, nós duas parecíamos revigoradas.


Ela abraçou meu namorado com carinho e beijou seu rosto. No momento de
se despedir de mim, ela colocou a mão na minha barriga, abaixo do umbigo, e
me lançou um olhar assustado.

— Eu já o acompanho — sussurrei para Axel.

— Tudo bem — ele disse indo em direção ao portão.

Precisei respirar pela boca.

— Só engordei um pouquinho.

— Vocês são duas crianças — ela disse.

— Estamos nos prevenindo — falei baixinho. — Só estou esperando


minha menstruação descer para começar a tomar pílula.

— E há quanto tempo está atrasada?

— Só alguns dias. Mas é porque tomei aquela pílula do dia seguinte. Li


na internet que faz uma bagunça no ciclo.

Ela meneou a cabeça e me puxou para seus braços.

— Te amo muito, mamãe.

— Também te amo, minha pequena.

O estúdio era aquecido e aconchegante, e suas paredes estavam


forradas de fotos de tatuagens.
O tatuador nos entregou uma folha fina onde deveríamos escrever com
nossa caligrafia a frase para o outro tatuar.

Não liguei para a dor, ainda mais com Axel segurando minha mão.

Resolvemos que faríamos na lateral do corpo, nas costelas.

Quando acabou, olhei no espelho a frase com sua letra. “Não se


preocupe agora, o céu tem um plano para você.”

Sorri emocionada. O céu tinha me dado o melhor dos presentes.

Axel tatuou com minha letra o pequeno texto de três linhas:

“Ontem é história,

O hoje é uma dádiva

E o amanhã é um mistério.”

Mikaela me apareceu com uma sacola de presente.

— Achei a sua cara — ela disse ao me entregar o pacote. — Feliz


aniversário.

Havia uma caixa grande com um par de coturnos pretos na minha


numeração. Lembrava muito minhas botas marrons, que por sinal eu estava
usando no momento.

— Obrigada, eu não estava esperando — falei sem saber ao certo o que


dizer.

Ela só sacudiu a cabeça, voltando sua atenção para Axel.

Estávamos almoçando no restaurante do hotel, e eles conversavam


ansiosos sobre o contrato que provavelmente Axel assinaria à noite, no jantar
com o dono da gravadora Dreamer Records.

Mikaela estava feliz por ter investido tanto nele. Como sua agente,
receberia uma porcentagem de tudo que Axel faturasse.

À tarde, passeamos de mãos dadas pelo centro, degustando comidas em


restaurantes de vários países, porque Axel não dava a mínima para o fato de a
numeração do meu manequim estar aumentando. Ele só queria me fazer feliz,
e sabia que comida era a melhor forma de me agradar, depois do sexo.

Estava sendo o melhor aniversário de todos. Elton e Leonora ligaram


por chamada de vídeo para me dar os parabéns, assim como Filippa, Christer
e Steven. Eles até postaram fotos nossas com mensagens de aniversário e me
marcaram no Instagram.

À noite, nos arrumamos para o jantar.

Falei que não precisava me levar, que entendia que se tratava de


trabalho, mas Axel fazia questão.

Seríamos ele, Mikaela, o dono da gravadora, seu sócio e eu.

Ele estava nervoso, queria misturar algumas bebidas, mas o incentivei a


encarar aquele jantar com apenas uma dose de uísque, elogiando sua música e
lhe provando com fatos que o contrato já estava praticamente assinado.

Prendi o cabelo numa trança embutida e usei um dos vestidos


comprados pela senhora Hansson. Axel usava calça preta, camisa de botões e
uma jaqueta de couro por cima. Mikaela, como sempre, estava deslumbrante,
com roupas que exibiam seu corpo magro.

Pegamos o elevador juntos. Os dois respiravam pela boca quando


entramos no restaurante.

— Fiquem à vontade — o maitre disse ao nos acomodarmos na mesa.


— Guto Bergman logo virá.
Por um instante, meu mundo ficou em câmera lenta. Minha boca
amargou, uma bola de gelo caiu dentro do meu estômago, fechei as mãos em
punho e prendi a respiração, enquanto o maitre se afastava.

Me senti com doze anos novamente, assustada e ferida.

— G-Gu-Guto... B-Bergman? — consegui gaguejar. O mundo estava


começando a girar ao meu redor.

— Sim — Mikaela disse sorrindo. — Guto, o dono da Dreamer


Records.

Puxei o ar para os pulmões, lutando contra a tontura.

— Ele morou em Agaton? — minha voz era apenas um sussurro.

— Morou... — Axel disse com um olhar desconfiado.

— Guto nasceu em Agaton, mas se mudou de lá há alguns anos —


Mikaela esclareceu.

— Posso ver uma foto? — perguntei tentando me convencer de que


não poderia existir só um Guto Bergman.

— Sim. — Preocupado, Axel desbloqueou seu celular e, após alguns


segundos, colocou-o diante de mim, onde aqueles olhos escuros me
encararam com malícia. — É ele.

A lembrança veio como um golpe, o monstro arrancando minha


calcinha, enquanto eu implorava para que me soltasse.

Tentei não me sentir fraca daquele jeito, vulnerável, desesperada. Me


agarrei a alguma coisa clara: Axel iria assinar contrato com o monstro que
tinha me estuprado.

Trinquei o maxilar, sentindo que não podia controlar as lembranças,


tendo a absoluta certeza de que deveria me recompor, que aquilo tinha ficado
no passado, e que o futuro dependia daquele ser, mesmo que ele fosse
desprezível.

— Lucy, meu amor... — ouvi Ax me chamar.

Não deveria dizer. Eu sabia que não poderia estragar a carreira dele por
causa disso. Ax não merecia. Era seu sonho, seu trabalho, sua esperança...

— Mikaela — consegui murmurar —, pode nos dar um minuto?

— Claro.

... mas ele era meu melhor amigo. As coisas não poderiam ser as
mesmas se eu escondesse isso dele.
— O que aconteceu? — Axel perguntou, enquanto Mikaela se
levantava.

Quando o encarei, era como se ele já soubesse.

Fiz uma careta, me odiando por não conseguir mentir.

— Foi ele que... — minha voz falhava. — Quando eu tinha doze anos...

— Não precisa continuar. Já entendi — Axel disse, se inclinando na


cadeira até apoiar a cabeça no meu ombro.

Por um longo momento, ficamos calados naquela posição.

Mikaela estava no bar.

Meus olhos se voltaram para a porta de entrada, e se encheram do mais


profundo pavor quando o porco imundo passou por ela. Quase seis anos
haviam se passado desde que ele havia ido embora de Agaton, mas ainda
tinha aquele mesmo risinho cínico.

O nojo fez meu estômago embrulhar.

Lentamente, Axel ergueu a cabeça e olhou na direção dele.


A partir daí, o mundo acelerou.

Vi meu príncipe se levantar depressa, empurrando a cadeira. Com


passos largos, ele alcançou o porco, lhe dando um soco, depois outro... e mais
outro.

Tudo virou uma bagunça. Os seguranças chegaram, agarraram Axel,


enquanto Mikaela exigia uma explicação. Houve muita gritaria, empurrões e
ameaças. As coisas ficaram confusas, mas notei quando ele olhou para mim.
Acho que me reconheceu, porque não quis que chamassem a polícia. Se
satisfez em pedir que nos expulsassem.

Precisamos deixar o hotel às pressas. Recolhemos nossas coisas e


partimos.

Na volta para casa, Mikaela estava quieta no banco de trás, Axel


chorava como uma criança enquanto dirigia, e eu só conseguia me sentir
culpada.

O mundo deles havia desmoronado. Os planos, os sonhos...

— Está na internet — ela anunciou com a voz dura. — A briga.


Alguém filmou e nos marcou. Quanto tempo até estar nos jornais?

Axel fungou e esfregou as costas da mão contra os olhos, antes de ligar


para seu pai.

— Pai, deu errado — ele disse com frieza. — Talvez eu apareça na TV


por ter dado um soco ou dois no dono da Dreamer Records.

Ouvi a voz do senhor Hansson alterada do outro lado da linha.

— Tive meus motivos! Você sabe que não faria uma coisa dessas à toa.
Estamos voltando para casa.... — Pausa. — Sim, elas estão comigo... Sim,
vamos parar em algum lugar.

Desligou.

Me sentia tão mal que não dava nem para descrever.

— Eu quero saber o motivo de ter surtado! — Mikaela exigiu do banco


de trás.

— Não posso contar.

— É o meu trabalho, Axel! Sabe que movi céus e terras para você ter
essa oportunidade! — ela gritou, fazendo com que eu me encolhesse. —
Acha que foi fácil? Era sua carreira, caralho! Você ia tocar no Tomorrow is
Mystery, ia assinar a porra de um contrato fodido que te abriria portas. Ano
que vem você provavelmente sairia na sua primeira turnê. De Ibiza à Miami.
Eu acho que mereço uma bela de uma explicação para ter estragado a porra
toda!

— Não posso — ele murmurou.

Sabia que Axel não contaria uma coisa daquelas. Era meu segredo. Eu
não queria que ninguém soubesse tudo que tinha acontecido comigo.

A ouvi esmurrar a porta do carro, tomada pela raiva.

— Lucy...? — ela tentou comigo.

— Deixe ela em paz — Ax pediu com a voz trêmula de raiva.

Paramos em um hotel de beira de estrada quando a madrugada chegou.

Na recepção, nos informaram que só havia um quarto disponível, com


uma cama de casal e outra de solteiro.
— O quê? — Mikaela perguntou, pronta para descontar sua raiva no
rapaz do outro lado do balcão.

— Nós aceitamos — falei depressa, pegando a chave do quarto. —


Precisamos descansar.

Com os nervos à flor da pele, entramos no quarto pequeno.

Mikaela foi a primeira a ir tomar banho.

— Eu sinto muito por ter estragado tudo — falei baixinho.

— Não sinta — ele disse, com as lágrimas voltando a escorrer, o


maxilar trincado.

Estávamos de pé, diante um do outro, nos encarando.

— Deveria ter me segurado. Acabei com sua carreira.

— Acha que me importo com isso? — ele perguntou. — Acha que


fiquei assim por que perdi uma oportunidade? Não, meu amor, fiquei desse
jeito porque um escroto como ele fez o que fez com você e saiu impune, que
uma pessoa que é amada por tanta gente não passa de um estuprador de
crianças, que ele conseguiu conquistar uma multidão de fãs depois de ter te
machucado. Você ficou com um trauma terrível e ele se deu bem na vida. E o
que mais me dá raiva é que eu teria assinado a droga daquele contrato e daria
mais lucro para aquele verme, se você não estivesse comigo, porque eu nunca
saberia.

Quando terminou de falar, ele andou até mim e envolveu meu corpo
como se seus braços fossem asas.

— Sou eu que sinto muito por ter feito você passar por isso. Que você
teve que relembrar tanta coisa ruim, e que seu aniversário acabou desse jeito.

Deixei que ele me colocasse na cama, que diminuísse as luzes e que me


embalasse em seus braços, enquanto eu chorava.
— Minha princesa, queria ser capaz de fazer essas lembranças
desaparecerem — ele sussurrou beijando minha testa. — Por um tempo,
achei que pudesse te fazer esquecer. Eu sinto tanto.

Ficamos abraçados até Mikaela sair do banho, usando pijama de plush


cor de rosa.

— Vou tomar um banho — Ax sussurrou. — Tudo bem?

Fiz que sim com a cabeça. Ele se levantou, pegou algumas coisas na
mala e entrou no banheiro.

Tinha consciência de que ele estaria ferrado se não se justificasse, que


jamais contaria meu segredo se eu não permitisse. Mas não conseguia achar
coragem dentro de mim para pensar em contar que tinha sido estuprada.

Na meia luz, Mikaela se aproximou da cama de casal na ponta dos pés.


Eu estava abraçando meus joelhos quando ela se sentou perto de mim.

— Você conhecia Guto Bergman, não é? — ela perguntou baixinho.

Pensei por um instante, antes de responder com um aceno de cabeça.

— Quando ele ainda morava em Agaton?

— Sim — consegui dizer.

— Você tinha quantos anos?

— O quê?

— Tinha quantos anos quando ele abusou de você?

Ergui a cabeça e a encarei.

— Doze — soprei a palavra.

Pela primeira vez, enxerguei a verdadeira Mikaela naqueles olhos


azuis, nos lábios abertos, no rosto assustado. Ela se arrastou na cama para
mais perto e passou os braços em volta do meu corpo trêmulo, apertando o
rosto contra o meu cabelo, esfregando a mão nas minhas costas.

Respirei fundo, retornando vários anos no passado, como se voltasse a


ser a criancinha ferida no colo de mamãe. Arfei numa mistura louca de dor e
medo.

Tentei com todas as forças, mas não deu para evitar a lembrança do
meu próprio pai...

Minha mente oscilava entre os dois monstros invadindo meu corpo, a


impotência nos olhos da minha mãe, meu aniversário de quatro anos no
abrigo, a primeira vez que Alan Peter me bateu, que ele me trancou no quarto
e me deixou sem comer porque não suportava olhar na minha cara, quando
descobriram que eu poderia ajudar nos trabalhos nas casas de família.

Diante das pálpebras fechadas, vi o rosto enfurecido de Alan Peter,


drogado, socando meu rosto, meus braços, me chutando quando eu já estava
no chão, tão pequena perto dele. Me lembro da fome, da dor, do frio, da
sensação de nunca mais poder ver minha mãe, de sentir que todos estavam
contra mim, que eu era a culpada por tudo de ruim que me acontecia.

Me vi crescendo naquele lar imundo, dormindo com o estômago vazio,


passando os aniversários sem um único parabéns, até começar a virar
mocinha, só para ser abusada de novo, para levar a culpa, para ser chamada
de puta.

Não me sentia mais humana, e sim uma criatura que todo mundo
detestava. Um saco de pancadas.
— Você contou para alguém... na época? — ouvi a voz de Mikaela.
Parecia distante.

— Para minha tia.

— E o que ela fez?

— Disse que a culpa era minha — confessei.

— Que desgraçada! Por que tem tanta mulher que não honra a vagina
que tem? — ela resmungou. — Axel te ama muito, fez aquilo sem nem
pensar nele.

— Não o mereço — murmurei. — Não mereço nada de bom.

Era assim que eu me sentia naquele momento, como se castigo fosse


tudo que deveria receber a vida inteira. Um saco de pancadas não poderia
receber amor.

Me senti tão pequena que pensei que fosse desaparecer. Ela me sacudia
lentamente, balançando para frente e para trás, cantarolando alguma canção
de ninar que eu não conhecia. Até que outros braços nos envolveram.

Senti o cheiro de Axel, o calor do seu corpo nas minhas costas. Os dois
ficaram me abraçando por um longo tempo, até que ele começou a afastar
meu cabelo grudado nas lágrimas.

— Você precisa denunciá-lo — Mikaela comentou.

— Não insista nisso, por favor — Axel pediu. — Não vou forçá-la a
fazer isso só para me justificar daqueles socos.

Os braços dela se afastaram.

— Acha que estou preocupada com isso? Tem mais pessoas que
querem fazer parceria com você! Não te contei porque o lance com a
Dreamer Records era quase certo. Lucy tem que denunciar porque nenhum
homem pode abusar de uma garota e sair impune. Ele é famoso, caga
dinheiro, tem uma república de fãs, uma gravadora que prega a ideia de que
devemos acreditar nos nossos sonhos. Aquele escroto influencia pessoas,
enquanto Lucy está assim! Ele é uma farsa! Vai saber quantas mulheres ele
não já abusou. Quantas crianças ele ainda pode estuprar. Se Lucy for à
polícia, se ela soltar uma nota na imprensa, o castelinho de vidro dele vai
desmoronar.

— Já faz tempo, não tenho como provar — falei.

— É uma denúncia. Você poderá fazê-lo ir a julgamento. Lucy, ele é


conhecido no mundo inteiro, você vai fazer todos saberem que ele é um
perigo para a sociedade. E aquela inútil da sua tia vai testemunhar a seu
favor, nem que eu tenha que obrigá-la.

Mordi o lábio e olhei para Axel.

— Ela tem razão. Você pode salvar outras garotas, fazê-lo pagar. Mas
só depende de você.

— Vão achar que estou mentindo — eu disse. — Os fãs dele vão me


crucificar.

— Milhões de mulheres passam pelo que passou, Lucy — Mikaela me


encorajou. — Você não está sozinha.
— Tem algum jeito de limpar a imagem de Axel com isso? —
perguntei.

— Não se preocupe comigo.

— Lucy, eu só preciso postar uma nota esclarecendo o porquê de Axel


ter feito aquilo. Vai chover de jornalistas querendo uma entrevista com vocês.

Ax segurou na minha mão e me olhou com firmeza.

— Não faça isso por mim, mas pelo que ele causou a você, pela sua
dor, pelos anos que aguentou tudo sozinha, pela sua mãe, por outras garotas
que ele tenha assediado e que também não tiveram coragem de dar queixa.

— Aposto que não é a única vítima.

Pensei nas palavras de Mikaela por um minuto. Sim, poderiam existir


outras meninas se sentindo um lixo por causa daquele nojento, outras
crianças traumatizadas, envergonhadas, acreditando que eram culpadas,
porque ele tinha milhões de pessoas que o adoravam. Não era um mundo
nada justo. Pensei em tudo que mamãe tinha feito para me proteger do
julgamento das pessoas, o quanto ela queria esconder o que tinha se passado
comigo, para que eu tivesse uma vida digna, e de como omitir estupro não
tinha dado certo para nenhuma de nós duas.

Alguém precisava pará-lo.

— Vamos à delegacia assim que chegarmos a Agaton — falei com


determinação. — Tia Esther tem os registros da época em que trabalhou na
casa dos Bergman, eu a ajudava quando não estava na escola. Foi na casa
dele que aconteceu.

Os Hansson já sabiam o que estava acontecendo mesmo antes de


chegarmos, porque eu tinha dado permissão a Axel para contar meu segredo a
seu pai — pelo menos uma parte dele.

Bastou uma ligação para seu pai contatar o advogado da família, que
era seu irmão mais novo.

Minha primeira parada em Agaton foi na minha antiga casa, antes de


tia Esther sair do trabalho. Encurralada por Mikaela, que disse umas boas
verdades na sua cara, ela não teve como se recusar a nos acompanhar até a
delegacia.

O tio de Axel, um senhor na casa dos quarenta, chamado Kristofer


Hansson, já estava nos esperando quando chegamos.

Foi tudo ao contrário do que imaginei que seria, se um dia eu


resolvesse dar queixa. Com base na minha experiência de vida, no tratamento
que recebia na casa dos meus tios, na escola, me imaginava sendo julgada,
pessoas apontando o dedo para mim e cochichando, enquanto eu contava que
um rapaz de família tinha abusado de mim. Sempre pensei que me acusariam
de oportunista, mentirosa, traiçoeira.

Recebi apoio, incentivo, me falaram sobre as estatísticas para crimes


sexuais na Suécia, as penalidades, falaram sobre como ele seria julgado.

Eu não sabia porque nunca fui muito ligada em informações desse tipo,
mas no nosso país, as leis contra crimes sexuais tinham evoluído no último
ano, e o ato não precisava nem ser acompanhado de violência para ser
considerado estupro. Eles julgavam e condenavam escrotos como Guto
Bergman com mais eficiência que a maioria dos outros países, independente
da classe social e do prestígio que o agressor tinha.

Saí de lá com um peso tirado das minhas costas. Mesmo que ele não
fosse condenado, eu tinha feito minha parte.

Almoçamos na fazenda Hansson, com outros parentes de Axel. Até


Leonora e seu noivo, Evert, tinham vindo me dar apoio.

Eles falavam orgulhosos da atitude do jovem Axel, por ele não ter se
intimidado diante de alguém com tanto prestígio como Guto Bergman, por
ele ter sido homem, mesmo sendo tão novo, e ter colocado os princípios
acima da sua carreira.

Ax era como um herói para a família, por ter dado uma surra no dono
da gravadora ao invés de ignorar os fatos e ter assinado o contrato.

Ainda naquele dia, depois de eu ter prestado queixa, Mikaela escreveu


um texto justificando o que havia acontecido, com palavras de encorajamento
e justiça, e o postou em suas redes sociais.

Desliguei as notificações do Instagram e tentei ignorar tudo, seguindo


com minha rotina de estudos.

Vieram os convites para que fôssemos a programas de rádio e TV, falar


ao público o que havia acontecido. Deixei que Axel decidisse isso.

Com ajuda do seu pai, de Kristofer Hansson e de Mikaela, ele resolveu


que daríamos uma única entrevista, ao programa da TV sueca que eles
consideravam mais sério e compromissado com a verdade.

Ainda naquela semana, viajamos para Estocolmo, até a sede do canal


de TV. Porém, um dia antes, resolvi pedir ajuda aos adultos pela primeira
vez.

Axel tinha ido para a cidade depois do jantar, trabalhar em alguma


música com Christer e Steven. Aproveitei a ocasião para conversar com seus
pais sobre meu maior segredo — ter sido abusada pelo meu pai por tanto
tempo.

Cecilia estava soluçando quando terminei de contar. Elton segurava


minha mão como um pai deveria fazer.

Falei sobre como ele fazia para aterrorizar minha mãe, como ele a
espancava, como colocava em sua cabeça que aquele era o único lugar ao
qual ela poderia pertencer, ser aceita, que sua família tinha virado as costas e
que ela não conseguiria sobreviver sem ele. Que ele a amava tanto que
precisava educá-la, moldá-la para que mamãe se transformasse em alguém
melhor, através das surras, dos estupros. Ele também dizia que me amava...

— Nunca pensei que você tivesse passado por nada disso — Cecilia
disse entre soluços, levantando e vindo se sentar ao meu lado, colocando as
mãos por cima das de Elton, que segurava as minhas com força. — Você
sempre foi tão calada, tão quieta, obediente. Como o mundo seria mais justo
se as pessoas tivessem liberdade de se abrirem, conversar, procurar ajuda.

— Sempre incentivei nossos filhos a serem sinceros — Elton disse —,


a falarem abertamente sobre qualquer assunto. Entendo que tenha guardado
isso por tanto tempo, você não teve o apoio e o amor que Axel e Leonora
tiveram. Não teve amor nenhum, e mesmo assim, você optou por sempre
seguir em frente.

— Meu problema nunca foi com você, Lucy — Cecilia murmurou


envergonhada. — Só queria o melhor para Axel, e fazer faculdade de
medicina, ser um profissional respeitado, era o caminho mais seguro, a
garantia de que ele teria um futuro confortável. Sabe quantos músicos vivem
frustrados, lutando para sobreviverem, iludidos com a ideia do sucesso? Não
queria uma coisa dessas para Axel, ele sempre foi tão inteligente. E por
algum tempo, você foi a única em quem pude descarregar minhas frustrações.
Sinto tanto, querida. Você já tinha tantos problemas.

— Sem ressentimentos, senhora Hansson. Só tenho a agradecer por


terem me acolhido. Mesmo me xingando, eu tinha um lugar seguro para viver
e estudar, e nunca vou poder pagar por tudo.

— Cecilia, por favor, me chame de Cecilia.

— Quando Axel me contou que gostava de você, procurei saber quem


era e dei um jeito de trazer sua tia para trabalhar aqui — Elton confessou. —
Queria tanto que meu filho tivesse alguém. Ele era tão dedicado a tudo que
fazia, mas sério demais, solitário. Sempre conversei com ele, fui seu amigo,
mas tinha medo que Axel caísse em depressão. E quando me contou que
estavam namorando, fiquei muito feliz. Tive muita consideração por você
desde o início, e sou muito grato por fazer meu filho feliz.
Nunca poderia expressar com palavras o quanto os Hansson tinham
feito por mim. Apesar disso, eles insistiam em afirmar que eu também havia
mudado suas vidas. Como Mikaela tinha me dito, algum tempo atrás, Elton
acreditava que eu tinha feito de Axel uma pessoa muito mais feliz.

— Então, vocês acham que devo falar sobre isso na entrevista?

— Claro! Não conheço a fundo as leis, afinal sou veterinário, e não


advogado, mas acredito que talvez dê para reabrir o caso da sua mãe.

— A verdade está do seu lado, e a justiça também vai ficar — Cecilia


disse.

— Vou ligar para Kristofer — Elton disse encerrando nossa conversa.


O programa começou como de costume. A produção parecia feliz pela
repercussão do caso ter feito a audiência estourar naquela noite.

Nos sentamos em cadeiras individuais, que giravam ao menor esforço.


Axel se sentou ao meu lado, próximo o suficiente para segurar minha mão
trêmula. Estava totalmente sóbrio e muito ansioso. Éramos em seis
convidados: Mikaela, a agente do DJ; Kristofer Hansson, nosso advogado; tia
Esther, que falaria pouco; Axel; um advogado conhecido no país que daria
sua opinião sobre o caso; e eu.

Começaram a matéria exibindo um vídeo da apresentação de Axel em


Malmö, a parte em que ele fazia seu já conhecido discurso encorajador para
as garotas da plateia, em seguida aparecia o vídeo com minhas imagens em
momentos espontâneos, desarrumada em sem maquiagem.

Ele apertou minha mão mais forte, ficando com as bochechas


vermelhas, sem coragem de encarar a câmera. A voz do jornalista fazia um
pequeno resumo sobre tudo que havia acontecido desde os primeiros shows,
o convite para fazer parte da Dreamer Records até a publicação esclarecedora
de Mikaela.

O apresentador divulgou o nome de todos os convidados, esclarecendo


que Guto Bergman e seu advogado de defesa haviam se recusado a dar
qualquer nota de esclarecimento até o momento, assim como também não
tinham aceitado participar do programa.

As perguntas começaram. Um a um, fomos respondendo o que nos era


designado. Quando o apresentador me pediu que contasse minha história,
cheguei a pensar que sairia correndo dali, mas não fiz.

O fato de Alan Peter estar preso por me espancar, invadir a casa da


família que tinha me acolhido, e ter insinuado aliciamento sexual, entre
outras acusações, reforçava os motivos de eu ter me calado por tanto tempo.
Cresci com um homem que me fazia se sentir culpada por tudo de ruim que
acontecia à minha volta.

Fui contando minha vida de trás para frente, até chegar a primeira
infância e o que tinha feito minha mãe assassinar o monstro do meu pai.

As pessoas ficaram emocionadas na plateia. Nem tia Esther nem


Mikaela sabiam daquilo. As duas choraram diante das câmeras.

Também chorei, mas era mais por sentir que ninguém estava me
julgando. E ter Axel do meu lado fazia toda a diferença.

Quando o programa acabou, com lágrimas, abraços e discursos de


encorajamento, fiquei sabendo que três advogados muito prestigiados haviam
se interessado pelo caso da minha mãe, e que começariam a trabalhar na
reabertura.

Não sabia o que esperar disso. Me falaram sobre redução de pena e,


talvez até a possibilidade de transferi-la para uma prisão semiaberta. E torci
para que conseguissem o melhor para ela, sabendo que daria meu melhor em
cada depoimento que prestaria em seu favor dali em diante.

Ainda naquela viagem a Estocolmo, um DJ e produtor, chamado


Vincent Cavallari, mais ou menos da nossa idade, entrou em contato com
Mikaela.

Axel disse que Vincent já era atração confirmada no palco principal


daquele festival que ele tanto queria participar, o Tomorrow is Mystery
Sweden.

Acompanhei meu namorado e sua empresária em um jantar informal,


onde nos encontramos com o DJ.

Vincent tinha cabelos castanhos, alto, olhos cor de chocolate e um


sorriso iluminado. Era o tipo de pessoa que te deixava à vontade, fazia
piadinhas, mas sem ofender ninguém, e ficava sério quando era necessário.

Disse que tinha ficado muito orgulhoso com a atitude de Axel.

— Valeu por descer o soco na cara daquele escroto que chegou onde
chegou usando os outros como degraus — Vincent disse. Seu semblante
exibia a repulsa que ele sentia por falar de Guto Bergman. — Lucy, você não
está sozinha. Ele é o tipo de idiota que pensa que uma garota é obrigada a
ficar com ele por causa da sua fama e dinheiro. Já o vi assediar agentes,
garçonetes, jornalistas e garotas que estavam ali para se divertirem. E,
Mikaela, parabéns pela sua postura.

Balancei a cabeça, agradecendo seu apoio.

Costumava pensar que, quando descobrissem que eu tinha sido


abusada, iam querer se afastar ainda mais de mim, e eu ficaria muito mais
retraída.

Só que foi diferente. Eu sentia que meus ombros estavam mais


erguidos que antes, assim como meu queixo. Minha postura tinha melhorado
como se um peso tivesse sido removido das minhas costas. As pessoas não
me olhavam torto, elas queriam me dar os parabéns por — logo eu, que
sempre me considerei tão fraca — ter tido coragem.

Aos poucos, Axel ia me contando sobre garotas expondo conversas


com Guto Bergman em suas redes sociais, onde ele as assediava, tentava
persuadi-las a se encontrarem com ele em troca de dinheiro, presentes,
viagens. E eram ofendidas por recusarem. Muitas ainda eram menores de
idade.
Ax me mostrava tudo, porque eu preferia não usar as redes sociais,
tinha medo de me magoar com a parcela de fãs que ainda defendiam um
estuprador com unhas e dentes.

Para minha felicidade ainda maior, Axel Hansson foi enaltecido pelo
público. Os sites, os canais de TV, as rádios queriam entrevistas com ele,
queriam ensaios fotográficos. Outras gravadoras apareceram e patrocinadores
surgiram para financiar seu primeiro vídeoclipe, no qual ele não seria o
centro das atenções, mas sim os donos das duas vozes que cantavam “The
Girl”, Christer e Filippa. Era legal, no fim das contas, que um casal de negros
estrelasse um clipe e recebessem todo o prestígio, enquanto Axel fazia apenas
uma pequena participação.

A respeito de Vincent Cavallari, o rapaz que não simpatizava em nada


com Guto Bergman, ele convidou Axel para tocar com ele no palco principal
do Tomorrow is Mystery Sweden, em novembro.

Logo depois que voltamos da entrevista ao telejornal de Estocolmo,


Axel tornou a viajar com Mikaela para continuar se dedicando a música.

Fiquei com sua família e mergulhei ainda mais nos estudos.

Cecilia não era exatamente uma sogra amável, e também não tinha se
contentado 100% com o caminho que seu filho escolheu seguir. Não. Ela era
irônica, sádica, mal-humorada, porém gostava de justiça.

Suas demonstrações de carinho e afeto por mim vinham aos poucos,


eram discretas, quase imperceptíveis, mas Leonora me ensinou a lidar com
ela, ao ponto de conversarmos muitas vezes durante o jantar.

Ela até me deu a ideia de abrir uma espécie de blog onde garotas
vítimas como eu pudessem desabafar. Cecilia encarava bem o fato de eu não
me importar em estar engordando. Dizia que eu era um exemplo para muitas
garotas, e que Axel jamais deixaria de me amar por uns quilinhos a mais.
Passei a me sentir segura em sua companhia, a gostar de ir às compras
com ela, ao supermercado ou acompanhá-la em um café. Até começou a me
ensinar a dirigir, mas foi Steven que finalizou a tarefa, já que Elton não tinha
muito tempo.

Aos poucos, percebi que Cecilia Hansson era o mais próximo que eu
tinha de uma amiga. Por isso, ela foi a primeira pessoa para quem mostrei o
teste de gravidez que tinha dado positivo.

Por mais que eu quisesse dar a notícia, deixei que ela ligasse primeiro
para Axel e contasse que ele, com apenas dezessete anos, iria ser pai.

Alguns meses atrás, eu teria entrado em pânico quando comecei a


estranhar a menstruação atrasada há um mês. Só que eu tinha uma família.
Sogros que mais pareciam meus pais, tios, primos e uma cunhada
maravilhosa. Tinha até um cachorro que dormia no tapete do quarto todas as
noites em que Axel não estava.

Entendia o quanto tínhamos sido imprudentes por não termos usado a


bendita camisinha daquela vez, que era burrice engravidar tão nova, que
éramos inconsequentes. Mas já estava feito e eu não alimentaria nenhum
sentimento ruim enquanto carregasse um bebê na barriga. Iria assumir de
cabeça erguida aquele erro.

E os Hansson teriam que aceitar.

Meu jovem príncipe entrou no carro e dirigiu de volta para Agaton


assim que soube. Era um domingo, e os Hansson tinham combinado de se
reunirem para um jantar em família na cidade.

Cecilia não quis desmarcar.

Elton disse que seria legal contar logo à família toda que um novo
membro estava a caminho.

Nenhum dos dois ficou furioso. Na verdade, ficaram tão empolgados


com a novidade que me preocupei com a ideia de eles roubarem o bebê de
mim, e que Cecilia o obrigasse a fazer medicina contra a vontade dele.

— Muitos planos precisarão ser adiados — falei ao telefone com Axel,


em uma de suas paradas na estrada para um café.

— Vamos fazer dar certo — ele disse com a voz doce, enchendo meu
peito de felicidade. — Já passamos por tanta coisa. Parece que a vida nos deu
um presente.

— Você pensa assim mesmo? Acha que vamos dar conta?

— Sim, meu amor. A nossa felicidade está sendo antecipada.

— Não cresci com meus pais, não sei exatamente...

— Seremos os melhores pais do mundo — ele me interrompeu. —


Tenho certeza do amor que você vai dar a... Nosso filho.

— Nosso filho — repeti num sussurro, sentindo o impacto daquelas


palavras. — Ou filha...

Os Hansson se reuniram em uma mesa grande e redonda, no melhor


restaurante de Agaton. Axel foi o último a chegar.

Meu coração disparou quando senti seu perfume se aproximando.


Tinha chegado de Estocolmo e passado na fazenda para um banho.

Fiquei de pé, sentindo todo meu corpo se arrepiar com a felicidade de


vê-lo. Usava camisa social branca e calça escura que realmente o faziam
parecer um príncipe. Carregava um buquê de flores cor de rosa e uma
pequena caixa embrulhada em papel dourado com um laço de fitas.

Me entregou as flores.
Primeiro ele me beijou em um abraço apertado, depois se ajoelhou e
ficou um instante olhando para minha barriga com admiração, antes de
apertar seus lábios contra ela.

— Tem ideia do quanto você me faz feliz? — ele sussurrou. — Do


quanto amo você?

— Senti tanta saudade! — respondi, enquanto ele se erguia novamente.


— Te amo tanto!

— Eu também te amo, minha Lucy — ele disse pegando o buquê e


colocando sobre uma cadeira vazia. — Era para sermos só nós dois em um
jantar à luz de velas.

— Tudo bem — sussurrei. — Ficaremos a sós mais tarde.

— E eu adoraria adiar até o final da noite, mas sabe como sou ansioso
— Axel disse e me entregou a caixinha dourada.

Quando a peguei de sua mão, notei que ele tremia.

Mordi o lábio e a balancei próxima da minha orelha, mas não fez


barulho.

— O que é? — perguntei sentindo uma emoção totalmente nova


percorrer meu corpo.

— Abre — ele pediu e deu aquele sorriso tímido, com as covinhas


fundas e meigas aparecendo em suas bochechas sardentas.

Puxei o laço, arranquei o papel e observei a tampa transparente. Havia


um par de sapatinhos brancos dentro de uma caixinha quadrada. Vi algo
preso entre os cadarços dos sapatos pequeninos.

Meu coração começou a se expandir, o amor foi se espalhando em


arrepios pelo meu corpo.

Eu era só amor quando abri a tampa e toquei o anel.


Uma luz praticamente me cegou. Pisquei os olhos e me virei para ver
Leonora nos filmando com o flash do celular aceso. Tornei a olhar para a
frente, a tempo de ver Axel prostrando o joelho esquerdo no chão.

— Lucy Peter — ele começou a falar, dessa vez não parecia tímido —,
me daria a honra de ser minha esposa?

Todos a nossa volta tinham parado para assistir, mas eu só tinha olhos
para ele.

— Até que a morte nos separe — respondi sentindo as lágrimas


quentes escorrendo pelo meu rosto.

Meio desajeitado, ele retirou o anel de brilhantes preso no cadarço e


colocou no meu dedo anelar.

— Graças a Deus coube — o ouvi falar baixinho com aquele sorriso


mais lindo. Em seguida, beijou minha mão e me admirou, ainda de joelhos,
por um momento que ficou guardado para sempre na minha memória (e no
vídeo que Leonora repassou para todo mundo, até chegar em Mikaela, que
postou na internet).

Descobri que todos ali sabiam que ele ia me pedir em casamento. O


anel já estava comprado, só havia adiantado o pedido. E o que era só um
jantar comum da família, se transformou em um jantar de noivado.
Um sonho de princesa.

Nos casamos em dezembro, uma semana antes do natal.

Após um show no Tomorrow is Mystery Sweden, ao lado de Vincent


Cavallari e com participação de Christer e Filippa, em meados de novembro,
Axel deu uma pausa no trabalho e voltou para Agaton, onde correu atrás da
matéria acumulada no colégio e se dedicou aos exames de outono. Mesmo
tendo perdido tantas aulas, ainda conseguiu as melhores notas no ensino
médio.

Passamos noites muito intensas. Não dava para medir a felicidade que
era quando estávamos juntos. Ax nunca perdia a oportunidade de fazer
carinho na minha barriga, de conversar com a criança crescendo no meu
útero.

E eu fazia o impossível para não ter pensamentos negativos.

Tínhamos engravidado no fim de agosto, então no comecinho de


dezembro descobrimos que estávamos esperando uma menina.

Não me permiti pensar que as mesmas coisas ruins que passei


pudessem acontecer com ela.

Maria seria uma menina amada e protegida pelos pais, tios, avós e
amigos.

O porco Bergman foi preso após várias acusações e não teve recurso
que o fizesse aguardar o julgamento em liberdade. O império Dreamer
Records havia desmoronado.

Visitei mamãe algumas vezes. Como ela tinha previsto, seria avó.

Sempre que eu perguntava sobre o andamento do caso dela, senhor


Hansson dizia para não me preocupar, que as coisas estavam se caminhando
de maneira favorável.

Quanto ao casamento, deixei que Cecilia e Leonora planejassem tudo.


Bem, quase tudo. Cecilia queria nos ver casados o mais rápido possível,
porque considerava vergonhosa uma gravidez antes do casamento. Achava
prudente que eu me casasse com um vestido solto, que não mostrasse a
barriga, para não ficar escandaloso nas fotos. O que era inútil, já que todos os
convidados sabiam da gravidez.

Eu não tinha vergonha de estar esperando um bebê. Por isso, fiz


questão de escolher um modelo de vestido de noiva com cauda de sereia.
Justo até o meu quadril, destacando com orgulho minha barriga. Usei branco,
renda, véu e uma cauda longa. Queria tudo de mais clichê que a
cerimonialista poderia oferecer.

Axel escolheu nosso destino de lua de mel, que ele podia pagar com
uma parte do cachê dos shows que tinha feito recentemente.

Mikaela, Christer, Steven e Filippa foram nossos padrinhos. Apesar de


extravagante, foi um casamento reservado, na fazenda Hansson, com apenas
os amigos e a família.

Ninguém da escola foi convidado. Não eram nossos amigos de


verdade.

Na noite anterior ao casamento, não me deixaram dormir com Axel,


para que a noite de núpcias fosse ainda mais esperada.
Uma cabelereira e um maquiador do salão Felicious, onde antes pensei
em trabalhar, cuidaram de mim.

Quando estava pronta, usando o vestido mais lindo que uma noiva
poderia desejar, me deixaram sozinha para esperar Elton que, na falta do meu
pai, me conduziria ao altar.

Fiquei encarando o rosto maquiado no espelho, acariciando minha


barriga, tentando acalmar o coração, até que bateram na porta.

— Entre — respondi tomada pela ansiedade, procurando manter o


controle da respiração.

Bateram na porta outra vez.

— Pode entrar, Elton. Estou pronta — respondi.

Mas outra batida, dessa vez mais forte, me deixou preocupada.

Me levantei da cadeira giratória, ergui um pouco o vestido para não


tropeçar e caminhei silenciosa até a porta. Girei a maçaneta com o coração
subindo pela garganta, temendo que algo ruim pudesse ter acontecido.

A certeza de que os momentos bons não duravam muito na minha vida


me acertou em cheio.

Puxei a porta esperando pelo pior, me deparando com olhos verde


musgo me encarando com emoção.

— Mamãe? — murmurei me jogando contra seus braços.

— Minha pequena — ela sussurrou me puxando para me olhar. — O


mundo nunca viu uma noiva tão linda! Não chore, vai estragar a maquiagem.

— É a prova d´água e você também está chorando.

— Não sou a noiva — ela brincou com o sorriso cheio de amor.


— Como...?

— Conseguiram me transferir para uma prisão semiaberta — ela me


contou. — Os advogados entraram com o pedido para que eu pudesse assistir
seu casamento. O juiz aceitou.

— Por isso senhor Hansson estava fazendo tanto mistério! —


comentei.

Ela deu mais uma olhada, me admirando, e fez carinho na minha


barriga.

— Vamos. Seu noivo está esperando. Sabia que tem um cachorro


usando gravata sentado ao lado da primeira fileira de convidados?

— Theodoro! — expliquei com um sorriso.

Prenderam a cauda longa ao vestido antes que eu caminhasse até a


clareira, onde a cerimônia aconteceria. Havia luzes, arcos de rosas
perfumadas. Segurando o braço da minha mãe, não consegui controlar o
choro quando parei atrás dos convidados, enxergando aquele príncipe lindo
me esperando com as mãos nas costas usando terno branco.

As lágrimas escorriam do meu rosto para o decote, onde se


acumulavam. Maria se mexia no meu ventre.

Uma música linda era tocada em um piano. Não consegui prestar


atenção nas pessoas à nossa volta. Só via ele que, emocionado, chorava me
observando caminhar.

Ao me aproximar, ele abriu um sorriso, pela primeira vez, mostrando


os dentes retos e alinhados, sem o aparelho. Sorri surpresa. Axel não tinha me
contado que iria tirar o aparelho.

Não prestei atenção em quase nada que o juiz de paz disse. Meus
pensamentos estavam congelados nele. Fazia muito frio, porém o mais puro
amor me esquentava por dentro.
— Eu te amo — Axel disse após colocar a aliança no meu dedo. — Te
amo tanto.

— Eu também te

Não tivemos a clássica dança dos noivos na festa de casamento. Até


pensei que deveria fazer parte do pacote, mas sabia o quanto seria uma tortura
para Axel.

Quando ficou de noite, nos despedimos dos convidados.

Com o rosto sério, ele apoiou a mão na base da minha coluna e me


guiou até o Toyota cinza escuro, onde seus amigos haviam escrito recém-
casados com spray branco.

De costas para as convidadas, sorri e joguei o buquê. Ouvi os gritos e


me virei para olhar o buquê caído no chão, porque todas haviam se afastado
com medo de pegá-lo.

Dei risada, enquanto meu esposo abria a porta do carro para que eu
entrasse.

Ouvi o latido de Theodoro soando mais alto que as risadas, conforme


me acomodava no banco do carona.

Axel dirigiu até o melhor hotel de Agaton, onde a suíte presidencial


estava reservada para nossa noite de núpcias. Fizemos o check-in e subimos
para o quarto. As janelas davam para o jardim botânico, onde as luzes de
natal brilhavam nos pinheiros.

Peguei a mala de mão e fui imediatamente para o banheiro me


aprontar. Tirei o vestido cuidadosamente, o que levou mais tempo do que
imaginava, mantive a maquiagem, o penteado, e entrei embaixo do chuveiro.
Após o banho, passei hidratante, me perfumei e vesti a camisola
especial, de renda branca.

Girei diante do espelho, vendo se estava tudo em ordem, ansiosa para


consumar nosso casamento, sentindo o peso da aliança grossa de ouro no
dedo.

Quando girei a maçaneta da porta do banheiro, uma música começou a


tocar. Senti meu corpo inteiro ficar arrepiado. Rapidamente, reconheci a
música antiga. Era Wonderful Tonight do Eric Clapton. Com o coração
batendo mais forte, me perguntei como ele sabia que eu amava aquela
música.

Abri a porta devagar e o vi encostado na mesinha de cabeceira. O


cabelo loiro estava úmido, porque Axel também tinha tomado banho. Usava
uma calça preta e uma camisa social off white, com alguns botões abertos na
gola.

Ele ergueu a cabeça, se levantou e caminhou até mim, me estendendo a


mão para que eu a pegasse.

Havia inúmeras velas acesas pelo quarto, as luzes estavam apagadas.


As flores estavam por toda parte, as pétalas pelo chão, sobre a cama. A lareira
estava acesa.

Suas bochechas estavam vermelhas quando o encarei.

— Me concede a honra de uma dança, minha querida esposa? — ele


perguntou bem sério.

— Sim — respondi sem ar.

Então, Axel me guiou até o centro do quarto. O olhando encantada,


meio surpresa, coloquei as mãos em seus ombros.

— Só de um, porque não sei dançar direito — ele disse em tom de


desculpas.
— Claro, só um passo — respondi suspirando.

— Você está maravilhosa — ele sussurrou colocando uma mão na


minha cintura e segurando minha mão com a outra. Inclinando a cabeça para
baixo, ele encostou o rosto no meu.

Começamos a dançar lentamente, girando aos poucos. Eu sabia o


quanto ele tinha se esforçado para dançar comigo, mesmo ali, só nós dois,
ainda estava tímido. E eu sabia que não poderia haver alguém mais feliz que
eu aquela noite.

Quando fiquei de frente para o espelho que havia na parede, movendo


os pés no ritmo da música, senti seu corpo estremecer. Afastei meu rosto do
seu e vi as lágrimas escorrendo pelas suas bochechas coradas. Não era uma
lágrima discreta, Axel estava chorando de verdade.

Emocionada, encostei a cabeça no seu peito e também chorei. Era


inacreditável que alguém como ele me amasse tanto a ponto de chorar assim.

— Eu te amo, Lucy — ele disse com a voz rouca.

— Eu te amo, Axel.

Me lembro de estar sentada com Axel, no segundo dia da nossa lua de


mel nas Ilhas Maldivas, assistindo o pôr do sol, só nós, na nossa cabana no
oceano. Me recordo do calor da sua mão segurando a minha, a outra
acariciando nossa filha protegida dentro da minha barriga, às vezes
escorregando até a tatuagem com sua letra.

— Podemos mesmo alugar um apartamento em Agaton, para


morarmos até a formatura — Axel disse. Não era a primeira vez que
tínhamos aquela conversa, mas eu sabia que ele só queria me deixar o mais
confortável possível.
— Prefiro ficar na fazenda — respondi. — Seria desperdício decorar
um apartamento para morarmos por menos de seis meses. Eu amo seus pais,
de verdade.

— Eles são seus pais também — ele disse beijando a ponta do meu
nariz. — Acredite, eles te consideram como filha. Minha Lucy Hansson.

Sorri feliz. Havia renunciado ao sobrenome Peter e adotado Hansson


com todo orgulho, não porque era a forma tradicional de casamento, mas
porque Peter era o sobrenome de pessoas que só me maltrataram. Os Hansson
eram uma família que havia me acolhido como poucas pessoas fariam. E eu
tinha orgulho de ser um deles.

— Começaremos arrumar nosso lar em Estocolmo ainda no começo do


ano, porque você precisará descansar depois — Axel falou baixinho. —
Quero que tudo fique do seu jeito.

— E quero que sua mãe fique conosco quando Maria nascer —


comentei. — Vou precisar de toda ajuda.

— E traremos sua mãe sempre que possível — ele acrescentou.

Mamãe ainda cumpriria pena pelo assassinato do meu pai por mais
quatro anos, mas ficaria em regime semiaberto, o que era uma vitória muito
grande para quem pensou que morreria na prisão.

Alan Peter e Guto Bergman aguardariam seus julgamentos atrás das


grades, onde não ofereceriam mais riscos à sociedade.

— Se achar que é melhor, pode esperar mais um ano até começar a


faculdade — Axel continuou. — Talvez queira ficar o máximo de tempo com
nossa filha. Mas se não desejar esperar, saiba que mamãe nos ajudará em
tudo. E a sua também. Quero fazer o melhor pelas mulheres da minha vida.
Será uma juíza brilhante, meu amor.

— Sinta, ela está se mexendo! — falei puxando sua mão para colocá-la
exatamente onde sentia Maria se movendo.
Ele se inclinou, beijando a região, e começou a cantarolar The Girl para
nossa filha.

O sol estava se escondendo no horizonte, deixando um rastro


alaranjado no oceano à nossa frente.

Pensei se aquele amor duraria para sempre. Apesar das sardinhas, dos
traços de menino, e de ainda não ter feito dezoito anos, Axel não era mais um
garoto. Ele tinha todas as atitudes de homem de verdade, com um caráter
exemplar e um coração enorme.

Sim, eu sabia que aquele amor duraria para sempre. Axel fazia eu me
sentir como se fosse a única garota do mundo, como se ninguém jamais
pudesse roubar o meu lugar. Ele me amava exatamente como eu era.

Sim, seríamos felizes para sempre porque, em todos os momentos


difíceis, teríamos um ao outro.

Olhei para baixo e sorri, enquanto ele brincava com minha barriga.
Nem todas as princesas vivem em um castelo...
"Porque você sempre esteve lá por mim
Quando eu mais precisei de você"

(James Arthur - Say You Won't Let Go)


10 anos depois…

Miami, Estados Unidos

— Não se esqueça da entrevista — Mikaela disse enquanto checava os


e-mails, com as costas apoiadas na cabeceira da cama, as pernas esticadas nos
lençóis e notebook sobre o colo.

Do outro lado da suíte, sentado na cadeira giratória da escrivaninha, eu


tentava finalizar uma música, a qual eu havia prometido a Filippa que
entregaria a tempo do lançamento do seu próximo álbum. Ainda tinha quase
um mês de prazo, mas sempre gostei de fazer as coisas com antecedência.

— Não vou esquecer — murmurei em resposta. Mesmo que eu


quisesse, Mikaela faria questão de me lembrar de hora em hora, como um
relógio de cuco antigo que havia na fazenda Hansson quando eu era criança.

Respirei fundo, pensando em Agaton, a pequena cidade da Suécia onde


eu havia crescido.

Não costumava fazer shows nos meses de dezembro e janeiro, mas


estava abrindo uma exceção porque precisava muito do dinheiro de cada
cachê que eu receberia naquela temporada. Cada centavo já tinha destino.

Mikaela estava mais ansiosa que de costume. Em mais de uma década,


ela ainda não tinha se habituado a entrevistas em programas de TV. Talk
shows sempre a apavoravam.

— Vai dar tudo certo — falei para animá-la.

— Você nunca esteve naquele programa, nem mesmo nas quatro vezes
em que ganhou o Grammy.

— Parece que minha ansiedade passou para você — brinquei.

— Engraçadinho! Lembra daquela vez em que você começou a


gaguejar e Christer precisou assumir seu lugar?

— Eu tinha dezessete anos e era minha primeira vez sóbrio em um


programa de rádio — me defendi. — Foi a única vez que isso aconteceu, caso
não se lembre.

Ela sorriu ao fechar a tampa do notebook.

— Vou verificar se Christer já fez check in aqui no hotel. Você deveria


começar a se aprontar. Quanto antes chegarmos, melhor.

— Vou finalizar essa música primeiro — falei.

— E eu vou tirar um cochilo na minha suíte. Qualquer coisa é só me


ligar. Nos encontramos na recepção daqui a duas horas.

— Tudo bem.

Aquela era a primeira vez em que eu chegaria atrasado. Nunca me


atrasava para um show. Sempre estava no palco alguns minutos antes de
começar minhas apresentações. Pontualidade era uma marca não só dos DJ’S
como também dos suecos.

Mas não dava para ignorar o que acontecia na área VIP. Pelo que pude
entender, de onde eu estava, a organização tinha vendido ingressos VIPs para
um grupo de garotas, mas estavam impedindo que elas permanecessem ali.

Não precisava me aproximar para saber exatamente do que se tratava.


Elas não eram como as top models que os organizadores costumavam
selecionar para aparecer nos vídeos e lives dos shows. Não eram magras e
altas, não usavam decotes que exibiam os seios siliconados.

Eram mulheres comuns.

Respirei profundamente e fechei a mão em punho quando vi que um


homem da equipe insistia para que elas deixassem a área VIP. Virei o rosto e
olhei para Mikaela, uma loira atraente, com quase 1,80m de altura e que
certamente seria selecionada para estar naquele lugar. Ela mexia no celular e
não tinha notado o que acontecia a poucos metros de onde esperávamos para
subir ao palco.

Ciente de que eles poderiam nunca mais me contratar para tocar


naquele clube, pulei por cima da grade e passei pelos seguranças.

— Ax, você vai entrar agora! — ouvi Mikaela reclamar, mas eu já


estava me distanciando dela.

— Já que não querem vocês aqui, gostariam de assistir ao show ao meu


lado no palco? — perguntei sem rodeios.

— Axel Hansson! — uma das garotas falou surpresa ao me ver,


levando uma das mãos à boca.

Olhei para cada uma delas, percebendo o choque com o qual elas me
encaravam. O rapaz da organização arregalou os olhos, mas sem ter coragem
de dizer alguma coisa.
A primeira entrou na frente das outras e me abraçou com força, falando
o quanto me amava e gostava das minhas músicas.

Sim, elas eram minhas fãs, tinham pagado por um ingresso caro para
estarem mais perto de mim, e não deixaria fazerem uma coisa dessas com
elas só por causa de aparência.

— Preciso começar o show agora, se quiserem passar esse tempo


comigo, é só me acompanharem. Vai ter bebidas para todas — acrescentei,
me soltando do abraço da garota com delicadeza. Vi que ela chorava e senti
um caroço travar minha garganta, mesmo assim consegui disfarçar. —
Vamos?

Elas fizeram que sim com a cabeça, pareciam muito empolgadas.

— Ele quer que a gente saia da área vip, falou que esse lugar já está
reservado, mas pagamos para estarmos aqui — uma delas disse enquanto me
seguiam.

— Vamos reembolsá-las — o cara da organização informou, vindo


atrás de nós.

— Somos suas fãs. Por que queriam que a gente saísse? — a mais
curvilínea quis saber.

— Foi uma falha da organização. Mas acreditem, ficar no palco é bem


melhor que na área VIP — tentei parecer o mais amigável possível.

— Você é incrível. É por isso que te amamos — uma disse, mas não
me virei para ver quem era. Não me sentia bem em ser paparicado por uma
coisa que não era mais que minha obrigação.

Vi os olhos de Mikaela quase saltando das órbitas.

— Você se atrasou! — ela rosnou para mim, mas a ignorei,


gesticulando para que as garotas me seguissem pelas escadas de acesso ao
palco.
— Podemos tirar fotos? — ouvi uma perguntar.

— Podem ficar à vontade.

— Por que fez isso? — uma delas foi mais curiosa.

— Vocês me fizeram lembrar uma garota incrível que conheci alguns


anos atrás, quando estava na escola.

— E onde essa garota está agora?

— Em Estocolmo — respondi.

— É a sua esposa, né? Vocês se conheceram na escola — a garota


observou.

Abri um sorriso para ela, mesmo que não estivesse com o melhor dos
meus humores.

— Sim, é minha esposa — concordei. — Fiquem à vontade,


aproveitem as bebidas.

O outro DJ, que estava encerrando sua apresentação, deu lugar para
que eu iniciasse a minha.

O clube de frente para a praia estava lotado. A maior parte da plateia


estava bebendo, mas eu me mantinha sóbrio, cumprindo a promessa que fiz a
Lucy no nosso primeiro ano de casados.

Ainda na lua de mel, naquele hotel incrível nas Ilhas Maldivas, ela
tinha me feito um pedido.

— Você é tão novo, e tem tantos problemas de ansiedade — Lucy


tinha murmurado enquanto eu acariciava sua barriga. — Não queria que se
tornasse dependente do álcool.

— Se eu pudesse controlar...
— Talvez possa. Você conseguiu diminuir o consumo.

— Só quando você vá a um dos meus shows, meu amor. Quando estou


sozinho, bebo como antes.

— Quero que você passe por um tratamento com um psicólogo, quero


que pare de ter medo, vergonha e insegurança.

Se Lucy tinha me pedido, era uma exigência que eu precisava cumprir.

— Tudo bem — falei na ocasião. — Mas você também precisa fazer


terapia, para se libertar de tudo que passou.

— Faremos — ela disse se espreguiçando.

Não me sentia muito à vontade com a ideia, mas não pensei que fosse
tão difícil. Nas três primeiras sessões, não consegui dizer uma palavra. A
psicóloga me analisava da sua mesa, com os óculos na ponta do nariz, e um
olhar que parecia atravessar minha alma, como se ela conseguisse saber tudo
que eu estava pensando.

Tinha sido horrível passar uma hora por semana, imóvel na cadeira
daquele consultório, sem progredir. Mas tinha prometido a minha esposa, não
queria decepcioná-la.

— Minha filha vai nascer daqui a três meses — murmurei sete minutos
antes da quarta sessão terminar. — E eu não quero mais ser desse jeito.
Quero me curar dessa timidez antes que ela nasça, para que possa ser um pai
melhor.

A psicóloga endireitou a postura e abriu um sorriso. Foi uma longa


jornada, mas valeu por cada hora.

Ao final do tratamento, Lucy me pediu para que eu nunca mais fizesse


um show bêbado. Não podia negar isso a ela, porque sabia que estava certa,
aquilo era o melhor para mim.
Agora, milhares e milhares de quilômetros nos separavam. Faltavam
dois dias para nosso aniversário de dez anos de casamento. Não teríamos a
festa de bodas de estanho, primeiramente porque não poderíamos estar juntos
nesta data, segundo porque ela não desperdiçaria tanto dinheiro nesse
momento.

Só queria poder passar aquela data com ela, mas estávamos fazendo
sacrifícios por um bem maior.

— Miami? — perguntei para a plateia no final do show, recordando


minhas primeiras apresentações ao lado de Lucy. O pessoal fez barulho. —
Vejo que há muitas garotas aqui hoje.

Minha observação fez com que o público feminino gritasse. Sorri, grato
por elas lembrarem daquilo — há anos eu tinha parado de ter aquela conversa
com elas, imaginando que já estava batido. Subi na mesa de som e deixei a
música instrumental tocando mais baixo.

— Me desculpem os homens, mas esse momento é só das mulheres —


falei e elas gritaram mais alto. — Tenho cinco garotas em casa e imagino o
quanto algumas de vocês devem ter demorado se arrumando, experimentando
a roupa na frente do espelho, fazendo a maquiagem... Sei bem como vocês
são. Só queria dizer que, independente de terem passado horas se produzindo
ou não, estão incrivelmente bonitas hoje! Não tenham vergonha de estarem
abaixou ou acima do peso “ideal” — fiz questão de fazer aspas com os dedos
—, porque o único ideal que vocês devem seguir é o de se amarem e estarem
saudáveis, e eu também falo de saúde mental. Se alguém lhes disser que estão
feias, que deveriam mudar isso ou aquilo, não precisam ser garotas
boazinhas, mandem se foderem. A única pessoa que vocês têm que agradar é
vocês mesmas. Já falei, mas faço questão de repetir. Vocês estão
incrivelmente bonitas hoje, porque são lindas à sua maneira.

Aumentei o som e voltei a trabalhar na CDJ, enquanto Christer tomava


a frente no palco, começando a cantar a nova música de trabalho que
havíamos feito em parceria.

No final do show, dediquei um bom tempo a atender os fãs ao lado da


grade, sabendo que a produção não deixaria todos entrarem no camarim,
mesmo que eu exigisse. Para mim, não custava nada, mas as pessoas
envolvidas sempre achavam um jeito de tentar lucrar.

Nunca aceitei fazer o famoso Meet and Greet, que consistia


basicamente em cobrar um valor significativo para abraçar um fã e tirar uma
foto ao seu lado. Em vez disso, costumava recebê-los no meu camarim,
quando a produção dos shows era mais confiável. Do contrário, os atendia ao
lado da grade. Quando tinha after, distribuía pulseiras de acesso para os fãs
mais empolgados. Suas reações não tinham preço.
— Sei que tudo que mais queria era estar com sua esposa e filhos, mas
é por uma boa causa. Todos esses shows e entrevistas vão te fazer realizar o
sonho de Lucy — Mikaela comentou bem perto do meu ouvido.

Estávamos sentados na primeira fila, enquanto a famosa apresentadora


Agnella Strong, do talk show que levava seu nome, dava início ao programa
transmitido ao vivo para todas as afiliadas da emissora ABC.

— Estou bem — falei e Mikaela colocou a mão no meu joelho,


segurando firme para que eu parasse de balançar minha perna de modo
frenético.

— Respira! — ela me lembrou. — Me pergunto se não seria melhor ter


te oferecido uma dose de uísque.

— Relaxa, estou ótimo — menti na cara dura.

A ansiedade que sentia agora não era nem de longe comparada a agonia
que me atormentava na adolescência. Mesmo assim, as mãos estavam suadas
e o coração batia depressa. Era a primeira vez em que seria entrevistado por
Agnella, apresentadora conhecida por fazer as perguntas mais evasivas aos
seus convidados; o talk show semanal mais famoso dos Estados Unidos, se
não do mundo. Eu quase nunca participava de entrevistas em programas de
rede nacional sozinho. Geralmente ia acompanhado de cantores ou bandas
que faziam colaborações comigo, ou até mesmo outros DJ’S.

Agnella era uma personalidade de grande influência na América.


Negra, lésbica e envolvida em várias causas sociais. Sua opinião era muito
importante, ela falava o que pensava, doa a quem doesse, uma mulher
desafiadora e excêntrica.

Ela exibia os memes mais recentes em um telão, arrancando


gargalhadas da plateia, enquanto eu me lembrava que tinha ficado tão ansioso
um dia antes que havia perdido o sono.

Pensei que ia travar quando ela se encaminhou para sua cadeira triunfal
atrás da mesa com o slogan do programa. Ainda rindo, ela olhou para a
câmera principal.

— Vamos entrevistar hoje, pela primeira vez aqui no programa, o


esposo de Lucy Hansson, pai de Thomas, Sandra, Jessica, Maria e Noah. Ele
que é compositor, DJ e produtor, Axel Hansson.

— Vai — Mikaela disse, enquanto a plateia aplaudia.

Me levantei da cadeira e comecei a andar em direção ao sofá dos


entrevistados, atento a cada passo, sentindo o corpo dormente pela ansiedade.
Quando me sentei, respirei aliviado por não ter tropeçado no caminho.

— Vem aqui — Agnella me chamou com os braços estendidos, só


então me dei conta de que não a tinha cumprimentado.

Cheguei mais perto, a abracei e beijei seu rosto.

— Vocês suecos! — ela brincou. — Ele é cheiroso, meninas.

Algumas garotas começaram a gritar e assobiar. Senti a pele esquentar


e tentei manter a respiração calma, secando o suor das mãos no jeans da
calça.

— O quê? — Agnella perguntou para alguém da plateia. — Você


também quer cheirá-lo? Garota, eu não te falei que ele é casado? Além disso,
você deixou o homem vermelho.

— Merda! — praguejei baixo para que o microfone na minha camisa


não captasse o som.

Era terrível estar sentado do outro lado, com todas as pessoas te


olhando, o que era diferente de estar no palco, onde a maioria das pessoas
estava bêbada e mais focada na música. Em um programa de TV todos
estavam atentos a tudo que você fazia.

Peguei a xícara que estava mais próxima a mim na mesa, e observei o


conteúdo. Parecia uísque. Segurei na alça, enquanto Agnella continuava
brincando com as garotas que pediam para cheirar meu pescoço, e levei até
perto da boca. Dei o primeiro gole com medo que fosse mesmo álcool, mas
logo reconheci o gosto de chá de camomila. Olhei para Mikaela e dei risada,
sabendo que ela tinha providenciado aquilo. Ela piscou para mim e sorriu.

— A camisa? — Agnella ainda falava. — Vocês são abusadas.

Após alguns goles, devolvi a xícara à mesa. Olhei para o público, mas
estava tão nervoso que mal enxergava as pessoas.

— Gostei da maneira como você me apresentou — falei depois de


limpar a garganta. — Esposo de Lucy Hansson. Soou muito bem.

— É a sua musa.

— Sim, ela é.

— Vocês estão juntos há uma década e construíram uma família


incrível.

— Ela é responsável por tudo — tratei de esclarecer.

— Parabéns!

— Obrigado — respondi aliviado por estar conseguindo falar sem


gaguejar. — Aliás, obrigado pelo convite.

— Já te convidamos muitas vezes e você nunca veio.

Meu rosto esquentou de novo. Tentei sorrir, mas não sei se saiu mais
parecido com uma careta.

— Divergências na agenda — expliquei.

— Claro. Axel, você já compôs dezenas de canções, fez parcerias com


a maioria dos artistas pop da década, gravou sozinho, tem várias músicas de
sucesso e ganhou todos os Grammys a qual foi indicado. Sabe me dizer
quantas vezes suas músicas estiveram no topo das plataformas de streaming?

— Cinquenta e sete — ouvi Mikaela soprar a resposta.

— Cinquenta e sete.

— Quem é essa moça?

— Minha empresária, Mikaela Andersson.

— Faz muito tempo que trabalham juntos?

— Quase doze anos.

— Você começou muito novo — Agnella observou. — Mas 57 é um


excelente número de vezes para se estar no topo.

Cocei a cabeça.

— Nesse número estão incluídas as músicas que eu só compus, mas


que levam a assinatura de outros artistas — expliquei.

— Mesmo assim, é um grande sucesso. E é a primeira vez que você sai


em turnê em dezembro.

— Sim. É a primeira vez. Nosso aniversário de casamento é daqui a


dois dias, por isso eu sempre tiro férias entre dezembro e janeiro.

— Mas é por uma causa muito nobre — ela comentou e eu olhei de


cara feia para Mikaela, não queria usar aquilo para me promover. Minha
empresária deu de ombros. — Todo o dinheiro que você arrecadar com o
cachê dos shows dessa turnê será destinado à construção de três institutos que
abrigarão crianças em situação de risco.

Cocei a cabeça novamente. Não tinha me preparado para responder


sobre aquilo.

— Como você soube? — não pude deixar de perguntar.

— Tenho meus contatos — Agnella respondeu vagamente. — Pode


falar mais sobre isso?

— É um projeto da minha esposa, um sonho que ela tinha — falei com


a voz rouca. — Estamos planejando isso há muito tempo. Ano que vem as
instituições serão inauguradas.

— Brasil, Colômbia e Moçambique. — Agnella sabia demais. — E


tem algum número de telefone, site, uma conta onde as pessoas possam fazer
doações?

Respirei fundo. A última coisa que eu esperava era falar sobre aquele
projeto tão pessoal, que na verdade não era meu, e sim de Lucy. Ela estava à
frente de tudo, tinha escolhido os países depois de muita análise, estava em
contato com os profissionais que trabalhariam nas instituições, tanto
voluntários quanto funcionários registrados. Envolvida na construção física,
nos trabalhos sociais, tudo.

— Não temos um número, não estamos pedindo doações. É um projeto


nosso que, até então, pensei que não estava sendo divulgado — confessei
bebendo mais alguns goles de chá.

— E esse é o motivo de você ter fechado tantos shows nesta


temporada. Aqui na minha ficha diz que chegou a fazer três na mesma noite e
em estados diferentes.

— Temos o jatinho. Só é um pouco cansativo, mas vai valer a pena.

Eu queria muito que ela parasse de falar sobre aqueles projetos. Não
pretendíamos trazer a público. Havia milhares de institutos precisando
urgentemente de doações. Nosso objetivo não era pedir para que as pessoas
nos ajudassem. Conseguiríamos fazer aquilo com nosso próprio dinheiro, sem
ter que pedir ao público, porque preferíamos que eles doassem para outras
instituições mais necessitadas.

— Reparei que você fica nervoso quando fala de questões pessoais, e


que colocaram chá de camomila na sua caneca.

— Ajuda a acalmar os nervos — me justifiquei.

— Não precisa ficar nervoso — Agnella disse segurando meu


antebraço com firmeza. — Você é tímido?

— Não! — a plateia respondeu por mim.

Tive que rir. Eu não costumava ser entrevistado sobre questões tão
pessoais, era sempre sobre música, por isso eu ainda não tinha aceitado ir
àquele programa. Sabia que não ficaria à vontade.

— Já fui muito tímido — confessei. — Mas esse é um segredo que elas


não sabem.

Agnella arregalou os olhos, parecendo surpresa com minha declaração.

— É mesmo? E como você conseguia subir ao palco, como fazia os


shows?

— Enchia a cara antes — falei sorrindo. — Mas eu era muito bom em


disfarçar. E este é outro segredo que elas também não sabem.

A plateia estava rindo. Meu coração batia muito forte.


— Temos aqui outro segredo que elas também não sabem — ela disse
com um sorriso maléfico. — Vamos exibir umas fotos no telão.

Olhei para a tela bem na hora em que apareceu uma foto antiga minha
usando os malditos óculos. Senti meu rosto ferver de vergonha. Desde os
dezessete anos não era visto em público usando aquelas armações. Aquilo era
uma vergonha que nem os meses de terapia me fizeram superar. Os fãs não
sabiam que eu usava óculos.

Derrotado, me sentindo como um adolescente outra vez, apoiei o


cotovelo na mesa e cobri metade do rosto com a mão, olhando para Mikaela e
sacudindo a cabeça em negação. Há muitos anos tínhamos conversado sobre
não precisar contar a ninguém que eu tinha miopia.

Ela balançou o dedo indicador, movendo os lábios em resposta “não


fui eu!”.

— Olha essa daqui — Agnella me chamou para olhar o telão


novamente, se divertindo às minhas custas.

A segunda era ainda pior, porque dava para ver o aparelho dentário. Na
terceira, as sardas estavam em evidência. Eu sabia que tinha sido tirada por
Lucy no refeitório da Agaton Gymnasieskola. Na quarta foto, ela estava
comigo, com o cabelo despenteado e as bochechas vermelhas, fazendo
aumentar a saudade que sentia dela. Não conseguia nem pensar em como
haviam conseguido aquelas fotos. As seguintes eram tão humilhantes que eu
não podia nem olhar diretamente. Me faziam desejar que o chão se abrisse
para que eu pudesse me jogar.

— Por que você nunca é visto usando óculos de grau?

— Uso lentes de contato o tempo todo.

— Seus olhos não se cansam? — ela quis saber.

— Quando estou em casa ou sozinho nos hotéis, uso os óculos —


expliquei, ainda me sentindo humilhado. Era como se a plateia fosse os
alunos da escola.

— Seus olhos são mesmo azuis?

— Sim, as lentes são incolores.

— E você não teria uns óculos aqui no estúdio para nos mostrar como
fica? Conheço muitas mulheres que adoram homens de óculos.

— Sim! — as mulheres gritaram.

— Não! Estão no hotel — por sorte.

Mikaela parecia tão surpresa quanto eu.

Agnella se agachou e apanhou algo embaixo da sua mesa, voltando


com uma caixa de óculos que eu conhecia muito bem. Me inclinei para ter
certeza que eram os rabiscos de Noah no couro caramelo. Eu tinha deixado
aquela caixa de óculos na nossa casa em Estocolmo. Não tinha como Agnella
estar com ela em mãos.

Ela abriu com aquele sorriso malvado e tirou a armação preta.

— Você fez show hoje à tarde, não quer dar um descanso para seus
olhos?

Olhei para Mikaela esperando que ela pudesse me salvar. Quando


aceitei ser entrevistado durante o programa inteiro, sabia que poderia ser
constrangedor, mas jamais imaginei que fosse chegar a tanto.

— Não estou com a caixinha para guardar as lentes — me desculpei


com a voz rouca que denunciava o estado dos meus nervos.

Então Agnella agachou-se e voltou com um objeto nas mãos. Os


círculos brancos continham na tampa as letras que indicavam onde deveriam
ser guardadas as lentes direita e esquerda.

Engoli em seco.
— Sabe quem me deu isso? — ela quis saber.

— Só consigo pensar na minha esposa, mas…

— Mas ela está em Estocolmo — Agnella completou. — Há quanto


tempo vocês não se veem?

— Mais de um mês — respondi. Era a primeira vez que ficava tanto


tempo longe de Lucy e das crianças.

Tinha sido muito presente, mesmo com a carreira. Não marcava shows
nas segundas, terças e quartas desde que Lucy havia começado a viajar nas
jornadas humanitárias a países carentes. Ela estava envolvida nos trabalhos
sociais desde o segundo ano da faculdade de direito, e dividíamos os dias
para ficarmos em casa, assim as crianças sempre tinham um ou outro por
perto. Prezávamos muito pela família, para estarmos sempre ao lado deles.
Esse ano estava sendo uma exceção que me deixava com uma saudade
imensa.

— Sente muita falta dela?

— A cada minuto — falei.

Eu estava fazendo shows todos os dias, por isso não poderia ir para
casa, Lucy estava finalizando o semestre do doutorado e as crianças ainda
estavam em aula, antes do recesso de fim de ano.

— E não vão poder passar o aniversário de dez anos juntos.

— Como você disse antes, é por uma boa causa — a lembrei.

— Uma ótima causa! Acho que ela é a única que pode me ajudar a te
convencer a usar isso daqui, e conseguirmos uma foto exclusiva do Axel
adulto de óculos.

As pessoas começaram a aplaudir. Meu coração disparou quando a vi


passando pelo acesso aos bastidores, acompanhada dos nossos cinco filhos.
Noah, de três anos, passou na frente e correu para se jogar nos meus braços.
Lucy estava maravilhosa, usava um vestido de mangas curtas com
estampa de flores, com botões na frente e botas marrons. Seu cabelo estava
preso em uma trança jogada sobre o ombro e as bochechas coradas.

De nós dois, Lucy sempre foi a menos tradicional. Segurou meu rosto
com as duas mãos e me deu um beijo apaixonado. Só quando ela me largou,
as outras crianças entraram na disputa por um abraço meu.

Brinquei com eles, comentando que Maria estava banguela outra vez,
que Thomas parecia mais alto do que eu recordava, e se Jessica tinha ficado
com medo de viajar de avião. Dos cinco, ela era a única que sempre teve
medo de voar.

— Não vai colocar os óculos, pai? — Sandra perguntou, me deixando


arrepiado.

Era sempre uma emoção ouvi-la me chamando assim. Nunca pedimos


que nossos três filhos adotivos nos chamassem de pai e mãe, era algo que
Thomas e Jessica tinham feito naturalmente. Mas Sandra demorou um pouco
mais que os outros a nos chamar assim.

Ainda me lembro como se deu a primeira adoção. A gente nunca tinha


conversado sobre isso. Maria, nossa primeira filha biológica, tinha apenas
quatro anos. Não pensávamos em adoção, pelo menos não era algo que se
passava pela minha cabeça. Se Lucy fazia planos de adotar, nunca havia me
dito. Estávamos cheios de compromissos, ela estava terminando o terceiro
ano de direito, vivíamos numa correria para estarmos presentes no
crescimento de Maria, dividindo o trabalho o melhor possível para que
nenhum de nós ficasse sobrecarregado.

Foi então que Lucy viu uma matéria em um telejornal sueco. Duas
crianças — um menino de 13 anos e uma menina de 9 — haviam sido
resgatadas após viverem anos de maus-tratos. O pai mantinha eles e a mãe, na
maior parte do tempo, em cárcere privado. Os deixava por dias sem comer,
abusando sexualmente deles e os torturando de formas horríveis.

Aquela etapa do sofrimento só acabou quando o monstro matou a


pancadas a mãe na frente das crianças, e então tirou a própria vida.

O caso que aconteceu no Brasil, no estado do Rio de Janeiro, foi


notícia ao redor do mundo. Os jornais diziam que o casal de irmãos tinha sido
levado para um orfanato, e que nenhum familiar tinha entrado em contato
pedindo a guarda.

Lucy chorou sem parar até as duas da manhã. Depois de cochilar por
alguns minutos, despertei de madrugada e encarei seus olhos vermelhos, o
rosto inchado.

— Vamos adotá-los — falei a puxando para meu peito.

— Vamos? — ela sussurrou ao me abraçar bem forte.

— Sim, nós vamos — confirmei sem saber se conseguiríamos.


Tínhamos condições financeiras, mas estávamos com 22 anos. Eu não sabia
se aquilo daria certo.

Na manhã seguinte, juntamos os advogados que tinham ajudado no


caso da minha sogra e demos início ao processo. Algumas semanas depois de
muita batalha, recebemos a guarda dos irmãos Thomas e Jessica. Eles não
falavam inglês ou sueco, e nós não falávamos português. Eu só entendia um
pouco de espanhol, mas a língua foi o menor dos problemas.
Eles tinham tanto medo de mim que chegavam a tremer e chorar
quando me aproximava. A viagem de avião, longa e cansativa, foi um um
estresse enorme. Mas Lucy sabia como lidar com eles, e eu também não era
leigo em se tratando de me relacionar com pessoas traumatizadas. Os
primeiros meses foram mais difíceis. Eles mal tinham ido à escola no Brasil,
precisaram de tratamento intenso, tanto físico quanto mental. Além disso,
Maria era muito pequena e, às vezes, não entendia o porquê de precisar
dividir nossa atenção com aqueles garotos tão diferentes.

Naquele mesmo ano, a mãe de Lucy conseguiu a liberdade e as coisas


foram melhorando. Ela se mudou para nossa casa, em Estocolmo, e nos
ajudou em tudo.

Treze meses depois de termos conseguido a guarda dos nossos novos


filhos, Lucy me contou que estava grávida. Então veio Noah. Nessa época já
fazíamos planos de abrir as instituições para abrigar e cuidar de crianças
vítimas da violência.

Minha esposa não tinha um útero, mas sim uma máquina copiadora.
Maria era sua xérox e Noah idêntico a mim quando eu era criança. Quando
ele dava risada ou fazia birra, era como se eu estivesse olhando através de um
espelho do tempo. Mas ele não era quieto e comportado como sempre fui. Era
levado e hiperativo, o que exigia ainda mais trabalho.

Quando Noah fez um ano, Lucy assistiu outro caso no jornal que
revirava o estômago de qualquer um. Um homem em Moçambique obrigava
a filha de dez anos a se prostituir. Crianças sendo exploradas pelos próprios
pais daquela forma, apesar de revoltante, não era nenhuma novidade.

A menina em questão era Sandra. Acontece que, após vários estupros,


um dos abusadores ateou fogo na casa com toda a família dentro. Pelo que
diziam os jornais, o homem tinha rixa com o pai da garota. Ela tinha sido a
única a ser resgatada com vida do incêndio que a deixou com trinta por cento
do corpo queimado.

Assistindo àquela notícia, ela se virou para mim com os olhos cheios
de lágrimas. A encarei de volta, sabendo exatamente o que ela estava
pensando, e dei um aceno de cabeça.

Ela se jogou nos meus braços e chorou como uma criança.

— Nós vamos dar conta de mais uma — falei para tentar animá-la.

Conseguimos a guarda de Sandra e viajamos para buscá-la. Na Suécia,


conseguimos tratamentos muito melhores do que ela estava recebendo em
Moçambique. Ela não era tão difícil quanto Thomas e Jessica tinham sido no
começo, mas era muito quieta. Demorou quatro meses para nos dirigir a
primeira palavra. Com Sandra, eu me saí melhor, porque tínhamos problemas
de transtorno social semelhantes. Mesmo que nunca tivesse passado por nada
que ela passou, nos demos bem.

Nossa casa, no subúrbio de Estocolmo, era enorme, com muitos


quartos, um canil para os animais que as crianças encontravam na rua, uma
piscina e um grande jardim, onde eles corriam livre depois da escola. Não
vivíamos de luxos, mas tínhamos uma vida excelente, corrida e cansativa,
mas excelente.

Leonora e minha mãe chegaram a se revezar para também nos ajudar


com as cinco crianças — só que Noah valia por dez —, além da minha sogra
que nunca nos abandonava. Até Steven e Mikaela davam uma mãozinha de
vez em quando.

Lucy jamais parou de estudar. Estava atualmente se preparando para


ser juíza, e vivia saindo em jornadas, ainda que curtas, para cuidar de crianças
em situações extremas. Quando eu conseguia, a acompanhava nas viagens.

Era revoltante saber que as autoridades, que deveriam dar assistência à


população, estavam mais preocupadas em corromper o dinheiro público do
que com o bem-estar social. Às vezes, depois de passar o dia inteiro
distribuindo cestas básicas, brinquedos e remédios — juntamente com outros
voluntários, eu me sentia inútil, porque a fila nunca terminava, e sempre
apareciam mais e mais famílias implorando por ajuda.

Me sentia tão mal que, apesar do cansaço, não conseguia dormir. Numa
cabana simples, onde ficávamos quando íamos à África, Lucy me abraçava e
tentava secar minhas lágrimas, me garantindo que, por mais que não
pudéssemos ajudar a todos, ainda fazíamos a diferença na vida daqueles
poucos.

Olhando para aquela mulher tão forte, sentada ao meu lado no sofá
daquele programa de tv, rodeada dos nossos filhos, eu só conseguia pensar
que ela era o melhor ser humano do planeta, e que nem todas as princesas
viviam em um castelo.

— Amo vocês demais — falei olhando para cada um deles.

— Tem espaço para todos? — Agnella quis saber. Ela havia chamado o
intervalo comercial.

Puxei Maria, que estava com nove anos para meu colo. Lucy, sentada
ao meu lado, ficou segurando Noah de três anos, enquanto Sandra de doze,
Jessica de catorze e Thomas de dezoito se sentaram ao seu lado.

— Como conseguiu vir? E as aulas? — perguntei para Lucy.

— Dei meu jeitinho. Não aguentávamos ficar mais um dia longe de


você — ela sussurrou, enquanto nossos filhos diziam o quanto sentiam minha
falta. — E mamãe precisava de uma folga. Acho que ela conheceu alguém.

Arqueei as sobrancelhas, surpreso com a notícia de que minha sogra


poderia estar namorando, e ao mesmo tempo feliz por ela.

O programa voltou e Agnella deu continuidade àquela bobagem de me


fazer colocar os óculos, incentivada pela plateia. Prometi baixinho no ouvido
de Lucy que ela ia me pagar na cama por aquela brincadeira. Ela mordeu o
lábio e sorriu.

Por fim, cedi e fiz o que pediam.

Agnella, muito satisfeita, seguiu a entrevista sobre como tínhamos


adotado as crianças. Ela também tinha sido uma criança negra que foi
adotada por um casal de brancos, acho que por esse motivo tinha se
empenhado tanto em trazer minha família ao programa.

Foi a primeira vez que falei abertamente sobre as adoções, mas sem
mencionar o passado com as famílias biológicas. A última coisa que
queríamos era expor suas vidas pessoais.

— Somos uma família que o destino uniu — Jessica disse. Ela era a
mais falante de nós, e sempre sabia o que dizer nos momentos certos. Queria
ser apresentadora de TV, como Agnella.

— Meu pai liga todas as noites para saber se os pequenos já estão na


cama — Thomas contou. — Não importa em qual país ele esteja.

— Ele fica ligado no fuso horário — Jessica emendou. — E faz


chamadas de vídeo para contar histórias de ninar para Maria, Sandra e Noah.

— Não preciso mais de histórias para dormir — Sandra respondeu,


ficando envergonhada. — Mas amo os contos sobre mitologia nórdica.

— Os de gnomos e trolls são os meus favoritos — Maria falou, se


enroscando no meu pescoço.

Estava tão feliz por tê-los ali que nem me lembrava que tinha colocado
os óculos.

Agnella e a plateia adoraram meus filhos. Cada um deles tinha um


estilo diferente, porque sempre os incentivamos a se vestirem e terem
personalidades próprias.

Thomas era mais alto que eu, pele negra, cabelo moicano, e um porte
que o fazia parecer mais velho. Estava no último ano do ensino médio e
queria fazer medicina. Minha mãe, enfim, teria um parente médico na
família. Ele era o neto que se dava melhor com ela, que sabia exatamente
como lidar com seu temperamento difícil.

Jessica, assim como Thomas e Sandra, também tinha pele negra.


Gostava de roupas muito coloridas, tênis neons, muitos acessórios e vivia
trocando a cor das tranças no cabelo.

Sandra, dona de olhos verdes que contrastavam com a pele, era a mais
reservada e também a mais preocupada em cuidar dos gatos e cachorros que
criávamos. Nos finais de semana, quando tinha folga, eu costumava levá-la
para Malmö, onde ela passava dois dias ajudando minha irmã na clínica
veterinária.

Leonora e Evert não tiveram filhos. Eles cuidavam dos meus com todo
amor e carinho.

Maria era um amor de criança. Seu nascimento foi o acontecimento que


mais me marcou na vida. Foi logo depois que comecei a deixar o cabelo
crescer e fiz a segunda tatuagem. Tínhamos só dezoito anos quando a vimos
nascer. Um trabalho de parto que demorou mais de 24h. Lucy parecia não
suportar mais as contrações, e eu me via desesperado sem poder fazer nada
para tirar sua dor. Nossas mães estavam conosco e diziam que era normal,
que a maioria das mulheres passava por aquilo, e que ela daria conta. Eu só
conseguia pensar que era mais uma das injustiças da vida, que só a mãe
passava por tanta dor enquanto o homem só precisava ejacular dentro. Após
muito sofrimento e lágrimas, eu vi aquele ser humano tão pequeno e frágil
nascer.

Não sei como Lucy teve coragem de passar por tudo aquilo de novo
para termos Noah, que apesar de ser um furacão, também era muito
carinhoso.

Meu pai adorava quando todo mundo ia para a fazenda. Amava nossos
cinco filhos sem distinção.

Theodoro, já velhinho, era só alegria quando nos via.

No terceiro bloco do programa, que ficava cada vez mais divertido,


Maria e Sandra notaram que havia três garotas chorando na plateia. No
intervalo seguinte, elas, acompanhadas de Noah, foram até as garotas e as
trouxeram para mais perto.
— Papai, elas estão chorando porque querem te dar um abraço —
Maria disse surpresa. Ainda não conseguia assimilar algumas reações dos fãs.

Conversei com as garotas, as abracei e Lucy se ofereceu para tirar


fotos, o que fez com que uma delas ficasse ainda mais emocionada. Fiz
menção de tirar os óculos para sair nas fotos, mas elas me pediram para não
fazer aquilo.

— Você não tem ciúme dos fãs? — Agnella perguntou no último


bloco.

— Não. Devemos tudo que temos a eles. Ser gentil com todos é o
mínimo que devemos fazer.

— Ser educado e atendê-los não é mais que nossa obrigação — eu


nunca me cansaria de dizer isso.

Ao final do programa, quando as câmeras foram desligadas, Agnella


nos convidou para jantar. Por mais que quisesse ficar sozinho com minha
família, não pude deixar de aceitar.

Mikaela nos acompanhou. Lotamos uma mesa em um restaurante


famoso de Miami.

Foi então que ela nos contou porque tinha tanto interesse em me
entrevistar. Ela sabia sobre o passado de Lucy, nos acompanhava há alguns
anos e sempre quis nos levar ao programa, mas nunca tinha conseguido. Nos
confidenciou que foi violentada por dois dos seus tios biológicos, e só deixou
de sofrer abuso quando a mãe, dependente química e sem condições de criá-
la, a levou para um orfanato.

A vida só começou a melhorar quando um casal a adotou.

Ela disse que entendia nosso lado de não querer falar abertamente à
mídia sobre as instituições que estávamos construindo, assim como os
projetos sociais em que erámos envolvidos, mas acreditava que boas ações
deveriam, sim, ser divulgadas, e que merecíamos ser reconhecidos pelo nosso
trabalho.

Eu sempre fui apaixonado por música, mas só quando me casei com


Lucy é que percebi que poderia usar minha profissão para levar ajuda a quem
mais precisava. Arrecadava muito dinheiro todos os anos, e mais da metade
era destinado a trabalhos humanitários, já que não precisávamos ter uma vida
de luxo para sermos felizes.

Mikaela costumava dizer que eu era como um Robin Hood moderno,


porque cobrava cachês altíssimos das casas de shows e dividia com os
pobres.

No hotel, ela ficou responsável por colocar todos os garotos para


dormir, incluindo o inquieto Noah, e disse que aproveitássemos a noite.

Na suíte enorme, Lucy entrou em um dos banheiros dizendo que queria


tomar banho sozinha. Ansioso por tê-la depressa, não pude fazer nada além
de concordar. Tomei um banho no outro quarto e fiquei esperando por ela na
cama.

Após longos minutos, ela surgiu, usando uma camisola de renda


branca, cheia de fendas provocantes. Passei a língua no lábio enquanto ela
caminhava até mim.

— Se lembra da nossa primeira vez? — Lucy quis saber.

— Como se fosse ontem.

— Então fica quietinho, meu amor — sussurrou, montando sobre meu


quadril.

— Sou todo seu — falei enquanto suas mãos acariciavam meu


abdômen e ela começava a rebolar devagar.
Não existia nenhuma mulher tão incrível quanto a minha Lucy. Mais
bonita, sexy e autêntica que todas as mulheres do mundo. Aquela paixão que
sentia por ela na escola não tinha passado.

Como tínhamos vidas muito cheias e corridas, cada momento que


passávamos juntos era aproveitado ao máximo, principalmente na cama.

— Eu só queria tê-la todos os dias — sussurrei contra um dos seus


seios.

Lucy gemeu mais alto. Agarrei sua cintura e a joguei sobre os lençóis,
me afundando no seu corpo, devorando sua boca.

— Eu te amo tanto — ela disse contra meus lábios.

— Eu também te amo, minha princesa.

Cada encontro com ela não era o bastante. A única coisa que aquietava
meu coração era saber que tinha o resto da minha vida para fazê-la feliz e que
nosso amor ia durar até que a morte nos separasse.

Fim.
Não sei exatamente por onde começar, mas vamos lá!

Nem todos os príncipes usam coroa não foi o livro que mais me diverti
escrevendo, mas foi que mais me emocionou, que mais me arrancou lágrimas
e soluços de desespero, que me ensinou a enxergar as pessoas de uma nova
maneira.

Não consigo descrever em palavras o quanto escrever este livro


significou para mim. Aprendi muito com Axel e Lucy, e espero que vocês
tenham gostado.

Não vou citar nomes, porque minha memória não está nada boa e tenho
certeza que acabarei me esquecendo de citar várias pessoas, e não quero
deixar ninguém chateado.

Quero agradecer as meninas que leram o livro quando ele ainda era um
rascunho, desde 2017, e acreditaram que eu seria capaz de escrever um
romance "fofo". Obrigada a todos do grupo de leitoras, por entenderem meus
surtos e me apoiarem sempre que preciso.

Obrigada as betas, a revisora, as autoras e amigas que me aturaram


nesses últimos dias.

Sou muito grata a todas que leram no Wattpad e as parceiras que me


ajudam com a divulgação.
Um agradecimento mais que especial às leitoras que me procuraram
para desabafar sobre suas histórias de vida. Vocês me deram muito apoio
para continuar escrevendo sobre o tema, ajudaram Lucy a crescer. Lhes
desejo toda a força do mundo. Roubando a fala do Ax, é uma pena que, às
vezes, tudo que eu possa fazer é dizer “sinto muito”.

E a você que dedicou esse tempo da sua vida a conhecer a história de


Axel e Lucy, com todo meu amor, obrigada!
Segredos da Fama - Nos Bastidores Vol 1:
Axel é o porta voz de uma prestigiada banda que divide com os amigos
Vincent e Guto. O mais charmoso dos três, com um sotaque sueco marcante,
talentoso e responsável, ele vem ao Brasil para passar seis semanas se
dedicando a carreira, até se deparar com sua nova assistente, Lucy. Uma
criatura pequena, sexy e atrevida, que mexe com sua cabeça desde o primeiro
momento juntos.

Uma paixão avassaladora ou o capricho de um músico acostumado a ter


todos os seus desejos atendidos?
Lucy descobrirá o que realmente acontece nos bastidores, os segredos da
fama e o preço que se paga para fazer parte deste mundo.

Será que o que acontece nos bastidores fica mesmo nos bastidores?

Azul como ela nunca conheceu:


Desde os tempos mais antigos, os jogos de azar sempre foram muito
procurados pelos homens. No século XVIII, estes jogos atingiram o clímax
entre os cidadãos.
Roggero Fontana era um viciado em apostas, à beira da falência. Em uma de
suas jogadas habituais, desesperado, aposta a mão de sua própria filha,
Isabella, com John Smith, um misterioso forasteiro.
Mas Roggero perde o jogo e, consequentemente, sua filha.
O casamento acontece de forma rápida; John tem urgência em levar Isabella
para sua isolada fazenda. Logo nos primeiros dias de casada, ela descobre
que ele não é um simples crápula que gosta de torturar física e
psicologicamente pessoas mais fracas que ele. John é muito mais que isso e
guarda um segredo que pode fazer com que ela seja mandada direto para o
inferno.
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