Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro,
sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais
forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os
direitos morais do autor foram declarados.
Esta obra literária é ficção. Qualquer nome, lugares, personagens e incidentes são produto da
imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou
estabelecimentos é mera coincidência.
Simões, Malu
Mais que um match [recurso eletrônico]: Malu Simões. – 1. ed. – Rio de
Janeiro: AllBook, 2023.
Recurso digital
23-141249
CDD: 869.3
Chapeleiro Maluco
Dedico a história do Sebastián e da Antonella
aos que buscam a felicidade em sua forma mais pura.
SUMÁRIO
Capa
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Epílogo
Agradecimentos
Leia também
AllBook Editora
PRÓLOGO
Em trinta e um de maio de 1999, nasce a Princesa da Celulose, Antonella
Vivian Alencar Braga, filha do magnata Aurélio Alencar Braga e sua
esposa, Vivian Laurinda Alencar Braga.
Correm boatos de que a Princesa da Celulose dançará a valsa com o
Príncipe do Aço, Horácio Louzada Ramos, no tão aguardado
aniversário de quinze anos. Será o indício de um futuro enlace entre as
duas fortunas?
Antonella Vivian Alencar Braga é vista com Horácio Louzada Ramos em
iate no mar de Búzios, junto com os pais do casal.
Horácio Louzada Ramos pede a mão de Antonella Vivian Alencar Braga
ao futuro sogro, em festa organizada para trezentos convidados.
Um escândalo. Princesa da Celulose sobe na mesa enquanto se diverte
na discoteca mais badalada de São Paulo. Ao que tudo indica, estava
alcoolizada. Onde estaria o seu noivo?
Horácio Louzada Ramos é visto sem a companhia da noiva Antonella
Vivian Alencar Braga em festa do empresário e amigo Júnior Barcelar.
Será o fim do noivado de milhões?
Enfim, o casamento multimilionário foi marcado para a primavera de
2022. O Príncipe do Aço e a Princesa da Celulose vão subir ao altar em
cerimônia para quinhentos convidados.
CAPÍTULO 1
— Hmmm, hum.
— Quando você chegar ao hotel, me dê um toque, Antonella — suplicou
Heloísa acima do burburinho do aeroporto, batucando os dedos de forma
ritmada sobre o celular.
— Hum, hum.
Eu nem desejava ligar o aparelho naquela próxima semana. Aliás, se
pudesse, simplesmente me enfiaria em um buraco até a última espécie da Terra
dar seu suspiro derradeiro.
Dizem por aí que a felicidade não é deste mundo. Na real, não é mesmo.
Mas eu precisava muito descobrir onde era esse lugar, porque olha… estava
difícil, viu?
Talvez estivesse em algum outro planeta distante. Seria formidável
embarcar em uma espaçonave e buscar extraterrestres mais amáveis do que os
terráqueos. Ou talvez eu encontrasse essa tal felicidade somente nas linhas de
livros e filmes de comédia romântica.
Era domingo e deveria ser um dia extraordinário. Deveria. Isso mesmo. Eu
havia idealizado inúmeros sonhos futuros só na minha cabeça.
Mas a verdade é que minha vida estava uma tremenda bagunça.
— Tem certeza de que vai ficar bem?
— Hum, hum.
Eu iria me esconder. Não queria ser encontrada por ninguém,
especialmente as conhecidas e os jornalistas, em particular por esses últimos;
eles não sabiam o meu paradeiro. A única certeza naquele momento, era que eu
pretendia dar uma reviravolta em meu destino, aos vinte e três anos.
Esse pensamento vinha a todo instante na minha cabeça naquelas últimas
vinte e quatro horas, até que acabei optando por cair dentro da mudança.
Eu que suportasse as consequências das minhas escolhas.
Então me calei. Permiti somente que o “hum, hum” escapasse dos meus
lábios trêmulos de… emoção.
Uma pessoa sem o mínimo senso de direção passou por nós duas e carregou
minha mala até ela desabar no chão.
— Deixa que eu pego! — minha amiga ia se antecipar, mas a impedi com a
mão espalmada diante dos olhos arregalados. Ela fazia de tudo para acalmar
meu estado de espírito.
Com o coração se preenchendo de ressentimento, tive de dar dois passos
para resgatar a famigerada de nove mil, duzentos e cinquenta reais, toda em
alumínio, que minha mãe havia insistido que eu aceitasse de presente para
viajar com uma mala nova em folha. Nem com os meus mais sensatos
argumentos de que o valor era muito alto, ela se comoveu.
— Disculpar — ouvi o sujeito dizer enquanto meus joelhos se dobravam.
— Desculpa. Desculpa — corrigi, irritada. — É assim que se fala em
português.
— Desculpa. Não foi minha intenção.
Juro que se eu não estivesse irritada, consideraria o sotaque dele até que
charmoso.
Preferi não encará-lo de frente e respondi com a cabeça oscilando para cima
e para baixo, assim como meu coração batia chateado.
— Mais cuidado por onde anda — resolvi descarregar minha raiva nele
enquanto firmava a alça.
Um calor perpassou meus poros quando minha pele captou o toque da
mão dele, meio atrapalhada, raspando de leve nos meus dedos na tentativa de
me ajudar a erguer a mala do chão.
— Já pedi desculpa — além de responder em tom baixíssimo, uma rajada
de ar escapuliu em seguida dos lábios do carinha, com o qual eu havia entrado
em um embate desnecessário. Creio que ouvi um “Que chica mas nerviosa”.
Passei o olhar de relance pelo rosto do homem e vi dois faróis em seu rosto,
de tão claros que eram seus olhos. Foi impossível não reparar.
— Ok — pisquei.
De imediato, virei as costas para o desconhecido e retornei para me
despedir da Heloísa, já que o sinal de áudio do aeroporto soou no alto-falante
dizendo algo sobre o meu destino. Tudo bem que eu me senti uma completa
mal-educada, o que certamente devia ter ficado evidente para ele. Eu estava
muito irritada!
— Que homão!
— Nem vem, Heloísa. Você sabe muito bem que ontem eu literalmente
corri no sentido oposto de um homem — falei com tom de advertência.
— Amiga, você não reparou nele como deveria. Ele parece o Chris
Hemsworth.
— Tá louca? Nem de longe ele tem o corpo do Thor...
— Ah, então você deu uma boa espiada, é?
Fiquei perplexa.
— Claro que não.
Heloísa me olhou desconfiada, com as pálpebras semicerradas.
Gemi, indignada.
— Até parece que eu ia sair paquerando por aí, justo agora. Ainda mais um
estrangeiro que deve estar somente a passeio no país. Ele abla espanhol, Helô.
— É disso que você precisa. Uma aventura.
Não me contive e olhei sobre os ombros. Tentei pescar um pouco da
silhueta do tal homão, mas ele havia sumido do nosso campo de vista.
Tudo bem. Melhor assim.
— Não estou te reconhecendo — voltei a conversar com ela. — Onde está
a minha amiga romântica da época da faculdade? Você está me incentivando a
olhar para um carinha depois de tudo o que aconteceu?
Baixei as pálpebras e somente vi a escuridão assim como meus sentimentos
se encontravam num limbo sem data marcada para retornar à vida. Eu estava
me esforçando para reagir a cada expiração e batida do coração.
— Não sei como você está conseguindo se manter controlada.
— Eu tinha que começar a escrever a história da minha vida com minhas
próprias escolhas.
— Nossa! Essa frase é impactante — ela riu e eu a empurrei com um dedo
em seu ombro, achando graça.
— Quer saber? Vou para o meu spa emocional.
Ouvi a voz feminina informando do embarque imediato para Fortaleza, em
um claro sinal de que havia chegado a hora do meu martírio iniciar. Não que
eu tivesse medo de avião, mas… Bem, é que a viagem dos meus sonhos se
transformara em um fiasco antes mesmo de iniciar. Aliás, ela havia sido o
motivo de muitos desentendimentos entre mim e, hum, um cara aí, desde o
início do processo de escolha do lugar.
Heloísa fez um esforço tremendo para não friccionar os lábios, mania dela
quando se sentia acuada ou entristecida. Logo reverteu um hábito para outro,
levando as mechas platinadas para trás das orelhas, sinal de timidez. Eu a
conhecia mais que as linhas das palmas das minhas mãos, e posso afirmar o
mesmo sobre ela em relação a mim.
Sabe, Helô era uma amiga e tanto, tão fiel que, em solidariedade a mim,
tentou reter seu tique nervoso somente para não deixar transparecer o quanto
sofria junto comigo. Ela era, sim, a mais formidável amiga de todos os tempos.
Desde o dia anterior minha BFF não saía do meu lado, nem um segundo
sequer, após minha decisão de respirar novos ares.
E que situação havia sido aquela?!
Ao me lembrar do momento fatídico, meu estômago embrulhou. Nem sei
como eu me encorajei a… soprei o ar em uma lufada longa. Então o inspirei
em seguida tão profundo, que um chiado pôde ser ouvido a metros de
distância no corredor apinhado de pessoas.
— Chegou a hora — revelei o óbvio à Heloísa. — Cuida bem das crianças
enquanto eu estiver fora da cidade.
— Não pense nisso agora, muito menos durante sua estadia no resort
maravilindo. Aproveita, amiga, curta bastante os dias de — ela pigarreou —
folga.
Segurei o rio de lágrimas que queria trilhar meu rosto. Sem ela ao meu lado
tudo teria sido muito mais difícil de suportar.
Com pesar, dei as costas a Heloísa e caminhei até a entrada da sala de
embarque. Não sabia como seriam os dias de “folga” sem ela, meu ombro
amigo, mas eu tinha de seguir em frente. Sozinha. Encarar meus fantasmas a
partir do momento que passasse pela catraca era o mais certo a fazer.
Respirei fundo.
É, não era todo dia que eu ia para a minha lua de mel, e sozinha.
CAPÍTULO 2
Ai, meu Senhor!
Eu estava tão estressada e as pessoas não contribuíam para que eu me
sentisse menos tensa.
Esfreguei a nuca três vezes.
Olhei para a linha de assentos e havia um indivíduo acomodado de um
jeito largado, bem tranquilo na poltrona que deveria ser minha.
Uma senhora raspou a garganta, impaciente, atrás de mim. Certo. Quem
deveria estar nervosinha era eu, mas tudo bem. Ao contrário do que eu havia
afirmado para Heloísa, eu estava no meu limite. Faltava pouco para explodir.
Assim sendo, sem fitar o rosto dela e contando mentalmente uma
sequência numérica para conquistar um pouco de serenidade, eu me virei de
lado, de forma que a senhora ganhou o espaço necessário para seguir pelo
corredor estreito do avião. Pude ouvir ainda um chiado escapando dos lábios
senis, mas eu tive respeito pelo cabelo esbranquiçado dela, assim como ele, o
sujeito dorminhoco, poderia ter tido por mim se tivesse checado previamente
onde iria se sentar.
Como ele conseguiu dormir tão rápido, sendo que mal embarcamos?
— Oi — dei um toque de leve no ombro sob uma camisa branca. — Você
está no meu lugar.
Com um jeito preguiçoso, ele ergueu com dois dedos o boné que cobria os
seus olhos, o suficiente para me encarar.
Merda. Uma grande merda.
Por um instante, congelei.
Pelo que meu cérebro me ofertava com a mísera imagem do saguão… Ah,
não! Era justamente ele, o indivíduo assassino de malas e dotado dos olhos
mais atraentes que eu já tinha visto. Agora, vou falar uma coisa bem objetiva:
não sei por que geralmente esses homens inconvenientes costumam ser
bonitos. Bem que a Heloísa estava com a razão. Ele era um deus da beleza.
Os olhos vivos eram duas turmalinas verde-azuladas, nem sei dizer ao certo
a perfeição daquelas íris que me fitavam como se o mundo não girasse e o avião
não estivesse prestes a decolar. Eu estava na iminência de fuzilá-lo, numa fração
de segundos antes e, hum, antes disso também.
Gostaria de ter reagido melhor, mas o reflexo do sorriso malicioso que se
estendia na boca emoldurada por uma barba com fios platinados do… Sério! O
homem era um galã de TV disfarçado de passageiro-turista-praiano. Só podia
ser. E para ficar mais evidente o quanto era lindo, ele tirou o boné e mexeu no
cabelo, levando os fios para trás, meio para um lado, os quais se moldaram
espetacularmente no alto da cabeça.
Estreitei os lábios, surpresa.
Então, envergonhada, ou ganhando tempo para respirar, desci o olhar para
o colar de couro com medalha prateada em seu peito, o que não foi muito
inteligente da minha parte, pois as mangas curtas da blusa de malha nas laterais
moldavam verdadeiros chamarizes musculares.
Fiz cara de paisagem, como se não houvesse notado o quão espetacular era
aquele conjunto masculino, como se não o tivesse ignorado antes, como se
meus joelhos não estivessem quase amolecendo com a encarada que ele me
dava. E olha que foram meros segundos de análise — e deleite — da minha
parte, ou talvez tenha avançado ao padrão do minuto. Ainda assim, foi o
suficiente para eu ter a convicção de que deveria permanecer a poltronas de
distância do indivíduo.
Homens geralmente não são confiáveis, ainda mais quando são donos de
uma beleza ultrajante.
Para a minha conveniência – minto, mais sábio dizer para a minha sorte –a
comissária fez o favor de me retirar do momento, diga-se de passagem,
embaraçoso.
Ela enfim solicitou:
—Por favor, posso conferir os tickets de vocês?
— Claro — falei não tão empolgada.
Meu humor estava apenas sendo controlado, ainda mais após ter visto o
sorriso “brejeirinho” que a comissária ofertava a ele, indicando que eu estava
lascada, pois era evidente que ela o acobertaria. Será?
Segurei-me para não falar besteira. Eu estava uma pilha de nervos e era
tudo culpa do meu ex-noivo. Minha boca estava irreconhecivelmente suja por
causa da minha revolta e…vergonha.
Acabei soprando o ar, inconformada com a situação.
Ainda sem pronunciar uma palavra sequer, a criatura de olhos excêntricos,
que se apresentava como um desvio do padrão de beleza de nós outros reles
seres mortais, retirou o papel de embarque do bolso traseiro tão lentamente
quanto sua atenção se movia vagarosamente pelo meu corpo.
— Hum, creio que a poltrona da senhorita seja a da janela — disse a
aeromoça.
Mesmo assim, espichei o olho para o famigerado ticket na mão da
comissária, dissimulando não estar tonta. Chequei o número do lugar no visor
entre o bagageiro e a poltrona vazia da ponta. Comparei com o que estava
registrado no bilhete de embarque. Aaah! Ela estava certa.
Em definitivo, minha cara rachou.
Por isso eu digo “malditos são os homens”. Creditei a conta da minha má
avaliação ao Horácio. Por causa dele eu estava daquele jeito, pensando e
repensando o que eu havia feito… Culpando-me!
Como reação, cerrei os olhos e engoli o que me restava de dignidade.
E eu não iria chorar. De jeito nenhum. Chorar não cabia mais na minha
vida. Eu tinha de seguir em frente e arcar com as consequências da minha
escolha.
— Eu me confundi — acenei sem graça e me justifiquei com o óbvio, já
que palavras coerentes pareciam ter voado da minha cabeça para o céu antes
mesmo de o avião decolar.
Como o nosso cérebro nos coloca em armadilhas! Eu havia memorizado o
número da poltrona do meu algoz como se fosse a minha.
Aquilo era a comprovação de que eu colocara o Horácio em primeiro lugar
em minha vida, como se o casamento fosse me libertar das minhas aflições. Eu
sairia do domínio da minha família para cair em outro. Onde eu estava com a
cabeça?
Espera... Mas o que o carinha fazia sentado na poltrona que deveria ser do
meu “marido”? Logo me ocorreu que eu não estava tão errada, porque eu
mesma havia reservado os dois lugares.
Mas que se dane! Ele não vai aparecer mesmo.
Guardei a fadiga da discussão no campo do esquecimento.
Sebastián
Antonella
Saí de fininho do avião assim que as portas foram abertas. Passei o restante
do tempo da viagem fazendo uma força tremenda para dissimular meu
interesse, como se estivesse vendo algo muito bacana do lado de fora, no breu
do céu noturno. Isso porque a consciência me alertara de que eu não me
comportava de forma coerente ao lado do galã de olhos lindos. Era facinho
listar os furos:
Sebastián
Por mais que eu fizesse força para não ouvir meus instintos, eu não os
respeitei. No olhar da Antonella havia dor, embora ela parecesse se esforçar
para transparecer atrevimento. O rosto triangular enfatizava seu queixo
delicado sob a boca em formato de coração, o que provocou o encantamento
aos meus olhos. Há tempo eu não me comovia por uma lindeza assim… a
ponto de cogitar a hipótese de segui-la. Situação estranha.
Debati comigo mesmo se iria atrás dela ou não. Decidi ficar na minha. Se
fosse em outros tempos eu nem pensaria duas vezes, daria meu jeito de oferecer
carona a ela até Jericoacoara. Eu a escutara dizer que iria para o mesmo destino
que o meu, mas meu fogo estava morno. A responsabilidade profissional e
pessoal era um motivo para ficar mais na minha com relacionamentos
amorosos, ainda que ela parecesse interessante; a última afirmação era inegável.
Ainda assim, meu pensamento passeou pela imagem dos olhos caramelos
instigantes, foi impossível impedi-lo de sair vagando naquele mar âmbar. Eles
demonstravam cautela e súplica. Não por acaso, eu fazia força para me libertar
do desejo de ir atrás dela, sem sucesso.
Arranquei um suspiro do peito.
Quer saber, eu não iria me enganar com uma descrença fingida. Pelo visto,
a moça estava em apuros com seu translado até Jeri; pude ouvir algo que
denunciava seu problema. Talvez eu pudesse ajudá-la… nesse sentido.
— Senhora, eu vou fazer a reclamação outra hora. Preciso ir.
— Mas eu já iniciei sua solicitação do desvio da mala — a senhora disse
com voz de desgosto, erguendo a mão.
Parecia que a minha avó estava diante de mim. Ela não dispensava esse
modelo de óculos com armação de tartaruga, como a atendente usava em seu
rosto.
— Cancele, por favor. Eu faço outra hora.
— O senhor sabe que tem apenas sete dias a partir de hoje para registrar
uma queixa formal?
— Que seja. Eu dou um jeito de voltar outro dia.
Não tive dúvidas do que meu coração ordenava que eu fizesse. Enfiei o
documento na carteira e andei até as portas de saída.
Antonella parecia uma flor murcha sentada sobre a mala. Seu vestido
colorido rodava em torno do seu corpo. E ela estava… chorando? Parecia que
sim. A cabeça baixa e os ombros oscilando demonstravam que a situação não
era das melhores.
Meu coração perdeu o compasso e consagrou que eu deveria ajudá-la, sim.
Mulher em lágrimas era o cúmulo do sofrimento para mim. Quando
jovem, eu havia presenciado o martírio sem fim da minha mãe; então
acariciava seu cabelo e a consolava, semelhante ao que fiz com Antonella no
avião. Infelizmente, o que vi foi um déjà-vu daqueles tempos que eu gostaria
de apagar da minha memória.
Fiquei na defensiva, assim como ela se mantinha a maior parte do tempo
comigo, largando a todo instante a linguagem subliminar do “aqui é o meu
espaço e você fique na sua”.
Por Dios!
E se fosse minha irmã numa situação similar de desespero? Em um lugar
distante de casa e sem ninguém para lhe dar a mão?
Tomado pelo sentimento de solidariedade, dei poucos passos à frente e me
pus diante da moça que chorava intensamente. Estendi o braço e ofereci a mão
a ela.
Os olhos opacos se elevaram.
— Por que você está sen-sendo gentil comigo? Eu não fui legal com você.
Em definitivo, o choro dela partiu meu coração.
CAPÍTULO 5
— Que passa? Talvez eu possa ajudar.
Minha mão se mantinha evocando que ela se levantasse da situação
constrangedora.
— Vem.
— Ninguém pode me ajudar. Eu fui burra durante anos, não dizia o que
sentia para a minha família e para o meu noivo. Eu o abandonei no altar e
agora estou pagando o preço — a voz bamba se entrecortava com o choro.
Pelo visto a história seria longa, então resolvi me sentar ao lado dela.
Dobrei os joelhos e descansei os braços sobre as pernas, os cotovelos apontados
para os lados. Antonella estagnou o choro e olhou surpresa para mim.
— Você não pode ficar sentado no chão.
— Você é mandona, né?
— Eu não sou mandona — ela protestou em meio a uma fungada.
Abaixei a cabeça. Era mais seguro se eu não desse a chance a ela de
vasculhar minha expressão de “você parece que é sim”. A mulher era atrevida e
de pavio curto. Provocá-la não era a melhor escolha. Arrancar um riso genuíno
da boca sensual tornou-se meu objetivo.
— Se você pode ficar, por que eu não posso?
— Eu não estou sentada no chão. Estou sobre a mala.
— Não vejo muita diferença.
— Tá bom, Sebastián. Faz o que quiser.
— Guay! — Estiquei as pernas, descansei um tornozelo sobre o outro e
espalmei as mãos no chão um pouco para trás, bem relaxado.
Os olhos dela se alargaram como se eu fosse louco, mas eu não me
importei. A partir daí, Antonella passou a observar que as pessoas nos
avaliavam, coisa que também não me afetou. Tive a nítida impressão de ter
ouvido um gemido vergonhoso partindo dela. Logo depois, o rosto da moça se
avermelhou. Tan linda!
— Vocês estão precisando de transporte? — um rapaz, com uniforme de
uma das cooperativas de táxi, perguntou ao se aproximar.
Não era para menos, parecíamos dois maiores abandonados, largados na
calçada do aeroporto. E o rosto dela manchado pela maquiagem que escorrera
dos seus cílios, contribuía para a cena se transformar em um drama. Embora eu
soubesse que ela sofria por algum motivo, eu até estava me divertindo com a
situação.
— Sim — ela respondeu.
— Não precisamos, obrigado — rebati.
— Como assim, não precisamos? — ela virou o rosto para mim, com uma
expressão de surpresa e revolta. — Você não pode falar por mim.
— Eu ouvi você dizer que está indo para Jericoacoara. Também vou para
lá. Então pensei…
A testa dela franziu e as sobrancelhas arqueadas despencaram.
— Você ficou prestando atenção no que eu falei para a senhorinha? — ela
sorriu de um jeito malicioso. Talvez estivesse mais para irônico. Fui pego de
surpresa pelas múltiplas facetas de humor da Antonella.
Tá certo. Eu estava mesmo. Não mentiria. Ainda assim, eu me defendi.
Não iria permitir que ela sempre desse a palavra final em tudo. Soprei o ar, um
pouco contrariado. Nós mal nos conhecíamos e eu estava aceitando facilmente
essa troca de farpas.
— Você falou alto.
— Não falei não.
— Agora, Antonella, você está me ofendendo.
— Eu, te ofendendo?
— Você me chamou de mentiroso.
— Há. Se a carapuça serviu — ela me provocou com a risadinha e a cabeça
se remexendo de um jeito tão ou mais debochado que sua expressão e tom de
voz. A moça conseguiu me tirar do sério.
— Há. Há — repliquei e olhei para frente, retornando à posição anterior
dos joelhos dobrados, refletindo que o meu comportamento era como se
voltasse no tempo da adolescência.
Em seguida, eu a ouvi dizer.
— Moço — um silêncio se fez na sequência. — Ué? Cadê o rapaz do táxi?
Minha cabeça pendeu para trás e disparei a rir. Não me contive. Meu
humor estava se alterando, assim como o dela, o que há tempos eu não me
permitia fazer. Cuidar das minhas emoções era algo necessário desde muito
jovem. Mente equilibrada é vida harmoniosa.
O que sei é que o cara havia saído de fininho para bem longe dos dois
malucos que discutiam, sentados na calçada: nós!
Para minha surpresa, ela gargalhou tão alto que me chamou atenção. Ergui
a cabeça e fitei os lábios, enfim, moldados por um sorriso aberto, aquele que eu
tanto almejava descobrir como era. O mais lindo de todos que já tinha visto.
— Passada! — Antonella se expressou.
— Não acho que o rapaz nos considerar loucos seja algo tão surpreendente
— fiz a observação e empurrei a perna dela com meu cotovelo.
Seus olhos se voltaram para os meus, a testa franzida, os lábios entreabertos.
— Eu quis dizer que estou mortificada, sem graça. Sem querer acreditar
que ele nos taxou como loucos.
— Ah! Entendi. Pasada em espanhol é usado para falar sobre coisas
surpreendentes, instigantes.
— De um jeito meio louco, nós estamos fazendo algo surpreendente. Olhe
como estamos. Não é usual ficar sentada sobre uma mala e, ahhh, chorar — ela
abriu os braços.
— Se estivéssemos fazendo algo instigante seria melhor, não acha? —
pisquei para ela na pretensão de fazê-la sorrir.
Como eu esperava, Antonella não entrou em meu jogo e emudeceu. Logo
depois, ela se levantou e ajeitou o vestido longo com as mãos, tirando as rugas
do tecido. Eu imitei o movimento e fitei seu rosto que ainda permanecia lindo
para ser admirado, apesar dos borrões da maquiagem.
— Eu preciso procurar um hotel para me hospedar.
As mãos dela enrolaram o cabelo várias vezes, como fizera no avião.
— Mas obrigada pela oferta. Estou muito cansada para encarar mais uma
viagem. Vou ficar em Fortaleza mesmo. Desculpe se não fui, hum, muito
simpática com você. É que…
— Linda, só vou aceitar suas desculpas se você for comigo. Não há por que
negar, estamos indo para o mesmo lugar e você perdeu o transfer.
A cabeça dela devia fervilhar interrogações naquele instante. O rosto
franziu e a boca foi para um lado. Eram expressões que ecoavam seus
pensamentos dúbios.
— E se você for um psicopata ou um assassino? Vou estar em suas mãos se
aceitar sua carona.
Que chica desconfiada!
Isso fez meu sangue ferver. Alguém julgar o meu caráter era um assunto
que, quando vinha à tona, mexia em uma ferida ainda não cicatrizada. Olhei
nos olhos caramelos dela com tanta profundidade que pensei que ela cederia,
mas seu olhar gélido me fuzilava em um jogo de quem sairia vencedor na
persistência de sobreviver a um embate.
Tão bonita e tão cismada. Mas eu a entendia.
Atraí o ar para os meus pulmões após puxá-lo com força. No minuto
seguinte, procurei ser o mais coerente possível com Antonella. Eu me conhecia
e sabia quem eu era, um espanhol que viera cuidar de negócios no Brasil, mas
ela não.
Antonella
Não sei explicar o que presenciava diante dos meus olhos, mas as narinas
do Sebastián se abriram como asas, de tão indignado que ele pareceu ficar com
a minha recusa, ou… Talvez não fosse isso. Creio que foi minha insinuação de,
supostamente, ele ter a intenção de se aproveitar do meu estado vulnerável.
Tá. Eu havia sido injusta com ele mais uma vez?
Acabei me sentindo péssima.
Ok. Pode ser que eu estivesse pegando pesado com ele, ainda assim me
mantive firme, encarando seus olhos, lugar perigoso. Aquela ligação inesperada
poderia surgir outra vez. O divertido era que parecíamos um par banal de
namorados ou velhos amigos em um momento de discussão. Como isso era
possível, se havíamos nos conhecido há pouco mais de três horas?
Foi impossível não me recordar da minha mãe. Nos raros momentos de
lucidez materna, ela me aconselhava a ter cuidado com os homens, em especial.
Não que Horácio fosse um namorado ruim, pelo contrário, ele era amoroso,
atencioso, mas meu coração não era dele. Eu estava vivendo há anos uma
meleca sentimental por culpa minha. Eu havia me jogado em um
relacionamento por conveniência familiar, que parecera à primeira vista
promissor, mas acabou sendo uma grande furada. Em definitivo, afastar-me de
Sebastián era prioridade, claro, antes de eu buscar um lugar para pernoitar.
— Vamos combinar o seguinte, eu vou voltar para registrar o extravio da
mala enquanto você procura o hotel para se hospedar. Se não conseguir, minha
oferta ainda estará valendo.
Pensativa, mordi o lábio. Ele suspirou. Eu contive um riso.
Minha coerência me forçou a ser razoável com o galã-espanhol. À essa
altura, ele havia dito a sua nacionalidade enquanto conversávamos aguardando
o atendimento da administração do aeroporto.
— Justo — estendi a mão para ele e fechei o acordo como se fosse algo
profissional.
Sebastián comprimiu sua mão na minha, não de um modo que a fizesse
doer, mas com firmeza, reafirmando o seu apoio. Foi bom sentir que alguém se
importava comigo. Se não fosse Heloísa para me socorrer quando precisei de
ajuda, depois de ter corrido do altar, eu estaria lascada, uma vez que não havia
contado com o apoio dos meus pais.
— Então eu vou lá — o dedo dele apontou para a porta de vidro. — E
aguardarei sua resposta.
Com meu gesto de cabeça, firmamos o acordo.
Logo que ele se foi, impulsionei meus olhos para checar como ele era de
costas. Ombros não tão largos, mas não minguados, estavam no ponto certo
para incentivar os olhares arfantes de duas mulheres pelas quais ele passava.
Notei que elas se entreolharam e trocaram conversinhas baixas. Uma delas
desceu seu olhar para a bunda dele, inclinando a cabeça para o lado…
Também não tive como evitar e olhei. E seu traseiro, era uma curiosidade
natural.
— Isso é covardia comigo, meu bom Deus!
Sem que eu esperasse, ele facilmente me pegou desprevenida ao virar meio
corpo e olhar para trás. Mancada clássica. Balancei nos calcanhares, tão
embaraçada que me senti. Por instinto, abaixei o olhar para o celular, o qual
revelava minha imagem. Vi que meu reflexo era crítico e assustador. Em
definitivo, eu precisava de um banho calmante e uma cama, além de lenços
para retirar a maquiagem desmanchada.
No segundo seguinte, ao ligar o aparelho, meus ouvidos registraram
inúmeros bip´s de mensagens. Curiosa, entrei no aplicativo de conversa e
parecia que o mundo inteiro sabia meu número. Suspirei, cansada, mas dei
uma espiada na última linha escrita por Heloísa.
Helô: Assim que desembarcar, preciso falar com você. É urgente.
Ah, a Heloísa poderia esperar. Urgente mesmo era encontrar um local para
me hospedar.
Por fim, ignorando a súplica da minha amiga, comecei a zapear o celular,
pesquisando hotéis em Fortaleza cujas diárias coubessem em meu bolso.
Assumi que meu desalento tinha de ser curtido em minha solidão.
CAPÍTULO 6
— Eu não entendo como um congresso de medicina pode lotar os hotéis da
cidade. Liguei para mais de quinze — informei a ele e soltei um gemido de
exasperação.
Sem querer, minha perna esbarrou na da moça sentada ao meu lado após
me jogar, exausta, na cadeira.
— Desculpe.
Somente então percebi que os olhos bobos dela estavam direcionados ao
meu recém-conhecido, vulgo Sebastián. O rosto dela enrubesceu mais que sua
camiseta vermelha ao perceber que eu havia notado a sua quedinha pelo
espanhol.
Ri por dentro.
É, o cara estava causando suspiros no aeroporto.
Olhei para ele e, em uma atitude duvidosa, Sebastián fechou com
premência um jornal que lia. Enfiou-o entre sua perna e a divisória que nos
separava. Também pudera, eu tinha chegado tagarelando no ouvido dele! A
rebeldia se instalara em mim desde que eu havia caminhado de braços dados
com meu pai até Horácio. De certo, com um atraso de anos. Lugar errado,
hora errada para eu decidir me rebelar.
Que seja!
— Então você vai aceitar a minha oferta e ir comigo para Jericoacoara? —
ele retesou o rosto, o pescoço deu uma alongada de leve.
Interpretei como se estivesse em expectativa da minha resposta. Foi legal da
parte dele me oferecer carona. O mínimo que me cabia fazer era ser educada.
— Bom, a que horas partimos?
— Agora mesmo. Vamos?
No instante seguinte, ele estendeu a mão ao se levantar. Soltou um
sorrisinho e espalmou sua mão na minha. Foi repentino e intenso o que senti
se infiltrando por minha pele, um calor forte preencheu meu peito e seguiu até
o abdômen, onde se instalou com uma fisgada ocasional.
Ficamos por alguns segundos nos observando. Espremi o cérebro para me
recordar quando foi que havia sentido algo repentino e forte por Horácio.
Talvez quando nos conhecemos na casa da minha tia. Talvez… nunca?
Infelizmente, ele não possuía olhos felinos, fontes de uma hipnose natural, tais
quais os do Sebastián.
Pisquei. Pisquei mais uma vez. A coerência retornou ao cérebro e, então,
gesticulei meio sem controle.
— Para que lado vamos?
Sebastián voltou a se conectar à realidade com uma raspada de garganta.
— Ah, sim. Em direção a área de embarque de aeronaves menores.
Passei a mala de uma mão para a outra.
— Não entendi.
— Venha, eu te mostro — assim que falou, segurou a alça da minha mala
em um gesto de cavalheirismo.
Algo que me chamou atenção nele foi a sua generosidade. A todo instante
ele demonstrava sua conduta correta, transmitindo segurança. Isso me
impressionou, dado o cenário caótico em que eu vivia, por escolha própria, eu
sei. Admito que encontrá-lo foi como avistar uma flor de lótus em águas
lodosas. Única e bonita.
— Pensei que fôssemos sair daqui e ir para outro lugar, tipo o
estacionamento dos transfers.
— Não. Nós vamos para a área de embarque de aeronaves menores.
Nem fui capaz de ouvir o que ele dizia, estava magnetizada por seu olhar.
— Ahhh!
— Você tem medo de helicóptero?
— Desde que não passe por uma turbulência, não tenho.
Fiz careta.
— A última foi tensa.
— Ô, se foi. Nunca tinha acontecido comigo.
Eu estava acostumada a viajar de avião, mas sabia que talvez eu não tivesse
mais condições de me aventurar por aí com tanta frequência, viajando.
Precisaria viver apenas com minhas economias daquele dia em diante.
Ele aquiesceu com um aceno de cabeça e colocou o jornal na lixeira ao
lado. Sinceramente, não entendi a atitude do Sebastián em descartar o
impresso. As reportagens não eram interessantes?
— Mas por que a pergunta sobre eu ter medo de helicóptero?
— Ora, porque vamos para Jericoacoara em um.
— Verdade? Helicóptero?
Tive a impressão de ter visto um vislumbre de sorriso se estendendo nos
lábios estreitos. Ou ele era o dono da aeronave, ou possuía grana suficiente para
pagar uma ida a Jeri com um valor mais salgado. Registrei umas poucas rugas
no canto dos olhos; elas denunciavam que ele era um homem com mais de
trinta anos e com pinta de bem-sucedido, embora se vestisse informalmente.
Seguimos pelo corredor, obviamente em um ritmo mais apressado. Como
eu suspeitava, havia atrasado a ida dele a Jericoacoara, lugar paradisíaco.
Em um primeiro momento, decidi que não perguntaria a Sebastián sobre a
procedência do helicóptero, logo em seguida desisti de não querer saber. Então
jorrei a pergunta que não emudecia em meus pensamentos:
— Ah, você alugou um helicóptero?
Ele negou com a cabeça, em uma resposta tão objetiva quanto o meu
questionamento, deixando-me numa imensidão de curiosidade. Sem ter como
especular a verdade, o que me restou foi segui-lo pelo caminho em direção a
uma sala reservada de embarque para aeronaves de menor porte.
A cisma sobre ele ainda persistia, apesar de tudo. A gente fica sabendo de
tantas histórias escabrosas que acontecem pelo mundo afora. Todo cuidado era
pouco. Ele poderia ser um pedaço de mau caminho por baixo desse ar de
cavalheiro...
Então me convenci de que estava sendo paranoica.
Só que... Chegando na sala de embarque, meu coração entrou em colapso.
Sebastián
Andar pela rua de areia com uma mala sendo equilibrada nos braços a cada
passada, definitivamente não era meu sonho na cidade do amor. O que deveria
ser um charme rústico – o piso da cidade era a própria areia da praia –estava
sendo meu pesadelo. Sério. Tentem andar em uma rua arenosa com uma
tonelada de calcinhas e sutiãs pesando a mala. Como divar desse jeito?
Saco.
O abandono, o perigo, seja lá o que circulava de emoções doentias em meu
sangue, despertaram o instinto da busca por proteção. O receio do novo
pulsava nas têmporas. O estômago ardia em expectativa. O coração batia sem
sincronia.
Então uma voz sussurrou no fundo da minha mente, sugerindo que eu
deveria ligar para a minha avó, a única pessoa em quem eu confiava além da
Heloísa. Ela era dona da escola onde eu trabalhava desde que me formei em
Pedagogia sob protestos do meu digníssimo pai, o que fiz de bom grado.
Desafiá-lo sem um confronto direto era algo que eu amava de verdade fazer.
Parei na esquina entre a ruela do hotel e a avenida principal da cidade.
Olhei sobre o ombro e me despedi do hotel dos sonhos.
Soprei o ar.
Mala, mala, vamos voltar para o meu colo.
De repente, quando estava no movimento de inclinar o corpo para frente,
senti dedos compridos cunharem meu braço.
Sebastián
Calebe: 👍 Então vou pra casa. Amanhã precisamos nos reunir para repassar o que aconteceu por
aqui durante sua ausência.
Antes de desligar o Wi-Fi enviei mensagem para a minha avó. Ela não
respondeu de imediato. Era provável que estivesse dormindo. Tudo o que eu
mais queria naquele instante era um banho de piscina e depois dormir.
Antonella
Formidável, essa era a palavra que melhor exprimia o que meus olhos viam.
Da varanda do chalé do Sebastián eu admirava a paisagem, tomando água de
coco.
Voltei os olhos novamente para aquela visão incrível, que era tudo e muito
mais do que eu imaginara presenciar ao vivo e com muitas cores. Eu já havia
viajado para inúmeros lugares mundo afora, ainda assim, aquele litoral não
deixava nada a desejar.
Meu coração dava saltos a cada onda que se quebrava na praia e espalhava a
espuma esbranquiçada pela areia, a cada kitesurfista que desempenhava as
manobras sobre as pranchas na água salina, conduzidos pelas pipas, que
coloriam o céu azulzinho.
Lindo demais!
Então lembrei-me do quanto vivia iludida no meu relacionamento,
tentando me convencer de que estava feliz com o Horácio e que a nossa lua de
mel seria construída por cenas românticas. Que ficaríamos deitados na rede e
faríamos um sexo gostoso na piscina particular de um dos quartos do hotel. Ou
que usufruiríamos do bangalô chiquérrimo da praia, com garçons nos servindo
bebidas e petiscos. Mas essa orgia gastronômica e sexual foi se revertendo em
agonia à medida que o dia do casamento se aproximava.
Por que, meu Senhor? Por que eu não podia simplesmente amar Horácio e
me fartar com seu carinho por mim?
Meu ex-noivo era um gato, não havia lugar onde olhos maliciosos não
estivessem a postos para percorrerem avidamente seu tônus muscular, sua
estatura de um metro e oitenta e sete, para ser mais específica. Seus olhos
amorosos que me veneravam dia após dia, desde os meus quinze anos.
Ô Vida!
Ainda assim, foi melhor assumir que não o amava o suficiente para
constituir uma família de três filhos — que estavam nos planos dele, alinhados
com nossas famílias. Nenhum deles me perguntava sobre minhas vontades;
simplesmente decidiam por mim. E minha mãe era omissa. Para viver com
meu pai, ela perdera a sua própria voz.
Beberiquei a água, sorvendo o máximo que pude do canudo até engasgar.
Tossi e tossi. Eu merecia.
Como doía saber que Horácio sofria. Estar com ele no aeroporto e ver de
perto o efeito apocalíptico causado por mim em suas emoções foi a gota d’água
para me culpar pelo resto da minha vida.
Gesticulei a cabeça positivamente. Ser piegas não fazia meu estilo. Eu tinha
de seguir adiante. “Foi melhor assim”, eu dissera a ele. Essas palavras comuns
me convenceriam a lutar pela minha liberdade e ideais, além de orgulhar
minha avó, mulher de fibra que não se deixava abater pelos reveses da vida.
Cerrei os olhos e permiti que o vento alisasse meu rosto na varanda dos
sonhos. Bateu uma saudade indescritível dela.
Vovó era meu porto seguro emocional. Quando retornasse ao Rio, morar
com ela seria uma possibilidade.
Mais otimista depois do apoio incondicional que Sebastián me dera
naquela madrugada, decidi ficar em Jeri.
Sebastián, incansável, permanecera ao meu lado ouvindo minhas
lamentações, porque eu não conseguia falar em outra coisa a não ser sobre a
culpa que eu sentia. Ele me acalmou e me convenceu a ficar um pouco mais até
esfriar a cabeça.
E… tudo bem. Por que não me dar esse benefício?
Que seja!
CAPÍTULO 10
Heloísa: Como você está, amiga? Manda um “oi” para eu saber se está viva. Tentei alertar sobre a ida
do Horácio, mas…
Eu: Eu sei. Quando li sua mensagem, já era tarde. Não consegui me preparar para o encontro. Ai,
amiga, essa foi a pior conversa de toda a minha vida. Mas sobrevivi. Vamos todos sobreviver. Helô, nem
te conto onde estou. Lembra daquele “tudo de bom”, o homão que você sugeriu que eu desse uma
paquerada no aeroporto? Pois é, estou na casa dele. Acredita? Depois falo como vim parar aqui.
Adianto que ele é dono do hotel e está me tratando como uma princesa até agora. Bom, fique
tranquila. Estou bem.
Mãe: ANTONELLA… Eu ainda não consigo ACREDITAR na vergonha que você nos fez passar. Garota,
você ultrapassou todos os limites. Entre em contato. Seu pai está muito mais que furioso.
Óbvio que ele estaria. Isso não era nenhuma surpresa. Meu pai havia
bloqueado todas as minhas contas, sorte que eu tinha aberto uma, onde recebia
meu salário de professora.
Zapeei o celular para conferir. Ótimo, nenhuma mensagem do senhor-
todo-poderoso-meu-pai. Ufa! Isso não era um sinal maravilhoso, mas eu estaria
a salvo de suas palavras duras.
Um dia ele entenderia que eu não desejava passar a vida sendo rotulada
como filha do fulano, ou nora do ciclano... Não cabia em meus planos ser uma
pessoa sem personalidade própria. Ganhar meu espaço através das minhas
qualidades e esforço não era pecado algum. Como não era errado ter dinheiro,
só que não às custas de vender a minha alma.
Mais trocentas mensagens de “amigas” e alguns repórteres, que eu não sabia
como haviam conseguido o número do meu celular, querendo agendar
entrevista.
Vó: Minha neta, conte comigo para o que precisar. Você chegou bem no Nordeste? Não se esqueça de
que a porta da minha casa estará ESCANCARADA para recebê-la no seu retorno. Beijos de quem te
ama, vovó. Se precisar de um dinheiro para as despesas, conte comigo.
Ah, como não se emocionar por ser amada e entendida por alguém que
tinha o meu sangue?
Eu: Vó, vou precisar da passagem de volta. O Horácio que tinha comprado. Bom, quando puder, me
chama.
O ar marinho se infiltrou pela boca até meus pulmões e saiu de uma vez
com um suspiro de desabafo e alívio. A imagem do rosto transtornado do
Horácio, em uma súplica silenciosa para eu não sair daquela igreja sem ele,
ainda rondava minhas lembranças. Havia sido muito duro. Mas, como disse a
ele e à Heloísa, nós sobreviveríamos a esse episódio. O tempo cura as feridas.
✵
Meia hora depois, eu soltava suspiros seguidos a cada pão, doce e geleia que
comia. A lista era imensa. Ainda existia um cardápio complementar. Então
pedi mais umas coisinhas, como ovo mexido e um sanduíche de queijo brie e
presunto fresco.
— Obrigada, Sebastián.
Ele oscilou os ombros, sem entender meu agradecimento. Mordisquei um
biscoito delicinha com o formato de estrela do mar.
— Não vou mentir. Eu estava morrendo de fome. Antes que você diga
“Não disse?”, eu estou me antecipando e afirmando que você tinha razão. Mas
não se acostume muito a me ouvir dizer isso em voz alta o tempo todo, ok?
Claro que Sebastián não deixaria escapar uma ironia. Então dissimulou
escrever no papel em sua mão.
— Anotado o recado.
Rimos alto, mais descontraídos.
— Só quando comecei a comer percebi o quanto estava esfomeada.
Sob o teto de palha sustentado por toras de madeira, com a brisa marítima
refrescando a pele e o estômago já satisfeito, eu me sentia outra. Com menos
quilos de opressão sobre as costas, idem. Sebastián estava sendo uma
maravilhosa companhia e, com seu jeito prestativo, fazia de tudo para eu não
retomar ao ponto de partida do sentimento de culpa.
Peguei a xícara. Eu tomava achocolatado e a revesti com minhas mãos,
sentindo o calor envolver minha sensação física, porque a emocional fora
controlada pela atenção que ele despendia a todo instante para mim.
— O hotel fica sempre cheio assim?
— O ano todo — ele respondeu e permaneceu fazendo anotações em um
bloco.
Diante de Sebastián, notei que os olhos astutos percorriam o salão com
mesas e cadeiras de madeira escura e refinada, por onde os garçons
ziguezagueavam prestativos, atendendo os hóspedes. Notei que os funcionários
eram um reflexo dele, de sua educação e alegria. Captei outra coisa
interessante… embora Sebastián demonstrasse uma postura relaxada, ele
cuidava do que era seu, as antenas estavam literalmente ligadas, sem abandonar
o sorriso simpático para quem o cumprimentava.
— Faz sentido e é merecido que o seu empreendimento tenha sucesso. A
qualidade do atendimento e disso tudo – girei as mãos no ar com o propósito
de englobar todo o local. — Isso tudo é massa! Nunca iria imaginar que ouviria
música ao vivo no café da manhã de um hotel.
— Precisamos oferecer um diferencial aos hóspedes, ainda mais sendo no
início da semana, quando as taxas de ocupação normalmente caem. Como não
servimos almoço, estendemos o horário do desjejum por mais uma hora que o
normal das outras hospedagens.
Ele beliscou uma rodela de kiwi.
— E, cá entre nós, com essa vista…
Nem precisei dizer mais nada.
Enquanto nossos ouvidos se saciavam com as notas das músicas de MPB
que escapuliam suaves dos lábios da cantora, as folhas dos coqueiros bailavam
com o sopro constante do vento, na orla da praia. As castanheiras não ficavam
aquém e disputavam com os amigos coqueiros quem sacudia com mais eficácia
suas folhas. Era bonito ver a natureza trabalhando em conjunto. Os
ombrelones brancos na faixa de areia que ladeava o hotel após o calçamento de
madeira ripada, protegiam os hóspedes que se regalavam com bebidas e
petiscos oferecidos no cardápio.
Meus dedos não se seguraram quietos e tamborilaram na maçã do rosto, o
queixo apoiado na palma da mão, com os nervos assentados em uma paz
imprevista. Notei que Sebastián sorriu, satisfeito, embora não abandonasse a
escrita no papel.
Ficar ali contemplando a natureza do lugar bucólico não era opção, era um
alívio para as emoções. Foi o mais próximo de um sentimento de paz que tive
naqueles últimos dois dias.
— Olha quem eu vejo — Sebastián largou a caneta e fechou o bloco sobre
a mesa, o que atraiu minha curiosidade para o que de fato estava escrito, e
bagunçou a cabeça de um menino.
Notei que o garotinho, arrisco dizer que ele tinha uns seis anos, se esquivou
do contato do Sebastián. Como professora, eu observava as atitudes das
crianças.
Calebe chamou minha atenção, ele vinha do corredor de paredes terrosas e
vasos pequenos com inúmeras plantas verdes. Logo captei que a criança deveria
ser o Miguelzinho, o filho do ruivo. Nem se eu não o tivesse ouvido mencionar
que era pai, eu teria certeza de que os dois eram parentes. Cabelos da mesma
tonalidade, semelhantes ao do Ed Sheeran, e o mesmo sorriso estendido no
rosto em ambos.
— Senta aqui, rapaz — Sebastián indicou a cadeira, puxando-a para trás.
O menino piscou algumas vezes e seus olhos, quando se acalmaram,
viajaram para outros lugares, dispersos e livres da atenção do tio postiço. Deu
alguns passinhos sobre as pontas dos pés em direção ao caminho que conduzia
à praia, mas o pai o alcançou, o trazendo de volta para nós.
— Oi, Antonella! E aí? Está gostando do estabelecimento? — Calebe
perguntou, educado.
— Muito. Melhor impossível. Depois estou pensando em descansar na
rede sob aquela castanheira — apontei com o nariz para o lado.
— Jeri é o melhor lugar para recarregar as energias. Mas se quiser
adrenalina, sugiro que tenha aulas de kitesurf com Sebastián. Ele é o melhor da
região.
— Sério? — perguntei ao próprio.
— No. No. No. Eu posso até ensinar, mas a parte que sou o melhor não é
verdade.
— O chefe é modesto — Calebe bateu no ombro do outro.
Sobre as vozes masculinas, ouvi que a moça informava que cantaria mais
duas músicas somente, pois o café se encerraria.
Miguel tampou os ouvidos com as mãos e Calebe endureceu a expressão.
Logo em seguida, pude entender melhor a reação paterna. Ele previa o que
aconteceria na sequência.
— Miguel, não grite, meu filho. Olha, o pai vai te levar à escola depois.
Preciso trabalhar primeiro — Calebe se agachou para que seus olhos se
nivelassem aos do filho; a voz não saiu densa e seu olhar era permeado de
carinho.
No mesmo instante, Sebastián, ao perceber o que acontecia, foi à cantora e
solicitou que ela terminasse a apresentação. Suspeitei que Miguel era um garoto
diagnosticado com TEA, portador de espectro autista.
— Desculpe, Antonella. Meu filho não se sente bem em lugares com som
alto. Eu deveria ter me atentado de que hoje seria dia de música ao vivo. Mas
minha família foi embora e eu não tinha com quem deixá-lo antes de levá-lo à
escola.
Acenei que não se preocupasse, indicando que as desculpas não precisavam
ser ditas. Recebi um sorriso sem abrir os lábios e um suspiro seguiu num ato de
alívio. Parecia que Calebe estava cansado, as olheiras o denunciavam.
— Se eu te disser que também não sou muito fã, você vai acreditar? Então
não esquenta.
Trocamos um sorriso cúmplice
— Obrigado.
Ele dobrou os joelhos e ergueu o menino do chão, abraçando-o.
Sebastián
Como se estivesse jogando bola, chutei a água espumosa que chegou aos
nossos pés. O sol estava ameno, encoberto por nuvens esparsas. Eu e Antonella
caminhávamos na beira do mar, captando a energia da força da natureza.
— Estou me sentindo mais revigorada. Este lugar é mágico. Não sei se
mereço estar aqui.
— Não seja tão dura com você, chica. Você abraçou a verdade. A sua
verdade, não foi? E ela é certa para você.
Ela fez que sim com a cabeça, embora estivesse fitando o chão de areia.
Pude ver que a culpa estava gravada em sua feição. Eu queria muito motivá-la.
Antonella parecia ser uma moça de princípios firmes, de acordo com o que ela
dissera durante seu desabafo.
— Creio que sim. Sim. Ela é.
— Eu a admiro por ter tido coragem para mudar. Sair da zona de conforto,
sabe? Eu só consegui fazer isso quando cheguei ao fundo do poço.
Raspei a garganta. Acabei falando demais. Sorte que seus pensamentos
distantes a distraíram e ela não ouviu o que eu havia dito. Melhor assim. Não
era meu hábito falar sobre a minha vida particular.
— Acho que somente três pessoas me admiram.
Seus lábios de coração se uniram em um bico. Por mais que eu fizesse força
para vê-la como hóspede e uma futura “amiga”, era impossível não notar como
Antonella era gata.
— Você, minha avó e minha amiga, Heloísa, a que estava no aeroporto
comigo quando nossas malas se conheceram — ela me deu um sorriso tímido.
— Você deve ter visto a Helô. Uma loira.
Se eu dissesse a ela que, apesar da situação e da pequena discussão naquele
dia, minha atenção estivera totalmente voltada para a cor dos olhos caramelos
diante de mim, me fuzilando…
— Não me lembro. Eu estava com pressa.
O sorriso irônico com os lábios unidos foi disparado para mim.
— Hum. Hum.
Irrompemos em um riso contínuo.
Gostei de vê-la em nosso momento de descontração.
— Você já parou para pensar que crescer dói? Não é fácil. Tira a gente da
zona de conforto.
Ela me olhou, pensativa.
— É verdade.
— Não deixe morrer sua vontade de fazer o que gosta, principalmente seu
plano de tocar seu projeto educacional. Sua motivação vai estar aí.
— Mas como? — Antonella expirou toda sua ansiedade por realizar aquilo.
— Sem dinheiro, não conseguimos fazer nada. Não gostaria de pedir nada ao
meu pai. Nem convém fazer isso depois de tudo.
— Nem sempre precisamos de dinheiro para realizar um sonho. Você vai
sentir quando a oportunidade chegar. Vai dar certo.
— Mais uma frase motivacional?
— Sempre.
O silêncio se instalou por alguns segundos. Eu podia ouvir as engrenagens
do cérebro da Antonella trabalhando junto aos sons da natureza e o zum-zum-
zum das vozes dos turistas.
Minutos se passaram, até que ela quebrou a nossa mudez de palavras,
porque os pensamentos estavam em polvorosa, pelo menos os meus estavam.
Eu fazia de tudo para não checar o corpo da moça. Ela havia amarrado a canga
na cintura depois de dar várias voltas no tecido que somente cobria a bunda
dela. A cintura delgada, o cabelo tocando os seios, as coxas torneadas à mostra.
— Como você veio parar aqui? Quer dizer. Saiu da Espanha direto para
Jeri?
— Vim com... um amigo passar uns dias aqui e estou há quase oito anos.
Um ano e pouco foi durante a construção do hotel.
— Hum.
Ela ergueu as sobrancelhas, indicando que eu tinha dado uma bandeira
enorme e que não havia conhecido a vila por intermédio de um “amigo”. Ela
prosseguiu com o assunto.
— Quando saí correndo da igreja e peguei carona no primeiro carro que
passou na rua, este seria o último lugar que pensei em vir, mas não está sendo
tão ruim.
— Obrigado pela parte que me toca.
Dei uma olhada ligeira no rosto dela, mas sua expressão se mantinha
impassível. A possibilidade de estar revivendo o momento da escolha de largar
tudo para trás era tão certa quanto sua beleza. Seus pensamentos oscilavam
entre culpa e a tentativa de superar a situação. Normal.
— Mas, me diz, você entrou mesmo num carro de um desconhecido?
Antonella, que imprudência?
— Ou eu entrava no carro ou meu pai comia meu fígado.
Gargalhei, jogando a cabeça para trás.
— Você fala cada pérola.
— Se você conhecesse o velho…
— Você diz isso porque não conhece o meu — confessei e logo me
arrependi.
Falar sobre o meu pai era tocar em uma ferida que não convinha que
voltasse a doer.
Outra vez, fizemos uma pausa na conversa.
— Oi, Ozzy! Também estava com saudade de você, moleque.
— Que beagle lindo! Eu amo a pelagem em três cores dessa raça. Ele é de
quem?
— Do dono da pousada vizinha. Está sempre pela praia. Fujão, não é,
Ozzy?
— Au!
— Ele morde?
— Nada.
Eu me agachei e a convidei com os olhos para fazer o mesmo. Encostei o
meu rosto no focinho dele.
— Mansinho.
Enquanto Antonella acariciava o Ozzy, a vida em torno de nós se
manifestava. Uma menina construía um castelo de areia com o pai. Dois jovens
davam cambalhotas. O sol do meio-dia castigava a pele. O calor se entranhava
no corpo. Meus poros transpiravam com o estímulo dos pensamentos mais
arfantes que estavam se avolumando em minha cabeça e sensações. Fiz força
para me controlar. Ainda mais depois de tudo que ela tinha passado nos
últimos dias. Confiança em alguém sem segundas intenções era o que
Antonella precisava. E eu estava disposto a proporcionar momentos incríveis
para ela, à beira mar.
Na direção dela, foi irresistível não chutar um monte de água que viera
com uma onda.
CAPÍTULO 11
Equilibrando-se entre o movimento marinho, Antonella tentou me seguir de
perto enquanto eu escapava do fluxo de água que ela jogava com as mãos, pés,
do jeito que conseguia dar o troco em mim por tê-la molhado sem um aviso
prévio.
— Volta aqui, Sebastián. Você tirou sarro comigo, agora vai ter que
aguentar.
Desviei o percurso beirando a areia e Antonella agarrou minha camiseta,
mas consegui me esquivar de sua mão e me livrei da peça, arrancando-a do
meu corpo. Parecíamos dois adolescentes curtindo um verão numa praia com
as brincadeiras próprias da idade. Dei um mergulho longo e furei uma onda
baixa. O mar não estava revolto, uma perfeição para tomar um banho
tranquilo, tanto que os pais das crianças maiores as vigiavam de longe.
A água morna, como sempre, levou conforto ao meu corpo, além do
sentimento de gratidão por estar usufruindo daquele instante. O mar de
Jericoacoara não decepcionava. Nunca.
Ainda com os olhos fechados, quando emergi, meio que em comunhão
com a natureza, uma quantidade de água alcançou meu rosto. Engasguei. Era
Antonella.
— Ah, é? Você quer ver quem arranca mais água da superfície? — disse a
ela assim que me recompus.
— Eu sou cria de praia, meu filho. Você veio de onde mesmo?
— Madri.
— Há. Há. Então, no máximo, você tinha um lago no seu quintal e um
castelo ou outro para se divertir. Eu tenho o mar de Ipanema. Quer dizer,
tinha. Meus pais se mudaram para uma mansão na Barra da Tijuca há menos
de um ano, não mais de frente para o mar.
— Você não está muito atualizada com geografia, não é? Na Espanha
temos praias também.
E recebi um pouco água no rosto.
— Ei!
Retribuí sem pestanejar. Fomos nos aproximando em busca de arremessar
mais água um no outro. Eu ria. Ela gargalhava. Eu aumentava o tom do riso.
Ela se divertia. Eu ainda mais.
Sem mais nem menos, uma ondulação nos pegou desprevenidos. Aquela
coisa de desequilíbrio me deixou totalmente consciente de que nossos corpos se
tocaram de uma forma meio desengonçada, minhas mãos tolas foram à cintura
dela para dar sustento às suas pernas. Foi um grave erro. Criticamente eu me
condenei, mas não pude deixar de me afetar por aquele corpo escultural.
Meu olhar ardente se prendeu a um ponto acima do queixo, a boca
carnuda entreaberta, os olhos fixos nos meus me queimavam de modo que
senti um arrepio de súbito.
Segundos se passaram parecendo horas sob o sol não tão escaldante,
embora fosse o suficiente para iluminar as íris que se acenderam em raios
esverdeados misturados ao âmbar, abaixo dos meus.
— Outra onda — eu a ouvi dizer.
Foi a minha salvação.
Soltei minhas mãos da Antonella como se estivesse me queimando em
brasas. Nós nos abaixamos em um mergulho já a uma distância segura.
Quando emergimos, minha consciência me alertou para voltar ao hotel e me
concentrar no trabalho.
— Eu marquei uma reunião com Calebe. Ele vai me colocar a par de tudo
que aconteceu na minha ausência — informei a ela, olhando-a fazer um
movimento circular com os braços, empurrando e depois puxando a água para
si.
— Acho que vou ficar um pouco numa espreguiçadeira e pedir um drink.
Sei lá. Talvez eu vá ao centrinho ver o comércio local. Ou almoçar…
— Fique à vontade para pedir o que quiser. É tudo por conta do Aroma
Marinho. E se você não se importar em almoçar no nosso refeitório com os
funcionários, também será bem-vinda.
Aquele clima descontraído parecia ter sido levado pela onda. Tanto que
Antonella se calou e retraiu seu corpo em um abraço. Era o indício que ela
preferia assegurar distância.
Tentei manter a irritação longe de mim. Não convinha misturar hóspede
com o coração. Cada sentimento em seu devido lugar. Quebrar a amizade que
estava em um crescente seria cometer um erro do passado.
O mar, de alguma forma, começou a se revoltar assim como meus
pensamentos me castigavam e as ondas não dariam o benefício da sensação de
um banho de mar tranquilo.
Era melhor amansar o que eu sentia.
Fiz sinal com a mão para sairmos da água e buscamos nossos pertences na
areia.
Fomos caminhando em direção ao hotel. Antonella optou por se espichar
na espreguiçadeira.
Contudo, antes de subir os três degraus que separavam o deque da área do
café da manhã, meus olhos furtivos buscaram por ela, liberta da canga, o
biquíni de lacinhos amarrados nas laterais, o cabelo longo sendo ajeitado em
um coque molhado, os seios apontados para o céu… Quase desabei no chão.
Eu não contava conhecer Antonella, muito menos dividir o teto com ela.
Respirei fundo e segui para uma ducha de água fria, já decidido a ficar o
mais longe possível dela.
Antonella
Virei o celular para o mar e surfei com ele diante de mim, mostrando a
Heloísa, como era o local onde estava.
— Que inveja! Esse lugar é maravilhoso. Aproveita, Nelinha. Você não vai
postar nada?
Há alguns anos, tudo que eu fazia tinha que mostrar aos meus milhares de
seguidores. Passei a não ter essa necessidade e não sentia falta das festas que
promovia. E as falsas amizades foram se afastando, para a minha sorte. Os que
foram ficando demonstraram mais afeto por mim, embora ainda existissem uns
cinquenta mil me bisbilhotando.
— Prefiro ficar no anonimato. E as minhas crianças, Helô?
— Estão sendo bem tratadas pela professora substituta. Ah, tenho uma
novidade pra te contar.
— Conta logo.
— Sabe a sua ideia de dar aula ao ar livre e ensinar com exemplos reais?
Nossas turmas serão pilotos para execução do projeto. Sua avó nos deu carta
branca.
— Que má-xi-mo! É muito mais fácil para as crianças visualizarem um
retângulo, por exemplo, estando ao vivo numa quadra de vôlei. De entenderem
o que são continentes e como se dividem através do esporte. Podemos usar a
Copa do Mundo ou mesmo perguntar onde os jogadores mais famosos
moram, em qual país determinado time joga. E por aí vai.
— Vai ser mais animado ensinar assim.
— Sim, é melhor para eles aprenderem também. Até que enfim a vovó
aceitou ressignificar o ensino. Quando eu voltar das férias, eu te ajudo a
preparar as aulas. Agora fiquei animada!
— Falando em férias…
— Hã? Já sei o que você quer saber.
— Mente suja — ela riu. — Nelinha, como você foi parar no chalé do
espanhol? Cuidado, amiga. Você nem conhece direito o cara. E se ele for um
psicopata?
Foi a minha vez de rir.
— Olha, ele está longe de ser um assassino em série. Pelo menos é o que
demonstrou. Ele me acolheu com respeito.
— Cuidado, Nelinha. Mas me diga, já que vocês estão bem próximos…
— Epa. Epa. Epa. Não me venha com insinuações erradas. Ele poderia ser
um irmão mais velho.
Heloísa ignorou o que eu disse.
— Mas não é. Como é o corpo dele? Parece com o Chris Hemsworth,
como eu supus?
— Uma versão menos inchada, mas … ele é bonito. Ai! É pecado pensar
nessas coisas. Acabei de deixar um noivo a ver navios.
— Que seja! O que passou, passou. Depois vai me atualizando com as suas
informações sobre o que você está fazendo sozinha e acompanhada.
— Tira essas coisas da sua cabeça. Ainda estou em processo de
autodescoberta e me desculpando pelo que fiz.
— Eu sei, amiga. Eu queria apenas descontrair nossa conversa.
Recomponha-se e volte com todo gás. As crianças amam você e já estão com
saudades.
Senti um quentinho sossegando as fibras do meu coração.
— Mande milhares de beijos para elas.
— Deixa comigo. Agora vou lá. A hora do almoço acabou. Tenho que
voltar para a escola.
— Bom trabalho, Helô. Até.
Preciso admitir que me sentia mais em paz. O poder da energia positiva da
natureza se infiltrou por meus pés, poros e se instalou em meu corpo todinho.
Sebastián tinha razão quando afirmara que Jeri seria como um spa para eu virar
a página.
Encostei a cabeça na espreguiçadeira e cobri meu rosto com a canga. Ir do
emocional abalado ao estado zen seria um caminho a ser percorrido, mas eu
iria me esforçar para ter sucesso. Na verdade, já estava conseguindo.
Somente então me dei conta que o único empecilho para adquirir essa paz
interna tão plena seria a existência de um certo espanhol, portador de um
sorriso amplo e que me abalaria caso eu desse brecha para esses pensamentos
silenciosamente luxuriosos ganharem espaço. O mais certo era fechar a porta
que abria essas ideias infundadas.
E não dar crédito à Heloísa.
Mas o homem era um deus da beleza.
CAPÍTULO 12
A minha pele, curtida do sol, ardia. Eu havia cochilado tempo suficiente sob o
sol para decidir tomar uma ducha e almoçar, ou na ordem inversa. Meu
estômago roncava de fome.
Bati a canga em todas as partes do corpo e retirei a areia. Fui caminhando
pelo salão do café da manhã, olhando de um lado para o outro, admirando a
decoração com cordas contornando as pilastras de madeira enquanto deixava o
mar para trás. Presumi que o recepcionista saberia onde se localizava o
refeitório. Resolvi aderir a sugestão do Sebastián para almoçar. Então passei
pelo corredor que me conduziu ao meu destino, fitando o chão, tão distraída
que somente notei que alguém vinha na direção oposta quando ouvi a voz
falando comigo.
— Antonella, oi! Precisa de ajuda? — Calebe abriu um sorriso em meio à
barba farta.
— Sabe onde fica o refeitório dos funcionários? Sebastián disse que eu
poderia almoçar lá.
Calebe ergueu as sobrancelhas.
— Tem algum problema?
— Não. Nenhum. É que pensei que você preferisse ir a algum restaurante
— ele se interrompeu, tratando-me com melindre. — Sei lá.
— Ah, entendi. Olha, eu estou falida, falida. Não vou mentir. Meu pai
cancelou todas as minhas contas e cartões de crédito. Então, se eu puder…
— Claro que não há problema algum em você almoçar com o pessoal.
Segue o corredor e vai chegar à recepção. Aí vira, como se estivesse indo para o
chalé do Sebastian. O refeitório é a segunda porta à direita.
Jamais me senti tão envergonhada.
— Então vou lá.
Mas antes de nos perdermos um do outro, eu falei, educada, pretendendo
fazer amizade com as pessoas que me recebiam com tanto acolhimento, mesmo
sem me conhecerem de fato.
— Calebe, se precisar de mim para alguma coisa… Ficar com o Miguel, se
for preciso. Eu sou professora. Sei lá. Quero ajudar vocês de alguma forma.
Não posso passar a estadia toda aqui assim, sem ser útil.
— Não vou me esquecer da sua oferta. Obrigado.
— Ah, me chama de Nelinha.
Ele riu e concordou com os dois olhos piscando ao mesmo tempo.
No caminho, passei pela recepção e avistei André atrás do balcão, o rapaz
vestido com blusa de flores tropicais coloridas e pele bronzeada. Quando me
viu, fez um movimento brusco de fechar o jornal que lia e bagunçou o cabelo
com cachos recaindo em sua testa. Logo me atinei sobre o que possivelmente
ele lia naquele impresso. Vi a mesma cena protagonizada por Sebastián, no
aeroporto.
André contraiu os lábios e raspou a garganta, se entregando com os
movimentos expressivos. Coitado! Ele estava nervoso.
Sinceramente, fiquei na dúvida se pedia o jornal e dava uma espiada no que
os jornalistas haviam escrito sobre o casamento-fiasco-do-ano ou se fingia não
notar o embaraço dele. Optei por me dar o direito de preservar meus nervos e
não avolumar a vergonha do rapaz.
Que se dane o que escreveram sobre mim! Somente eu sabia dos meus
sentimentos e a razão que me motivara a tomar a decisão de largar o casamento
considerado por muitos como o perfeito. Não me importar com eles seria o
primeiro passo para eu me libertar da culpa e seguir em frente.
Então abri o meu melhor sorriso e andei adiante em busca do refeitório. Fiz
um pit stop no meio do caminho, quer dizer, em uma porta antes do meu
destino, ao ouvir o sotaque espanhol que passou a ser conhecido dos meus
ouvidos.
Estaquei sob o alizar da porta, mas ele não notou minha presença. De
costas, conversava ao celular. Senti-me um tanto quanto mal-educada, parada
ali, ouvindo o que Sebastián falava, ou nem tanto, perdida na lembrança das
mãos dele fechadas em minha cintura e no arrepio que havia percorrido meu
corpo com o toque protetivo.
Olhando para ele, fiquei me perguntando se era coisa da minha cabeça o
que eu senti na praia quando nossos olhos se encontraram… a tensão… sei lá.
Por outro lado, Sebastián era um homem educado, empático, então eu não
vi nada além de preocupação em seus olhos, já que meus pés se atrapalharam
com a força da maré. Bom, foi isso. Somente isso.
— Tu también me gustas, abuela.
Sorri com o jeito carinhoso com que ele demonstrou tratar a avó. Bateu
uma saudade da minha.
Antes que o espanhol me flagrasse bisbilhotando sua conversa, saí de
fininho e fui almoçar. Chegando lá, foi impossível não respirar fundo para
sentir o aroma delicioso de frutos do mar. Até cerrei os olhos para aguçar o
sentido olfativo. Se o sabor fosse tão bom quanto o aroma… Respirei o que
restava do cheiro maravilhoso da moqueca.
— Olá. Você é a Antonella? — uma senhora dos seus cinquenta e poucos
anos, com pescoço esguio e estatura média para alta, perguntou.
— Sou sim.
Não era meu hábito me sentir envergonhada a cada contato com um
desconhecido, mas era como se eu estivesse invadindo um espaço que não era
meu. E não era mesmo.
— O Sebastián falou que eu poderia almoçar com vocês.
— Ele avisou que a senhorita viria.
Não seria Sebastián se não a informasse previamente quanto à minha
presença. Seu propósito explícito de eu ser bem recebida, mesmo que não
tivesse certeza de que eu aceitaria o convite, me cativou, mais uma vez. Ele
parecia cercar sempre a todos com cuidado.
— Por favor, Antonella. Acomode-se onde quiser. Meu nome é Márcia.
Você gosta de frutos do mar?
— Sim. E mesmo se não gostasse, só pelo cheiro, não haveria como não
comer.
Os lábios rosados sorriram com satisfação.
Vinte minutos depois, eu havia engolido a comida, embora tivesse
apreciado cada garfada.
— Márcia, nem sei o que falar das suas mãos de fadas. Comi tanto que não
consigo nem respirar.
— Ô, querida. Venha todos os dias aqui fazer suas refeições. Diz o que
prefere comer que eu cozinho pra você.
— O que fizer, sei que vai ficar gostoso. Queria muito saber cozinhar.
— Que tal você vir cozinhar comigo? Eu posso te ajudar a preparar o prato
preferido do Sebastián.
Captei um tom malicioso em suas palavras.
— Até que não seria uma má ideia. Ele quebrou meu galho me convidando
para ficar no chalé dele enquanto não surgir vaga no hotel. Hum, gostei.
Parece que a Márcia havia apreciado também, pois o sorriso se expandiu
quase até as orelhas e ela finalizou sua performance feliz com uma piscada de
olho.
Meneei a cabeça, rindo.
Ela me abraçou e me conduziu até a porta. Todos os funcionários me
tratavam com tanto carinho, que eu me emocionei. Eu estava ainda
recuperando o estágio normal das minhas emoções, que até o passarinho
piando no coqueiro no centro do pátio do hotel, qualquer coisa, era motivo
para meus olhos lacrimejarem.
— Obrigada pelo almoço.
— Como disse, volte sempre.
Meu coração recebeu um quentinho parecido com carinho de mãe, no meu
caso de avó, porque era ela que me confortava em todos os momentos.
Mais leve e motivada, fui tomar uma ducha rápida e descansar um bocado
antes de dar um rolê pela vila.
Com passos lentos cheguei ao chalé e me sentei no chão da sala assim que
abri a mala. Revirei tudo em busca de uma roupa soltinha. Um vestido seria a
salvação para a pele que ardia.
O mormaço sempre engana. A gente sempre acha que somente o sol
tilintando no céu é que torra a pele. Besteira pensar assim. Eu sabia que estava
mais vermelha que a moqueca da Márcia e mais quente do que um pimentão
assado.
Pela primeira vez desde que havia chegado em Jeri, tive coragem de pegar
aquele arsenal de lingeries que usaria com Horácio e colocar tudinho em um
saco estiloso para roupas sujas que Heloísa havia enfiado de última hora na
mala, na pressa para eu ir ao aeroporto. A princípio, eu não iria viajar, mas ela
me convenceu que seria melhor me afastar da cidade para esfriar a cabeça. Eu
não queria ficar olhando para todas aquelas peças, mais especificamente dez,
uma para cada dia da lua de mel, e me sentir péssima a cada vez que as via.
Então assim o fiz.
Com posse do vestido azul-celeste e sandálias douradas, além de uma
calcinha normal, fui tomar a ducha tão esperada.
Abri a porta do boxe e me recriminei por não ter pegado o shampoo. Saco.
Sebastián não tinha nenhum à vista para eu usar. E a toalha? Mil vezes droga.
Ela estava sob o sofá. A toalha de rosto não iria cobrir nem um por cento do
meu corpo, próximo de um metro e setenta, se eu quisesse voltar à sala. Mesmo
assim arrisquei.
Pé ante pé, como se estivesse prestes a cometer o erro do século, dei uma
espiada pelo vão da porta do banheiro e não avistei nenhuma alma viva. Dei
mais uns três passos, tão natural como vim ao mundo.
Foi tudo confuso e parecia irreal, com uma probabilidade mínima de
acontecer, mas aconteceu. Sebastián veio do quarto e, misericórdia, foi somente
o tempo de eu gritar e tentar cobrir a parte de baixo, os seios com as mãos,
claro que em vão, gritando:
— Desculpe. Desculpe. Ai meu Deus!
Os pés não se dignaram a voltar ao banheiro. Foram segundos de embaraço
total.
— Cacete, Antonella… — Sebastián reagiu com uma voz de perplexidade
e abaixou a cabeça no reflexo da sua educação ilibada, não sem antes me avaliar
por um segundo ou dois inteiros e virou de costas para mim.
Rubra de vergonha, eu me vi nessa situação delicada.
— Juro por mim vivinha que não esperava que você viesse ao chalé agora.
Por mais que eu não acreditasse no que estava acontecendo por minha
absoluta falta de cuidado, aconteceu, e seria mais um item para acrescentar na
lista de vergonhas cometidas diante do Sebastián.
— Tudo bem. Tente ter mais cuidado daqui pra frente. Entra no banheiro.
Vou deixar a toalha pendurada na maçaneta.
Ele foi andando até o quarto e eu retornei para onde não deveria ter saído,
num misto de atordoamento e autopunição.
— Hum, se não for incômodo, você pode pegar a nécessaire com meus
produtos de higiene na mala?
— Si.
Ouvi passos através da porta.
— Aqui tem somente um saco escrito “roupa suja”.
Fritei meu cérebro todinho para me lembrar onde estava a necessaire que
usaria antes que Sebastián abrisse o fecho e visse o conteúdo carregado de
lingeries, as mesmas que ele vira na esteira do aeroporto.
— Não. Não. Está do outro lado da mala. Uma bolsinha rosa.
— Achei.
Mortificada com o que acabara de acontecer, com o pulso batendo no
coração, abri um tantinho a porta e resgatei da mão dele tudo o que precisava
para permitir que a água lavasse minha vergonha no banho.
Sebastián
Fiz de tudo e mais um pouco para não encontrar Antonella no chalé e ela
não topar com a minha cara fechada. Todo o sentimento de bem-estar
conquistado ao lado dela na praia, tinha voado para os ares. Meu humor foi
detonado logo que eu soube que minha ex-namorada iria se casar e havia
tentado reservar uma vaga para sua lua de mel… No meu hotel? Muito mal
gosto. Calebe foi esperto e negou, alegando que estávamos com reservas
preenchidas até depois do ano novo, o que não era totalmente mentira.
Inspirei minha indignação.
Quanto à Antonella, eu não imaginava que fosse encontrá-la, muito menos
flagrá-la sem… Por Dios! Nua! Na praia, eu tinha temido que ela notasse que
seu corpo parecia um ímã atraindo meus olhos. Fora muito complicado me
manter impassível com todas as curvas dela, o piercing no umbigo aguçando a
vontade de lambê-lo. E sua boca, com o lábio inferior inchado, me implorando
para ser beijada, experimentada….
Ela era luxúria e eu, puro desejo.
Apesar de todo esse chamariz de codinome Antonella, eu estava
conseguindo me manter firme e desejava ficar assim até o fim da sua
hospedagem, torcendo para que houvesse uma desistência de reserva para
transferi-la para um quarto somente para ela. Para a paz da minha sanidade.
Então me deparei com a nudez da moça, uma situação desconcertante e
vertiginosa. Naquele momento, por mais que tivesse me virado de costas, não
consegui segurar o desejo de dar uma espiada em seu corpo.
De uma vez, engoli o resto da cerveja no gargalo e larguei a garrafa no
balcão. Precisei beber para acalmar meus nervos alterados. Só que eles se
sobressaltaram mais um pouco quando ouvi o click da porta do banheiro e o
ranger de leve da dobradiça.
E lá estava ela, a diabinha, linda como sempre, embalada em um vestido
curto e esvoaçante que dava muito espaço para imaginação.
Foi nítido nosso desconforto e os olhos caramelos pareciam suplicar para
que eu não tocasse no assunto da sua nudez. Eu não diria nada. Ainda mais
que meu humor não estava lá essas coisas para entrar em um jogo de disputa de
quem se sairia melhor, no final.
Ela estalou os dedos. Parecia nervosa. Levou um tempo me olhando.
Pressupus que estivesse tentando encontrar algo para falar que não fosse sobre o
que havia acabado de acontecer.
Sorri forçado e ela deu poucos passos até a mala que estava no canto,
encostada na porta da varanda. Fui em direção ao sofá e larguei meu corpo
nele, os tornozelos se acomodaram na mesa de centro.
— Por que você ainda não levou a mala para o quarto? É lá que você vai
dormir. — eu me peguei falando aquilo, com rispidez.
Ela se levantou e balançou nos calcanhares. A resposta, talvez igualmente
seca, estava na ponta da língua, prestes a escapar dos lábios que tinham o poder
de me hipnotizar. Os olhos se estreitaram e permaneceram me fitando, a cabeça
parecia trabalhar freneticamente pensando se entraria em mais um embate
comigo ou não.
Fomos salvos por duas batidas seguidas na porta e conhecidas por mim.
Sem desviar os olhos do rosto da Antonella, eu falei:
— Pode entrar, Calebe.
Os ombros dela se endireitaram e a postura defensiva aliviou ao mesmo
tempo que a expressão contraída; o sorriso se abriu para o meu amigo ao
avistá-lo.
— Oi, Nelinha! Preciso da sua ajuda.
CAPÍTULO 13
No ímpeto, eu me levantei, irritado. Eu estava em um estado chato, que vai
minando as energias e não suportava quando me permitia ser levado por
sentimentos péssimos. Mas é que ouvir falar na Mônica, minha ex-namorada,
me tirava do sério. Eram poucas pessoas no mundo que conseguiam essa
façanha: ela e meu pai.
E quando foi que Calebe e Antonella adquiriram tanta intimidade?
Nelinha?
Respirei fundo, o mais que pude. Não era da minha conta. Além do mais,
os dois não eram sacos de pancada para suportarem meu mau humor.
Contornei o balcão e arremessei a garrafa no lixo. Abri a geladeira e peguei
mais uma cerveja gelada.
— Claro! É pra já.
Com a mão na maçaneta, Calebe sorriu, topando com o jeito solto dela.
— Estou em apuros. A moça que trabalha na recreação com os pequenos
teve um probleminha para retornar de Fortaleza. Vai chegar mais tarde. Como
você se ofereceu para ajudar…
Eu me deixei cair no sofá e dei uma bebericada na cerveja. Mais atento do
que gostaria, ouvi o que os dois diziam. Pela cumplicidade, certamente haviam
conversado bastante durante o dia.
Saltitando de felicidade, Antonella, foi em direção a ele.
— Ainda bem que você me salvou, hum, me chamou.
No mesmo instante, captei a indireta dela para mim. As palavras em
resposta à minha rudeza de minutos antes, enfim, escapuliram da boca
atrevida. De fato eu tinha de dar crédito à provocação dela, já que eu merecia.
Realmente, eu não era a melhor companhia para Antonella naquela tarde.
Antes de a porta fechar, Calebe não evitou me avaliar e balançou a cabeça.
Eu mostrei o dedo do meio para ele. Sua reação foi gargalhar, depois saiu, me
deixando com a raiva que ardia em mim. Ou ciúme? Impossível que eu
estivesse sentindo ciúme da Antonella. Nós mal nos conhecíamos.
Em definitivo, era raiva que havia extirpado minha paz.
Por mais que eu não visse ou soubesse notícias da Mônica há um ano, a
repercussão do nosso término se intensificava quando eu me recordava das
últimas palavras duras que havíamos trocamos. Mas a vida seguiu. Minha ex
estava noiva. Eu me mantive solteiro. E estava tudo bem assim.
Soltei a respiração presa no peito e deitei. O sono ainda me incomodava
em decorrência do jet lag. Por isso tanta irritação. Na noite anterior, eu não
havia dormido bem, preocupado com Antonella.
Era isso.
Duas horas mais tarde, acordei com o humor mil vezes melhor. Andei com
cuidado pela casa, checando onde ela estava. Encontrar Antonella nua outra
vez não seria nada saudável para mim.
Fui ao quarto, à varanda e voltei à sala. Ela não havia chegado.
Eu tinha de pedir desculpas à moça pelo meu nervosismo. Acabei
descontando minha frustração nela. Eu fiquei puto comigo por isso.
Como pensei nela, no instinto, meus olhos pararam na mala fechada no
canto do sofá. Decidi levá-la para o quarto antes que a dona chegasse e sua
teimosia em não querer dormir na cama iniciasse. Um tanto pesada, levantei-a
do chão no impulso e a pus sobre um banco assim que entrei no meu espaço.
Eu não sabia que lingeries pesavam tanto.
Tive um acesso de riso ao me lembrar da cena do aeroporto.
Abri a cortina e o som do mar me convidou para brincar um pouco com a
prancha. Estava fora da vila há um mês e com saudade de praticar kitesurf.
Em seguida, quando tirei a roupa para vestir a de neoprene, um papel caiu
do bolso da bermuda. Sorri. Eu havia dedicado um tempo do meu dia para
fazer uma lista para ela. Então, antes de sair, coloquei o papel sobre a mesa, não
sem antes escrever nele “Para Nelinha”. Tudo bem que eu considerava que o
apelido no diminutivo não estava em conformidade com o jeito espevitado
dela. Muito menos com o corpo…
Trabalhei para retirar o mínimo de lembrança da silhueta… nua.
Cocei a barba.
No caminho em direção à saída do hotel para a praia, passei pela sala de
recreação, onde os pais confiavam seus filhos aos nossos cuidados enquanto
passeavam ou namoravam, ou seja lá o que estivessem fazendo.
Dei uma espiada pelo vidro da porta, curioso. E lá estava minha hóspede,
sentada no chão emborrachado, com uma menina no colo. Miguel andava pela
sala desfrutando do seu mundo particular.
— E aí o lobo mau chegou à casa de um dos porquinhos e encheu o peito
com bastante ar. Soprou e soprou. O que vocês acham que aconteceu?
Ouvi a voz dela um pouco abafada pela porta, mas consegui pescar o que
ela falava.
— A casa não caiu, tia — afirmou um menino, em um tom mais alto.
— Eu também acho que não — a menina confirmou, ainda que tenha
levado os dedos aos lábios, nervosa.
Antonella olhou para um menino sentado diante dela e indicou que ele
agitasse o fantoche que cobria a mão pequena.
— Viu seu lobo, aqui você não entra, disse Torresmo.
Outra menina apontou para Miguel, interrompendo a contadora de
histórias.
— Tia, por que o amiguinho não quer ouvir você?
— Miguelzinho está ouvindo sim, meu amor.
— Ele tem probleminha?
Antonella endireitou os ombros. Foi nítido seu desconforto.
— O coleguinha ainda está aprendendo a falar. Ele brinca de uma forma
diferente, mas logo vai vir para cá ficar conosco. Tá bom?
A garotinha moveu a cabeça, aquiescendo com a “tia”.
— Tive uma ideia. Por que você não o convida para se sentar com a gente?
A resposta plausível da Antonella me surpreendeu.
De pronto, a menina aceitou a sugestão e foi até Miguel. Ela disse algo
baixinho. A reação dele foi virar o rosto para outro lado como se não tivesse
dado importância ao que a loirinha havia dito a ele. Mas, para a minha
surpresa, depois que a menina deu as costas, ele foi se sentar no círculo. Uma
criança chegou para o lado e deu espaço a ele.
Antonella sorriu para Miguel com tanto carinho, que meu peito se encheu
de orgulho.
Ela é sensível.
E havia transparência e sinceridade em suas expressões e palavras.
Inspirei fundo, prendi o ar e me apressei para sair dali antes que a
professora me visse bisbilhotando.
No meio do caminho, encontrei Calebe. Logo que percebeu minha
presença, ele desviou o olhar da prancheta em sua mão e foi direto ao ponto.
— Já notou como Antonella é diferente? Moça bacana, prestativa.
Descartei a fala e assenti com a cabeça.
Pude notar a maneira como ele me olhava, como se quisesse me dizer algo a
mais.
Eu não era do tipo que gostava de arranjos para dar uma escapada. Vivi o
que tinha de viver dos quinze aos trinta e alguns anos, com minhas próprias
escolhas. Antes mesmo de namorar Mônica, havia me decidido que não pularia
de galho em galho.
Em definitivo, eu não precisava da ajuda do Calebe servindo de cupido
para me tirar do status de solteiro. Embora nos déssemos bem, eu falava pouco
da minha vida particular para ele.
— Ela é muito educada. Vi que é carinhosa com as crianças. É provável
que seja uma excelente professora — falei a verdade.
— Miguel aceitou ir com ela para a recreação sem muita resistência. Fiquei
besta de ver.
Calebe ainda mantinha um sorriso sugestivo na boca. Olhei para ele com
uma cara de quem tinha concluído o assunto “Antonella”.
— Bom, vou para o mar. Qualquer problema, sabe onde me achar.
— Ok, chefe.
No caminho, cruzei com alguns hóspedes retornando de algum passeio. Os
olhos vermelhos indicavam cansaço ou umas bebidas a mais que haviam
tomado. Ou as duas coisas, o que era mais provável. Alguns se sentaram no bar
da piscina, outros subiram a rampa de acesso aos quartos superiores.
Algo que me deixava satisfeito era ver as pessoas felizes, usufruindo das
belezas de Jeri. O clima da vila tomava ares de alegria, festa, todos os dias do
amanhecer ao anoitecer. A vida estava sempre em movimento e rostos
diferentes passavam por ali.
Mirei o mar. O sentimento de satisfação das ondas me carregando pela
velocidade ditada pela pipa do kitesurf, era o que eu precisava para esvaziar a
mente.
Antonella
Olhei do abdômen dele para os olhos mais azuis que o de costume devido à
exposição ao sol, o que não foi a melhor ideia. Deus, eu me odiei por não
controlar meus olhos famintos! Eles cobiçaram Sebastián. Pisquei para afastar a
curiosidade flagrante e os pensamentos absurdos. Meu cérebro entrou em
curto. Aquela chama libidinosa tremeluziu meu baixo ventre.
E ele vinha devagar, diminuindo de pouco em pouco o espaço entre nós. O
gingado displicente contribuiu para que a tontura aumentasse e eu prendesse a
respiração.
— Ah, o sol vai descer daqui a pouco. Você não quer cumprir o que me
prometeu na lista?
Dei um giro vertiginoso, contornei o balcão e fui em direção à mesa entre a
televisão e o sofá.
— Olha aqui. Está escrito assim: “Não deixe de ver o sol se pondo no mar
na Duna do Pôr do Sol. Vou com você, se quiser.”
— Sim, senhorita.
Achei graça porque ele levou a mão à testa em sinal de continência.
— Seu desejo é uma ordem.
— Bobo.
— Vou apenas dar um tapa no visual.
— Te espero lá fora. No portão da varanda.
Segundos após, fechei a porta atrás de mim, com a mão no coração. Eu o
massageei e estimulei a respiração a encontrar sua cadência normal. Foi
estranho. Sim. Muito estranho me sentir zonza e compelida a… Ficamos tão
próximos que pensei que fôssemos nos beijar. Sebastián não me deixava pensar.
Eu precisava reorganizar minhas emoções e pensamentos.
Joguei água da torneira no rosto e fitei meu reflexo no espelho. A voz dele
havia sido como uma carícia em meu ouvido. As mãos em minha cintura
causaram uma explosão dentro de mim. Sebastián era um perigo. Ele sabia me
conduzir à vulnerabilidade quando estava em sua presença. Isso era um fato
incontestável.
A pergunta que não queria calar era por que minhas pernas bambearam,
por que meu corpo ficou prestes a virar geleia de mocotó, toda molinha para
ele? Ele me balançou como os coqueiros plantados na fachada do hotel.
Soprei o ar com força, tentando a todo custo controlar a arruaça de
hormônios que faziam uma rave louca em mim.
CAPÍTULO 14
— Uau! Quanta gente! — falei, surpresa e um pouco sem fôlego após subir o
morro de areia.
Equilibrando duas taças de champagne em uma mão e a garrafa em outra,
Sebastián não ocultou o sorriso de satisfação. Ele parecia um nativo orgulhoso
de sua terra.
— Isso porque viemos mais cedo. Daqui a — ele girou o braço e checou o
relógio — menos de quinze minutos, você vai ver como a duna vai ficar lotada.
É a atração mais bonita da vila.
— E de graça.
As palavras saíram antes que eu terminasse a frase em pensamento.
Eu não parava de fazer contas mentais. Minha avó não havia respondido
minha mensagem. A minha sorte foi ter encontrado Sebastián e sua bondade
infinita.
— Não se preocupe com gastos. Você é minha convidada.
— Nem sei mais como te agradecer.
— Nem sei mais como te dizer para parar de agradecer.
Ele apontou com a garrafa para o lugar onde nos sentaríamos. Estendi a
manta e nos acomodamos. Eu me sentia inserida em uma cena das comédias
românticas que Heloísa amava, à espera do ponto alto, quando o casal se beija
no momento em que o sol toca o mar.
Ri sem compromisso de camuflar minha reação.
De esguelha, Sebastián me olhou enquanto nos servia com o champagne.
Vi seus olhos pousando em meus lábios. O sol havia beneficiado as contas
claras a cintilarem mais lindas que nunca.
— Do que você tanto ri?
— Besteira.
Fiquei com vergonha de confessar.
Com a testa enrugada, ele colocou a taça em minha mão e propôs um
brinde.
Tim-tim.
— Não vai me falar mesmo?
— É besteira mesmo. Eu me lembrei da minha amiga, a Helô. Ela é tão
romântica. Este cenário seria o suficiente para ela suspirar.
Óbvio que eu não acrescentei que a companhia e a manta, além da bebida,
eram o conjunto perfeito.
— Você não é romântica?
Beberiquei o champagne e fitei o mar, pensando. Quantas vezes Horácio
reclamou que eu não tinha ciúmes dele, ou que eu não dizia que o amava, ou
que não me afetava por seus presentes caros. Passei anos acreditando que eu era
insensível. Que não havia nascido para essas coisas melosas, me culpando por
não ser a mulher mais romântica do mundo.
— Apenas não encontrei a pessoa certa.
— E como saber quando a pessoa é a certa?
— Boa pergunta — olhei para os olhos cristalinos e divaguei: — Acho que
é quando seu corpo reage de forma diferente quando está ao lado da pessoa.
Quando o coração dispara. Quando mesmo que não conheça o outro há muito
tempo, sente falta da presença quando se afasta.
— Ou quando o ar falta ao lado da pessoa e você nem sabe o motivo. E
você passa a se perguntar por que ainda não tinha conhecido ela antes.
Sebastián manteve seus olhos nos meus por alguns segundos. Depois
desviou o olhar de mim para o chão. Pegou um monte de areia e abriu os
dedos para que os grãos escorressem entre eles. O vento formou uma cortina
baixa e levou embora sua brincadeira.
— Você é um ator, Sebastián. Eu quase acreditei que você era romântico.
Ele olhou de volta para mim, a expressão mais fechada. Suspirou. Será que
Sebastián havia sentido o que senti na casa dele, antes de sair? Será que quando
ele falava sobre o ar faltar e tal, ele se referia a mim? Claro que não. Não era
possível. Nós mal nos conhecíamos.
Só que o espanhol examinou meu rosto e sorriu, por fim.
Do nada, ele adotou uma expressão séria. Passou as mãos nos vincos da
testa. Notei que os olhos dele pareciam um oceano de ressentimentos.
— Eu tenho trinta e cinco anos e já pensei ter encontrado a mulher certa.
Isso foi há uns quatro anos. Mas quando a pandemia se instalou para ficar e os
aeroportos foram fechados para voo, a distância do sul-nordeste nos separou. O
nome dela é Mônica — ele deu uma puxada de ar. — Com ela, eu me sentia
sempre beirando um precipício. Nossa relação era instável. Quando
terminamos, a sensação que tive foi de queda livre. Demorei para restabelecer
meu coração.
Ah, claro. Havia alguém. Quase esmurrei a minha testa por achar que ele
sentira algo por mim… no chalé. Óbvio que nada iria rolar entre nós. O mais
provável era que ele me visse com olhos de irmão mais velho.
— Mas os aeroportos abriram.
Não consegui manter a língua quieta dentro da boca.
— Não era para ser. A pandemia foi o estopim do aumento da cratera que
crescia em nossa relação.
O olhar dele distante para o infinito dizia tudo para mim. Ela havia sido ou
ainda era muito importante na vida dele. Era melhor não fuçar esse vespeiro.
Então me convenci de que deveria lidar com Sebastián como um amigo de
verdade. Um que jamais me esqueceria, mesmo que décadas passassem; o
mesmo aconteceria da minha parte. Estava decidido. Ele seria meu amigo, um
dos poucos da minha lista. Ser rico nos deixa cismados. Isso. Essa é a palavra
certa. Eu não conseguia identificar se alguém se aproximava de mim por
interesse, para bajular, ou por realmente gostar de mim. Em Jeri, eu me sentia
eu mesma.
Paranoias à parte…
— Engraçado. A minha relação com Horácio era o oposto. De tão estável,
melou.
Ele se virou com uma expressão confusa e depois riu e engasgou de tanto
que gargalhou.
— Não sei como ainda me surpreendo com você, Antonella.
E continuou rindo.
— Ah, para. A pandemia foi uma fase de rupturas de relacionamentos, mas
também com velhos estilos de vida. Foi um momento de perdas físicas, mas de
encontros interiores. Ele passou a ser a personificação de um estilo de vida que
eu não valorizava mais. Foi isso.
O rosto de Sebastián modificou para uma feição surpresa, ou abismada.
Não sei ao certo.
— Falou bonito agora.
— Bobo.
Empurrei o braço dele de leve, o suficiente para o champagne borbulhar na
taça.
— É que comecei a me encontrar durante o caos do mundo. Foi quando
fiz análise, pela primeira vez na vida. Enxerguei quem eu era de verdade e o que
desejava alcançar como pessoa.
Sebastián se serviu com mais champanhe e ofereceu-me. Enquanto
abastecia minha taça, ele fez uma gracinha:
— Seu pai deve odiar cada centavo que gastou com o analista.
Sorri.
— Ele não sabia que eu fazia.
A boca dele se arredondou em um “Hããã!”. E depois riu.
— Só sei que precisamos encontrar a pessoa certa, é isso — falei outra vez
sem pensar.
Porcaria! Ele poderia achar que eu estava me oferecendo… Bem, Sebastián
me tirava do juízo normal. Em sua presença, eu ficava tão insegura.
— Desisti de esperar por essa mulher — ele revelou assim que se recuperou
da crise de riso.
— Então um brinde à solteirice.
Ele encostou sua taça na minha.
— Um brinde por você estar aqui. Gostei de te conhecer, Antonella.
Meu coração deu um salto no mesmo instante em que ouvi a confissão do
Sebastián. Eu sabia que ele me via como uma garota a quem havia socorrido.
Que nossa diferença de idade seria uma barreira para algo a mais que amizade.
Eu seria tola de achar que ele cogitaria a hipótese de flertar comigo. Mesmo
assim, não controlei a reação involuntária no meu peito.
— Eu também — consegui responder.
A parte do filme em que a moça deita a cabeça no ombro do cara e ele
passa o braço pelas costas dela enquanto o sol vai desaparecendo no mar e o
céu é tingido pelo tom azul índigo, libertando-se da cor pêssego, eu jamais teria
com Sebastián.
Melhor assim. Sem ilusões.
Dei um sorriso fraco para ele e bebi meu champagne. Voltei a olhar o mar e
o sol deu início ao melhor da festa. As pessoas começaram a bater palmas e
assoviar. Outras pareciam hipnotizadas.
Senti um quentinho no coração. Uma sensação de plenitude e harmonia
bombeou paz em minha corrente sanguínea. A natureza tem esse efeito em
mim. Ela é regida pela sincronia de suas etapas diárias. Nós humanos que a
deterioramos, sem o mínimo respeito por ela, que está sempre disposta a nos
beneficiar com sua benevolência.
— Gente, por que ainda não puseram esse pôr do sol na lista das
Maravilhas do Mundo?
— Concordo plenamente.
E foi nesse momento que o inesperado aconteceu. A mão do Sebastián
encontrou a minha e entrelaçou os dedos nos meus. Suspirei e me mantive
maravilhada com o mergulho do sol no mar. Naquele instante, algo bom foi
acrescentado em minhas emoções: eu não estava sozinha.
— Fui sincero quando disse que estou gostando de você estar aqui —
Sebastián repetiu sua confissão após alguns minutos.
— Eu ainda mais.
À
— Da próxima vez, ignore o que eu falar. Às vezes, peço coisas sem pensar,
sabe?
Dobrei os joelhos para checar se ela estava bem. Acabei ficando
preocupado. Inclinei a cabeça mais para o lado e alcancei os olhos dela se
ajustando ao tamanho normal. O sol batia forte sobre nossas cabeças e me
ocorreu que ela pudesse tontear com o calor.
— Você está bem?
Ela se ergueu e, acidentalmente, a cabeça dela bateu com tudo em meu
nariz.
— Ui! Essa doeu.
Meus olhos arderam como consequência.
— Ah, meu Deus. Ah, meu Deus. Não foi intencional.
Na posição ereta, e com a mão em concha sobre o rosto, vi o desespero na
expressão crispada diante de mim.
— Tudo bem. Você quis se vingar. Essa é a única e verdadeira explicação.
Não resisti e provoquei.
— Ah, para, Bastián.
Passada a ardência, equilibramo-nos quando a balsa deu início à travessia
até a área dos restaurantes e das redes insistentemente mencionadas por
Antonella.
— Pensei que a água fosse mais azul.
— Lembra que eu te falei que na Lagoa do Paraíso a água é mais azul que a
daqui?
— Agora vai entender. A água aqui é linda, mas é esverdeada. Por que o
nome Lagoa Azul, gente?
Balancei os ombros. Eu não tinha essa explicação na ponta da língua.
Antonella retrocedeu dois passos.
— Cuidado para não escorregar, Nelinha.
Ela me ouviu, fiquei grato por isso, e parou. Abriu os braços. O vento
levou o cabelo longo todo para trás ao apontar o nariz para o céu. Logo em
seguida, ela abaixou a cabeça.
— Lamento que a balsa não seja o Titanic. Tão Jack e Kate. São poucos
filmes que me emocionam. Esse foi um deles.
Logo atrás dela, eu falei, rindo:
— Sorte a nossa, ou morreríamos, provavelmente.
Ela resmungou algo como “eita, espanhol sem emoção”.
Eu tinha consciência de que eu não era dos caras mais românticos do
mundo, mas juro por minha avó que não havia falado com o tom que ela
acabou interpretando. Quis fazer uma brincadeira, que soou péssima. Por Dios!
Antonella me deixava em cada encrenca.
Então eu me vi no meio do caminho entre demonstrar meu afeto a ela ou
me recolher em meu casulo sentimental. A primeira alternativa passou a ser
melhor.
Para assumir minha culpa, acolhi a cintura dela com minhas mãos, meu
tórax se moldou às costas imaculadas e nuas somente marcada por um filete do
biquíni tomara que caia. De imediato, fui tomado pelo aroma de rosas do
cabelo longo, que se movia ao sabor do vento. Ela merecia muito mais de mim.
Mais do que eu esperava um dia me permitir ser levado pela situação ali criada.
Então, rendido à encenação, indaguei:
— O que eu faço agora, Kate?
Nós estávamos protagonizando a cena, emprestando nossos corpos, mas, de
alguma forma, nossos sentimentos se uniram a partir daquele instante. Eu me
senti diferente.
— Sinta este momento, Jack. E colecione nossas memórias — ela sugeriu.
Cerrei os olhos.
Seria impossível não fazê-lo.
— Aqui é tão bom. Sabe aqueles lugares em que o tempo parece não
passar?
É
— Siii. É aqui — respondi com um sorriso em frente a ela e refresquei meu
peito, jogando água nele.
— Se eu fosse escritora, começaria um capítulo assim “As mãos do vento
acariciavam o rosto da Antonella enquanto seu corpo descansava na rede
imersa na água cristalina da lagoa”.
— Perfecto. E por que você não escreve?
— Sem chance. Eu não seria capaz.
— Não se subestime, Nelinha. Você pode escrever a história de uma
mulher que veio desfrutar do paraíso após se encorajar para mudar seu estilo de
vida.
— Hum. Interessante. Posso colocar um espanhol nessa história como
protagonista?
— Eu ficaria honrado.
Minha mão foi ao coração, os dedos largaram respingos de água.
— Por que você veio morar no Brasil?
— Estava na hora de ressignificar minha vida, assim como você fez.
— Resposta inteligente.
Vi admiração sincera no rosto da Antonella.
— Resposta sincera.
Ela fechou os olhos e virou o rosto para o céu.
Estava se tornando comum perder o ar quando estudava os traços delicados
do rosto da turista que me fuzilou com o olhar quando nos conhecemos. Nem
mesmo uma cicatriz discreta na linha do queixo deixava de ser charmosa.
Quando notei que ela voltaria a me olhar, movimentei as mãos na
superfície da água e as encarei, dissimulando estar totalmente alienado à
presença dela, como se isso fosse possível.
— Você não é tão desagradável quanto pensei que fosse, Bastián — ela
falou sem que eu esperasse ouvir tal elogio.
— Você não é tão mal-humorada quanto pensei que fosse, Nelinha —
devolvi a ela, com um sorriso que era do tamanho da lagoa.
— Acho que estou começando a gostar de nós dois, assim, da nossa dupla.
E eu de você. Mais do que deveria.
O silêncio acabou se instalando como uma presença tangível. Mais uma vez
aquela força invisível que segurava nossos olhares nos ligou. Antes que eu
falasse alguma bobagem romântica ou a beijasse, mergulhei.
Em poucos segundos, imerso na água morna, ouvi ao longe um “ai”. No
mesmo instante emergi para conferir o que a linda havia aprontado. Fora da
rede, ela massageava seu corpo.
— Acho que um peixinho beliscou minha bunda.
Uma gargalhada rasgou minha garganta, o que estava se tornando um
hábito acontecer ao lado dela.
Pez inteligente!
— Só você, chica. Só você — ela ria sem graça quando eu continuei: — A
menos que você tenha fobia, esse peixe me deu uma ideia. Vamos mergulhar
com snorkel?
— Mas a água é tão cristalina. Precisa?
— É diferente. Com o equipamento conseguimos ver os cardumes de
peixes bem melhor.
Como sempre o alto-astral dela prevaleceu:
— Então é pra já.
Fomos ao encontro de um rapaz e aguardamos uma família devolver os
aparelhos aquáticos, nós seríamos atendidos na sequência. Uma loirinha saiu
saltitando e retornou à lagoa assim que se livrou da máscara e das nadadeiras
do rosto.
— Essa menina parece um peixe-humano. Ama uma água — a mãe da
garotinha falou, orgulhosa.
— Eu também sempre gostei de todo tipo de água: piscina, mar, cachoeira
— Antonella confessou.
— Já vi que minha filha vai ser como você. Bom, preciso ir atrás dela.
Ela se despediu com um sorriso ao passo que seu marido e o outro filho
finalizavam a entrega dos equipamentos de mergulho.
— Bom saber que você é uma peixa.
— Hum. Tá. Em português não falamos peixa como feminino de peixe,
sabe? É peixe fêmea — ela fez uma cara professoral.
— Ah… Entendi, mestra. Mas se você é peixe fêmea, então quero ver se
tem habilidades sobre uma prancha de stand up paddle.
— Você está me desafiando, Bastián?
Parecia que Antonella não somente me instigava a responder, mas também
me cobiçava com os olhos. Em menos de um segundo, meu rosto estava acima
do dela, os lábios em uma proximidade perigosa.
— Eu gosto de te ver reagindo à provocação.
— Ah, é? Por quê?
Ela declinou os olhos para a minha boca, os lábios se abriram em um
chamariz para um beijo bem gostoso. Recebi uma dose de estímulo para
romper a barreira das insinuações e partir para ação. O pouco que separava
nossos rostos foi se dissipando à medida que eu inclinava a cabeça para frente,
contudo… Respirei fundo e fechei os olhos. Não tive tempo hábil para
concluir meu impulso, já que fui impedido de agir.
— Vocês querem o equipamento completo?
O que eu queria mesmo era entregar meu beijo a ela. Queria demais. Os
lábios inchados pareciam tão macios, calorosos... Se não fosse o rapaz a nos
retirar do nosso silêncio estimulante, eu não teria contraposto minha intenção.
Ainda atordoado, virei-me para o rapaz e fiz sinal positivo com a cabeça.
Nós iríamos mergulhar naquele instante mais do que nunca, como fuga, pelo
menos para mim. Eu precisava de um espaço me concentrando em algo além
dela. Ao lado da Antonella, as situações se repetiam e, quase sempre, eu me
situava sobre uma corda bamba entre agir ou recuar. Sermos somente amigos
ou dar um passo além, mesmo que pelos ínfimos dias da sua estadia.
Antonella
A ideia de praticar snorkel foi providencial. Desbravar a lagoa e ver os
cardumes de peixes pequenos desviou a adrenalina que correu pelo meu corpo
com a expectativa de que eu e o Sebastián nos beijaríamos. Que loucura! Foi
um quase, um instante, metade de um segundo que significou eternidade.
A resposta que não queria calar era “Eu desejava aquele beijo?”
Muito.
Seria certo? Não.
Eu iria embora em poucos dias. Incentivar uma paquerinha não seria o
ideal para a fase que eu estava vivendo. Concentrar-me no que faria após a lua
de, quero dizer, férias, era o que me convinha.
Com o corpo parcialmente sob a água e o rosto coberto pela máscara,
somente a ponta do cano apontava para fora da lagoa e captava o ar responsável
por suavizar a falta de fôlego. Se bem que, minutos antes, a respiração me
faltara mais do que com a máscara no rosto.
Olha que peixinhos lindos!
Eu me esforçava para induzir meu cérebro a pensar em outra coisa que não
fosse em Sebastián, em seu jeito simples de curtir um dia de sol, em seu corpo
esguio e com a musculatura em dia, em como ele conseguia deixar meu
coração leve ao seu lado. E fui surpreendida pela sua mão. Nossas palmas se
uniram e nos guiaram para perto de um cardume de platis pintados pelas cores
preta, branca e amarela.
Fiz sinal de joinha e vi os olhos da mesma cor da lagoa se alargando para
mostrar um outro cardume de molinésias brancos salpicados de preto, como se
fossem dálmatas do mundo das águas.
Fiquei radiante de tanta felicidade. Não há quem não se sensibilize com a
natureza e sua diversidade.
Tão feliz quanto eu, Sebastián não soltou a minha mão e nós desbravamos
um pouco mais para o fundo da lagoa, mas a água foi obscurecendo a visão
com um tom escurecido. Então ele apontou para nós retornamos para a
claridade e assim fizemos, movimentando as nadadeiras, impulsionando o
nado, sem despregar nosso contato.
E estava sendo tão bom…
Uma voz sussurrou no fundo da minha mente, dizendo que era para eu
deixar a vida me levar, sem pressão de provar aos outros que eu seria capaz de
ser produtiva, de caminhar com minhas próprias pernas, quando eu mesma
duvidava que conseguiria.
CAPÍTULO 16
Algo que me impulsionava a me superar, era ser desafiada. De certo modo,
meu pai havia sido um dos responsáveis por essa minha ânsia de querer fazer
algo diferente, novo. Ele não acreditara que, algum dia, eu fosse reagir ao seu
comando e… ao meu comodismo.
E mais uma vez fui posta em xeque.
Após me maravilhar com a vida do fundo da lagoa, tive que subir na
prancha de stand up e dissimular que a Garota de Ipanema tinha facilidade
para esportes na água. Naquele momento, agradeci à minha mãe por ter me
forçado a fazer aulas de balé em vez de me autorizar a bater bola com os
meninos da escola da minha avó. O equilíbrio que precisei para provar ao
espanhol irritante que eu conseguiria deslizar sobre a água translúcida fora
trabalhado por horas sobre sapatilhas de fita.
E foi tão bom… Nós nos divertimos horrores com a sensação de liberdade
que a prancha nos proporcionou.
“Você sempre me surpreende, Nelinha. A partir de hoje, vou te chamar de
A Musa do stand up. Melhor: A Musa de Jeri.”
Com essas palavras, lá dentro de mim, algo se ligou. A Garota de Ipanema,
aquela que não vislumbrava o mundo de opções fora do seu castelo de vidro,
tinha ficado para trás, dando espaço para uma nova mulher, mais dona de si, se
posso assim dizer, não mais a garotinha do passado, mas uma… musa.
Sebastián não tinha noção de quanto havia me motivado, além de ser um
colírio para os olhos.
— Está cansada? — ele perguntou ao meu lado em uma espreguiçadeira da
varanda-deck do seu chalé praiano. O teto de sapê fazia par com toda a
natureza ao redor.
— Muito. Parece que meus músculos estavam atrofiados. Meu corpo todo
dói.
— É assim mesmo. Dependendo do movimento, mexemos partes
diferentes do corpo antes não trabalhadas.
— Acho que meu corpo inteiro estava inerte.
Fitei o céu pontuado por estrelas.
Não era para eu me lembrar do que fizera ao meu ex-noivo naquele
momento relaxante e após um dia que ficaria na história como um dos mais
divertidos da minha vida, mas meu pensamento passeou por essa vibe dolorosa.
Talvez fossem as dores musculares. Sei lá. O fato é que eu me odiava por isso.
Por ter causado um estrago em seus sentimentos. E, às vezes, a ideia de que ele
não conseguiria ser um homem bom para outra mulher, fazia meu coração
latejar de remorso.
Por isso, não consegui segurar a boca fechada. Saber de outra pessoa o que
sentia por ter tido um relacionamento desastroso era tudo o que me
interessava.
— O que aconteceu com a Mônica, exatamente?
Ganhei um breve olhar. Sebastián jogou amendoim na boca e mastigou,
ganhando tempo para pensar na resposta que daria. Sua expressão se abateu um
bocado. Ele deu um longo suspiro, que levou uma eternidade.
Minhas mãos voaram ao cabelo e deram três voltas nele em torno dos
dedos.
— Não é fácil falar sobre mim.
— Percebi que você é reservado. Desculpe. Se não quiser falar, tudo bem.
Eu fui intrometida.
Para fechar a minha boca inconveniente, fui pegar um punhado de batata
frita na tigela sobre uma mesa baixa, nossas mãos acabaram resvalando. Minha
pele indefesa se arrepiou e foi surpreendida por um afago singelo.
— Você não é intrometida. Pelo contrário, sua presença está me fazendo
bem.
Ele virou o rosto antes que eu o olhasse. Essa coisa de mexer o pescoço a
todo instante para o outro não notar que estava admirando, avaliando,
analisando, estava me deixando com torcicolo. Havia acontecido diversas vezes
no decorrer do dia.
Mas eu não estava querendo dissimular que admirava o nariz reto em seu
perfil, o cabelo parecendo um algodão castanho no alto da cabeça a ponto da
minha análise intencional o convidar de volta a me encarar.
Então um silêncio se prolongou enquanto iniciávamos uma conversa
apenas com o olhar. Sempre o olhar, suave e intenso como uma comida
agridoce que se completa com temperos opostos. Era um misto de carinho e
desejo, o qual eu não queria admitir que nutria por ele.
Tive medo de piscar e ser a primeira a quebrar a magia que era capaz de
fazer meu corpo entrar em um frenesi de sensações, algumas reações arfantes
por vezes.
Então ele olhou para o mar.
— Eu não dei a ela o que ela esperava de mim.
Concordei, ligeiramente confusa.
Ele prosseguiu:
— Ela queria um namorado mais… romântico? É. Romântico. Que leva
flores aos encontros. Que manda mensagem perguntando como foi o dia.
Ele voltou a olhar para mim.
— Mais presente.
— Não consigo ver você desse jeito que está falando. Caramba, você está
sendo muito atencioso comigo e me conheceu há pouquíssimo tempo.
— É diferente. Acho que eu não tive um bom exemplo em casa para me
inspirar. Meu pai era bem ausente. A minha mãe morreu muito nova. — Em
geral, pessoas que sofreram ausência familiar durante a infância podem
apresentar problemas de relacionamento pessoal. Além disso, a depressão, baixa
autoestima, ansiedade e falta de confiança podem ser quadros característicos.
— Você realmente fala bonito.
— Há. Há. Dessa vez, espelhei o que meu psicólogo disse em uma sessão.
Eu fiz tantas merdas para chamar a atenção dos meus pais. Cara, você não tem
noção.
Mordi duas batatas de uma vez.
— Conta uma delas.
Fiz sinal com dois dedos em riste para ele esperar eu engolir.
— Uma de proporções catastróficas para o meu pai — engoli o restante. —
Pode ser?
— Quero saber tudo sobre você.
E eu sobre você.
— Uma vez, eu tinha acabado de atingir a maioridade, promovi um leilão
virtual. Quando meus pais souberam, eu havia vendido um Picasso da galeria
de artes da nossa casa. Eles estavam em Aspen, esquiando.
— E por que você não foi na viagem?
— Era raro eu viajar com eles.
Uma sobrancelha dele quicou.
— E o que aconteceu?
— Meu pai tentou reverter o que fiz, mas o novo dono da obra se negou a
desfazer o negócio. No final, ele foi obrigado a desembolsar uma grana para ter
o quadro favorito dele de volta na parede. Meu castigo foi ficar um mês inteiro
morando no apartamento da minha avó, com ela.
— Isso não foi castigo. Foi?
Ele batucou com um dedo no vidro em sua mão.
— Não — ri. — Para o meu pai, me tirar do castelo em que vivíamos, foi,
sim — não hesitei em concordar. — Para mim, foi maravilhoso. Esses
momentos com a minha avó marcaram positivamente a minha vida.
— Nelinha, você é uma peça rara. E sensível.
Sorri e fitei os coqueiros se movendo com o vento.
— Voltando ao assunto que você estava falando sobre ter um exemplo de
relacionamento conjugal em casa. Bom, se você se referiu a isso, meus pais
vivem um para o outro, uma melação que me dá nojo.
Fiz cara de “eca”.
— Por isso você é carinhosa. Sabe demonstrar com o corpo. Ah, você
entendeu o que eu quis dizer. Não estou sabendo explicar.
Ri.
— Você está querendo dizer que eu não tenho dificuldade com afeto físico,
com o toque? — ele concordou com um único movimento de cabeça. — Meus
pais não estiveram muito presentes enquanto eu crescia. Eles viviam um para o
outro. Às vezes, eu me sentia uma intrusa na relação deles. Estranho dizer isso,
né? Mas foi assim que eu me senti durante a minha infância e até hoje me
sinto. É. Até hoje. Passei a maior parte da minha vida na casa da minha avó ou
com babás. Mas eles sabem cobrar de mim que é uma beleza. Em tudo.
— Repito: você é carinhosa.
— Cada um reage às situações e aos estímulos recebidos de forma
diferente. Não quis criar esse tipo de trauma a ponto de os outros me olharem
como uma pessoa insensível.
Outra vez, falei o que não devia.
— Quer dizer, não que você seja insensível — acrescentei, defensiva.
Ele deu um sorriso curto.
— Você foi mais sábia que eu para se livrar de traumas.
Fiz careta e movi a cabeça como quem diz “mais ou menos”.
Eu queria ouvir mais sobre ele. Que ele tivesse em mim alguém com quem
pudesse compartilhar suas frustrações.
— Sabe, se meu pai me batesse seria menos doloroso que a indiferença.
Pelo menos, ele reagiria de alguma forma à minha presença.
Que dor ele represava em si, em suas lembranças! E eu reclamava dos meus
pais.
— Não. Violência não é solução para nada.
— Não me bater para machucar, claro. Mas, pelo menos, eu o sentiria se
importar comigo.
Tive uma vontade tremenda de confortá-lo com um abraço e arrancar da
sua alma o registro da dor que sentia no peito. Mas eu tinha de me conter. Era
possível que o assustasse com minha espontaneidade.
— Por isso não sou do tipo de me comprometer, como você que namorou
por anos.
Eu me limitei a falar:
— O importante é que tivemos as nossas avós para suprir nossas carências.
Ele ergueu a tulipa de cerveja.
— Um brinde a elas. Nosso porto-seguro.
Retribuí. Sebastián adorava brindar por tudo. Desandei a rir.
— O que foi?
— É que eu me lembrei que vó Vitória cantava a música da Garota de
Ipanema quando eu estava triste, principalmente na hora de dormir, quando eu
mais sentia saudade dos meus pais. Agora meu apelido mudou, não é?
— Você terá que se apresentar a ela como “A Musa de Jeri”.
Olhei para tudo e para nada em específico. O mar, o coqueiro, a madeira
do chão, a tulipa, menos para ele. Meu rosto pegava fogo de vergonha.
Notando meu embaraço, ele se levantou, levou a mão à lombar e esticou a
coluna.
Já era tarde, creio que próximo das onze horas, ou mais.
— Está doendo?
— Um pouco.
Mais uma vez a culpa se instalou em meu senso racional.
Olhando para cima, sugeri:
— Eu já usufruí da cama por vários dias. Está na hora de ela voltar para o
dono, não acha? — minha oferta foi natural.
Ele me deu um olhar que fez a última célula do meu corpo se revirar.
Silenciei. Nem ousei estender o assunto. O dia havia sido perfeito,
culminando com um bom papo noturno. Mantive a boca fechada, enfim.
✵
De madrugada, não sei ao certo quanto tempo passara desde a hora em que
nos despedimos até acordar com gemidos baixos atravessando a barreira da
porta. Era Sebastián. Teimoso como uma mula, ele parecia não conseguir
dormir.
Fazendo força para ajustar meus olhos à escuridão, meio cambaleando,
alcancei a cômoda e abri a primeira gaveta, todas as minhas tranqueiras tinham
sido organizadas ali. Ele insistiu para que eu a usasse enquanto estivesse em sua
casa, com a alegação de que tudo ficaria mais organizado fora da mala. Eu disse
que não era necessário, embora soubesse que seria muito mais dinâmico achar
qualquer coisa que eu precisasse. Ele respondeu com “Que mujer terca”.
Sim, eu era teimosa, mas ele dava um banho em mim em alguns
momentos. E esse era um deles. Desde cedo, ele se negara a tomar qualquer
tipo de comprimido para dor, dizendo que o estômago depois poderia sofrer
consequências ruins. E havia bebido. Não era legal misturar álcool com
medicamento, o que honestamente tive de dar razão a ele.
Mas o desconforto em suas costas estava fazendo aumentar minha culpa
por ele estar dormindo no sofá. Era questão de honra cuidar dele.
Resgatei minha necessaire de remédios. Minha avó havia comprado uma
farmácia inteira para eu viajar. Até que foi espetacular ver um analgésico
piscando diante de mim.
Passei por ele na sala, desconsiderando sua feição surpresa, e fui direto à
geladeira, sem me importar com o peso do olhar do espanhol me
acompanhando.
No máximo um minuto depois, fiz cara de mãe severa e entreguei o copo
de água a ele, junto do remédio.
— E não diga que não vai tomar. Nem sei o que faço com você sofrendo à
toa e negando se cuidar.
— A mulher mandona ressurgiu?
— Ela nunca foi embora. Estava somente adormecida.
Os lábios dele sorriram na borda do copo.
— Cata o lençol e vem dormir na cama.
— No. No. No.
— Si. Si. Si. E não me venha com um espanhol ininteligível pra cima de
mim.
Enquanto Sebastián espalmava as duas mãos em sinal de rendição, fui ao
quarto e resgatei de lá o travesseiro e o lençol. Assim que me viu de volta, ele se
levantou meio torto para um lado.
Minha intuição me disse que ele não aceitaria. Não precisava ser nenhum
vidente para entender o que a sua expressão falava silenciosamente. Só que seu
jeito gentleman estava exagerado, embora fosse fofo. Nós poderíamos de
verdade revezar onde dormir.
— Não vou me sentir bem, Nelinha. Dorme na cama, está bom?
Abracei o emaranhado de pano e o travesseiro.
— Cara, você tira meu juízo com sua teimosia.
As sobrancelhas dele se ergueram como quem diz “Quem é mais teimoso?”
— Tudo bem, Sebastián. Eu estou morrendo de sono. Não vou ficar
discutindo a essa hora da madruga com você.
Dei as costas a ele e voltei ao quarto. Apaguei a luz e me acomodei de lado.
Quando estava no meio do caminho entre a consciência e o sono profundo,
ouvi a voz com o sotaque conhecido sendo distribuída em meus dois ouvidos.
— Eu posso dormir aqui?
— Só não me peça pra levantar agora. Sem condições...
Em poucos segundos, o sono me levou para outro lugar.
Sebastián
O decote da camisola da Antonella deixava muito espaço para imaginação.
Esse foi um dos motivos do sono não chegar fácil para mim. Óbvio que não
seria necessário que ela soubesse sobre seus atributos corporais me instigando a
passar horas insone desde o dia em que dera guarida a ela.
Acordei no dia seguinte bem antes da lindeza. Assim que abri os olhos, tive
de prender a respiração, eu não queria acordá-la. Um braço circundava meu
peito, uma coxa sobre minha ereção a fazia latejar, o seio havia se acomodado
em minha lateral.
Não, você não pode inflar como a pipa do meu aparelho de kitesurf. Por favor.
Controlei a respiração, hum, e meu membro entre os quadris. Antonella
era espaçosa na cama, pelo visto.
Por quanto tempo eu aguentaria me manter imune a ela? Imune? Eu já
estava mais envolvido do que gostaria.
Eu precisava ficar indiferente a ela. Não seria difícil me esquivar durante o
dia. O hotel era grande o suficiente para não nos encontrarmos. Mas era o que
eu queria? Em definitivo, não. Levá-la a outro passeio e captar a energia de sua
jovialidade seria melhor que participar da reunião na Prefeitura de Jijoca e
depois de um workshop.
As obrigações de trabalho me aguardavam. Forçando a barra ou não, eu
estaria ocupado.
Decidido a me levantar, olhei lentamente para o rosto que estava tão
sereno, mas vacilei. Se eu fosse um pintor renascentista, eu a teria retratado.
Sem dúvida alguma, a tela seria exposta no Museu do Prado, o principal de
Madri. Linda. Mais que linda. Musa.
Com cuidado, fui me arrastando na cama, o lençol fez um leve ruído. Ouvi
um murmúrio e paralisei. Mas a respiração dela voltou a pesar. Depois foi um
ato de extrema habilidade pegar uma roupa no armário sem provocar ruído
algum ao abrir e fechar a porta e a gaveta.
Não pude deixar de olhar uma última vez para ela e me senti zonzo com
sua beleza. Meu corpo se acovardou e preferia voltar a se deitar.
Cerrei os olhos e respirei o ar com aroma floral da Antonella.
CAPÍTULO 17
Fiz um tour de checagem pelo hotel. Conversei com os funcionários que
limpavam os andares superior e inferior, o recepcionista do dia, os garçons que
ajeitavam o amplo salão aberto do café da manhã, meu lugar preferido. Por
mais que Calebe fosse eficiente em suas atividades, eu entendia que era
importante estar presente para o bom andamento das tarefas.
Um sorriso bobo não fugia dos meus lábios, mas não era somente por
demonstrar simpatia aos trabalhadores, e, sim, por estar… feliz. Na noite
anterior, eu havia me sentido querido sendo cuidado por Antonella. Sua
atenção comigo era comovente.
Mas eu tinha de tomar cuidado. Sendo mestre em me sabotar, em geral não
ouvia o que meu coração alertava. A racionalidade tinha uma fala continuada
em minha mente. Eu queria muito encontrar o meio termo e manter essa onda
pacífica em minhas emoções.
Antonella me fazia bem.
Todas as frases motivacionais — que ela frisava que eram meus mantras, eu
as repetia inúmeras vezes no decorrer do dia. O intuito era me manter sempre
em alerta e não me permitir afundar em tristeza. Foi a maneira que encontrei
para me manter equilibrado.
Subi os degraus que separavam os ambientes. Já no deck da piscina, traguei
o ar marinho até meu peito estufar. Cerrei os olhos e ergui o queixo.
Algo que aprendi desde que me instalei de frente para o mar, era ser grato.
A natureza havia me proporcionado encontrar a paz que aliviava meus
sentimentos, por vezes nublados. Agradecido, murmurei uma saudação à vida.
Quanto mais eu me mantinha positivo, mais as coisas boas iam chegando,
como… Antonella. Ela era uma moça que tinha tudo para se perder, mas se
encontrou no meio da insegurança de uma pandemia. Demonstrou ser forte o
suficiente para driblar as armadilhas que o dinheiro nos oferece com facilidade,
mesmo que ela tivesse aprontado durante um tempo. Pelo que entendi, fora
pura e simplesmente para chamar a atenção dos pais. A velha carência que eu
conhecia com propriedade.
Mas talvez eu estivesse confundindo o que sua presença significava para
mim. Talvez ela somente tivesse surgido para me dizer “ei, você tem uma vida
pela frente”. Poderia ser provável que ela tenha surgido para se tornar uma boa
amiga.
Olha meu cérebro me sabotando outra vez.
Ah, vai, a verdade era que Antonella me atraía, com certeza, de uma forma
diferente.
Em meio aos meus delírios matutinos, ouvi passos no chão, se
aproximando. Sorri na esperança de ser ela. Seria um benefício e tanto vê-la
antes de sair. Receber o sorriso singelo, embora cheio de significado, seria o
melhor presente.
Quando abri os olhos, aquela música dos desenhos animados “quel, quel,
quel,” se amplificou em minha mente. Infelizmente, me frustrei. Eu me deparei
com o mais recente funcionário. Ele havia começado suas atividades naquela
semana; Max passou a ser o responsável por conduzir as atividades de recreação
aquática com os hóspedes.
— Olá. Buenos Dias.
— Bom dia, senhor. Eu queria agradecer desde o primeiro dia de trabalho,
não tive oportunidade. Obrigado por ter me contratado.
— Ah, sim. Mas agradeça ao Calebe. Ele é o responsável pelas efetivações.
De qualquer forma, seja bem-vindo à equipe.
— Obrigado, senhor. — Ele apontou para uma parte coberta da área. —
Vou organizar o material antes da primeira aula iniciar.
Dessa forma, eu o liberei com um aceno de cabeça e fui tomar meu café da
manhã na cozinha da melhor chef do mundo, a Márcia. Dar uma boa
turbinada no estômago para ele suportar a manhã de reuniões e o início de um
workshop sobre turismo na cidade vizinha era a melhor opção.
Antes de sair dali, dei uma espiada no segundo andar. Logo vi um casal se
beijando na piscina da varanda privada de um dos quartos. Não nego que senti
uma ponta de inveja. Eu havia construído um hotel para atrair casais que
quisessem usufruir de todo romantismo que o conjunto da vista e estrutura
hoteleira poderia oferecer, mas, ainda assim, eu estava só.
Caí o olhar para o chão.
Eu me sentia solitário. Um miserável rico solitário. Sempre cheio de
antagonismos.
Era estranho me colocar desse jeito. Eu podia contar nas mãos quantos
amigos acumulei até chegar ao Brasil, eram poucos, ainda assim, jamais estive
sozinho, como me sentia naquela primavera. Então me ocorreu que eu era o
culpado por ter me fechado em uma concha individual após o meu pai… Ah,
o meu pai. Até quando eu o culparia por todos os meus momentos ruins?
Eu tinha de reagir. Viver a minha vida e não as consequências que as
escolhas dele causaram a mim e à minha família.
Ergui a cabeça e fui ao refeitório. No caminho, me deparei com a garçonete
Giovana conversando com André, vestido com bermudão e camisa. Era o dia
de folga dele. Então pesquei o que acontecia ou estava na iminência de
acontecer entre os dois. Hum. Pela minha experiência, estava claro que rolava
algo ali.
Eles se assustaram ao me ver. Soltei um sorriso contido e cordial. Contudo,
por dentro, tive vontade de rir. André era tímido, como eu fui em minha
adolescência. Na idade dele, acho que eu já tinha pegado o jeito da paquera.
Cada um no seu tempo.
— Beleza, André.
— Tudo certo, seu Sebastián.
À
À Giovana, apenas sorri mais uma vez. Nós havíamos nos visto
pouquíssimo tempo antes.
Fui ao refeitório e logo topei com Calebe conversando com Márcia.
— Graças a Deus você chegou, Sebastián. Márcia agora é toda sua — ele
disse, apertou a borda da mesa com os dedos e empurrou a cadeira para trás.
Com um bule na mão, ela fez cara de poucos amigos para ele.
— Eu só quero o bem dos meus meninos.
— Ah, não, Márcia. Também não estou disposto a ouvir seus conselhos
logo pela manhã.
Peguei uma torrada com queijo e presunto parma na bandeja que ela
segurava na outra mão e beijei o rosto dela. Sentei-me diante de Calebe e virei
a xícara para ela me servir com café.
— Há quanto tempo os dois estão sozinhos? Está na hora…
— Na hora de nada, Márcia. Eu tenho o Miguel para cuidar. Falando nele,
vou ligar para casa e checar se está tudo bem por lá.
Calebe arrancou o celular do bolso. Não sei se foi para dissimular ou se
ligaria de fato.
— Chefe, a van da Prefeitura vai sair daqui para o workshop em quinze
minutos. Não se esqueceu, né?
— Mas e a reunião com o Prefeito?
— Foi transferida para a semana que vem. Você não viu meu e-mail?
— Andei ocupado.
Pelo canto de olho, notei que a Márcia deu um sorrisinho para a frigideira
no fogão.
O rosto de Calebe se manteve inexpressivo, embora ele tenha mexido em
sua barba no melhor estilo quando estava pensando. Então um sorriso irônico
se camuflou na barba cobre.
Continuei olhando para ele sem alterar a expressão.
— Eu não contava com esse workshop. Você não quer ir no meu lugar?
Vou ter que emendar com o congresso em Fortaleza.
— Se pudesse, eu o substituiria, mas hoje vou receber aquele grupo francês
e ciceronear.
Fechei os olhos e estalei a língua.
— Calebe, você retirou essa palavra de algum livro da biblioteca?
— Ah, Márcia. Você por acaso me chamou de velho.
— Que isso? A Márcia? Jamais faria isso.
— Não coloca pilha, Bastián — ele se indignou. — Depois dessa, vou lá.
— Ficou magoadinho? — Márcia provocou nosso amigo.
Ele saiu, rindo.
Para o meu desespero, Calebe nos deixou a sós. Ela se considerava uma mãe
ou tia e era a única com quem eu me abria, muito de vez em quando. E como
toda mãe e tia, ela se importava comigo. Eu não escaparia de uma sabatina
sobre Antonella, eu sabia. Mas, naquele momento, não estava preparado para
que esse assunto viesse à tona tão cedo.
Mesmo assim, eu me preparei.
— Antonella é uma graça. Parece ser uma moça de bons princípios.
A mão alva puxou a cadeira para trás após me servir com panqueca de ovo,
banana, coco ralado, aveia, besuntada com geleia de morango e canela em pó.
— É. Parece.
Cortei a panqueca nutritiva com a faca e preenchi a boca com a mistura,
voltar ao assunto era o que eu não gostaria. Contudo, Márcia era insistente.
— Achei interessante ela ter finalizado o casamento no altar.
— Sério? Eu teria me sentido muito mal se minha noiva me largasse na
frente de tanta gente. Claro que não falei isso a ela. Por outro lado, é melhor
assim do que casar e ser infeliz.
— Agora, sim, você não me decepcionou. Sabe, Sebastián, quando eu
decidi me separar do meu primeiro marido, eu pensei que não fosse ser feliz
outra vez. Que o meu castigo por fazê-lo sofrer, seria ficar solitária. Antonella
está nessa fase de autopunição.
— Eu sei.
— Ela está precisando do nosso carinho.
As duas sobrancelhas da Márcia se ergueram e era fácil saber o que ela diria
logo depois.
— Mais do seu, que está presente com ela de forma mais intensa.
— Intensa? Eu diria somente presente.
Seus olhos claros se estreitaram.
— Pode ficar tranquila, eu tenho feito a minha parte de ser um ombro
amigo. Só que eu tenho minhas obrigações. Você pode me ajudar com isso.
Mastiguei mais um pedaço da panqueca.
Ela levantou.
— Estou ajudando você, querido. Mais do que imagina.
— Márcia, você não tem jeito.
— Quem sabe vocês dois se apoiando mutuamente, essa amizade possa se
desenvolver para uma admiração.
— Eu já a admiro — confessei.
— Hum. Então estamos evoluindo no caminho certo.
Um olho da Márcia piscou para mim.
Pode ser que, sim. Estamos.
Era melhor não sair falando o que eu sentia por Antonella. Ela iria embora
em poucos dias. Não sei se manteríamos contato. Nem os nossos números dos
celulares tínhamos trocado. Era mais seguro deixar quieto.
Eu não sabia o número dela?
Giovana entrou na cozinha.
— Márcia, o que eu posso levar para o bufê. Os hóspedes começaram a
aparecer.
Enquanto as duas dinamizaram seus afazeres, eu agilizei meu desjejum.
Minha intenção era sair de mansinho antes que Márcia conseguisse arrancar de
mim mais do que eu gostaria.
Já na passarela, pensei em voltar para casa e ver se Antonella havia
acordado. O que ela estaria fazendo? Dormindo? Nos outros dias, notei que
acordava cedo e caminhava na praia. Mas eu a teria visto se estivesse diante do
hotel.
— Seu Sebastián, a van chegou — o recepcionista avisou da porta da
recepção.
Eu estava prestes a admitir que queria vê-la antes de passar o dia inteiro
distante.
Mierda.
Sem alternativa, passei pela recepção e o rapaz entregou a minha bolsa tipo
estudante. Cruzei a alça no peito e saí para a ruela, conformado que o meu dia
seria extremamente longo. E sem o astral bom da Antonella.
Quando apontei na porta, vi quem sorria para mim.
Mil vezes, não.
Seria muito mais complicado de suportar do que eu imaginara.
Antonella
Não. Eu não estava vendo o que via. Meu estômago embrulhou. Todas as
ilusões que eu havia criado em minha cabeça desde que acordara naquela
manhã se fragmentaram após uma única visão.
Com a respiração pesada, devido a correria para tentar encontrar Sebastián
em algum lugar do hotel antes de ele sair a trabalho e entregar a carteira
esquecida sobre a mesa, não acreditei no que vi. Fiquei imóvel, parada sob o
batente da porta de entrada do hotel.
Na ruela, ancorada em um ombro do espanhol, uma mulher vestida com
um longo hippie chic branco e azul, soprava palavras no ouvido dele. Se minha
intuição não estivesse equivocada, os dois estavam envolvidos ou no começo de
algum lance. E se fosse a Mônica?
De imediato, um bolo de ingenuidade perdida se formou em minha
garganta e desceu com o sabor amargo da decepção. Não com ele, mas comigo.
Ou talvez com os dois: eu e ele. Por criar expectativas e ser enganada.
Ok. Tudo bem. O mundo não acabaria por vê-lo com outra mulher. Aliás,
eu não tinha como cobrá-lo de nada, nem de qualquer coisa. Afinal, Sebastián
possuía uma vida antes de eu chegar. Eu tinha a minha também. Não era para
eu estar ali sofrendo por algo que nunca aconteceria. Estava nítido que eu não
chegava aos pés da mulher madura que alisava o rosto lindamente barbado.
Engraçado como a gente mistura cordialidade com algo a mais. Quantas
amizades se desfazem depois que um dos dois se apaixona. Não. Eu não estava
apaixonada por Sebastián, empolgadinha, sim. Os nossos momentos estavam
sendo tão bonitos e marcantes. A última coisa que eu queria era perder a
amizade dele, embora jurasse ter visto um brilho diferente em seus olhos em
diversos momentos ao me fitar. Então tudo não passava de alucinação?
“Não sou do tipo de me comprometer”, ele havia deixado bem claro que não
era de se apegar a mulher alguma.
No momento em que ele disse aquilo, essa afirmação veio como uma
bofetada bem no meio da minha cara. Eu só precisava lembrar ao meu coração
que ele se enfiaria em uma grande roubada se não se mantivesse off para
Sebastián.
Antes que ele me visse, dei a volta sobre o chinelo e fui à sala do Calebe.
No meio do percurso, esbarrei em algumas crianças com as quais eu havia
passado um tempo, noutro dia, lendo Os Três Porquinhos.
— Tia, nós vamos embora amanhã. A gente queria tanto que você lesse
mais uma história pra gente.
Meu coração se comoveu.
Era por essa espontaneidade de sentimento, por falar o que pensa e sente,
que eu amava lidar com crianças. Para mim, era muito mais fácil que o
universo dos adultos. De certa forma, era o que eu pensava.
Eu me abaixei até nivelar meus olhos aos da menina.
— A tia vai tomar café e já vem. Vocês me esperam na sala de recreação
daqui a meia hora?
“Hum, hum”, as duas murmuraram, felizes.
Ao cruzar o pátio em direção ao chalé, encontrei Calebe entrando em sua
sala.
— Bom dia! Você pode entregar isso para o Sebastián? Ele esqueceu em
casa, quer dizer, na casa dele.
— Ele ainda deve estar na recepção. Você não veio de lá?
Fiz cara de paisagem como quem diz “prefiro que você entregue”.
— Tudo bem. Eu vou ver se ainda consigo encontrá-lo.
Com passos apressados, Calebe se afastou de mim. Acabei decidindo que
estava na hora de trocar de quarto.
— Calebe. Calebe. — Ele virou meio corpo. — Alguém cancelou a reserva
até terça?
Ele movimentou a cabeça em negativa e deu de ombros, lamentando.
Eu, ainda mais.
CAPÍTULO 18
Somente mais alguns dias. Somente mais alguns dias.
Senti um nó na garganta.
Comi qualquer coisa na casa do Sebastián. Não estava a fim de fazer o
ritual de sempre. Sentar à mesa no café da manhã, ouvir música ao vivo e
encher minha barriga até passar mal, depois caminhar com meu amigo Ozzy
pela praia – ele tinha um fôlego melhor que o meu. Mesmo porque eu havia
marcado o encontro com as crianças. E foi tão bom me sentar no chão
emborrachado da sala de recreação. Os momentos com elas recarregaram as
minhas baterias.
Não é todo dia que você dorme na cama com um deus da beleza, então ele
acorda e não diz nem um “bom dia” para você e, ainda por cima, vai encontrar
outra.
Isso estava cheirando à novela dramática. E eu não pretendia ser uma das
protagonistas, muito menos a perdedora. Meu orgulho ainda sobrevivia em
mim. Não havia abandonado um casamento para me jogar em um xavequinho
que me faria sofrer.
Não mesmo.
E o dia estava uma belezura de vivacidade. Ficar me lamentando não
deveria ser uma opção.
Deitei na espreguiçadeira luxuosa. Ela era tão confortável, que ficar horas e
horas ali não seria nada difícil de acontecer. Mas existia o sol…
Através dos óculos, fitei o céu tão azul que seria complicado permanecer
sob ele sem me refrescar de tempos em tempos. Minha pele me lembraria disso
mais tarde. Era tão certo como a onda do mar produz energia com seu
movimento incessante, que eu não ficaria à mercê dos seus raios ultravioletas o
dia inteiro, ainda mais com as variações climáticas e a mudança na camada de
ozônio e tal.
Meu maior exemplo havia sido a minha avó que, quando nova, estendia-se
sobre a toalha e se esquecia da vida, sem proteção alguma na pele. Ela tentava a
todo custo adquirir a cor jambo-dourado como a do André, o que jamais
aconteceria, pois sua genética não permitia atingir tal tom. E deu no que deu,
um câncer de pele surgiu e ela foi submetida a uma cirurgia tensa.
Tensa eu que fiquei, na época. Vó Vitória era tudo em minha vida.
Por influência do que ela sofrera, dei uma aula aos meus alunos sobre a
importância do uso do protetor solar. Frisei que seria bom que eles
obedecessem às mamães quando elas os chamassem para repassá-lo e como ele
havia sido criado pelo americano Benjamin Green, que, comovido pelas
queimaduras que os soldados adquiriam ao retornarem da Segunda Guerra
Mundial, criou um creme que pudesse ser útil para a proteção das peles dos
combatentes.
Fiquei tão feliz… As mães elogiaram o meu trabalho à diretora e se
tornaram minhas fãs.
Voei longe nos pensamentos tomada pela decisão de não pensar em
Sebastián, sem sucesso, porque logo em seguida, eu me recordei do nosso papo
tão agradável e revelador, do rosto delicadamente másculo o qual eu não me
cansava de admirar.
No silêncio da noite anterior, eu podia ouvir as batidas do meu coração se
acelerando, desencontradas com as dele, num ritmo manso. Ele estava deitado
de lado, um braço encoberto pelo travesseiro, a outra mão sob a face. Então foi
inevitável não me virar para ele e volitar meus dedos sobre seu rosto, fazendo o
contorno sem encontrar nossas peles no toque que o acordaria. Percebi que eu
não queria estar em outro lugar que não fosse naquela cama com Sebastián.
A gente cria tantas fantasias sobre e com uma pessoa...
Mas a vida real é cruel e nos mostra que devemos manter os pés no chão e a
cabeça sobre o pescoço sem imaginações mirabolantes.
Foi bom ter visto Sebastián enrabichado com a outra para me centrar, me
colocar em meu devido lugar. Eu era uma mulher ainda muito moça, na visão
dele. Nossa diferença de idade era um empecilho, era o que eu imaginava.
Fiz de tudo para me distrair, brincando com as crianças. Mas minha cabeça
girava em pensamentos e retornava ao ponto de partida como em uma corrida
de kart. Até preferi curtir a piscina coletiva em vez de me beneficiar com a
particular, pelo simples motivo de que eu precisava de um ar puro que não
estivesse impregnado pelo perfume natural do Sebastián. Interagir com outras
pessoas, conversar, seria mais saudável para mim.
Como eu estava de bobeira, resolvi dar uma espiada nas redes sociais. Havia
um tempinho que não me encorajava a ver o que falavam de mim, ou comigo.
Seria possível que meu celular explodisse quando ligasse o wi-fi.
Digitei a senha na tela e “pá”. Tunc, tunc, tunc, tunc… Tirum, tirum,
tirum… Sons de todos os aplicativos se afinavam como os instrumentos de
uma banda.
Mordi o lábio inferior e olhei para o meu lado. Uma senhora ria do meu
semblante embaraçado.
— Há dias não conecto — eu me justifiquei.
— Você está certa, querida. É o melhor a fazer. Neste paraíso, o bom é se
desligar do mundo e aproveitar cada instante. Tive que esconder o celular do
meu neto para ele fazer as atividades que o hotel oferece, senão o quarto seria
sua prisão.
— Onde ele está agora?
— Foi praticar kitesurf com o instrutor.
— Hum, a senhora me deu uma boa ideia.
— Então aproveite, porque os dias voam quando estamos de féria. — ela
apontou para a praia. — Olha, eles estão vindo. Por que não tenta agendar um
horário com o Max para hoje?
Balancei as pestanas para o infinito me imaginando matando o tempo no
mar. Logo resolvi que não leria mensagens porcaria nenhuma, muito menos
postagens de amigos em redes sociais. Eu tinha um dia inteiro pela frente para
me divertir com as belezas naturais. Voltei a silenciar meu celular e assim ele
ficaria por mais alguns dias.
Viajando nos pensamentos, não notei quando o adolescente se inclinou
para beijar o rosto da avó. Meu coração se encheu de saudade da minha.
— Vó, foi muito massa.
— Eu tinha certeza de que iria gostar.
O neto dela sacudiu os braços, vários pingos de água nos acertaram.
— Cuidado, rapazinho. Está molhando a moça.
Gesticulei que não havia mal algum.
O tal instrutor, que eu ainda não havia encontrado por ali antes, abriu o
sorriso largo para senhora ao meu lado.
— Entregue são e salvo, senhora Ágatha.
— Obrigada, Max. Ah, essa moça aqui quer agendar horário com você.
O neto dela deu um pulo na piscina e espalhou água para o alto. Ela se
conformou em somente menear a cabeça, recriminando-o pois a água acertara
as costas do Max.
— Como é mesmo seu nome?
— Ah, sim. Antonella — respondi.
— Eu devo ter horário mais no final da tarde. Pode ser? — Max sugeriu.
— Tranquilo. Eu estou de bobeira mesmo.
— Vou pegar a agenda para conferir.
Assim que ele se afastou, eu ergui os óculos. Foi impossível não dar uma
conferida no tipão que era o Max. Ainda mais quando ele retirou a bermuda e
ficou somente de sunga. Avaliei os seus movimentos e os músculos se
contraindo e soltando numa dança segura da sua masculinidade. Ele se sentou
em uma cadeira ao lado do salva-vidas e pegou uma prancheta.
— Ele é bonito, não?
Todo o vermelho da minha pele ascendeu para as bochechas.
É
— É. Tem o corpo em dia.
— Meu marido que não ouça o que vou dizer, mas ele se parece com o
modelo da revista de lingerie que a minha manicure leva para eu comprar. Você
já viu essa revista? Eu esqueci o nome da marca.
Abaixei os óculos e encostei a cabeça na espreguiçadeira, na especial
tentativa de driblar a conversa. Em se tratando de senhoras e esse papo de “o
cara é bonito”, eu sabia muito bem onde terminaria o assunto.
O Max poderia ter as costas largas, as veias aparentes do ombro alongando-
se ao bíceps presunçosamente inchados, a barriga reta que não permitia a
bermuda se fixar na cintura, mas ele não era o Sebastián. E eu nem queria que
fosse. Aliás, não queria homem algum. Se fosse me relacionar com outro,
somente ele seria capaz de promover uma rebelião molestadora da harmonia do
meu corpo.
— Talvez eu tenha visto essa revista, sim — respondi a ela.
— Você está acompanhada?
Ai, céus! E a conversa se enveredou pelo caminho que eu suspeitava.
Antonella
Sebastián encarou minha boca. Nós íamos nos beijar bem ali? Como
ficamos tão próximos um do outro em dias? Eu não saberia explicar o quanto
meus sentimentos estavam enredados por ele.
Ergui as mãos para cobrir seus ombros e as recriminei por isso, parando
com elas no meio do caminho. A dúvida tirou a minha respiração. Ele havia
dito que se incomodava com toques. Mas ali não era somente um gesto
descompromissado, era muito mais que um simples flerte. Examinei as escolhas
que tinha e não me ocorreu como abraçá-lo, senti-lo por inteiro colado em
mim sem nos pertencermos.
As mãos dele encontraram as minhas e me libertaram da dúvida. Ele as
levou à sua nuca e as pressionou. Beijou meu braço e iniciou um molejo tão
gostoso do corpo, me levando ao ritmo da música. Seus dedos escorreram por
meus braços, fomentando a liberação do acúmulo de apetite que meu corpo
sustentava há dias.
Então os olhos voltaram a me fitar com tanta intensidade, que minhas
pernas amoleceram, resultado das contas parcialmente acinzentadas me
desejando.
Eu queria muito, muito mesmo descobrir como seria ser beijada por
Sebastián, conhecer seu sabor. Fui incapaz de negar a mim mesma que, com
ele, eu me sentia em segurança. E todas as angústias que acumulei durante o
dia e desde o momento em que vi a mulher sentada ao lado dele no restaurante
se desintegraram em inúmeras partículas.
Encostei meu rosto no dele, nossos corpos se acostumaram um com o
outro no mesmo instante e formaram uma única massa humana em
movimento ritmado pelo reggae. Cada músculo do meu corpo relaxou ao
comando do Sebastián, sentindo o calor das mãos espalmadas em minha
lombar.
CAPÍTULO 20
— Você é linda!
Ele demorou os lábios em meu ouvido. Meu corpo arfou mais uma vez.
Desse jeito, eu não chegaria viva ao hotel. Foi arrastando a boca em minha pele
abrasada e parou na borda da minha. Tocou-a de leve, causando expectativa.
Meu. Deus. Prendi um suspiro.
Eu não planejava cortar o beijo que estava prestes a acontecer. Então não
respirei, nem gemi… nem nada. Somente senti as batidas do meu coração.
Com as pálpebras baixas, os sentidos se apuraram. Quando os lábios do
Sebastián reivindicaram que os meus se abrissem, o deleite no meu estômago se
amplificou pelo corpo em uma intensidade inigualável a qualquer outro beijo
completo que eu tenha recebido. E o nosso ainda era um quase, somente o
início que caminhava para uma eternidade de espera.
Eu tinha que me acalmar.
Mas, no instinto dos meus pensamentos, fechei as comportas abertas pelos
meus lábios. Somente um homem havia me beijado, meu ex-noivo. Isso estava
me deixando tão nervosa como se eu ainda fosse virgem e na expectativa do
primeiro ato sexual.
E se ele não gostasse do meu beijo?
Naquele instante, pareceu que eu tinha desaprendido o que fazer com a
boca, com a língua…
O corpo abraçado ao meu interrompeu a dança.
— Relaxa. Sou eu que estou aqui, com você. Ei. É o Sebastián.
Esse era o problema.
Demandei meus músculos a amolecerem. Logo fui tomada por uma onda
lenta, que injetava confiança em todas as partes de mim. A calma foi se
instalando a ponto de, enfim, minha boca se dispor a se entregar aos
movimentos delicados que os lábios dele indicavam que os meus os
acompanhassem.
Nessa evolução, as pontas das línguas se tocaram. O gosto da cerveja se
juntou à caipirinha e ambos criaram um novo sabor: Sebastián-Antonella.
Assim como o beijo foi se intensificando, o coração no tum-tum-tum ligeiro se
aliou às respirações ofegantes. A dança dos lábios encontrou a sincronia antes
ameaçada por minha insegurança. E estava sendo tão bom, tão bom, que eu
me esqueci de que estávamos em um restaurante sob as vistas de uma multidão
de olhos, inúmeros conhecidos.
Eu me permiti gemer nos lábios dele.
A atração exagerada que sentíamos não fazia sentido. Mas, naquele
momento, constatei que o que não fazia sentido era não permitir que os lábios
dele pressionassem os meus, minha boca fosse lida, esmiuçada… pela de
Sebastián. O destruidor de malas e construtor de emoções.
A música cessou. Ouvi, ao longe, a vocalista informando que a banda
tiraria uns minutos de descanso.
Nossos lábios se afastaram, embora os meus ainda sentissem o inchaço
provocado pelos dele. Sebastián encostou a testa na minha e os olhos se
fecharam. Soltou um suspiro longo, por fim.
— E agora? O que vamos fazer? — perguntei, ansiosa.
Nós estávamos sob um mesmo teto. Uma cama que havíamos
compartilhado como… amigos?
— Não temos que fazer nada. Somente deixar a vida dançar.
Ri.
— Mais seguro.
— Mais sábio.
Abaixei os braços. Não sabia o que fazer. Sebastián tomou a iniciativa e
entrelaçou nossos dedos.
— Preciso ir ao banheiro. Eu estava indo quando um certo alguém resolveu
me beijar.
Ele soltou a gargalhada gostosa que eu amava ouvir.
— Foi você que parou para falar comigo.
— Você me ofereceu a música. Eu sou uma pessoa educada. Parei para
agradecer.
Ele virou para mim e beijou a ponta do meu nariz.
— Tudo bem. Nós dois somos culpados.
— Melhor assim. Ah. Eu tenho que voltar para a mesa com o pessoal —
falei como quem pergunta “É um problema para você? São seus funcionários”.
A testa mostrou seus sulcos.
— Eu posso ir junto?
Respondi com um sorriso de alívio.
— Mas primeiro vou ali — indiquei o banheiro com o polegar.
— Eu te espero na porta pra ter certeza de que não vai fugir.
Era estranho ter beijado Sebastián e voltar para a mesma casa com ele. Eu
estava entrando em pânico. O que ele esperava de mim? Fiquei indecisa se
havia dado um passo errado.
Entrando no banheiro, conferi meu reflexo no espelho comprido da
parede. Cheguei bem perto dele e cobri os lábios com alguns dedos. Pelo toque
notei que eles ainda se encontravam dilatados e inflamados pelo beijo.
— Oi, tudo bem?
Ah, não.
Era o que faltava para a noite ficar mais agitada.
— Hum. Tudo. Eu te conheço?
— Só queria te alertar que o Sebastián não se apega a ninguém. Você
parece ser muito nova e pode se decepcionar.
Ergui o nariz com petulância.
— Ah, é? Eu tenho idade suficiente para fazer minhas escolhas.
— É provável que sim — ela me esquadrinhou. — Bom, desejo boa sorte.
Era muita informação para lidar estando com Sebastián.
Saí do banheiro com a cara normal, era o que parecia, pelo menos para
mim.
— Tudo bem?
— Tudo tranquilo.
Ele me deu uma olhada meio em dúvida.
Ok. Nada apagaria a magia do nosso primeiro beijo.
✵
Acordei no dia seguinte com a cabeça latejando, nem o analgésico aliviou.
Tomei mais outro. E dormi até mais da metade da manhã. Quando consegui
sair do quarto, me enfiei em outro banho. Eu me lembrava por relances que
havia tomado banho sozinha, me segurando nas paredes do boxe para não cair.
Mas acho que ele ficou do outro lado da porta e perguntou se eu estava
bem mais de uma vez.
Para minha surpresa, Sebastián havia deixado um bilhete na bancada da
cozinha, ao lado de uma fruteira.
Sebastián
Calebe: A Cássia está destratando nossos funcionários. A Ariadne, a massoterapeuta, saiu do Spa
chorando.
Eu: Como nós iríamos saber que ela era assim? Pareceu tão simpática ao telefone.
Senti um calafrio.
Eu: O que Antonella tem a ver com isso?
Calebe: As duas andam se estranhando. Inclusive, nesse episódio do Spa, a Antonella tomou partido
da Ariadne. Ela tem sangue quente.
De um certo jeito, gostei do que li, mesmo que ficasse preocupado que
acontecesse um escândalo no hotel e vazasse para a mídia. As duas eram figuras
conhecidas. Só que o jeito atrevido da Antonella foi o que primeiro me
chamou atenção desde o momento em que a conheci.
Calebe: Conselho de amigo: não a chame de princesa, jamais. Eu não entendi patavinas do que ela
disse depois que a chamei assim. Juro que foi uma fala carinhosa, sabe? Aí ela ficou brava e disse que
não era a “Princesa da Celulite” e que essa tinha sido um clone mal-acabado dela. Antonella atropelava
as palavras enquanto explicava. Cara… eu juro que não disse que ela tinha celulite. Eu nunca faria isso.
Eu: É “Princesa da Celulose”. O pai dela é o Aurélio Alencar Braga, o empresário do ramo.
Eu: Pode deixar que eu entendi o que ela quis dizer. Mas, olha, quando eu chegar aí, se for preciso, eu
converso com Antonella.
Calebe: Vou tirar a “princesa” daqui para as coisas esfriarem. Tenho que buscar um casal no aeroporto.
Pensei em convidá-la para ir junto.
Varri os olhos pela antessala e notei que meus colegas empresários foram se
dispersando, dirigindo-se ao salão principal.
Eu: Vai começar uma palestra. Preciso ir.
Calebe: 👍
Antonella
“Ou você é o tipo do cara que fala o que a mulher quer ouvir?”
“Então você não é tão sensato quanto tentou demonstrar. Um falso santinho, é?”
“Há. Não é bem assim. Sou um cara que pode se apaixonar se também for correspondido.”
Mas a pergunta que não queria calar era “O que você está fazendo aqui?”.
Preferi não invadir a privacidade dela. Talvez eu não quisesse ler o que ela
escreveria.
Não gostei nadinha do arrepio que cruzou meu corpo.
Estufei as bochechas.
“Nelinha, preciso dormir. Amanhã nos vemos.”
Antonella
Sebastián
Antonella
Alguns dias após o evento, tive uma reunião importante com Calebe e
fornecedores, esses últimos por videoconferência, no meu escritório.
— Agora outro assunto.
— Diga — sinalizei a Calebe que avançasse.
— As fotos da festa chegaram. Preciso que você escolha as melhores para
colocar no site.
Com o braço estirado sobre a mesa, dedilhei no vidro, pensando.
— Escolha as de sempre. Com as personalidades importantes da cidade, a
decoração, os convidados, empresários e os moradores. Fotos espontâneas,
pode ser.
— Ok.
— Você não achou que a festa deste ano teve outro clima? Mais alegre. É
provável que você tenha dificuldade para selecionar as melhores.
Calebe cruzou a perna e seu tornozelo parou sobre a outra coxa.
— Ou você que estava em sintonia diferente dos anos anteriores?
Sorri me entregando.
A presença da Antonella já era essencial para mim. Ela parecia preencher
todos os espaços da casa. Onde eu fosse, podia senti-la, mesmo que ela estivesse
ausente.
Eu não me via na cama sem estar com Antonella. Nossa intimidade foi
aumentando e aos poucos ela foi se soltando comigo. Esse ritmo mais lento do
reconhecimento dos pontos mais sensíveis do corpo dela ao estímulo do meu, e
vice e versa me surpreendeu. Algo havia mudado. Era como se eu estivesse
redescobrindo como dar prazer a uma mulher e receber de volta. Como se eu
tivesse zerado tudo o que havia aprendido no sexo e quisesse criar uma nova
história.
Era bem isso. Para ser sincero.
Aliviei as costas, encostando-as em definitivo na cadeira.
— Acredite ou não, Antonella está dando outro significado à minha vida.
As sobrancelhas avermelhadas empurraram a testa para cima.
— Estava na hora. Viver sozinho não é muito bom.
Estranhei Calebe se lamentar.
— O problema é que ela vai embora. E depois?
— Sebastián, você já se relacionou à distância. Não é nenhum mistério.
Bom, pelo menos, eu não via você se importar com isso.
Mexi meu corpo na cadeira.
Calebe me olhou por um instante.
— Você já parou para pensar se amou a Mônica algum dia?
Encarei-o com a expressão mais fechada.
Boa pergunta. Resposta difícil. Ou fácil demais para eu admitir que havia
criado ilusões sem motivo, no passado.
— No — levei mais um segundo para confirmar. — Não pensei, mas estou
começando a avaliar melhor meus sentimentos.
Ele se colocou de pé e empurrou a cadeira para frente outra vez, colocando-
a no lugar.
— Há o hotel que está sendo construído no Rio de Janeiro, a cidade natal
dela.
— Não vamos nos precipitar.
— É visível como vocês combinam. Bom, vou almoçar e levar Miguel à
escola.
Eu me levantei para acompanhá-lo até a porta.
— Como ele está? Mais calmo.
— Cara, nem te conto. A Antonella fez um, como posso falar... — ele
olhou para cima. — É como se fosse um mural. Aí eu vou prendendo colagens
do Miguelzinho fazendo suas atividades.
— Como assim?
— A rotina dele. Eu coloco no quadro o desenho de um menino indo
escovar os dentes. Depois tomando café. Ela disse que o autista não suporta
surpresas. Então vou mostrando a ele o passo a passo do seu dia, o que ele vai
fazer. Não é que está ajudando?
Interessante.
— Eu não a vi fazendo esse trabalho.
— Você estava viajando. Olha, meu amigo, sua namorada foi um achado
para todos nós.
— Ela não é minha namorada.
Só então me lembrei da farsa para convencer a Cássia Lúcia e ri para mim
mesmo.
— Considere essa possibilidade, Sebastián.
— Vou pensar no assunto.
— Cara, eu me lembrei de uma coisa. Não coloque fotos da Antonella no
site, por enquanto.
O rosto dele virou no mesmo instante para mim. Logo me expliquei.
— Ela não quer ser encontrada por enquanto pela imprensa.
— Entendi. Mas vou deixar todas arquivadas.
— Perfeito. Falando nela — espichei o nariz para frente.
Inspirei fundo e prendi o ar. Antonella vinha caminhando com uma
elegância impressionante. Como ela conseguia estar com o pouco pano da
parte superior do biquíni e canga abaixo da cintura e se manter na classe? Mi
madre teria apreciado conhecer a deusa.
Algo que observei foi que Miguel havia aceitado dar a mão a ela.
— Pai, filho entregue — Antonella o passou para o meu amigo.
Uma surpresa boa ocorreu. Miguel se retraiu e não aceitou se afastar da sua
“tia” favorita. Há anos eu o conhecia e era uma dificuldade para aceitar meu
toque. Antonella havia conseguido esse feito.
Na mesma hora, eu e Calebe nos entreolhamos e seu olhar dizia “Você não
vai deixar essa mulher passar em branco por sua vida”.
Eu a observei se abaixar e nivelar o rosto no do moleque. Pude ver os olhos
dela se dissolvendo em carinho por ele. Tive de controlar a admiração senão eu
a abraçaria naquele corredor e quebraria o encanto entre os dois.
— Meu amor, a tia falou que depois vamos brincar de novo, tá bom?
Primeiro o Miguel vai almoçar, depois vai à escola. Por último, volta para me
ver.
Piscando algumas vezes seguidas, ele olhou para o rosto da Antonella.
— Agora a tia pode te abraçar?
Ele não se mostrou arredio e aceitou que ela concretizasse o carinho.
Calebe deu uma batida de mão em meu ombro e foi embora satisfeito com
o filho caminhando ao lado dele.
Antonella
Fiz carinho no Ozzy quando ele tocou suas patinhas nas minhas coxas.
— Oi, bonitão. Você outra vez.
O dono o chamou e ele foi todo serelepe.
Para quebrar a mudez do Sebastián, eu disse qualquer coisa.
— Ai, ai. É divertido demais essa história de fingir para a Cássia Lúcia que
somos namorados. Você não acha?
— É.
— Você se lembra do outro dia?
— Qual deles? Foram vários.
— Ela vinha em nossa direção e eu te abracei. Aí, você começou a narrar as
expressões e gestos dela. E, quando ela chegou bem perto, nós nos beijamos
para não corrermos o risco de ouvirmos a pergunta que tivemos que responder
agorinha. Eu sabia que iria engasgar. Ainda bem que você mente melhor do
que eu.
Sebastián não se pronunciou e sua tromba de elefante estava me deixando
irritada.
Depois disso, no restante do percurso, fomos da praia à casa dele num
silêncio sepulcral. Talvez eu devesse perguntar o motivo de ele ter se calado.
Porque, olha, quando ele entrava nesse mood mau humor…
Concentrada, passei uma revista no meu cérebro, tentando descobrir o que
havia dito ou feito. Tive a magnífica certeza de que somente a Cássia Lúcia
agira com inconveniência.
Esse lado esquivo e rabugento do Sebastián não me agradou. Tudo bem
que eu teria meus pontos fracos que ele não topava, seria provável. Todos
temos defeitos e qualidades.
Mas… dai-me paciência.
Como eu não podia me calar facilmente...
— Por que você está em silêncio? Eu fiz alguma coisa? — perguntei, assim
que pusemos os pés no deck.
Astolfo nos recebeu com alegria.
— Crrác crrác!
— Olá, querido! Sem palavrões, por favor — respondi.
Olhei do papagaio para Sebastián. Ele coçou a barba.
— Tem algo que está me incomodando.
Até que enfim ele se pronunciou.
Demorei um bocado para entender o que a frase significava.
— Hum. O que é?
E eu continuava me perguntando o que raios eu tinha feito.
— Se há algo que eu não gosto é de mentir.
Então a compreensão, enfim, deu seu cartão de visita para a minha
consciência.
— Ué? Mas foi você que inventou sobre nosso namoro falso.
— Eu quis te defender porque você está paranoica com essa história de
jornalistas não a encontrarem.
— Paranoica? — lancei uma risada indiferente. — Você não sabe o que é
ficar sendo fotografada, perseguida em todas as festas, eventos, só porque seu
pai é rico. Não sei se você sabe disso. E, se eu já era vitrine antes, agora eu sou
todas as vitrines juntas de um shopping.
— Você não sabe nada sobre o meu passado. Não sabe — Sebastián
encrespou.
— Esse é o problema. Você fala pouco. Eu sou um livro escancarado. Você
é tipo um remédio homeopático. Doses lentas de informação, sabe?
— Não acredito que estou ouvindo isso. Você é uma das poucas pessoas
com quem eu me abro.
— Será? Só sei que você é rico e veio da Espanha. Teve uma ex que morava
longe. E tem uma avó. Nada mais. Quem é você, Sebastián?
Ele fincou os dentes no lábio inferior.
— Quer saber, eu não quero ser mencionada como a noiva que fugiu para
ficar com o amante.
Aquele típico silêncio que há nos filmes quando uma das peças do casal
coloca o outro em cheque, estava acontecendo justamente conosco. Logo com
ele? E comigo?
— Entendi. Está arrependida?
— Não! Senão não estaria aqui.
— Mas é assim que você me vê depois de tudo o que estamos vivendo?
Sebastián cerrou a mandíbula e o maxilar, virou as costas largas para mim
como se tivesse dado por encerrada a nossa discussão.
A palavra final seria a dele?
— Idiota — Astolfo falou.
Não sei se foi para mim ou para ele.
Passei pelo espanhol e fui à cozinha. Para minha surpresa, ele me perseguiu,
ops, seguiu. Abri o armário e peguei um pacote de biscoito e abri com tanta,
tanta força, que alguns voaram e deram piruetas até o chão.
Com o corpo duro na passagem e os braços cruzados, Sebastián conseguiu
me irritar de uma forma irreversível. Mas, olha aqui, não seriam os olhos
cristalinos, muito menos a barriga gloriosa que me instigariam ir para a cama
com ele, nenhum desses chamarizes me persuadiriam recuar na briga. Ah, não
iriam. Eu tinha de ser indiferente ao padrão estético atraente do Sebastián. Ele
todinho me distraía muito.
Tentei passar entre a criatura birrenta e o que restava de espaço na porta.
— Quer me dar licença?
— Aonde você vai?
— Não te interessa.
Seu pomo de Adão se mexeu em uma engolida severa.
— A rabugenta deu as caras?
— O mal-humorado voltou a atacar?
Ele esmiuçou meus olhos de uma forma séria como eu nunca havia visto
antes.
Da minha parte fiz um esforço para me controlar e me calei, eu não queria
piorar as coisas.
Um pedido afobado de que eu deveria pedir desculpa a ele chegou em
minha consciência. Mas por que tinha de ser eu a dar o primeiro passo?
CAPÍTULO 28
Enchi os pulmões com uma respiração longa e pus os pés para me levar a
algum lugar que fosse longe do Sebastián. Após poucos minutos estalando os
chinelos na sola do pé, bufando mais que a Cássia Lúcia quando me viu na
casa dele, cheguei à loja de bijuteria. Eu precisava ver um rosto conhecido.
Aliás… foi tudo culpa dela. Outra vez. A Cássia Lúcia. Quando ela
aparecia, era agonia ou discussão na certa.
— Eita que a moça está arretada. O que foi que aconteceu? — Luiza se
assustou.
— Lidar com homens é a coisa mais complicada do mundo.
— E eu não sei? — Luiza foi até mim ofereceu uma banqueta do balcão.
— O que o Sebastián fez?
— Tudo culpa daquela ganhadora do reality show.
— Ah, sei quem é. Ela veio aqui, agorinha. Foi tão simpática comigo. E me
contou umas coisinhas sobre você e o Sebastián enquanto comprava um colar.
Parece que ela tem um encontro. Disse que se inspirou em vocês dois. Não é
meigo?
— Hã? Você está mangando de mim.
— Por quê? Por ela ter um encontro?
— Não. O que ela falou sobre mim e o Sebastián?
A curiosidade me matava por dentro.
— Ah. Tão fofo. Ela disse que vocês se conheceram num site de
relacionamento. Um tal de “Mais que um Match”.
Meu queixo caiu. A fofoca corria mais rápido que um foguete indo à lua.
Meu Deus do Céu! Foi o tempo de o quê? Meia hora? De eu e Sebastián
brigarmos? Era provável que a Cássia Lúcia tivesse uma conta no “Mais que
um Match” e decidiu usá-la depois de contarmos como nos conhecemos, isso
se ela não havia acionado o match com outra pessoa alguma vez.
Para o meu dia ficar mais completo, a mulher, a que se achava a dona do
Sebastián, deu as caras. Saiu de um provador, com biquínis na mão, e me
encarou. Depois me ofereceu um sorriso tão sarcástico, que fez meus ossos
estalarem.
Eu não fiquei para trás, não desviando o olhar para outro ponto qualquer.
Ainda mais no estado em que eu estava. Raiva pura. As frases mais esdrúxulas
que ouvira, depois de todas da Cássia Lúcia, é claro, vieram dessa freguesa da
loja.
— Luiza, eu vou levar as seis peças — ouvi a mulher dizer.
— Uau! Todas ficaram maravilhosas em você. E, não sei se reparou, mas dá
para variar entre elas e formar novos conjuntos.
— Perfeito. Vou usar todas no final de semana, porque tenho um encontro
marcado e não foi por aplicativo. Não preciso de aplicativo, sabe?
O que eu sabia era que enfiar todos os biquínis na boca dela e empurrar as
palavras espinhosas não seria difícil de eu fazer.
Engoli em seco.
Resolvi não dar ouvidos a ela e não quis demonstrar que estava nervosa.
Esperar por Celeste encontrar o cartão de crédito na bolsa e Luiza terminar
a baixa de cada peça no sistema da loja foi tempo suficiente para eu recuperar o
juízo.
Então preferi me levantar e dissimular checar as bijuterias expostas ao
longo de uma parede maior da loja e no balcão em vez de bater boca com a
mulher instigadora de confusão. Já bastava o desentendimento com Sebastián,
que havia começado a doer meu coração.
A luz deu uma piscada.
— Agora eu fiquei aperreada. Justo quando estava dando baixa no sistema,
a luz acabou — Luiza se irritou.
— Recebemos um comunicado de última hora dos órgãos competentes que
talvez chova daquele jeito que aconteceu no início do ano.
— Ah, não.
Resolvi ir embora. Para onde? Eu ainda não sabia.
Teimosa, orgulhosa, com o coração apertado, fiquei andando pela vila, mas
nada que meus olhos viam me emocionava. Meus pensamentos e sentimentos
eram todos dele, do nosso desentendimento. Nós havíamos dito coisas que
poderiam gerar marcas num relacionamento, um que eu não sabia como
definir. Essa dúvida acirrava o desconforto grande em meu coração.
Entrei em uma lojinha e comprei um caderno para desenho, além de um
conjunto de lápis de cor. Desenhar me acalmava. Eu desenharia todas as
paisagens do mundo se fosse preciso para encontrar o equilíbrio.
Meu estômago deu uma pirueta de fome.
Na pressa de sair para bem distante da loja, percebi que havia esquecido o
pacote de biscoito sobre o balcão. E, ao andar pelas ruelas, refletindo sobre o
que falar com Sebastián quando o visse, eu me esqueci de comer.
Avistei um restaurante de massas onde me sentei para almoçar. Nada de
peixes nem de praticante de kitesurf para me desorientar. Mas, como nada é
perfeito, o dono do estabelecimento era espanhol, então o sotaque que
amaciava com frequência os meus ouvidos e sensações me alertou que eu…
Ah, céus! Porcaria. Desgraça. Eu estava apaixonada por Sebastián. Bem que a
Heloísa havia me alertado outro dia, afirmando que eu estava derretida por ele.
Virei as palmas das mãos e gotículas esparsas refrescaram minha pele. Uma
gota de chuva aqui, um chuvisco ali, e parecia que a tal tempestade iria chegar.
Passando pela rua, um senhor com uniforme laranja avisou:
É
— Moça, o alarme de indicação de chuvas fortes foi acionado. É melhor a
senhorita voltar para onde está hospedada.
Eu tinha mesmo cara de turista? Com certeza.
— Certo. Estou indo — respondi ainda considerando aquilo um exagero.
Fitei o céu e constatei que de fato a força do vento trazia nuvens densas,
cinza-chumbo, que empurravam as mais claras para distante da cidade de
Jijoca. Lamentei não poder ver o pôr do sol naquele dia.
Oouuwiiiwi. Oouiuiwiii.
Meu abdômen fisgou de susto. Busquei de onde vinha o som insistente e
não identifiquei a sirene de alerta acionada em poste algum. Gente, ou eu
estava em algum campo de guerra e não sabia, ou a tempestade teria a força de
um furacão.
As pessoas se agitavam indo em várias direções.
— Sorry. Sorry — uma moça se desculpou por ter esbarrado em meu braço.
— Ok.
Oouuwiiiwi. Oouiuiwiii.
A sirene não dava trégua.
O vento passou a zunir com uma força descomunal.
Os pingos engrossaram passando de meros plec, plec para plec, plec, plec,
plec, plec...
Um estrondo de trovão me fez dar um pulo.
Optei entrar pela porta principal do hotel e não seguir o caminho da casa
do Sebastián pela praia.
— Nelinha, Sebastián passou aperreado por aqui. Ele estava te procurando.
Pediu para te avisar que é para não entrar no mar. Parece que a velocidade dos
ventos vai aumentar…
— E a tal tempestade está chegando — fitei o rosto do André,
completando seu raciocínio. — Chuva forte em Jericoacoara.
— A última foi um estrago. Fios na rua ficaram expostos. As ruas, alagadas.
Parecia que o mar tinha mudado de lugar, carregando tudo por onde passava.
Complicado.
— Eu não sabia disso. Ok, recado dado. Não vou chegar próximo ao mar e
nem voltar à rua.
A movimentação no hotel estava agitada. Os funcionários recolhiam as
espreguiçadeiras exclusivas para os hóspedes. Outros colocavam proteções de
aço, ou algo parecido, na frente do salão do café.
— Nelinha, Nelinha…
Avistei Max vindo da areia, ele segurava equipamentos de mergulho. Então
fui ao seu encontro até o fim do teto coberto de sapê, assim que ele acenou
para mim. Somente então notei que as ondas no mar se formavam com uma
altura impressionante, como eu não vira durante todos os dias da minha
estadia até aquele momento. A faixa de areia fora engolida alguns metros e a
espuma chegava próxima aos pés dele.
Um guarda-vida passou de quadriciclo e avisou aos poucos banhistas que se
encontravam na areia para sair logo dali.
O vento lançou meu cabelo numa diagonal, meio que de baixo para cima,
cobrindo parcialmente o rosto.
— Eita, a coisa está feia — falei ao ver o Max diante de mim e passei um
elástico nas mechas fartas.
— Seu Sebastián está louco atrás de você.
— Já estou sabendo. Obrigada por avisar, Max — aumentei a voz para ser
ouvida por cima da chuva insistente.
— Nós guardamos todos os equipamentos de kite no depósito para o mar
não levar. Parece que o mar invadiu o barracão na última tempestade forte e o
prejuízo foi grande.
Uma espuma mais espessa avançou mais para perto que antes.
— O mar está subindo rápido — falei alto a observação do meu cérebro.
Vi o céu ser cortado por um raio e cair na água.
Cabruuuuum!
O rosto do Max assumiu um semblante assustado. Ele encolheu os ombros
com o barulho do trovão. Olhou para trás e viu a cortina de água descendo,
que ia do teto ao chão.
— Vamos entrar, Nelinha. Está perigoso ficar aqui. Fora a chuva que está
aumentando cada vez mais.
O latido insistente chamou minha atenção para a areia.
— Já vou. Deixa eu chamar o Ozzy.
— Traz ele pra cá. Mas não demora.
Concordei com a cabeça.
Uma onda bateu com força e sua espuma se alastrou areia acima. Cada vez
chegava mais próximo do hotel. Eu temi que a maré engolisse o Ozzy. Ele saiu
correndo em fuga do mar para mim.
— Au. Au. Au — o amigo continuava latindo obstinado.
— O que está acontecendo, rapaz. Por que você não está em casa?
— Au. Au. Au.
Ele fez o movimento que ia correr e olhou para mim. Dei um passo à
frente, o bichano acelerou as quatro patas em seguida.
A chuva encharcou minha canga. Os pingos grossos batiam na pele numa
sequência assustadora enquanto perdia o fôlego atrás do Ozzy. A sirene deu
sinal de vida e repercutiu da rua principal até a praia. O frio cortou minha
pele. Encolhi os braços, mas me mantive firme atrás dele, preocupada.
— Menino, vem, vem. O mar está perigoso.
— Au.
Cabruuuum!
Abracei mais forte meu corpo, os ombros amparando as mãos, e larguei os
chinelos na areia. Tropecei num pedaço de madeira e meu dedo reclamou.
Ai!
Outro raio seguido de um trovão me fez repensar em retornar para o hotel,
mas Ozzy correu para perto do mar mais à frente um pouco. Olhei para trás e
não avistei o Max, nem ninguém nas piscinas do segundo andar, muito menos
na coletiva. Todos haviam se recolhido num local seguro.
O que eu estou fazendo correndo atrás desse cachorro teimoso?
Ao longe, o salva-vidas do quadriciclo buzinou tão insistente que Ozzy
voltou a latir.
Foi então que a minha percepção atingiu o significado do que acontecia.
— Meu Deus!
Olhei para o lado e estendi os braços para cima. Sinalizei para o salva-vidas
que viesse o mais rápido que pudesse. Mas ele estava distante. Não daria
tempo.
— Socorro! Socorro!
A onda cobriu a cabeça da mulher desesperada. Não havia escolha, eu tinha
de tentar salvá-la antes que fosse tarde demais.
Desatei o nó da canga do meu pescoço e corri para as ondas. Logo que
avancei alguns passos, saltando na espuma, já estava com a água acima do
abdômen. Sem o meu comando, o mar me puxou para dentro, a água vinha de
todos os lados formando redemoinhos. Meu coração disparou quando captei o
tamanho da onda que se dobrava e iria virar sobre a cabeça da mulher. Ela
gritava e, no seu desespero, não conseguia sair de onde estava. Era provável que
ela tivesse caído em uma vala.
Ai, meu Senhor!
A espuma grossa e alta vinha pra cima de mim e de repente me subtraiu a
visão do que acontecia além. Mergulhei. Um turbilhão me puxou para baixo.
Meus pés se desencontraram numa dança sem ritmo certo ao passo que, acima
de mim, o mar se movia com fúria.
Quando a água diminuiu a espessura sobre a minha cabeça, fugindo em
direção à praia, consegui nadar para frente e enfrentei a correnteza.
— Soo — Cássia Lúcia engoliu água — coorro.
Ou eu caía na vala com ela, ou não conseguiria salvá-la.
Que agonia!
Outra onda se formava e vinha impiedosa. Não estávamos tão distantes da
areia, mas parecia que o hotel se encontrava a um oceano de distância.
— Quando eu te empurrar, não tenha medo, vai com a onda como se
estivesse com uma prancha de bodyboard. Surfe a onda.
— Eu não vou conseguir.
— Vai. Você é forte — gritei para ela ouvir, já que outro trovão arrebentou
em algum lugar.
Nossos pés se moviam como loucos sobre a água na tentativa insana de nos
mantermos acima do fundo. Era uma vala, com certeza. A agitação que se
formou era sua característica significativa e aumentava à medida que a onda
chegava.
— Não tenha medo. Não olhe para trás.
Impus a força máxima em meus braços e empurrei as costas da Cássia
Lúcia.
— Vai.
Não tive tempo hábil para fazer o mesmo. Perdi o tempo da onda. Olhei
para trás e outra vinha, mas o vórtice aumentou embaixo de mim. Tentei me
erguer acima da espuma que bateu sobre a minha cabeça e me rodeou me
puxando para o fundo. Engoli água. Tentei nadar para cima. Quando consegui
emergir, outra onda esmurrou a minha cabeça.
Sebastián
Antonella
Sebastián
Antonella
Sebastián
Sebastián
— Sebastián, preciso falar urgente com você — Calebe disse logo que
expôs o rosto na porta do escritório.
— Entre.
— Problemas.
— Mais? Você já viu isso? — retirei a revista da gaveta e joguei sobre o
vidro da mesa.
No mesmo minuto, ele levou a capa com a minha foto e da Antonella para
perto dos seus olhos. Soprou o ar fazendo ruído.
— Agora eu entendi por que o pai dela está vindo para cá.
O sino com o nome “perigo iminente” trincou meu cérebro em alerta.
— O ricaço Aurélio Alencar Braga?
— O próprio. Tive que dar autorização para pouso da aeronave dele no
heliponto do hotel. Desculpe, mas como eu negaria?
Aquiesci com a decisão do Calebe. Eu me levantei e fui em direção à janela,
ao lado da porta. Separei dois filetes da cortina com dois dedos. Avistei
Antonella com um astral melhor do que o de três horas antes. Ela, a Giovana e
a Márcia ajeitavam a mesa comprida para o jantar coletivo, no pátio.
— Você já disse a ela que o pai está prestes a chegar?
— Preferi falar com você antes. O que vai fazer com a informação?
Tive alguns segundos para raciocinar.
— Deixe acontecer. Melhor deixar que seja surpresa. Quanto tempo temos?
— Menos que o tempo da viagem de Fortaleza a Jericoacoara.
— A fila já começou a se formar lá fora?
— Mande o pessoal entrar. Quem sabe no meio de tanta gente, eles
controlem os ânimos quando se virem.
— Boa. Vou falar para Márcia que vamos começar a organizar a entrada do
pessoal.
Meu sangue esfriou quando tive a certeza de que a hora para a chegada do
milionário se expirara. A qualquer instante ele surgiria no pátio com Calebe o
conduzindo para eu recepcioná-lo. Somente então resolvi sair da minha sala.
Fui me posicionar ao seu lado, nem que fosse para entregar os pirulitos que
ela havia comprado para dar às crianças como sobremesa. Mesmo que eu não a
alertasse sobre o pai, eu estaria com ela dando o meu apoio incondicional.
Estamos juntos nessa.
— Até que enfim saiu da toca, né, amor? — ela reclamou entregando-me o
pote de pirulitos. — Servicinho especial, entrega os pirulitos às crianças da fila.
— Eu entrego daqui mesmo quando aparecer alguma. Quero muito ficar
com você — olhei para ela do jeito que a fazia amolecer.
— Tudo bem. Em casa, eu vou te cobrar esse olhar mole. Isso não vai ficar
barato.
A todo instante, eu revezava o olhar do corredor que vinha da minha casa
para os assistidos que iam passando pela mesa e cumprimentando-os. Antonella
servia a carne do dia. Márcia, arroz e Giovana, feijão. O meu papel, cumpri
meio errado. Fui dando pirulito a todos que se aventuravam por ali.
Ela virou para mim.
— Meu Deus, Sebastián. Você acabou com todos os pirulitos. Quantos
você deu para cada um? E não foi somente para as crianças, né, amor?
Meneei a cabeça. Estreitei a boca e a contraí num sorriso camuflado.
— Ah, fui entregando…
— Vou ter que buscar mais. Você não tem outra coisa pra fazer não?
Um suspiro profundo e contrariado escapou dos lábios mais charmosos que
conheci. Meu desejo era beijá-los e não parar mais.
Quando eu ia dar um selinho na boca atraente da Antonella, fui
assombrado por um arrepio. O rosto dela ficou lânguido e seus lábios
entreabriram. Havia chegado o momento do enfrentamento.
— Meu pai está aqui — ela falou tão baixo que eu tive que fazer leitura
labial, embora não precisasse naquele instante.
Cerrei os olhos ao mesmo tempo em que não contive uma careta.
Em seguida, olhei sobre o ombro e encontrei um olhar escandalizado.
Também pudera, a princesinha estava com avental, lenço na cabeça e servia
marmita coletiva. Bom, para mim aquilo era o máximo, mas aposto o meu
pescoço em jogo que ele não compactuava com a nossa animação.
— Calma. Lembre-se de que nós estamos juntos nessa.
Ouvi um suspiro de alívio.
Antonella
Era mais que certo de que o meu pai havia lido as manchetes das revistas e
dos jornais sobre mim e o Sebastián, porque para ele despencar do Rio de
Janeiro para Jeri sem ter um motivo forte…
Mas eu não iria embora antes do prazo com o senhor Aurélio, como eu
havia informado a ele quando telefonou. Faltavam dois dias somente para eu
voltar para… não sei para onde iria. Casa da vó? Da Helô? Eu tinha decidido
morar sozinha, mas até conseguir fazer a logística funcionar.
Deus. Do. Céu.
Não me movi enquanto o meu pai vinha ao meu encontro.
Olhei de canto de olho para Sebastián. Como ele conseguia sorrir para uma
senhora ao entregar a sobremesa, eu não entendia, estando naquela situação de
desgaste emocional. Bom, talvez ele estivesse tranquilo porque não conhecia o
meu pai. Ainda.
Acompanhado do seu secretário particular, ele ordenou em um tom
mínimo:
— Antonella Vivian, vamos para casa.
CAPÍTULO 36
— O senhor não está vendo que estou trabalhando? —respondi na mesma
serenidade aparente.
Sorri para o próximo da fila e preenchi a marmita com carne de panela
enquanto ele permanecia me encarando, com aquele semblante de “Obedeça-
me agora, menina”.
Sentindo o peso do clima sobre nós, Sebastián virou o rosto e sugeriu:
— Vai ao meu escritório com o seu pai para conversar.
— Só se você for comigo. Quero que esteja junto.
— Tudo bem. Eu acompanho vocês.
Na sequência, Sebastián não se negou a topar com a minha súplica, uniu as
nossas mãos e me levou com ele para perto do meu pai, no lado oposto da
mesa. Calebe veio cobrir a nossa falta na entrega das marmitas.
Ofertando bandeira branca, Sebastián estendeu a mão para cumprimentar
meu pai.
— Senhor, é um prazer recebê-lo no meu hotel.
O pomo de Adão do senhor Aurélio se moveu uma única vez com tanta
transparência, que constatei que a conversa não seria fácil. Mas, como havia
previsto, ainda que meio reticente, lógico que ele aceitou a cordialidade. Meu
pai era um homem de educação incontestável.
Certo. Respirei fundo.
— Eu vou deixá-los à vontade para conversarem — Sebastián tentou se
esquivar do embate.
— Fica — respondi, determinada. — Pai, você pode pedir para o seu
assessor sair da sala? Essa será uma conversa íntima — o velho olhou para o
Sebastián.
Meu namorado e meu familiar se entreolharam. No instante seguinte, meu
pai deu o comando com a cabeça para seu puxa-saco escapulir dali. Assim
ficamos a sós. Sebastián indicou a cadeira para meu pai se sentar; ele negou,
mais uma atitude previsível do senhor poderoso.
— Pai, eu me vi sozinha depois que saí daquela igreja.
— Até hoje eu e a sua mãe não entendemos as razões que a levaram a
deixar que tudo chegasse a esse ponto. Passamos a maior vergonha das nossas
vidas. Você não acha que deveria ter terminado o noivado antes?
Claro, a imagem de boa família estava sempre em primeiro lugar.
— E o senhor entenderia se eu dissesse que eu não gostava do Horácio o
suficiente para me casar com ele? Minha mãe iria fazer o maior escarcéu do
mundo também. Para vocês, ser um bom partido se resume a posição social e
ter grana.
— Teria sido melhor, Antonella Vivian, se você tivesse resolvido isso antes
do casamento.
Abri os braços, indignada.
— Pai, até hoje eu vivi a minha vida numa sinuca de bico tremenda.
Queria agradar a vocês, mas tinha que ser com o que me era imposto. Vocês
nunca ouviram os meus argumentos, ou sentimentos, meus anseios. Vocês
ordenavam e pronto.
— Ordenávamos? Você sempre teve liberdade para fazer o que quisesse.
Esse foi o maior erro da sua educação.
— Será? Engraçado que eu sempre me senti sozinha enquanto família.
Você e a minha mãe nunca me incluíram em seus planos. A não ser que fosse
para mostrar ao mundo o que a Princesa da Celulose tinha de conforto. Bens
materiais não suprem o amor.
Ele me olhou, perplexo.
— Antonella, não acredito que estamos tendo uma conversa como esta na
frente de estranhos. Vamos embora agora.
Meu pai e Sebastián se entreolharam.
— Eu disse que seria melhor eu sair.
— Não, Sebastián. Você é o meu namorado.
— Há quanto tempo vocês estão juntos?
Meu pai havia dado crédito às reportagens, óbvio.
— Sério que o senhor está pensando que eu…
— Senhor, eu sei que as evidências são brutais quanto a nós dois. Acredite,
eu tenho o maior respeito por sua filha ou por qualquer outra pessoa. Jamais
me prestaria a destruir um relacionamento — Sebastián se empertigou. — Mas
eu entendo que o senhor tenha essa imagem quanto a mim — senti a quentura
do braço acalentador cruzar minhas costas. — Só que as minhas intenções com
sua filha são as melhores possíveis.
Do jeito que Sebastián conduziu a conversa, parecia que eu estava inserida
num romance de época. Até que estava sendo divertido. Retribuí o gestual do
Sebastián e nós nos entrelaçamos, mostrando que éramos de fato um casal.
— Como foi que vocês se conheceram tão rápido? Isso não faz sentido.
— Para o verdadeiro amor faz, sim, pai.
Ele soltou uma clássica gargalhada que me fazia tremer de desgosto.
— Ah, minha filha. Esse rapaz deve ser mais um capricho seu. Pegue as
suas coisas e vamos embora. Vamos acabar logo com isso.
— Já disse que não vou. Apenas no dia marcado da minha viagem.
— Antonella Vivian, a minha paciência está por um fio com você. Pare de
agir com mimo. Cresça. Você não se acha tão madura? Então está na hora de
colocar em prática. Você não enxerga as consequências dos seus atos para a
imagem das nossas empresas?
Descolei do abraço do Sebastián.
— Cansei de estar sempre posta em cheque por todos. Você, a minha mãe,
o Horácio, sociedade, repórteres… Aaah! Sabe o que o senhor ainda não
entendeu há mais de cinquenta anos? Vem aqui, por favor.
Grudei minha mão no braço dele. Meu pai se retraiu.
— Por favor, minha filha. Sem ceninhas.
Olhei fixo nos olhos verdes como a cor da água da Lagoa Azul, na primeira
vez em que estive lá.
— Vem, por favor.
Com relutância, ele me acompanhou até a porta e nós demos um passo
para a calçada do pátio. Seu secretário se colocou à disposição, ao lado.
— Está vendo aquelas pessoas ali? Agora a fila está terminando. Mas
muitos já passaram por aqui desde a enchente no vilarejo. Enquanto o senhor
estiver somente dentro do seu escritório e em nossa casa, não vai entender o
que seus funcionários necessitam. Enquanto o senhor estiver preso nas
dependências administrativas da fábrica, o senhor não criará empatia com os
seus funcionários.
Ele me olhou com as sobrancelhas arqueadas, surpreso com meu discurso
sincero. Apontei para a Márcia, a Giovanna e a Cássia Lúcia, essa última havia
chegado enquanto eu estava detida nas paredes do escritório do Sebastián.
— Aquelas outras pessoas, inclusive uma delas é famosa, não sei se o senhor
a reconhece da TV, mas elas estão ajudando não somente com o trabalho
voluntário, mas repare nos sorrisos de amor que elas dão para os que recebem a
doação. Foi sobre isso que sempre tentei conversar com o senhor, mas sem
sucesso. Quando resolvi ser professora na escola da vovó, quis sentir isso de
perto. Lamento que o senhor nunca tenha se aproximado da vó. Ela é honesta
e carinhosa como essas pessoas são. Lamento a mãe não ter uma ligação forte
com a minha avó como eu tenho.
O silêncio do meu pai estava me irritando horrores.
— E foram essas pessoas, a vó Vitória e aquele homem por quem me
apaixonei, que me fizeram me sentir em casa. Não numa casa física, mas num
lar com afeto. Agora o senhor entende por que preferi ficar aqui? Pai, mesmo
que o senhor e o Horácio tenham me deixado em uma situação de
vulnerabilidade para me provar que eu preciso de vocês, eu consegui superar
isso com a ajuda dessas pessoas. Aqui, eu estou me sentindo bem como nunca.
Eu vou voltar para o Rio, mas não sei se volto para a sua casa.
Eu o fitei nos olhos assim que viramos um de frente para o outro.
— Eu não estou dizendo que o senhor deve sair distribuindo sua fortuna
para os outros, afinal o trabalho foi árduo para conseguir ter o que a nossa
família tem e é merecido, desde a época do meu bisavô. Ter dinheiro não é mal
algum. Mas isso não significa que devemos fechar os olhos para as necessidades
alheias e deixar passar as oportunidades de ajudar, como essa que está
acontecendo. Pai, a vida nos testa a todo instante — expirei o ar, levando com
ele tudo que havia estado em meu peito durante anos, palavras que nunca
foram ditas antes.
Os lábios do meu pai se entreabriram, mas voltaram a se unirem. Ainda
pude notar que ele engoliu em seco.
— Quanto ao Sebastián. Não, nunca o vi antes de chegar aqui. Aliás, nós
nos conhecemos no avião e ele me ajudou em todas as dificuldades que passei.
Sou grata a ele por ter me recebido em sua casa enquanto não surgia uma vaga
em algum quarto. Ele se predispôs a sair do seu conforto para me deixar
usufruir sozinha. Sempre me respeitou. Sou grata pelo prato de comida que ele
me ofereceu. Pelo carinho que me entregou sem pedir nada em troca. Por tudo
isso aqui que o senhor está presenciando.
Girei a cabeça para mostrá-lo mais uma vez o ambiente fraternal
Meu pai soltou a língua que o gato deveria ter mordido, porque fiquei
surpresa por ele ter me escutado pela primeira vez até o fim. Eu esperava que o
meu discurso eloquente o tivesse sensibilizado. Contudo, quando ele iria se
pronunciar com alguma palavra, o Prefeito da cidade chegou e o reconheceu.
Ou talvez alguém o tivesse avisado que meu pai estava no hotel.
— Senhor Aurélio Alencar Braga. A que devemos a honra da sua visita à
nossa cidade?
O secretário do meu pai, esse eu ainda não conhecia, cumprimentou o
Prefeito e revelou o cargo dele antes que cometesse a gafe de não saber quem
ele era.
— Excelentíssimo Senhor Prefeito, o senhor Aurélio está de passagem pela
cidade.
Eles se cumprimentaram e, enfim, o meu pai reagiu.
— Vim ver como a minha filha está depois do que aconteceu na vila.
— A senhorita Antonella é sua filha? Moça educada, agradável. Ela está
sendo prestativa nessa fase difícil que estamos passando. O senhor deve se
sentir orgulhoso dela.
Meu pai me olhou nos olhos.
— Mais do que eu imaginava que pudesse me sentir.
— Aí está o jovem Sebastián — meu namorado surgiu na porta. — Eles
formam um casal invejável.
Pois é… O tal do bichinho da inveja. Ninguém me tirava da cabeça que
alguém da cidade havia vendido nossas fotos aos tabloides.
— Olá, senhor.
Na verdade, a chegada do Prefeito da cidade de Jijoca foi essencial para os
ânimos se acalmarem. Então meu pai não teve muita escolha e acompanhou o
político num tour pelo hotel e pela vila. Aquele click de câmera que tive a
impressão de ter ouvido no dia do Festapé não foi falso.
Quando me vi somente com Sebastián o alívio veio, mas eu segurei a
agitação das lágrimas nos meus olhos.
— Estou muito orgulhoso de você.
— Ai. Eu nem sei mais o que falei. As palavras foram saindo e saindo…
— Você se expressou com o coração, com seus sentimentos mais
profundos. Mandou bem demais, amor.
— Vamos ver as consequências desse meu enfrentamento.
— Tenho certeza de que você ganhou o respeito do seu pai.
Fui dominada pela certeza das palavras do Sebastián e o abracei, os olhos
persistiram em arder com a intensidade do momento e o corpo inteiro
ondulou em tremor. Ainda assim, o alívio por ter enfrentado a situação de
cabeça erguida me deu forças para superar o turbilhão que zanzava em mim.
Naquele dia, meu pai retornou do tour imposto pelo Prefeito, resolvido a
embarcar para Fortaleza, mesmo que fosse tarde da noite. Sebastián insistiu
para que eles se hospedassem no hotel, mas meu pai não aceitou.
“Eu a vejo em dois dias em casa, minha filha. Vamos conversar sobre tudo
o que aconteceu aqui”, meu pai disse no momento da despedida.
Sebastián
Naquele mesmo dia, dei início ao meu plano profissional. Meu namorado
martelou tanto em minha cabeça sobre as ilustrações, que foi inevitável que
uma brilhante ideia surgisse em minha mente.
— As aventuras de Astolfo e Ozzy. Volume um e dois finalizados.
Distraída, dei um pulo na cadeira quando duas mãos tocaram meus
ombros.
— Pai, não faz isso, não. Meu Deus do Céu.
Desde a nossa conversa em Jeri, ele vinha fazendo de tudo para se
aproximar de mim. Minha mãe tinha um jeito menos meloso, mas puxava
assunto várias vezes, sem mencionar o nome do Sebastián.
— Desculpe, filha. Não foi a minha intenção. Posso ver?
— Você não vai rir?
— E por que eu faria isso? Quero muito saber o que você anda fazendo
recolhida no seu quarto.
De posse de todas as ilustrações, ele se sentou na poltrona ao lado da
bancada de estudos e ajeitou o laço do roupão no corpo. Eu preferia desenhar
no papel a usar um aplicativo próprio, meus traços ficavam mais soltos estando
livres da tecnologia.
À
À medida que seus dedos mudavam os papéis de mãos, o sorriso ia se
abrindo. Fiquei curiosa para saber o que ele estava achando do meu projeto
literário.
— São bons, pai?
— Bons? São maravilhosos. Como eu nunca soube que você tinha esse
dom?
Estreitei os lábios e preferi guardar a resposta óbvia para mim mesma.
— O que você pensa em fazer com este trabalho?
— Penso em publicar essas histórias e outras que estão borbulhando em
minha cabeça. A inspiração está vindo com tudo. Montar uma editora com
foco em histórias infantis. Depois trabalhar para ela crescer no mercado. Aí
quero muito criar um site onde os pais possam ler com seus filhos. Isso
estimula a interação da família e a leitura dos pequenos. Seguir por esse ramo.
Difundir a literatura infantil nas escolas. Tenho tantas ideias. Quero ganhar
dinheiro nesse ramo, mas fazer o trabalho social também.
Enquanto meus pensamentos vagavam e a boca expressava o que eu tinha
em mente, meus olhos passeavam pelas fotos que havia imprimido e pregado
no aramado na parede atrás do meu pai. Sebastián e Astolfo eram os que mais
estavam presentes no mural.
— Foi Sebastián quem me estimulou a finalmente encontrar um projeto de
vida associado aos livros, à literatura, à pedagogia, às crianças. Ah, posso
também bolar uns brinquedos educativos de papel.
— Hum, Sebastián.
Olhei de volta para o rosto dele. Meu pai estava louco para que eu tocasse
no assunto “casamento jogado para os ares e namorado novo”. Como eu
emudeci, ele voltou a falar:
— Pensei que você gostasse de lecionar.
— Eu gosto, pai. Mas quero ter meu tempo livre para tocar vários projetos
ao mesmo tempo. Amo os meus alunos, mas…
— Você se sente presa.
— Exatamente.
— Bom, se você permitir, eu posso ajudar você. Posso contratar uma
equipe de profissionais para o planejamento do seu sonho.
Fiz careta. Eu queria mesmo andar com minhas próprias pernas.
— Pelo menos pense no assunto. Começar o próprio negócio sem
investimento e um bom planejamento é realmente difícil. E eu posso
proporcionar esse estopim para você, filha. Dinheiro é para ser usado em causas
nobres. Não foi você que me ensinou isso?
Olhando nos olhos dele, sorri.
— Tá. Juro que vou pensar. Mas, se eu aceitar, nada de usar da sua
influência para me beneficiar.
— Combinado. Quando tiver decidido pelo que pretende realmente fazer,
me fala — ele se levantou e beijou minha testa. Colocou as ilustrações na mesa
com cuidado. — Estou orgulhoso da mulher que você está se tornando. O
homem que de fato tiver o seu amor será um sortudo.
— Meu coração já tem dono, pai.
Os olhos dele se livraram dos meus e se perderam nas fotos do mural.
— Deixa a poeira baixar mais. Tudo o que aconteceu está muito recente
para nós recebermos o Sebastián em nossa casa. Você sabe que sou amigo da
família do Horácio há muitos anos. Não vai pegar bem, por enquanto. Mas
uma hora eles vão ter que entender que você tem o direito de escolher a sua
felicidade.
— Obrigada, pai. Eu sei esperar. Nós só vamos poder nos encontrar daqui
a dois meses mesmo. Ele é o engenheiro responsável pelo trabalho de
recuperação das casas atingidas pela tempestade.
Com as mãos nos bolsos do roupão, ele analisava meus olhos. Era mais
certo que o senhor Aurélio ruminava em sua mente se namorar Sebastián não
seria fogo de palha. O tempo se encarregaria de provar que eu o amava.
— Boa noite, minha filha. Amanhã tenho que viajar para Brasília. Quer
vir?
— Não, pai, recomecei no trabalho hoje.
Ele sorriu e saiu. Peguei o celular e liguei para o Sebastián, torcendo para
ele estar acordado.
— Como foi o seu dia, amor?
— Sentindo saudade de você — ele nem titubeou para responder.
— Eu também. O meu primeiro dia de trabalho foi legal com as crianças,
mas os adultos são chatos. Quer dizer, alguns são. Por onde andava na escola,
tipo no refeitório ou na sala dos professores, tive que aturar olhares curiosos,
ou de repreensão, ou desdém.
Girei a cadeira e fui à cama.
— Não liga, não. Isso vai passar. O tempo cura tudo.
— Espero que sim. Você não vai acreditar. Descobri o meu projeto de vida,
a conversa vai ser longa, amor. Está com tempo?
— Só se for por chamada de vídeo para matar a saudade.
— Chantagista. Eu estava pensando em te chamar para um bate-papo no
“Mais que um Match” — zoei.
— Você não iria conseguir me achar. Desativei a conta. Não precisei do
aplicativo para encontrar a mulher perfeita para mim — ele falou num tom
sério.
Por essa eu não esperava. Que fofo! Eu também faria o mesmo. Não fazia
sentido algum manter o meu perfil.
— Hum. Amor, olha, eu nunca mais mexi no aplicativo. Foi somente
naquele dia em que conversamos, tá? Vou dar baixa no meu perfil também.
— Faça o que achar melhor.
Nossa! Se fosse o Horácio metido nessa situação, seria um Deus nos acuda
se eu permanecesse com a conta no “Mais que um Match” ativa nem que fosse
por mais alguns segundos.
— Já está decidido. Vou desativar. Agora se prepara aí. Vou te chamar.
Sebastián
Não estava sendo fácil me manter distante da Antonella. Há um mês nós
nos conectávamos impreterivelmente às nove da noite. Conversávamos sobre
diversos assuntos, sobre os progressos nas inspirações para a coleção dos livros
infantis que ela estava escrevendo e ilustrando. Eu estava orgulhoso dela.
— Então, amor. O baile de aniversário da empresa será na próxima sexta.
Pena que você não vai poder vir — ela protestou com um biquinho.
Segurei o canudo e beberiquei a água de coco.
— Infelizmente, não, amor. Mas falta pouco para eu passar um tempo aí
— mudei de assunto. — Ah, alguém quer falar com você.
— Quem?
Larguei o coco na mesa e direcionei o celular para a gaiola.
— Astolfo, fala — imitei o som de um papagaio falando. — Não me
decepcione, cara.
Enfim, ele respondeu:
— Tián. Einha. Amo.
— Não foi bem isso que treinamos, garoto. Fala outra vez.
— Tián. Einha. Amo.
Voltei a olhar a tela. Antonella ria de quicar na cama.
— Bom, eu tentei, né? Não tenho o seu talento para adestrar animais.
— Eu entendi, amor. “Sebastián ama Nelinha”.
— Tián. Amo. Tián. Einha. Merda. Tián. Idiota — Astolfo desandou a
falar.
— Dios Mio! Agora como vou dormir com esse tagarela falando todo o
repertório?
Pensei que Antonella fosse explodir de tanto rir. E eu, idem.
Aproximei o rosto da tela e dei um suspiro longo.
— Você faz falta aqui…
CAPÍTULO 39
Cochilei por mais de duas horas ao som da televisão. O dia não havia sido fácil.
Meio zonzo, conferi a hora no celular.
Mierda!
Rapidamente chequei se havia alguma mensagem dela.
Nelinha: Sebastián, você tá aí? Hoje vou dormir mais cedo. Amanhã teremos reunião com os pais dos
alunos. Preciso estar bem para encarar essa.
✵
No dia seguinte, no horário em que eu tinha em mente que ela estaria livre,
preferi ligar e ouvir a voz que me acalmava a qualquer hora do dia.
Descansei os pés sobre a mesa de centro e, no celular, cliquei em favoritos
para selecionar o nome dela.
— Oi, amor. Espera aí — a voz um pouco distante conversava com algum
aluno. Era o horário do intervalo da aula. — Desculpe. Meu aluno me
chamou. Senti tantas saudades ontem.
— Eu também. Pelo visto, nós dois estávamos mortos de cansados. Dormi
bem cedo e você também. Como foi a reunião de pais?
Ouvi o som da bufada dela.
— No geral, foi tranquila.
— Hum. Eu preciso contar algo para você.
— Solta a bomba.
— Sobre as nossas fotos nos tabloides. Foi a Celeste. Ela me chantageou
durante muitos anos sobre não revelar a minha origem aos moradores da vila,
alegando que não seria bom para o meu negócio. Em troca, ela desejava algo a
mais de mim.
— Safada. Miserável. Estava escrito nos olhos dela que era uma cobra.
— Bom, como não conseguiu o que queria, ela fez o que você já sabe. Foi
bom ter acontecido porque me livrei dos assédios dela de uma vez por todas.
— Olha, nem sei o que faço se der de cara com essa pessoa.
— Já disse. Não vai fazer nada. Além disso, eu a denunciei por
improbidade administrativa e peculato.
— Que isso? Sério? Mas isso não é perigoso?
— Perigoso era ela continuar se aproveitando do cargo na Prefeitura para
roubar. Há um tempo eu desconfiava das armações da Celeste, mas não tinha
como provar. Recentemente, consegui provas suficientes para incriminá-la. Já
era hora de dar um basta nas armações dela.
— Amor, mas… — o silêncio aflito veio como eu previra. — Ai. Fiquei
preocupada. E se ela fizer alguma coisa contra você, já que a denunciou?
— Fisicamente? Não. É pouco provável que ela chegue a esse ponto de
loucura. Não se preocupe. Mesmo assim, tomei algumas precauções. Ela nem
está mais na região. Assim que ficou sabendo por mim que eu tinha provas
contra ela, pediu exoneração do cargo e sumiu. Ela pode até ter escapado de
um inquérito administrativo, mas não de um penal.
— Cuidado, tá?
— Fique tranquila, amor. Mas como estão os preparativos para o baile?
— Não estou tão animada para ir. Você não vem.
— Sua presença é necessária. Agora que seus pais estão tentando ficar mais
presentes, você também precisa ceder.
Ouvi o sinal do término do intervalo soando na escola.
— Preciso ir, Sebastián. Mais tarde ligo...
Quatro dias foi o tempo que transcorreu após a conversa com Antonella.
Seria um momento especial. Por mais que eu não quisesse sentir o frio na
barriga, ele atacou meu equilíbrio, foi inevitável não ser pego de surpresa por
uma sensação perturbadora. Entrar em território ainda não conhecido, não era
nada agradável.
Necesito respirar.
Mas eu não esperava por algo. No dia, fiquei sem ação quando vi o
envelope. Inacreditável foi a palavra que passou em minha cabeça. Acreditem,
mas há pouco menos de três semanas eu havia recebido o convite para o baile
da empresa do senhor Aurélio, com um cartão anexo, escrito de próprio punho
por ele.
Sebastián,
Contamos com a sua presença no baile da nossa empresa.
Será uma boa oportunidade para a nossa família conhecê-lo melhor.
Aurélio Alencar Braga.
Eu me imaginei sendo recebido por ele e sua esposa. Depois dançando com
Antonella sob muitos olhares atentos. Permitindo-me ser fotografado após
tantos anos distantes das perseguições da imprensa. Que flashs retornariam a
espocar diante dos meus olhos e voltaria a ficar em evidência. Senti-me
estranho imaginando todas essas cenas futuras.
Por um bom tempo, no escritório, foquei no recebido e tive dúvidas se iria
ao baile.
Márcia surgiu nesse instante de indecisão, ela havia ido mostrar dois tipos
de cardápios montados para eu receber uns empresários num jantar. Ao notar a
minha fisionomia num misto de dúvida e incredulidade, ela parou diante de
mim e me questionou o que estava acontecendo. Empurrei com os dedos o
papel timbrado até o outro lado da mesa.
Diferente de mim, ela foi enfática com seu conselho e pegou logo no meu
ponto fraco.
— Você não pode deixar de proporcionar essa felicidade à Antonella.
De repente eu me vi querendo passar por esse momento e assumir de vez o
que havia ficado somente idealizado nas nossas conversas noturnas. Mas…
decidi que faria surpresa à minha namorada.
Poucos minutos após a conversa com a Márcia, autorizei que Calebe
confirmasse a minha presença e a dele como segundo convidado, apesar de
todos os protestos do mundo, rabugento, falando que não queria desentocar de
Jericoacoara. Ainda instruí a ele que conversasse com a secretária do meu
“sogro” para que guardassem sigilo à Antonella sobre a minha ida ao Rio de
Janeiro.
Então, no hall do salão social, sob um lustre de cristal estupendo, conferi se
a gravata borboleta estava em ordem. Atrasei minha saída do hotel por causa
daquele pedaço de pano inconveniente. Tive de usar o artifício de assistir a um
tutorial para me relembrar de como faria para deixá-la perfeita. Por Antonella,
eu me sujeitaria a qualquer coisa, até mesmo usar um black tie. Esse tipo de
traje me remetia ao passado nada agradável junto ao meu pai.
Estava na hora de manter os complexos no lugar longínquo de onde nunca
deveriam ter saído.
Vida nueva!
— Não acredito que você me convenceu a vir a esse baile — reclamou
Calebe, chateado por ter que usar a gravata, assim como eu. — Desde que fui
morar na praia, nunca mais me obriguei a colocar nada parecido com isso.
— Vai ser bom para você recordar os velhos tempos das festas corporativas
que frequentou.
Ele me olhou de lado.
Minutos depois, uma mulher vestindo roupa social azul-marinho veio nos
recepcionar. Informamos nossos nomes e ela nos conduziu ao salão principal.
Ouvimos a recepcionista falar por cima do ombro.
— Os senhores vão se acomodar na mesa do senhor Aurélio.
— Era de se esperar — Calebe tentou me acalmar.
Eu tinha total noção da realidade e que iria conhecer a mãe da Antonella e
rever o pai após a situação constrangedora no hotel. Até então estava tranquilo,
mas quando o momento deu as caras…
No meio do caminho, fomos abordados por uma moça loira, um pouco
mais baixa que a minha namorada.
— Não posso acreditar que estou conhecendo o Sebastián em carne e osso.
— Você só pode ser a Heloísa — eu a identifiquei pela cor dos olhos azuis
e o rosto de boneca.
— A própria. Olha só...
Natural que ela tenha me avaliado de cima a baixo. As duas eram melhores
amigas e a curiosidade deveria ser grande para ver como eu era de perto.
— Será uma surpresa e tanto para a Nelinha. Ela não sabia que você vinha.
— No. É surpresa mesmo.
— Sebastián, ela vai surtar de felicidade — Heloísa se ateve à moça. —
Pode deixar que eu conduzo os senhores à mesa do anfitrião.
Com um aceno de cabeça, a recepcionista se afastou.
— E você é o…
— Oh. Desculpe a minha falta de educação — direcionei o olhar dela para
o meu amigo. — Heloísa, esse é o Calebe.
— Ah, sim. A Antonella mencionou seu nome milhares de vezes também.
Como de costume para os cariocas, Heloísa cumprimentou Calebe com
um beijo em cada lado do rosto. Sorte a dele que a barba camuflou em parte a
vermelhidão que assolou sua pele.
— Então vamos?
Assim que ela virou, Calebe não conteve seu olhar na silhueta azul-vivo da
loira. Ele percorreu todo o decote que se aventurava em um v pronunciado até
a base das costas.
— Valeu a pena vir? — provoquei.
Ele respondeu com um fragmento de frase.
— Ô.
Olhei para o chão e ri.
— Preparado para conhecer a sogra, Sebastián?
— Assim você me assusta — falei, rindo.
— Olha aí, Calebe. Será que seu amigo vai desistir?
— É mais fácil eu sair correndo do que ele — Calebe entrou na zoação,
embora tenha me defendido.
Ela riu sem muito esforço.
— Essa cena eu gostaria de presenciar. Um homem desse tamanho com
medo da senhora Vivian.
Calebe olhou no rosto de Heloísa por um tempo e eu me senti sobrando ao
lado dos dois.
— Eu não costumo fugir de mulheres, ainda mais se forem bonitas.
Pega desprevenida, ela ficou sem resposta. Demorou um bom tempo
processando a indireta, nitidamente estudando o rosto do Calebe.
Ela sorriu mais contida.
Por fim, ouvi um pigarro sobre o som instrumental tocado pelos músicos
no palco antes de falar:
— Não se preocupem. Ela é uma mulher muito educada. Um pouco calada
apenas. Assusta num primeiro contato, mas depois a gente se acostuma com o
jeito dela.
— Observadora? — perguntei.
— Também.
No espaço de mais duas mesas redondas adiante, nos encontramos com os
pais da Antonella. Seu Alencar se levantou assim que nos viu, seguido por dona
Vivian.
— Sebastián Martinez Munõz — ele estendeu a mão para um
cumprimento saudável, enfim. — Bom tê-lo conosco. Chegou a tempo de
dançar a valsa com a minha filha. Ela estava aqui há pouco. Onde ela foi,
Vivian?
— Antonella disse que iria ao toalete, Aurélio.
— Agradeço o convite, senhor — busquei a mãe da Antonella com os
olhos. Era incrível a semelhança dela com a filha. — Senhora Vivian.
Como Heloísa adiantou, a minha “sogra” era mais retida em suas atitudes,
então balançou minimamente a cabeça e soltou um sorriso discreto.
— Vamos deixar a formalidade de lado. Não precisa nos chamar de senhor
e senhora — o pai da Antonella pediu.
Sorri, concordando. Foi custoso apresentar o Calebe aos dois. Meu amigo
se distraía em outro mundo que talvez fosse preenchido somente por Heloísa.
Há muito tempo eu não o via embasbacado por uma mulher.
Já com taças de champagne às mãos, logo a conversa entrou no ritmo
empresarial. Seu Alencar se interessou em saber sobre o hotel e o trabalho
administrativo. Dona Vivian foi abordada por outras duas senhoras e se
limitou a dar atenção a elas.
— Meu lorde. Você veio!
— Senhora Vitória. É um prazer conhecê-la pessoalmente.
— Pode me chamar de vó, meu filho — ela me abraçou com tanto carinho
que me senti acolhido de fato por ela.
— Você está procurando por sua namorada?
— Desde que cheguei.
— Um mensageiro me contou que a viu indo à varanda.
Pisquei para ela.
— Ah, meu lorde. Não gaste seu charme comigo — nós rimos. — Agora
vá e busque a minha neta para uma dança.
Não pude evitar de obedecê-la. Era o que eu mais queria.
No instante em que entrei na área externa, minhas pernas fraquejaram.
Antonella estava um encanto em um vestido rosa claro longo de um ombro,
floral, meio esvoaçante. O cabelo preso formava rolinhos pendendo até os
ombros.
O que eu não contava era ver o que meus olhos registraram. O ex-noivo da
Antonella chegava por detrás dela, quase que de forma clandestina. Fiquei
como espectador, sem saber o que fazer com as mãos, se as enfiava nos bolsos e
camuflava a tremura ou as fechava em punho.
Observei os dois por um tempo considerável. O rosto da Antonella estava
quase todo na sombra da noite. Mas eu consegui identificar os braços se
movimentando para abraçarem o próprio corpo. Ela estava se sentindo
pressionada.
Antonella
Sebastián
Fomos para o salão no instante em que ouvimos o pai da Antonella iniciar
um discurso. Adentramos sob os olhares atentos de muitos.
Senhor Aurélio iniciou sua explanação curta dizendo que ele supunha ser o
dono da verdade, devido aos cabelos brancos, mas que uma jovem em especial
o alertara de que ele tinha muito a aprender, em especial com ela. Agradeceu à
filha por mostrar a ele o verdadeiro significado do amor, por ter resgatado nele
os princípios que o avô e o pai o ensinaram sobre família e convívio social. Que
ele dedicava o baile a ela.
Não houve quem não se emocionasse.
Antonella subiu ao palco e o abraço que eles trocaram foi comovente,
sincero, entre um pai e filha que finalmente se conciliaram em comunhão de
intenções. Dona Vivian se juntou a eles bastante tocada pela energia do
momento.
O sax do grupo de jazz acompanhado pela bateria e o violoncelo
introduziram a música, a nossa música, a minha e da minha musa, a que
afirmava o nosso amor: Garota de Ipanema.
— Agora é a hora, amigo. Vá buscar sua namorada para uma dança. Seja
feliz — Calebe embarcou na vibração da emoção.
— Aproveita para dar início à sua história também — mostrei Heloísa com
o nariz para ele.
Somente obtive o riso discreto costumeiro em resposta. Não precisei me
mover. O pai da Antonella foi ao meu encontro e ofereceu a mão da sua filha
para que eu a conduzisse à pista de dança.
Ela fingiu pensar se aceitaria e as pessoas que estavam ao nosso redor
acharam graça. Ela era uma moça-mulher-diabinha-princesa-musa graciosa.
Como previsto, flashs vieram de todos os cantos.
EPÍLOGO
Antonella Vivian Alencar Braga assume o romance com o milionário
Sebastián Martinez Munõz em baile do Grupo Alencar. O casal dançou
a valsa tradicional do evento sob as vistas de mais de duzentos
convidados.
A mais nova escritora, Antonella Vivian Alencar Braga, lança o seu
primeiro livro infantil em livraria carioca, com o pseudônimo Nelinha
Alencar.
FIM.
AGRA ECIME TO
D N S
Quando fui convidada pela AllBook para publicar uma nova história, eu surtei
de felicidade, mas igualmente de receio. Que responsabilidade escrever um
enredo cujo personagem principal seria um espanhol e com o Fabián Castro
sendo capa!
“E agora? Que história criar?” foi o que pensei após o momento de euforia.
O que eu tinha certeza era que seria uma comédia romântica. Então eu a
escrevi como se as cenas de um filme se desenrolassem diante de mim.
Confesso que mal coloquei o ponto final, fiquei com saudades dos
momentos em que me diverti enquanto idealizava as cenas hilárias, assim como
eu me emocionei na mesma intensidade com o amor em construção do casal
Sebastián e Antonella.
A principal fonte de inspiração para criar o enredo foi uma viagem que eu e
a minha família fizemos certa vez para Jericoacara, no litoral do Ceará.
Obrigada a todos vocês, leitores, que se aventuraram junto comigo no meu
novo romance.
E à editora AllBook por me lançar esse desafio muito prazeroso.
LEIA TAMBÉM
Siga as nossas redes sociais e fique por dentro dos próximos
lançamentos:
✔
tiktok: https://www.tiktok.com/@allbookeditora
✔ facebook: https://www.facebook.com/AllBookEditora
✔ instagram: https://www.instagram.com/allbookeditora/
✔ twitter: https://twitter.com/AllBookEditora
✔ youtube: https://www.youtube.com/@allbookeditora