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Direção Editorial: Beatriz Soares


Preparação: Allbook Editora
Revisão: Ana Paula Rezende
Modelo da capa: Fabián Castro
Fotógrafa: Luana Rocha
Capa: Rebecca Barboza
Diagramação e produção Cristiane [Saavedra
digital: Edições]

Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro,
sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais
forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Os
direitos morais do autor foram declarados.

Esta obra literária é ficção. Qualquer nome, lugares, personagens e incidentes são produto da
imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos ou
estabelecimentos é mera coincidência.

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


(Decreto Legislativo nº 54, de 1995)

CIP - BRASIL. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores da Livros, RJ
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Simões, Malu
Mais que um match [recurso eletrônico]: Malu Simões. – 1. ed. – Rio de
Janeiro: AllBook, 2023.
Recurso digital

Modo de acesso: word wide web


ISBN: 978-65-80455-55-3 (recurso eletrônico)

1. Romance brasileiro I. Título.

23-141249
CDD: 869.3

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“O segredo, querida Alice, é rodear-se de pessoas que te façam sorrir o coração. É então,
que estarás no país das Maravilhas.”

Chapeleiro Maluco
Dedico a história do Sebastián e da Antonella
aos que buscam a felicidade em sua forma mais pura.
SUMÁRIO

Capa
Créditos
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Epílogo
Agradecimentos
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AllBook Editora
PRÓLOGO
Em trinta e um de maio de 1999, nasce a Princesa da Celulose, Antonella
Vivian Alencar Braga, filha do magnata Aurélio Alencar Braga e sua
esposa, Vivian Laurinda Alencar Braga.
Correm boatos de que a Princesa da Celulose dançará a valsa com o
Príncipe do Aço, Horácio Louzada Ramos, no tão aguardado
aniversário de quinze anos. Será o indício de um futuro enlace entre as
duas fortunas?
Antonella Vivian Alencar Braga é vista com Horácio Louzada Ramos em
iate no mar de Búzios, junto com os pais do casal.
Horácio Louzada Ramos pede a mão de Antonella Vivian Alencar Braga
ao futuro sogro, em festa organizada para trezentos convidados.
Um escândalo. Princesa da Celulose sobe na mesa enquanto se diverte
na discoteca mais badalada de São Paulo. Ao que tudo indica, estava
alcoolizada. Onde estaria o seu noivo?
Horácio Louzada Ramos é visto sem a companhia da noiva Antonella
Vivian Alencar Braga em festa do empresário e amigo Júnior Barcelar.
Será o fim do noivado de milhões?
Enfim, o casamento multimilionário foi marcado para a primavera de
2022. O Príncipe do Aço e a Princesa da Celulose vão subir ao altar em
cerimônia para quinhentos convidados.
CAPÍTULO 1
— Hmmm, hum.
— Quando você chegar ao hotel, me dê um toque, Antonella — suplicou
Heloísa acima do burburinho do aeroporto, batucando os dedos de forma
ritmada sobre o celular.
— Hum, hum.
Eu nem desejava ligar o aparelho naquela próxima semana. Aliás, se
pudesse, simplesmente me enfiaria em um buraco até a última espécie da Terra
dar seu suspiro derradeiro.
Dizem por aí que a felicidade não é deste mundo. Na real, não é mesmo.
Mas eu precisava muito descobrir onde era esse lugar, porque olha… estava
difícil, viu?
Talvez estivesse em algum outro planeta distante. Seria formidável
embarcar em uma espaçonave e buscar extraterrestres mais amáveis do que os
terráqueos. Ou talvez eu encontrasse essa tal felicidade somente nas linhas de
livros e filmes de comédia romântica.
Era domingo e deveria ser um dia extraordinário. Deveria. Isso mesmo. Eu
havia idealizado inúmeros sonhos futuros só na minha cabeça.
Mas a verdade é que minha vida estava uma tremenda bagunça.
— Tem certeza de que vai ficar bem?
— Hum, hum.
Eu iria me esconder. Não queria ser encontrada por ninguém,
especialmente as conhecidas e os jornalistas, em particular por esses últimos;
eles não sabiam o meu paradeiro. A única certeza naquele momento, era que eu
pretendia dar uma reviravolta em meu destino, aos vinte e três anos.
Esse pensamento vinha a todo instante na minha cabeça naquelas últimas
vinte e quatro horas, até que acabei optando por cair dentro da mudança.
Eu que suportasse as consequências das minhas escolhas.
Então me calei. Permiti somente que o “hum, hum” escapasse dos meus
lábios trêmulos de… emoção.
Uma pessoa sem o mínimo senso de direção passou por nós duas e carregou
minha mala até ela desabar no chão.
— Deixa que eu pego! — minha amiga ia se antecipar, mas a impedi com a
mão espalmada diante dos olhos arregalados. Ela fazia de tudo para acalmar
meu estado de espírito.
Com o coração se preenchendo de ressentimento, tive de dar dois passos
para resgatar a famigerada de nove mil, duzentos e cinquenta reais, toda em
alumínio, que minha mãe havia insistido que eu aceitasse de presente para
viajar com uma mala nova em folha. Nem com os meus mais sensatos
argumentos de que o valor era muito alto, ela se comoveu.
— Disculpar — ouvi o sujeito dizer enquanto meus joelhos se dobravam.
— Desculpa. Desculpa — corrigi, irritada. — É assim que se fala em
português.
— Desculpa. Não foi minha intenção.
Juro que se eu não estivesse irritada, consideraria o sotaque dele até que
charmoso.
Preferi não encará-lo de frente e respondi com a cabeça oscilando para cima
e para baixo, assim como meu coração batia chateado.
— Mais cuidado por onde anda — resolvi descarregar minha raiva nele
enquanto firmava a alça.
Um calor perpassou meus poros quando minha pele captou o toque da
mão dele, meio atrapalhada, raspando de leve nos meus dedos na tentativa de
me ajudar a erguer a mala do chão.
— Já pedi desculpa — além de responder em tom baixíssimo, uma rajada
de ar escapuliu em seguida dos lábios do carinha, com o qual eu havia entrado
em um embate desnecessário. Creio que ouvi um “Que chica mas nerviosa”.
Passei o olhar de relance pelo rosto do homem e vi dois faróis em seu rosto,
de tão claros que eram seus olhos. Foi impossível não reparar.
— Ok — pisquei.
De imediato, virei as costas para o desconhecido e retornei para me
despedir da Heloísa, já que o sinal de áudio do aeroporto soou no alto-falante
dizendo algo sobre o meu destino. Tudo bem que eu me senti uma completa
mal-educada, o que certamente devia ter ficado evidente para ele. Eu estava
muito irritada!
— Que homão!
— Nem vem, Heloísa. Você sabe muito bem que ontem eu literalmente
corri no sentido oposto de um homem — falei com tom de advertência.
— Amiga, você não reparou nele como deveria. Ele parece o Chris
Hemsworth.
— Tá louca? Nem de longe ele tem o corpo do Thor...
— Ah, então você deu uma boa espiada, é?
Fiquei perplexa.
— Claro que não.
Heloísa me olhou desconfiada, com as pálpebras semicerradas.
Gemi, indignada.
— Até parece que eu ia sair paquerando por aí, justo agora. Ainda mais um
estrangeiro que deve estar somente a passeio no país. Ele abla espanhol, Helô.
— É disso que você precisa. Uma aventura.
Não me contive e olhei sobre os ombros. Tentei pescar um pouco da
silhueta do tal homão, mas ele havia sumido do nosso campo de vista.
Tudo bem. Melhor assim.
— Não estou te reconhecendo — voltei a conversar com ela. — Onde está
a minha amiga romântica da época da faculdade? Você está me incentivando a
olhar para um carinha depois de tudo o que aconteceu?
Baixei as pálpebras e somente vi a escuridão assim como meus sentimentos
se encontravam num limbo sem data marcada para retornar à vida. Eu estava
me esforçando para reagir a cada expiração e batida do coração.
— Não sei como você está conseguindo se manter controlada.
— Eu tinha que começar a escrever a história da minha vida com minhas
próprias escolhas.
— Nossa! Essa frase é impactante — ela riu e eu a empurrei com um dedo
em seu ombro, achando graça.
— Quer saber? Vou para o meu spa emocional.
Ouvi a voz feminina informando do embarque imediato para Fortaleza, em
um claro sinal de que havia chegado a hora do meu martírio iniciar. Não que
eu tivesse medo de avião, mas… Bem, é que a viagem dos meus sonhos se
transformara em um fiasco antes mesmo de iniciar. Aliás, ela havia sido o
motivo de muitos desentendimentos entre mim e, hum, um cara aí, desde o
início do processo de escolha do lugar.
Heloísa fez um esforço tremendo para não friccionar os lábios, mania dela
quando se sentia acuada ou entristecida. Logo reverteu um hábito para outro,
levando as mechas platinadas para trás das orelhas, sinal de timidez. Eu a
conhecia mais que as linhas das palmas das minhas mãos, e posso afirmar o
mesmo sobre ela em relação a mim.
Sabe, Helô era uma amiga e tanto, tão fiel que, em solidariedade a mim,
tentou reter seu tique nervoso somente para não deixar transparecer o quanto
sofria junto comigo. Ela era, sim, a mais formidável amiga de todos os tempos.
Desde o dia anterior minha BFF não saía do meu lado, nem um segundo
sequer, após minha decisão de respirar novos ares.
E que situação havia sido aquela?!
Ao me lembrar do momento fatídico, meu estômago embrulhou. Nem sei
como eu me encorajei a… soprei o ar em uma lufada longa. Então o inspirei
em seguida tão profundo, que um chiado pôde ser ouvido a metros de
distância no corredor apinhado de pessoas.
— Chegou a hora — revelei o óbvio à Heloísa. — Cuida bem das crianças
enquanto eu estiver fora da cidade.
— Não pense nisso agora, muito menos durante sua estadia no resort
maravilindo. Aproveita, amiga, curta bastante os dias de — ela pigarreou —
folga.
Segurei o rio de lágrimas que queria trilhar meu rosto. Sem ela ao meu lado
tudo teria sido muito mais difícil de suportar.
Com pesar, dei as costas a Heloísa e caminhei até a entrada da sala de
embarque. Não sabia como seriam os dias de “folga” sem ela, meu ombro
amigo, mas eu tinha de seguir em frente. Sozinha. Encarar meus fantasmas a
partir do momento que passasse pela catraca era o mais certo a fazer.
Respirei fundo.
É, não era todo dia que eu ia para a minha lua de mel, e sozinha.
CAPÍTULO 2
Ai, meu Senhor!
Eu estava tão estressada e as pessoas não contribuíam para que eu me
sentisse menos tensa.
Esfreguei a nuca três vezes.
Olhei para a linha de assentos e havia um indivíduo acomodado de um
jeito largado, bem tranquilo na poltrona que deveria ser minha.
Uma senhora raspou a garganta, impaciente, atrás de mim. Certo. Quem
deveria estar nervosinha era eu, mas tudo bem. Ao contrário do que eu havia
afirmado para Heloísa, eu estava no meu limite. Faltava pouco para explodir.
Assim sendo, sem fitar o rosto dela e contando mentalmente uma
sequência numérica para conquistar um pouco de serenidade, eu me virei de
lado, de forma que a senhora ganhou o espaço necessário para seguir pelo
corredor estreito do avião. Pude ouvir ainda um chiado escapando dos lábios
senis, mas eu tive respeito pelo cabelo esbranquiçado dela, assim como ele, o
sujeito dorminhoco, poderia ter tido por mim se tivesse checado previamente
onde iria se sentar.
Como ele conseguiu dormir tão rápido, sendo que mal embarcamos?
— Oi — dei um toque de leve no ombro sob uma camisa branca. — Você
está no meu lugar.
Com um jeito preguiçoso, ele ergueu com dois dedos o boné que cobria os
seus olhos, o suficiente para me encarar.
Merda. Uma grande merda.
Por um instante, congelei.
Pelo que meu cérebro me ofertava com a mísera imagem do saguão… Ah,
não! Era justamente ele, o indivíduo assassino de malas e dotado dos olhos
mais atraentes que eu já tinha visto. Agora, vou falar uma coisa bem objetiva:
não sei por que geralmente esses homens inconvenientes costumam ser
bonitos. Bem que a Heloísa estava com a razão. Ele era um deus da beleza.
Os olhos vivos eram duas turmalinas verde-azuladas, nem sei dizer ao certo
a perfeição daquelas íris que me fitavam como se o mundo não girasse e o avião
não estivesse prestes a decolar. Eu estava na iminência de fuzilá-lo, numa fração
de segundos antes e, hum, antes disso também.
Gostaria de ter reagido melhor, mas o reflexo do sorriso malicioso que se
estendia na boca emoldurada por uma barba com fios platinados do… Sério! O
homem era um galã de TV disfarçado de passageiro-turista-praiano. Só podia
ser. E para ficar mais evidente o quanto era lindo, ele tirou o boné e mexeu no
cabelo, levando os fios para trás, meio para um lado, os quais se moldaram
espetacularmente no alto da cabeça.
Estreitei os lábios, surpresa.
Então, envergonhada, ou ganhando tempo para respirar, desci o olhar para
o colar de couro com medalha prateada em seu peito, o que não foi muito
inteligente da minha parte, pois as mangas curtas da blusa de malha nas laterais
moldavam verdadeiros chamarizes musculares.
Fiz cara de paisagem, como se não houvesse notado o quão espetacular era
aquele conjunto masculino, como se não o tivesse ignorado antes, como se
meus joelhos não estivessem quase amolecendo com a encarada que ele me
dava. E olha que foram meros segundos de análise — e deleite — da minha
parte, ou talvez tenha avançado ao padrão do minuto. Ainda assim, foi o
suficiente para eu ter a convicção de que deveria permanecer a poltronas de
distância do indivíduo.
Homens geralmente não são confiáveis, ainda mais quando são donos de
uma beleza ultrajante.
Para a minha conveniência – minto, mais sábio dizer para a minha sorte –a
comissária fez o favor de me retirar do momento, diga-se de passagem,
embaraçoso.
Ela enfim solicitou:
—Por favor, posso conferir os tickets de vocês?
— Claro — falei não tão empolgada.
Meu humor estava apenas sendo controlado, ainda mais após ter visto o
sorriso “brejeirinho” que a comissária ofertava a ele, indicando que eu estava
lascada, pois era evidente que ela o acobertaria. Será?
Segurei-me para não falar besteira. Eu estava uma pilha de nervos e era
tudo culpa do meu ex-noivo. Minha boca estava irreconhecivelmente suja por
causa da minha revolta e…vergonha.
Acabei soprando o ar, inconformada com a situação.
Ainda sem pronunciar uma palavra sequer, a criatura de olhos excêntricos,
que se apresentava como um desvio do padrão de beleza de nós outros reles
seres mortais, retirou o papel de embarque do bolso traseiro tão lentamente
quanto sua atenção se movia vagarosamente pelo meu corpo.
— Hum, creio que a poltrona da senhorita seja a da janela — disse a
aeromoça.
Mesmo assim, espichei o olho para o famigerado ticket na mão da
comissária, dissimulando não estar tonta. Chequei o número do lugar no visor
entre o bagageiro e a poltrona vazia da ponta. Comparei com o que estava
registrado no bilhete de embarque. Aaah! Ela estava certa.
Em definitivo, minha cara rachou.
Por isso eu digo “malditos são os homens”. Creditei a conta da minha má
avaliação ao Horácio. Por causa dele eu estava daquele jeito, pensando e
repensando o que eu havia feito… Culpando-me!
Como reação, cerrei os olhos e engoli o que me restava de dignidade.
E eu não iria chorar. De jeito nenhum. Chorar não cabia mais na minha
vida. Eu tinha de seguir em frente e arcar com as consequências da minha
escolha.
— Eu me confundi — acenei sem graça e me justifiquei com o óbvio, já
que palavras coerentes pareciam ter voado da minha cabeça para o céu antes
mesmo de o avião decolar.
Como o nosso cérebro nos coloca em armadilhas! Eu havia memorizado o
número da poltrona do meu algoz como se fosse a minha.
Aquilo era a comprovação de que eu colocara o Horácio em primeiro lugar
em minha vida, como se o casamento fosse me libertar das minhas aflições. Eu
sairia do domínio da minha família para cair em outro. Onde eu estava com a
cabeça?
Espera... Mas o que o carinha fazia sentado na poltrona que deveria ser do
meu “marido”? Logo me ocorreu que eu não estava tão errada, porque eu
mesma havia reservado os dois lugares.
Mas que se dane! Ele não vai aparecer mesmo.
Guardei a fadiga da discussão no campo do esquecimento.

Sebastián

Foi impagável ver a expressão de confusão no rosto da moça. Não que eu


tenha ficado feliz em vê-la se autopunindo depois de ter descoberto seu erro,
mas achei suas expressões contrariadas muito… lindas.
Encolhi as pernas para ela passar, encarando a lindeza. Ela abandonou o ar
de superior e forçou um sorriso para mim. Não me culpei por encarar o rosto,
muito menos avaliar seus traços de ponta a ponta, embora tenha evitado sorrir.
Seria provável que ela me achasse sarcástico. Vai saber… A mulher parecia uma
chaleira apitando e eu não desejava me envolver em discussões. Hum, bem, de
fato eu havia me sentado no lugar errado, mas a comissária tinha deixado
passar.
Raspei a garganta enquanto avaliava como agir. Muitas vezes essas situações
inesperadas caem de paraquedas para testar nosso autocontrole.
Minha noite anterior havia sido péssima e meus ouvidos não estavam
abertos o suficiente para aceitar qualquer tipo de desaforo. Mas nem o sono
que me consumia, nem a nervosinha ao meu lado, retiraria meu jeito pacífico.
Era preferível agir como se nada houvesse acontecido e quebrar o mal-estar
inicial. Talvez pudéssemos dar início a uma conversa mais saudável e acalmar
os ânimos.
Melhor não. Na entrada do embarque, ela dera indícios de que não estava
para brincadeira ao me ignorar quando esbarrei em sua mala. Assim que
coloquei os olhos nela no avião, eu a reconheci. Mulher bonita não passava
despercebida por mim.
Um segundo após ela sorrir, respirei o ar quente do avião. Direcionei o
olhar para cima. Claro, as saídas do vento ainda não haviam sido abertas.
Pensei em mexer nas comportas, mas se a moça não gostasse do vento
certamente reclamaria em meu ouvido.
Resolvi checá-la de canto de olho e percebi que ela havia assumido a
expressão séria outra vez. Talvez fosse melhor deixar quieto. Não conversar era
seguro para a minha sanidade. Ainda que ela tivesse uma beleza incontestável,
tinha um quê de mau humor. Era o que parecia. O cabelo longo jogado para
um lado cobria parte do seu rosto, atitude declarada de “não quero papo”.
Ainda por cima, logo que se sentou, recostou a cabeça no assento e fechou os
olhos. Era certo que ela não queria conversa. Então resolvi ficar na minha e
voltei com o boné ao rosto.
Paz. Era o que buscaria nas três horas e doze minutos que nos separava do
Rio de Janeiro até o nosso destino.
CAPÍTULO 3
Meus ouvidos não capturavam ruído algum ao meu redor. A consciência
flutuava como se eu estivesse sobrevoando o mar em um paraquedas sendo
puxado por uma lancha. O corpo parecia um boneco inflável guiado pelo
infinito afora.
O vento se partiu em dois caminhos ao cruzar meu rosto, a sensação era de
liberdade total. Enquanto levitava, todas as responsabilidades precoces eram
absorvidas pela natureza. Minha vida não havia sido um mar manso. Praticar
esportes radicais me movia, fazia uma faxina mental. Viver num lugar
paradisíaco facilitava muito as coisas para mim.
— Ai! — gemi sem entender o que acontecia; o boné deslizou para baixo,
clareando a vista. Eu não sentia somente a dor na pele, mas a quentura de um
filete de água escorrendo pelo canto da boca. Literalmente, eu estava babando.
Abri os olhos e sequei a umidade do rosto. Sorte que minha cabeça não
havia tombado para o lado e se aconchegado na clavícula da moça! Nem
imagino qual seria a reação dela.
Demorei uns bons segundos para entender que as unhas afiadas da vizinha
de poltrona haviam sido cravadas nas costas da minha mão. Que diabos estava
acontecendo? Meu corpo descolou do assento e parecia que uma força me
empurrava para cima. Se não fosse o cinto de segurança, nem sei…
Foi então que o entendimento chegou ao meu cérebro. O balanço instável
da aeronave denunciava que passávamos por uma turbulência. Como eu estava
dormindo, não ouvi o alerta do piloto, bem como o sinal luminoso de “afivele
o cinto” logo acima das nossas cabeças.
O avião sacudia e algumas pessoas gritavam, formando uma orquestra
afinada de pavor, embora a sinfonia tenha causado dor em meus tímpanos,
igual a que eu sentia na minha mão, tendo aquelas garras em mim.
Sem ser indelicado, alterei a posição do nosso toque. Meus dedos tocaram a
mão dela em uma demonstração de solidariedade e “sobrevivência”. Não
precisava ser psicólogo para notar que a moça não estava cem por cento com as
emoções em ordem, já que seu transtorno era mais intenso que dos outros
passageiros, que também não estavam em seus equilíbrios perfeitos.
— Vai ficar tudo bem — consegui dizer sobre o tumulto de vozes, mas me
arrependi logo em seguida.
— Como assim? Tudo bem? Nós vamos morrer! — ela gritou em pânico,
fitando meus olhos.
Lá estava o mau humor da gata outra vez. A felina em seu momento de
garras afiadas.
— Nós vamos sair dessa. Você vai ver.
Dei de ombros e me esforcei para me calar. Era mais seguro. Parecia que ela
havia desenvolvido uma certa repulsa gratuita a mim. Resolver a situação
inesperada escapava do nosso controle. Aguardar a chacoalhada parar e confiar
nos pilotos era o máximo que poderíamos fazer naquele momento tenso.
Apenas isso.
Soltei o ar com força, indignado.
Só que o avião deu um solavanco mais brusco, tanto que meu coração
bateu forte. A mão dela segurou a minha como se fosse a boia de salvação de
um possível… nem ouso dizer o que poderia ter acontecido naquela viagem.
Meu pensamento foi todo direcionado para os anos que ainda pretendia viver,
para as pessoas que dependiam de mim. Ainda assim, forcei meu cérebro a
tentar lembrar como faria para retirar o assento e usá-lo caso o avião caísse no
mar. Caso houvesse algum sobrevivente. Caso eu saísse ileso dessa.
Arrepiei-me.
Por que não damos importância às instruções das comissárias quando elas
fazem as apresentações do kit de sobrevivência?
Arrependido, prendi a respiração e o ar estrangulou minha garganta.
Os dedos magros da moça se ajeitaram nos meus de forma que o aperto foi
intenso. Hesitei por um tempo, eu não costumava permitir que alguém me
tocasse facilmente, mas naquela situação de extremo estresse, foi mais forte que
eu. Então correspondi ao seu gesto.
— Vai ficar tudo bem — tornei a falar, tratando-a com respeito.
Para minha surpresa, ela abandonou a defensiva. Cobriu o rosto com as
mãos e deitou a cabeça em meu peito. Foi instintivo aconchegá-la em um
abraço, em uma mensagem de cumplicidade com seu temor.
É interessante como nessas horas a vida passa como um filme em nossa
mente. Pensei em minha família, no meu pai, nas consequências dos atos dele
para todos nós… Isso veio com naturalidade em minhas lembranças. Foi um
misto de nostalgia e pavor. Vincular minha imagem à dele me causava repulsa.
— Eu não posso morrer agora. Não posso — ela soltou um murmúrio
abafado, que mais pareceu uma catarse de sentimentos. Óbvio que era. Eu me
controlava para não entrar em estado paranoico semelhante.
Mas tentei não pensar em mim, no que aconteceria comigo. A fragilidade
da moça me tocou. Não sei realmente o motivo, mas a sensação de querer
protegê-la se avolumou em mim de tal forma, que acariciei seu cabelo com
aroma de rosas.
Acho que segundos após, como se uma mão invisível segurasse a aeronave,
o movimento brusco foi interrompido. Assim mesmo, de repente. Embora o
coração ainda estivesse batendo instável, a sensação de alívio pôde ser não
somente sentida, mas ouvida em forma de suspiros por todo o avião.
Olhei pelo mínimo espaço da janela e o breu do lado de fora parecia nos
engolir.
Quando a moça caiu em si, raspou a garganta e ajeitou o corpo em seu
assento. Embolou o cabelo em uma mecha única na mão e a enrolou, enrolou e
enrolou… Fiquei tonto somente de ver a cena ao meu lado. Por fim, ela se
acalmou após o silêncio esperado. Todos encontrávamos o ritmo correto da
respiração.
— Desculpe — ela apontou para o meu peito antes preenchido pelo seu
lindo rosto.
— Sem problemas.
Eu me recompus no assento e busquei com o olhar onde o boné estava. Ele
havia caído no chão. Então inclinei o corpo para pegá-lo e quando retornei, ela
encarava a janela em uma mensagem repetitiva de que preferia ficar quieta.
Certo.

Antonella

Saí de fininho do avião assim que as portas foram abertas. Passei o restante
do tempo da viagem fazendo uma força tremenda para dissimular meu
interesse, como se estivesse vendo algo muito bacana do lado de fora, no breu
do céu noturno. Isso porque a consciência me alertara de que eu não me
comportava de forma coerente ao lado do galã de olhos lindos. Era facinho
listar os furos:

1. Havia sido mal-educada quando ele esbarrou na minha mala.


2. Tinha apontado um possível erro dele, que no final eu estava apenas
“meio” certa.
3. Havia me comportado como criança que busca a proteção do pai, ao
enfiar meu rosto no peito atlético dele.
Fiquei chocada com minhas atitudes. Não que eu fosse admitir a ele em
voz alta que eu estava me punindo, mas quando a consciência grita, ah, a dor
da culpa é pior que palavras e ações praticadas no momento da explosão. Eu
sabia muito bem o que era ter alguém na família sinônimo de pavio curto. Daí
vinha a minha subserviência ao meu pai, fazendo o que ele “sugeria” como o
melhor para mim, como se eu não tivesse voz ativa e sentimentos.
Eu não possuía comando sobre mim mesma.
Distraída, punindo-me o suficiente para o resto da minha vida, encolhi os
ombros ao ouvir a voz arrastada no sotaque espanhol.
— Hola!
Não. Era. Possível.
A visão periférica me dava a perfeita noção de que ele era um palmo mais
alto que eu, arrisco dizer. Sentado, não havia notado, ou melhor, eu não
conseguia encará-lo.
Assim permaneci, evitando sua existência. Fitar os olhos divinos, que foram
concedidos a ele como bônus genético, era me afundar em águas
desconhecidas. Logo, tentei restringir minha atenção somente para a esteira
girando diante de mim, mas acabou sendo mais forte do que eu e resolvi
provocar.
— Você tem algum tipo de faro específico para me encontrar? — indaguei
ainda fitando a esteira, torcendo para que a minha mala surgisse após atravessar
a cortina de tiras verticais.
— Um faro que funciona somente para mulheres bonitas.
— Essa foi previsível demais.
— Foi? Pensei que teria êxito.
Ele caiu na gargalhada, atitude que me fustigou. Seus dentes eram
cintilantes, assim como os olhos.
— Eu sei que você pode encontrar uma cantada melhor no seu repertório
de conquista — respondi com um sorriso irônico.
Então eu o encarei. Foi o erro dos erros. Aquelas duas contas claras
seguraram meus olhos e pareceram me hipnotizar. Por mais que eu fizesse força
para piscar e sair do estado lamentável em que me encontrava, parecia que
existia um campo de atração que me impulsionava a olhá-lo, a examinar com
minúcia o rosto em questão.
— Você é divertida — ele falou.
Foi a deixa perfeita para eu escapar da inércia que me atordoara pela
segunda vez diante dele. Algo acontecia em mim quando ele segurava meu
olhar com o dele. Era como se um fio de prata unisse nossas vistas.
Consegui afugentar a visão esotérica que meu cérebro evocava. Fio de
prata? Eu estava enlouquecendo. Devia ser o sono atrasado acabando com meu
raciocínio. A exaustão estava por um milímetro para me alcançar fisicamente,
porque o emocional...
— Se você quiser me enxergar assim.
— De forma excêntrica? Não sei que palavra no português seria mais
adequada. Não me interprete mal.
— Ah. Você quis dizer pilhada? — ele franziu o cenho. — Seria melhor
agitada? Louca?
Rodei as órbitas dos olhos e ele aumentou sua gargalhada.
— Não disse que você é divertida?
Até que eu, finalmente, consegui abrir um sorriso menos desconfiado para
ele.
No instante seguinte, desviei o olhar para a esteira e não acreditei no que
vi. Chocada, mais uma vez, eu encarei a minha mala de nove mil e tantos reais.
Em definitivo, o universo estava de sacanagem comigo. Não havia outra
explicação para definir minhas últimas vinte e quatro horas.
O mau humor continuava cravado em mim tanto quanto a má sorte. Pelo
amor de Deus! Se houvesse uma Arca de Noé dos tempos modernos, que
salvasse a espécie humana de uma enchente provocada pela dissolução das
geleiras dos polos, motivada pelo aquecimento global, com certeza ela me
esqueceria solitária, me afogando nas águas congelantes.
Isso deve ser maldição do Horácio!
Fechei os olhos, tentando me encorajar a enfrentar a vergonha que vinha
em minha direção. Em um primeiro momento pensei em pegar a mala e sair de
fininho, mas era impossível. Deixá-la rodar até os passageiros sumirem do meu
entorno era a mais sensata opção.
Ao lado do homem bonito pra cacete, eu passava vergonha uma atrás da
outra. Além do meu estômago embrulhar a cada vez que constatava os vexames
subsequentes.
Então, por opção, a mala seguiu seu destino de girar e girar. Vi um a um
retirando seus pertences da esteira, menos ele.
Com o canto do olho, constatei que o artista-de-dentes-brancos me
examinava.
— Ficamos apenas nós dois. Acho que fui premiado com a mala extraviada.
Só há uma agora — inibindo um sorriso, ele apontou para a famigerada.
Sorri amarelo para ele e voltei a olhar o meu martírio.
Juro que forcei o cérebro a entender o que havia acontecido para ela estar
completamente aberta. Não consegui identificar o motivo. Eu somente via os
conjuntos de sutiã e calcinha sensuais numa aba e as roupas, talvez em menor
quantidade, na outra.
Cerrei os olhos.
— Eu gostei daquele azul.
— Hã?
— O conjunto azul — o nariz afilado se espichou para a esteira rolante.
As mãos nos bolsos, como se ele fosse o homem mais tímido do planeta,
não condizia com o sorriso malicioso. A timidez passava longe do seu jeito
charmoso, como eu havia notado até então.
Meu raciocínio estava tão lento, que eu não fazia ideia do que ele falava.
Até que a compreensão caiu sobre mim na mesma proporção que as bochechas
rosaram.
Meu. Deus.
— Ahhh!
— A propósito, meu nome é Sebastián.
Completamente embaraçada, alternei o olhar da mala para ele e forcei um
sorriso.
— Antonella.
CAPÍTULO 4
Absolutamente constrangida após me apossar outra vez da mala e girar o fecho,
debruçada no balcão onde eu pretendia registrar a reclamação quanto às
minhas bagagens, eu aguardava a senhora digitar minha contrariedade.
— A senhorita verificou se todos os pertences estavam na mala?
— Sim. Um por um na presença de um funcionário de vocês.
— A senhorita esqueceu de fechar a mala antes de despachá-la?
Senti uma onda de impaciência percorrer meu corpo. Algo me dizia que ela
desconfiava de mim. Por mais que eu estivesse em estado crítico, as minhas
faculdades mentais se encontravam em perfeitas condições. Ainda. Meu erro
foi não ter comprado cadeado para evitar aquela situação esdrúxula.
Tentei driblar o sentimento de perseguição e dar crédito às obrigações da
funcionária, afinal, ela fazia seu trabalho.
— Não.
— A senhorita deseja registrar uma reclamação mesmo que nenhum
pertence tenha sido retirado da bagagem?
— Com certeza. Fiquei mais preocupada em alguém ter colocado algo
comprometedor na minha mala, tipo entorpecentes, como já vi em noticiários,
do que ter roubado algo. Tudo bem que gastei uma fortuna com — aproximei-
me dela — as lingeries. Mas se tivessem roubado elas, até teriam me feito um
favor. Sabe, eu ia usá-las, uma a uma…
A atendente raspou a garganta e ergueu o olhar do teclado para além do
meu ombro.
Sebastián… Nem me passava remotamente pela cabeça dirigir meu olhar a
ele. Seria provável que as contas enfeitiçadoras estariam sobre mim. Tudo bem
que ele demonstrava ser um cara bacana, mas… Eu tinha de manter a
promessa de ficar a léguas de distância de homens naquele momento.
O pior de tudo é que eu me comportava de forma ridícula na presença de
um desconhecido. Meneei a cabeça, encarando o cinza do balcão do
atendimento.
— Desculpa. Estou estressada. Há vinte e quatro horas e… hum —
chequei o horário no celular —, vinte e sete minutos, eu estava me casando —
respirei profundo. — Bom, registre então o meu protesto quanto à mala
passear aberta na esteira. Isso foi um absurdo. Pode alegar constrangimento
perante os outros passageiros, por favor.
E eu não mentia quanto a esse fato.
Não sei por quanto tempo fiquei parada aguardando o procedimento
finalizar. Era mais de sete horas da noite e o transfer, que havíamos pagado,
enviou uma mensagem informando que não me aguardaria mais. Ele alegou
que teria um dia cheio. Consegui negociar mais meia hora a meu favor e os
minutos pareciam correr a maratona do tempo. A aflição foi me maltratando,
mais do que outros sentimentos haviam me dilacerado, volto a dizer, nas
últimas vinte e quatro horas.
— A senhora ainda vai demorar muito com esse procedimento? Tenho um
transporte esperando para me levar a Jericoacoara.
— Falta somente o sistema transmitir o seu registro para a central.
Eu tamborilava os dedos no aço e o som das unhas reverberava mais alto do
que convinha. Tudo me tirava do sério. Nada me satisfazia. E a hora voava
como as aeronaves decolavam naquele momento.
— Pronto. A senhorita está liberada.
Soltei um “ufa” e alcancei o número do protocolo da reclamação das mãos
da senhora.
— Obrigada.
Ela retribuiu com um sorriso contido.
— Próximo.
Pude sentir o calor do corpo do Sebastián em minhas costas. Antes de me
virar para ele, meu olfato apurado reconheceu o aroma fresco do seu perfume.
Ainda que tivéssemos nos conhecido há poucas horas, ele foi tão fofo
comigo, me ajudando no momento escabroso da inconstância do avião e na
situação da mala escancarada, me aconselhando a prestar uma queixa formal,
que eu devia pelo menos uma fala educada a ele.
De súbito, eu me virei para o lado com a intenção de me despedir e fui
surpreendida com seus olhos estupidamente parados em mim, um sorriso
reconfortante se esticou em seus lábios. Esse lance de olhos atraentes e lábios
semiabertos, além do perfume envolvente, não era nada legal.
Diante disso, optei por ser mais concisa com minhas palavras. O plano era
sair o mais rápido possível de perto dele enquanto ainda tinha forças. A
exaustão havia começado a subtrair meu raciocínio após tantas horas insone.
— Tenha uma boa estadia, Sebastián.
— Então nos despedimos agora?
— Parece que sim.
— Quem sabe não nos esbarramos por aí? — Os lábios dele se expandiram
em um sorriso… enigmático?
— Quem sabe.
Não sei ao certo se fui discreta o suficiente para ocultar a prostração dos
meus olhos por segundos imersos nos deles. Ou os dele nos meus. Então mordi
o lábio inferior, dei um último aceno de cabeça e recebi outro de volta.
Andei apressada em direção à saída do desembarque, carregando a mala
atrás de mim. As rodas se descontrolaram e provocaram um gingado que me
paralisou por alguns segundos.
— Agora não, mala. Por favor… — soltei um gemido.
Assim que consegui refazer a caminhada, atravessei as portas automáticas e
chequei de um lado, depois o outro. Meu coração bateu mais forte. Onde
estava o rapaz do transfer? Onde estava o carro que me levaria ao lugar
paradisíaco?
Misericórdia.
Eu teria de incluir uma diária em um hotel em Fortaleza em minha
planilha de custos da viagem. Desanimador, já que seria bem provável que meu
pai não me perdoaria e cancelaria meus cartões de crédito.
Tudo bem. Eu só queria dormir e recompor meus nervos. Não havia
dinheiro que pagasse o meu equilíbrio de volta.
Se a história da minha desgraça fosse contada em um filme de comédia
romântica, a essa altura raios ribombariam no céu e as nuvens cederiam suas
lágrimas para fazerem par com as minhas. O teto noturno não estaria estrelado.
Ah, nem para isso eu servia? Nem para inspirar um filme!? Minha vida era…
sem graça. Ainda que as últimas horas tivessem sido agitadas.
Eu preciso me acalmar.
Respirei fundo e senti meu coração suplicar tranquilidade. Estava na hora
de ele parar de bombear frustração até meu canal lacrimal. Mesmo assim, me
desmanchei em lágrimas.
Se há anos eu não me permitia chorar e fraquejar em meus propósitos,
naquele instante o que me restou foi me sentar sobre a mala e deixar que a
alma fosse lavada com um choro que representava exaustão, sem me importar
com as pessoas que transitavam em todos os sentidos à minha volta.

Sebastián

Por mais que eu fizesse força para não ouvir meus instintos, eu não os
respeitei. No olhar da Antonella havia dor, embora ela parecesse se esforçar
para transparecer atrevimento. O rosto triangular enfatizava seu queixo
delicado sob a boca em formato de coração, o que provocou o encantamento
aos meus olhos. Há tempo eu não me comovia por uma lindeza assim… a
ponto de cogitar a hipótese de segui-la. Situação estranha.
Debati comigo mesmo se iria atrás dela ou não. Decidi ficar na minha. Se
fosse em outros tempos eu nem pensaria duas vezes, daria meu jeito de oferecer
carona a ela até Jericoacoara. Eu a escutara dizer que iria para o mesmo destino
que o meu, mas meu fogo estava morno. A responsabilidade profissional e
pessoal era um motivo para ficar mais na minha com relacionamentos
amorosos, ainda que ela parecesse interessante; a última afirmação era inegável.
Ainda assim, meu pensamento passeou pela imagem dos olhos caramelos
instigantes, foi impossível impedi-lo de sair vagando naquele mar âmbar. Eles
demonstravam cautela e súplica. Não por acaso, eu fazia força para me libertar
do desejo de ir atrás dela, sem sucesso.
Arranquei um suspiro do peito.
Quer saber, eu não iria me enganar com uma descrença fingida. Pelo visto,
a moça estava em apuros com seu translado até Jeri; pude ouvir algo que
denunciava seu problema. Talvez eu pudesse ajudá-la… nesse sentido.
— Senhora, eu vou fazer a reclamação outra hora. Preciso ir.
— Mas eu já iniciei sua solicitação do desvio da mala — a senhora disse
com voz de desgosto, erguendo a mão.
Parecia que a minha avó estava diante de mim. Ela não dispensava esse
modelo de óculos com armação de tartaruga, como a atendente usava em seu
rosto.
— Cancele, por favor. Eu faço outra hora.
— O senhor sabe que tem apenas sete dias a partir de hoje para registrar
uma queixa formal?
— Que seja. Eu dou um jeito de voltar outro dia.
Não tive dúvidas do que meu coração ordenava que eu fizesse. Enfiei o
documento na carteira e andei até as portas de saída.
Antonella parecia uma flor murcha sentada sobre a mala. Seu vestido
colorido rodava em torno do seu corpo. E ela estava… chorando? Parecia que
sim. A cabeça baixa e os ombros oscilando demonstravam que a situação não
era das melhores.
Meu coração perdeu o compasso e consagrou que eu deveria ajudá-la, sim.
Mulher em lágrimas era o cúmulo do sofrimento para mim. Quando
jovem, eu havia presenciado o martírio sem fim da minha mãe; então
acariciava seu cabelo e a consolava, semelhante ao que fiz com Antonella no
avião. Infelizmente, o que vi foi um déjà-vu daqueles tempos que eu gostaria
de apagar da minha memória.
Fiquei na defensiva, assim como ela se mantinha a maior parte do tempo
comigo, largando a todo instante a linguagem subliminar do “aqui é o meu
espaço e você fique na sua”.
Por Dios!
E se fosse minha irmã numa situação similar de desespero? Em um lugar
distante de casa e sem ninguém para lhe dar a mão?
Tomado pelo sentimento de solidariedade, dei poucos passos à frente e me
pus diante da moça que chorava intensamente. Estendi o braço e ofereci a mão
a ela.
Os olhos opacos se elevaram.
— Por que você está sen-sendo gentil comigo? Eu não fui legal com você.
Em definitivo, o choro dela partiu meu coração.
CAPÍTULO 5
— Que passa? Talvez eu possa ajudar.
Minha mão se mantinha evocando que ela se levantasse da situação
constrangedora.
— Vem.
— Ninguém pode me ajudar. Eu fui burra durante anos, não dizia o que
sentia para a minha família e para o meu noivo. Eu o abandonei no altar e
agora estou pagando o preço — a voz bamba se entrecortava com o choro.
Pelo visto a história seria longa, então resolvi me sentar ao lado dela.
Dobrei os joelhos e descansei os braços sobre as pernas, os cotovelos apontados
para os lados. Antonella estagnou o choro e olhou surpresa para mim.
— Você não pode ficar sentado no chão.
— Você é mandona, né?
— Eu não sou mandona — ela protestou em meio a uma fungada.
Abaixei a cabeça. Era mais seguro se eu não desse a chance a ela de
vasculhar minha expressão de “você parece que é sim”. A mulher era atrevida e
de pavio curto. Provocá-la não era a melhor escolha. Arrancar um riso genuíno
da boca sensual tornou-se meu objetivo.
— Se você pode ficar, por que eu não posso?
— Eu não estou sentada no chão. Estou sobre a mala.
— Não vejo muita diferença.
— Tá bom, Sebastián. Faz o que quiser.
— Guay! — Estiquei as pernas, descansei um tornozelo sobre o outro e
espalmei as mãos no chão um pouco para trás, bem relaxado.
Os olhos dela se alargaram como se eu fosse louco, mas eu não me
importei. A partir daí, Antonella passou a observar que as pessoas nos
avaliavam, coisa que também não me afetou. Tive a nítida impressão de ter
ouvido um gemido vergonhoso partindo dela. Logo depois, o rosto da moça se
avermelhou. Tan linda!
— Vocês estão precisando de transporte? — um rapaz, com uniforme de
uma das cooperativas de táxi, perguntou ao se aproximar.
Não era para menos, parecíamos dois maiores abandonados, largados na
calçada do aeroporto. E o rosto dela manchado pela maquiagem que escorrera
dos seus cílios, contribuía para a cena se transformar em um drama. Embora eu
soubesse que ela sofria por algum motivo, eu até estava me divertindo com a
situação.
— Sim — ela respondeu.
— Não precisamos, obrigado — rebati.
— Como assim, não precisamos? — ela virou o rosto para mim, com uma
expressão de surpresa e revolta. — Você não pode falar por mim.
— Eu ouvi você dizer que está indo para Jericoacoara. Também vou para
lá. Então pensei…
A testa dela franziu e as sobrancelhas arqueadas despencaram.
— Você ficou prestando atenção no que eu falei para a senhorinha? — ela
sorriu de um jeito malicioso. Talvez estivesse mais para irônico. Fui pego de
surpresa pelas múltiplas facetas de humor da Antonella.
Tá certo. Eu estava mesmo. Não mentiria. Ainda assim, eu me defendi.
Não iria permitir que ela sempre desse a palavra final em tudo. Soprei o ar, um
pouco contrariado. Nós mal nos conhecíamos e eu estava aceitando facilmente
essa troca de farpas.
— Você falou alto.
— Não falei não.
— Agora, Antonella, você está me ofendendo.
— Eu, te ofendendo?
— Você me chamou de mentiroso.
— Há. Se a carapuça serviu — ela me provocou com a risadinha e a cabeça
se remexendo de um jeito tão ou mais debochado que sua expressão e tom de
voz. A moça conseguiu me tirar do sério.
— Há. Há — repliquei e olhei para frente, retornando à posição anterior
dos joelhos dobrados, refletindo que o meu comportamento era como se
voltasse no tempo da adolescência.
Em seguida, eu a ouvi dizer.
— Moço — um silêncio se fez na sequência. — Ué? Cadê o rapaz do táxi?
Minha cabeça pendeu para trás e disparei a rir. Não me contive. Meu
humor estava se alterando, assim como o dela, o que há tempos eu não me
permitia fazer. Cuidar das minhas emoções era algo necessário desde muito
jovem. Mente equilibrada é vida harmoniosa.
O que sei é que o cara havia saído de fininho para bem longe dos dois
malucos que discutiam, sentados na calçada: nós!
Para minha surpresa, ela gargalhou tão alto que me chamou atenção. Ergui
a cabeça e fitei os lábios, enfim, moldados por um sorriso aberto, aquele que eu
tanto almejava descobrir como era. O mais lindo de todos que já tinha visto.
— Passada! — Antonella se expressou.
— Não acho que o rapaz nos considerar loucos seja algo tão surpreendente
— fiz a observação e empurrei a perna dela com meu cotovelo.
Seus olhos se voltaram para os meus, a testa franzida, os lábios entreabertos.
— Eu quis dizer que estou mortificada, sem graça. Sem querer acreditar
que ele nos taxou como loucos.
— Ah! Entendi. Pasada em espanhol é usado para falar sobre coisas
surpreendentes, instigantes.
— De um jeito meio louco, nós estamos fazendo algo surpreendente. Olhe
como estamos. Não é usual ficar sentada sobre uma mala e, ahhh, chorar — ela
abriu os braços.
— Se estivéssemos fazendo algo instigante seria melhor, não acha? —
pisquei para ela na pretensão de fazê-la sorrir.
Como eu esperava, Antonella não entrou em meu jogo e emudeceu. Logo
depois, ela se levantou e ajeitou o vestido longo com as mãos, tirando as rugas
do tecido. Eu imitei o movimento e fitei seu rosto que ainda permanecia lindo
para ser admirado, apesar dos borrões da maquiagem.
— Eu preciso procurar um hotel para me hospedar.
As mãos dela enrolaram o cabelo várias vezes, como fizera no avião.
— Mas obrigada pela oferta. Estou muito cansada para encarar mais uma
viagem. Vou ficar em Fortaleza mesmo. Desculpe se não fui, hum, muito
simpática com você. É que…
— Linda, só vou aceitar suas desculpas se você for comigo. Não há por que
negar, estamos indo para o mesmo lugar e você perdeu o transfer.
A cabeça dela devia fervilhar interrogações naquele instante. O rosto
franziu e a boca foi para um lado. Eram expressões que ecoavam seus
pensamentos dúbios.
— E se você for um psicopata ou um assassino? Vou estar em suas mãos se
aceitar sua carona.
Que chica desconfiada!
Isso fez meu sangue ferver. Alguém julgar o meu caráter era um assunto
que, quando vinha à tona, mexia em uma ferida ainda não cicatrizada. Olhei
nos olhos caramelos dela com tanta profundidade que pensei que ela cederia,
mas seu olhar gélido me fuzilava em um jogo de quem sairia vencedor na
persistência de sobreviver a um embate.
Tão bonita e tão cismada. Mas eu a entendia.
Atraí o ar para os meus pulmões após puxá-lo com força. No minuto
seguinte, procurei ser o mais coerente possível com Antonella. Eu me conhecia
e sabia quem eu era, um espanhol que viera cuidar de negócios no Brasil, mas
ela não.
Antonella

Não sei explicar o que presenciava diante dos meus olhos, mas as narinas
do Sebastián se abriram como asas, de tão indignado que ele pareceu ficar com
a minha recusa, ou… Talvez não fosse isso. Creio que foi minha insinuação de,
supostamente, ele ter a intenção de se aproveitar do meu estado vulnerável.
Tá. Eu havia sido injusta com ele mais uma vez?
Acabei me sentindo péssima.
Ok. Pode ser que eu estivesse pegando pesado com ele, ainda assim me
mantive firme, encarando seus olhos, lugar perigoso. Aquela ligação inesperada
poderia surgir outra vez. O divertido era que parecíamos um par banal de
namorados ou velhos amigos em um momento de discussão. Como isso era
possível, se havíamos nos conhecido há pouco mais de três horas?
Foi impossível não me recordar da minha mãe. Nos raros momentos de
lucidez materna, ela me aconselhava a ter cuidado com os homens, em especial.
Não que Horácio fosse um namorado ruim, pelo contrário, ele era amoroso,
atencioso, mas meu coração não era dele. Eu estava vivendo há anos uma
meleca sentimental por culpa minha. Eu havia me jogado em um
relacionamento por conveniência familiar, que parecera à primeira vista
promissor, mas acabou sendo uma grande furada. Em definitivo, afastar-me de
Sebastián era prioridade, claro, antes de eu buscar um lugar para pernoitar.
— Vamos combinar o seguinte, eu vou voltar para registrar o extravio da
mala enquanto você procura o hotel para se hospedar. Se não conseguir, minha
oferta ainda estará valendo.
Pensativa, mordi o lábio. Ele suspirou. Eu contive um riso.
Minha coerência me forçou a ser razoável com o galã-espanhol. À essa
altura, ele havia dito a sua nacionalidade enquanto conversávamos aguardando
o atendimento da administração do aeroporto.
— Justo — estendi a mão para ele e fechei o acordo como se fosse algo
profissional.
Sebastián comprimiu sua mão na minha, não de um modo que a fizesse
doer, mas com firmeza, reafirmando o seu apoio. Foi bom sentir que alguém se
importava comigo. Se não fosse Heloísa para me socorrer quando precisei de
ajuda, depois de ter corrido do altar, eu estaria lascada, uma vez que não havia
contado com o apoio dos meus pais.
— Então eu vou lá — o dedo dele apontou para a porta de vidro. — E
aguardarei sua resposta.
Com meu gesto de cabeça, firmamos o acordo.
Logo que ele se foi, impulsionei meus olhos para checar como ele era de
costas. Ombros não tão largos, mas não minguados, estavam no ponto certo
para incentivar os olhares arfantes de duas mulheres pelas quais ele passava.
Notei que elas se entreolharam e trocaram conversinhas baixas. Uma delas
desceu seu olhar para a bunda dele, inclinando a cabeça para o lado…
Também não tive como evitar e olhei. E seu traseiro, era uma curiosidade
natural.
— Isso é covardia comigo, meu bom Deus!
Sem que eu esperasse, ele facilmente me pegou desprevenida ao virar meio
corpo e olhar para trás. Mancada clássica. Balancei nos calcanhares, tão
embaraçada que me senti. Por instinto, abaixei o olhar para o celular, o qual
revelava minha imagem. Vi que meu reflexo era crítico e assustador. Em
definitivo, eu precisava de um banho calmante e uma cama, além de lenços
para retirar a maquiagem desmanchada.
No segundo seguinte, ao ligar o aparelho, meus ouvidos registraram
inúmeros bip´s de mensagens. Curiosa, entrei no aplicativo de conversa e
parecia que o mundo inteiro sabia meu número. Suspirei, cansada, mas dei
uma espiada na última linha escrita por Heloísa.
Helô: Assim que desembarcar, preciso falar com você. É urgente.

Ah, a Heloísa poderia esperar. Urgente mesmo era encontrar um local para
me hospedar.
Por fim, ignorando a súplica da minha amiga, comecei a zapear o celular,
pesquisando hotéis em Fortaleza cujas diárias coubessem em meu bolso.
Assumi que meu desalento tinha de ser curtido em minha solidão.
CAPÍTULO 6
— Eu não entendo como um congresso de medicina pode lotar os hotéis da
cidade. Liguei para mais de quinze — informei a ele e soltei um gemido de
exasperação.
Sem querer, minha perna esbarrou na da moça sentada ao meu lado após
me jogar, exausta, na cadeira.
— Desculpe.
Somente então percebi que os olhos bobos dela estavam direcionados ao
meu recém-conhecido, vulgo Sebastián. O rosto dela enrubesceu mais que sua
camiseta vermelha ao perceber que eu havia notado a sua quedinha pelo
espanhol.
Ri por dentro.
É, o cara estava causando suspiros no aeroporto.
Olhei para ele e, em uma atitude duvidosa, Sebastián fechou com
premência um jornal que lia. Enfiou-o entre sua perna e a divisória que nos
separava. Também pudera, eu tinha chegado tagarelando no ouvido dele! A
rebeldia se instalara em mim desde que eu havia caminhado de braços dados
com meu pai até Horácio. De certo, com um atraso de anos. Lugar errado,
hora errada para eu decidir me rebelar.
Que seja!
— Então você vai aceitar a minha oferta e ir comigo para Jericoacoara? —
ele retesou o rosto, o pescoço deu uma alongada de leve.
Interpretei como se estivesse em expectativa da minha resposta. Foi legal da
parte dele me oferecer carona. O mínimo que me cabia fazer era ser educada.
— Bom, a que horas partimos?
— Agora mesmo. Vamos?
No instante seguinte, ele estendeu a mão ao se levantar. Soltou um
sorrisinho e espalmou sua mão na minha. Foi repentino e intenso o que senti
se infiltrando por minha pele, um calor forte preencheu meu peito e seguiu até
o abdômen, onde se instalou com uma fisgada ocasional.
Ficamos por alguns segundos nos observando. Espremi o cérebro para me
recordar quando foi que havia sentido algo repentino e forte por Horácio.
Talvez quando nos conhecemos na casa da minha tia. Talvez… nunca?
Infelizmente, ele não possuía olhos felinos, fontes de uma hipnose natural, tais
quais os do Sebastián.
Pisquei. Pisquei mais uma vez. A coerência retornou ao cérebro e, então,
gesticulei meio sem controle.
— Para que lado vamos?
Sebastián voltou a se conectar à realidade com uma raspada de garganta.
— Ah, sim. Em direção a área de embarque de aeronaves menores.
Passei a mala de uma mão para a outra.
— Não entendi.
— Venha, eu te mostro — assim que falou, segurou a alça da minha mala
em um gesto de cavalheirismo.
Algo que me chamou atenção nele foi a sua generosidade. A todo instante
ele demonstrava sua conduta correta, transmitindo segurança. Isso me
impressionou, dado o cenário caótico em que eu vivia, por escolha própria, eu
sei. Admito que encontrá-lo foi como avistar uma flor de lótus em águas
lodosas. Única e bonita.
— Pensei que fôssemos sair daqui e ir para outro lugar, tipo o
estacionamento dos transfers.
— Não. Nós vamos para a área de embarque de aeronaves menores.
Nem fui capaz de ouvir o que ele dizia, estava magnetizada por seu olhar.
— Ahhh!
— Você tem medo de helicóptero?
— Desde que não passe por uma turbulência, não tenho.
Fiz careta.
— A última foi tensa.
— Ô, se foi. Nunca tinha acontecido comigo.
Eu estava acostumada a viajar de avião, mas sabia que talvez eu não tivesse
mais condições de me aventurar por aí com tanta frequência, viajando.
Precisaria viver apenas com minhas economias daquele dia em diante.
Ele aquiesceu com um aceno de cabeça e colocou o jornal na lixeira ao
lado. Sinceramente, não entendi a atitude do Sebastián em descartar o
impresso. As reportagens não eram interessantes?
— Mas por que a pergunta sobre eu ter medo de helicóptero?
— Ora, porque vamos para Jericoacoara em um.
— Verdade? Helicóptero?
Tive a impressão de ter visto um vislumbre de sorriso se estendendo nos
lábios estreitos. Ou ele era o dono da aeronave, ou possuía grana suficiente para
pagar uma ida a Jeri com um valor mais salgado. Registrei umas poucas rugas
no canto dos olhos; elas denunciavam que ele era um homem com mais de
trinta anos e com pinta de bem-sucedido, embora se vestisse informalmente.
Seguimos pelo corredor, obviamente em um ritmo mais apressado. Como
eu suspeitava, havia atrasado a ida dele a Jericoacoara, lugar paradisíaco.
Em um primeiro momento, decidi que não perguntaria a Sebastián sobre a
procedência do helicóptero, logo em seguida desisti de não querer saber. Então
jorrei a pergunta que não emudecia em meus pensamentos:
— Ah, você alugou um helicóptero?
Ele negou com a cabeça, em uma resposta tão objetiva quanto o meu
questionamento, deixando-me numa imensidão de curiosidade. Sem ter como
especular a verdade, o que me restou foi segui-lo pelo caminho em direção a
uma sala reservada de embarque para aeronaves de menor porte.
A cisma sobre ele ainda persistia, apesar de tudo. A gente fica sabendo de
tantas histórias escabrosas que acontecem pelo mundo afora. Todo cuidado era
pouco. Ele poderia ser um pedaço de mau caminho por baixo desse ar de
cavalheiro...
Então me convenci de que estava sendo paranoica.
Só que... Chegando na sala de embarque, meu coração entrou em colapso.

Sebastián

Assim que identifiquei quem estava plantado a poucos passos de mim e da


Antonella, a percepção facilmente me alcançou. Pensei em sair de fininho de
perto dela, mas eu seria um covarde se agisse assim. Não sei como o ex-noivo
dela reagiria, se partiria para cima de mim em uma reação ciumenta. Era ele.
A ideia perturbadora de que o cara pudesse machucá-la fisicamente me
causou um incômodo maior do que se eu recebesse um roxo no olho, ainda
que eu considerasse que ele não faria isso, já que estávamos em um lugar
público e sua aparência era a de um ricaço-educado.
Mas quem vê cara não vê coração, meu pai havia sido o exemplo perfeito
dessa frase comum.
Logo que entramos na sala de embarque, eu o identifiquei. Primeiro, pela
reação de assombro dela. Segundo, porque o homem que estava com a cara
fechada e passou a nos olhar fixamente a partir do instante em que nos avistou,
era o mesmo da foto da primeira capa do jornal carioca. Eu havia encontrado o
impresso sobre o banco na área comum do aeroporto.
Coincidência infeliz! Não de ter lido a reportagem, mas do homem largado
no altar estar logo no lugar onde embarcaríamos para Jeri. O rosto do ex-noivo
da Antonella era de abatimento e denunciava que a noite anterior não tinha
sido nada fácil. Tentei imaginar a dor da rejeição que ele devia estar sentindo.
Mas a relação dos dois não era da minha conta. Embora ela fosse uma
mulher bonita e fascinante, eu estava ali apenas disposto a ajudar uma pessoa
que passava por apuros, sem julgar sua atitude. Então me ocorreu que eu
deveria sair de perto dos dois e deixá-los ter a conversa necessária após o
escândalo que o jornal enfatizara como o do ano.
Eu me virei de lado, ela fez o mesmo, sua fisionomia denunciava o quanto
a presença dele a abalara.
— Embarcamos em quinze minutos. Avise se realmente vai para
Jericoacoara ou se vai voltar para o Rio com seu noivo — arranhei a garganta
de leve. — Não posso deixar o piloto na espera mais do que o previsto. Parece
que temos um passageiro de última hora e não queremos que a pessoa fique
aguardando. Certo?
O olhar arredondado dela para mim marcava a confusão que havia captado
suas emoções. Naquele instante, eu não poderia agir de outra forma a não ser
dar espaço para os dois decidirem o que fariam dali para frente.
— Ficou tão evidente que — ela deu um suspiro e, de relance, olhou para
o lado — é, hum, ele era meu noivo?
Ergui as sobrancelhas na clara indicação de que sim, eu sabia quem o cara
abatido era.
— Eu vou com você — ela afirmou categoricamente. — Apenas me dê um
tempo para conversar com ele.
— Certo. Então vou te aguardar, mas lá fora.
Na intimidade dos meus pensamentos eu conversava comigo e reforçava a
seguinte frase: “em que furada fui me meter?”.
— Combinado — ela confirmou e comprimiu os lábios, demonstrando
talvez insegurança, arrependimento, receio, hesitação. Poderia ser o misto de
tudo isso e mais um pouco. Viajar com um desconhecido ou voltar para os
braços do noivo? Parecia uma cena de romance clichê que mi abuela costumava
assistir.
Mas ali não se tratava de romance, era a vida real nua e crua. Eu não era
opção de escolha de relacionamento para ela. Apenas queria ajudar uma pessoa
que estava em apuros.
Com um aceno fraco de cabeça, despedi-me momentaneamente dela,
voltando com a mala para sua posse. O pior foi passar ao lado do cara que me
fuzilava com os olhos e mantinha uma das mãos fechada em punho ao lado da
perna.
CAPÍTULO 7
Exatamente no tempo estipulado de quinze minutos, Antonella surgiu da porta
de vidro, correndo com a mala deslizando ao seu lado. Ela conferiu o céu
limpo e soltou um suspiro de alívio. O susto do trajeto anterior não havia sido
nada bom.
— Obrigada por esperar — O abatimento dela pesava em sua voz.
— Eu disse que ia aguardar.
— Sei disso. Você realmente é um homem de palavra.
Ela respirou fundo enquanto parecia se encorajar para dizer algo, pois seus
olhos se fixaram nos meus por alguns segundos, que corriam no relógio como
minutos. O tempo parecia não findar quando nos olhávamos.
— Desculpe mais uma vez se fui grosseira com você antes mesmo de
conhecê-lo, Sebastián. Meu mundo está de cabeça pra baixo. Como percebeu,
tive que fazer uma escolha.
Embuti as mãos nos bolsos. Minha expressão com a boca comprimida e os
olhos alargados enfatizava o quanto eu a achava corajosa.
— Deve ter sido difícil tomar essa decisão — falei e ela aquiesceu com a
cabeça. — Eu vi no jornal a repercussão da sua saída bombástica da igreja.
— Ah, não. Já virou notícia? — a mão dela arrastou o cabelo para trás.
Observei o rosto esboçar tristeza. Várias camadas de emoções se
misturavam na expressão desolada.
— Claro que isso aconteceria. Meu pai é um empresário conhecido. O pai
do Horácio também.
A situação demandava cuidado, lidar com pessoas poderosas era pisar em
um campo constituído de egos avantajados.
— Agora entendi por que você jogou aquele jornal fora. Foi para eu não
ver o que falavam de mim, não é? — Antonella despencou o olhar para os pés,
suspirou e voltou a me fitar.
Mais uma vez meu coração bateu apertado.
Forçando não me envolver além do que já estava enfiado até o pescoço
naquela situação, evitei olhar nos olhos entristecidos diante de mim. Desviei a
atenção para o piloto sentado no comando do helicóptero e o avistei
apontando o pulso.
— Precisamos ir. O outro passageiro pelo visto desistiu de embarcar —
sorri sem vontade.
Estava escrito na planilha de turistas do hotel que Horácio Louzada Ramos
havia reservado de última hora o voo até Jeri. Sinal de que o destino de
Antonella era o mesmo que o meu desde o início, desde quando nos
esbarramos.
Não foi necessário trocarmos mais palavras para encerrarmos esse assunto
“noiva em fuga”. Resgatei a mala e estendi a mão para que ela entrasse no
helicóptero.
Aproximadamente uma hora após o embarque, chegamos ao nosso destino.
Logo avistei o espelho d’água da piscina ladeada pela areia da praia de um lado
e a estrutura alongada de cimento da construção, no lado oposto.
A aeronave fazia o último sobrevoo marítimo para finalmente pousar no
heliponto do hotel. De cima, pude avistar a Duna do Pôr do Sol e os telhados
das casas da vila se apresentando mais escurecidos aos meus olhos, reforçando
que o sol havia se posto há algumas horas.
— Nossa passageira dormiu — o piloto revelou, ocultando um sorriso.
— Percebi. Ela estava muito quieta desde a metade da viagem. Se eu te
contar tudo que aconteceu com Antonella desde ontem… olha, ela é forte,
muito forte.
De soslaio, Calebe me olhou e sorriu sem abrir os lábios. Sua discrição era
seu ponto forte.
Depois de um tempo, ele alertou:
— Acorda a princesa e avisa a ela que vamos pousar.
— Ok.
Virei a cabeça para Antonella. Sua boca aberta demonstrava que seu sono
era profundo.
Calebe era cauteloso e prezava pelos passageiros. Era sua regra que todos
estivessem acordados no momento do pouso e com os cintos afivelados.
— Senhorita Antonella — chamei-a baixinho, sem sucesso. Então ergui o
tom de voz: — Senhorita Antonella…
Preguiçosamente, os braços alongados se espicharam para cima. Em
seguida, ela foi com as mãos ao rosto e deslizou os dedos nos olhos. Analisei os
movimentos lentos e delicados e senti aquela afeição pela brasileira se instaurar
outra vez em mim. Tudo que ela fazia me cativava. Não me perguntem o
motivo.
— Nossa! Desmaiei. Por quanto tempo dormi?
— Quase toda a viagem — respondi.
Ganhei um sorriso menos pálido e um olhar liberto de hesitação. A
confiança dela em mim começava a ser conquistada. Mas eu queria mesmo me
empenhar para trazê-la para mais perto. Não sei se valeria tanto esforço. Talvez
somente ser educado era suficiente. Eu estava com a mente atrapalhada.
Por Dios!
O pouso foi perfeito, sem nenhum inconveniente. Bastava os que haviam
acontecido desde o embarque no Rio de Janeiro.
— Obrigada pela carona — Antonella agradeceu ao Calebe, falando alto
sobre o ruído das hélices ainda na ativa e desafivelando o cinto de segurança
em seguida.
— Não há de quê — ele piscou para ela, fez todo procedimento de desligar
a aeronave e desceu em seguida para o ar livre.
No segundo seguinte, eu o segui e endireitei as costas. Meus ossos
estalaram. A coluna deu uma chiada, uma vez que havia emendado a viagem de
retorno da Espanha ao Brasil.
— Ela é muito educada — meu amigo fez um elogio a ela assim que nos
vimos fora do helicóptero.
— Na maior parte do tempo. Quando ela fica nervosa… — com um
sorriso de canto de boca, encerrei o assunto e vi que Antonella sairia do interior
do helicóptero. No mesmo instante, dei a mão para que ela descesse a escada.
— Mais uma vez gentil — a chica me elogiou e eu me senti feliz por ter
transmitido uma boa impressão, no final de tudo.
Seus pés vacilaram quando ela pisou no chão. Foi instantâneo segurá-la em
meus braços. Seu corpo longilíneo aqueceu o meu. A boca desenhada se
entreabriu. Pude sentir o hálito quente vindo dela e fazendo cócegas em meu
rosto.
Perdi o fôlego e fiquei sem ação.
Como um dos dois tinha de quebrar o clima que volta e meia se instalava
entre nós – era impossível que ela não captasse essa energia involuntária – as
contas carameladas piscaram, fazendo-me retornar à razão. Dei um passo para
o lado e pude notar que ela admirava a noite de Jeri.
— O céu está lindo! Todo estrelado.
— Senhorita, bem-vinda ao paraíso chamado Jericoacoara — consegui
dizer, recuperando a respiração antes entrecortada.
Ela declinou as pálpebras e, com a voz baixa, declarou:
— Pensei que o slogan da cidade fosse “O amor está em Jeri”. Meu noivo,
quer dizer, ex-noivo, queria ir a Veneza na lua de mel, mas eu o convenci a ficar
no Brasil. Aqui temos tantos lugares lindos e achei Jericoacoara perfeito e tão
romântico — ela encontrou meu olhar outra vez cheio de camaradagem.
— Vai ser bom passar um tempo sozinha e colocar os pensamentos no
lugar. Quem sabe ainda não tem volta?
— Demoro a me decidir por alguma coisa, mas quando decido…
Nós nos entreolhamos por um tempo mínimo.
— Vai dar tudo certo, senhorita.
Seus lábios esboçaram um sorriso de diversão.
— Essa é a sua frase clichê? Vai dar tudo certo?
— Frase de bom ânimo? — enruguei o nariz, buscando aceitação.
— Tá certo. Vou me lembrar sempre desse jargão quando estiver me
sentindo pra baixo.
— Assim que se fala. Agora vamos, senhorita Antonella.
— Deixa que eu levo a mala — Calebe disse em um tom mais alto, para ser
ouvido.
Fiz um sinal de joia para ele.
Andamos lado a lado sobre o caminho de pedras pequenas e contornamos
o chalé onde eu morava, com destino à recepção. Antes de pisarmos no
assoalho frio, ela calçou meu braço com sua mão em concha. Uma corrente
elétrica se arrastou em minha pele com o seu toque. As coisas estavam saindo
do controle.
Seria deselegante retirar meu braço da posse momentânea da chica, mas é
que eu me surpreendi com a forma como meu corpo reagia ao encontro das
nossas peles.
Virei-me para ela, ainda que o meu propósito fosse me libertar da sensação
que havia me tomado.
— Por que você está me chamando de senhorita, Sebastián?
— Ah, agora você é minha hóspede. Quer dizer, do hotel. Questão de
respeito.
— Não, não, não. Não vamos mudar o nosso tratamento informal, tá
bom? — ela sorriu e comprimiu os lábios.
Não faça isso, moça.
Distraí-me com os lábios dela se alargando minimamente em um sorriso
enquanto se apertavam, chateados. Esse conjunto de reações fofas me fez
perder o foco de me manter em uma posição segura em relação à Antonella.
Ela era cativante. Calebe que não ouvisse o que minha mente falava naquele
instante.
— Então fizemos um acordo. Continue me chamando de Antonella, por
favor. E eu não te chamo de senhor.
Se ela soubesse… Na verdade, me referir a ela com formalidade era uma
forma de me poupar do risco de interagir mais de perto com ela durante sua
hospedagem. A voz firme em contraposição aos gestos suaves, além do corpo
escultural, não me ajudavam em nada a manter a coerência em seu devido
lugar.
— Ok. Vou me lembrar da sua recomendação. Agora vamos fazer o seu
check-in?
Assim que pusemos os pés na recepção, André apontou os olhos para mim
e foi logo dizendo:
— Fez uma boa viagem, senhor?
— Melhor impossível. Você pode fazer o check-in da senhorita Antonella?
Eu vou para o meu quarto. Preciso fazer umas ligações — olhei para ela ao meu
lado. A moça vistoriava a decoração rústica da recepção. — Espero que você
aproveite a sua estadia em nosso hotel.
— Ah, então você é o gerente? Que bacana! Sorte a minha que estávamos
no mesmo voo.
— Sorte a nossa. Às vezes a vida nos une com algum propósito — eu me
interrompi. — Pude conhecer você — não resisti e pisquei, negando o meu
firme propósito de não paquerar a moça.
O rosto dela corou. O meu, nem um pouco, embora a consciência gritasse
para ficar quieto no meu canto.
Sentindo que sua pele queimava, ela foi com as mãos no cabelo e fez aquela
confusão de enrolá-lo, ainda que o foco dos seus olhos fossem os meus. O
curioso é que eu já identificava alguns de seus gestos de acordo com suas
emoções. Por mais que ela quisesse camuflar o que pensava, não conseguia
conter sua pele clara de avermelhar, ou sua mão e sobrancelha de agirem de
forma que a entregassem. Todas essas reações indicavam que eu a afetava de
alguma forma.
Gosto de moças espontâneas.
— Ah, ele não é… — o recepcionista quebrou a liga que acontecia entre
mim e Antonella.
— André, hum, por favor — eu sabia muito bem o que ele diria, então
cortei a fala do rapaz.
Algo que me incomodava era ser rotulado pelo que possuía e não por
minhas qualidades e defeitos. Herdar os erros de comportamento do meu pai
era o que eu não precisava em minha vida.
— Dê uma checada no número do quarto disponível da reserva — pedi.
— Sim, senhor.
— Antonella, aproveite sua estadia no nosso hotel.
— Nos esbarramos por aí?
— Ah, com certeza. Vou estar em Jeri até o final do mês que vem. Depois
volto ao Rio. Vamos inaugurar uma filial na sua cidade antes do verão começar.
— Que máximo. Ah, então até.
Com um aceno de mão ela se despediu de mim e se virou para o André.
Fiquei me perguntando se havia algo subentendido na pergunta dela. Ela
queria me ver por ver ou… Ou. Nada. As coisas estavam saindo do controle.
Muitos problemas me cercavam e eu não podia mudar o roteiro programado.
Esbarrei em Calebe sob o alizar da porta, ele vinha com a mala da moça.
— Seu Calebe, estamos com um problema na reserva da senhorita
Antonella — André informou ao ver o gerente.
Logo paralisei onde estava e aguardei suas palavras. Em se tratando da
Antonella e seu passado recente, tudo podia acontecer. Até mesmo a reserva ter
sido cancelada por seu ex-noivo, ou por sua família, após largar a mensagem
clara a eles de “preciso respirar novos ares”.
— Não é possível! — ela se exasperou. — Como isso pode estar
acontecendo? Eu deveria ter previsto que meu pai cancelaria a reserva,
querendo me castigar. Foi ele quem nos presenteou com os dias da lua de mel.
Como eu havia previsto… a sucessão de problemas não havia se
extinguido.
Antonella

— Explique melhor, André — Calebe pediu assim que colocou minha


mala no chão e contornou o balcão.
Não dei a mínima ideia ao gatilho que disparou em meu canal lacrimal e
controlei a torrente de água que ousava emergir dos olhos. O cansaço
dominava minhas emoções. A dor que senti no peito parecia que explodiria
meu coração. A cabeça latejava. Tudo em mim estava prestes a desintegrar sob
o teto de palha trançada.
Fiz um movimento circular nas têmporas.
— É. — Calebe coçou a barba rubra. — Parece que temos um grande
problema aqui.
— Que passa?
Graças a Deus, Sebastián se apresentou na conversa. Sei lá, ele estava
conseguindo quebrar a minha resistência e passara a me dar segurança. A
situação seria resolvida, já que o europeu era o gerente. Não era?
Somente então notei a plaquinha prateada grafada com as palavras Gerente
Geral, na camisa florida do Calebe. Se ele era o Gerente, então… O Sebastián
era o quê?
— Não temos vaga até quarta-feira. A reserva em nome do senhor Horácio
Louzada Ramos foi cancelada há quase uma hora. Um casal, que estava na fila
de espera, trocou de hotel e veio para o nosso estabelecimento logo que o
comunicamos, senhor.
— Não creio. Que falta de sorte — externei meu pensamento em voz alta e
minha garganta se apertou. — Mas entendo a decisão deles de vir para cá. É o
melhor da cidade.
— Nenhum check-out para amanhã? — pude ouvir o gerente perguntar.
O recepcionista franziu os lábios dando a entender que, em definitivo, não.
Eu estava mais que lascada.
CAPÍTULO 8
Droga. Sentar-me sobre a mala e chorar não era a melhor opção. Eu não queria
agir como no aeroporto, repetindo meu pranto. Pelo visto, eu teria que tomar
as rédeas da minha vida na marra. Demonstrar maturidade era questão de
prioridade naquele momento.
Eu tinha feito a minha escolha, não tinha?
Ergui o nariz, não com petulância, mas asseverando a mim mesma que eu
precisava reagir. Por mais que meu cérebro estivesse entrando em curto de
tanto esgotamento, eu tinha de encontrar uma saída para o meu problema mais
recente.
Soprei o ar em um desabafo.
— Ah, então vou procurar uma pousada ou hotel. Desculpe o transtorno
— revelei minha intenção, aconchegando a alça da mala outra vez em minha
mão.
Pelo visto, seríamos amigas por muitas horas ainda. Talvez eu tivesse de
usar a mala caríssima como travesseiro em alguma calçada. Calçadas… Outra
amizade que eu havia conquistado nas últimas horas. Lamentável.
— De jeito nenhum, Antonella. Tive uma ideia, se o chefe concordar com
meu pensamento — Calebe afirmou, redirecionando o olhar para Sebastián, ao
meu lado.
Eles trocaram olhares em uma conversa que se desenrolava em silêncio
apenas entre os dois. Pude constatar que Sebastián se entregou ao esticar um
sorriso débil, quando eu o olhei de frente. Não apreciei a sensação de estar no
meio de um fogo cruzado.
— Sebastián mora em um chalé no hotel, em uma área reservada. Sabe
como é, o dono tem seus privilégios — Calebe informou seu plano com
entusiasmo e puxou os fios longos da barba enquanto não tirava os olhos do
seu… chefe?
Caramba, Sebastián realmente era o dono do melhor e mais charmoso
hotel de Jeri! Um cinco estrelas na beira da praia, com piscinas particulares em
cada quarto!
Meu. Queixo. Caiu.
Por isso sempre argumentei com minha mãe, dizendo que eu não precisava
me vestir com luxo, ostentar joias e malas caríssimas para ser feliz. Olha só o
Sebastián, ele era um exemplo do que eu valorizava. Não que eu o conhecesse
profundamente, mas… A simplicidade podia ser vista pela camisa de malha e
calça jeans, além de uma gentileza sem fim que parecia ser seu maior artigo de
luxo. E mesmo que tenha sido por uma sugestão meio impositiva do gerente, o
espanhol não se esquivou de me amparar com um teto, nem que fosse por uma
noite.
— Será um prazer ceder o chalé para Antonella.
Mas de jeito algum eu aceitaria tirá-lo do seu conforto, ainda mais depois
de tantas horas viajando.
Sebastián era gentil e mais uma vez eu me senti péssima por tê-lo julgado
quando o vi dormindo no avião, sentado no lugar que deveria ser do Horácio.
Juro que pensei que ele estivesse com sono atrasado devido a uma noite de farra
e não em decorrência do jetlag. Essa herança de suposições arbitrárias que meus
pais tinham o costume de fazer não caberia ao meu novo estilo de vida. Eu
teria de policiar meus pensamentos.
— Eu posso dormir na sua casa, Calebe — eu o ouvi dizer.
Epa! Espera aí…
— Não, Sebastián. É injusto você sair da sua casa para me dar espaço.
— Fique o tempo que precisar, chica.
— Temos outro problema.
Ah, não. Calebe voltou a falar:
— Meus pais estão lá em casa com meu irmão, minha cunhada e minha
sobrinha. Há o Miguelzinho…
O bom entendedor consegue ler a mensagem em suas entrelinhas.
— Olha, gente, obrigada por tudo até agora. Nem sei como agradecer a
vocês pela carona. Com certeza eu vou conseguir um lugar para passar a noite.
Talvez eu antecipe a volta ao Rio…
Então me ocorreu que não teria mais passagem de volta porque ela havia
sido comprada com o cartão de crédito do Horácio.
Respirei fundo.
O jeito era seguir em frente se quisesse ter um pingo de dignidade.
Os olhos do recepcionista me encararam com pesar. Sorri minimamente
para ele e agradeci sua solidariedade com um gesto de cabeça.
Antes que as lágrimas pudessem dominar meus olhos, acenei para eles e fui
em direção à porta. Saí para a noite escura e amena da primavera de Jeri.

Andar pela rua de areia com uma mala sendo equilibrada nos braços a cada
passada, definitivamente não era meu sonho na cidade do amor. O que deveria
ser um charme rústico – o piso da cidade era a própria areia da praia –estava
sendo meu pesadelo. Sério. Tentem andar em uma rua arenosa com uma
tonelada de calcinhas e sutiãs pesando a mala. Como divar desse jeito?
Saco.
O abandono, o perigo, seja lá o que circulava de emoções doentias em meu
sangue, despertaram o instinto da busca por proteção. O receio do novo
pulsava nas têmporas. O estômago ardia em expectativa. O coração batia sem
sincronia.
Então uma voz sussurrou no fundo da minha mente, sugerindo que eu
deveria ligar para a minha avó, a única pessoa em quem eu confiava além da
Heloísa. Ela era dona da escola onde eu trabalhava desde que me formei em
Pedagogia sob protestos do meu digníssimo pai, o que fiz de bom grado.
Desafiá-lo sem um confronto direto era algo que eu amava de verdade fazer.
Parei na esquina entre a ruela do hotel e a avenida principal da cidade.
Olhei sobre o ombro e me despedi do hotel dos sonhos.
Soprei o ar.
Mala, mala, vamos voltar para o meu colo.
De repente, quando estava no movimento de inclinar o corpo para frente,
senti dedos compridos cunharem meu braço.

Sebastián

— Não vou deixar você sair por aí sozinha, à noite.


Ela levou as mãos ao lado dos olhos e fez movimentos circulares. Cerrou as
pálpebras e soltou um longo suspiro. Parecia estar com dor de cabeça. A minha
tinha começado a latejar.
— Sebastián, não sei, acho que prefiro achar outro lugar para me hospedar.
— Não quero que você pareça um zumbi, tipo do The Walking Dead,
andando por essa cidade de areia — falei na tentativa de ela sorrir e consegui.
Além de forçar um sorriso, ela baixou a guarda. Foi o sinal suficiente para
que eu pudesse me aproximar dela com um passo. Ficamos tão perto um do
outro que meu coração disparou. Há tempos que isso não acontecia comigo ao
conhecer uma mulher.
Não. Eu estava somente esgotado fisicamente e o corpo havia reagido para
me lembrar de que precisava descansar. Era como se estivesse andando sob o
sol escaldante de um deserto, meus miolos confundiam as sensações.
— Meu corpo está todo moído da viagem. Você também deve estar
cansada — esse foi meu tiro de misericórdia. — Vamos fazer o seguinte, aceite
minha oferta e vamos voltar para o hotel. Amanhã você decide o que fazer. Por
mim, pode ficar conosco o tempo que quiser. Por favor… — falei, sibilando,
com cautela.
A boca da Antonella deixou escapar um suspiro de exaustão.
— Tudo bem — ela assentiu.
Nem pensei mais que um segundo para recolher a mala dela em meus
braços e levá-la de volta ao hotel.
CAPÍTULO 9
Caminhamos em silêncio pela área externa até o meu chalé. Foi como se
tivéssemos selado um acordo tácito de trégua. Ela estava tão ou mais sem jeito
do que eu por ter que dormir comigo, quer dizer, na minha casa.
— Fique à vontade, Antonella. Ali está o banheiro, se quiser tomar uma
ducha. Ali, o quarto — apresentei meu espaço a ela e fechei a porta com o pé.
— Como pode ver, a sala tem o sofá e a TV. É simples.
— É aconchegante — ela sorriu tímida, a voz amolecendo com um bocejo.
— Siii! Eu gosto de morar aqui. Ah, por favor, posso? — pedi permissão
para levar a mala ao quarto.
— Não é justo, Sebastián, eu dormir no seu quarto. Eu me viro no sofá
mesmo.
— De jeito nenhum, chica. Mi abuela me ensinou a ser um cavalheiro com
as mulheres.
— Ela fez um bom trabalho.
Os lábios dela emitiram um sorriso vulnerável, demonstrando seu cansaço.
Antonella não tinha mais forças nem para sorrir.
Estendi a mão e a convidei para se sentar, se quisesse, é claro. Irritá-la era o
que eu menos queria. Deus sabia disso.
— Vou pedir que tragam um jantar para nós. Você deve estar com fome.
Não está? — continuei falando alto de lá. — Se quiser dar uma olhada no
cardápio do hotel, hum, costuma ficar na mesinha ao lado do sofá. Vou ver se
tem alguma bebida na geladeira.
Estranhei a mudez completa da moça. Retornei à sala e ela dormia, deitada
de lado e com as pernas recolhidas no peito. A vulnerabilidade dela não
condizia com a língua afiada.
Cocei a barba com um dedo e cruzei os braços. Avaliei aquelas últimas
horas em que havíamos atravessado um turbilhão de acontecimentos juntos.
Antonella era linda e eu teria de me esforçar muito para me fazer de
desentendido. Mas a única vez que me permiti cair dentro de um
relacionamento, havia sido uma furada. Meu coração não suportaria mais uma
decepção.
Mais uma vez minha cabeça deu um curto. Nada a ver pensar em
Antonella e relacionamento. O que eu tinha que fazer para o meu bem era, a
todo custo, conseguir outro teto para me esconder literalmente da moça de
olhos desafiadores.
Fiquei em dúvida se a pegaria no colo e a levaria para a cama, onde era
mais confortável. Meus olhos pairavam sobre ela, indecisos. Desisti. Melhor
não. Sei lá. Quando acordasse, ela poderia me interpretar mal.
Resolvi ir até o quarto e encontrar um cobertor no armário. Assim o fiz.
Com cuidado, eu a cobri em seguida, ela deu uma mexida e uma resmungada
ininteligível.
— Bom sono, chica.
Assim que falei, circulei o pescoço e pude ouvir estalos que repercutiram
em meus ouvidos. Fui andando e me equilibrando sobre os tênis, pisando de
leve para o assoalho de madeira não chiar. Acordar Antonella não estava em
meus planos. Eu precisava refrescar a cabeça e curtir meu momento comigo
mesmo e, o mais importante, traçar planos de como coabitar com ela pelos
próximos dias.
Enfiei o rosto na geladeira e descobri um sanduíche de atum e água de coco
para acompanhar. Sorte que os funcionários do hotel a haviam abastecido com
uma diversidade de bebidas e frutas. Não era exatamente sorte, eles eram
eficientes. Eu tinha de reconhecer a qualidade de cada um que trabalhava no
Aroma Marinho, a começar por Calebe, meu braço direito para todas as horas.
Com o sanduíche na mão e um copo em outra, fui à varanda, lugar onde
eu mais gostava de passar meu tempo livre, para olhar as ondas do mar se
movendo no infinito além da piscina.
— El mar és vida — falei em um momento de nostalgia. Em Jericoacoara,
eu havia me encontrado.
Fechei com cuidado a porta de vidro para não acordar Antonella. Eu
precisava ligar para a abuela e dizer que tinha chegado são e salvo em casa.
Mas meu estômago roncava e era necessário calá-lo com o sanduíche.
Ao morder o primeiro pedaço, o toque da mensagem do celular soou na
varanda e o som se perdeu com o vento que zunia constante. Um dos motivos
de eu ter construído o hotel à beira mar foi justamente a junção das várias
manifestações da natureza em um único lugar.
Cruzei as pernas sobre a mesa baixa diante do sofá, agradecendo o
relaxamento.
Calebe: Como estão as coisas aí? Precisa de alguma coisa? Ainda estou no hotel.

Era como se eu o visse na minha frente com um sorriso prestativo no meio


daquele monte de fios de barba cobre. Equilibrei o sanduíche na mão enquanto
digitava a resposta.
Eu: Está tudo sob controle. Daqui a pouco, vou pedir algo para comer.

Calebe: 👍 Então vou pra casa. Amanhã precisamos nos reunir para repassar o que aconteceu por
aqui durante sua ausência.

Eu: Na parte da tarde, de preferência.

Calebe: Perfeito. Até.


Eu: Até.

Antes de desligar o Wi-Fi enviei mensagem para a minha avó. Ela não
respondeu de imediato. Era provável que estivesse dormindo. Tudo o que eu
mais queria naquele instante era um banho de piscina e depois dormir.

Horas após, já em sono profundo, ouvi um grito e me sentei de súbito na


cama. Dessa vez, o som não era abafado, nem mesmo se perdia no ar, o grito
de “Nãão” se acumulou em meus ouvidos.
Demorei uns bons segundos para capturar a vida ao meu redor. Tateei a
cama. Tudo bem, eu estava em casa.
Esfreguei o rosto com as palmas das mãos e me levantei em busca do que
acontecia na sala. Presumi que Antonella havia tido um pesadelo. Seria o mais
provável. Era possível que a cena do não casamento fosse o estopim para o
grito. Nosso subconsciente trabalha muitas vezes sem o nosso comando.
Então fui ao encontro da moça e… Mierda! Simplesmente perdi a ação. A
imagem dela sobre a mala veio forte em minha lembrança, como um flash
recente, ao avistá-la com o rosto marcado pelas lágrimas.
Pobrecita.
Sentei-me bem próximo a ela. Suas mãos tremiam. A respiração
entrecortada pelo choro partiu meu coração. Os olhos âmbar eram tão lindos
para se manterem tristes por tantas horas. Tomado por uma onda de
compaixão, fui impedido de falar de imediato. Dei espaço para que ela
assimilasse o sonho, a realidade, ou seja lá o que estivesse sentindo.
Vencido o silêncio inicial, perguntei:
— O que posso fazer para te ajudar? Imagino que deve estar sendo difícil
para você.
As mãos, com dedos finos, faziam um movimento de atrito e arrastavam
uma na outra. Como o cabelo, que ela enrolava três vezes consecutivas, suas
mãos desempenhavam mais um movimento repetitivo. Eu não era muito
competente para interpretar gestos, mas estudar os dela não era mistério algum.
— Mais? Você está sendo um grande amigo me acolhendo em sua casa.
Amigo? É, talvez fosse melhor me considerar um amigo para ela. Facilitaria
meu lado.
Ela fungou.
Empurrei o braço dela com o meu. E a repetição da cena da calçada me
arrancou uma risada.
— O que foi? — ela quis saber.
— Nós nos conhecemos há menos de doze horas, mas os flashbacks de
cenas acontecem a todo instante.
Nos seus olhos, avistei a mensagem clara de que a culpa a incomodava.
— Desculpe. Eu quis dizer que parece que nos conhecemos há mais tempo.
Eu não quis dizer…
— Não, tudo bem. Eu sei que estou sendo um peso para você e repetitiva
mesmo. Olha eu chorando outra vez.
Cocei a pele ao lado da costeleta, me punindo.
— Você não é peso algum. Não pense assim. Se quiser falar o que de fato
aconteceu para fugir do casamento, estou aqui. Às vezes, faz bem pôr para fora
o que sentimos.
Antonella silenciou.
Como não sabia ao certo se estava ajudando ou não, eu me preparei para
me levantar, firmando as mãos espalmadas no sofá.
— Você não comeu nada desde que chegamos. Eu pedi um caldo de frutos
do mar para você tomar quando acordasse. Quer que eu esquente?
Então me ocorreu que…
— Você gosta de frutos do mar?
Uma mão sobre a minha me impediu de levantar.
— Sebastián, você fez isso por mim?
Olhei outra vez para o rosto sofrido.
— Isso o quê?
— A comida… E você esquentaria um caldo para mim agora, de
madrugada?
— Siii. Por que não?
— Você se preocupa tanto comigo — a voz dela falhou.
Eu não fazia ideia de que a moça petulante fosse frágil. Ou apenas não
tivera tempo para especular sobre como ela era de fato, além dos seus gestos.
Na minha cabeça, Antonella era mais forte do que acabara de demonstrar. Não.
Eu estava sendo injusto. Decidir largar o noivo no altar não era para os fracos.
Antonella limpou a umidade do rosto e tomou fôlego para falar.
— No momento em que eu ia pisar no tapete vermelho da igreja, eu estava
me sentindo uma fraude.
— Fraude? Explique melhor.
— Eu gosto de dinheiro, de conforto. Seria hipócrita se dissesse que não.
— Quem não gosta?
— Só que para eu me manter no padrão abastado da minha família, eu
tinha de me calar e compactuar com o jeito vazio do meu pai. Eu era pipa
voada. Passei a adolescência achando o máximo ser chamada pelos jornais
como “A Princesa da Celulose”. Eu fazia besteira atrás de besteira para chamar
a atenção deles.
— De quem?
— Dos meus pais, ora — ela se empertigou. — Eles viviam o mundo deles,
o amor deles. Eu — ela declinou o olhar para as mãos — teoricamente tinha
muitos empregados para me fazerem companhia.
— Eu sei como é isso.
— Demorei anos para entender quem eu era. Que eu era mais do que uma
garota mimada… Que eu sonhava em ser amada. Eu era o centro das atenções
do mundo, menos deles.
— Continue.
— Então perguntei ao meu pai se ele iria me ajudar a ampliar a escola da
minha avó, como ele havia prometido. Sabe, eu tenho o sonho de criar um
ensino real. Eu queria investir na educação.
— Como assim? Ensino real? — fui sincero ao me interessar pelo que
Antonella tinha em mente.
— Acho a educação escolar um saco. O método é chato. Eu ia para a escola
e achava tudo um tédio.
— Eu não sei como é aqui no Brasil, mas estudei em internato e era muito
formal. Também achava chato estudar. E olha que era uma das melhores
instituições da Espanha.
— Você estudou em internato? Jura? — ela inquiriu em um certo tom de
incredulidade.
— Juro. Os dias pareciam não se desenvolver. Era entediante. Pensei várias
vezes em pular o muro que rodeava o prédio e pedir asilo à minha avó, mas ele
era muito alto. Então não cometi a burrice de quebrar uma perna ou braço se o
pulasse.
Ri de mim mesmo. Antonella fez o mesmo, mas sem separar os lábios,
creio que mais por educação do que por achar graça do que havia acabado de
ouvir.
A reação seguinte dela foi encostar o corpo no encosto do sofá com o olhar
fixo na televisão sobre a parede de tijolos, depois levou todo o cabelo para um
ombro enquanto sua mente parecia fervilhar pensamentos.
— Então você estava dizendo que perguntou ao seu pai sobre o seu projeto
de uma educação escolar mais real. E…?
Uma lágrima displicente escorreu pelo canto de um olho dela.
Antonella abraçou uma almofada.
— Meu pai é rico, mas é intransigente. Ele só investe em negócios
vantajosos. Investir na escola da minha avó, para ele, era perder dinheiro.
Como pode educação ser perda de tempo? E a escola dá lucros!
— Concordo. Os países mais desenvolvidos investem maciçamente na
instrução do povo.
As sobrancelhas arquearam concordando comigo.
— Ele herdou as fazendas de eucalipto da família e a fábrica de papel, mas
não vejo preocupação nele em gerenciar a empresa com foco em desenvolver os
funcionários, no sentido de dar a eles oportunidade de conhecimento,
capacitação…
— Não é inteligente da parte dele pensar assim. Desculpe. Não deveria ter
falado mal do seu pai. Mas acredito que um empresário precisa capacitar os
colaboradores para que seu negócio prospere. Aqui, no hotel, aplicamos
treinamento de tempos em tempos e oferecemos benefícios atrativos. Trazemos
especialistas e oferecemos palestras. Até mesmo o Calebe aplica cursos.
— O Calebe?
— Siii. Calebe é formado em marketing. Ele trabalhou em uma empresa
de grande porte em São Paulo. Quando veio passar umas férias aqui, eu estava
terminando a construção do hotel e na fase da seleção do pessoal. Ele se
ofereceu à vaga de gerente geral.
— Ah!
— Bom, aqui nós investimos mesmo em treinamento para mantermos o
nome do hotel no ranking de melhores do Brasil.
Ela sorriu.
— Desculpe se soei presunçoso.
— Não é mentira alguma. Seu hotel é muito bem-conceituado nos sites e
aplicativos de avaliação de hotéis.
— Fazemos o possível para mantermos a qualidade.
— Eu trabalho na escola da minha avó. Sou professora, então acredito que
instrução nunca é demais. E precisa começar na base, sabe? Com as crianças.
Até pensei em estudar administração de empresas e tentar mexer na área de
recursos humanos do grupo empresarial, mas desisti de trabalhar com meu pai.
Não daria certo. Então, para irritar o velho, cursei Pedagogia. Sebastián, eu me
encontrei.
Caramba! A voz, a feição, os olhos, tudo em Antonella ganhou vida ao
dizer isso.
— Hum, entendi. E sua avó aceita suas ideias de uma educação mais
realista?
— Total. Só que eu fiz um trato com o meu pai, que o meu presente de
casamento seria uma grana para eu ampliar a escola da vó Vitória e desenvolver
minhas ideias. Na porta da igreja, cobrei o velho e ele respondeu “Depois a
gente conversa sobre isso, Antonella. Agora não é hora”.
— Na porta da igreja? Realmente foi um ato ousado — expressei minha
opinião, também esticando a boca em um sorriso surpreso.
— Com as palavras de sempre dele, eu me toquei que essa hora jamais
chegaria. Estava prestes a me casar com Horácio, mas com a ideia fixa de
barganhar o dinheiro para realizar meus projetos. Isso não estava certo.
Naquele instante, não me preocupei com o sentimento do meu noivo. Eu não
estava sendo justa com ele. Eu o amava ou estava simplesmente negociando
minha vida para conseguir o que queria?
Algo parecido com um suspiro escapuliu da boca meio trêmula de emoção.
— Eu estava agindo com interesse.
— Que isso? Você pode amar seu noivo ainda. Pode ter se sentido somente,
digamos, perdida.
Antonella meneou a cabeça.
— Eu não amo o Horácio. Eu amadureci. Acho que iniciei meu processo
de mudança interior durante a pandemia. Tanta gente sofreu, passou
necessidade, e eu entocada no “castelo”.
A cada fala ela me surpreendia com a sua maturidade.
— Fazendo estágio na escola da minha avó, eu a vi ajudando pessoas,
mesmo no tumulto de ajustar o funcionamento de aula presencial para on-line.
Foi uma loucura.
— Foi difícil pra todo mundo. Aqui, tivemos que fechar. Complicado.
— No meio desse tormento, minha avó promoveu campanha de alimentos
para entregar nas comunidades.
— Bonita a atitude dela.
— Sim. Você precisava ver a quantidade de doações que ela conseguiu.
Minha avó é muito querida. E seus exemplos me fizeram enxergar como eu era
um nojo.
Gargalhei.
— Desculpe. É que seu jeito de falar é engraçado.
— Não. Tudo bem. Eu era mesmo.
Ela se remexeu.
— Passei a enxergar meu relacionamento com outros olhos. Eu estava
mudando e nada ao meu redor acompanhava meu ritmo.
— Entendi. Inclusive seu namorado.
Ela balançou a cabeça, confirmando.
— Em especial, o meu namorado. Nossas famílias respiram poder, o pai
dele também é empresário e tem muitos negócios com o meu pai. Nosso
casamento seria vantajoso para ambas as famílias. Parecia que eu estava inserida
em séculos passados onde o pai se beneficiava às custas de uma união arranjada.
Ergui as duas sobrancelhas, concordando com ela.
— Lamentável.
— Ainda assim, ele é meu pai, né? Tem o jeito próprio de viver a vida. Sei
que tenho que respeitá-lo.
Antonella soltou um suspiro sentido.
— Não costumo falar sobre o que penso dele ou da minha mãe para
ninguém, com exceção da minha avó e uma amiga. Mas não sei se você vai
entender. Não estou encontrando a palavra certa.
Os dedos da Antonella estalaram enquanto ela buscava se expressar.
— Você não o admira?
Ela aquiesceu comigo.
Sei bem o que é isso.
— Ele não se preocupou nem por um segundo com meus sentimentos. Eu
estava agindo da mesma forma com Horácio por interesse. Meu Deus!
Antonella jogou a almofada para o lado e esfregou o rosto. Esticou os
braços e seus ombros se ergueram quando apoiou as mãos no sofá. A cabeça
dela balançava negativamente.
— Eu sou uma pessoa ruim. Eu não podia continuar com aquilo.
As palavras infelizes me tocaram de tal forma, que engoli quadrado. Meus
dedos pararam sobre a mão da Antonella. Não a acariciei. Minha intenção foi
somente repassar a ela solidariedade com um toque simples.
No instante seguinte, ela respirou fundo. Virou o rosto para mim.
— Não sei como agradecer a sua atenção comigo. Sua amizade, sério, vou
querer guardar num potinho. Isso se você quiser ser meu amigo, claro.
Amigo. Outra vez aquela palavra me causava desagrado. Não deveria. Por
que eu não seria amigo dela?
— Ser seu amigo é viver em suspenso. Posso te pedir um tempo para
pensar?
— O quê? Então tá certo. Eu não queria ser sua amiga mesmo.
O nariz se torcendo declarava um desdém fajuto, já que os lábios se
mexiam em um pretenso sorriso. Sua reação foi uma mentira flagrante.
Desviei os olhos dela, embora estivesse me divertindo em ver como ela se
estressava com facilidade. A perspectiva de invariavelmente provocá-la foi se
tornando um hábito, porque lidar com Antonella era hilário, mas um caminho
perigoso.
— Claro que vou querer ser seu amigo — falei encarando a parede.
— Há. Há Há. Pode ter certeza de uma coisa...
— Hum. Será que eu quero mesmo saber?
— Sua vida terá um divisor de águas: antes e depois da Antonella.
Foi inevitável voltar a olhá-la.
— Não tenho dúvida quanto a isso, chica.
Eu realmente disse a verdade.
Era muito claro que, no mínimo, nós passaríamos dias descontraídos, caso
ela ficasse na cidade.
Nossas bocas emudeceram, mas algo prendia nossos olhos. Em alguns
momentos, eu sentia que hesitávamos em permitir nessa ligação, com olhares
sendo desviados. Pelo menos, eu evitava ao máximo, porque quando acontecia
era difícil desfazer o encanto.
— Mas agora é hora de pensar nesse seu estômago roncando.
As duas mãos dela foram ao abdômen.
— Você ouviu? Ai, que vergonha.
— Total.
— Você está zombando de mim, Sebastián?
— Hum. Total — repeti.
Então ela me pegou desprevenido.
— Ai, você fez isso mesmo? Deu um chasquearle em minha orelha?
— Quê? Um peteleco? Total.
Eu me joguei para trás e minha barriga doeu de tanto rir. Ela rompeu em
gargalhada e nossos sons alegres preencheram meu chalé, dando um olé na
tristeza.

Antonella

Formidável, essa era a palavra que melhor exprimia o que meus olhos viam.
Da varanda do chalé do Sebastián eu admirava a paisagem, tomando água de
coco.
Voltei os olhos novamente para aquela visão incrível, que era tudo e muito
mais do que eu imaginara presenciar ao vivo e com muitas cores. Eu já havia
viajado para inúmeros lugares mundo afora, ainda assim, aquele litoral não
deixava nada a desejar.
Meu coração dava saltos a cada onda que se quebrava na praia e espalhava a
espuma esbranquiçada pela areia, a cada kitesurfista que desempenhava as
manobras sobre as pranchas na água salina, conduzidos pelas pipas, que
coloriam o céu azulzinho.
Lindo demais!
Então lembrei-me do quanto vivia iludida no meu relacionamento,
tentando me convencer de que estava feliz com o Horácio e que a nossa lua de
mel seria construída por cenas românticas. Que ficaríamos deitados na rede e
faríamos um sexo gostoso na piscina particular de um dos quartos do hotel. Ou
que usufruiríamos do bangalô chiquérrimo da praia, com garçons nos servindo
bebidas e petiscos. Mas essa orgia gastronômica e sexual foi se revertendo em
agonia à medida que o dia do casamento se aproximava.
Por que, meu Senhor? Por que eu não podia simplesmente amar Horácio e
me fartar com seu carinho por mim?
Meu ex-noivo era um gato, não havia lugar onde olhos maliciosos não
estivessem a postos para percorrerem avidamente seu tônus muscular, sua
estatura de um metro e oitenta e sete, para ser mais específica. Seus olhos
amorosos que me veneravam dia após dia, desde os meus quinze anos.
Ô Vida!
Ainda assim, foi melhor assumir que não o amava o suficiente para
constituir uma família de três filhos — que estavam nos planos dele, alinhados
com nossas famílias. Nenhum deles me perguntava sobre minhas vontades;
simplesmente decidiam por mim. E minha mãe era omissa. Para viver com
meu pai, ela perdera a sua própria voz.
Beberiquei a água, sorvendo o máximo que pude do canudo até engasgar.
Tossi e tossi. Eu merecia.
Como doía saber que Horácio sofria. Estar com ele no aeroporto e ver de
perto o efeito apocalíptico causado por mim em suas emoções foi a gota d’água
para me culpar pelo resto da minha vida.
Gesticulei a cabeça positivamente. Ser piegas não fazia meu estilo. Eu tinha
de seguir adiante. “Foi melhor assim”, eu dissera a ele. Essas palavras comuns
me convenceriam a lutar pela minha liberdade e ideais, além de orgulhar
minha avó, mulher de fibra que não se deixava abater pelos reveses da vida.
Cerrei os olhos e permiti que o vento alisasse meu rosto na varanda dos
sonhos. Bateu uma saudade indescritível dela.
Vovó era meu porto seguro emocional. Quando retornasse ao Rio, morar
com ela seria uma possibilidade.
Mais otimista depois do apoio incondicional que Sebastián me dera
naquela madrugada, decidi ficar em Jeri.
Sebastián, incansável, permanecera ao meu lado ouvindo minhas
lamentações, porque eu não conseguia falar em outra coisa a não ser sobre a
culpa que eu sentia. Ele me acalmou e me convenceu a ficar um pouco mais até
esfriar a cabeça.
E… tudo bem. Por que não me dar esse benefício?
Que seja!
CAPÍTULO 10
Heloísa: Como você está, amiga? Manda um “oi” para eu saber se está viva. Tentei alertar sobre a ida
do Horácio, mas…

Eu: Eu sei. Quando li sua mensagem, já era tarde. Não consegui me preparar para o encontro. Ai,
amiga, essa foi a pior conversa de toda a minha vida. Mas sobrevivi. Vamos todos sobreviver. Helô, nem
te conto onde estou. Lembra daquele “tudo de bom”, o homão que você sugeriu que eu desse uma
paquerada no aeroporto? Pois é, estou na casa dele. Acredita? Depois falo como vim parar aqui.
Adianto que ele é dono do hotel e está me tratando como uma princesa até agora. Bom, fique
tranquila. Estou bem.

Mãe: ANTONELLA… Eu ainda não consigo ACREDITAR na vergonha que você nos fez passar. Garota,
você ultrapassou todos os limites. Entre em contato. Seu pai está muito mais que furioso.

Óbvio que ele estaria. Isso não era nenhuma surpresa. Meu pai havia
bloqueado todas as minhas contas, sorte que eu tinha aberto uma, onde recebia
meu salário de professora.
Zapeei o celular para conferir. Ótimo, nenhuma mensagem do senhor-
todo-poderoso-meu-pai. Ufa! Isso não era um sinal maravilhoso, mas eu estaria
a salvo de suas palavras duras.
Um dia ele entenderia que eu não desejava passar a vida sendo rotulada
como filha do fulano, ou nora do ciclano... Não cabia em meus planos ser uma
pessoa sem personalidade própria. Ganhar meu espaço através das minhas
qualidades e esforço não era pecado algum. Como não era errado ter dinheiro,
só que não às custas de vender a minha alma.
Mais trocentas mensagens de “amigas” e alguns repórteres, que eu não sabia
como haviam conseguido o número do meu celular, querendo agendar
entrevista.
Vó: Minha neta, conte comigo para o que precisar. Você chegou bem no Nordeste? Não se esqueça de
que a porta da minha casa estará ESCANCARADA para recebê-la no seu retorno. Beijos de quem te
ama, vovó. Se precisar de um dinheiro para as despesas, conte comigo.

Ah, como não se emocionar por ser amada e entendida por alguém que
tinha o meu sangue?
Eu: Vó, vou precisar da passagem de volta. O Horácio que tinha comprado. Bom, quando puder, me
chama.

O ar marinho se infiltrou pela boca até meus pulmões e saiu de uma vez
com um suspiro de desabafo e alívio. A imagem do rosto transtornado do
Horácio, em uma súplica silenciosa para eu não sair daquela igreja sem ele,
ainda rondava minhas lembranças. Havia sido muito duro. Mas, como disse a
ele e à Heloísa, nós sobreviveríamos a esse episódio. O tempo cura as feridas.

Ao acordar, pude reparar melhor na casa onde estava instalada. Gostei da


decoração do ambiente masculino, a parede de tijolinhos, o couro do sofá, as
banquetas prateadas contrastando com o balcão de pedra preta. E o verde das
plantas? Trazia paz e harmonia com os elementos naturais, como a madeira e a
palha.
Quanto ao quarto do Sebastián, bom, eu não sabia, já que eu havia me
recusado a dormir na cama dele. Já era um absurdo e estranho nós estarmos
sob um mesmo teto, não fazia sentido tirá-lo do seu conforto habitual. Pelo
menos a cama seria dele enquanto eu não encontrasse vaga em alguma
pousada.
Foi uma verdadeira queda de braço, cada um defendendo seu argumento
até a morte, culminando com a minha vitória no embate. Passei a ter três
adjetivos a partir de então: teimosa, cabeça dura e inflexível.
Não que ele tenha sido mal-educado, ogro, ou algo do tipo. Bom, eu
precisava me condenar, já que a maioria das provocações partiam de mim.
Diante de tudo o que acontecera, Sebastián fora um achado, embora eu
estivesse bastante sem jeito por estar no chalé dele de favor.
Andei calmamente até o balcão que dividia a sala e a cozinha no estilo
americano e deixei o coco bem ali, ao lado do cooktop, e do prato dos pães. Eu
estava tão distraída, me recordando dele e da nossa conversa, que… perdi não
somente a fala, como meu queixo caiu ao me deparar com ele sob o alizar da
porta.
Por mais que meus olhos tenham arrumado uma tremedeira e eu fizesse
força para não avaliar o bonitão, foi impossível segurar a vontade incontrolável
de checar quantas ondulações possuíam o abdômen sarado do Sebastián; elas
iniciavam após a curva do peito e se perdiam no cós da bermuda.
Surgir assim, sem aviso prévio e sem camisa foi covardia!
Meu cérebro perdeu o raciocínio e, naquele momento, eu não conseguia
somar se dois mais dois eram quatro, quanto mais processar o que meus olhos
viam. Eu podia acrescentar mais um adjetivo aos três já determinados por ele
sobre a minha pessoa: idiota. Embora eu duvidasse que, com sua educação, ele
me intitulasse dessa forma.
Eu estava literalmente surtando. Não em gestos, mas em pensamentos.
Era assim que eu me sentia, uma moça sem raciocínio diante de um
homem mais velho. Sebastián era a única pessoa que me fazia perder a fala e
que fazia com que a minha bochecha tomasse um tom escarlate, me
condenando a entrar no rol da lista dos admiradores daquele corpo que dava
vontade de morder todinho.
O que eu estava pensando?
— Ah, você ainda está aqui. Pensei que estivesse na praia — eu o ouvi
dizer.
Bem, para ser sincera, apenas captei bem longe a voz com um tom meio
rouco.
Com a cabeça, confirmei, ainda que permanecesse zonza, perplexa e…
claro, idiota.
— Hum, hum — então respondi enquanto o via vestir uma camiseta.
— Você está bem? Está sentindo alguma coisa?
Estou sentindo sim. Um calor.
Quase, mas foi por pouco que não me abanei.
Eu não sabia qual havia sido a última vez que um calor me atacava dos pés
à cabeça por Horácio.
Pisquei mais uma vez, despertando da apatia e soltando o ar preso em meus
pulmões. Ele passou por mim e circulou o balcão; livrou-se dos chinelos na
mão, colocando-os nas treliças de um banco. O cabelo molhado, meio
bagunçado, caía em sua testa. O rosto apimentado pelo efeito do sol deixava o
espanhol mais charmoso que nunca.
Perdi o ar.
Então me virei para ele e me sentei na banqueta do balcão. Cruzei as
pernas, apoiei o cotovelo na pedra geladinha e enrolei uma mecha do cabelo no
dedo, dissimulando estar tranquila.
Encontrei as mãos dele apoiadas na bancada; elas erguiam de leve os
ombros. Os olhos mais claros que o de costume me censuraram a uma
distância curta.
— Não. Claro que não estou sentindo nada. Eu, hum, estava me
preparando para andar pela cidade e procurar um lugar para me hospedar.
Uma noite inteira já foi suficiente para te incomodar.
— Você não comeu nada? — eu o ouvi resmungar. — Não pode ficar sem
se alimentar, Antonella — ele falou meu nome e somente então percebi como
soava diferente vindo dele. Bonito. Com o sotaque espanhol, o “e” era falado
mais aberto.
Claramente, gostei de assimilar o meu nome sendo pronunciado pelo
sotaque do Sebastián.
O que não significava nada, não é?
— Não estou com fome.
Ele foi até a geladeira e retirou um suco amarelado de lá. Retornou à
bancada e pegou um copo de uma bandeja, despejando a bebida até a metade,
mais ou menos.
— Greve de fome não vai ajudar a recuperar sua motivação. Pelo contrário,
comer é vida.
Distraída, ouvi o conselho dele ao passo que mordiscava o canto do meu
dedinho, encarando o azul-marinho e branco da canga que cobria meu corpo,
as pontas cruzadas sobre os seios. Evitar olhar nos olhos cristalinos era questão
de sobrevivência mesmo.
— Vida é morar num lugar como esse, acordar todos os dias e se sentar na
espreguiçadeira, vendo o balanço do mar — expressei o que sentia e soprei uma
pelinha que havia se assentado na unha.
Foi surpresa para mim quando senti o toque do dedo dele em meu queixo,
clamando para que eu o olhasse de uma vez por todas enquanto
conversávamos.
— Ei! Deixa de ser dramática.
— Eu? Dramática?
Ele uniu as mãos em prece e fechou os olhos. Eu me esforcei para não rir.
Não. Não iríamos dar início a outro embate. Preferia manter o clima ameno do
fim da noite anterior. Vimos o dia quase clarear rindo das histórias das broncas
que ele tinha levado da avó quando criança. Ele não havia sido fácil, viu? E nós
percebemos que tínhamos algo em comum, as avós maternas presentes em
nossas vidas.
— Você não precisa ir ainda. Fique o tempo que quiser em minha casa,
certo?
Abri e fechei a boca para dizer que não era justo. Ele me interrompeu
através do toque do seu dedo nos meus lábios. Senti pele na pele, o calor
reverberando em mim. O estremecimento foi inevitável.
— Shh. Não diga mais nada. Você vai ficar, está decidido.
— Por quem? Não me lembro de mencionar que ficaria.
— Você vai ficar — ele confirmou e piscou, pegando-me de surpresa.
Sebastián era um cara que não precisava de muitos gestos para demonstrar
o quanto era charmoso. Naquele instante, ele conseguiu me calar… Poucas
pessoas conseguem esse feito. Meu ex-noivo era tão complacente com tudo,
aliás, com todos. Bem, não convinha fazer comparações. Mas confesso que
topei de cara com a assertividade do Sebastián. Ele se impôs no momento
certo, embora me tratasse com respeito e educação. Só que era óbvio que eu
daria a última palavra.
— Nós selamos mesmo um pacto de amizade. Vou dar um crédito a você,
meu anfitrião.
As sobrancelhas claras se elevaram. Tudo bem, eu introduzi um “meu” que
não deveria estar ali e que soara íntimo pra caramba. Ô boca grande! Por que
não havia ficado calada pelo menos uma vez?
— Você não é fácil, Antonella.
Sua cabeça meneava, mas seus olhos não debandaram dos meus.
— Agora venha comigo. Você não sabe o que está perdendo.
Pulei da banqueta. Ele veio ao meu encontro.
— Já sei. Vai me ensinar a praticar aquilo ali? — Apontei com o indicador
em direção à varanda. — Sabe que não seria uma má ideia?!
— Kitesurf?
Identifiquei um sorriso enigmático nele.
— Isso fica para outra hora.
— Então você pratica kitesurf…
Mais um sorriso de tirar o fôlego, que respondeu sem precisar dizer nada.
— Ok.


Meia hora depois, eu soltava suspiros seguidos a cada pão, doce e geleia que
comia. A lista era imensa. Ainda existia um cardápio complementar. Então
pedi mais umas coisinhas, como ovo mexido e um sanduíche de queijo brie e
presunto fresco.
— Obrigada, Sebastián.
Ele oscilou os ombros, sem entender meu agradecimento. Mordisquei um
biscoito delicinha com o formato de estrela do mar.
— Não vou mentir. Eu estava morrendo de fome. Antes que você diga
“Não disse?”, eu estou me antecipando e afirmando que você tinha razão. Mas
não se acostume muito a me ouvir dizer isso em voz alta o tempo todo, ok?
Claro que Sebastián não deixaria escapar uma ironia. Então dissimulou
escrever no papel em sua mão.
— Anotado o recado.
Rimos alto, mais descontraídos.
— Só quando comecei a comer percebi o quanto estava esfomeada.
Sob o teto de palha sustentado por toras de madeira, com a brisa marítima
refrescando a pele e o estômago já satisfeito, eu me sentia outra. Com menos
quilos de opressão sobre as costas, idem. Sebastián estava sendo uma
maravilhosa companhia e, com seu jeito prestativo, fazia de tudo para eu não
retomar ao ponto de partida do sentimento de culpa.
Peguei a xícara. Eu tomava achocolatado e a revesti com minhas mãos,
sentindo o calor envolver minha sensação física, porque a emocional fora
controlada pela atenção que ele despendia a todo instante para mim.
— O hotel fica sempre cheio assim?
— O ano todo — ele respondeu e permaneceu fazendo anotações em um
bloco.
Diante de Sebastián, notei que os olhos astutos percorriam o salão com
mesas e cadeiras de madeira escura e refinada, por onde os garçons
ziguezagueavam prestativos, atendendo os hóspedes. Notei que os funcionários
eram um reflexo dele, de sua educação e alegria. Captei outra coisa
interessante… embora Sebastián demonstrasse uma postura relaxada, ele
cuidava do que era seu, as antenas estavam literalmente ligadas, sem abandonar
o sorriso simpático para quem o cumprimentava.
— Faz sentido e é merecido que o seu empreendimento tenha sucesso. A
qualidade do atendimento e disso tudo – girei as mãos no ar com o propósito
de englobar todo o local. — Isso tudo é massa! Nunca iria imaginar que ouviria
música ao vivo no café da manhã de um hotel.
— Precisamos oferecer um diferencial aos hóspedes, ainda mais sendo no
início da semana, quando as taxas de ocupação normalmente caem. Como não
servimos almoço, estendemos o horário do desjejum por mais uma hora que o
normal das outras hospedagens.
Ele beliscou uma rodela de kiwi.
— E, cá entre nós, com essa vista…
Nem precisei dizer mais nada.
Enquanto nossos ouvidos se saciavam com as notas das músicas de MPB
que escapuliam suaves dos lábios da cantora, as folhas dos coqueiros bailavam
com o sopro constante do vento, na orla da praia. As castanheiras não ficavam
aquém e disputavam com os amigos coqueiros quem sacudia com mais eficácia
suas folhas. Era bonito ver a natureza trabalhando em conjunto. Os
ombrelones brancos na faixa de areia que ladeava o hotel após o calçamento de
madeira ripada, protegiam os hóspedes que se regalavam com bebidas e
petiscos oferecidos no cardápio.
Meus dedos não se seguraram quietos e tamborilaram na maçã do rosto, o
queixo apoiado na palma da mão, com os nervos assentados em uma paz
imprevista. Notei que Sebastián sorriu, satisfeito, embora não abandonasse a
escrita no papel.
Ficar ali contemplando a natureza do lugar bucólico não era opção, era um
alívio para as emoções. Foi o mais próximo de um sentimento de paz que tive
naqueles últimos dois dias.
— Olha quem eu vejo — Sebastián largou a caneta e fechou o bloco sobre
a mesa, o que atraiu minha curiosidade para o que de fato estava escrito, e
bagunçou a cabeça de um menino.
Notei que o garotinho, arrisco dizer que ele tinha uns seis anos, se esquivou
do contato do Sebastián. Como professora, eu observava as atitudes das
crianças.
Calebe chamou minha atenção, ele vinha do corredor de paredes terrosas e
vasos pequenos com inúmeras plantas verdes. Logo captei que a criança deveria
ser o Miguelzinho, o filho do ruivo. Nem se eu não o tivesse ouvido mencionar
que era pai, eu teria certeza de que os dois eram parentes. Cabelos da mesma
tonalidade, semelhantes ao do Ed Sheeran, e o mesmo sorriso estendido no
rosto em ambos.
— Senta aqui, rapaz — Sebastián indicou a cadeira, puxando-a para trás.
O menino piscou algumas vezes e seus olhos, quando se acalmaram,
viajaram para outros lugares, dispersos e livres da atenção do tio postiço. Deu
alguns passinhos sobre as pontas dos pés em direção ao caminho que conduzia
à praia, mas o pai o alcançou, o trazendo de volta para nós.
— Oi, Antonella! E aí? Está gostando do estabelecimento? — Calebe
perguntou, educado.
— Muito. Melhor impossível. Depois estou pensando em descansar na
rede sob aquela castanheira — apontei com o nariz para o lado.
— Jeri é o melhor lugar para recarregar as energias. Mas se quiser
adrenalina, sugiro que tenha aulas de kitesurf com Sebastián. Ele é o melhor da
região.
— Sério? — perguntei ao próprio.
— No. No. No. Eu posso até ensinar, mas a parte que sou o melhor não é
verdade.
— O chefe é modesto — Calebe bateu no ombro do outro.
Sobre as vozes masculinas, ouvi que a moça informava que cantaria mais
duas músicas somente, pois o café se encerraria.
Miguel tampou os ouvidos com as mãos e Calebe endureceu a expressão.
Logo em seguida, pude entender melhor a reação paterna. Ele previa o que
aconteceria na sequência.
— Miguel, não grite, meu filho. Olha, o pai vai te levar à escola depois.
Preciso trabalhar primeiro — Calebe se agachou para que seus olhos se
nivelassem aos do filho; a voz não saiu densa e seu olhar era permeado de
carinho.
No mesmo instante, Sebastián, ao perceber o que acontecia, foi à cantora e
solicitou que ela terminasse a apresentação. Suspeitei que Miguel era um garoto
diagnosticado com TEA, portador de espectro autista.
— Desculpe, Antonella. Meu filho não se sente bem em lugares com som
alto. Eu deveria ter me atentado de que hoje seria dia de música ao vivo. Mas
minha família foi embora e eu não tinha com quem deixá-lo antes de levá-lo à
escola.
Acenei que não se preocupasse, indicando que as desculpas não precisavam
ser ditas. Recebi um sorriso sem abrir os lábios e um suspiro seguiu num ato de
alívio. Parecia que Calebe estava cansado, as olheiras o denunciavam.
— Se eu te disser que também não sou muito fã, você vai acreditar? Então
não esquenta.
Trocamos um sorriso cúmplice
— Obrigado.
Ele dobrou os joelhos e ergueu o menino do chão, abraçando-o.

Sebastián

Como se estivesse jogando bola, chutei a água espumosa que chegou aos
nossos pés. O sol estava ameno, encoberto por nuvens esparsas. Eu e Antonella
caminhávamos na beira do mar, captando a energia da força da natureza.
— Estou me sentindo mais revigorada. Este lugar é mágico. Não sei se
mereço estar aqui.
— Não seja tão dura com você, chica. Você abraçou a verdade. A sua
verdade, não foi? E ela é certa para você.
Ela fez que sim com a cabeça, embora estivesse fitando o chão de areia.
Pude ver que a culpa estava gravada em sua feição. Eu queria muito motivá-la.
Antonella parecia ser uma moça de princípios firmes, de acordo com o que ela
dissera durante seu desabafo.
— Creio que sim. Sim. Ela é.
— Eu a admiro por ter tido coragem para mudar. Sair da zona de conforto,
sabe? Eu só consegui fazer isso quando cheguei ao fundo do poço.
Raspei a garganta. Acabei falando demais. Sorte que seus pensamentos
distantes a distraíram e ela não ouviu o que eu havia dito. Melhor assim. Não
era meu hábito falar sobre a minha vida particular.
— Acho que somente três pessoas me admiram.
Seus lábios de coração se uniram em um bico. Por mais que eu fizesse força
para vê-la como hóspede e uma futura “amiga”, era impossível não notar como
Antonella era gata.
— Você, minha avó e minha amiga, Heloísa, a que estava no aeroporto
comigo quando nossas malas se conheceram — ela me deu um sorriso tímido.
— Você deve ter visto a Helô. Uma loira.
Se eu dissesse a ela que, apesar da situação e da pequena discussão naquele
dia, minha atenção estivera totalmente voltada para a cor dos olhos caramelos
diante de mim, me fuzilando…
— Não me lembro. Eu estava com pressa.
O sorriso irônico com os lábios unidos foi disparado para mim.
— Hum. Hum.
Irrompemos em um riso contínuo.
Gostei de vê-la em nosso momento de descontração.
— Você já parou para pensar que crescer dói? Não é fácil. Tira a gente da
zona de conforto.
Ela me olhou, pensativa.
— É verdade.
— Não deixe morrer sua vontade de fazer o que gosta, principalmente seu
plano de tocar seu projeto educacional. Sua motivação vai estar aí.
— Mas como? — Antonella expirou toda sua ansiedade por realizar aquilo.
— Sem dinheiro, não conseguimos fazer nada. Não gostaria de pedir nada ao
meu pai. Nem convém fazer isso depois de tudo.
— Nem sempre precisamos de dinheiro para realizar um sonho. Você vai
sentir quando a oportunidade chegar. Vai dar certo.
— Mais uma frase motivacional?
— Sempre.
O silêncio se instalou por alguns segundos. Eu podia ouvir as engrenagens
do cérebro da Antonella trabalhando junto aos sons da natureza e o zum-zum-
zum das vozes dos turistas.
Minutos se passaram, até que ela quebrou a nossa mudez de palavras,
porque os pensamentos estavam em polvorosa, pelo menos os meus estavam.
Eu fazia de tudo para não checar o corpo da moça. Ela havia amarrado a canga
na cintura depois de dar várias voltas no tecido que somente cobria a bunda
dela. A cintura delgada, o cabelo tocando os seios, as coxas torneadas à mostra.
— Como você veio parar aqui? Quer dizer. Saiu da Espanha direto para
Jeri?
— Vim com... um amigo passar uns dias aqui e estou há quase oito anos.
Um ano e pouco foi durante a construção do hotel.
— Hum.
Ela ergueu as sobrancelhas, indicando que eu tinha dado uma bandeira
enorme e que não havia conhecido a vila por intermédio de um “amigo”. Ela
prosseguiu com o assunto.
— Quando saí correndo da igreja e peguei carona no primeiro carro que
passou na rua, este seria o último lugar que pensei em vir, mas não está sendo
tão ruim.
— Obrigado pela parte que me toca.
Dei uma olhada ligeira no rosto dela, mas sua expressão se mantinha
impassível. A possibilidade de estar revivendo o momento da escolha de largar
tudo para trás era tão certa quanto sua beleza. Seus pensamentos oscilavam
entre culpa e a tentativa de superar a situação. Normal.
— Mas, me diz, você entrou mesmo num carro de um desconhecido?
Antonella, que imprudência?
— Ou eu entrava no carro ou meu pai comia meu fígado.
Gargalhei, jogando a cabeça para trás.
— Você fala cada pérola.
— Se você conhecesse o velho…
— Você diz isso porque não conhece o meu — confessei e logo me
arrependi.
Falar sobre o meu pai era tocar em uma ferida que não convinha que
voltasse a doer.
Outra vez, fizemos uma pausa na conversa.
— Oi, Ozzy! Também estava com saudade de você, moleque.
— Que beagle lindo! Eu amo a pelagem em três cores dessa raça. Ele é de
quem?
— Do dono da pousada vizinha. Está sempre pela praia. Fujão, não é,
Ozzy?
— Au!
— Ele morde?
— Nada.
Eu me agachei e a convidei com os olhos para fazer o mesmo. Encostei o
meu rosto no focinho dele.
— Mansinho.
Enquanto Antonella acariciava o Ozzy, a vida em torno de nós se
manifestava. Uma menina construía um castelo de areia com o pai. Dois jovens
davam cambalhotas. O sol do meio-dia castigava a pele. O calor se entranhava
no corpo. Meus poros transpiravam com o estímulo dos pensamentos mais
arfantes que estavam se avolumando em minha cabeça e sensações. Fiz força
para me controlar. Ainda mais depois de tudo que ela tinha passado nos
últimos dias. Confiança em alguém sem segundas intenções era o que
Antonella precisava. E eu estava disposto a proporcionar momentos incríveis
para ela, à beira mar.
Na direção dela, foi irresistível não chutar um monte de água que viera
com uma onda.
CAPÍTULO 11
Equilibrando-se entre o movimento marinho, Antonella tentou me seguir de
perto enquanto eu escapava do fluxo de água que ela jogava com as mãos, pés,
do jeito que conseguia dar o troco em mim por tê-la molhado sem um aviso
prévio.
— Volta aqui, Sebastián. Você tirou sarro comigo, agora vai ter que
aguentar.
Desviei o percurso beirando a areia e Antonella agarrou minha camiseta,
mas consegui me esquivar de sua mão e me livrei da peça, arrancando-a do
meu corpo. Parecíamos dois adolescentes curtindo um verão numa praia com
as brincadeiras próprias da idade. Dei um mergulho longo e furei uma onda
baixa. O mar não estava revolto, uma perfeição para tomar um banho
tranquilo, tanto que os pais das crianças maiores as vigiavam de longe.
A água morna, como sempre, levou conforto ao meu corpo, além do
sentimento de gratidão por estar usufruindo daquele instante. O mar de
Jericoacoara não decepcionava. Nunca.
Ainda com os olhos fechados, quando emergi, meio que em comunhão
com a natureza, uma quantidade de água alcançou meu rosto. Engasguei. Era
Antonella.
— Ah, é? Você quer ver quem arranca mais água da superfície? — disse a
ela assim que me recompus.
— Eu sou cria de praia, meu filho. Você veio de onde mesmo?
— Madri.
— Há. Há. Então, no máximo, você tinha um lago no seu quintal e um
castelo ou outro para se divertir. Eu tenho o mar de Ipanema. Quer dizer,
tinha. Meus pais se mudaram para uma mansão na Barra da Tijuca há menos
de um ano, não mais de frente para o mar.
— Você não está muito atualizada com geografia, não é? Na Espanha
temos praias também.
E recebi um pouco água no rosto.
— Ei!
Retribuí sem pestanejar. Fomos nos aproximando em busca de arremessar
mais água um no outro. Eu ria. Ela gargalhava. Eu aumentava o tom do riso.
Ela se divertia. Eu ainda mais.
Sem mais nem menos, uma ondulação nos pegou desprevenidos. Aquela
coisa de desequilíbrio me deixou totalmente consciente de que nossos corpos se
tocaram de uma forma meio desengonçada, minhas mãos tolas foram à cintura
dela para dar sustento às suas pernas. Foi um grave erro. Criticamente eu me
condenei, mas não pude deixar de me afetar por aquele corpo escultural.
Meu olhar ardente se prendeu a um ponto acima do queixo, a boca
carnuda entreaberta, os olhos fixos nos meus me queimavam de modo que
senti um arrepio de súbito.
Segundos se passaram parecendo horas sob o sol não tão escaldante,
embora fosse o suficiente para iluminar as íris que se acenderam em raios
esverdeados misturados ao âmbar, abaixo dos meus.
— Outra onda — eu a ouvi dizer.
Foi a minha salvação.
Soltei minhas mãos da Antonella como se estivesse me queimando em
brasas. Nós nos abaixamos em um mergulho já a uma distância segura.
Quando emergimos, minha consciência me alertou para voltar ao hotel e me
concentrar no trabalho.
— Eu marquei uma reunião com Calebe. Ele vai me colocar a par de tudo
que aconteceu na minha ausência — informei a ela, olhando-a fazer um
movimento circular com os braços, empurrando e depois puxando a água para
si.
— Acho que vou ficar um pouco numa espreguiçadeira e pedir um drink.
Sei lá. Talvez eu vá ao centrinho ver o comércio local. Ou almoçar…
— Fique à vontade para pedir o que quiser. É tudo por conta do Aroma
Marinho. E se você não se importar em almoçar no nosso refeitório com os
funcionários, também será bem-vinda.
Aquele clima descontraído parecia ter sido levado pela onda. Tanto que
Antonella se calou e retraiu seu corpo em um abraço. Era o indício que ela
preferia assegurar distância.
Tentei manter a irritação longe de mim. Não convinha misturar hóspede
com o coração. Cada sentimento em seu devido lugar. Quebrar a amizade que
estava em um crescente seria cometer um erro do passado.
O mar, de alguma forma, começou a se revoltar assim como meus
pensamentos me castigavam e as ondas não dariam o benefício da sensação de
um banho de mar tranquilo.
Era melhor amansar o que eu sentia.
Fiz sinal com a mão para sairmos da água e buscamos nossos pertences na
areia.
Fomos caminhando em direção ao hotel. Antonella optou por se espichar
na espreguiçadeira.
Contudo, antes de subir os três degraus que separavam o deque da área do
café da manhã, meus olhos furtivos buscaram por ela, liberta da canga, o
biquíni de lacinhos amarrados nas laterais, o cabelo longo sendo ajeitado em
um coque molhado, os seios apontados para o céu… Quase desabei no chão.
Eu não contava conhecer Antonella, muito menos dividir o teto com ela.
Respirei fundo e segui para uma ducha de água fria, já decidido a ficar o
mais longe possível dela.
Antonella

Virei o celular para o mar e surfei com ele diante de mim, mostrando a
Heloísa, como era o local onde estava.
— Que inveja! Esse lugar é maravilhoso. Aproveita, Nelinha. Você não vai
postar nada?
Há alguns anos, tudo que eu fazia tinha que mostrar aos meus milhares de
seguidores. Passei a não ter essa necessidade e não sentia falta das festas que
promovia. E as falsas amizades foram se afastando, para a minha sorte. Os que
foram ficando demonstraram mais afeto por mim, embora ainda existissem uns
cinquenta mil me bisbilhotando.
— Prefiro ficar no anonimato. E as minhas crianças, Helô?
— Estão sendo bem tratadas pela professora substituta. Ah, tenho uma
novidade pra te contar.
— Conta logo.
— Sabe a sua ideia de dar aula ao ar livre e ensinar com exemplos reais?
Nossas turmas serão pilotos para execução do projeto. Sua avó nos deu carta
branca.
— Que má-xi-mo! É muito mais fácil para as crianças visualizarem um
retângulo, por exemplo, estando ao vivo numa quadra de vôlei. De entenderem
o que são continentes e como se dividem através do esporte. Podemos usar a
Copa do Mundo ou mesmo perguntar onde os jogadores mais famosos
moram, em qual país determinado time joga. E por aí vai.
— Vai ser mais animado ensinar assim.
— Sim, é melhor para eles aprenderem também. Até que enfim a vovó
aceitou ressignificar o ensino. Quando eu voltar das férias, eu te ajudo a
preparar as aulas. Agora fiquei animada!
— Falando em férias…
— Hã? Já sei o que você quer saber.
— Mente suja — ela riu. — Nelinha, como você foi parar no chalé do
espanhol? Cuidado, amiga. Você nem conhece direito o cara. E se ele for um
psicopata?
Foi a minha vez de rir.
— Olha, ele está longe de ser um assassino em série. Pelo menos é o que
demonstrou. Ele me acolheu com respeito.
— Cuidado, Nelinha. Mas me diga, já que vocês estão bem próximos…
— Epa. Epa. Epa. Não me venha com insinuações erradas. Ele poderia ser
um irmão mais velho.
Heloísa ignorou o que eu disse.
— Mas não é. Como é o corpo dele? Parece com o Chris Hemsworth,
como eu supus?
— Uma versão menos inchada, mas … ele é bonito. Ai! É pecado pensar
nessas coisas. Acabei de deixar um noivo a ver navios.
— Que seja! O que passou, passou. Depois vai me atualizando com as suas
informações sobre o que você está fazendo sozinha e acompanhada.
— Tira essas coisas da sua cabeça. Ainda estou em processo de
autodescoberta e me desculpando pelo que fiz.
— Eu sei, amiga. Eu queria apenas descontrair nossa conversa.
Recomponha-se e volte com todo gás. As crianças amam você e já estão com
saudades.
Senti um quentinho sossegando as fibras do meu coração.
— Mande milhares de beijos para elas.
— Deixa comigo. Agora vou lá. A hora do almoço acabou. Tenho que
voltar para a escola.
— Bom trabalho, Helô. Até.
Preciso admitir que me sentia mais em paz. O poder da energia positiva da
natureza se infiltrou por meus pés, poros e se instalou em meu corpo todinho.
Sebastián tinha razão quando afirmara que Jeri seria como um spa para eu virar
a página.
Encostei a cabeça na espreguiçadeira e cobri meu rosto com a canga. Ir do
emocional abalado ao estado zen seria um caminho a ser percorrido, mas eu
iria me esforçar para ter sucesso. Na verdade, já estava conseguindo.
Somente então me dei conta que o único empecilho para adquirir essa paz
interna tão plena seria a existência de um certo espanhol, portador de um
sorriso amplo e que me abalaria caso eu desse brecha para esses pensamentos
silenciosamente luxuriosos ganharem espaço. O mais certo era fechar a porta
que abria essas ideias infundadas.
E não dar crédito à Heloísa.
Mas o homem era um deus da beleza.
CAPÍTULO 12
A minha pele, curtida do sol, ardia. Eu havia cochilado tempo suficiente sob o
sol para decidir tomar uma ducha e almoçar, ou na ordem inversa. Meu
estômago roncava de fome.
Bati a canga em todas as partes do corpo e retirei a areia. Fui caminhando
pelo salão do café da manhã, olhando de um lado para o outro, admirando a
decoração com cordas contornando as pilastras de madeira enquanto deixava o
mar para trás. Presumi que o recepcionista saberia onde se localizava o
refeitório. Resolvi aderir a sugestão do Sebastián para almoçar. Então passei
pelo corredor que me conduziu ao meu destino, fitando o chão, tão distraída
que somente notei que alguém vinha na direção oposta quando ouvi a voz
falando comigo.
— Antonella, oi! Precisa de ajuda? — Calebe abriu um sorriso em meio à
barba farta.
— Sabe onde fica o refeitório dos funcionários? Sebastián disse que eu
poderia almoçar lá.
Calebe ergueu as sobrancelhas.
— Tem algum problema?
— Não. Nenhum. É que pensei que você preferisse ir a algum restaurante
— ele se interrompeu, tratando-me com melindre. — Sei lá.
— Ah, entendi. Olha, eu estou falida, falida. Não vou mentir. Meu pai
cancelou todas as minhas contas e cartões de crédito. Então, se eu puder…
— Claro que não há problema algum em você almoçar com o pessoal.
Segue o corredor e vai chegar à recepção. Aí vira, como se estivesse indo para o
chalé do Sebastian. O refeitório é a segunda porta à direita.
Jamais me senti tão envergonhada.
— Então vou lá.
Mas antes de nos perdermos um do outro, eu falei, educada, pretendendo
fazer amizade com as pessoas que me recebiam com tanto acolhimento, mesmo
sem me conhecerem de fato.
— Calebe, se precisar de mim para alguma coisa… Ficar com o Miguel, se
for preciso. Eu sou professora. Sei lá. Quero ajudar vocês de alguma forma.
Não posso passar a estadia toda aqui assim, sem ser útil.
— Não vou me esquecer da sua oferta. Obrigado.
— Ah, me chama de Nelinha.
Ele riu e concordou com os dois olhos piscando ao mesmo tempo.
No caminho, passei pela recepção e avistei André atrás do balcão, o rapaz
vestido com blusa de flores tropicais coloridas e pele bronzeada. Quando me
viu, fez um movimento brusco de fechar o jornal que lia e bagunçou o cabelo
com cachos recaindo em sua testa. Logo me atinei sobre o que possivelmente
ele lia naquele impresso. Vi a mesma cena protagonizada por Sebastián, no
aeroporto.
André contraiu os lábios e raspou a garganta, se entregando com os
movimentos expressivos. Coitado! Ele estava nervoso.
Sinceramente, fiquei na dúvida se pedia o jornal e dava uma espiada no que
os jornalistas haviam escrito sobre o casamento-fiasco-do-ano ou se fingia não
notar o embaraço dele. Optei por me dar o direito de preservar meus nervos e
não avolumar a vergonha do rapaz.
Que se dane o que escreveram sobre mim! Somente eu sabia dos meus
sentimentos e a razão que me motivara a tomar a decisão de largar o casamento
considerado por muitos como o perfeito. Não me importar com eles seria o
primeiro passo para eu me libertar da culpa e seguir em frente.
Então abri o meu melhor sorriso e andei adiante em busca do refeitório. Fiz
um pit stop no meio do caminho, quer dizer, em uma porta antes do meu
destino, ao ouvir o sotaque espanhol que passou a ser conhecido dos meus
ouvidos.
Estaquei sob o alizar da porta, mas ele não notou minha presença. De
costas, conversava ao celular. Senti-me um tanto quanto mal-educada, parada
ali, ouvindo o que Sebastián falava, ou nem tanto, perdida na lembrança das
mãos dele fechadas em minha cintura e no arrepio que havia percorrido meu
corpo com o toque protetivo.
Olhando para ele, fiquei me perguntando se era coisa da minha cabeça o
que eu senti na praia quando nossos olhos se encontraram… a tensão… sei lá.
Por outro lado, Sebastián era um homem educado, empático, então eu não
vi nada além de preocupação em seus olhos, já que meus pés se atrapalharam
com a força da maré. Bom, foi isso. Somente isso.
— Tu también me gustas, abuela.
Sorri com o jeito carinhoso com que ele demonstrou tratar a avó. Bateu
uma saudade da minha.
Antes que o espanhol me flagrasse bisbilhotando sua conversa, saí de
fininho e fui almoçar. Chegando lá, foi impossível não respirar fundo para
sentir o aroma delicioso de frutos do mar. Até cerrei os olhos para aguçar o
sentido olfativo. Se o sabor fosse tão bom quanto o aroma… Respirei o que
restava do cheiro maravilhoso da moqueca.
— Olá. Você é a Antonella? — uma senhora dos seus cinquenta e poucos
anos, com pescoço esguio e estatura média para alta, perguntou.
— Sou sim.
Não era meu hábito me sentir envergonhada a cada contato com um
desconhecido, mas era como se eu estivesse invadindo um espaço que não era
meu. E não era mesmo.
— O Sebastián falou que eu poderia almoçar com vocês.
— Ele avisou que a senhorita viria.
Não seria Sebastián se não a informasse previamente quanto à minha
presença. Seu propósito explícito de eu ser bem recebida, mesmo que não
tivesse certeza de que eu aceitaria o convite, me cativou, mais uma vez. Ele
parecia cercar sempre a todos com cuidado.
— Por favor, Antonella. Acomode-se onde quiser. Meu nome é Márcia.
Você gosta de frutos do mar?
— Sim. E mesmo se não gostasse, só pelo cheiro, não haveria como não
comer.
Os lábios rosados sorriram com satisfação.
Vinte minutos depois, eu havia engolido a comida, embora tivesse
apreciado cada garfada.
— Márcia, nem sei o que falar das suas mãos de fadas. Comi tanto que não
consigo nem respirar.
— Ô, querida. Venha todos os dias aqui fazer suas refeições. Diz o que
prefere comer que eu cozinho pra você.
— O que fizer, sei que vai ficar gostoso. Queria muito saber cozinhar.
— Que tal você vir cozinhar comigo? Eu posso te ajudar a preparar o prato
preferido do Sebastián.
Captei um tom malicioso em suas palavras.
— Até que não seria uma má ideia. Ele quebrou meu galho me convidando
para ficar no chalé dele enquanto não surgir vaga no hotel. Hum, gostei.
Parece que a Márcia havia apreciado também, pois o sorriso se expandiu
quase até as orelhas e ela finalizou sua performance feliz com uma piscada de
olho.
Meneei a cabeça, rindo.
Ela me abraçou e me conduziu até a porta. Todos os funcionários me
tratavam com tanto carinho, que eu me emocionei. Eu estava ainda
recuperando o estágio normal das minhas emoções, que até o passarinho
piando no coqueiro no centro do pátio do hotel, qualquer coisa, era motivo
para meus olhos lacrimejarem.
— Obrigada pelo almoço.
— Como disse, volte sempre.
Meu coração recebeu um quentinho parecido com carinho de mãe, no meu
caso de avó, porque era ela que me confortava em todos os momentos.
Mais leve e motivada, fui tomar uma ducha rápida e descansar um bocado
antes de dar um rolê pela vila.
Com passos lentos cheguei ao chalé e me sentei no chão da sala assim que
abri a mala. Revirei tudo em busca de uma roupa soltinha. Um vestido seria a
salvação para a pele que ardia.
O mormaço sempre engana. A gente sempre acha que somente o sol
tilintando no céu é que torra a pele. Besteira pensar assim. Eu sabia que estava
mais vermelha que a moqueca da Márcia e mais quente do que um pimentão
assado.
Pela primeira vez desde que havia chegado em Jeri, tive coragem de pegar
aquele arsenal de lingeries que usaria com Horácio e colocar tudinho em um
saco estiloso para roupas sujas que Heloísa havia enfiado de última hora na
mala, na pressa para eu ir ao aeroporto. A princípio, eu não iria viajar, mas ela
me convenceu que seria melhor me afastar da cidade para esfriar a cabeça. Eu
não queria ficar olhando para todas aquelas peças, mais especificamente dez,
uma para cada dia da lua de mel, e me sentir péssima a cada vez que as via.
Então assim o fiz.
Com posse do vestido azul-celeste e sandálias douradas, além de uma
calcinha normal, fui tomar a ducha tão esperada.
Abri a porta do boxe e me recriminei por não ter pegado o shampoo. Saco.
Sebastián não tinha nenhum à vista para eu usar. E a toalha? Mil vezes droga.
Ela estava sob o sofá. A toalha de rosto não iria cobrir nem um por cento do
meu corpo, próximo de um metro e setenta, se eu quisesse voltar à sala. Mesmo
assim arrisquei.
Pé ante pé, como se estivesse prestes a cometer o erro do século, dei uma
espiada pelo vão da porta do banheiro e não avistei nenhuma alma viva. Dei
mais uns três passos, tão natural como vim ao mundo.
Foi tudo confuso e parecia irreal, com uma probabilidade mínima de
acontecer, mas aconteceu. Sebastián veio do quarto e, misericórdia, foi somente
o tempo de eu gritar e tentar cobrir a parte de baixo, os seios com as mãos,
claro que em vão, gritando:
— Desculpe. Desculpe. Ai meu Deus!
Os pés não se dignaram a voltar ao banheiro. Foram segundos de embaraço
total.
— Cacete, Antonella… — Sebastián reagiu com uma voz de perplexidade
e abaixou a cabeça no reflexo da sua educação ilibada, não sem antes me avaliar
por um segundo ou dois inteiros e virou de costas para mim.
Rubra de vergonha, eu me vi nessa situação delicada.
— Juro por mim vivinha que não esperava que você viesse ao chalé agora.
Por mais que eu não acreditasse no que estava acontecendo por minha
absoluta falta de cuidado, aconteceu, e seria mais um item para acrescentar na
lista de vergonhas cometidas diante do Sebastián.
— Tudo bem. Tente ter mais cuidado daqui pra frente. Entra no banheiro.
Vou deixar a toalha pendurada na maçaneta.
Ele foi andando até o quarto e eu retornei para onde não deveria ter saído,
num misto de atordoamento e autopunição.
— Hum, se não for incômodo, você pode pegar a nécessaire com meus
produtos de higiene na mala?
— Si.
Ouvi passos através da porta.
— Aqui tem somente um saco escrito “roupa suja”.
Fritei meu cérebro todinho para me lembrar onde estava a necessaire que
usaria antes que Sebastián abrisse o fecho e visse o conteúdo carregado de
lingeries, as mesmas que ele vira na esteira do aeroporto.
— Não. Não. Está do outro lado da mala. Uma bolsinha rosa.
— Achei.
Mortificada com o que acabara de acontecer, com o pulso batendo no
coração, abri um tantinho a porta e resgatei da mão dele tudo o que precisava
para permitir que a água lavasse minha vergonha no banho.
Sebastián

Fiz de tudo e mais um pouco para não encontrar Antonella no chalé e ela
não topar com a minha cara fechada. Todo o sentimento de bem-estar
conquistado ao lado dela na praia, tinha voado para os ares. Meu humor foi
detonado logo que eu soube que minha ex-namorada iria se casar e havia
tentado reservar uma vaga para sua lua de mel… No meu hotel? Muito mal
gosto. Calebe foi esperto e negou, alegando que estávamos com reservas
preenchidas até depois do ano novo, o que não era totalmente mentira.
Inspirei minha indignação.
Quanto à Antonella, eu não imaginava que fosse encontrá-la, muito menos
flagrá-la sem… Por Dios! Nua! Na praia, eu tinha temido que ela notasse que
seu corpo parecia um ímã atraindo meus olhos. Fora muito complicado me
manter impassível com todas as curvas dela, o piercing no umbigo aguçando a
vontade de lambê-lo. E sua boca, com o lábio inferior inchado, me implorando
para ser beijada, experimentada….
Ela era luxúria e eu, puro desejo.
Apesar de todo esse chamariz de codinome Antonella, eu estava
conseguindo me manter firme e desejava ficar assim até o fim da sua
hospedagem, torcendo para que houvesse uma desistência de reserva para
transferi-la para um quarto somente para ela. Para a paz da minha sanidade.
Então me deparei com a nudez da moça, uma situação desconcertante e
vertiginosa. Naquele momento, por mais que tivesse me virado de costas, não
consegui segurar o desejo de dar uma espiada em seu corpo.
De uma vez, engoli o resto da cerveja no gargalo e larguei a garrafa no
balcão. Precisei beber para acalmar meus nervos alterados. Só que eles se
sobressaltaram mais um pouco quando ouvi o click da porta do banheiro e o
ranger de leve da dobradiça.
E lá estava ela, a diabinha, linda como sempre, embalada em um vestido
curto e esvoaçante que dava muito espaço para imaginação.
Foi nítido nosso desconforto e os olhos caramelos pareciam suplicar para
que eu não tocasse no assunto da sua nudez. Eu não diria nada. Ainda mais
que meu humor não estava lá essas coisas para entrar em um jogo de disputa de
quem se sairia melhor, no final.
Ela estalou os dedos. Parecia nervosa. Levou um tempo me olhando.
Pressupus que estivesse tentando encontrar algo para falar que não fosse sobre o
que havia acabado de acontecer.
Sorri forçado e ela deu poucos passos até a mala que estava no canto,
encostada na porta da varanda. Fui em direção ao sofá e larguei meu corpo
nele, os tornozelos se acomodaram na mesa de centro.
— Por que você ainda não levou a mala para o quarto? É lá que você vai
dormir. — eu me peguei falando aquilo, com rispidez.
Ela se levantou e balançou nos calcanhares. A resposta, talvez igualmente
seca, estava na ponta da língua, prestes a escapar dos lábios que tinham o poder
de me hipnotizar. Os olhos se estreitaram e permaneceram me fitando, a cabeça
parecia trabalhar freneticamente pensando se entraria em mais um embate
comigo ou não.
Fomos salvos por duas batidas seguidas na porta e conhecidas por mim.
Sem desviar os olhos do rosto da Antonella, eu falei:
— Pode entrar, Calebe.
Os ombros dela se endireitaram e a postura defensiva aliviou ao mesmo
tempo que a expressão contraída; o sorriso se abriu para o meu amigo ao
avistá-lo.
— Oi, Nelinha! Preciso da sua ajuda.
CAPÍTULO 13
No ímpeto, eu me levantei, irritado. Eu estava em um estado chato, que vai
minando as energias e não suportava quando me permitia ser levado por
sentimentos péssimos. Mas é que ouvir falar na Mônica, minha ex-namorada,
me tirava do sério. Eram poucas pessoas no mundo que conseguiam essa
façanha: ela e meu pai.
E quando foi que Calebe e Antonella adquiriram tanta intimidade?
Nelinha?
Respirei fundo, o mais que pude. Não era da minha conta. Além do mais,
os dois não eram sacos de pancada para suportarem meu mau humor.
Contornei o balcão e arremessei a garrafa no lixo. Abri a geladeira e peguei
mais uma cerveja gelada.
— Claro! É pra já.
Com a mão na maçaneta, Calebe sorriu, topando com o jeito solto dela.
— Estou em apuros. A moça que trabalha na recreação com os pequenos
teve um probleminha para retornar de Fortaleza. Vai chegar mais tarde. Como
você se ofereceu para ajudar…
Eu me deixei cair no sofá e dei uma bebericada na cerveja. Mais atento do
que gostaria, ouvi o que os dois diziam. Pela cumplicidade, certamente haviam
conversado bastante durante o dia.
Saltitando de felicidade, Antonella, foi em direção a ele.
— Ainda bem que você me salvou, hum, me chamou.
No mesmo instante, captei a indireta dela para mim. As palavras em
resposta à minha rudeza de minutos antes, enfim, escapuliram da boca
atrevida. De fato eu tinha de dar crédito à provocação dela, já que eu merecia.
Realmente, eu não era a melhor companhia para Antonella naquela tarde.
Antes de a porta fechar, Calebe não evitou me avaliar e balançou a cabeça.
Eu mostrei o dedo do meio para ele. Sua reação foi gargalhar, depois saiu, me
deixando com a raiva que ardia em mim. Ou ciúme? Impossível que eu
estivesse sentindo ciúme da Antonella. Nós mal nos conhecíamos.
Em definitivo, era raiva que havia extirpado minha paz.
Por mais que eu não visse ou soubesse notícias da Mônica há um ano, a
repercussão do nosso término se intensificava quando eu me recordava das
últimas palavras duras que havíamos trocamos. Mas a vida seguiu. Minha ex
estava noiva. Eu me mantive solteiro. E estava tudo bem assim.
Soltei a respiração presa no peito e deitei. O sono ainda me incomodava
em decorrência do jet lag. Por isso tanta irritação. Na noite anterior, eu não
havia dormido bem, preocupado com Antonella.
Era isso.
Duas horas mais tarde, acordei com o humor mil vezes melhor. Andei com
cuidado pela casa, checando onde ela estava. Encontrar Antonella nua outra
vez não seria nada saudável para mim.
Fui ao quarto, à varanda e voltei à sala. Ela não havia chegado.
Eu tinha de pedir desculpas à moça pelo meu nervosismo. Acabei
descontando minha frustração nela. Eu fiquei puto comigo por isso.
Como pensei nela, no instinto, meus olhos pararam na mala fechada no
canto do sofá. Decidi levá-la para o quarto antes que a dona chegasse e sua
teimosia em não querer dormir na cama iniciasse. Um tanto pesada, levantei-a
do chão no impulso e a pus sobre um banco assim que entrei no meu espaço.
Eu não sabia que lingeries pesavam tanto.
Tive um acesso de riso ao me lembrar da cena do aeroporto.
Abri a cortina e o som do mar me convidou para brincar um pouco com a
prancha. Estava fora da vila há um mês e com saudade de praticar kitesurf.
Em seguida, quando tirei a roupa para vestir a de neoprene, um papel caiu
do bolso da bermuda. Sorri. Eu havia dedicado um tempo do meu dia para
fazer uma lista para ela. Então, antes de sair, coloquei o papel sobre a mesa, não
sem antes escrever nele “Para Nelinha”. Tudo bem que eu considerava que o
apelido no diminutivo não estava em conformidade com o jeito espevitado
dela. Muito menos com o corpo…
Trabalhei para retirar o mínimo de lembrança da silhueta… nua.
Cocei a barba.
No caminho em direção à saída do hotel para a praia, passei pela sala de
recreação, onde os pais confiavam seus filhos aos nossos cuidados enquanto
passeavam ou namoravam, ou seja lá o que estivessem fazendo.
Dei uma espiada pelo vidro da porta, curioso. E lá estava minha hóspede,
sentada no chão emborrachado, com uma menina no colo. Miguel andava pela
sala desfrutando do seu mundo particular.
— E aí o lobo mau chegou à casa de um dos porquinhos e encheu o peito
com bastante ar. Soprou e soprou. O que vocês acham que aconteceu?
Ouvi a voz dela um pouco abafada pela porta, mas consegui pescar o que
ela falava.
— A casa não caiu, tia — afirmou um menino, em um tom mais alto.
— Eu também acho que não — a menina confirmou, ainda que tenha
levado os dedos aos lábios, nervosa.
Antonella olhou para um menino sentado diante dela e indicou que ele
agitasse o fantoche que cobria a mão pequena.
— Viu seu lobo, aqui você não entra, disse Torresmo.
Outra menina apontou para Miguel, interrompendo a contadora de
histórias.
— Tia, por que o amiguinho não quer ouvir você?
— Miguelzinho está ouvindo sim, meu amor.
— Ele tem probleminha?
Antonella endireitou os ombros. Foi nítido seu desconforto.
— O coleguinha ainda está aprendendo a falar. Ele brinca de uma forma
diferente, mas logo vai vir para cá ficar conosco. Tá bom?
A garotinha moveu a cabeça, aquiescendo com a “tia”.
— Tive uma ideia. Por que você não o convida para se sentar com a gente?
A resposta plausível da Antonella me surpreendeu.
De pronto, a menina aceitou a sugestão e foi até Miguel. Ela disse algo
baixinho. A reação dele foi virar o rosto para outro lado como se não tivesse
dado importância ao que a loirinha havia dito a ele. Mas, para a minha
surpresa, depois que a menina deu as costas, ele foi se sentar no círculo. Uma
criança chegou para o lado e deu espaço a ele.
Antonella sorriu para Miguel com tanto carinho, que meu peito se encheu
de orgulho.
Ela é sensível.
E havia transparência e sinceridade em suas expressões e palavras.
Inspirei fundo, prendi o ar e me apressei para sair dali antes que a
professora me visse bisbilhotando.
No meio do caminho, encontrei Calebe. Logo que percebeu minha
presença, ele desviou o olhar da prancheta em sua mão e foi direto ao ponto.
— Já notou como Antonella é diferente? Moça bacana, prestativa.
Descartei a fala e assenti com a cabeça.
Pude notar a maneira como ele me olhava, como se quisesse me dizer algo a
mais.
Eu não era do tipo que gostava de arranjos para dar uma escapada. Vivi o
que tinha de viver dos quinze aos trinta e alguns anos, com minhas próprias
escolhas. Antes mesmo de namorar Mônica, havia me decidido que não pularia
de galho em galho.
Em definitivo, eu não precisava da ajuda do Calebe servindo de cupido
para me tirar do status de solteiro. Embora nos déssemos bem, eu falava pouco
da minha vida particular para ele.
— Ela é muito educada. Vi que é carinhosa com as crianças. É provável
que seja uma excelente professora — falei a verdade.
— Miguel aceitou ir com ela para a recreação sem muita resistência. Fiquei
besta de ver.
Calebe ainda mantinha um sorriso sugestivo na boca. Olhei para ele com
uma cara de quem tinha concluído o assunto “Antonella”.
— Bom, vou para o mar. Qualquer problema, sabe onde me achar.
— Ok, chefe.
No caminho, cruzei com alguns hóspedes retornando de algum passeio. Os
olhos vermelhos indicavam cansaço ou umas bebidas a mais que haviam
tomado. Ou as duas coisas, o que era mais provável. Alguns se sentaram no bar
da piscina, outros subiram a rampa de acesso aos quartos superiores.
Algo que me deixava satisfeito era ver as pessoas felizes, usufruindo das
belezas de Jeri. O clima da vila tomava ares de alegria, festa, todos os dias do
amanhecer ao anoitecer. A vida estava sempre em movimento e rostos
diferentes passavam por ali.
Mirei o mar. O sentimento de satisfação das ondas me carregando pela
velocidade ditada pela pipa do kitesurf, era o que eu precisava para esvaziar a
mente.

Retornei ao chalé com o coração mais aliviado e as emoções sob controle.


Da areia, abri o portão e atravessei a entrada reservada somente para mim.
Entrei na área da piscina, lavei o sal do corpo na água farta da ducha da
varanda.
Uma vez dentro do meu território, mudei a roupa de neoprene para uma
bermuda seca, olhei para o alto e agradeci ao vento por ter soprado leste.
Somente assim as nuvens migraram para outras bandas e o céu se abriu para os
turistas celebrarem o pôr do sol mais bonito de todos os lugares que já visitei.
Com a melodia da maré quebrando na areia, entrei na cozinha e logo vi
Antonella. Foi então que ela abriu um sorriso, aquele que travava minha
respiração quando surgia em seus lábios, o que eu não estava acostumado a vê-
lo sendo direcionado para mim com facilidade.
Sem que eu esperasse a reação que ela espontaneamente me ofertou – em
minha mente eu havia arquitetado que Antonella estaria chateada com meu
jeito seco de mais cedo – ela pulou diante de mim e me abraçou. Enrijeci. Os
braços se mantiveram firmes ao lado do corpo.
— Ô! Que coisa boa te ver mais relaxada — frisei em seu ouvido.
Ela me apertou ainda mais forte. Eu fiquei sem saber o que fazer, em uma
atitude robótica. Apesar disso, cedi ao toque e foi irresistível não retribuir o
contato; meus braços se enroscaram na lombar dela.
— Ser útil me deixou feliz.
Antonella se afastou meio passo e meu corpo sentiu a ausência do contato.
— Ah, obrigada pela lista que fez para mim dos lugares que devo visitar.
Puxa! Fiquei, sei lá, emocionada. Então era isso que você tanto escrevia no café
da manhã?
Envolvi o queixo dela com dois dedos e dei um aperto leve, satisfeito em
saber que ela me notava tanto quanto eu a estudava. Mas eu não deixaria
barato. Era assim que nós nos divertíamos juntos.
— Ah, então você confessa que me observou?
Os ombros dela se elevaram.
— Por que não o observaria?
Fingindo choque, pus a mão no coração.
— Pensei que você gostasse apenas de me maltratar.
— Isso está em primeiro lugar na minha lista.
Joguei a cabeça para trás, rindo.
Passei por ela e fui à geladeira pegar água. Não consegui me conter e rocei
meu braço no dela. Inclinei o corpo para frente e arranquei de lá uma garrafa
de água.
— Servida?
— Já bebi litros depois que voltei do encontro com as crianças. Foi tão
bom! Eu me senti útil.
Hum. Não sei bem. Ou quis me iludir. Parecia que seus olhos me
barganhavam, me avaliando. Eles me ofereceram um brilho de deleite. Ou era
coisa da minha cabeça? A mão da Antonella puxou uma grande parte do seu
cabelo para frente do ombro. Gostei do que vi, ainda que não estivesse
preparado para receber as consequências de me deixar levar pelo lado atraente,
antes oculto por ela.
Sem improvisos, seus lábios se uniram em um bico charmoso que fez par
com seu olhar malicioso. Ela era implicante ao extremo e… sensual? Mais uma
faceta que emergiu das suas camadas ainda sendo descobertas por mim.
Antonella reduziu a distância curta que nos separava e foi aproximando seu
rosto do meu, o aroma floral do seu cabelo foi me envolvendo, me deixando
zonzo até extirpar meu raciocínio. Minha pele sentia o calor do hálito da boca
dela. Arrepiei.
— Obrigada por tudo que está fazendo por mim.
Demorou um tempo para meu ouvido captar o que a voz amolecida
expressara.
De caso pensado, reagi. Encostei meu rosto no dela, pele na pele,
invertendo a ordem de quem falava mais próximo de quem. Havia chegado a
minha vez de provocá-la, checar se o que eu tinha avistado nos olhos dela desde
que nos conhecemos era real.
Calcei a cintura fina com as mãos. Pude ouvir um gemido baixo, como
uma gata soltando um ronronar. Embora os braços magros se mantivessem ao
lado da extensão do corpo sensual, notei que Antonella manteve a consciência
corpórea e não arfou. Portanto, senti prazer em instigá-la.
— Sempre estarei por aqui para o que precisar.
— Vou me lembrar disso.
A voz sexy pra caramba me enredou. Minha pele ficou em chamas. As
coisas estavam começando a sair do controle. Não sei para ela, talvez sim. Mas
para mim…
Como consequência dessa aproximação física entre nós dois, meu coração
pulsou com todo seu potencial, me infernizando. O desejo de dar um beijo
naquela boca desceu pela garganta em uma reação de resguardo. Sentir o sabor
da Antonella poderia ser a minha perdição.
Então desfiz o nosso contato. Não convinha que ela notasse como eu estava
excitado por ela. Eu precisava me conter e pensar no próximo passo.
O problema era que o meu coração se mantinha em estado de alerta como
os meteorologistas se conservam ligados na possibilidade de um tornado atingir
o litoral. A razão me escoltava, afirmando que era para eu me afastar o quanto
antes dela, apesar de o meu corpo recriminar essa sugestão.

Antonella

Olhei do abdômen dele para os olhos mais azuis que o de costume devido à
exposição ao sol, o que não foi a melhor ideia. Deus, eu me odiei por não
controlar meus olhos famintos! Eles cobiçaram Sebastián. Pisquei para afastar a
curiosidade flagrante e os pensamentos absurdos. Meu cérebro entrou em
curto. Aquela chama libidinosa tremeluziu meu baixo ventre.
E ele vinha devagar, diminuindo de pouco em pouco o espaço entre nós. O
gingado displicente contribuiu para que a tontura aumentasse e eu prendesse a
respiração.
— Ah, o sol vai descer daqui a pouco. Você não quer cumprir o que me
prometeu na lista?
Dei um giro vertiginoso, contornei o balcão e fui em direção à mesa entre a
televisão e o sofá.
— Olha aqui. Está escrito assim: “Não deixe de ver o sol se pondo no mar
na Duna do Pôr do Sol. Vou com você, se quiser.”
— Sim, senhorita.
Achei graça porque ele levou a mão à testa em sinal de continência.
— Seu desejo é uma ordem.
— Bobo.
— Vou apenas dar um tapa no visual.
— Te espero lá fora. No portão da varanda.
Segundos após, fechei a porta atrás de mim, com a mão no coração. Eu o
massageei e estimulei a respiração a encontrar sua cadência normal. Foi
estranho. Sim. Muito estranho me sentir zonza e compelida a… Ficamos tão
próximos que pensei que fôssemos nos beijar. Sebastián não me deixava pensar.
Eu precisava reorganizar minhas emoções e pensamentos.
Joguei água da torneira no rosto e fitei meu reflexo no espelho. A voz dele
havia sido como uma carícia em meu ouvido. As mãos em minha cintura
causaram uma explosão dentro de mim. Sebastián era um perigo. Ele sabia me
conduzir à vulnerabilidade quando estava em sua presença. Isso era um fato
incontestável.
A pergunta que não queria calar era por que minhas pernas bambearam,
por que meu corpo ficou prestes a virar geleia de mocotó, toda molinha para
ele? Ele me balançou como os coqueiros plantados na fachada do hotel.
Soprei o ar com força, tentando a todo custo controlar a arruaça de
hormônios que faziam uma rave louca em mim.
CAPÍTULO 14
— Uau! Quanta gente! — falei, surpresa e um pouco sem fôlego após subir o
morro de areia.
Equilibrando duas taças de champagne em uma mão e a garrafa em outra,
Sebastián não ocultou o sorriso de satisfação. Ele parecia um nativo orgulhoso
de sua terra.
— Isso porque viemos mais cedo. Daqui a — ele girou o braço e checou o
relógio — menos de quinze minutos, você vai ver como a duna vai ficar lotada.
É a atração mais bonita da vila.
— E de graça.
As palavras saíram antes que eu terminasse a frase em pensamento.
Eu não parava de fazer contas mentais. Minha avó não havia respondido
minha mensagem. A minha sorte foi ter encontrado Sebastián e sua bondade
infinita.
— Não se preocupe com gastos. Você é minha convidada.
— Nem sei mais como te agradecer.
— Nem sei mais como te dizer para parar de agradecer.
Ele apontou com a garrafa para o lugar onde nos sentaríamos. Estendi a
manta e nos acomodamos. Eu me sentia inserida em uma cena das comédias
românticas que Heloísa amava, à espera do ponto alto, quando o casal se beija
no momento em que o sol toca o mar.
Ri sem compromisso de camuflar minha reação.
De esguelha, Sebastián me olhou enquanto nos servia com o champagne.
Vi seus olhos pousando em meus lábios. O sol havia beneficiado as contas
claras a cintilarem mais lindas que nunca.
— Do que você tanto ri?
— Besteira.
Fiquei com vergonha de confessar.
Com a testa enrugada, ele colocou a taça em minha mão e propôs um
brinde.
Tim-tim.
— Não vai me falar mesmo?
— É besteira mesmo. Eu me lembrei da minha amiga, a Helô. Ela é tão
romântica. Este cenário seria o suficiente para ela suspirar.
Óbvio que eu não acrescentei que a companhia e a manta, além da bebida,
eram o conjunto perfeito.
— Você não é romântica?
Beberiquei o champagne e fitei o mar, pensando. Quantas vezes Horácio
reclamou que eu não tinha ciúmes dele, ou que eu não dizia que o amava, ou
que não me afetava por seus presentes caros. Passei anos acreditando que eu era
insensível. Que não havia nascido para essas coisas melosas, me culpando por
não ser a mulher mais romântica do mundo.
— Apenas não encontrei a pessoa certa.
— E como saber quando a pessoa é a certa?
— Boa pergunta — olhei para os olhos cristalinos e divaguei: — Acho que
é quando seu corpo reage de forma diferente quando está ao lado da pessoa.
Quando o coração dispara. Quando mesmo que não conheça o outro há muito
tempo, sente falta da presença quando se afasta.
— Ou quando o ar falta ao lado da pessoa e você nem sabe o motivo. E
você passa a se perguntar por que ainda não tinha conhecido ela antes.
Sebastián manteve seus olhos nos meus por alguns segundos. Depois
desviou o olhar de mim para o chão. Pegou um monte de areia e abriu os
dedos para que os grãos escorressem entre eles. O vento formou uma cortina
baixa e levou embora sua brincadeira.
— Você é um ator, Sebastián. Eu quase acreditei que você era romântico.
Ele olhou de volta para mim, a expressão mais fechada. Suspirou. Será que
Sebastián havia sentido o que senti na casa dele, antes de sair? Será que quando
ele falava sobre o ar faltar e tal, ele se referia a mim? Claro que não. Não era
possível. Nós mal nos conhecíamos.
Só que o espanhol examinou meu rosto e sorriu, por fim.
Do nada, ele adotou uma expressão séria. Passou as mãos nos vincos da
testa. Notei que os olhos dele pareciam um oceano de ressentimentos.
— Eu tenho trinta e cinco anos e já pensei ter encontrado a mulher certa.
Isso foi há uns quatro anos. Mas quando a pandemia se instalou para ficar e os
aeroportos foram fechados para voo, a distância do sul-nordeste nos separou. O
nome dela é Mônica — ele deu uma puxada de ar. — Com ela, eu me sentia
sempre beirando um precipício. Nossa relação era instável. Quando
terminamos, a sensação que tive foi de queda livre. Demorei para restabelecer
meu coração.
Ah, claro. Havia alguém. Quase esmurrei a minha testa por achar que ele
sentira algo por mim… no chalé. Óbvio que nada iria rolar entre nós. O mais
provável era que ele me visse com olhos de irmão mais velho.
— Mas os aeroportos abriram.
Não consegui manter a língua quieta dentro da boca.
— Não era para ser. A pandemia foi o estopim do aumento da cratera que
crescia em nossa relação.
O olhar dele distante para o infinito dizia tudo para mim. Ela havia sido ou
ainda era muito importante na vida dele. Era melhor não fuçar esse vespeiro.
Então me convenci de que deveria lidar com Sebastián como um amigo de
verdade. Um que jamais me esqueceria, mesmo que décadas passassem; o
mesmo aconteceria da minha parte. Estava decidido. Ele seria meu amigo, um
dos poucos da minha lista. Ser rico nos deixa cismados. Isso. Essa é a palavra
certa. Eu não conseguia identificar se alguém se aproximava de mim por
interesse, para bajular, ou por realmente gostar de mim. Em Jeri, eu me sentia
eu mesma.
Paranoias à parte…
— Engraçado. A minha relação com Horácio era o oposto. De tão estável,
melou.
Ele se virou com uma expressão confusa e depois riu e engasgou de tanto
que gargalhou.
— Não sei como ainda me surpreendo com você, Antonella.
E continuou rindo.
— Ah, para. A pandemia foi uma fase de rupturas de relacionamentos, mas
também com velhos estilos de vida. Foi um momento de perdas físicas, mas de
encontros interiores. Ele passou a ser a personificação de um estilo de vida que
eu não valorizava mais. Foi isso.
O rosto de Sebastián modificou para uma feição surpresa, ou abismada.
Não sei ao certo.
— Falou bonito agora.
— Bobo.
Empurrei o braço dele de leve, o suficiente para o champagne borbulhar na
taça.
— É que comecei a me encontrar durante o caos do mundo. Foi quando
fiz análise, pela primeira vez na vida. Enxerguei quem eu era de verdade e o que
desejava alcançar como pessoa.
Sebastián se serviu com mais champanhe e ofereceu-me. Enquanto
abastecia minha taça, ele fez uma gracinha:
— Seu pai deve odiar cada centavo que gastou com o analista.
Sorri.
— Ele não sabia que eu fazia.
A boca dele se arredondou em um “Hããã!”. E depois riu.
— Só sei que precisamos encontrar a pessoa certa, é isso — falei outra vez
sem pensar.
Porcaria! Ele poderia achar que eu estava me oferecendo… Bem, Sebastián
me tirava do juízo normal. Em sua presença, eu ficava tão insegura.
— Desisti de esperar por essa mulher — ele revelou assim que se recuperou
da crise de riso.
— Então um brinde à solteirice.
Ele encostou sua taça na minha.
— Um brinde por você estar aqui. Gostei de te conhecer, Antonella.
Meu coração deu um salto no mesmo instante em que ouvi a confissão do
Sebastián. Eu sabia que ele me via como uma garota a quem havia socorrido.
Que nossa diferença de idade seria uma barreira para algo a mais que amizade.
Eu seria tola de achar que ele cogitaria a hipótese de flertar comigo. Mesmo
assim, não controlei a reação involuntária no meu peito.
— Eu também — consegui responder.
A parte do filme em que a moça deita a cabeça no ombro do cara e ele
passa o braço pelas costas dela enquanto o sol vai desaparecendo no mar e o
céu é tingido pelo tom azul índigo, libertando-se da cor pêssego, eu jamais teria
com Sebastián.
Melhor assim. Sem ilusões.
Dei um sorriso fraco para ele e bebi meu champagne. Voltei a olhar o mar e
o sol deu início ao melhor da festa. As pessoas começaram a bater palmas e
assoviar. Outras pareciam hipnotizadas.
Senti um quentinho no coração. Uma sensação de plenitude e harmonia
bombeou paz em minha corrente sanguínea. A natureza tem esse efeito em
mim. Ela é regida pela sincronia de suas etapas diárias. Nós humanos que a
deterioramos, sem o mínimo respeito por ela, que está sempre disposta a nos
beneficiar com sua benevolência.
— Gente, por que ainda não puseram esse pôr do sol na lista das
Maravilhas do Mundo?
— Concordo plenamente.
E foi nesse momento que o inesperado aconteceu. A mão do Sebastián
encontrou a minha e entrelaçou os dedos nos meus. Suspirei e me mantive
maravilhada com o mergulho do sol no mar. Naquele instante, algo bom foi
acrescentado em minhas emoções: eu não estava sozinha.
— Fui sincero quando disse que estou gostando de você estar aqui —
Sebastián repetiu sua confissão após alguns minutos.
— Eu ainda mais.

No dia seguinte, já que estava hospedada em um hotel chique e na casa do


proprietário, era justo manter tudo em ordem, arrumar minhas bagunças.
Portanto, retornei do banheiro ao quarto e resolvi que cobriria a cama com a
colcha xadrez. Bem masculina, por sinal. A casa dele exalava testosterona, assim
como o dono.
Senti o cheiro do tecido, era Sebastián todinho nele. Mesmo quando o
homão não estava, seu perfume marcava a casa com sua presença. Prova disso
foi o travesseiro, no qual dei uma fungadinha umas três vezes.
Após uns dez ou quinze minutos alisando para um lado e outro a cama,
olhei para ela e suspirei. Perfeição.
Assustei-me ao ouvir a voz do Sebastián. Olhei para trás e ele estava com os
braços cruzados, escorando o corpo no batente da porta. Como sempre, seu
look era despojado: chinelo, bermudão e camiseta. Dei graças por essa última
peça de roupa, porque, céus, estar no mesmo ambiente que ele, encarando os
gomos à mostra, era mais difícil do que pular de paraquedas de um avião.
Perdição das perdições, era ele.
— Você está há quanto tempo aí?
— O suficiente para ver que a Princesa da Celulose resolveu viver como
Gata Borralheira.
— Ei, não me chame com esse apelido. Eu fico tão estressada com isso —
ele concordou com um balanço de cabeça. — Às vezes precisamos partir do
zero para recomeçar a jornada. E criar novas memórias. É isso.
— Linda frase. Você leu em que livro?
Fiz cara de desdém para ele.
— Saiu da minha caixola mesmo — apontei para a cabeça.
— Não é de se admirar.
Sebastián soltou os braços depois de um tempo e firmou seu olhar em meu
rosto.
— Vim te chamar para fazer um passeio pelo lado leste de Jijoca. Topa?
Assenti com firmeza, feliz da vida porque ia conhecer mais um pouco do
paraíso.
— Só se for agora.
As bochechas dele se ergueram com o sorriso.
— Gosto da sua disposição, chica.
Fui em direção a ele e engoli em seco quando os olhos verdes se fixaram
nos meus.
— Me dá só uns minutinhos para eu vestir um biquíni. Espera na sala.
Ele se ajeitou de forma que ficou no meio do vão da porta.
— E se eu não quiser?
Olhei para ele, chocada. Ele não estava falando sério, estava?
— Como assim? É claro que você vai para a sala.
Ele mexeu os lábios daquele modo que um sorriso se apresenta num canto
da boca. Céus dos céus! Engoli em seco, atônita pelo charme natural do
Sebastián.
No segundo seguinte, eu me recuperei e empurrei o tórax duro. Ele
cambaleou e deu um passo para trás. Riu de mim. E riu. E riu…
— Quase acreditei que você estivesse falando sério. Ah, Sebastián…
Fechei a porta. Ainda assim, pude ouvir a gargalhada alta dele abafada pelo
som que ecoava do meu peito.
Sebastián

A caminho da Praia do Preá, uma das mais extensas do litoral cearense e


onde o vento sopra forte favorecendo a prática do kitesurf e windsurfe, fizemos
uma parada no caminho para Antonella clicar fotos na Árvore da Preguiça.
— Senta aqui comigo. Vamos registrar esse momento juntos, bem
preguiçosos — sugeriu ela.
Com o jeitinho casual de sempre, ela tombou um pouco o corpo para o
lado, imitando o jeitão inclinado da árvore.
— Agora entendi o nome dela: Preguiça. Cresceu se arrastando no chão de
areia. Às vezes, dá vontade de ficar assim, como essa árvore, sabia?
— Aproveite seus dias de férias para relaxar bastante.
Ela concordou com uma piscadela.
No instante seguinte, toda esfuziante, bateu com a mão nas raízes da árvore
na clara indicação de onde eu deveria me acomodar, ao lado dela. Entreguei o
celular em sua mão e tive o maior cuidado para não quebrar nenhuma
ramificação da árvore com meus pés.
— Esse vão parece o da Pedra Furada.
— Mais ou menos.
— Mas tem o formado de um arco. Deixa de ser chato. É parecido e
pronto — ela riu de si mesma. — Agora sorri, vai.
Meio tímido, separei os lábios e foquei a câmera do celular. Antonella se
empertigou e deu uma inclinada para trás. No instinto, eu a segurei com um
braço nas costas desnudas.
— Sebastián, esse não é o seu melhor sorriso.
— E você já conhece todos os tipos de sorrisos que dou?
— Não precisa ser um gênio para saber que sua boca nem se mexeu muito,
né?
Gargalhei. Com Antonella, meu riso ficava frouxo. Até demais.
— Eu sou tímido.
— Vou acreditar nisso.
— Mas é verdade. Eu sou tímido mesmo. Quase não tiro fotos.
— Deveria. Você tem um rosto — ela se corrigiu —, hum, você parece ser
fotogênico.
A persistência dela me fez amolecer.
— Tudo bem. Xis.
E clicou a minha melhor careta.
— Seu chato. Ah, vai. Mais uma e agora direito.
O rosto apimentado do sol encostou no meu. Mantive o foco na selfie que
compartilhamos, fazendo o meu melhor para me manter indiferente ao toque
de sua pele na minha e o que esse contato produzia em meu corpo.
Dois buggys chegaram com cinco pessoas em cada, para a minha salvação,
pois desviei a atenção do jeito contagiante da Antonella para eles. Dela, uma
sensualidade natural extravasava sem que ela identificasse seu potencial.
— Vamos? — eu me ergui nos joelhos. — É hora de buscar novas
memórias. Não era isso que você queria?
Estendi minha mão para ela, que se levantou, com pesar.
— Que pena. Queria curtir mais um pouco aqui.
— Há vários lugares especiais para eu te mostrar. Neste aqui há somente a
árvore.
Ela armou um sorriso grandioso. No mesmo instante, senti a vontade
irreversível de alcançar uma de suas mãos. O toque se tornou mais fácil para
mim, já que Antonella me deixava totalmente à vontade ao seu lado. Ela
demonstrou possuir um astral melhor do que eu imaginei que tivesse, quando
nos conhecemos, e por razões óbvias.
Um vento mais forte bateu em nós, carregando o cabelo longo para um
lado e fazendo uma arruaça nas mechas que se desencontraram no rosto rosado
do sol.
— Estou amando todos esses lugares e vou guardá-los aqui.
Com um dedo, ela mirou a têmpora enquanto eu a guiava até meu buggy.
Suas palavras me deixaram com um vazio…
Então eu me virei para ela, minha feição exultante desmoronou. Foi
impossível segurar algo repentino que se entranhou em mim. Inusitado
mesmo. As palavras saudosas amorteceram o ritmo do meu pulso antes com a
empolgação incentivando a batida. Sinceramente, não entendi. O que veio à
cabeça, foi o que eu disse a seguir:
— Espero que você me guarde em suas memórias junto com os momentos
— falei em um tom pesaroso.
As palavras soaram livres. Foi de fato o extravaso que repercutiu em meus
sentimentos. Eu estava sendo verdadeiro, mais do que fui com Mônica. Expor
o que se passava em meu peito era… intimidador.
A energia da Antonella me fazia perceber como a minha vida virara uma
rotina pacata. Administrando o hotel, cuidando de longe do bem-estar da
minha avó e dos negócios na Europa, praticando esportes aquáticos e… nada
mais.
Vi uma ruga pontual surgir entre suas sobrancelhas. Em seguida, a mão
delicada pousou sobre o coração.
— Você faz parte dos momentos e vai ficar num lugar especial.
Ah, com o jeito espontâneo costumeiro, ela me abraçou, me devolvendo o
equilíbrio. A maneira como a linda era grata e igualmente carinhosa, o que não
era incomum, meio que me fez perceber o quanto eu não permitia ser tocado.
Minha ex-namorada vivia reclamando desse meu jeito, intitulado por ela como
frio.
Eu retribuí ao toque tão singelo da Antonella de forma espontânea. E não
havia sido a primeira vez. Somente com ela.
CAPÍTULO 15
A Lagoa Azul seria a nossa próxima parada.
Durante o percurso, me ordenei a parar de me punir por ser mais esquivo
nos relacionamentos; herança de um passado familiar que havia deixado
marcas.
Cresci mendigando o carinho do meu pai. O que recebia em troca era
indiferença quando tentava me aproximar dele. Isso foi desde pequenino.
Algumas vezes, eu o ouvi falar à minha mãe: “Tira esse menino de perto de
mim, Carmem”.
Ela tentava contornar a situação, falando que ele me amava do jeito dele;
um modo materialista de afeto. O que posso dizer com a maior convicção do
mundo é que essa distância imposta pelo senhor Francisco Javier Munõz me
machucava.
Para o meu pai, o dinheiro estava em primeiro lugar. Se eu e a minha mãe
estivéssemos supridos do conforto e das regalias que a situação abastada podia
fornecer, para ele, era o que importava. Por isso, fui parar em um internato
com a desculpa de que eu seria educado na melhor instituição de ensino da
Europa. Mal sabia ele que tudo o que eu mais queria era apenas um afago e
momentos singelos entre pai e filho. Os poucos que me recordo foram regados
a frieza, infelizmente.
Por esse motivo, me comovi por Antonella e suas dores internas. Eu me vi
ainda criança admirando meu pai e, ao amadurecer, perdendo a fantasia
paterna criada quando menino, assim como ela revelara em seu momento de
desabafo.
Abraço gratuito, eu não estava acostumado a ganhar. Nem mesmo uma
bagunça de carinho no cabelo, ele jamais perdeu seu precioso tempo fazendo
carinho em minha cabeça, como os pais dos meus colegas demonstravam afeto
por seus filhos. Isso gerava uma frustração em mim…
Aos dezesseis anos, minha mãe morreu e minha avó assumiu minha
educação. Se não fosse por ela, não sei o que seria de mim. Mesmo que ela me
cobrisse com carinho, minha alma sempre parecia estar estilhaçada. A falta do
afeto anterior carreguei como um peso por toda minha vida até então.
Quando entrei na jornada dos relacionamentos amorosos, o toque para
mim era usado somente para realizar os apelos sexuais da carne.
Dito dessa maneira, eu admirava o jeitinho despretensioso da Antonella-
menina-mulher. Ela merecia que meu humor estivesse no auge da positividade
para proporcionar a ela momentos que ficariam guardados em um potinho,
como ela havia mencionado outro dia, ao se referir a mim.
“Não sei como agradecer a sua atenção comigo. Sua amizade, sério, vou
querer guardar num potinho.”
Então ela teria o meu melhor. Aliás, o melhor do melhor.
— Você tem certeza de que não quer dar uma parada na praia do Preá e
almoçar lá? Há barracas de praia com culinária saborosa.
— Eu estou com muita vontade de conhecer a Lagoa Azul e a Lagoa do
Paraíso, Sebastián. Muita mesmo. Deitar nas redes que ficam imersas na água.
— Seu desejo é uma ordem.
Omiti a palavra “princesa”, apenas a mantive em pensamento.
— Então é para lá que vamos.
Ela deu um passo e apenas a distância de um braço nos separou.
— Antonella, se quiser pode me chamar por apelido. Tenho dois para você
escolher um. Meus amigos brasileiros me chamam de Bastián. Na Espanha, eu
era conhecido como Sebas. O que você preferir.
Ela me olhou acima do ombro, depois virou por completo para mim.
— Prefiro Bastián. Vou compactuar com meus conterrâneos — ela piscou.
— Duas letrinhas a menos faz uma diferença, né? Meu nome também é tão
comprido. Olha, pode me chamar de Nelinha.
— Então eu entrei na lista das pessoas queridas?
— Se eu passei a fazer parte da sua…
Ela sabia jogar com os argumentos.
Acelerei o buggy e Antonella soltou um gritinho ao perceber que seu boné
havia voado com o vento forte.
— Prontinho. Vou ficar mais esperta daqui pra frente.
Evitei respirar profundo, mas acabei caindo nessa armadilha e tossi em
seguida.
— Essa época é a que mais venta na região. Coloca os óculos de sol para
evitar que a areia arranhe seus olhos. Já vi turista tendo que ir embora para se
consultar com médico e retirar os grãos dos olhos.
— Boa dica.
Fiz o mesmo em meu rosto.
— Bom, preparada para passear com emoção?
— Boraaa! — a voz dela escapou em um tom esfuziante.
Incentivado pelo astral positivo da minha parceira de aventura, acelerei e fiz
manobras radicais sobre as dunas de Jeri.

Antonella inclinou o corpo para frente. Suas mãos se moldaram nos


joelhos, assim que pusemos os pés fora do buggy sobre a madeira da balsa.
Pude ouvir um sopro forte.
— Você é doido, Bastián.
— Eu ouvi alguém dizendo que queria manobras radicais.

À
— Da próxima vez, ignore o que eu falar. Às vezes, peço coisas sem pensar,
sabe?
Dobrei os joelhos para checar se ela estava bem. Acabei ficando
preocupado. Inclinei a cabeça mais para o lado e alcancei os olhos dela se
ajustando ao tamanho normal. O sol batia forte sobre nossas cabeças e me
ocorreu que ela pudesse tontear com o calor.
— Você está bem?
Ela se ergueu e, acidentalmente, a cabeça dela bateu com tudo em meu
nariz.
— Ui! Essa doeu.
Meus olhos arderam como consequência.
— Ah, meu Deus. Ah, meu Deus. Não foi intencional.
Na posição ereta, e com a mão em concha sobre o rosto, vi o desespero na
expressão crispada diante de mim.
— Tudo bem. Você quis se vingar. Essa é a única e verdadeira explicação.
Não resisti e provoquei.
— Ah, para, Bastián.
Passada a ardência, equilibramo-nos quando a balsa deu início à travessia
até a área dos restaurantes e das redes insistentemente mencionadas por
Antonella.
— Pensei que a água fosse mais azul.
— Lembra que eu te falei que na Lagoa do Paraíso a água é mais azul que a
daqui?
— Agora vai entender. A água aqui é linda, mas é esverdeada. Por que o
nome Lagoa Azul, gente?
Balancei os ombros. Eu não tinha essa explicação na ponta da língua.
Antonella retrocedeu dois passos.
— Cuidado para não escorregar, Nelinha.
Ela me ouviu, fiquei grato por isso, e parou. Abriu os braços. O vento
levou o cabelo longo todo para trás ao apontar o nariz para o céu. Logo em
seguida, ela abaixou a cabeça.
— Lamento que a balsa não seja o Titanic. Tão Jack e Kate. São poucos
filmes que me emocionam. Esse foi um deles.
Logo atrás dela, eu falei, rindo:
— Sorte a nossa, ou morreríamos, provavelmente.
Ela resmungou algo como “eita, espanhol sem emoção”.
Eu tinha consciência de que eu não era dos caras mais românticos do
mundo, mas juro por minha avó que não havia falado com o tom que ela
acabou interpretando. Quis fazer uma brincadeira, que soou péssima. Por Dios!
Antonella me deixava em cada encrenca.
Então eu me vi no meio do caminho entre demonstrar meu afeto a ela ou
me recolher em meu casulo sentimental. A primeira alternativa passou a ser
melhor.
Para assumir minha culpa, acolhi a cintura dela com minhas mãos, meu
tórax se moldou às costas imaculadas e nuas somente marcada por um filete do
biquíni tomara que caia. De imediato, fui tomado pelo aroma de rosas do
cabelo longo, que se movia ao sabor do vento. Ela merecia muito mais de mim.
Mais do que eu esperava um dia me permitir ser levado pela situação ali criada.
Então, rendido à encenação, indaguei:
— O que eu faço agora, Kate?
Nós estávamos protagonizando a cena, emprestando nossos corpos, mas, de
alguma forma, nossos sentimentos se uniram a partir daquele instante. Eu me
senti diferente.
— Sinta este momento, Jack. E colecione nossas memórias — ela sugeriu.
Cerrei os olhos.
Seria impossível não fazê-lo.

— Aqui é tão bom. Sabe aqueles lugares em que o tempo parece não
passar?

É
— Siii. É aqui — respondi com um sorriso em frente a ela e refresquei meu
peito, jogando água nele.
— Se eu fosse escritora, começaria um capítulo assim “As mãos do vento
acariciavam o rosto da Antonella enquanto seu corpo descansava na rede
imersa na água cristalina da lagoa”.
— Perfecto. E por que você não escreve?
— Sem chance. Eu não seria capaz.
— Não se subestime, Nelinha. Você pode escrever a história de uma
mulher que veio desfrutar do paraíso após se encorajar para mudar seu estilo de
vida.
— Hum. Interessante. Posso colocar um espanhol nessa história como
protagonista?
— Eu ficaria honrado.
Minha mão foi ao coração, os dedos largaram respingos de água.
— Por que você veio morar no Brasil?
— Estava na hora de ressignificar minha vida, assim como você fez.
— Resposta inteligente.
Vi admiração sincera no rosto da Antonella.
— Resposta sincera.
Ela fechou os olhos e virou o rosto para o céu.
Estava se tornando comum perder o ar quando estudava os traços delicados
do rosto da turista que me fuzilou com o olhar quando nos conhecemos. Nem
mesmo uma cicatriz discreta na linha do queixo deixava de ser charmosa.
Quando notei que ela voltaria a me olhar, movimentei as mãos na
superfície da água e as encarei, dissimulando estar totalmente alienado à
presença dela, como se isso fosse possível.
— Você não é tão desagradável quanto pensei que fosse, Bastián — ela
falou sem que eu esperasse ouvir tal elogio.
— Você não é tão mal-humorada quanto pensei que fosse, Nelinha —
devolvi a ela, com um sorriso que era do tamanho da lagoa.
— Acho que estou começando a gostar de nós dois, assim, da nossa dupla.
E eu de você. Mais do que deveria.
O silêncio acabou se instalando como uma presença tangível. Mais uma vez
aquela força invisível que segurava nossos olhares nos ligou. Antes que eu
falasse alguma bobagem romântica ou a beijasse, mergulhei.
Em poucos segundos, imerso na água morna, ouvi ao longe um “ai”. No
mesmo instante emergi para conferir o que a linda havia aprontado. Fora da
rede, ela massageava seu corpo.
— Acho que um peixinho beliscou minha bunda.
Uma gargalhada rasgou minha garganta, o que estava se tornando um
hábito acontecer ao lado dela.
Pez inteligente!
— Só você, chica. Só você — ela ria sem graça quando eu continuei: — A
menos que você tenha fobia, esse peixe me deu uma ideia. Vamos mergulhar
com snorkel?
— Mas a água é tão cristalina. Precisa?
— É diferente. Com o equipamento conseguimos ver os cardumes de
peixes bem melhor.
Como sempre o alto-astral dela prevaleceu:
— Então é pra já.
Fomos ao encontro de um rapaz e aguardamos uma família devolver os
aparelhos aquáticos, nós seríamos atendidos na sequência. Uma loirinha saiu
saltitando e retornou à lagoa assim que se livrou da máscara e das nadadeiras
do rosto.
— Essa menina parece um peixe-humano. Ama uma água — a mãe da
garotinha falou, orgulhosa.
— Eu também sempre gostei de todo tipo de água: piscina, mar, cachoeira
— Antonella confessou.
— Já vi que minha filha vai ser como você. Bom, preciso ir atrás dela.
Ela se despediu com um sorriso ao passo que seu marido e o outro filho
finalizavam a entrega dos equipamentos de mergulho.
— Bom saber que você é uma peixa.
— Hum. Tá. Em português não falamos peixa como feminino de peixe,
sabe? É peixe fêmea — ela fez uma cara professoral.
— Ah… Entendi, mestra. Mas se você é peixe fêmea, então quero ver se
tem habilidades sobre uma prancha de stand up paddle.
— Você está me desafiando, Bastián?
Parecia que Antonella não somente me instigava a responder, mas também
me cobiçava com os olhos. Em menos de um segundo, meu rosto estava acima
do dela, os lábios em uma proximidade perigosa.
— Eu gosto de te ver reagindo à provocação.
— Ah, é? Por quê?
Ela declinou os olhos para a minha boca, os lábios se abriram em um
chamariz para um beijo bem gostoso. Recebi uma dose de estímulo para
romper a barreira das insinuações e partir para ação. O pouco que separava
nossos rostos foi se dissipando à medida que eu inclinava a cabeça para frente,
contudo… Respirei fundo e fechei os olhos. Não tive tempo hábil para
concluir meu impulso, já que fui impedido de agir.
— Vocês querem o equipamento completo?
O que eu queria mesmo era entregar meu beijo a ela. Queria demais. Os
lábios inchados pareciam tão macios, calorosos... Se não fosse o rapaz a nos
retirar do nosso silêncio estimulante, eu não teria contraposto minha intenção.
Ainda atordoado, virei-me para o rapaz e fiz sinal positivo com a cabeça.
Nós iríamos mergulhar naquele instante mais do que nunca, como fuga, pelo
menos para mim. Eu precisava de um espaço me concentrando em algo além
dela. Ao lado da Antonella, as situações se repetiam e, quase sempre, eu me
situava sobre uma corda bamba entre agir ou recuar. Sermos somente amigos
ou dar um passo além, mesmo que pelos ínfimos dias da sua estadia.

Antonella
A ideia de praticar snorkel foi providencial. Desbravar a lagoa e ver os
cardumes de peixes pequenos desviou a adrenalina que correu pelo meu corpo
com a expectativa de que eu e o Sebastián nos beijaríamos. Que loucura! Foi
um quase, um instante, metade de um segundo que significou eternidade.
A resposta que não queria calar era “Eu desejava aquele beijo?”
Muito.
Seria certo? Não.
Eu iria embora em poucos dias. Incentivar uma paquerinha não seria o
ideal para a fase que eu estava vivendo. Concentrar-me no que faria após a lua
de, quero dizer, férias, era o que me convinha.
Com o corpo parcialmente sob a água e o rosto coberto pela máscara,
somente a ponta do cano apontava para fora da lagoa e captava o ar responsável
por suavizar a falta de fôlego. Se bem que, minutos antes, a respiração me
faltara mais do que com a máscara no rosto.
Olha que peixinhos lindos!
Eu me esforçava para induzir meu cérebro a pensar em outra coisa que não
fosse em Sebastián, em seu jeito simples de curtir um dia de sol, em seu corpo
esguio e com a musculatura em dia, em como ele conseguia deixar meu
coração leve ao seu lado. E fui surpreendida pela sua mão. Nossas palmas se
uniram e nos guiaram para perto de um cardume de platis pintados pelas cores
preta, branca e amarela.
Fiz sinal de joinha e vi os olhos da mesma cor da lagoa se alargando para
mostrar um outro cardume de molinésias brancos salpicados de preto, como se
fossem dálmatas do mundo das águas.
Fiquei radiante de tanta felicidade. Não há quem não se sensibilize com a
natureza e sua diversidade.
Tão feliz quanto eu, Sebastián não soltou a minha mão e nós desbravamos
um pouco mais para o fundo da lagoa, mas a água foi obscurecendo a visão
com um tom escurecido. Então ele apontou para nós retornamos para a
claridade e assim fizemos, movimentando as nadadeiras, impulsionando o
nado, sem despregar nosso contato.
E estava sendo tão bom…
Uma voz sussurrou no fundo da minha mente, dizendo que era para eu
deixar a vida me levar, sem pressão de provar aos outros que eu seria capaz de
ser produtiva, de caminhar com minhas próprias pernas, quando eu mesma
duvidava que conseguiria.
CAPÍTULO 16
Algo que me impulsionava a me superar, era ser desafiada. De certo modo,
meu pai havia sido um dos responsáveis por essa minha ânsia de querer fazer
algo diferente, novo. Ele não acreditara que, algum dia, eu fosse reagir ao seu
comando e… ao meu comodismo.
E mais uma vez fui posta em xeque.
Após me maravilhar com a vida do fundo da lagoa, tive que subir na
prancha de stand up e dissimular que a Garota de Ipanema tinha facilidade
para esportes na água. Naquele momento, agradeci à minha mãe por ter me
forçado a fazer aulas de balé em vez de me autorizar a bater bola com os
meninos da escola da minha avó. O equilíbrio que precisei para provar ao
espanhol irritante que eu conseguiria deslizar sobre a água translúcida fora
trabalhado por horas sobre sapatilhas de fita.
E foi tão bom… Nós nos divertimos horrores com a sensação de liberdade
que a prancha nos proporcionou.
“Você sempre me surpreende, Nelinha. A partir de hoje, vou te chamar de
A Musa do stand up. Melhor: A Musa de Jeri.”
Com essas palavras, lá dentro de mim, algo se ligou. A Garota de Ipanema,
aquela que não vislumbrava o mundo de opções fora do seu castelo de vidro,
tinha ficado para trás, dando espaço para uma nova mulher, mais dona de si, se
posso assim dizer, não mais a garotinha do passado, mas uma… musa.
Sebastián não tinha noção de quanto havia me motivado, além de ser um
colírio para os olhos.
— Está cansada? — ele perguntou ao meu lado em uma espreguiçadeira da
varanda-deck do seu chalé praiano. O teto de sapê fazia par com toda a
natureza ao redor.
— Muito. Parece que meus músculos estavam atrofiados. Meu corpo todo
dói.
— É assim mesmo. Dependendo do movimento, mexemos partes
diferentes do corpo antes não trabalhadas.
— Acho que meu corpo inteiro estava inerte.
Fitei o céu pontuado por estrelas.
Não era para eu me lembrar do que fizera ao meu ex-noivo naquele
momento relaxante e após um dia que ficaria na história como um dos mais
divertidos da minha vida, mas meu pensamento passeou por essa vibe dolorosa.
Talvez fossem as dores musculares. Sei lá. O fato é que eu me odiava por isso.
Por ter causado um estrago em seus sentimentos. E, às vezes, a ideia de que ele
não conseguiria ser um homem bom para outra mulher, fazia meu coração
latejar de remorso.
Por isso, não consegui segurar a boca fechada. Saber de outra pessoa o que
sentia por ter tido um relacionamento desastroso era tudo o que me
interessava.
— O que aconteceu com a Mônica, exatamente?
Ganhei um breve olhar. Sebastián jogou amendoim na boca e mastigou,
ganhando tempo para pensar na resposta que daria. Sua expressão se abateu um
bocado. Ele deu um longo suspiro, que levou uma eternidade.
Minhas mãos voaram ao cabelo e deram três voltas nele em torno dos
dedos.
— Não é fácil falar sobre mim.
— Percebi que você é reservado. Desculpe. Se não quiser falar, tudo bem.
Eu fui intrometida.
Para fechar a minha boca inconveniente, fui pegar um punhado de batata
frita na tigela sobre uma mesa baixa, nossas mãos acabaram resvalando. Minha
pele indefesa se arrepiou e foi surpreendida por um afago singelo.
— Você não é intrometida. Pelo contrário, sua presença está me fazendo
bem.
Ele virou o rosto antes que eu o olhasse. Essa coisa de mexer o pescoço a
todo instante para o outro não notar que estava admirando, avaliando,
analisando, estava me deixando com torcicolo. Havia acontecido diversas vezes
no decorrer do dia.
Mas eu não estava querendo dissimular que admirava o nariz reto em seu
perfil, o cabelo parecendo um algodão castanho no alto da cabeça a ponto da
minha análise intencional o convidar de volta a me encarar.
Então um silêncio se prolongou enquanto iniciávamos uma conversa
apenas com o olhar. Sempre o olhar, suave e intenso como uma comida
agridoce que se completa com temperos opostos. Era um misto de carinho e
desejo, o qual eu não queria admitir que nutria por ele.
Tive medo de piscar e ser a primeira a quebrar a magia que era capaz de
fazer meu corpo entrar em um frenesi de sensações, algumas reações arfantes
por vezes.
Então ele olhou para o mar.
— Eu não dei a ela o que ela esperava de mim.
Concordei, ligeiramente confusa.
Ele prosseguiu:
— Ela queria um namorado mais… romântico? É. Romântico. Que leva
flores aos encontros. Que manda mensagem perguntando como foi o dia.
Ele voltou a olhar para mim.
— Mais presente.
— Não consigo ver você desse jeito que está falando. Caramba, você está
sendo muito atencioso comigo e me conheceu há pouquíssimo tempo.
— É diferente. Acho que eu não tive um bom exemplo em casa para me
inspirar. Meu pai era bem ausente. A minha mãe morreu muito nova. — Em
geral, pessoas que sofreram ausência familiar durante a infância podem
apresentar problemas de relacionamento pessoal. Além disso, a depressão, baixa
autoestima, ansiedade e falta de confiança podem ser quadros característicos.
— Você realmente fala bonito.
— Há. Há. Dessa vez, espelhei o que meu psicólogo disse em uma sessão.
Eu fiz tantas merdas para chamar a atenção dos meus pais. Cara, você não tem
noção.
Mordi duas batatas de uma vez.
— Conta uma delas.
Fiz sinal com dois dedos em riste para ele esperar eu engolir.
— Uma de proporções catastróficas para o meu pai — engoli o restante. —
Pode ser?
— Quero saber tudo sobre você.
E eu sobre você.
— Uma vez, eu tinha acabado de atingir a maioridade, promovi um leilão
virtual. Quando meus pais souberam, eu havia vendido um Picasso da galeria
de artes da nossa casa. Eles estavam em Aspen, esquiando.
— E por que você não foi na viagem?
— Era raro eu viajar com eles.
Uma sobrancelha dele quicou.
— E o que aconteceu?
— Meu pai tentou reverter o que fiz, mas o novo dono da obra se negou a
desfazer o negócio. No final, ele foi obrigado a desembolsar uma grana para ter
o quadro favorito dele de volta na parede. Meu castigo foi ficar um mês inteiro
morando no apartamento da minha avó, com ela.
— Isso não foi castigo. Foi?
Ele batucou com um dedo no vidro em sua mão.
— Não — ri. — Para o meu pai, me tirar do castelo em que vivíamos, foi,
sim — não hesitei em concordar. — Para mim, foi maravilhoso. Esses
momentos com a minha avó marcaram positivamente a minha vida.
— Nelinha, você é uma peça rara. E sensível.
Sorri e fitei os coqueiros se movendo com o vento.
— Voltando ao assunto que você estava falando sobre ter um exemplo de
relacionamento conjugal em casa. Bom, se você se referiu a isso, meus pais
vivem um para o outro, uma melação que me dá nojo.
Fiz cara de “eca”.
— Por isso você é carinhosa. Sabe demonstrar com o corpo. Ah, você
entendeu o que eu quis dizer. Não estou sabendo explicar.
Ri.
— Você está querendo dizer que eu não tenho dificuldade com afeto físico,
com o toque? — ele concordou com um único movimento de cabeça. — Meus
pais não estiveram muito presentes enquanto eu crescia. Eles viviam um para o
outro. Às vezes, eu me sentia uma intrusa na relação deles. Estranho dizer isso,
né? Mas foi assim que eu me senti durante a minha infância e até hoje me
sinto. É. Até hoje. Passei a maior parte da minha vida na casa da minha avó ou
com babás. Mas eles sabem cobrar de mim que é uma beleza. Em tudo.
— Repito: você é carinhosa.
— Cada um reage às situações e aos estímulos recebidos de forma
diferente. Não quis criar esse tipo de trauma a ponto de os outros me olharem
como uma pessoa insensível.
Outra vez, falei o que não devia.
— Quer dizer, não que você seja insensível — acrescentei, defensiva.
Ele deu um sorriso curto.
— Você foi mais sábia que eu para se livrar de traumas.
Fiz careta e movi a cabeça como quem diz “mais ou menos”.
Eu queria ouvir mais sobre ele. Que ele tivesse em mim alguém com quem
pudesse compartilhar suas frustrações.
— Sabe, se meu pai me batesse seria menos doloroso que a indiferença.
Pelo menos, ele reagiria de alguma forma à minha presença.
Que dor ele represava em si, em suas lembranças! E eu reclamava dos meus
pais.
— Não. Violência não é solução para nada.
— Não me bater para machucar, claro. Mas, pelo menos, eu o sentiria se
importar comigo.
Tive uma vontade tremenda de confortá-lo com um abraço e arrancar da
sua alma o registro da dor que sentia no peito. Mas eu tinha de me conter. Era
possível que o assustasse com minha espontaneidade.
— Por isso não sou do tipo de me comprometer, como você que namorou
por anos.
Eu me limitei a falar:
— O importante é que tivemos as nossas avós para suprir nossas carências.
Ele ergueu a tulipa de cerveja.
— Um brinde a elas. Nosso porto-seguro.
Retribuí. Sebastián adorava brindar por tudo. Desandei a rir.
— O que foi?
— É que eu me lembrei que vó Vitória cantava a música da Garota de
Ipanema quando eu estava triste, principalmente na hora de dormir, quando eu
mais sentia saudade dos meus pais. Agora meu apelido mudou, não é?
— Você terá que se apresentar a ela como “A Musa de Jeri”.
Olhei para tudo e para nada em específico. O mar, o coqueiro, a madeira
do chão, a tulipa, menos para ele. Meu rosto pegava fogo de vergonha.
Notando meu embaraço, ele se levantou, levou a mão à lombar e esticou a
coluna.
Já era tarde, creio que próximo das onze horas, ou mais.
— Está doendo?
— Um pouco.
Mais uma vez a culpa se instalou em meu senso racional.
Olhando para cima, sugeri:
— Eu já usufruí da cama por vários dias. Está na hora de ela voltar para o
dono, não acha? — minha oferta foi natural.
Ele me deu um olhar que fez a última célula do meu corpo se revirar.
Silenciei. Nem ousei estender o assunto. O dia havia sido perfeito,
culminando com um bom papo noturno. Mantive a boca fechada, enfim.

De madrugada, não sei ao certo quanto tempo passara desde a hora em que
nos despedimos até acordar com gemidos baixos atravessando a barreira da
porta. Era Sebastián. Teimoso como uma mula, ele parecia não conseguir
dormir.
Fazendo força para ajustar meus olhos à escuridão, meio cambaleando,
alcancei a cômoda e abri a primeira gaveta, todas as minhas tranqueiras tinham
sido organizadas ali. Ele insistiu para que eu a usasse enquanto estivesse em sua
casa, com a alegação de que tudo ficaria mais organizado fora da mala. Eu disse
que não era necessário, embora soubesse que seria muito mais dinâmico achar
qualquer coisa que eu precisasse. Ele respondeu com “Que mujer terca”.
Sim, eu era teimosa, mas ele dava um banho em mim em alguns
momentos. E esse era um deles. Desde cedo, ele se negara a tomar qualquer
tipo de comprimido para dor, dizendo que o estômago depois poderia sofrer
consequências ruins. E havia bebido. Não era legal misturar álcool com
medicamento, o que honestamente tive de dar razão a ele.
Mas o desconforto em suas costas estava fazendo aumentar minha culpa
por ele estar dormindo no sofá. Era questão de honra cuidar dele.
Resgatei minha necessaire de remédios. Minha avó havia comprado uma
farmácia inteira para eu viajar. Até que foi espetacular ver um analgésico
piscando diante de mim.
Passei por ele na sala, desconsiderando sua feição surpresa, e fui direto à
geladeira, sem me importar com o peso do olhar do espanhol me
acompanhando.
No máximo um minuto depois, fiz cara de mãe severa e entreguei o copo
de água a ele, junto do remédio.
— E não diga que não vai tomar. Nem sei o que faço com você sofrendo à
toa e negando se cuidar.
— A mulher mandona ressurgiu?
— Ela nunca foi embora. Estava somente adormecida.
Os lábios dele sorriram na borda do copo.
— Cata o lençol e vem dormir na cama.
— No. No. No.
— Si. Si. Si. E não me venha com um espanhol ininteligível pra cima de
mim.
Enquanto Sebastián espalmava as duas mãos em sinal de rendição, fui ao
quarto e resgatei de lá o travesseiro e o lençol. Assim que me viu de volta, ele se
levantou meio torto para um lado.
Minha intuição me disse que ele não aceitaria. Não precisava ser nenhum
vidente para entender o que a sua expressão falava silenciosamente. Só que seu
jeito gentleman estava exagerado, embora fosse fofo. Nós poderíamos de
verdade revezar onde dormir.
— Não vou me sentir bem, Nelinha. Dorme na cama, está bom?
Abracei o emaranhado de pano e o travesseiro.
— Cara, você tira meu juízo com sua teimosia.
As sobrancelhas dele se ergueram como quem diz “Quem é mais teimoso?”
— Tudo bem, Sebastián. Eu estou morrendo de sono. Não vou ficar
discutindo a essa hora da madruga com você.
Dei as costas a ele e voltei ao quarto. Apaguei a luz e me acomodei de lado.
Quando estava no meio do caminho entre a consciência e o sono profundo,
ouvi a voz com o sotaque conhecido sendo distribuída em meus dois ouvidos.
— Eu posso dormir aqui?
— Só não me peça pra levantar agora. Sem condições...
Em poucos segundos, o sono me levou para outro lugar.

Sebastián
O decote da camisola da Antonella deixava muito espaço para imaginação.
Esse foi um dos motivos do sono não chegar fácil para mim. Óbvio que não
seria necessário que ela soubesse sobre seus atributos corporais me instigando a
passar horas insone desde o dia em que dera guarida a ela.
Acordei no dia seguinte bem antes da lindeza. Assim que abri os olhos, tive
de prender a respiração, eu não queria acordá-la. Um braço circundava meu
peito, uma coxa sobre minha ereção a fazia latejar, o seio havia se acomodado
em minha lateral.
Não, você não pode inflar como a pipa do meu aparelho de kitesurf. Por favor.
Controlei a respiração, hum, e meu membro entre os quadris. Antonella
era espaçosa na cama, pelo visto.
Por quanto tempo eu aguentaria me manter imune a ela? Imune? Eu já
estava mais envolvido do que gostaria.
Eu precisava ficar indiferente a ela. Não seria difícil me esquivar durante o
dia. O hotel era grande o suficiente para não nos encontrarmos. Mas era o que
eu queria? Em definitivo, não. Levá-la a outro passeio e captar a energia de sua
jovialidade seria melhor que participar da reunião na Prefeitura de Jijoca e
depois de um workshop.
As obrigações de trabalho me aguardavam. Forçando a barra ou não, eu
estaria ocupado.
Decidido a me levantar, olhei lentamente para o rosto que estava tão
sereno, mas vacilei. Se eu fosse um pintor renascentista, eu a teria retratado.
Sem dúvida alguma, a tela seria exposta no Museu do Prado, o principal de
Madri. Linda. Mais que linda. Musa.
Com cuidado, fui me arrastando na cama, o lençol fez um leve ruído. Ouvi
um murmúrio e paralisei. Mas a respiração dela voltou a pesar. Depois foi um
ato de extrema habilidade pegar uma roupa no armário sem provocar ruído
algum ao abrir e fechar a porta e a gaveta.
Não pude deixar de olhar uma última vez para ela e me senti zonzo com
sua beleza. Meu corpo se acovardou e preferia voltar a se deitar.
Cerrei os olhos e respirei o ar com aroma floral da Antonella.
CAPÍTULO 17
Fiz um tour de checagem pelo hotel. Conversei com os funcionários que
limpavam os andares superior e inferior, o recepcionista do dia, os garçons que
ajeitavam o amplo salão aberto do café da manhã, meu lugar preferido. Por
mais que Calebe fosse eficiente em suas atividades, eu entendia que era
importante estar presente para o bom andamento das tarefas.
Um sorriso bobo não fugia dos meus lábios, mas não era somente por
demonstrar simpatia aos trabalhadores, e, sim, por estar… feliz. Na noite
anterior, eu havia me sentido querido sendo cuidado por Antonella. Sua
atenção comigo era comovente.
Mas eu tinha de tomar cuidado. Sendo mestre em me sabotar, em geral não
ouvia o que meu coração alertava. A racionalidade tinha uma fala continuada
em minha mente. Eu queria muito encontrar o meio termo e manter essa onda
pacífica em minhas emoções.
Antonella me fazia bem.
Todas as frases motivacionais — que ela frisava que eram meus mantras, eu
as repetia inúmeras vezes no decorrer do dia. O intuito era me manter sempre
em alerta e não me permitir afundar em tristeza. Foi a maneira que encontrei
para me manter equilibrado.
Subi os degraus que separavam os ambientes. Já no deck da piscina, traguei
o ar marinho até meu peito estufar. Cerrei os olhos e ergui o queixo.
Algo que aprendi desde que me instalei de frente para o mar, era ser grato.
A natureza havia me proporcionado encontrar a paz que aliviava meus
sentimentos, por vezes nublados. Agradecido, murmurei uma saudação à vida.
Quanto mais eu me mantinha positivo, mais as coisas boas iam chegando,
como… Antonella. Ela era uma moça que tinha tudo para se perder, mas se
encontrou no meio da insegurança de uma pandemia. Demonstrou ser forte o
suficiente para driblar as armadilhas que o dinheiro nos oferece com facilidade,
mesmo que ela tivesse aprontado durante um tempo. Pelo que entendi, fora
pura e simplesmente para chamar a atenção dos pais. A velha carência que eu
conhecia com propriedade.
Mas talvez eu estivesse confundindo o que sua presença significava para
mim. Talvez ela somente tivesse surgido para me dizer “ei, você tem uma vida
pela frente”. Poderia ser provável que ela tenha surgido para se tornar uma boa
amiga.
Olha meu cérebro me sabotando outra vez.
Ah, vai, a verdade era que Antonella me atraía, com certeza, de uma forma
diferente.
Em meio aos meus delírios matutinos, ouvi passos no chão, se
aproximando. Sorri na esperança de ser ela. Seria um benefício e tanto vê-la
antes de sair. Receber o sorriso singelo, embora cheio de significado, seria o
melhor presente.
Quando abri os olhos, aquela música dos desenhos animados “quel, quel,
quel,” se amplificou em minha mente. Infelizmente, me frustrei. Eu me deparei
com o mais recente funcionário. Ele havia começado suas atividades naquela
semana; Max passou a ser o responsável por conduzir as atividades de recreação
aquática com os hóspedes.
— Olá. Buenos Dias.
— Bom dia, senhor. Eu queria agradecer desde o primeiro dia de trabalho,
não tive oportunidade. Obrigado por ter me contratado.
— Ah, sim. Mas agradeça ao Calebe. Ele é o responsável pelas efetivações.
De qualquer forma, seja bem-vindo à equipe.
— Obrigado, senhor. — Ele apontou para uma parte coberta da área. —
Vou organizar o material antes da primeira aula iniciar.
Dessa forma, eu o liberei com um aceno de cabeça e fui tomar meu café da
manhã na cozinha da melhor chef do mundo, a Márcia. Dar uma boa
turbinada no estômago para ele suportar a manhã de reuniões e o início de um
workshop sobre turismo na cidade vizinha era a melhor opção.
Antes de sair dali, dei uma espiada no segundo andar. Logo vi um casal se
beijando na piscina da varanda privada de um dos quartos. Não nego que senti
uma ponta de inveja. Eu havia construído um hotel para atrair casais que
quisessem usufruir de todo romantismo que o conjunto da vista e estrutura
hoteleira poderia oferecer, mas, ainda assim, eu estava só.
Caí o olhar para o chão.
Eu me sentia solitário. Um miserável rico solitário. Sempre cheio de
antagonismos.
Era estranho me colocar desse jeito. Eu podia contar nas mãos quantos
amigos acumulei até chegar ao Brasil, eram poucos, ainda assim, jamais estive
sozinho, como me sentia naquela primavera. Então me ocorreu que eu era o
culpado por ter me fechado em uma concha individual após o meu pai… Ah,
o meu pai. Até quando eu o culparia por todos os meus momentos ruins?
Eu tinha de reagir. Viver a minha vida e não as consequências que as
escolhas dele causaram a mim e à minha família.
Ergui a cabeça e fui ao refeitório. No caminho, me deparei com a garçonete
Giovana conversando com André, vestido com bermudão e camisa. Era o dia
de folga dele. Então pesquei o que acontecia ou estava na iminência de
acontecer entre os dois. Hum. Pela minha experiência, estava claro que rolava
algo ali.
Eles se assustaram ao me ver. Soltei um sorriso contido e cordial. Contudo,
por dentro, tive vontade de rir. André era tímido, como eu fui em minha
adolescência. Na idade dele, acho que eu já tinha pegado o jeito da paquera.
Cada um no seu tempo.
— Beleza, André.
— Tudo certo, seu Sebastián.

À
À Giovana, apenas sorri mais uma vez. Nós havíamos nos visto
pouquíssimo tempo antes.
Fui ao refeitório e logo topei com Calebe conversando com Márcia.
— Graças a Deus você chegou, Sebastián. Márcia agora é toda sua — ele
disse, apertou a borda da mesa com os dedos e empurrou a cadeira para trás.
Com um bule na mão, ela fez cara de poucos amigos para ele.
— Eu só quero o bem dos meus meninos.
— Ah, não, Márcia. Também não estou disposto a ouvir seus conselhos
logo pela manhã.
Peguei uma torrada com queijo e presunto parma na bandeja que ela
segurava na outra mão e beijei o rosto dela. Sentei-me diante de Calebe e virei
a xícara para ela me servir com café.
— Há quanto tempo os dois estão sozinhos? Está na hora…
— Na hora de nada, Márcia. Eu tenho o Miguel para cuidar. Falando nele,
vou ligar para casa e checar se está tudo bem por lá.
Calebe arrancou o celular do bolso. Não sei se foi para dissimular ou se
ligaria de fato.
— Chefe, a van da Prefeitura vai sair daqui para o workshop em quinze
minutos. Não se esqueceu, né?
— Mas e a reunião com o Prefeito?
— Foi transferida para a semana que vem. Você não viu meu e-mail?
— Andei ocupado.
Pelo canto de olho, notei que a Márcia deu um sorrisinho para a frigideira
no fogão.
O rosto de Calebe se manteve inexpressivo, embora ele tenha mexido em
sua barba no melhor estilo quando estava pensando. Então um sorriso irônico
se camuflou na barba cobre.
Continuei olhando para ele sem alterar a expressão.
— Eu não contava com esse workshop. Você não quer ir no meu lugar?
Vou ter que emendar com o congresso em Fortaleza.
— Se pudesse, eu o substituiria, mas hoje vou receber aquele grupo francês
e ciceronear.
Fechei os olhos e estalei a língua.
— Calebe, você retirou essa palavra de algum livro da biblioteca?
— Ah, Márcia. Você por acaso me chamou de velho.
— Que isso? A Márcia? Jamais faria isso.
— Não coloca pilha, Bastián — ele se indignou. — Depois dessa, vou lá.
— Ficou magoadinho? — Márcia provocou nosso amigo.
Ele saiu, rindo.
Para o meu desespero, Calebe nos deixou a sós. Ela se considerava uma mãe
ou tia e era a única com quem eu me abria, muito de vez em quando. E como
toda mãe e tia, ela se importava comigo. Eu não escaparia de uma sabatina
sobre Antonella, eu sabia. Mas, naquele momento, não estava preparado para
que esse assunto viesse à tona tão cedo.
Mesmo assim, eu me preparei.
— Antonella é uma graça. Parece ser uma moça de bons princípios.
A mão alva puxou a cadeira para trás após me servir com panqueca de ovo,
banana, coco ralado, aveia, besuntada com geleia de morango e canela em pó.
— É. Parece.
Cortei a panqueca nutritiva com a faca e preenchi a boca com a mistura,
voltar ao assunto era o que eu não gostaria. Contudo, Márcia era insistente.
— Achei interessante ela ter finalizado o casamento no altar.
— Sério? Eu teria me sentido muito mal se minha noiva me largasse na
frente de tanta gente. Claro que não falei isso a ela. Por outro lado, é melhor
assim do que casar e ser infeliz.
— Agora, sim, você não me decepcionou. Sabe, Sebastián, quando eu
decidi me separar do meu primeiro marido, eu pensei que não fosse ser feliz
outra vez. Que o meu castigo por fazê-lo sofrer, seria ficar solitária. Antonella
está nessa fase de autopunição.
— Eu sei.
— Ela está precisando do nosso carinho.
As duas sobrancelhas da Márcia se ergueram e era fácil saber o que ela diria
logo depois.
— Mais do seu, que está presente com ela de forma mais intensa.
— Intensa? Eu diria somente presente.
Seus olhos claros se estreitaram.
— Pode ficar tranquila, eu tenho feito a minha parte de ser um ombro
amigo. Só que eu tenho minhas obrigações. Você pode me ajudar com isso.
Mastiguei mais um pedaço da panqueca.
Ela levantou.
— Estou ajudando você, querido. Mais do que imagina.
— Márcia, você não tem jeito.
— Quem sabe vocês dois se apoiando mutuamente, essa amizade possa se
desenvolver para uma admiração.
— Eu já a admiro — confessei.
— Hum. Então estamos evoluindo no caminho certo.
Um olho da Márcia piscou para mim.
Pode ser que, sim. Estamos.
Era melhor não sair falando o que eu sentia por Antonella. Ela iria embora
em poucos dias. Não sei se manteríamos contato. Nem os nossos números dos
celulares tínhamos trocado. Era mais seguro deixar quieto.
Eu não sabia o número dela?
Giovana entrou na cozinha.
— Márcia, o que eu posso levar para o bufê. Os hóspedes começaram a
aparecer.
Enquanto as duas dinamizaram seus afazeres, eu agilizei meu desjejum.
Minha intenção era sair de mansinho antes que Márcia conseguisse arrancar de
mim mais do que eu gostaria.
Já na passarela, pensei em voltar para casa e ver se Antonella havia
acordado. O que ela estaria fazendo? Dormindo? Nos outros dias, notei que
acordava cedo e caminhava na praia. Mas eu a teria visto se estivesse diante do
hotel.
— Seu Sebastián, a van chegou — o recepcionista avisou da porta da
recepção.
Eu estava prestes a admitir que queria vê-la antes de passar o dia inteiro
distante.
Mierda.
Sem alternativa, passei pela recepção e o rapaz entregou a minha bolsa tipo
estudante. Cruzei a alça no peito e saí para a ruela, conformado que o meu dia
seria extremamente longo. E sem o astral bom da Antonella.
Quando apontei na porta, vi quem sorria para mim.
Mil vezes, não.
Seria muito mais complicado de suportar do que eu imaginara.

Antonella

Não. Eu não estava vendo o que via. Meu estômago embrulhou. Todas as
ilusões que eu havia criado em minha cabeça desde que acordara naquela
manhã se fragmentaram após uma única visão.
Com a respiração pesada, devido a correria para tentar encontrar Sebastián
em algum lugar do hotel antes de ele sair a trabalho e entregar a carteira
esquecida sobre a mesa, não acreditei no que vi. Fiquei imóvel, parada sob o
batente da porta de entrada do hotel.
Na ruela, ancorada em um ombro do espanhol, uma mulher vestida com
um longo hippie chic branco e azul, soprava palavras no ouvido dele. Se minha
intuição não estivesse equivocada, os dois estavam envolvidos ou no começo de
algum lance. E se fosse a Mônica?
De imediato, um bolo de ingenuidade perdida se formou em minha
garganta e desceu com o sabor amargo da decepção. Não com ele, mas comigo.
Ou talvez com os dois: eu e ele. Por criar expectativas e ser enganada.
Ok. Tudo bem. O mundo não acabaria por vê-lo com outra mulher. Aliás,
eu não tinha como cobrá-lo de nada, nem de qualquer coisa. Afinal, Sebastián
possuía uma vida antes de eu chegar. Eu tinha a minha também. Não era para
eu estar ali sofrendo por algo que nunca aconteceria. Estava nítido que eu não
chegava aos pés da mulher madura que alisava o rosto lindamente barbado.
Engraçado como a gente mistura cordialidade com algo a mais. Quantas
amizades se desfazem depois que um dos dois se apaixona. Não. Eu não estava
apaixonada por Sebastián, empolgadinha, sim. Os nossos momentos estavam
sendo tão bonitos e marcantes. A última coisa que eu queria era perder a
amizade dele, embora jurasse ter visto um brilho diferente em seus olhos em
diversos momentos ao me fitar. Então tudo não passava de alucinação?
“Não sou do tipo de me comprometer”, ele havia deixado bem claro que não
era de se apegar a mulher alguma.
No momento em que ele disse aquilo, essa afirmação veio como uma
bofetada bem no meio da minha cara. Eu só precisava lembrar ao meu coração
que ele se enfiaria em uma grande roubada se não se mantivesse off para
Sebastián.
Antes que ele me visse, dei a volta sobre o chinelo e fui à sala do Calebe.
No meio do percurso, esbarrei em algumas crianças com as quais eu havia
passado um tempo, noutro dia, lendo Os Três Porquinhos.
— Tia, nós vamos embora amanhã. A gente queria tanto que você lesse
mais uma história pra gente.
Meu coração se comoveu.
Era por essa espontaneidade de sentimento, por falar o que pensa e sente,
que eu amava lidar com crianças. Para mim, era muito mais fácil que o
universo dos adultos. De certa forma, era o que eu pensava.
Eu me abaixei até nivelar meus olhos aos da menina.
— A tia vai tomar café e já vem. Vocês me esperam na sala de recreação
daqui a meia hora?
“Hum, hum”, as duas murmuraram, felizes.
Ao cruzar o pátio em direção ao chalé, encontrei Calebe entrando em sua
sala.
— Bom dia! Você pode entregar isso para o Sebastián? Ele esqueceu em
casa, quer dizer, na casa dele.
— Ele ainda deve estar na recepção. Você não veio de lá?
Fiz cara de paisagem como quem diz “prefiro que você entregue”.
— Tudo bem. Eu vou ver se ainda consigo encontrá-lo.
Com passos apressados, Calebe se afastou de mim. Acabei decidindo que
estava na hora de trocar de quarto.
— Calebe. Calebe. — Ele virou meio corpo. — Alguém cancelou a reserva
até terça?
Ele movimentou a cabeça em negativa e deu de ombros, lamentando.
Eu, ainda mais.
CAPÍTULO 18
Somente mais alguns dias. Somente mais alguns dias.
Senti um nó na garganta.
Comi qualquer coisa na casa do Sebastián. Não estava a fim de fazer o
ritual de sempre. Sentar à mesa no café da manhã, ouvir música ao vivo e
encher minha barriga até passar mal, depois caminhar com meu amigo Ozzy
pela praia – ele tinha um fôlego melhor que o meu. Mesmo porque eu havia
marcado o encontro com as crianças. E foi tão bom me sentar no chão
emborrachado da sala de recreação. Os momentos com elas recarregaram as
minhas baterias.
Não é todo dia que você dorme na cama com um deus da beleza, então ele
acorda e não diz nem um “bom dia” para você e, ainda por cima, vai encontrar
outra.
Isso estava cheirando à novela dramática. E eu não pretendia ser uma das
protagonistas, muito menos a perdedora. Meu orgulho ainda sobrevivia em
mim. Não havia abandonado um casamento para me jogar em um xavequinho
que me faria sofrer.
Não mesmo.
E o dia estava uma belezura de vivacidade. Ficar me lamentando não
deveria ser uma opção.
Deitei na espreguiçadeira luxuosa. Ela era tão confortável, que ficar horas e
horas ali não seria nada difícil de acontecer. Mas existia o sol…
Através dos óculos, fitei o céu tão azul que seria complicado permanecer
sob ele sem me refrescar de tempos em tempos. Minha pele me lembraria disso
mais tarde. Era tão certo como a onda do mar produz energia com seu
movimento incessante, que eu não ficaria à mercê dos seus raios ultravioletas o
dia inteiro, ainda mais com as variações climáticas e a mudança na camada de
ozônio e tal.
Meu maior exemplo havia sido a minha avó que, quando nova, estendia-se
sobre a toalha e se esquecia da vida, sem proteção alguma na pele. Ela tentava a
todo custo adquirir a cor jambo-dourado como a do André, o que jamais
aconteceria, pois sua genética não permitia atingir tal tom. E deu no que deu,
um câncer de pele surgiu e ela foi submetida a uma cirurgia tensa.
Tensa eu que fiquei, na época. Vó Vitória era tudo em minha vida.
Por influência do que ela sofrera, dei uma aula aos meus alunos sobre a
importância do uso do protetor solar. Frisei que seria bom que eles
obedecessem às mamães quando elas os chamassem para repassá-lo e como ele
havia sido criado pelo americano Benjamin Green, que, comovido pelas
queimaduras que os soldados adquiriam ao retornarem da Segunda Guerra
Mundial, criou um creme que pudesse ser útil para a proteção das peles dos
combatentes.
Fiquei tão feliz… As mães elogiaram o meu trabalho à diretora e se
tornaram minhas fãs.
Voei longe nos pensamentos tomada pela decisão de não pensar em
Sebastián, sem sucesso, porque logo em seguida, eu me recordei do nosso papo
tão agradável e revelador, do rosto delicadamente másculo o qual eu não me
cansava de admirar.
No silêncio da noite anterior, eu podia ouvir as batidas do meu coração se
acelerando, desencontradas com as dele, num ritmo manso. Ele estava deitado
de lado, um braço encoberto pelo travesseiro, a outra mão sob a face. Então foi
inevitável não me virar para ele e volitar meus dedos sobre seu rosto, fazendo o
contorno sem encontrar nossas peles no toque que o acordaria. Percebi que eu
não queria estar em outro lugar que não fosse naquela cama com Sebastián.
A gente cria tantas fantasias sobre e com uma pessoa...
Mas a vida real é cruel e nos mostra que devemos manter os pés no chão e a
cabeça sobre o pescoço sem imaginações mirabolantes.
Foi bom ter visto Sebastián enrabichado com a outra para me centrar, me
colocar em meu devido lugar. Eu era uma mulher ainda muito moça, na visão
dele. Nossa diferença de idade era um empecilho, era o que eu imaginava.
Fiz de tudo para me distrair, brincando com as crianças. Mas minha cabeça
girava em pensamentos e retornava ao ponto de partida como em uma corrida
de kart. Até preferi curtir a piscina coletiva em vez de me beneficiar com a
particular, pelo simples motivo de que eu precisava de um ar puro que não
estivesse impregnado pelo perfume natural do Sebastián. Interagir com outras
pessoas, conversar, seria mais saudável para mim.
Como eu estava de bobeira, resolvi dar uma espiada nas redes sociais. Havia
um tempinho que não me encorajava a ver o que falavam de mim, ou comigo.
Seria possível que meu celular explodisse quando ligasse o wi-fi.
Digitei a senha na tela e “pá”. Tunc, tunc, tunc, tunc… Tirum, tirum,
tirum… Sons de todos os aplicativos se afinavam como os instrumentos de
uma banda.
Mordi o lábio inferior e olhei para o meu lado. Uma senhora ria do meu
semblante embaraçado.
— Há dias não conecto — eu me justifiquei.
— Você está certa, querida. É o melhor a fazer. Neste paraíso, o bom é se
desligar do mundo e aproveitar cada instante. Tive que esconder o celular do
meu neto para ele fazer as atividades que o hotel oferece, senão o quarto seria
sua prisão.
— Onde ele está agora?
— Foi praticar kitesurf com o instrutor.
— Hum, a senhora me deu uma boa ideia.
— Então aproveite, porque os dias voam quando estamos de féria. — ela
apontou para a praia. — Olha, eles estão vindo. Por que não tenta agendar um
horário com o Max para hoje?
Balancei as pestanas para o infinito me imaginando matando o tempo no
mar. Logo resolvi que não leria mensagens porcaria nenhuma, muito menos
postagens de amigos em redes sociais. Eu tinha um dia inteiro pela frente para
me divertir com as belezas naturais. Voltei a silenciar meu celular e assim ele
ficaria por mais alguns dias.
Viajando nos pensamentos, não notei quando o adolescente se inclinou
para beijar o rosto da avó. Meu coração se encheu de saudade da minha.
— Vó, foi muito massa.
— Eu tinha certeza de que iria gostar.
O neto dela sacudiu os braços, vários pingos de água nos acertaram.
— Cuidado, rapazinho. Está molhando a moça.
Gesticulei que não havia mal algum.
O tal instrutor, que eu ainda não havia encontrado por ali antes, abriu o
sorriso largo para senhora ao meu lado.
— Entregue são e salvo, senhora Ágatha.
— Obrigada, Max. Ah, essa moça aqui quer agendar horário com você.
O neto dela deu um pulo na piscina e espalhou água para o alto. Ela se
conformou em somente menear a cabeça, recriminando-o pois a água acertara
as costas do Max.
— Como é mesmo seu nome?
— Ah, sim. Antonella — respondi.
— Eu devo ter horário mais no final da tarde. Pode ser? — Max sugeriu.
— Tranquilo. Eu estou de bobeira mesmo.
— Vou pegar a agenda para conferir.
Assim que ele se afastou, eu ergui os óculos. Foi impossível não dar uma
conferida no tipão que era o Max. Ainda mais quando ele retirou a bermuda e
ficou somente de sunga. Avaliei os seus movimentos e os músculos se
contraindo e soltando numa dança segura da sua masculinidade. Ele se sentou
em uma cadeira ao lado do salva-vidas e pegou uma prancheta.
— Ele é bonito, não?
Todo o vermelho da minha pele ascendeu para as bochechas.

É
— É. Tem o corpo em dia.
— Meu marido que não ouça o que vou dizer, mas ele se parece com o
modelo da revista de lingerie que a minha manicure leva para eu comprar. Você
já viu essa revista? Eu esqueci o nome da marca.
Abaixei os óculos e encostei a cabeça na espreguiçadeira, na especial
tentativa de driblar a conversa. Em se tratando de senhoras e esse papo de “o
cara é bonito”, eu sabia muito bem onde terminaria o assunto.
O Max poderia ter as costas largas, as veias aparentes do ombro alongando-
se ao bíceps presunçosamente inchados, a barriga reta que não permitia a
bermuda se fixar na cintura, mas ele não era o Sebastián. E eu nem queria que
fosse. Aliás, não queria homem algum. Se fosse me relacionar com outro,
somente ele seria capaz de promover uma rebelião molestadora da harmonia do
meu corpo.
— Talvez eu tenha visto essa revista, sim — respondi a ela.
— Você está acompanhada?
Ai, céus! E a conversa se enveredou pelo caminho que eu suspeitava.

Almocei com a família da dona Ágatha, a convite deles. Após passarmos


horas na piscina, eu conheci a filha, genro e marido da dona Ágatha. Como a
gente às vezes dá sopa para o azar sem nem saber que está se oferecendo
gratuitamente, o marido dela conhecia meu pai. “Coisas de negócios”, ele
falou.
No mesmo instante, eu me sobressaltei. Não era especialmente incrível ser
reconhecida há quilômetros de casa como a filha desvairada. O assunto “noiva
em fuga” seria possível surgir na roda de conversa, mas, se eles sabiam, foram
discretos.
Soprei o ar em alívio quando o tema famílias conhecidas foi extirpado da
mesa, para o meu bem.
Almoçamos em um restaurante com culinária variada e não somente frutos
do mar, chegamos a um acordo, pois o rapazinho era carnívoro. Confesso que
não esperava ter um dia tão agradável depois que que ele começara com a
decepção me perturbando.
— Ela poderia namorar o Max. O que você acha, Manuela?
— Mãe, deixe seus dotes casamenteiros para outro momento.
— Querida, foi assim que nós nos conhecemos, lembra? Sua mãe que nos
apresentou no jantar das bodas de ouro dos meus avós — o marido da
Manuela a relembrou.
Às quatro em ponto, encontrei o Max no lugar combinado. Ele não tinha a
menor ideia de que possuía uma fã tão fiel a ele, que me encheu os ouvidos
com uma lista interminável de elogios dirigidos à sua pessoa.
— Pega leve comigo, Max. Esse é o meu primeiro contato com o esporte
— supliquei a ele enquanto ajeitava o cinto onde as fitas da pipa se acoplariam.
— Você disse que tem equilíbrio sobre a prancha. Vamos passar para outra
etapa da aula. Pode ser?
— Claro! Eu pratiquei stand up, ontem, com…
Nada de falar sobre o espanhol, patrão dele. Eu pretendia refrescar a cabeça
no mar e não salinizar qualquer lembrança dos nossos momentos, em minha
mente. Então, prossegui:
— Hum, na lagoa azul.
— Maravilha — ele se animou.
Assim que falou, ele foi me dando informações aos montes. Que a força do
vento era o principal para deslizar na água e, não propriamente as ondas. Que
eu não precisava estar na minha melhor forma física porque o equipamento era
leve. Contudo, como sempre existiam os prós e os contras em tudo o que
fazemos, as aulas eram essenciais, porque dispor somente da intuição seria um
perigo para qualquer iniciante.
Eu queria tanto ter ido ao mar. Acabei ficando um pouco frustrada naquele
primeiro dia de aula. Fazia parte do treino voar com o kite em terra: decolar,
pousar e controlar a pipa.
— Ah! Sério?
— Seríssimo — ele confirmou.
Passamos mais de uma hora em treinamento. Minhas coxas saíram ardendo
da aula por conta das aterrissagens e os impulsionamentos para voar. Foi
esplêndido me sentir sendo levada pelo vento, os pés livres do chão.
— Max, amanhã eu quero mais. No mesmo horário, pode ser?
— Já vou anotar na planilha. Nelinha, você aprendeu rápido a manejar a
barra de controle. Na próxima aula, podemos treinar seu equilíbrio sobre a
prancha. Quem sabe não começa a surfar na água?
— Gostaria muito!
Como o local da escola de kite ficava um pouco mais à frente do chalé do
Sebastián, nós voltamos andando pela areia, morrendo de rir das insinuações
que dona Ágatha dera a ele sobre nós dois. Como eu não estava a fim dele, a
conversa correu com naturalidade. É sempre assim, né?
Duas patas buscaram minhas pernas.
— Ozzy, garoto bonito. Você fugiu outra vez?
Max riu.
— Outro dia, foi engraçado. Ele foi parar na subida da duna correndo atrás
das garças. Quanto mais o dono dele chamava, mais ele acelerava. O senhor
desistiu no caminho e o vigiou de longe.
Agachei e permiti que ele lambesse meu rosto.
— Você é muito fofo e levado.
— Au.
Ozzy latiu como uma despedida e saiu correndo pela areia.
— Ele é lindo. Só falta falar. Esperto. Meu amigo de caminhada — elogiei.
— Às vezes, ele me segue também. Gosta de fazer amizade.
Logo chegamos ao meu destino. Eu me virei para o Max, meu pescoço
torceu para olhá-lo, ele era uns dois palmos maior que eu.
— Até amanhã, então. Obrigada pela aula. Amei, amei.
— Fico feliz.
Max foi se distanciando de mim. Abaixei a cabeça e ri ao me lembrar das
observações físicas que a dona Ágatha enumerara sobre ele. Inclinei o pescoço
para o lado e notei que as pernas dele eram um tantinho arqueadas, o que não
desabonava seu conjunto de beleza.
De repente, ele virou para mim.
Eu mordi o lábio, me denunciando.
— Você vai ao restaurante com o pessoal? É a minha primeira vez com eles.
Seria bom ver um rosto conhecido.
Cheguei a abrir a boca para dizer que não iria, eu não estava disposta a sair,
mas ele perguntou com tanto entusiasmo, que seu rosto pidão me convenceu.
— Com certeza.
— Nos vemos lá.
De cabeça baixa, não captei que dois olhos me examinavam do deck. Eu
não estava preparada para vê-lo. Meu coração deu um siricutico. Inibi a
caminhada por um instante, indefesa. Minhas pernas desfaleceram, ou
pretenderam me levar ao chão. Eu estava despreparada para encontrá-lo, ainda
mais quando o pôr do sol alaranjava o céu e arrancava a plenitude do astro,
lentamente. Aquele momento parecia tão… nosso.
No mesmo instante vi os olhos nitidamente me acompanhando, sugando
cada movimento meu.
Passei o dia pensando em como evitaria encontrá-lo. Como reagiria após
vê-lo com outra. E o momento havia chegado, impiedoso, parcial e
angustiante. Decidi que agiria naturalmente com Sebastián, como me
comportei com o Max. Seria fácil. Era só não me deixar hipnotizar pelos olhos
que costumavam me atrair para um lugar perdido onde existia apenas ele e
mais ninguém.
Fitei o rosto do Sebastián e não o odiei. Em geral, eu não era rancorosa. E
naquela situação, em particular, eu seria ridícula se me comportasse com
mimos. Ele não era NADA meu. Repeti milhares de vezes na minha cabeça na
tentativa de me convencer a não bancar a mulherzinha ridícula.
Sebastián

Inúmeras vezes durante o dia, imaginei as razões da Antonella não ter


entregado minha carteira pessoalmente. Na noite anterior, eu tinha me aberto
de alma e pensamentos para ela. Dios, e isso não era muito provável que eu
fizesse.
Pensei que tivéssemos firmado algum tipo de cumplicidade. Ela não fazia
ideia de como a nossa conversa havia sido importante para mim. Não era
possível que a mulher que me fez vir correndo do workshop apenas para vê-la,
não sentia a mesma ansiedade que a minha. Não queria dividir o momento
mais esperado por nós, o descanso do sol.
Pelo visto, não. Ela não se interessou em falar comigo mais cedo. Estava
ocupada conhecendo outras pessoas, ou um cara em especial, como os meus
olhos puderam comprovar. Ver a troca de sorrisos entre ela e o Max foi o que
bastou para eu decidir que iria sozinho ao bar com o pessoal do evento
turístico.
Onde eu estava com a cabeça quando pensei que ela aceitaria o convite
para me acompanhar?
Eu me detestei por colocar ilusões em minha mente.
Bufei de raiva.
Com o ombro escorado na porta de vidro aberta, ela me deu um sorriso
satisfeito ao ficar frente a frente comigo. Molhei os lábios. A boca não tinha
como eliminar a secura nervosa.
— Oi! Como foi o seu dia? — ela se dirigiu a mim, educada.
— Parado se comparado ao seu, provavelmente.
As sobrancelhas diante de mim se elevaram enquanto a boca deixou escapar
um:
— Ah.
No mesmo instante, pensei em como eu estava sendo idiota.
Retirei as mãos dos bolsos. Talvez eu me sentisse menos travado.
— Calebe disse que você tinha ido participar de um workshop sobre
turismo. Como é a sua área, pensei que fosse gostar.
— Em geral, eu aprecio, sim. Mas hoje foi difícil me concentrar.
— Deve ter sido porque não dormiu bem, na noite passada.
— Pode ser isso.
Eu a olhei com firmeza enquanto seus braços se abriram e os dedos das
mãos se separaram, como uma gata arrepiada diante de uma situação
estressante.
— Eu vou ter que sair. Você se importa se ficar sozinha nesta noite? Tenho
um compromisso.
Quebrei o silêncio e a idiotice imperou mais uma vez. Eu estava agindo
movido pelo ciúme? Querendo dar troco? Falando uma asneira atrás da outra?
Foi difícil admitir para mim mesmo que sim.
— Mas é claro que não. Eu também marquei um encontro.
Ela foi em direção à ducha e meu estômago enjoou. Um encontro?
Antonella iria sair com o Max?
— Ah — foi a minha vez de me demonstrar confuso.
— Olha, se você quiser tomar seu banho primeiro pra não se atrasar no seu
compromisso, eu vou tirando a areia do corpo aqui mesmo.
— Ok. Vou seguir sua sugestão.
Ela tinha areia da cabeça aos pés.
— Deixei uma garrafa de mate na geladeira. Eu reparei que você gosta de
tomar.
— Que fofo da sua parte! Eu sou carioca, né? Pena que em Jeri não tem o
biscoito Globo. Seria perfeito ficar na praia bebericando o mate e comendo o
pacote inteiro.
— Biscoito Globo? Não conheço.
— Não? Sebastián, você não sabe o que está perdendo. Quando seu hotel
no Rio for inaugurado, vocês não podem deixar de oferecer o combo mate,
biscoito Globo e água de coco para seus hóspedes, como cortesia ou no
cardápio.
Ri incentivado pelo entusiasmo dela. Senti falta da tagarelice costumeira.
— Vou anotar a dica.
— Sebastián, eu vim da minha primeira aula de kitesurf. Foi massa! — a
voz dela tinha um tom empolgado. — Mas caí de bunda no chão algumas
vezes. Depois peguei o jeito.
— Que bom que gostou.
— Tá.
Cheguei a dar as costas, mas me virei para ela outra vez ao ouvir a água da
ducha caindo. Então eu a estudei enquanto suas pálpebras fechadas não
podiam encontrar o meu olhar bobo, caidinho pela visão do corpo esguio
coberto por um cilindro translúcido e amplo. A parte de baixo do biquíni era
comportada, larga, típico modelo de mulher que pratica esportes na água. E
era sexy pra caralho. Valorizava as curvas sinuosas da sua cintura aos quadris.
Dios, dame fuerzas!
Ainda bem que eu olhava para o infinito quando o rosto dela cavou o véu
de água que a cobria. Mas eu não conseguia permanecer por mais que três
segundos sem admirar a beleza da musa. Logo fui surpreendido pela imagem
real da enxurrada tocando as costas praticamente nuas, dignando-se a se
enveredar pela entrância dos seios meio volumosos. Um flash da lembrança
dela nua no meio da sala instigou minha ereção a se descontrolar dentro da
calça jeans.
— Você está estranho. Aconteceu alguma coisa? Sua coluna voltou a doer?
— ela se importou comigo.
— Não. Tá tranquilo.
Meu único problema é ter você em minha casa e não saber se convém ou não
avançar o sinal.
Se eu ficasse mais tempo a admirando, corria o risco de dar a ela o que
ambos desejavam. Eu não estava ficando louco. Ela queria ser beijada pela
minha boca. Não era possível que ela fosse sair com outro homem.
Por outro lado, eu me peguei pensando que nem o noivo conseguiu segurá-
la em sua vida. Antonella almejava viver, se aventurar, descobrir novos ares e…
amores? Eu não costumava me enganar com as pessoas. Era um bom
observador. Não. Esse juízo que estava fazendo dela era injusto. Ela não
buscava amor, nem aventura. O que ela queria era ser feliz.
— Se precisar de remédio, pega o analgésico na primeira gaveta da cômoda.
Mais uma vez ela mostrou que era um ser humano incrível que se
preocupava com o bem-estar do outro.
— Obrigado. Acho que vou aceitar sua oferta.
— Eu sabia que sua coluna não estava lá essas coisas. Seu rosto está tenso.
Se você soubesse o motivo…
CAPÍTULO 19
Com um guardanapo, eu limpava a bermuda cargo. Celeste havia derramado
uns quatro dedos da cerveja da sua tulipa em mim. Nós estávamos em oito na
mesa e ela se sentara ao meu lado.
Desde cedo, no workshop, sua risada em um tom arrastado, irritante, meio
sensual para chamar minha atenção, atingira o efeito inverso em mim. As mãos
impróprias buscavam me alisar a todo instante. Quanto mais eu fugia dela,
mais a mulher me perseguia. Ela estava azucrinando a minha vida. Como se
não bastasse tê-la suportado o dia inteiro.
— Mil desculpas, Sebastián. Não foi por mal.
Mas é claro que havia sido.
As coisas ficaram ainda piores quando ela ultrapassou o limite da
sobriedade após uma hora do papo informal. De maneira surpreendente,
Celeste pegou um guardanapo de papel e insinuou que iria ajudar a secar
minha bermuda sobre meu membro quieto. Aquilo foi a gota d’água para
acabar com a paciência que eu tinha com ela.
— Pode deixar que eu mesmo me limpo — disse, controlando-me para
não ser rude.
No mesmo segundo que falei, tentei absorver o excesso de bebida com o
tecido da barra da minha camisa.
Ela abriu os lábios fazendo bico de peixe, meio chateada por eu não ter
caído em sua armadilha, meio incrédula por não ser interessado nela. Eu
conhecia uma dúzia de homens que gostaria de sair com Celeste, uns dois
estavam ali conosco, mas o click nunca existiu da minha parte. Nem sempre
temos o poder de comandar nossos desejos.
— Sebastián, qual é a sua expectativa para o verão? — perguntou o dono
de um hotel de Fortaleza, na outra ponta da mesa.
— A melhor possível. Já lotamos a ocupação.
— Na capital, as coisas ainda não retornaram ao normal.
Ele beliscou uma batata frita.
— Aliás, você vai participar do congresso amanhã, em meu hotel?
Evitei bufar diante de todos. Não me agradava me afastar da vila, por
razões mais que conhecidas de vocês. Antonella… Ainda mais com outro cara a
cercando.
— Já estou inscrito.
— Isso é bom.
Sair com um grupo de empresários é o mesmo que permanecer
trabalhando. O assunto não mudava e eu fiquei entediado. Sentimento esse
reforçado pela mão boba da Celeste, que se apoderou do meu ombro.
— Você está esperando por alguém?
— Por quê?
— Não tira os olhos da entrada.
Sem dúvida, eu tinha de dar razão à Celeste. Volta e meia eu deslocava o
olhar para a porta, sem me controlar. Alguns funcionários do meu hotel
tinham chegado para a confraternização mensal, que eu sabia que acontecia
nesse mesmo restaurante. A minha intuição dizia que Antonella iria, que o
encontro que ela mencionara, seria justamente onde eu estava.
E foi nesse exato momento que a mulher com vestido curto e o cabelo
castanho alisado com precisão, surgiu na entrada.
Antes que ela visse a mão feminina grudada em meu ombro, eu o
movimentei para baixo na clara indicação de que ela deveria me dar uma
trégua. Então me ocorreu… O músculo da minha mandíbula se contraiu ao
me atinar que seria possível que Antonella tivesse visto Celeste nessa mesma
posição logo pela manhã. Então o alívio veio e eu sorri. Por esse motivo ela
teria usado Calebe como mensageiro. Eu queria estar certo disso.
Atento, acompanhei os olhos da musa encontrando o aceno da Giovana. À
mesa, estavam André, o secretário do Calebe e mais quatro moças.
Ela abriu um sorriso tão doce e lindo que podia clarear o ambiente à luz
moderada.
Tentei negar para mim mesmo que senti meu impiedoso coração despertar
no peito, sorrateiro, ao vê-la. Mas, como nada é perfeito, um calafrio se
intensificou na espinha logo depois de comprovar quem surgiu ao lado dela, na
entrada do restaurante.
Então era um encontro mesmo?
Eu não queria acreditar. Não naquele instante em que a ficha caiu para
entender o motivo de Antonella ter me ignorado mais cedo. Eu devia ter dado
ouvidos ao Calebe e ao seu jeito de transmitir o recado sem ser direto. Culpa
minha. Exclusivamente minha. Por tudo que passei na vida, eu me esquivava
dos assuntos que ultrapassam a barreira da intimidade. Eu tinha de acreditar
mais nas pessoas que queriam o meu bem. Calebe era um deles, assim como a
Márcia.
Ela foi caminhando lado a lado com o Max. Não posso negar que o cara
marcava sua presença ao caminhar. Duas mulheres cochicharam e uma delas
apontou o nariz para ele. Senti um incômodo dos grandes. Era ele que estava
com Antonella, não eu.
Em um dado momento, ele espalmou a mão em um dos cotovelos dela e a
direcionou por entre uma mesa e outra.
Xinguei baixo.
Uma mescla de inveja e ciúme me abalou a ponto de eu não ouvir nada
além do meu coração reivindicando a atenção dela para mim. Mas Antonella
ainda não havia me notado. Embora eu estivesse secando todos os movimentos
dela, um a um. Do beijo estalado no ar, com o rosto encostado em cada
conhecido que se levantava para cumprimentá-la, ao momento em que ela
apoiou seu corpo na cadeira ao lado da Giovana.
Quem de fato estava fazendo o papel de stalker naquela noite, hein?
Na mesa onde estava, alguém disse qualquer coisa para mim. No instinto,
olhei para o lado e balancei a cabeça como se estivesse concordando com as
palavras jogadas ao ar.
Sem perdê-la de vista, notei quando os lábios da Antonella se curvaram
para baixo no momento em que, enfim, seus olhos expressivos notaram a
minha presença. Ela desviou de leve o olhar para a Celeste e retornou para
mim. O rosto migrou de uma felicidade genuína para o cenho franzido. Então
ficou comprovado que ela se incomodava com a mulher ao meu lado.
Sorri por dentro, mais aliviado.
Levantei a tulipa em sinal de brinde. Ela sorriu sem vontade e virou o
rosto.
E nesse joguinho de gato e rato, nós trocamos olhares intencionais várias
vezes.
— Garçom — chamei o que estava mais próximo de mim.
— Senhor.
— Leva uma rodada de cerveja para o pessoal daquela mesa.
— Sim, senhor.
Celeste olhou para mim e insinuou falar alguma gracinha, mas ela foi salva
de levar um fora pela colega de trabalho, que a chamou pedindo confirmação
de algo. Eu estava alienado a tudo ao meu redor. O único assunto que me
interessava era a moça que se sentara em minha diagonal.
Assim que o garçom serviu o grupo, eles ergueram o copo para mim,
agradecendo. Antonella preferiu continuar com a caipirinha que tomava,
depois mordiscou o canudo e voltou a sorrir para a euforia dos seus amigos.
Minutos depois, não resisti, e chamei mais uma vez o garçom. Pedi que ele
falasse com o pessoal da banda para cantar uma música em especial. Não
demorou nem cinco minutos e a vocalista disse ao microfone:
— A música que vou cantar agora é em homenagem à Antonella. Quem é
você?
André assoviou e ergueu o braço dela. As moças bateram palmas e era
possível que estivessem confabulando quem deveria ser o fã da turista. Max
olhou para mim, trocamos uma conversa amistosa. Ele balançou a cabeça em
compreensão. Se fosse para extirpar qualquer dúvida de que eu estava
interessado em Antonella, que acontecesse o mais cedo possível, por precaução.
Vi de rabo de olho Celeste espreitando meu sorriso e o olhar vidrado na
mulher mais bonita que havia ali.
— Então vamos lá. Um, dois, três…
A banda afinou o instrumento e os acordes se ajustaram. Em poucos
segundos, a vocalista começaria a cantar “Garota de Ipanema” para a moça
timidamente linda, o rosto que parecia sorver o batom para as bochechas.
Ergui um brinde para Antonella enquanto meus ouvidos se deliciaram com
a melodia da música brasileira de Tom Jobim.
Batuquei os dedos na tulipa sem tirar os olhos dela.

O pessoal da mesa que eu estava já tinha o cérebro encharcado depois de


mais de uma hora da chegada da minha perdição. O meu, estava a caminho da
mesma confusão mental. Então parei antes que fosse tarde.
A mão da Celeste me acariciou mais uma vez, retraí meu braço com o
contato. Inclinei a cabeça para ouvir o que ela diria, ainda que eu não estivesse
nem um pouco interessado.
— Vamos dançar, Sebastián?
Não com você.
— Antes, preciso ir ao banheiro.
Pude ver animação no rosto da Celeste.
O que ela não sabia era que meu plano seria deixar a minha parte da conta
com um dos caras e fugir do assédio dela, das mãos bobas que estavam me
deixando irritado. Não pensei duas vezes e assim agi.
No caminho de volta do banheiro, parei no canto do espaço onde casais
dançavam. As baquetas do baterista introduziram o ritmo para uma nova
música. Assim que identifiquei que era uma das canções do Natiruts, parei por
ali. Eu apreciava a banda, a batida do reggae me fascinava. Fechei os olhos e
senti a melodia reorganizando as emoções, o queixo levemente inclinado para
cima. A música tem esse poder de trazer o nirvana para a consciência
individual.
— Você gosta dessa balada mais lenta?
Meu corpo todo estremeceu. A voz suave, meio bamba pelo consumo das
caipirinhas que a vi tomar, falou às minhas costas.
— Acho incrível. Eu sei quase todas as músicas dessa banda de cor.
Retirei as mãos dos bolsos e me virei para quem se interessava por minhas
preferências.
O olhar dela se demorou no meu, analisando cada ponto do meu rosto.
Aquele olhar suave, estudioso, que ocultava seus segredos, voltou a estar de
frente para mim. A face banhada pela luz adicional do luar a deixava linda.
Sorri sem descolar os lábios, hipnotizado.
— Obrigada pela música.
— Foi inevitável não pedir.
Ela vacilou sobre o chinelo e preparou uma fuga.
— Bom, deixe eu ir. Não quero estragar sua noite. Sua namorada pode não
gostar de ver você conversando comigo.
Seus braços a abraçaram. O gesto corporal indicava que ela se sentia
vulnerável, exposta. Eu não gostava de vê-la daquele jeito. Não queria que
ninguém ferisse seus sentimentos. Muito menos eu faria isso. Segurança era o
que ela precisava. Eu estava disposto a dar isso a ela.
Antonella era tão graciosa. Eu queria sentir sua respiração em minha pele,
como no outro dia. Queria absorver o perfume costumeiro. Queria dar um
beijo na boca-coração. Precisava arriscar e descobrir se ela compactuava com os
meus anseios.
Esse era o momento. O meu momento. O nosso momento.
Eu me aproximei mais dela e pus as mãos em sua cintura. Seu corpo
estremeceu e reverberou no meu. Escapar de mim também não seria uma
opção para Antonella.
— E quem disse que eu tenho namorada? Já falei que não tenho. Sou livre.
— Ela não é a Mônica?
— Você pensou que ela fosse… — então tudo se encaixou. — Não. Ela
não é ninguém além de uma conhecida.
Então me senti no direito de perguntar:
— E o Max?
Antonella não respondeu de imediato e olhou para a banda, inspirando.
Voltou a me olhar com a resposta pronta.
— Ele também não é ninguém além de um conhecido.
Minha aflição se transformou em uma abençoada esperança.

Antonella

Sebastián encarou minha boca. Nós íamos nos beijar bem ali? Como
ficamos tão próximos um do outro em dias? Eu não saberia explicar o quanto
meus sentimentos estavam enredados por ele.
Ergui as mãos para cobrir seus ombros e as recriminei por isso, parando
com elas no meio do caminho. A dúvida tirou a minha respiração. Ele havia
dito que se incomodava com toques. Mas ali não era somente um gesto
descompromissado, era muito mais que um simples flerte. Examinei as escolhas
que tinha e não me ocorreu como abraçá-lo, senti-lo por inteiro colado em
mim sem nos pertencermos.
As mãos dele encontraram as minhas e me libertaram da dúvida. Ele as
levou à sua nuca e as pressionou. Beijou meu braço e iniciou um molejo tão
gostoso do corpo, me levando ao ritmo da música. Seus dedos escorreram por
meus braços, fomentando a liberação do acúmulo de apetite que meu corpo
sustentava há dias.
Então os olhos voltaram a me fitar com tanta intensidade, que minhas
pernas amoleceram, resultado das contas parcialmente acinzentadas me
desejando.
Eu queria muito, muito mesmo descobrir como seria ser beijada por
Sebastián, conhecer seu sabor. Fui incapaz de negar a mim mesma que, com
ele, eu me sentia em segurança. E todas as angústias que acumulei durante o
dia e desde o momento em que vi a mulher sentada ao lado dele no restaurante
se desintegraram em inúmeras partículas.
Encostei meu rosto no dele, nossos corpos se acostumaram um com o
outro no mesmo instante e formaram uma única massa humana em
movimento ritmado pelo reggae. Cada músculo do meu corpo relaxou ao
comando do Sebastián, sentindo o calor das mãos espalmadas em minha
lombar.
CAPÍTULO 20
— Você é linda!
Ele demorou os lábios em meu ouvido. Meu corpo arfou mais uma vez.
Desse jeito, eu não chegaria viva ao hotel. Foi arrastando a boca em minha pele
abrasada e parou na borda da minha. Tocou-a de leve, causando expectativa.
Meu. Deus. Prendi um suspiro.
Eu não planejava cortar o beijo que estava prestes a acontecer. Então não
respirei, nem gemi… nem nada. Somente senti as batidas do meu coração.
Com as pálpebras baixas, os sentidos se apuraram. Quando os lábios do
Sebastián reivindicaram que os meus se abrissem, o deleite no meu estômago se
amplificou pelo corpo em uma intensidade inigualável a qualquer outro beijo
completo que eu tenha recebido. E o nosso ainda era um quase, somente o
início que caminhava para uma eternidade de espera.
Eu tinha que me acalmar.
Mas, no instinto dos meus pensamentos, fechei as comportas abertas pelos
meus lábios. Somente um homem havia me beijado, meu ex-noivo. Isso estava
me deixando tão nervosa como se eu ainda fosse virgem e na expectativa do
primeiro ato sexual.
E se ele não gostasse do meu beijo?
Naquele instante, pareceu que eu tinha desaprendido o que fazer com a
boca, com a língua…
O corpo abraçado ao meu interrompeu a dança.
— Relaxa. Sou eu que estou aqui, com você. Ei. É o Sebastián.
Esse era o problema.
Demandei meus músculos a amolecerem. Logo fui tomada por uma onda
lenta, que injetava confiança em todas as partes de mim. A calma foi se
instalando a ponto de, enfim, minha boca se dispor a se entregar aos
movimentos delicados que os lábios dele indicavam que os meus os
acompanhassem.
Nessa evolução, as pontas das línguas se tocaram. O gosto da cerveja se
juntou à caipirinha e ambos criaram um novo sabor: Sebastián-Antonella.
Assim como o beijo foi se intensificando, o coração no tum-tum-tum ligeiro se
aliou às respirações ofegantes. A dança dos lábios encontrou a sincronia antes
ameaçada por minha insegurança. E estava sendo tão bom, tão bom, que eu
me esqueci de que estávamos em um restaurante sob as vistas de uma multidão
de olhos, inúmeros conhecidos.
Eu me permiti gemer nos lábios dele.
A atração exagerada que sentíamos não fazia sentido. Mas, naquele
momento, constatei que o que não fazia sentido era não permitir que os lábios
dele pressionassem os meus, minha boca fosse lida, esmiuçada… pela de
Sebastián. O destruidor de malas e construtor de emoções.
A música cessou. Ouvi, ao longe, a vocalista informando que a banda
tiraria uns minutos de descanso.
Nossos lábios se afastaram, embora os meus ainda sentissem o inchaço
provocado pelos dele. Sebastián encostou a testa na minha e os olhos se
fecharam. Soltou um suspiro longo, por fim.
— E agora? O que vamos fazer? — perguntei, ansiosa.
Nós estávamos sob um mesmo teto. Uma cama que havíamos
compartilhado como… amigos?
— Não temos que fazer nada. Somente deixar a vida dançar.
Ri.
— Mais seguro.
— Mais sábio.
Abaixei os braços. Não sabia o que fazer. Sebastián tomou a iniciativa e
entrelaçou nossos dedos.
— Preciso ir ao banheiro. Eu estava indo quando um certo alguém resolveu
me beijar.
Ele soltou a gargalhada gostosa que eu amava ouvir.
— Foi você que parou para falar comigo.
— Você me ofereceu a música. Eu sou uma pessoa educada. Parei para
agradecer.
Ele virou para mim e beijou a ponta do meu nariz.
— Tudo bem. Nós dois somos culpados.
— Melhor assim. Ah. Eu tenho que voltar para a mesa com o pessoal —
falei como quem pergunta “É um problema para você? São seus funcionários”.
A testa mostrou seus sulcos.
— Eu posso ir junto?
Respondi com um sorriso de alívio.
— Mas primeiro vou ali — indiquei o banheiro com o polegar.
— Eu te espero na porta pra ter certeza de que não vai fugir.
Era estranho ter beijado Sebastián e voltar para a mesma casa com ele. Eu
estava entrando em pânico. O que ele esperava de mim? Fiquei indecisa se
havia dado um passo errado.
Entrando no banheiro, conferi meu reflexo no espelho comprido da
parede. Cheguei bem perto dele e cobri os lábios com alguns dedos. Pelo toque
notei que eles ainda se encontravam dilatados e inflamados pelo beijo.
— Oi, tudo bem?
Ah, não.
Era o que faltava para a noite ficar mais agitada.
— Hum. Tudo. Eu te conheço?
— Só queria te alertar que o Sebastián não se apega a ninguém. Você
parece ser muito nova e pode se decepcionar.
Ergui o nariz com petulância.
— Ah, é? Eu tenho idade suficiente para fazer minhas escolhas.
— É provável que sim — ela me esquadrinhou. — Bom, desejo boa sorte.
Era muita informação para lidar estando com Sebastián.
Saí do banheiro com a cara normal, era o que parecia, pelo menos para
mim.
— Tudo bem?
— Tudo tranquilo.
Ele me deu uma olhada meio em dúvida.
Ok. Nada apagaria a magia do nosso primeiro beijo.

Quando nos sentamos a mesa com o pessoal do hotel, fomos recebidos


com olhares curiosos, mas, para o meu alívio, não falaram nada indevido que
nos pusesse em alguma sinuca de bico. Quem falaria? Sebastián era o chefe de
todos ali.
Como eu estava num misto de raiva da mulher que usava vestido hippie
chic a qualquer hora do dia e na expectativa do que aconteceria quando
puséssemos os pés em casa, eu tomei mais uma caipirinha e depois outra.
— Nelinha, pega leve. Você já tomou quantas dessa? — Sebastian ergueu
de leve o copo.
— Não faça perguntas difíceis — tive de soluçar. — Não estou em
condições de fazer contas.
Na caminhada curta de volta para o hotel, eu tagarelava incentivada pelas
caipirinhas a mais que consumira entre uma conversa e outra. E havia comido
pouco os aperitivos que pedimos. Então parecia que todos os repiques e
tambores do Olodum faziam uma apresentação ao público singularmente em
minha cabeça.
Antes do casamento eu havia feito uma dieta rígida, lógico que para entrar
no vestido de noiva justíssimo. Isso significou extirpar bebidas alcoólicas das
saidinhas. Então uma, duas, três, quatro caipirinhas, mais duas taças de vinho
depois que pusemos os pés no hotel… Já viu no que deu, né?
— Voze sabia que seu abdômen tem gomos?
— Vou considerar isso como elogio.
Virei sobre os chinelos para ele. O mundo girou mais rápido e a cabeça deu
uma guinada para trás, pendendo para o lado direito, por fim. Ele
testemunhou minha ceninha achando a maior graça em tudo que eu falava.
— Ahhh! Até parece que você não zabe que é bonito, Bastián.
— Você está me cantando, Nelinha? Não precisa mais.
— Voze é tão engraçado — solucei e coloquei a mão na garganta. — Ops
— alarguei os lábios em um pedido de desculpas. — E você sabe que é, hum,
bem apetitoso. Gostozo pra dedéu.
Pelo que me lembro, ele meneou a cabeça e sorriu.
— Dedéu?
— Como você me irrita, Bastián, com tantas perguntas. Dedéu quer dizer
muito.
— Talvez eu tenha que estudar o dicionário da Antonella.
Firmei as mãos na cintura, ainda matraqueando.
— Há! Essa é boa. Quem sabe o meu projeto de vida não deva zer seguir os
passos do Aurélio.
— Quem é Aurélio? Posso saber?
— Você me tira a paciência, bonitão. Mas vou te dar o benefício da
resposta. Ele foi o gênio das palavras, Aurélio Buarque de Holanda — meu
cérebro estava encharcado de álcool e a memória falhou — Ferreira. Izzo.
— Certo. Agora, senhorita professora, vamos para a cama tentar dormir.
— Ah, você quer dormir comigo em sua cama, é?
Não me recordo da resposta do Sebastián. Somente da risadinha sacana.


Acordei no dia seguinte com a cabeça latejando, nem o analgésico aliviou.
Tomei mais outro. E dormi até mais da metade da manhã. Quando consegui
sair do quarto, me enfiei em outro banho. Eu me lembrava por relances que
havia tomado banho sozinha, me segurando nas paredes do boxe para não cair.
Mas acho que ele ficou do outro lado da porta e perguntou se eu estava
bem mais de uma vez.
Para minha surpresa, Sebastián havia deixado um bilhete na bancada da
cozinha, ao lado de uma fruteira.

Tive que viajar a trabalho. Congresso de hoteleiros. Volto no sábado. Não


tivemos tempo para conversar. Passeie bastante e aproveite sua estadia, tá
bom?
Ah, eu encomendei algumas tangerinas para você comer. Parece que tem
alguém que gosta de frutas com gomos, além de biscoito Globo. Bjs, Sebastián.
Obs.: Não vá a todos os lugares antes de eu voltar. Gostaria de te mostrar mais
alguns como o Buraco Azul. Se você quer ver uma água azul de verdade, é lá.

Bati o papel na minha mão, o constrangimento acabou comigo. Em


definitivo, a tangerina era uma fruta pela qual eu não teria o menor apreço a
partir daquele momento.
Por que eu fui beber?
Quem diria que o senhor educadinho gosta de deixar bilhetes bem-humorados
logo pela manhã?
Ah? Nós ficaríamos dois dias longe um do outro?
Mas então pensei que a ida dele para o congresso era algo oportuno. Eu
precisava dar uma respirada, sabe? Sem sentir o cheiro naturalmente
pecaminoso me rondando. A distância seria bem-vinda para colocar o tico e o
teco do cérebro no lugar depois do beijo, além das sensações arfantes do meu
corpo que me dariam uma trégua.
Mas aquelas tangerinas voltaram a me assediar. E pareciam ter bocas
zombadoras.
Bom, com a vergonha perfurando meu cérebro, fui ao salão do café tropical
e me sentei à mesa no canto mais escondido possível. Naquele dia, amaldiçoei
quem quer que tenha tido a brilhante ideia de explorar o marketing da música
ao vivo. Eu precisava com premência de muita água de coco para me hidratar
e, de preferência, de silêncio. Desejo deveras impossível de se concretizar.
Algumas crianças gritavam fino, adultos riam alto, as garçonetes anotavam os
pedidos e havia uma mulher sendo assediada por um punhado de pessoas que
falavam ao mesmo tempo “É ela”.
Diante de mim, avistei Márcia repondo a mesa com bolos. Acenei e ela foi
ao meu encontro.
— Bom dia, Nelinha. Você vai almoçar conosco? Hoje temos peixe
grelhado com legumes cozidos ou estrogonofe de carne.
— Eu seria louca se não almoçasse.
Olhei para frente e a curiosidade foi maior que a discrição.
— Quem é aquela mulher ali?
— Você não a conhece?
— Nunca vi.
— Ela foi a vencedora do último reality show de moda, a Cássia Lúcia.
Soltei um gemido. Eu não estava atualizada com os vencedores dos últimos
quatro anos do Fashionistas Brasil. Minhas noites foram preenchidas com
textos sobre a história da educação e outras tantas matérias após ingressar na
faculdade.
Bem que o cabelo loiro, de um brilho não natural, que emoldurava o rosto
chapado na magreza, não me eram estranhos. Era quase certo que Heloísa
pudesse ter mostrado uma foto dessa pessoa nas redes sociais para mim. Ela
amava moda e seria a sua segunda opção de curso se não tivesse ingressado em
pedagogia na Federal.
Bati com a mão na cadeira.
— Senta aqui um pouco.
— Não posso, querida. Tenho uma cozinha para comandar. Te vejo depois?
Fiz que sim com a cabeça e nos despedimos com um “até breve”.
Fitei a vencedora do reality e, de repente, minha cabeça tilintou com uma
ideia maravilhosa. E se ela topasse doar um croqui de um vestido de noiva
deslumbrante para a sobrinha da Márcia? Ela se casaria em alguns meses e
ainda não tinha enxoval, nem vestido.
Dei uma bisbilhotada nela, sem que percebesse. Pela minha análise, a
Cássia Lúcia não era, digamos, simpática. Sabe aquele sorriso que as pessoas
revelam os dentes trincados quando são forçadas a fazer pose para uma foto? O
dela era exatamente assim.
Confirmou minhas suspeitas ao dispensar uma fã com a mão. A moça
surgira com um guardanapo e uma caneta improvisados para ela autografar. A
mocinha ficou tão sem ação, abaixou a cabeça e voltou a se sentar à mesa.
Bem, talvez eu tivesse que espremer meu cérebro para ter outra ideia
brilhante para conseguir um vestido de noiva para a sobrinha da Márcia.

Sebastián

No auditório de um hotel em Fortaleza, o congresso corria no seu tempo,


com informações preciosas a serem assimiladas, mas meu raciocínio pertencia a
outra pessoa: Antonella.
Cada momento com ela significava viver intensamente. As lembranças das
nossas conversas e olhares trocados, nada escapava da minha cabeça. E o beijo?
Não me decepcionou, embora ela estivesse nervosa. Trocamos mais um antes
de chegarmos em casa, mas a situação dela não era das melhores.
Arrastei a mão no rosto, fazendo um movimento circular com os dedos na
barba.
Fora irresistível provocá-la com as tangerinas, fazendo analogia ao meu
abdômen. Minha autoestima há muito havia se perdido entre o término do
namoro com a Mônica e o dia em que cruzei no aeroporto com Antonella.
Então fiz uma força tremenda para me concentrar outra vez no que o
palestrante se esforçava em explanar para todos nós. Ele falava sobre como fazer
o negócio se sobressair em meio a tantos outros estabelecimentos e como a área
de hotelaria faria para voltar a respirar após a pandemia dos últimos dois anos,
retornando à estabilidade, ou quase isso.
Mas eu pensava e pensava em meus lábios percorrendo a curva do pescoço
esguio da Antonella, apreciando a textura da pele rosada do sol. Depois eu
daria mordiscadas na marca do biquíni no ombro até os seios de tamanho tão,
hum, perfeitos, culminando a descida morosa em uma busca arfante ao
piercing que ela tinha no centro do abdômen reto.
Antonella era sinônimo de beleza e luxúria. Quem diria que ela
conquistaria um espaço de dimensões extraordinárias em minha mente e
sensações?
Será que ela está pensando em mim como eu penso nela?
Passei a mão pelo cabelo.
De alguma forma, eu precisava saber se ela estava bem.
CAPÍTULO 21
Eu: Você pode checar o número do telefone da Antonella pra mim? Preciso saber se a minha casa
ainda está em pé depois de quase um dia inteiro por conta dela.

Vi os três pontinhos surgindo na tela no mesmo instante em que o


palestrante encerrou a apresentação do dia. Cumprimentei uns conhecidos e
tive de participar de uma rodada de uísque com eles, no bar do hotel.
Quase uma hora após e muitas conversas sobre o ramo hoteleiro, eu me vi
sozinho e apto para saber o que Antonella fazia pelas bandas de Jericoacoara.
Calebe: Sua casa e o hotel estão inteiros. Só não sei se aquele grupo de idosos que chegou no
sábado também está. (emoji de gargalhada)

Resolvi falar ao vivo.


— Fala, chefe.
— Dios Mio. Estou com medo de saber o que Antonella aprontou.
— Parece que você deixou uma lista de atividades para ela. Bom, ontem a
Nelinha deu uma de guia turística e os levou para ver o pôr do sol na duna.
— Lá é íngreme pra eles.
— Sim. Ela pediu autorização para chamar dois funcionários para ajudá-la
a acompanhar nossos hóspedes. Acredite, eles elogiaram a atitude carinhosa
dela, segundo eles. Gostaram tanto da Nelinha que pediram para ela os
acompanhar hoje. Sabe onde ela os levou?
— Eu preciso mesmo saber?
Ouvi um riso.
— Cara, ela foi com eles, a pé, até a Pedra Furada. Você sabe que é um
bom trecho de caminhada. Ela alegou que havia ido com você pela orla e
queria fazer trilha. E lá foram mais dois funcionários junto com eles. Tive que
dar meu jeito de buscar todos na volta.
— Algum dos hóspedes reclamou?
— Que nada! Eles se tornaram tão amigos dela que, neste exato momento,
estão todos na piscina com a sua hóspede.
— Nossa hóspede — fiz questão de frisar. — Espero que Antonella não
invente de dar aula de hidroginástica. Seria a cara dela fazer isso.
— Foi por pouco, hein? Requisitei que o Max ficasse a postos. Instruí que,
caso ele visse algum movimento estranho da Antonella, era para entrar em
ação.
— E precisou?
— O que você acha?
Gargalhei e levei o copo com a última dose de uísque à boca.
— Me mantém informado.
— Sabe que, com essa atitude da Antonella, ela acabou me dando uma boa
ideia? Disponibilizar um serviço especializado para grupos de idosos.
Concorda?
— Perfeito. Dou o meu aval.
— Vou providenciar esse diferencial para o hotel.
Não demorou nem um minuto depois de encerrarmos a ligação para
receber um filme do Calebe. A linda estava com um biquíni branco e se
exercitava junto com seus novos amigos, na aula de hidroginástica. O sol
irradiava em sua pele menos avermelhada e mais bronzeada. O cabelo preso em
um coque alto liberava o rosto para ser admirado por sua beleza.
Respirei fundo.
Estava sendo difícil pra caramba não pensar nela, mas eu havia jurado a
mim mesmo que não me envolveria com ninguém à distância. Como eu disse a
ela “eu deixaria a vida dançar”.
Notei que uma morena me encarava do sofá. Ela ergueu o copo para mim,
o sorriso sedutor na parca luz do bar informava que a noite seria promissora, se
eu quisesse. Em outros tempos, eu não negaria me sentar com ela e ver o que
daria.
No meio dessa situação, fui apanhado de surpresa pelo celular vibrando no
bolso da calça. Número desconhecido. Pelo prefixo do Rio de Janeiro logo
atinei que era ela, a minha provável perdição.
Aceitei a chamada de vídeo, acomodando os cotovelos no balcão. Em um
primeiro momento, notei que Antonella me olhou de um jeito precavido. Ela
havia se lembrado do que falara sobre os gomos da minha barriga, com certeza.
Então agi com naturalidade.
— Que lugar lindo é esse que você está?
— Talvez seja um hotel à beira mar com piscina de borda infinita. Sabe, o
dono teve muito bom gosto quando construiu — ela imprimiu uma leve nota
de ironia na voz.
— Mais bonita é a paisagem ao fundo.
— Caramba, pensei que você fosse dizer que eu é que sou a beleza do
vídeo.
Ela fez biquinho. Rimos em uníssono. Essa era Antonella. Ela conseguia
apaziguar a confusão em minha cabeça com seu jeitinho solto.
— Eu não quis ser indiscreto, mas se me permite dizer, você está muito
bonita com o bronzeado novo. Pode me perdoar pelo meu ato falho?
Antonella tirou os óculos do rosto e se acomodou ereta na espreguiçadeira.
Quase que meu coração entrou em colapso. Nas íris, filetes verdes se
intercalavam com dourados enviando exuberância para mim.
— Está perdoado.
Os olhos dela desceram em algum ponto abaixo do meu queixo.
— Pensei que os executivos usavam gravatas em congressos.
Fiz careta.
— Não eu. Vestir um blazer já é muito pra mim. O que você tem feito?
Eu me levantei da banqueta e fiz sinal com a mão para que o barman que
trouxe uma nota para eu assinar.
— Hum, fiz umas amizades legais e me diverti com eles. Uma pena que
vão embora na sexta.
— Morar em hotel é assim. As pessoas são passageiras.
Ela suspirou.
Atravessei o saguão e parei diante de uma parede de vidro da altura do pé
direito elevado do hotel. Lá fora, no calçadão da Praia de Meireles, a vida
estava em movimento. Pessoas faziam exercícios físicos, as famílias passeavam,
os quiosques recebiam clientes para o happy hour…
Procurei manter o ritmo casual na conversa.
— Aonde você foi mesmo?
— Eu andei pela vila. Entrei em algumas lojas de artesanato. Descobri um
lugar bacana onde tem uns brincos lindos. Olha, comprei este aqui.
Ela aproximou o celular da orelha e um brinco de acrílico parecendo uma
gota de folha colorida estava em sua orelha.
— Ficou bem em você. Acho que sei que loja é essa. Fica ao lado da banca
de revista. A sobrinha da Márcia trabalha lá.
— Essa mesmo. Ah, eu não sabia — ela ficou em silêncio e olhou em meus
olhos. — Há uma certa pessoa que indicou vários passeios para eu fazer. O
curioso foi que essa pessoa disse que queria ir junto. Mas chispou fora. Não
entendi, porque eu vou embora em cinco dias e não dará tempo. Falando nisso,
tenho que ver a passagem com a minha vó.
Cinco dias?
— Talvez essa pessoa não tenha conseguido desmarcar o compromisso
agendado há meses e está chateada por ter tido que viajar.
Antonella me olhou fixamente.
— Sinto sua falta.
Inspirei o mesmo sentimento que ela e exalei com força, expondo a ela o
que sentia.
— Eu também. Fica mais um tempo. Suas férias não são de trinta dias? Pra
gente se conhecer — respirei fundo — melhor.
Mantivemos contato visual, nos observando até que Antonella virou o
rosto para falar com alguém.
— Ah, tchau, Max. Tá. Te vejo amanhã. Aqui, no mesmo bati-local.
Max… Sempre o Max. Senti uma pontada de… ciúme? Claro que sim!
— Hum. Vou ver com ela. O problema é pagar a estadia milionária por um
mês no hotel.
— Isso deixou de ser um problema.
Trocamos sorrisos.
— Ah, sua mala extraviada enfim chegou.
— Recebi uma mensagem. Mas obrigado por me informar.
— Às ordens. Como está o congresso? Legal?
— Bem proveitoso. Vou voltar com algumas ideias para colocar em prática.
Mas o que você não está sabendo é que inspirou o Calebe a fazer algo
interessante para os hóspedes.
Os olhos dela se alegraram e um sorriso aberto de felicidade desbancou
qualquer outro que eu tenha visto. Antonella sentia prazer em ser útil.
— Jura?

No dia seguinte, durante o coffee break, Calebe mandou mensagem.


Calebe: Temos que rever o nosso marketing sobre convidar personalidades para se hospedarem aqui.

Eu: Por quê?

Calebe: A Cássia está destratando nossos funcionários. A Ariadne, a massoterapeuta, saiu do Spa
chorando.
Eu: Como nós iríamos saber que ela era assim? Pareceu tão simpática ao telefone.

Calebe: Bom, estou de olho nela. E na Antonella também.

Senti um calafrio.
Eu: O que Antonella tem a ver com isso?

Calebe: As duas andam se estranhando. Inclusive, nesse episódio do Spa, a Antonella tomou partido
da Ariadne. Ela tem sangue quente.

De um certo jeito, gostei do que li, mesmo que ficasse preocupado que
acontecesse um escândalo no hotel e vazasse para a mídia. As duas eram figuras
conhecidas. Só que o jeito atrevido da Antonella foi o que primeiro me
chamou atenção desde o momento em que a conheci.

Eu: Eu te disse que a princesa não é tão meiga. 😁

Calebe: Conselho de amigo: não a chame de princesa, jamais. Eu não entendi patavinas do que ela
disse depois que a chamei assim. Juro que foi uma fala carinhosa, sabe? Aí ela ficou brava e disse que
não era a “Princesa da Celulite” e que essa tinha sido um clone mal-acabado dela. Antonella atropelava
as palavras enquanto explicava. Cara… eu juro que não disse que ela tinha celulite. Eu nunca faria isso.

Eu: É “Princesa da Celulose”. O pai dela é o Aurélio Alencar Braga, o empresário do ramo.

Calebe: Ah. Caramba.

Eu: Pode deixar que eu entendi o que ela quis dizer. Mas, olha, quando eu chegar aí, se for preciso, eu
converso com Antonella.
Calebe: Vou tirar a “princesa” daqui para as coisas esfriarem. Tenho que buscar um casal no aeroporto.
Pensei em convidá-la para ir junto.

Eu: Boa. A que horas você chega?

Calebe: Algo em torno das 15:00 h.

Varri os olhos pela antessala e notei que meus colegas empresários foram se
dispersando, dirigindo-se ao salão principal.
Eu: Vai começar uma palestra. Preciso ir.

Calebe: 👍

Antonella

Eu podia ser uma riquinha inconsequente, que amava ter milhares de


seguidores nas redes sociais, dar festas de luxo e me cercar de muitas pessoas em
uma falsa crença de que quanto mais “amigos” melhor, mas… Cara, quando eu
via alguém destratando outra pessoa porque se achava superior, meu sangue
fazia uma revolução dentro de mim. Não foi diferente com a metidinha do
reality show.
Naquele dia após o almoço, não tive vontade alguma de ir à praia, fazer um
passeio pelas ruelas da vila, ou ir à piscina. A apatia havia tomado conta de
mim. Então resolvi dar uma relaxada no Spa.
Antes, ainda no refeitório, sentadas à mesa, estávamos eu, Márcia e
Giovana. Ensinei à garçonete do hotel três modos de dobrar guardanapos.
— Hum, entendi. Eu só sabia fazer o formato de cone.
— Uhul! Ficou perfeito — empolguei-me com o resultado do modelo de
bolsa de talheres plissada que eu havia aprendido com a governanta da casa dos
meus pais.
— Pronto! — Giovana concordou.
— Eu gostei mais do “coroa de rei” — Márcia apontou para o que estava
em sua mão.
— Gi, agora você vai arrasar no café da manhã. O Calebe vai ficar pasmo
em ver como as mesas estarão ainda mais lindas.
A moça com cabelos encaracolados até abaixo do meio das costas era toda
sorrisos.
Ela colocou os guardanapos em uma bandeja de prata e levantou-se.
— Vou mostrar ao André.
Fitei o rosto dela e fiz de tudo para ocultar um riso.
— Ãhã.
Estava escrito na testa dela “sou a fim dele”.
— Isso. Vai lá.
Depois que a silhueta esbelta se perdeu pelo pátio, comecei a rir.
— O André sabe que a Giovana gosta dele?
— Ele também gosta dela. Paixão mútua e platônica de anos. Eles são meus
vizinhos. Eu os vi crescer e o amor aumentar.
— Falta somente um empurrãozinho. Hum. Entendi.
Dobrei os dedos na borda da mesa e carreguei a cadeira para trás.
— Acho que vou ao Spa. Estou entediada, sabe?
Ela circulou o braço no meu ombro enquanto íamos à porta.
— O motivo do seu tédio tem a ver com a ausência do meu chefe? Ele está
viajando…
— Eu sinto a falta dele, mas não sei se vai rolar por muito tempo, Márcia.
Eu te contei a minha história. Acabei de terminar um noivado.
— Sebastián está sozinho. Vocês estão na mesma casa. Qual seria o
problema?
Fiz cara de quem não sentiu um sacudido no coração.
— Quero focar no trabalho. Eu vou embora. E depois?
Ela deu um beijo em minha bochecha.
— Está bem, querida. Como achar melhor.
Ela piscou para mim. Eu dei as costas e segui rumo à área de lazer do hotel.
— Mas que seria lindo ver vocês juntos, seria — eu a ouvi dizer e sorri sem
que Márcia visse.
CAPÍTULO 22
— A sua massagem é de quinta categoria. Vou exigir que o Sebastián te mande
embora.
— Mas, senhora… — os olhos indefesos da Ariadne se expandiram em
receio.
— Amanhã eu vou voltar e espero ser atendida por uma profissional mais
gabaritada.
— Eu não entendo o que fiz de errado.
— Ah, não? — Cássia Lúcia gargalhou. — Minha querida, volte para o
curso e aprenda o certo. Na verdade, se inscreva em um melhor, porque o que
você fez aqui foi chinfrim.
Uma onda de indignação se avolumou em mim de tal forma, que nem sei
explicar como consegui me conter sem sair em defesa da Ariadne. Bem, por
algum tempo mínimo.
O cabelo loiro ricocheteou no meu braço quando ela se movimentou com
afetação e cruzou meu caminho.
— Ei! Isso que você fez não foi legal.
— Você está falando comigo? — disparou Cássia Lúcia.
Gemi para abafar o desejo de dar uma bofetada no riso debochado. E a
sobrancelha erguida? Meu. Deus. Eu conhecia de cor esse estilo familiar de
desafio. Como era irritante!
— Estou, com certeza. Somente porque ganhou um Reality Show e uns
trocados, acha que pode tratar as pessoas desse jeito?
— Uns trocados? Eu fiquei milionária, meu amor — ela gargalhou.
— Nem por isso pode sair por aí maltratando as pessoas.
— Ah, já entendi tudo. Você é coleguinha daquela ali, não? Hum. Então se
prepare porque vou falar com o Sebastián para demitir vocês duas, assim que
ele chegar. Aliás…
O corpo dela esbarrou no meu e cambaleou. Não movi um milímetro
meus pés plantados no chão e mantive meu tórax firme como o tronco de uma
árvore. Se ela achava que eu tinha medo dela, se enganou.
Ela continuou o showzinho:
— Calebe, Calebe.
Gemi com aversão à atitude arrogante da Cássia Lúcia.
Dei passagem a ela e estendi o braço em direção ao gerente, como quem diz
“fique à vontade para me demitir”, mal sabia ela que não conseguiria fazer mal
algum a mim.
Nós nos entreolhamos, olhos fuzilando um ao outro, e então ela resolveu
seguir pelo caminho da maldade.
Voltei ao palco onde aconteceu a atrocidade de palavras e falta de respeito.
Mesmo se a Ariadne não fosse uma boa profissional, o que não era o caso,
aquela mulherzinha não tinha o direito de tratar a moça com tamanho
desrespeito.
E que se danasse o croqui de noiva que vislumbrei pedir a ela para desenhar
como presente de casamento para a sobrinha da Márcia. Não iria rolar.
— Não fica assim.
Eu me sentei ao lado da massagista na sala clean e aromatizada por alecrim.
— Você não é nada disso que ela falou. Suas mãos são de fada, leves e
promovem milagres. Se não fossem, eu não teria voltado.
Um fiasco de sorriso surgiu no rosto delicado quando ela olhou para mim.
— Acredite em mim.
As mãos dela faziam um movimento repetitivo de alisar o vestido
imaculado.
Meu coração afundou.
Bati de leve com as pontas dos dedos na perna dela.
— Vamos beber um copo d’água.
— Não po-osso sair daqui.
— Pode sim. Vamos.
— Se seu Calebe não me encontrar aqui, vai ser pior.
— Eu converso com ele.
Os olhos emplastados de lágrimas se preencheram de gratidão.
Eu me levantei primeiro e a chamei com a mão estendida.
O sorriso da Ariadne pareceu mais aliviado quando ela aceitou meu gesto.

Meia hora depois, com a indignação mais branda, coloquei o fone no


ouvido e o cinto de segurança envolveu meu corpo.
— Preparada para ver Jeri de cima?E o helicóptero foi ganhando o céu.
— Uau! Ver as belezas naturais de Jericoacoara do alto é muito mais
bonito. Eu ficava babando nas inúmeras fotos. Olha as dunas e as lagoas. Fui
com Sebastián visitar essa região. Que coisa mais deslumbrante!
— Por isso te convidei para vir, Nelinha.
Nem se passou um átimo de segundo e um estrondo de riso ribombou na
aeronave. Se não fosse pelo motivo que pensei, eu o acompanharia na risada.
Fiquei assim, meio acanhada. Ele iria falar da minha ficada com o chefe?
— Não entendi sua reação. Bom, se você está rindo porque meu queixo
caiu com a exuberância do azul do mar e a cor da areia e tal, então nem ligo.
— Eu me lembrei da Cássia Lúcia. Ela estava muito brava. Você a
enfrentou bonito.
Olhei para ele de esguelha, me sentindo aliviada.
— Calebe, eu até tentei ser amigável com ela mais cedo. Juro pra você. Eu
estava na recepção com o André e experimentava a camisa que os funcionários
vão usar na festa da primavera, os que vão trabalhar. Eu dei um “bom dia”,
sorrindo. Ela nos ignorou completamente. Nem liguei. Mas depois entendi o
motivo. Ela não falou comigo porque pensou que eu fosse funcionária. Olha
que absurdo! No mundo de hoje uma pessoa ser soberba desse jeito…
— Realmente nada justifica a atitude dela.
— Cássia Lúcia é uma das pessoas mais intragáveis que conheci. Olha que
tenho uma lista de conhecidos assim.
— Tenta se manter longe dela. Vai ser melhor.
— Certo — ele pareceu genuinamente aliviado. — Você não vai demitir a
Ariadne, não é? Ela é uma excelente profissional. Conseguiu me fazer dormir
durante a massagem. Olha que isso pode ser considerado um acontecimento.
Os olhos dele alcançaram os meus e seus lábios se mexiam em riso.
— Se ela conseguiu essa proeza, então merece o emprego.
— Ufa!
Um silêncio se instalou entre nós. Minutos depois, ele passou a se
comunicar com a torre de controle do aeroporto.
— Calebe, o Miguelzinho, hum, não quero ser inconveniente, mas vou
direto ao ponto. Ele é espectro autista, não é?
— Sim, de grau moderado. Aos dois anos, ele foi diagnosticado.
— Ele é muito fofo. É parecido com você.
O ruído das hélices abaixou minha voz. Mesmo assim, Calebe captou o que
eu disse e alargou um sorriso de pai orgulhoso.
— Miguel me deu um novo sentido para a vida. Eu não gostava do meu
emprego, da minha rotina regida pelo relógio, era exaustivo. Quando ele
chegou, tive que desacelerar. Passei a enxergar a importância da família. Não sei
explicar.
— Sei como é.
— Às vezes, fico meio perdido sem saber como lidar com ele. Cuidar de
uma criança sem a mãe é difícil. Ainda estou tentando descobrir como fazer
tudo funcionar — ele buscou meu olhar. — A mãe dele morreu no parto.
Se eu achava que a minha vida era um tumulto… que egoísmo o meu. Se
havia algo que eu aprendi com a minha avó foi olhar além do meu umbigo.
— Lamento.
— Ainda não sei como evitar que as crises de ansiedade dele aconteçam. À
medida que o dia avança, ele fica mais agitado.
— Hum. Acho que sei como fazer para te ajudar.
— Como?
— Na escola onde trabalho, nós somos instruídos pela diretora a mostrar
aos alunos atípicos quais as tarefas que eles vão realizar durante as horas
daquele dia. Os passos são previamente explicados antes de iniciarmos as
atividades com eles. Mas — olhei para Calebe e notei que seu semblante era de
atenção total ao que eu informava —, eu faço isso com todos os meus alunos,
mesmo com as crianças neurotípicas, sabe? Virou um hábito. Porque gera
inclusão.
— A pior coisa para os pais de crianças autistas é ouvir a palavra
“coitadinho” ou “tadinho dele”. Isso mata qualquer um.
— Eu te entendo. Minha avó, quer dizer, a diretora da escola, nos instrui a
não falar a palavra especial, “fulano é especial”, na hora de apresentar a criança
à turma.
— Isso mesmo. A sua avó é sábia. Essas atitudes segregam o autista do
grupo.
— Exatamente. Toda semana, dois alunos da turma ficam responsáveis por
integrar o amigo ao grupo, principalmente na hora do recreio.
— Poxa! Miguelzinho tinha que estudar em uma escola assim.
— Quem sabe você vai morar no Rio! Eu poderia te apresentar a melhor
professora da cidade. Minha amiga Heloísa.
— Quem sabe, né? Por enquanto, Jericoacoara está sendo um bom lugar
para criar meu filho.
Embora conversasse comigo, Calebe estava atento ao comando do
helicóptero. Ele se calou, e eu o respeitei.
Viajamos por mais meia hora e chegamos ao aeroporto de Fortaleza.
— Se quiser esperar aqui, eu vou buscar o casal.
— Não, eu vou junto. Vocês usam alguma plaquinha daquelas que vemos
em filmes? Tipo “Sr. e Sra. fulanos”? É um bom jeito de dar boas-vindas.
Ele jogou a cabeça para trás, rindo.
— Não usamos.
Calebe retirou o fone dos ouvidos e eu imitei sua atitude. Fomos à sala de
embarque, a mesma onde vi Horácio pela última vez. Como ele estaria? Será
que me perdoaria? Era como se eu estivesse vivendo numa realidade paralela.
E estava!
Na verdade, essa nova perspectiva de vida foi sendo construída desde que
ingressei na faculdade. Parei de publicar todos os dias. Eu consegui me libertar
da necessidade da aprovação virtual. Mudei o foco do conteúdo das postagens,
revezando motivacional com meus estudos e menos fotos pessoais. Aos poucos,
os números de seguidores foram abaixando, milhares, e eu dei graças por isso.
— O casal ainda não chegou. Vou aproveitar para ir ao banheiro. Me
espera aqui, tá bom?
— Pode deixar.
Calebe deu as costas e eu ri de leve. Parecia que ele cuidava de mim como
se eu fosse uma irmã mais nova.
Conferi o lugar e vi algumas pessoas sentadas, outras zapeavam o celular,
uma senhora fazia esforço para conter uma criança em sua correria.
Em um canto da sala, havia uma loja de conveniência e um caixa
eletrônico. Em Jericoacoara, não tinha como retirar dinheiro a não ser com o
dono de uma loja que fazia uma transação bancária e fornecia o dim-dim, mas
às custas da cobrança de uma taxa. Então fui resgatar uns trocados do caixa
sem que precisasse pagar a mais por isso.
Quando me virei para voltar para onde havia marcado com Calebe…
Meu coração sofreu um abalo. Na verdade, pensei que ele fosse explodir.
Sebastián

Os olhos dela se demoraram nos meus. Foi uma reação mútua.


Ao vivo, Antonella estava mais bonita que no vídeo ou nas fotos que ela
havia enviado do passeio à Pedra Furada com os idosos. A pele mais bronzeada
realçava a cor dos seus olhos dourados. E os lábios? Cada vez que os via,
pareciam mais beijáveis.
Fui ao aeroporto testar nosso magnetismo e por que raios ele existia ou se
era coisa da minha cabeça. Passei um dia inteiro com a lembrança dos olhos
dela me cobiçando timidamente e da vivacidade que os fazia refletir o desejo de
novas descobertas. Não sei por quanto tempo eu suportaria evitar não ser
desvendado em definitivo por ela, minha mais nova e única fascinação.
E Antonella estava diante de mim, me olhando com surpresa. Nem mesmo
eu entendia como e quando foi que decidi largar para trás o congresso e ir ao
encontro dela, no aeroporto. Cortei a cidade para vê-la por poucos minutos,
tão ínfimos que eu poderia me arrepender da minha súbita ação.
Quando foi a última vez que fiz uma loucura por mulher?
Eu nem me recordava se já havia feito alguma.
Valeu cada minuto que gastei para ter ido ao encontro dela, porque a falta
de ar que senti de repente ao ver o sorriso lindo que ela deu para mim, foi a
resposta que valia milhões.
Então fui caminhando até Antonella sem desviar o olhar.
— Não esperava te ver.
— Vim checar se você está bem sem mim — apanhei-me dizendo.
Ensaiei falar que havia ido entregar documentos a Calebe. Até imprimi
alguns e assinei para ter a desculpa perfeita, mas na hora de pôr o plano em
prática, não consegui mentir.
— Você fez um trabalho tão incrível motivacional comigo antes de viajar,
que estou suportando sua ausência até que com facilidade.
Eu a medi de cima a baixo e gostei do que vi. A saia me deu o benefício de
ter o deslumbre de uma porção das coxas torneadas.
— Você está se alimentando bem?
— Não sei como vou viver sem a comida da Márcia quando for embora.
— Já falamos sobre isso. Você não precisa ir embora na semana que vem.
Ela fez um movimento de encolher o dedo para ela, no gesto claro de que
era para eu me aproximar. Tive que suprimir um riso. Esse jeito dela me
cativava demais.
A mão da Antonella moldou meu ombro e seu rosto se aproximou do meu.
Minha pele ficou em chamas.
— Não sei se você sabe, mas eu estou hospedada de favor. Acho que já
mencionei — ela falou baixo, com a boca tão próxima ao meu ouvido, embora
não tocasse seus lábios em meu rosto.
Sua voz tinha uma mistura de um timbre doce e sensual, nem sei dizer o
que provocou em mim, acho que quase desfaleci.
— Não é educado extrapolar o tempo previamente acordado, sabe? — ela
continuou.
Na realidade, o que eu sabia era que recuperar os milhares de pedaços
desfeitos da minha mente para articular alguma palavra seria tarefa árdua.
— Tenho certeza de que o dono não irá se importar.
Por azar, ou sorte, não sei bem o que dizer, o contato se quebrou. Antonella
deu um longo passo para trás. A chegada do Calebe esfriou o clima envolvente
que se formava entre mim e ela.
— E, aí, chefe. Não contava vê-lo aqui.
Eu conhecia todas as expressões do Calebe e, posso garantir, que o sorriso
curto que ele deu refletia seu pensamento “Vai em frente”. Mas, como sempre,
sua discrição o fez manter suas palavras todas na mente. Por isso Calebe era
meu melhor amigo, mesmo que ele não soubesse dessa minha consideração por
ele de forma clara.
— Vim lhe entregar os documentos que enviou para eu assinar.
Outra vez ficou estampado no rosto dele que sabia o real motivo de eu ter
me despencado do hotel direto para ver Antonella.
— Ah, claro — sem hesitar, ele estendeu a mão e pegou o envelope. —
Você vai voltar para Jeri, Nelinha?
A discrição do Calebe foi por água abaixo.
Antonella piscou freneticamente.
— Ah, claro que vou.
Não retruquei nem concordei. Não seria má ideia se ela ficasse. O que eu
mais queria era passar horas com Antonella e sentir seu arrojo por viver cada
minuto. A energia de sua juventude estava sendo como um combustível de
motivação para mim.
Mas não a convidei. Tinha dúvidas se não estaria avançando rápido demais.
Eu notava a reticência dela.
— Amanhã vou pra casa — aticei.
— Vou te esperar ansiosa.
Ela suspendeu os pés e pousou os lábios no canto da minha boca. Piscou e
foi em direção ao grupo.
Ver Antonella e não poder beijá-la como eu queria era como acordar
disposto a dar um mergulho no mar e a ressaca impedir.
Sobre o ombro, ela deu um sorriso de despedida antes de ajudar a senhora
a levar a mala para o helicóptero.
CAPÍTULO 23
— Fizeram uma boa viagem? — perguntei a ela por chamada de vídeo.
Com os braços debruçados no balcão, vestida com uma camisa igual a que
os funcionários usavam, ela respondeu:
— Melhor impossível.
Parou de falar, esticou a coluna e sorriu para alguém.
— O que você está fazendo na recepção?
— Hoje é folga do André. Ainda bem, né? Esse menino não descansa
nunca.
Lógico que ela sorriu daquele jeito que a boca se estendia sem separar os
lábios.
— Que injúria. Meus funcionários são tratados com respeito e de acordo
com as leis trabalhistas.
— Eu sei. Você é o melhor patrão que existe. Só ouço elogios.
— Bom saber. Tento fazer o meu melhor. Onde está o Jeremias?
— Parece que a mãe dele passou mal, mas já está vindo. Aí pensei em dar
uma ajudinha aqui, se o chefe não se importar.
— Mas não feche nenhuma reserva, certo? Direcione para o setor
responsável.
— Tá com medinho de eu agendar o mesmo quarto para mais de um
cliente?
É claro.
Virei de lado na cama e apoiei o rosto na mão. Ajeitei o celular sobre o
travesseiro. Foi o tempo de eu presenciar ao vivo a cena lamentável que ocorreu
a seguir.
— O que você ainda está fazendo aqui? Ah, já sei. Está cumprindo aviso
prévio.
Pelo ângulo que Antonella havia apoiado o celular encostado a um vaso de
plantas, eu pude ver Cássia Lúcia se apossando do seu pior veneno para tratar
minha garota com desdém. Ponderei por três segundos se eu interferiria na
defesa dela, mas não foi necessário.
— É verdade. Fui mandada embora por tratar as pessoas com humanidade
e respeito.
— Querida, o mundo não é para os fracos — Cássia Lúcia empinou o
corpo e o nariz.
— Fracos de quê? O que você considera fraqueza?
— Agir com burrice como você fez. Tinha que passar para o meu lado, dos
fortes.
— Hum, entendi. Sabe, Cássia Lúcia, eu prefiro não vender a minha alma
para estar ao lado dos fortes. — Antonella fez aspas com os dedos. — Li sua
biografia e tive a grata surpresa de saber que você já esteve do lado de cá, dos
fracos. Pense nisso.
Foi como um tiro certeiro na mulher soberba. Cássia Lúcia não esperava
por uma reviravolta na conversa.
O telefone soou no balcão e dispersou a tensão criada pelas duas, ou
melhor, pela mulher que se achava a rainha dos fashionistas. Eu pagaria
milhões para ver a cara dela quando descobrisse quem de fato era a moça que
ela humilhava, no sentido de sua posição social. Porque “A Musa de Jeri”
demonstrou ser uma pessoa admirável que ia além das suas posses.
Os dedos da Antonella abraçaram o fone.
— Agora se me der licença, preciso trabalhar.
Boa, garota!
— Chefe, preciso atender a ligação.
Cássia Lúcia trincou os dentes e não esperava me ver na tela do celular
quando minha funcionária se despediu de mim.
— Depois nós nos falamos — a hóspede intragável me fitava surpresa. —
Boa noite, Cássia Lúcia. Espero que esteja apreciando a estadia no meu hotel.
Pessoas assim não descem do salto, então ela abriu seu sorriso mais falso.
— Não poderia ser diferente. Estou no melhor hotel da região.
Cássia Lúcia se despediu e me deixou a sós outra vez com Antonella. Como
ela falava ao telefone, resolvi desligar, não sem antes dar uma conferida no jeito
atencioso com que ela falava com um possível cliente. Não é que ela levava
jeito para trabalhar em hotel!? Não poderia ser diferente. Era nítido que ela era
uma pessoa gentil.
Minha responsabilidade me incitou a levantar da cama e responder os e-
mails recebidos durante a tarde. Forcei estalar o pescoço, virando o rosto para
os dois lados, o ombro deu uma leve inclinada para suavizar a dor que me
incomodava. Parecia que havia algo que estava travando meu movimento.
O alívio momentâneo veio.
Desde novo, eu sentia desconforto na lombar, em alguns momentos a
cervical chiava. Busquei a ajuda de vários médicos e o veredicto foi unânime:
minhas dores estavam ligadas ao meu emocional. Por isso tomei a decisão de
morar num lugar bucólico, onde a natureza era o meu quintal, mesmo que a
mi abuela tenha ficado a um oceano de distância de mim.
Aprendi com o tempo a me levantar de meia em meia hora enquanto
estava trabalhando para aliviar a tensão da coluna, recomendação de
tratamento fisioterapêutico.
Naquela mesma noite, meu celular vibrou sobre a mesa, retornei para ver
quem me chamaria após à meia-noite. Juro que demorei a entender de qual
aplicativo ressoou o chamado. Até que me atinei para o que acontecia. Fazia
tanto tempo que eu não mexia nele, que me esqueci como o havia configurado
para me alertar das mensagens. Nem sei por que o retirei do silencioso, para ser
sincero.
Mas a curiosidade foi maior e então apertei o ícone rosa-choque e ingressei
no mundo da paquera.
Por Dios! Gargalhei ao ver quem me convidava para iniciar uma amizade.
O que ela estava fazendo no “Mais que um Match”, o aplicativo que tinha
como filosofia “Encontre seu par perfeito e duradouro”?
Há alguns anos, eu havia criado um perfil para encontrar o par perfeito.
Estava cansado de me sentir só e achei interessante buscar uma mulher que
quisesse um relacionamento mais duradouro nesse aplicativo. Foi então que
conheci a Mônica e passamos um longo tempo juntos.
Mas a Antonella... Não sei se gostei de vê-la ali. Achei um tanto estranho.
Não parecia fazer seu estilo, considerando o histórico de um único namorado.
Então me ocorreu que ela… Será? Será que estava em busca de uma nova
companhia? E… nós?
Curioso, chequei o perfil dela e não havia likes.
Fiquei intrigado.
Arrastei o dedo para cima e aceitei o convite, vários corações escalaram a
foto da deusa de Jericoacoara, na tela cheia.
“Procura-se um homem com olhos cristalinos, barriga com “gomos”, além de

ser gentil com as mulheres.”

Ri alto ao ler a mensagem de introdução da linda. Era o jeito extrovertido


da Antonella dando início ao nosso bate-papo, supostamente o primeiro, o de
reconhecimento da área. Embarquei na conversa sedutora, sem muito pensar.
“Você buscou o perfil certo. Sou tudo isso e mais um pouco.”

“Uhul! Mas o que seria esse mais um pouco?”

“Vai depender de você.”

“Então sou eu quem dita as regras?”

“Digamos que eu sou… um cavalheiro?”

“Ou você é o tipo do cara que fala o que a mulher quer ouvir?”

“Posso ser de tudo um pouco, mas prezo pela verdade.”

“Então você não é tão sensato quanto tentou demonstrar. Um falso santinho, é?”

“Há. Não é bem assim. Sou um cara que pode se apaixonar se também for correspondido.”
Mas a pergunta que não queria calar era “O que você está fazendo aqui?”.
Preferi não invadir a privacidade dela. Talvez eu não quisesse ler o que ela
escreveria.
Não gostei nadinha do arrepio que cruzou meu corpo.
Estufei as bochechas.
“Nelinha, preciso dormir. Amanhã nos vemos.”

E não era enganação. Minha coluna reclamava por descanso.


“Está bem. Bons sonhos, Bastián!”

“Boa noite, Musa de Jeri!”

Recebi um coração e um beijo de volta.


Antes de sair do aplicativo, dei uma conferida na foto do perfil dela.
Somente então notei que a nova usuária vestia o uniforme da escola onde
ministrava aulas para as crianças e não algo sensual. Ali era simplesmente
Antonella.
Sem sono, decidi assistir televisão. Peguei o controle e zapeei os canais. Para
minha surpresa, quem estava na tela?
— O senhor fechou um contrato que vai inserir a Alencar Braga entre as
cinco maiores empresas de celulose do mundo. Existe ainda alguma meta de
crescimento para um futuro próximo? — a repórter instigou o executivo a
responder.
— O empresário que se acomoda em sua administração não prospera. O
mundo dos negócios é cíclico. É preciso renovação.
O pai da Antonella, não estava equivocado em sua resposta. Quem fica
parado no tempo é atropelado pela concorrência.
— Senhor — um repórter de outra emissora o chamou no último minuto
da prorrogação —, o senhor sabe o paradeiro da sua filha?
Eu sabia muito bem a resposta.
Se o pai da Antonella tivesse o poder de perfurar os olhos de outra pessoa,
naquele momento ele o faria.
Antonella era muito mais rica do que eu cogitava que fosse. Se ela quisesse
ser uma versão aprimorada da Cássia Lúcia, ela teria as cifras no banco a
beneficiando. Mas ao contrário disso, ela era uma pessoa que exalava
humildade com todos.
Passei a admirá-la mais do que antes.

Antonella

Soltei um suspiro frustrado.


Ver Sebastián no “Mais que um Match” não me agradou. E ele respondeu o
like tão rápido que eu não acreditei. Fiquei meio sem saber o que fazer. Nunca
havia mexido nesse aplicativo.
Foi tudo culpa da Heloísa. Ela mandou mensagem avisando que Sebastián
estava inscrito e que era para eu dar uma mexida lá e ver qual era a dele. Que
eu ficasse esperta para não me envolver em furada. Mas também me incentivou
a criar um perfil, alegando que o aplicativo seria diferente dos outros, já que,
quem estava ali, teria intenções mais sérias em um relacionamento.
Ainda fiquei me perguntando em que ponto eu me perdi entre a nossa
primeira conversa e eu negando, e a mensagem que recebi com o print e senha
do meu perfil. Ela se adiantou a mim e fez meu cadastro.
E eu queria por acaso que desse match com alguém? Nem nas redes sociais
comuns eu estava mexendo, quem dirá tentar encontrar o par perfeito. Ficar no
anonimato estava sendo tão bom quanto comer pipoca de cinema.
Bom, de uma certa forma lá estava a curiosidade se agarrando a mim. Fui
impedida por esse ser invisível que me compeliu a checar se ele… se Sebastián
estava cadastrado no perfil de encontros como ele afirmara. E por que motivo
estaria? Em minha humilde definição de beleza, ele era lindo de um jeito que
não precisaria de cambalacho virtual para dar um rolezinho por aí.
E, para minha surpresa, quem estava lá, todo charmoso, com uma foto de
cair o queixo. O rosto virado de perfil, a camisa roxa semiaberta e seu cordão
de sempre.
Corri com a porta de vidro da varanda no trilho e passei a chave, trancando
a casa. Fechei a cortina e fui ao quarto. Descansei as costas na cama e puxei o
lençol até os seios.
Comprimi as pálpebras o máximo que pude na esperança do sono chegar.
Ele pairava sobre mim, mas parecia que uma barreira invisível de pensamentos
o impedia de se aproximar. Eu pensava no meu encontro inesperado com
Sebastián no aeroporto, em como ele fazia meu corpo derreter com o calor
dele. Por pouco não havíamos nos beijado outra vez. A mágica que acontecia
quando nos víamos era algo inexplicável.
Ele foi me ver, repeti essa frase uma dúzia de vezes no restante da tarde,
como uma nota escrita para eu me lembrar incessantemente.
Nem imaginei um dia ficar com as pernas molinhas por um homem que
não fosse meu ex, se é que fiquei algum dia assim por ele. E estava
acontecendo. A cautela em não me envolver com ninguém no espaço
minguado de tempo estava se dissipando dia após dia, a cada conversa, a cada
olhar, a cada toque.
Eu quase me sentia feliz vivendo essas emoções novas. Mas, por mais que
eu não tivesse afinidade com meus pais, eles faziam falta, porque eram a minha
família, poxa.
Tampei o rosto com as mãos.
Ficar ou não ficar um mês com Sebastián?
Jamais me considerei sentimental em excesso, talvez um pouco covarde.
Acomodada, decerto. Mas nenhuma vez sequer deixei de amar meus pais
apesar de todos os ruídos no nosso relacionamento.
Uma agonia apreensiva foi investindo tristeza em mim e culminou em
lágrimas. Agarrei o travesseiro, soluçando de tanto chorar.
Era difícil ignorar que eu me sentia só, embora tivesse conquistado novos
amigos. A minha base estava distante. A sensação do desamparo era como se eu
tivesse pisado em um porco-espinho-marinho, de tanto que doía.
CAPÍTULO 24
Após extravasar a tristeza, eu estava oitenta por cento melhor. Nada como pôr
para fora o que pesava no peito.
O dia nascera com umas nuvens distraindo o sol a trabalhar em sua maior
potência. O mesmo não posso dizer dos funcionários do hotel, que estavam em
um pique de dar inveja. Chegara o grande dia do baile, festa, não me recordo
como eles nomeavam a noite.
A pedido da Giovana, fiz dobraduras de papel em formato de flores.
“Nada como ter uma professora na equipe de organização”, disse ela.
Fiquei tão satisfeita por poder ajudar!

Na vila bati um papo com as moças da loja de bijuteria. Fui conferir de


perto quem era a sobrinha da Márcia.
— Que coincidência incrível! — Luiza falou, animada.
— Não é?
Luiza me acompanhou até a porta. Sua aparência física era diferente da de
Márcia, tanto que nem de longe passou pela minha cabeça que elas fossem
parentes. A estatura baixa e a pele morena eram o oposto da estética europeia
da tia. Depois me atinei que a Márcia fora visitar Jericoacoara e por ali
permaneceu. Casou e não teve filhos, mas era fascinada pela sobrinha e a
adotou após os pais irem morar no Sudeste.
— Você vai à Festapé da Primavera do Aroma Marinho? É o melhor da vila.
— Claro. Estou louca para que chegue logo.
Ela meneou a mão.
— Que pergunta, né? Você está hospedada na casa do Sebastián.
Sorri.
— O que devo vestir?
— Qualquer coisa que você vestir vai ficar lindo em você. Você é bem
afeiçoada. Mas se prepara para dançar um forró.
— Um vestido leve, então.
— Pronto.
— Te vejo então mais tarde. Aí vou conhecer o João Guilherme.
— Nem me fale dele. Hoje, estou apurrinhada com meu noivo. Brigamos
logo cedo.
— Até lá, vocês se acertam.
Os olhos reviraram em suas órbitas.
— Vamos ver. Bom, volte mais vezes na loja antes de ir embora, Nelinha.
Dei dois passos com os chinelos na areia, me afastando da minha perdição.
— Não, não, não. Eu vou à falência se vier aqui todos os dias — falei ao
mesmo tempo em que equilibrava a pequena sacola nos dedos.
Ela riu e acenou se despedindo. E eu? Saí perambulando sem destino pela
rua movimentada por turistas. A vila estava abarrotada de gente. Bom, era
sábado. Natural que as pessoas fossem em dezenas aproveitar os encantos da
natureza. Até que me deparei com uma banca de revista no estilo tropical.
Adentrei no pequeno espaço, bati o olho nas revistas e…
— Que desgraça! — murmurei, arrancando uma revista da prateleira.
Onde a Princesa da Celulose se escondeu após abandonar o noivo no altar?
Passei os olhos nas linhas, pulando uma palavra aqui e outra ali, e não
gostei do que li. Insinuaram que eu havia partido com outro homem para a lua
de mel. A maior especulação era sobre onde seria o destino do novo casal. Essa
fofoca estava ficando cada vez pior.
Quando iriam me deixar em paz? Há uns três anos eu me comportava
como uma lady. Então me ocorreu que acabei dando de bandeja a notícia
bombástica para os abutres.
Fui contando quantos exemplares existiam na banca. Meu dedo terminou
quando falei mentalmente oito e a ficha foi caindo. Se no interior do Ceará
havia essa quantidade de revistas, imagina nas capitais do país?
— Você quer que eu guarde as revistas, Nelinha?
Ui!
— Puxa vida, André. Não chega de fininho assim, não.
Timidamente, ele sorriu.
— Eu já estava aqui quando você entrou. Meu pai é o dono da banca.
— Ah! Mas, não. Deixa as criaturas aí mesmo. Não posso ficar me
escondendo o resto da vida, né?
Mesmo assim, ele retirou o fardo de revistas e o levou para baixo do balcão
do caixa. A atitude empática do rapaz me deixou emocionada. Perdi as palavras
entre a garganta e a boca.
Quando eu ia agradecê-lo, avistei um sorriso se avolumando no rosto do
André como uma onda que vai atraindo água e cresce progressivamente. Não
tive dúvidas para quem ele sorria.
— Oi, Nelinha! Você, por aqui?
— Matando o tempo, Gio.
Giovana segurava algo envolto por um tecido amarrado no topo.
— Dé, trouxe seu almoço. Sua mãe pediu pra eu te entregar antes de entrar
no trabalho.
— Obrigado, Gio, por trazer.
— Sua mãe tá a gota, hoje. Disse que seu pai tá aluado e esqueceu sua
marmita sobre a mesa antes de ir para Fortaleza.
André não era de muitas palavras, então somente sorriu. Mas aquele brilho
de encantamento pela Giovana não debandava do seu rosto por nada. Mais que
depressa, preferi me despedir e deixar os dois sozinhos.
— Vejo vocês no Festapé?
— Com certeza — Giovana tomou a iniciativa da resposta.
— Pronto — respondi amando falar como eles.
Realizada a despedida, atravessei a praça e fui explorar algumas vielas.
No caminho, meu coração se alegrou ao ver Miguel no pátio do colégio.
Aos sábados, a diretora abria a escola para recreação com as crianças, o
propósito era ajudar os pais que precisavam trabalhar, o que era o caso do
Calebe. Eu até havia me prontificado a cuidar do menino, mas ele alegou que
eu tinha de aproveitar meus últimos dias da viagem. Meu coração ficou partido
em pensar que meu tempo ali estava terminando.
A professora o ajudava a pular de um pneu a outro. Ela trabalhava a
coordenação motora ampla dele.
Cheguei bem perto da grade, ao fundo um cavalo-marinho gigante pintado
na parede me observava. Então foi uma surpresa de verdade quando ele sorriu
ao me ver. Com o passar dos dias, fui ganhando sua confiança e ele começou a
me permitir tocá-lo.
Então ele apontou para mim. Estalei um beijo nos dedos e estendi a mão
diante do meu rosto. A professora sorriu e disse algo no ouvido do pequeno.
Em seguida, Miguel gesticulou um tchau, eu retribuí, com o coração batendo
de felicidade por vê-lo descontraído.
No caminho de volta ao hotel, mais à frente, detectei um pequeno
tumulto. Fui me aproximando e vi, nada mais nada menos do que a atriz que
interpretou a adaptação do livro de romance predileto da minha amiga.
No mesmo instante, saquei o celular do bolso e enviei a foto para Heloísa.
Ela iria surtar quando visse.
Parei por um tempo mínimo para analisar o comportamento da Sabrina
Muniz. Sorridente, ela sorriu para não sei quantas selfies antes de conseguir
voltar a passear com seu namorado. Olha, ela era o oposto da intragável Cássia
Lúcia, a rainha da arrogância.
Ri com gosto ao me lembrar que eu estava cumprindo o suposto aviso
prévio após ser demitida.
Que se danasse ela!
O sol estava a pino. Meu estômago roncava cada vez mais alto. Os pés
imploravam por um descanso após o “caminha e para” pelas ruelas, o chinelo
chiava ao encontro com as solas dos pés. Então fui embora. Ainda assim, um
som agudo chamou minha atenção, me levando ao seu encontro.
Ah, coitadinho!
Agachei e notei que estava machucado.
— Idiota — ele chiou.
— Ei! Eu só quero te ajudar, seu mal-educado.
— Merda.
— Mas que boca suja, hein, garoto?

Sebastián

Nada melhor do que chegar no canto da gente.


Desci do helicóptero e inclinei o corpo para a frente.
— Deixa eu levo sua mala. Já vi que a coluna não está cem por cento —
Calebe se ofereceu.
— Nunca esteve. Mas é que meu corpo estranha um colchão diferente. Aí,
piora.
— Chegando em casa, vai melhorar. Cem por cento — ele frisou.
Aquele sorriso meio sarcástico, meio de zombaria, meio sacana, se
desenhou na boca do Calebe. Captei logo a mensagem de que ele estava
pensando que minha cama me aguardava, com a probabilidade de não me
deitar sozinho.
Incomodado, eu me mexi, jogando o peso do corpo de um pé para o outro.
Faltavam poucos dias para ela voltar à realidade e eu, à minha. Era
desnecessário que as pessoas comentassem sobre nós dois, já que eu nem tinha
ideia do que aconteceria no futuro. Era mais sábio manter a discrição.
— Pelo visto, vou ter que esperar por mais alguns dias para a coluna
regularizar a dor. O sofá me espera — fiz careta. — Aliás, e a Antonella?
Calebe cruzou um braço no peito e puxou a barba para baixo.
— Que está passando?
— Melhor você ver com seus próprios olhos.
— Você está me assustando, Cabele.
— Vou adiantar que há um hóspede na sua casa.
Absorvendo as palavras dele, me arrepiei. O que Antonella havia
aprontado?
Se a minha vida era um oásis de chatice de tão pacata, com Antonella ela se
transformara em emoções diversas, uma seguida da outra.
— Obrigado, Calebe. Pode deixar que eu levo a mala. Vou usar a passagem
secundária.
— Ok. Volto mais tarde para checar se está tudo em ordem para o evento.
Coloquei uma sacola sobre a mala. Nela havia um presente para Antonella.
Em vez de seguir pelo caminho que me conduziria ao pátio do hotel,
atravessei por outro e segui em um corredor que se abria para o hall de entrada
do meu chalé. Abri a porta principal na espera de encontrar alguém no meu
sofá. Mas não foi o que aconteceu e a curiosidade tomou uma proporção
maior.
— Antonella?
O interior do chalé estava silencioso. Agucei a audição e ouvi o som do
chuveiro. Era provável que ela estivesse no banho. Para evitar outro
constrangimento como do outro dia, bati uma vez à porta.
— É o Sebastián. Cheguei.
— Ah, que bom! Fez boa viagem?
— Siii.
— Já vou sair do banho pra você contar como foi no congresso.
— Certo.
Não. Não foi um erro permitir que Antonella se hospedasse em meu chalé.
Igualmente não foi errado sentir a voz dela completando um vazio existente em
mim. Há tempos não ouvia alguém me receber com tanta euforia, ao menos
era o que a voz dela demonstrava. Essa sensação de ter alguém me esperando
me agradou mais do que eu previra.
Sorrindo, passei a mão na barba.
Em seguida, fui ao quarto para me livrar da mala e da sacola em algum
canto. Entrei meio ressabiado, mas a tal visita não estava em lugar algum.
Calebe só podia estar de sacanagem comigo.
Mais aliviado e ansioso para ter a brisa marinha envolvendo meu rosto, o
deck foi meu próximo destino. Chegando lá, fechei os olhos e sorvi com
bastante vontade o aroma que tanto me trazia bem-estar.
— Idiota.
Hã?
No instinto, virei para o lado. Olhei por mais tempo para minha frente
entre a castanheira e uma espreguiçadeira, avaliando e desenhando em meu
cérebro como ele havia parado ali. Eu não podia acreditar. Estava claro que eu
me encontrava diante de...
— Antonella! — bradei.
CAPÍTULO 25
— Eu posso explicar.
— Então comece.
— Eu estava andando pela…
— Nelinha, vá direto ao ponto.
O nariz pequeno franziu como quem indaga “Vai começar a se estressar?”.
Eu estava um pouco, sim, desorientado. Mas era pelo fato de ser algo ilegal.
Pensar em agir fora dos conformes com a lei não estava na minha cartilha de
vida como era usual na do meu pai. Lidar com uma situação atípica como
aquela criava uma opressão de lembranças ruins em minha mente.
Ela me encarou fixamente e suspirou.
— Certo.
— Idiota! — o “convidado” interferiu na conversa.
— Cala a boca! — nós dissemos em uníssono.
— Merda — ele nem se importou em calar o bico.
Bem, mediante à situação hilária, como eu não soltaria uma gargalhada?
Enfiei as mãos nos bolsos da calça e inclinei a cabeça para trás, rindo.
— Ai que alívio. Eu pensei que fosse ter que passar a noite no mar à deriva
esperando um barco salva-vidas me levar embora. Porque, olha, sua cara não
estava das melhores quando te vi.
Estreitei nossa distância. Eu não queria transmitir a imagem de um cara
intransigente. Pelo pouco que conhecia da Antonella, sabia que ela não havia
agido por mal. Ainda assim, alguém precisava ter o mínimo de racionalidade.
— Nelinha, criar papagaio em cativeiro é crime. Nós não podemos ficar
com ele aqui. Temos que levá-lo para a autoridade competente.
— Só até a asinha dele ficar curada. Por favor. A veterinária foi tão gentil
em cuidar dele sem cobrar nada. Ela é uma hóspede e pode ficar chateada se
nós o mandarmos embora daqui.
Eu a encarava, em dúvida. Meu semblante dizia que não iria ceder ao seu
apelo.
— Como pode um dono de hotel no paraíso tropical brasileiro não ter um
papagaio?
Ela usava cada argumento…
— Onde você o achou?
— Dentro de uma caixa na rua, largado. Coitadinho.
— Para um coitadinho, ele tem a boca — balancei a cabeça me corrigindo
e continuei —, o bico bem sujo.
— Que doido! Não é?
— Muito.
Repito. Muito mais louco era ter um papagaio em minha casa.
Fui surpreendido por um abraço.
— Senti sua falta. De verdade.
A voz dela foi abafada pelo tecido da camisa ao encostar a face em meu
peito. Antonella cheirava incrivelmente bem.
Uau! Eu havia me esquecido que ela adorava um contato físico.
Aquela sensação de incômodo quando alguém me abraçava ainda não havia
apartado totalmente de mim. Em um primeiro momento, minhas mãos não se
moveram do bolso. Mas quando dizia respeito à Antonella, ela tinha o poder
de quebrar qualquer barreira existente, esfacelando uma a uma das minhas
resistências. Olha se meu coração não estava querendo me pregar uma peça.
— Eu também senti.
Mas antes que eu pudesse tê-la em meus braços, a campainha se espalhou
pela casa e chegou ao deck. Foi uma péssima hora para quem quer que fosse
me visitar.
Ela deu um passo para trás e se adiantou.
— Deixa que eu vou ver quem é.
Anuí com ela, pesaroso. Meu corpo tinha esperanças de saciar meu desejo
de senti-la e beijá-la…
Suspirei.
Sem escolha, fui checar de perto o papagaio-bico-sujo. Assim que fosse
possível, eu entraria em contato com o órgão responsável por receber animais
silvestres para seus cuidados. Era somente o tempo de convencê-la ou…
respirei fundo ao me lembrar de que ela estava prestes a ir embora; algo que
passou a me angustiar.
Eu não entendia como uma completa desconhecida poderia preencher
espaços vagos dentro de mim. Sempre me considerei um homem estóico.
Ainda que não seguisse a cartilha emocional, vê-la em casa quando eu cheguei
foi no mínimo bom.
Observei o papagaio andando na gaiola. Aposto que Calebe havia
conseguido a casa do meu novo hóspede na loja de rações. Aproximei o rosto e
admirei a pelagem verde. Quem seria o dono dele? Mas se ele estava
abandonado na rua… pensei em perguntar como a ave se chamava, mas não
seria agradável ouvir uma das duas palavras do repertório escasso do seu
português.
— Crrác crrác! — o papagaio soltou o som característico.
Antonella e suas surpresas.
O tempo estava esfriando. O mar se agitava, batendo na orla com mais
ímpeto. O pôr do sol naquele dia foi um fiasco. Constatei enquanto sobrevoava
a vila durante minha chegada.
Então ouvi uma voz num tom alto e tão inconveniente, que me alertou do
problema que poderia acontecer na sala.
— O que você faz aqui? Aposto que o Sebastián não sabe que você
frequenta a casa dele quando está ausente. Que abuso!
Como Cássia Lúcia tinha a audácia de tratar as pessoas daquele jeito? Se
Antonella estava em minha casa, era por ser minha convidada, o oposto dela,
de quem eu queria manter distância.
O sangue subiu e esquentou meu corpo. Vi Antonella dando uns passos
para longe do dedo em riste da Cássia Lúcia, o que me irritou grandemente.
Uma vez na sala, perguntei sem aliviar o tom.
— O que está acontecendo aqui?
— Ah. Você está aí, Sebastián? É. Ah. Fiquei sabendo que chegaria hoje,
então vim trazer um agrado para agradecer pela estadia e encontrei sua
funcionária aqui. Não pensei que você estivesse aqui.
A voz dela desceu alguns timbres soando falsamente enquanto meu olhar
dizia “qual é o problema de Antonella estar aqui?”.
O embrulho que ela segurava na mão não me atiçou a curiosidade. O que
eu queria da Cássia Lúcia era nada além do que respeito em meu hotel e uma
troca de publicidade.
Estava na hora de alguém colocar ordem na casa. Não sei se escolhi a
melhor maneira, mas a primeira ideia que me ocorreu foi aconchegar meu
corpo por inteiro em Antonella por trás, bem apertadinho. Espalmei as mãos
em seu abdômen e a contraí junto a mim.
— Cheguei agora há pouco em casa. Não via a hora de encontrar a minha
namorada.
Percebi imediatamente que Cássia Lúcia engolia toda a sua arrogância.
— Ah.
— Se me der licença, nos vemos mais tarde na festa. Oh, desculpe. Que
falta de educação — fui até ela. — Isso é para mim?
— Hum. É, sim. Como eu disse, para agradecê-lo.
— Amor, depois vamos abrir juntos? — chamei Antonella com os olhos.
Antonella se revestiu do papel e apoiou as mãos em meu ombro.
— Claro. Não vejo a hora de ver o que tem aí nesse embrulho caprichado.
O olhar da Cássia Lúcia praguejava por si só. Nem seria necessário ouvir o
que ela pensava em voz alta.
Ela se livrou do presente e eu o peguei. Pensei em deixar Antonella receber,
mas seria além do que o orgulho da mulher aceitaria. Como dizem os
brasileiros “seria provocar a onça com vara curta”.
— Então, até.
Eu a segui de perto e coloquei a mão na maçaneta antes que ela abrisse a
porta. Eu não gostei dela, mas primava pela educação.
Quando eu me vi sozinho com Antonella, desembestei a rir. Ela colocou as
mãos na cintura.
— Sebastián, eu te odeio.
— Será?
Dei um passo à frente.
— Odeio, sim. Amor? Você disse amor? O que ela vai pensar?
— Tudo.
— Que nós…
— Tudo que um casal de namorado faz.
— E agora? — ela cobriu a boca com as mãos. — A imprensa não sabe que
eu estou aqui.
Antonella abriu os braços, inconformada.
— Ela é famosinha, se ela abrir o bico, vão pensar que eu…
— Igual ao Astolfo? — eu a interrompi.
— Quem?
— Astolfo. O papagaio.
Os lábios da Antonella se separaram.
— De onde você tirou esse nome?
— Não fala mal do dono do nome porque ele me ajudou com uma coisa.
Dei mais dois passos e me vi a menos de um palmo de distância dos olhos
mel. Enfim, consegui cercar seu corpo com meus braços, agora sem fazer parte
de uma encenação.
— Ah. Sério. Não estou me referindo ao dono do nome — beijei a ponta
do nariz erguido. — Mas ao nome em si. Isso é muito diferente.
— Se ficarmos com ele durante uns dias, podemos ensiná-lo a falar.
Astolfo. Astolfo — ri de mim mesmo. — Pelo menos, ele para de falar
palavrões.
Os braços dela se apoiaram em meus ombros. Senti a carícia suave em
minha nuca.
— Às vezes, você é inteligente, né?
Acirrei a pressão do corpo dela no meu.
— Eu sou esperto. Ou, não estaria com você. Já tinha uns gaviões de olho.
Ela curvou o pescoço para trás e riu.
— Isso tinha mesmo, viu?
— O quê? Você confessou?
Larguei o corpo dela e fiz cosquinhas em todas as partes do seu abdômen.
Ela dobrou o corpo para frente, meus braços a seguraram enquanto me inclinei
sobre ela. Antonella se libertou de sua agonia, gargalhando, e correu para o
quarto. Jogou-se na cama ainda rindo e virou o corpo de lado, o vestido solto
se ergueu acima do meio das pernas.
Tirei os sapatos sociais com os próprios pés e arranquei a camisa do corpo.
Busquei seu abdômen outra vez e ela se encolheu, me impedindo. Quando
percebi, eu estava sobre ela, as mãos unidas ao lado do rosto, o cabelo longo
espalhado sobre o lençol emoldurava o rosto que eu estava pintando num
quadro mental. Nossa. Minha memória trabalhou para catalogar esse
momento.
Lentamente, para jamais me esquecer do olhar dela se encolhendo em uma
fenda me desejando, eu fui abaixando a cabeça e nossos lábios se encontraram
não mais em um beijo lento de reconhecimento, mas com uma pressa em
explorar o que faltava descobrir.
Estalidos podiam ser ouvidos com o abrir e fechar dos lábios. Minha
respiração acelerou.
— Ah, Sebastián.
Senti minha ereção se avolumar sobre o centro de prazer da Antonella. O
que nos separava era a porção de tecido das nossas roupas. Mexi com meu
quadril circularmente. A pressão dentro da calça aumentou.
— Você é gostosa pra caralho.
As unhas dela viraram presas em minhas costas.
— Ah. Isso, Antonella.
Mordisquei o pescoço e escorreguei meus lábios até o decote do vestido.
Larguei beijos e mais beijos até que cheguei ao mamilo e o mordisquei por
cima do pano de seda floral. Essa impossibilidade imposta pelas roupas estava
me excitando de uma forma louca.
A cabeça dela ergueu ao mesmo tempo em que suas coxas se moveram
levando os pés a encontrarem o descanso em minhas costas. Ela gemia, e sua
excitação era como um combustível que estava prestes a queimar.
As respirações se alteraram ao ritmo do beijo quente, com um quê de
loucura. Mas eu não podia avançar sem o sinal positivo dela. Na grande
maioria das vezes, as sensações não acompanham a razão e arrependimentos
surgem em consequência dos atos impensados. Com ela, tudo teria de ser
diferente, para melhor.
Parei por um instante e Antonella reivindicou com os braços que eu
continuasse com nosso momento pré-sexual, suas mãos em minha nuca
puxaram meu rosto para o dela.
— Antonella, é isso que você quer?
Eu não gostaria de forma alguma que houvesse arrependimento. Eu
respeitaria o momento dela. Sem pulos no tempo e etapas desconsideradas.
Quando ela fosse minha, teria de ser por inteiro.
As pernas relaxaram das minhas costas ao colchão. O corpo se acalmou,
bem como as nossas respirações.
— Quero muito.
Mas os franzidos da face não diziam o mesmo.
Eu acariciei o cabelo e retirei uma mecha perdida no seu rosto.
— Não vamos acelerar nada. Temos todo o tempo do mundo.
Ela franziu as sobrancelhas.
— Os dias passam rápido.
— Vamos viver o agora, tá bom?
Os olhos dela se fecharam.
— Desculpe.
— Linda, não tem do que se desculpar — dei um beijo casto nos lábios
dela e deitei na cama. Eu a puxei para mim de forma que ficamos de
conchinha. — Vamos descansar um pouco. Uma festa nos espera. Fica aqui
comigo?
O cabelo dela se moveu no meu peito sinalizando que, sim. Ela ficaria.
Beijei o rosto da Antonella, feliz por tê-la em minha cama, satisfeito pela
decisão que tomei. Estava sendo muito bom ir devagar com ela. Meu plano era
sentir cada momento, como se fosse o único. O que importava era estar com a
minha musa.

Antonella

Sebastián me conquistava a cada fala e ação. A sensibilidade dele captou


que eu não estava preparada para me entregar ao nosso fogo crescente. Pelo
menos, não, naquele momento. Eu queria muito, com toda vontade
acumulada, que acontecesse, mas na hora certa.
Dormimos por quase uma hora. Quando me sentei na cama… Arregalei os
olhos, admirada.
— Sebastián!
Nada me fez me sentir tão especial quanto a surpresa que ele fez. E foi para
mim!
— Geralmente os homens presenteiam as mulheres com jóias ou flores…
— Eu amei! É perfeito para eu ficar com você o restante do meu um mês
de férias.
— Um mês? Você vai ficar mesmo? — a voz pulou da garganta numa
empolgação, ratificada por seus olhos iluminados.
Fiquei feliz em ver o arrebatamento sincero.
— Hum, hum. Consegui trocar a passagem, estava esperando a hora certa
para contar.
Sebastián flexionou o corpo e deu um estalinho na minha boca.
— Como você conseguiu todos esses pacotes de biscoito?
Ele sentou o traseiro na beirada da cama, ao meu lado.
— Com o Astolfo.
— Ah, para.
— Sério. Eu falei que ele existia. É um amigo do Rio. Nós participamos do
congresso juntos. Como você disse que a melhor coisa do mundo era comer
esse biscoito com mate na praia, tive a ideia de pedir para ele trazer de última
hora.
O Astolfo havia conseguido levar onze pacotes para Sebastián.
Mais importante que o presente em si, era a atitude dele, de se importar
com o que eu dizia e minhas preferências. Isso não era algo que passaria em
branco, avolumaria o potinho “Gentilezas do Sebastián”.
De repente, eu me senti triste porque o dia de ir embora e me afastar dele
chegaria. Só que, diante de tamanho carinho por mim, dei um chega para lá
nessa vibe tristonha e o abracei. Ele estava lindo, vestido com uma bermuda
branca e camisa de botão azul-claro. O colar de couro completando o visual
descolado-chique. Tão… ele.
Ter aquelas mãos ardorosas em minha lombar enquanto me beijava daquele
jeito que os lábios variavam entre a leveza e ostentação do desejo estava se
tornando um hábito.
Indispensável!
CAPÍTULO 26
De repente, eu me senti absurdamente nervosa.
Puxei a mão do Sebastián. Ele parou de andar e se pôs de frente para mim.
— Se nós somos namorados, temos uma história. Certo?
— Siii.
— Quer dizer, sei que não somos namorados, mas você disse à Cássia
Lúcia.
Abri os braços, meus seios trepidaram de leve com o movimento brusco no
decote transpassado.
— Ah. Você entendeu.
Olhando em meus olhos, tive a certeza de que ele pensava em alguma
solução. O sorriso, em seguida, foi se revelando zombeteiro.
— Poderíamos falar que nos conhecemos no aeroporto enquanto a sua
mala girava com as lingeries expostas.
Cruzei os braços, horrorizada com a sugestão.
— Não creio que você esteja falando de algo tão bizarro, Sebastián.
Ele não escondeu um riso. Nem eu.
Tinha que ser ele a me lembrar de uma das maiores vergonhas da minha
vida. Olhando para trás, foi divertido até.
— Nem sempre os casais se conhecem com romantismo, Nelinha.
Fechei os olhos e inalei o ar.
— Tudo bem. Vamos pensar em outra coisa — mordi os lábios. — Essa é
muito constrangedora.
Os olhos do Sebastián se transformaram em uma fissura maliciosa.
Aguardei a próxima pérola, que não foi dita. Era para eu ter usado aquelas
lingeries em minha lua de mel com outro homem. Se ele estava pensando em
falar algo impróprio, desistiu. Aliás, eu… O que eu faria com as lingeries?
Estranho isso tudo. Elas representavam um lembrete de que a minha vida
estava em suspenso.
— Já sei — ele mudou a expressão para quem tem uma ideia brilhante. —
Nós nos conhecemos no “Mais que um Match”. Isso. Perfecto.
Meus olhos foram arredondando sem saber qual das opções era a mais
miserável.
— Ela pode entrar lá e ver que minha conta é nova — assinalei.
— Aliás, por que você resolveu se cadastrar no aplicativo?
— Por que você está no aplicativo?
Ele abaixou a cabeça, rindo.
— Boa.
A interrogação permanecia em seus olhos, embora ele não tenha insistido
em saber.
— Ela não vai notar essa história de linha de tempo. Quem prestaria
atenção numa coisa dessas?
Estiquei os lábios.
— Há. Há. Há. Você— pela minha expressão, ele chegou à conclusão.
Duas garçonetes passaram por nós e sorriram acanhadas. Era tão certo que
o mexerico de que eu e ele estávamos tendo um lance corria solto, assim como
meu nervosismo com essa história de mentir estava me sufocando.
Mas… contar à Cássia Lúcia que eu havia corrido sobre o tapete vermelho
para longe de um noivo perplexo no altar e depois aportei à casa do Sebastián,
no dia seguinte, seria bisonho. A verdade era comprometedora. Se os jornais
descobrissem que eu estava com outro homem…
Aquiesci com a ideia do aplicativo.
— Ok. Então nos conhecemos no “Mais que um Match” — reforcei.
— Gracias. Agora podemos ir?
— Há quanto tempo, hein? — murmurei, meio gemendo.
Recebi um abraço daquele tipo que me tranquilizava.
— Relaxa, linda. Deixe a vida dançar.
Esse era o mais novo mantra do Sebastián.
Ele fez um remelexo com o quadril me instigando a acompanhá-lo na
dança da vida real. Os pés abriram e juntaram, abriram e juntaram convidando
os meus a se unirem no molejo do forró pé de serra. Com uma mão, abracei a
dele estendida para mim; com a outra, curvei o arco das costas do meu
“namorado”. E nesse gingado delicinha, fomos ao ritmo da sanfona, somente
nós dois, no corredor que nos levaria à Festapé.
Colei meu rosto ao dele e captei um pouco da sua alegria através da nossa
pele grudadinha.
— Como um gringo conseguiu ter tanto balanço nesse quadril, hein?
— Sou viciado na cultura brasileira.
— Acho que você é mais brasileiro que eu.
— Duvido que você não saiba sambar.
— Muito menos do que você dança forró — argumentei.
Sem que eu esperasse, ele me rodopiou, e conduziu meu corpo a dobrar
sobre seu braço. Dei um gritinho. Foi inesperada essa atitude dele.
Não sei se foi alucinação da minha cabeça, mas eu ouvi um disparo de
câmera. Aquele som irritante dos fotógrafos que me seguiam nas festas onde eu
queria somente me divertir.
No mesmo instante, voltei a ficar com o corpo esticado. Mordi o lábio e
meu peito se apertou.
— O que foi? — ele não entendeu a minha reação.
— Parece que ouvi um click de foto.
Ele conferiu se havia alguém ali, além de nós dois.
— Relaxa, Nelinha. Não tem ninguém, aqui — ele jogou a cabeça para
trás, sua risada se perdeu no eco da noite. — E, nós somos namorados, não
somos? Pelo menos, a Cássia Lúcia acha que somos.
— Você está se divertindo com essa história, não está?
— Deixe a vida dançar.
Seus pés se mexeram ao ritmo do forró. O gingado era contagiante. Então
sondei o que os olhos dele revelavam, porque eles sempre argumentavam,
explanavam, diziam, refletiam, instruíam, apontavam, confessavam… Eles
eram autênticos. O que vi foi uma ânsia em viver e se divertir comigo.
— Vamos deixar a vida dançar — respondi com convicção.
— Assim é que se fala. Agora vamos, linda. Nossos convidados nos
esperam.
Nossos?
Bom, relaxei a musculatura e foi inevitável que a respiração se encaixasse. O
suficiente para nossas mãos se encontrarem outra vez, os dedos entrelaçarem e a
liga natural voltar ao lugar de onde não deveria ter se ausentado.
À medida que fomos chegando ao salão, não acreditei no que vi. Ele estava
ponteado por lâmpadas amarelas em toda a sua extensão, caindo para as
laterais. Flores naturais por todos os lados, inclusive as artificiais que eu havia
ajudado a confeccionar. Um mar de gente se espalhava até a areia da praia.
Uma animação contagiante regada pela música raiz do Nordeste.
Eu não permitiria que Cássia Lúcia, nem minhas neuras me tirassem aquela
alegria.
À medida que íamos passando, Sebastián era cumprimentado com aquele
jeito masculino que um toca a mão do outro com o punho fechado e os ossos
dos dedos se encontram. Tinha tanta gente bonita, um astral elevado, que me
esqueci de qualquer ameaça que pudesse interferir no lance que começara a
crescer entre nós.
Mais à frente, encontramos ninguém mais, ninguém menos que…
— Nelinha, esse é o Astolfo.
Não creio.
Meus lábios paralisaram, a princípio. Depois os mordi, eu não podia rir. O
Astolfo em carne e osso era muito mais jovem e bonito do que imaginei. Seu
porte alto e o cabelo começando a pratear com fios brancos, quase
imperceptíveis à luz miúda do ambiente, juntavam-se ao crespo do seu cabelo.
— Ah! O responsável por trazer os biscoitos. — E por dar nome ao
papagaio.
Nós nos cumprimentamos com o jeito informal do carioca de dar dois
beijos no rosto.
— O que a gente não faz pelos amigos. Eu já estava no aeroporto quando
recebi o pedido.
— Foi muito gentil da sua parte. Meus dias de praia vão ficar mais
completos.
— Sempre às ordens — ele olhou para Sebastián. — Vou dar uma volta e
cumprimentar os caras.
Pelo visto, a nata dos proprietários de hotel estava em peso na festa.
No mesmo momento, Sebastián aquiesceu com o amigo e deu uma
conferida no ambiente.
— Já encontro vocês.
Talvez fosse melhor deixá-lo à vontade para falar com os convidados.
— Sebastián, eu vou ver as meninas. Elas estão logo ali.
Ele segurou meu rosto com as duas mãos e estalou um beijo na ponta do
meu nariz.
— Não demora. Já estou sentindo sua falta.
Meu coração deu uma disparada. No que eu estava pensando quando me
permiti me envolver com Sebastián? Ele era cativante e sabia fazer uma garota
se sentir a mais especial do mundo. Eu não poderia me apaixonar. Mas acho
que… seria praticamente impossível não me envolver com ele mais do que
deveria.
— Já volto, meu namorado — sussurrei em seu ouvido.
Arrumei o decote do vestido e meus seios não passaram despercebidos pelos
olhos atentos a tudo que eu fazia. Nós ficamos presos nesse momento de
admiração. Vê-lo me cobiçando foi tão tentador.
Toda plena, eu enlacei o anfitrião. O som da música, das vozes dos
convidados, do movimento da onda do mar, dos casais dançando próximos a
nós, nada tirava meu foco da boca que deliberadamente me beijou em seguida.
Ele, pela primeira vez, se permitiu ser visto em público com outra mulher
desde a sua ex-namorada. Isso tinha de significar algo muito maior que uma
simples brincadeira de primavera. E eu? Como lidaria com esse sentimento
mútuo?
— Acho que todos estão nos observando.
Avistei as meninas mandarem sorrisinhos de aprovação. Dei uma piscadela
para elas e fui direto aos olhos dele com os meus.
— Não ligo. Que vejam e que babem porque eu sou um homem sortudo.
Estou com a mulher mais linda da vila.
De um lado estava o mar; do outro, Cássia Lúcia nos observava.
— Acho que nós fizemos uma boa encenação. Tem alguém que não está
deixando escapar nada do que fazemos — sussurrei minha constatação no
ouvido dele.
Sebastián insinuou olhar para o lado, eu o contive com minha boca se
aventurando por sua barba até o ouvido.
— Então somos definitivamente namorados assumidos para Cássia Lúcia.
— Talvez tenhamos que dar outras provas a ela — instiguei, vibrando em
ver aqueles olhos invejosos nos avaliando.
— Eu gosto quando você traz à tona o seu lado competitivo. Vou te ajudar
a ganhar essa batalha, te dando munição com algumas situações que a faça não
ter mais dúvidas.
— Dúvidas de que você namora uma funcionária e não uma milionária
como ela?
— Não. Que eu namoro a mulher mais interessante que já conheci.
Bravinha, às vezes, e que tem um papagaio como bicho de estimação, por
enquanto.
Ele ergueu meus pés do chão por poucos segundos e me apertou em seu
tronco.
Dei um gemido.
— Então acho que estamos trabalhando muito bem no nosso teatro porque
ela está vindo.
— Quer mais um beijo? Eu não vou me importar em te ajudar a ganhar
essa disputa de mulheres.
— Agora eu entrei em guerra mesmo. Não suporto essa mulher mesquinha
— declarei.
Antes que eu pudesse dizer algo a mais sobre como eu me sentia com
relação à Cássia Lúcia, que a via como uma pessoa horrível que humilhava os
outros, ela bateu seu cartão de pessoa inconveniente.
— Então vocês são realmente os pombinhos do ano. São lindos juntos. De
verdade. Todos estão comentando que você está radiante, Sebastián.
— Nelinha me faz feliz.
— Se você quiser, Nelinha, eu posso fazer uma coleção linda de verão para
o seu guarda-roupa. Sebastián não vai se importar, não é mesmo?
Que interesseira!
— Você quer, amor? — ele perguntou, me olhando de cima.
— Não sei. Vou pensar. Acho que já tenho tudo de que preciso para o
verão. Você trouxe várias roupas lindas da Espanha, amor. Não se lembra?
Belisquei o quadril dele, que deu uma retraída.
— Ah, é mesmo. Eu havia me esquecido. Que cabeça a minha!
— Depois te dou a resposta, Cássia Lúcia.
Com um sorriso nos lábios, mas fervendo como um caldeirão de bruxa por
dentro, ela deu um balanço de cabeça e trouxe o cabelo para frente do ombro,
os cachos tocaram os seios siliconados.
— Amor, eu vou falar com as meninas.
— Vou com você. Não falei com ninguém ainda — ele se dirigiu à Cássia
Lúcia. — Se nos der licença.
— Ah, claro. Vou falar com a Sabrina Muniz, a atriz. Ela disse que vai
contar sobre seu novo trabalho.
Ah, qual é? Até parece que a simpática Sabrina Muniz ficaria mais que dez
minutos suportando a afetação da Cássia Lúcia.
Sebastián

— Um minuto de atenção, por favor.


O microfone chiou. Bati com o dedo nele e soltei o fio que havia enroscado
em minha mão.
— Ops. Foi um sinal para eu não me alongar no discurso porque todos
querem se divertir e não perder tempo com um chato.
Risadas se misturaram.
— Há pouco mais de seis anos, o Aroma Marinho ganhou um lar. Posso
dizer que eu ganhei mais que um negócio próspero, somei amizades e
experiências. Estar aqui, com vocês, é o melhor presente que a vida poderia ter
me dado.
Ouvi assovios e palmas.
— Não sou de muitas palavras, mas meus sentimentos são enormes por
este lugar. Pelas pessoas que habitam a vila e por todos os hóspedes que estão e
já estiveram em nosso hotel, além de todos que trabalham conosco e colaboram
para que esta confraternização ainda exista. Por Dios! Acho que o discurso já
está grande o bastante e vocês querem mais é se divertir.
Risadas.
— Então, para finalizar — minha voz embargou —, obrigado por estarem
aqui.
— Vamos propor um brinde ao rei dos brindes — Astolfo ergueu a taça e
eu achei graça.
— Um brinde geral!
Foi lindo ver a quantidade de taças sobre o mar de cabeças, a iluminação à
luz de tochas acesas.
— Agora vamos ao que interessa. Diversão. Aproveitem a noite.
Do palco, encontrei o rosto da Antonella entre o Calebe e a Márcia. A
emoção era visível em sua expressão. Eu a olhei nos olhos e sorri, não um
sorriso aberto, mas um discreto e que revelava o quanto estava feliz por tê-la
comigo naquele momento importante.
O grupo voltou a tocar e eu desci do palco com a intenção de me juntar
aos três. Contudo fui parado por várias pessoas, a intenção era me
cumprimentarem pelo aniversário do hotel. Quando dei por mim, Antonella
foi arrastada pelas novas amigas para longe de mim, e foram dançar em uma
roda acompanhadas por André e Max.
Enquanto eu dava a atenção devida a cada um, meus olhos a procuraram
entre os intervalos das conversas. Vi a manobra que ela executou para unir
André e Giovana em uma dança. Os dois saindo de mãos dadas em seguida e
descendo a rampa até a praia ladeados por tochas de fogo.
O rosto dela se armou num sorriso satisfeito. Projeto cupido realizado com
sucesso.
Antonella era romântica, embora negasse isso a si mesma.
Então ela extravasou a felicidade e incentivou os outros a gritarem “aê, aê,
aê”. Simplesmente lançou sua exuberância ao grupo que a acompanhou. Ri ao
constatar que ela circulou o braço do Calebe e o fez girar em sentido anti-
horário junto com uma Antonella saltitante, ele meio travado, mas rindo como
uma criança. Márcia não se aguentou de tanto rir vendo nosso amigo se
divertir como nunca e entrou na brincadeira, além da Luiza e seu noivo.
Depois disso a “minha namorada” passou Calebe para Ariadne.
Senti uma emoção única, distinta das experiências anteriores.
O pessoal a adorava. Em poucos dias, ela conseguira criar uma
cumplicidade com todos.
Foi o que faltava para eu perder o fio da meada da conversa das pessoas que
haviam me cercado.
— Vou dar um giro no salão. Obrigado por terem vindo.
— Suas festas são as melhores, Sebastián — falou o prefeito.
— Faço com alegria, senhor.
Eu não conseguia tirar os olhos dela. O pessoal estava animado e Antonella
foi o vínculo que me aproximou de todos. Embora eu os visse com frequência,
Calebe era quem lidava direto com eles e eu, sendo o chefe, encontrava um
pouco de resistência para ser incluído nos encontros mensais.
— Se me derem licença, vou falar com conhecidos.
Despedi da rodinha dos políticos com a intenção de ir ao encontro da
única pessoa que atraía a minha atenção e dos seus amigos.
— Você acha que ela vai ficar com você?
Confuso, olhei ao redor. De onde vinha a voz?
Mierda! Ela era a última pessoa que eu gostaria de ver naquela noite.
CAPÍTULO 27
— Por favor, Celeste, não vamos começar.
— Você acha que essa moça vai ficar com você depois que voltar para a
cidade dela?
— Você não sabe nada sobre Antonella, ou sobre nós dois.
Senti um frio na espinha com o sorriso ameaçador da Celeste.
Celeste havia se tornado uma pedra no sapato depois que a conheci em um
evento de turismo. Minha intenção era construir um hotel no Brasil e pular
fora dos meus problemas em minha terra natal, eu tinha por volta de vinte e
sete anos. A escolha pelo Nordeste me atraiu por uma série de vantagens
turísticas. Então ela me apresentou a Jericoacoara. No mesmo instante que pus
os pés na vila, vislumbrei potencial para o meu empreendimento de luxo.
Foi Celeste que me apresentou ao grupo local e me beneficiou com os
contatos essenciais para a compra do terreno e aprovação dos órgãos
competentes para a construção iniciar. Mas… seu preço estava sendo alto. Ela
não se conformava que eu não me interessasse por ela como mulher.
Os assédios voltaram a acontecer depois que ela soube que eu e a Mônica
tínhamos terminado o namoro.
— Para com isso — evitei insultá-la dizendo “Não se humilhe”. — Celeste,
eu sou grato a você por tudo o que fez por mim, mas entenda de uma vez por
todas, que não teremos nada além de uma amizade.
— Você me enganou.
Minha paciência se esgotou. A raiva entrou em mim junto com o ar nos
pulmões, queimando por onde passava. Volto a dizer que algo que eu não
suportava era que alguma mulher me acusasse de criar expectativas falsas em
relacionamentos.
— Enganei por quê? Nunca tivemos absolutamente nada além de um
contato comercial. Se você confundiu nosso tipo de relacionamento, então não
posso fazer nada. Desculpe, Celeste, mas não me recordo de ter te dado
esperanças.
— Perdi anos da minha vida te esperando. E agora você vai cometer um
erro grande se envolvendo com uma turista outra vez. E mais nova que você
quantos anos, hein?
— Celeste, entenda de uma vez por todas. Você não terá um
relacionamento comigo além do existente. Bom, agora você ouviu o que penso
em voz alta.
— Sempre com esse charme sedutor… Você me usou.
— Usei? Ah, pare com isso.
E ela saiu enfurecida.
Não contive uma risada amarga. Qual foi a parte que Celeste não entendeu
que eu jamais dei esperanças a ela?
— Querido, está na hora de você dar um basta na Celeste.
— Comecei hoje, Márcia. Mas você sabe que vou sofrer as consequências
disso.
— Tire esse peso dos seus ombros. Você não precisa provar a ninguém
quem você de fato é. Mas, se te serve de consolo, todos o admiram. Você
trouxe benefícios para a vila com seu empreendimento. Você se preocupa em
ajudar a população. Mesmo que de forma anônima. Olha quantas pessoas estão
aqui hoje. Fique em paz.
Olhei para o lado e vi o rosto de uma mãe. As palavras de confiança foram
se encaixando num mecanismo de alívio em meu coração. Consegui
desprender um nó que havia se agarrado na garganta e sufocado o riso.
Em agradecimento, beijei a face dela e fui à areia da praia. Desviei de um
convidado ou outro, forçando sorrisos.
Mas o pensamento de que há pessoas que não se contentam em serem
infelizes e que parecem sentir prazer em machucar os outros golpeava minha
cabeça.
Celeste foi a pessoa com quem me abri e contei sobre quem era o meu pai.
Cheguei ao Brasil com as emoções despedaçadas e depositei minha confiança
nela. Decidi que o melhor seria desvincular minha imagem da dele, não
gostaria que o meu caráter fosse medido por seus erros.
Foi mais fácil ocultar meu sobrenome e tudo que ele trazia de incômodo.
E, por ser sincero, ela passou a me chantagear usando da minha fragilidade.
Quantas vezes a ouvi dizendo que eu seria engolido pelos empresários locais e
concorrentes se soubessem sobre a minha origem. Que fariam um complô
contra meu empreendimento. Fiquei nas mãos dela.
Aspirei o aroma marinho, meu melhor calmante. Quando o senti pela
primeira vez foi como colocar um bocado de esperança dentro de mim. Logo
soube que Jericoacoara seria o lugar do meu renascimento. Não quis perder
essa chance por nada.
— Eu sabia que iria te encontrar aqui, na beira do mar.
Antonella me abraçou por trás, suas mãos assentaram em meu peito, uma
sobre o coração. Foi como se o mar a tivesse enviado para completar a paz que
eu começara a absorver um ou dois minutos antes, quando coloquei o cheiro
da água salina para dentro dos pulmões.
O sorriso voltou ao meu rosto. Era o efeito Antonella agindo em mim.
No instante seguinte em que senti o calor dela emanando para meu corpo,
virei-me para ela e a aconcheguei em meus braços, apertando-a em mim como
se fosse o barco a me salvar na abundância de água de inquietude.
Naquela noite, era somente dela, da Antonella que eu necessitava. De mais
ninguém.
— Vamos pra casa?
— Também estou bem cansada. Mas, gente, que festa! Bastián…
Com os braços cruzados fomos andando enquanto ouvia sua animação.

Alguns dias após o evento, tive uma reunião importante com Calebe e
fornecedores, esses últimos por videoconferência, no meu escritório.
— Agora outro assunto.
— Diga — sinalizei a Calebe que avançasse.
— As fotos da festa chegaram. Preciso que você escolha as melhores para
colocar no site.
Com o braço estirado sobre a mesa, dedilhei no vidro, pensando.
— Escolha as de sempre. Com as personalidades importantes da cidade, a
decoração, os convidados, empresários e os moradores. Fotos espontâneas,
pode ser.
— Ok.
— Você não achou que a festa deste ano teve outro clima? Mais alegre. É
provável que você tenha dificuldade para selecionar as melhores.
Calebe cruzou a perna e seu tornozelo parou sobre a outra coxa.
— Ou você que estava em sintonia diferente dos anos anteriores?
Sorri me entregando.
A presença da Antonella já era essencial para mim. Ela parecia preencher
todos os espaços da casa. Onde eu fosse, podia senti-la, mesmo que ela estivesse
ausente.
Eu não me via na cama sem estar com Antonella. Nossa intimidade foi
aumentando e aos poucos ela foi se soltando comigo. Esse ritmo mais lento do
reconhecimento dos pontos mais sensíveis do corpo dela ao estímulo do meu, e
vice e versa me surpreendeu. Algo havia mudado. Era como se eu estivesse
redescobrindo como dar prazer a uma mulher e receber de volta. Como se eu
tivesse zerado tudo o que havia aprendido no sexo e quisesse criar uma nova
história.
Era bem isso. Para ser sincero.
Aliviei as costas, encostando-as em definitivo na cadeira.
— Acredite ou não, Antonella está dando outro significado à minha vida.
As sobrancelhas avermelhadas empurraram a testa para cima.
— Estava na hora. Viver sozinho não é muito bom.
Estranhei Calebe se lamentar.
— O problema é que ela vai embora. E depois?
— Sebastián, você já se relacionou à distância. Não é nenhum mistério.
Bom, pelo menos, eu não via você se importar com isso.
Mexi meu corpo na cadeira.
Calebe me olhou por um instante.
— Você já parou para pensar se amou a Mônica algum dia?
Encarei-o com a expressão mais fechada.
Boa pergunta. Resposta difícil. Ou fácil demais para eu admitir que havia
criado ilusões sem motivo, no passado.
— No — levei mais um segundo para confirmar. — Não pensei, mas estou
começando a avaliar melhor meus sentimentos.
Ele se colocou de pé e empurrou a cadeira para frente outra vez, colocando-
a no lugar.
— Há o hotel que está sendo construído no Rio de Janeiro, a cidade natal
dela.
— Não vamos nos precipitar.
— É visível como vocês combinam. Bom, vou almoçar e levar Miguel à
escola.
Eu me levantei para acompanhá-lo até a porta.
— Como ele está? Mais calmo.
— Cara, nem te conto. A Antonella fez um, como posso falar... — ele
olhou para cima. — É como se fosse um mural. Aí eu vou prendendo colagens
do Miguelzinho fazendo suas atividades.
— Como assim?
— A rotina dele. Eu coloco no quadro o desenho de um menino indo
escovar os dentes. Depois tomando café. Ela disse que o autista não suporta
surpresas. Então vou mostrando a ele o passo a passo do seu dia, o que ele vai
fazer. Não é que está ajudando?
Interessante.
— Eu não a vi fazendo esse trabalho.
— Você estava viajando. Olha, meu amigo, sua namorada foi um achado
para todos nós.
— Ela não é minha namorada.
Só então me lembrei da farsa para convencer a Cássia Lúcia e ri para mim
mesmo.
— Considere essa possibilidade, Sebastián.
— Vou pensar no assunto.
— Cara, eu me lembrei de uma coisa. Não coloque fotos da Antonella no
site, por enquanto.
O rosto dele virou no mesmo instante para mim. Logo me expliquei.
— Ela não quer ser encontrada por enquanto pela imprensa.
— Entendi. Mas vou deixar todas arquivadas.
— Perfeito. Falando nela — espichei o nariz para frente.
Inspirei fundo e prendi o ar. Antonella vinha caminhando com uma
elegância impressionante. Como ela conseguia estar com o pouco pano da
parte superior do biquíni e canga abaixo da cintura e se manter na classe? Mi
madre teria apreciado conhecer a deusa.
Algo que observei foi que Miguel havia aceitado dar a mão a ela.
— Pai, filho entregue — Antonella o passou para o meu amigo.
Uma surpresa boa ocorreu. Miguel se retraiu e não aceitou se afastar da sua
“tia” favorita. Há anos eu o conhecia e era uma dificuldade para aceitar meu
toque. Antonella havia conseguido esse feito.
Na mesma hora, eu e Calebe nos entreolhamos e seu olhar dizia “Você não
vai deixar essa mulher passar em branco por sua vida”.
Eu a observei se abaixar e nivelar o rosto no do moleque. Pude ver os olhos
dela se dissolvendo em carinho por ele. Tive de controlar a admiração senão eu
a abraçaria naquele corredor e quebraria o encanto entre os dois.
— Meu amor, a tia falou que depois vamos brincar de novo, tá bom?
Primeiro o Miguel vai almoçar, depois vai à escola. Por último, volta para me
ver.
Piscando algumas vezes seguidas, ele olhou para o rosto da Antonella.
— Agora a tia pode te abraçar?
Ele não se mostrou arredio e aceitou que ela concretizasse o carinho.
Calebe deu uma batida de mão em meu ombro e foi embora satisfeito com
o filho caminhando ao lado dele.

Minutos depois, nós estávamos estirados em duas espreguiçadeiras na faixa


de areia rente à estrutura da piscina. Um funcionário nos serviu duas
caipirinhas e uma porção de batatas rústicas.
— Pega leve, Nelinha. Hoje, ainda quero brincar de kite com você.
Impaciente, ela revirou os olhos.
— Bastián, poxa, eu estou de férias.
— Tudo bem. Não está mais aqui quem falou. Mas depois não vai ficar
reclamando que está passando mal.
— Tá tudo sob controle, gostosão — ela falou com o canudo entre os
lábios, olhando-me de viés.
— Você está esquisita, Nelinha.
Ela meneou a cabeça, os olhos me olhando pelo canto.
Em definitivo, ela não estava normal.
Relaxei a cabeça na espreguiçadeira e fechei os olhos. Fiquei pensando que
a tempestade anunciada não havia chegado, muito menos um pingo de chuva
fora lançado por alguma nuvem, ainda que o teto natural estivesse tomado por
elas.
— O tempo esfriou. Até o mormaço desapareceu. Não é melhor a gente ir
pra casa? Vamos acabar gripando. E eu não quero que a “Musa de Jeri” fique
doente.
O curioso é que os papéis haviam invertido. Eu falante; ela, caladíssima.
Um corpo me empurrou de leve. Hum, entendi o mistério do silêncio da
Antonella.
— Será que nós dois cabemos, aqui? Aí um esquenta o outro do friozinho.
Sorri.
— Nós até podemos dar um jeito, linda. Só não respondo por mim. E
estamos em público, não sei se você sabe.
— Ain — ela gemeu e meu amigo localizado abaixo do umbigo pensou
que era a pipa ativa do meu kite.
Abri somente um olho e chequei o que ela fazia. Antonella se deitou de
lado e apoiou a cabeça em uma palma enquanto os dedos da mão livre
passaram a acariciar meu abdômen, que levou um choque.
— Você está me provocando, Nelinha. Mesmo contra sua vontade, nós
vamos ter que ir para casa.
Os dedos dela permaneceram explorando suavemente meu abdômen.
Olhei para o lado e encontrei o rosto tão perto do meu que dava para ver a
respiração dela se alterando. Ela me comia com os olhos. O calor dos dedos da
mulher eram como afrodisíacos para a minha pele que se eriçava.
Numa situação complicada com o meu corpo cada vez mais reagindo ao
dela, eu me virei de lado, como uma cópia perfeita da sua posição. Não havia
como permanecer como estava antes.
— Você acabou com a minha brincadeira — ela deitou a cabeça sobre as
mãos unidas. — Meus dedos amam passear por seu tobogã de gomos.
— Podemos ir para casa, se você quiser.
— Hum, não seria má ideia.
Selei um beijo no lábio semiaberto, ele implorava para ser possuído de um
jeito mais caliente. Mas, como nada é tão perfeito… quando as coisas estavam
esquentando, vi um ajuntamento de cabelo loiro no alto de uma cabeça se
aproximando.
— Bem que eu gostaria, Nelinha, mas vamos ter que esperar um tempinho.
Espero que mínimo.
Quando Antonella perguntava o porquê, a voz da sua mais recente “melhor
amiga”, para não dizer o contrário, se apossou do nosso momento de desejo.
— Vocês por aqui... Não os vejo há alguns dias.
— Oi, Cássia Lúcia! Como está? — tomei a iniciativa de responder.
Antonella havia girado os olhos nas órbitas com intensidade, sem um pingo
de paciência. Mas sua educação costumeira não a permitiu não virar o corpo.
Ela se colocou com o piercing do umbigo apontado para o céu. Olhou Cássia
Lúcia de baixo e deu o pior sorriso de todos, aquele que parece que foi puxado
por um fio e não naturalmente esticado.
— Bem. A nova coleção para o verão está fluindo que é uma maravilha. A
inspiração, a mil. Como vai, Antonella? Já decidiu se quer uma coleção
exclusiva?
Fiz carinho no Ozzy, que veio seguindo a hóspede. Ele se sentou ao lado da
Antonella. Os dois passaram a ser amigos. Onde estávamos e ele nos via, tinha
de dar uma cheirada nela.
— Ô, Cássia, obrigada mesmo. Mas eu não preciso de um guarda-roupa
novo. Fica para a próxima. — Antonella pegou a tigela de batatas fritas da
mesinha acessória entre as duas espreguiçadeiras. — Está servida?
— Não obrigada, Nelinha. Já almocei. Posso te chamar assim como todos?
Antonella parou com a mão antes de mordiscar uma batata frita. Por Dios!
Não diga que não.
— Claro, por que não?
Gracias!
Pelo visto, nossa hóspede não sairia de perto tão cedo. Ela se acomodou na
espreguiçadeira de onde Antonella tinha vindo para me provocar.
— Não dá batata frita ao Ozzy, amor. Ele pode passar mal — instruí, mas
o beagle abocanhou a batata antes que ela reagisse.
— Pode não, Ozzy. Tem gordura, tá — Antonella fez carinho no rosto
dele.
— Au — Ozzy se irritou e foi embora.
Com os olhos, eu o acompanhei correr na beira da água. O mar era seu
segundo lar.
— Saí do quarto para tirar umas fotos. Pena que hoje o dia está nublado.
Até frio — Cássia Lúcia voltou com a conversa.
É
— É mesmo. Por isso vamos…
— Falando em fotos, Sebastián, hoje eu postei uma diante do letreiro do
hotel. Claro que tirei num dia de sol para valorizar a publicação — Cássia
Lúcia me interrompeu justo quando eu daria a desculpa que iríamos nos
esconder do frio em casa.
Aquiesci sem abrir a boca para falar.
Ela apontou para a fachada do hotel.
— Letreiro de milhões. Coloquei algo parecido na legenda do post e
marquei o Aroma Marinho. Já está com mais de cinquenta e duas mil e três
visualizações, para ser mais exata. Bom, pelo menos há uns cinco minutos.
— Obrigado, Cássia. Isso é bom para nós dois — Antonella me olhou de
canto de olho, sua nova mania. — Ou melhor, para você e para o Aroma
Marinho.
A conversa esfriou como o tempo local.
Cássia Lúcia pegou o celular.
— Eu te procurei nas redes sociais, Nelinha, e não te encontrei. Achei
estranho que você não use nenhuma. Caramba. Eu não consigo ficar nem uma
hora sem dar uma espiada nas minhas.
Captei um sorriso discreto se formando na boca da Antonella. Ela havia
bloqueado nossa “inimiga” para que não a encontrasse. A política da musa era
não ser descoberta pelos repórteres ou por quem quer que fosse durante suas
férias.
— É. Eu não tenho redes sociais.
Os olhos da Cássia Lúcia se transformaram em dois sóis de tão abertos.
— Caramba. Como alguém consegue viver sem?
Os ombros de Antonella responderam ao oscilarem.
— Mas diga aí. Como vocês se conheceram? Parece que se dão tão bem.
— Hum. É. — Antonella gaguejou, após tossiu.
E a pergunta que ela tanto temia surgiu na conversa. Seria pouco provável
que Cássia Lúcia não conduzisse o assunto para esse lado.
Tomei a iniciativa de contar como foi, de forma sucinta. Nada mirabolante.
Uma história normal.
— Eu estava me sentindo sozinho e não encontrava a pessoa certa. Então
um amigo me falou do “Mais que um Match”. Um aplicativo…
— Ah, sei — Cássia Lúcia me interrompeu. — Aplicativo de
relacionamentos. Hum, mas esse é para quem busca um romance.
— Isso. Ele havia conhecido a esposa dele nesse aplicativo. Como eu estava
à procura de uma mulher especial, resolvi seguir os passos dele e me cadastrar.
Para a minha felicidade, encontrei Antonella, não é, amor?
— Ah — Para de se entregar, chica. — Foi lindo! — Antonella demonstrou
empolgação e comeu mais batatas num ritmo que exigia perícia para caber
tantas em sua boca.
— Amor à primeira vista — completei.
— E vocês saíram para jantar? Dançaram? — Cássia Lúcia manteve a
curiosidade ativa.
— Tudo isso e mais um pouco — Antonella provocou, ainda com a boca
cheia, as bochechas alargadas. Um pedaço da batata voou. — Desculpe.
A situação não seria mais hilária se não houvesse Antonella envolvida.
— Onde vocês se encontraram pela primeira vez? Você é daqui, Nelinha?
Mais batatas entraram na boca aflita. Tomei a iniciativa da resposta.
— Eu a convidei para vir conhecer a vila.
— Deve ser muito bom namorar o dono do melhor hotel desta praia.
Antonella bateu com a mão no peito como quem busca ajuda para
desembuchar. Depois de um tempo e uma engolida sufocante, respondeu:
— Muito.
Eu estava prestes a detonar uma gargalhada.
— Amor, agora vamos almoçar? Batatas fritas não enchem barriga.
— Acho que dá para perder a fome com elas. A minha barriga está
entupida — Antonella comeu mais uma. O nervosismo dela estava me
divertindo.
Eu me levantei e extirpei o momento. Dei a mão à Antonella, ela recebeu
meu suporte com alívio, e se aprumou em pé.
— Quando Sebastián estiver ocupado, vamos marcar para passear juntas,
Nelinha. Eu ainda não fui ao lado oeste da vila. É tão bonito quanto o leste,
Sebastián?
— Vale a pena, sim. Tem as dunas e a lagoa de Tatajuba. Tirolesa e tobogã
natural para se divertir. Um passeio pelo mangue para ver caranguejos e cavalo
marinho.
— Que fofo! Cavalo marinho?
— É no mangue seco que você vai clicar as fotos mais instagramáveis.
Distraída amarrando a canga, Antonella sugeriu.
— Ué? Você usa esse termo? Instagramável. Você não é fã de redes sociais.
Os olhos da Antonella se estreitaram. Pareceu, enfim, reagir a pasmaceira
ao ouvir a voz num tom provocativo.
— Não se esqueça que lido com turistas.
Dali, namorada de mentira.
— Ah! — Cássia Lúcia expandiu a boca o máximo que pôde para largar a
interjeição.
Namorada de mentira?
Foi o suficiente para o meu coração bater desorientado. Então tive a certeza
de que algo dentro de mim havia mudado. Eu queria Antonella mais que tudo.
Junto a mim.
Eu estava apaixonado, porra. Muito apaixonado por ela. E namorada de
mentira não era o suficiente.

Antonella

Fiz carinho no Ozzy quando ele tocou suas patinhas nas minhas coxas.
— Oi, bonitão. Você outra vez.
O dono o chamou e ele foi todo serelepe.
Para quebrar a mudez do Sebastián, eu disse qualquer coisa.
— Ai, ai. É divertido demais essa história de fingir para a Cássia Lúcia que
somos namorados. Você não acha?
— É.
— Você se lembra do outro dia?
— Qual deles? Foram vários.
— Ela vinha em nossa direção e eu te abracei. Aí, você começou a narrar as
expressões e gestos dela. E, quando ela chegou bem perto, nós nos beijamos
para não corrermos o risco de ouvirmos a pergunta que tivemos que responder
agorinha. Eu sabia que iria engasgar. Ainda bem que você mente melhor do
que eu.
Sebastián não se pronunciou e sua tromba de elefante estava me deixando
irritada.
Depois disso, no restante do percurso, fomos da praia à casa dele num
silêncio sepulcral. Talvez eu devesse perguntar o motivo de ele ter se calado.
Porque, olha, quando ele entrava nesse mood mau humor…
Concentrada, passei uma revista no meu cérebro, tentando descobrir o que
havia dito ou feito. Tive a magnífica certeza de que somente a Cássia Lúcia
agira com inconveniência.
Esse lado esquivo e rabugento do Sebastián não me agradou. Tudo bem
que eu teria meus pontos fracos que ele não topava, seria provável. Todos
temos defeitos e qualidades.
Mas… dai-me paciência.
Como eu não podia me calar facilmente...
— Por que você está em silêncio? Eu fiz alguma coisa? — perguntei, assim
que pusemos os pés no deck.
Astolfo nos recebeu com alegria.
— Crrác crrác!
— Olá, querido! Sem palavrões, por favor — respondi.
Olhei do papagaio para Sebastián. Ele coçou a barba.
— Tem algo que está me incomodando.
Até que enfim ele se pronunciou.
Demorei um bocado para entender o que a frase significava.
— Hum. O que é?
E eu continuava me perguntando o que raios eu tinha feito.
— Se há algo que eu não gosto é de mentir.
Então a compreensão, enfim, deu seu cartão de visita para a minha
consciência.
— Ué? Mas foi você que inventou sobre nosso namoro falso.
— Eu quis te defender porque você está paranoica com essa história de
jornalistas não a encontrarem.
— Paranoica? — lancei uma risada indiferente. — Você não sabe o que é
ficar sendo fotografada, perseguida em todas as festas, eventos, só porque seu
pai é rico. Não sei se você sabe disso. E, se eu já era vitrine antes, agora eu sou
todas as vitrines juntas de um shopping.
— Você não sabe nada sobre o meu passado. Não sabe — Sebastián
encrespou.
— Esse é o problema. Você fala pouco. Eu sou um livro escancarado. Você
é tipo um remédio homeopático. Doses lentas de informação, sabe?
— Não acredito que estou ouvindo isso. Você é uma das poucas pessoas
com quem eu me abro.
— Será? Só sei que você é rico e veio da Espanha. Teve uma ex que morava
longe. E tem uma avó. Nada mais. Quem é você, Sebastián?
Ele fincou os dentes no lábio inferior.
— Quer saber, eu não quero ser mencionada como a noiva que fugiu para
ficar com o amante.
Aquele típico silêncio que há nos filmes quando uma das peças do casal
coloca o outro em cheque, estava acontecendo justamente conosco. Logo com
ele? E comigo?
— Entendi. Está arrependida?
— Não! Senão não estaria aqui.
— Mas é assim que você me vê depois de tudo o que estamos vivendo?
Sebastián cerrou a mandíbula e o maxilar, virou as costas largas para mim
como se tivesse dado por encerrada a nossa discussão.
A palavra final seria a dele?
— Idiota — Astolfo falou.
Não sei se foi para mim ou para ele.
Passei pelo espanhol e fui à cozinha. Para minha surpresa, ele me perseguiu,
ops, seguiu. Abri o armário e peguei um pacote de biscoito e abri com tanta,
tanta força, que alguns voaram e deram piruetas até o chão.
Com o corpo duro na passagem e os braços cruzados, Sebastián conseguiu
me irritar de uma forma irreversível. Mas, olha aqui, não seriam os olhos
cristalinos, muito menos a barriga gloriosa que me instigariam ir para a cama
com ele, nenhum desses chamarizes me persuadiriam recuar na briga. Ah, não
iriam. Eu tinha de ser indiferente ao padrão estético atraente do Sebastián. Ele
todinho me distraía muito.
Tentei passar entre a criatura birrenta e o que restava de espaço na porta.
— Quer me dar licença?
— Aonde você vai?
— Não te interessa.
Seu pomo de Adão se mexeu em uma engolida severa.
— A rabugenta deu as caras?
— O mal-humorado voltou a atacar?
Ele esmiuçou meus olhos de uma forma séria como eu nunca havia visto
antes.
Da minha parte fiz um esforço para me controlar e me calei, eu não queria
piorar as coisas.
Um pedido afobado de que eu deveria pedir desculpa a ele chegou em
minha consciência. Mas por que tinha de ser eu a dar o primeiro passo?
CAPÍTULO 28
Enchi os pulmões com uma respiração longa e pus os pés para me levar a
algum lugar que fosse longe do Sebastián. Após poucos minutos estalando os
chinelos na sola do pé, bufando mais que a Cássia Lúcia quando me viu na
casa dele, cheguei à loja de bijuteria. Eu precisava ver um rosto conhecido.
Aliás… foi tudo culpa dela. Outra vez. A Cássia Lúcia. Quando ela
aparecia, era agonia ou discussão na certa.
— Eita que a moça está arretada. O que foi que aconteceu? — Luiza se
assustou.
— Lidar com homens é a coisa mais complicada do mundo.
— E eu não sei? — Luiza foi até mim ofereceu uma banqueta do balcão.
— O que o Sebastián fez?
— Tudo culpa daquela ganhadora do reality show.
— Ah, sei quem é. Ela veio aqui, agorinha. Foi tão simpática comigo. E me
contou umas coisinhas sobre você e o Sebastián enquanto comprava um colar.
Parece que ela tem um encontro. Disse que se inspirou em vocês dois. Não é
meigo?
— Hã? Você está mangando de mim.
— Por quê? Por ela ter um encontro?
— Não. O que ela falou sobre mim e o Sebastián?
A curiosidade me matava por dentro.
— Ah. Tão fofo. Ela disse que vocês se conheceram num site de
relacionamento. Um tal de “Mais que um Match”.
Meu queixo caiu. A fofoca corria mais rápido que um foguete indo à lua.
Meu Deus do Céu! Foi o tempo de o quê? Meia hora? De eu e Sebastián
brigarmos? Era provável que a Cássia Lúcia tivesse uma conta no “Mais que
um Match” e decidiu usá-la depois de contarmos como nos conhecemos, isso
se ela não havia acionado o match com outra pessoa alguma vez.
Para o meu dia ficar mais completo, a mulher, a que se achava a dona do
Sebastián, deu as caras. Saiu de um provador, com biquínis na mão, e me
encarou. Depois me ofereceu um sorriso tão sarcástico, que fez meus ossos
estalarem.
Eu não fiquei para trás, não desviando o olhar para outro ponto qualquer.
Ainda mais no estado em que eu estava. Raiva pura. As frases mais esdrúxulas
que ouvira, depois de todas da Cássia Lúcia, é claro, vieram dessa freguesa da
loja.
— Luiza, eu vou levar as seis peças — ouvi a mulher dizer.
— Uau! Todas ficaram maravilhosas em você. E, não sei se reparou, mas dá
para variar entre elas e formar novos conjuntos.
— Perfeito. Vou usar todas no final de semana, porque tenho um encontro
marcado e não foi por aplicativo. Não preciso de aplicativo, sabe?
O que eu sabia era que enfiar todos os biquínis na boca dela e empurrar as
palavras espinhosas não seria difícil de eu fazer.
Engoli em seco.
Resolvi não dar ouvidos a ela e não quis demonstrar que estava nervosa.
Esperar por Celeste encontrar o cartão de crédito na bolsa e Luiza terminar
a baixa de cada peça no sistema da loja foi tempo suficiente para eu recuperar o
juízo.
Então preferi me levantar e dissimular checar as bijuterias expostas ao
longo de uma parede maior da loja e no balcão em vez de bater boca com a
mulher instigadora de confusão. Já bastava o desentendimento com Sebastián,
que havia começado a doer meu coração.
A luz deu uma piscada.
— Agora eu fiquei aperreada. Justo quando estava dando baixa no sistema,
a luz acabou — Luiza se irritou.
— Recebemos um comunicado de última hora dos órgãos competentes que
talvez chova daquele jeito que aconteceu no início do ano.
— Ah, não.
Resolvi ir embora. Para onde? Eu ainda não sabia.
Teimosa, orgulhosa, com o coração apertado, fiquei andando pela vila, mas
nada que meus olhos viam me emocionava. Meus pensamentos e sentimentos
eram todos dele, do nosso desentendimento. Nós havíamos dito coisas que
poderiam gerar marcas num relacionamento, um que eu não sabia como
definir. Essa dúvida acirrava o desconforto grande em meu coração.
Entrei em uma lojinha e comprei um caderno para desenho, além de um
conjunto de lápis de cor. Desenhar me acalmava. Eu desenharia todas as
paisagens do mundo se fosse preciso para encontrar o equilíbrio.
Meu estômago deu uma pirueta de fome.
Na pressa de sair para bem distante da loja, percebi que havia esquecido o
pacote de biscoito sobre o balcão. E, ao andar pelas ruelas, refletindo sobre o
que falar com Sebastián quando o visse, eu me esqueci de comer.
Avistei um restaurante de massas onde me sentei para almoçar. Nada de
peixes nem de praticante de kitesurf para me desorientar. Mas, como nada é
perfeito, o dono do estabelecimento era espanhol, então o sotaque que
amaciava com frequência os meus ouvidos e sensações me alertou que eu…
Ah, céus! Porcaria. Desgraça. Eu estava apaixonada por Sebastián. Bem que a
Heloísa havia me alertado outro dia, afirmando que eu estava derretida por ele.

Virei as palmas das mãos e gotículas esparsas refrescaram minha pele. Uma
gota de chuva aqui, um chuvisco ali, e parecia que a tal tempestade iria chegar.
Passando pela rua, um senhor com uniforme laranja avisou:

É
— Moça, o alarme de indicação de chuvas fortes foi acionado. É melhor a
senhorita voltar para onde está hospedada.
Eu tinha mesmo cara de turista? Com certeza.
— Certo. Estou indo — respondi ainda considerando aquilo um exagero.
Fitei o céu e constatei que de fato a força do vento trazia nuvens densas,
cinza-chumbo, que empurravam as mais claras para distante da cidade de
Jijoca. Lamentei não poder ver o pôr do sol naquele dia.
Oouuwiiiwi. Oouiuiwiii.
Meu abdômen fisgou de susto. Busquei de onde vinha o som insistente e
não identifiquei a sirene de alerta acionada em poste algum. Gente, ou eu
estava em algum campo de guerra e não sabia, ou a tempestade teria a força de
um furacão.
As pessoas se agitavam indo em várias direções.
— Sorry. Sorry — uma moça se desculpou por ter esbarrado em meu braço.
— Ok.
Oouuwiiiwi. Oouiuiwiii.
A sirene não dava trégua.
O vento passou a zunir com uma força descomunal.
Os pingos engrossaram passando de meros plec, plec para plec, plec, plec,
plec, plec...
Um estrondo de trovão me fez dar um pulo.
Optei entrar pela porta principal do hotel e não seguir o caminho da casa
do Sebastián pela praia.
— Nelinha, Sebastián passou aperreado por aqui. Ele estava te procurando.
Pediu para te avisar que é para não entrar no mar. Parece que a velocidade dos
ventos vai aumentar…
— E a tal tempestade está chegando — fitei o rosto do André,
completando seu raciocínio. — Chuva forte em Jericoacoara.
— A última foi um estrago. Fios na rua ficaram expostos. As ruas, alagadas.
Parecia que o mar tinha mudado de lugar, carregando tudo por onde passava.
Complicado.
— Eu não sabia disso. Ok, recado dado. Não vou chegar próximo ao mar e
nem voltar à rua.
A movimentação no hotel estava agitada. Os funcionários recolhiam as
espreguiçadeiras exclusivas para os hóspedes. Outros colocavam proteções de
aço, ou algo parecido, na frente do salão do café.
— Nelinha, Nelinha…
Avistei Max vindo da areia, ele segurava equipamentos de mergulho. Então
fui ao seu encontro até o fim do teto coberto de sapê, assim que ele acenou
para mim. Somente então notei que as ondas no mar se formavam com uma
altura impressionante, como eu não vira durante todos os dias da minha
estadia até aquele momento. A faixa de areia fora engolida alguns metros e a
espuma chegava próxima aos pés dele.
Um guarda-vida passou de quadriciclo e avisou aos poucos banhistas que se
encontravam na areia para sair logo dali.
O vento lançou meu cabelo numa diagonal, meio que de baixo para cima,
cobrindo parcialmente o rosto.
— Eita, a coisa está feia — falei ao ver o Max diante de mim e passei um
elástico nas mechas fartas.
— Seu Sebastián está louco atrás de você.
— Já estou sabendo. Obrigada por avisar, Max — aumentei a voz para ser
ouvida por cima da chuva insistente.
— Nós guardamos todos os equipamentos de kite no depósito para o mar
não levar. Parece que o mar invadiu o barracão na última tempestade forte e o
prejuízo foi grande.
Uma espuma mais espessa avançou mais para perto que antes.
— O mar está subindo rápido — falei alto a observação do meu cérebro.
Vi o céu ser cortado por um raio e cair na água.
Cabruuuuum!
O rosto do Max assumiu um semblante assustado. Ele encolheu os ombros
com o barulho do trovão. Olhou para trás e viu a cortina de água descendo,
que ia do teto ao chão.
— Vamos entrar, Nelinha. Está perigoso ficar aqui. Fora a chuva que está
aumentando cada vez mais.
O latido insistente chamou minha atenção para a areia.
— Já vou. Deixa eu chamar o Ozzy.
— Traz ele pra cá. Mas não demora.
Concordei com a cabeça.
Uma onda bateu com força e sua espuma se alastrou areia acima. Cada vez
chegava mais próximo do hotel. Eu temi que a maré engolisse o Ozzy. Ele saiu
correndo em fuga do mar para mim.
— Au. Au. Au — o amigo continuava latindo obstinado.
— O que está acontecendo, rapaz. Por que você não está em casa?
— Au. Au. Au.
Ele fez o movimento que ia correr e olhou para mim. Dei um passo à
frente, o bichano acelerou as quatro patas em seguida.
A chuva encharcou minha canga. Os pingos grossos batiam na pele numa
sequência assustadora enquanto perdia o fôlego atrás do Ozzy. A sirene deu
sinal de vida e repercutiu da rua principal até a praia. O frio cortou minha
pele. Encolhi os braços, mas me mantive firme atrás dele, preocupada.
— Menino, vem, vem. O mar está perigoso.
— Au.
Cabruuuum!
Abracei mais forte meu corpo, os ombros amparando as mãos, e larguei os
chinelos na areia. Tropecei num pedaço de madeira e meu dedo reclamou.
Ai!
Outro raio seguido de um trovão me fez repensar em retornar para o hotel,
mas Ozzy correu para perto do mar mais à frente um pouco. Olhei para trás e
não avistei o Max, nem ninguém nas piscinas do segundo andar, muito menos
na coletiva. Todos haviam se recolhido num local seguro.
O que eu estou fazendo correndo atrás desse cachorro teimoso?
Ao longe, o salva-vidas do quadriciclo buzinou tão insistente que Ozzy
voltou a latir.
Foi então que a minha percepção atingiu o significado do que acontecia.
— Meu Deus!
Olhei para o lado e estendi os braços para cima. Sinalizei para o salva-vidas
que viesse o mais rápido que pudesse. Mas ele estava distante. Não daria
tempo.
— Socorro! Socorro!
A onda cobriu a cabeça da mulher desesperada. Não havia escolha, eu tinha
de tentar salvá-la antes que fosse tarde demais.
Desatei o nó da canga do meu pescoço e corri para as ondas. Logo que
avancei alguns passos, saltando na espuma, já estava com a água acima do
abdômen. Sem o meu comando, o mar me puxou para dentro, a água vinha de
todos os lados formando redemoinhos. Meu coração disparou quando captei o
tamanho da onda que se dobrava e iria virar sobre a cabeça da mulher. Ela
gritava e, no seu desespero, não conseguia sair de onde estava. Era provável que
ela tivesse caído em uma vala.
Ai, meu Senhor!
A espuma grossa e alta vinha pra cima de mim e de repente me subtraiu a
visão do que acontecia além. Mergulhei. Um turbilhão me puxou para baixo.
Meus pés se desencontraram numa dança sem ritmo certo ao passo que, acima
de mim, o mar se movia com fúria.
Quando a água diminuiu a espessura sobre a minha cabeça, fugindo em
direção à praia, consegui nadar para frente e enfrentei a correnteza.
— Soo — Cássia Lúcia engoliu água — coorro.
Ou eu caía na vala com ela, ou não conseguiria salvá-la.
Que agonia!
Outra onda se formava e vinha impiedosa. Não estávamos tão distantes da
areia, mas parecia que o hotel se encontrava a um oceano de distância.
— Quando eu te empurrar, não tenha medo, vai com a onda como se
estivesse com uma prancha de bodyboard. Surfe a onda.
— Eu não vou conseguir.
— Vai. Você é forte — gritei para ela ouvir, já que outro trovão arrebentou
em algum lugar.
Nossos pés se moviam como loucos sobre a água na tentativa insana de nos
mantermos acima do fundo. Era uma vala, com certeza. A agitação que se
formou era sua característica significativa e aumentava à medida que a onda
chegava.
— Não tenha medo. Não olhe para trás.
Impus a força máxima em meus braços e empurrei as costas da Cássia
Lúcia.
— Vai.
Não tive tempo hábil para fazer o mesmo. Perdi o tempo da onda. Olhei
para trás e outra vinha, mas o vórtice aumentou embaixo de mim. Tentei me
erguer acima da espuma que bateu sobre a minha cabeça e me rodeou me
puxando para o fundo. Engoli água. Tentei nadar para cima. Quando consegui
emergir, outra onda esmurrou a minha cabeça.

Sebastián

De um lado para o outro, eu andava no escritório.


Onde essa maluca está no meio desse temporal?
Após a nossa discussão, perdi o contato com Antonella. Ela não havia
levado o celular.
— Seu Sebastián, venha rápido — André surgiu na porta e o sangue gelou
nas veias quando olhei para o rosto transtornado. — É a senhorita Antonella.
Na praia.
Meu coração sofreu várias colisões ao ouvir o nome dela.
— Ah, não.
CAPÍTULO 29
Eu sabia. Meus instintos me alertaram.
Não sei explicar como, mas uma angústia bateu forte em todas as partes de
mim desde que a chuva intensa começara, como uma previsão de
probabilidade alta de que algo terrível estaria para acontecer com Antonella.
Correndo pelo pátio, ouvi um pá, pá, pá de telhas batendo. A passagem do
vento estava sendo assustadora.
— O que aconteceu?
— Ela se afogou, senhor.
Meu mundo se decompôs. Arranjei forças para sacar o celular do bolso e
selecionar Calebe na agenda. Eu o havia dispensado para ficar com Miguel.
— Antonella se afogou. Fique a postos para levá-la para um hospital em
outra cidade, se for preciso.
— Que isso? Meu Deus. Mas não temos teto para decolagem. E, por terra,
as vias de acesso para fora da cidade alagaram.
Mierda!
— Calebe, desculpe por ter pedido isso. Você também estaria correndo
perigo. Foi o desespero.
— Não, eu entendo.
— Depois te ligo.
— Dê notícias.
Coloquei o celular no lugar de antes.
— Como Antonella está, André? Não esconda nada.
— Vi o Max correndo para a praia e gritando para alguém chamar o
senhor. Não sei mesmo.
Há muito tempo, eu não rezava. Mas foi o que comecei a fazer a partir
daquele instante.
Eu não devia ter me desentendido com ela. Se nós não tivéssemos brigado,
se eu tivesse de uma vez por todas sido transparente com ela, revelado o que
omiti para as pessoas sobre meu pai no passado, ela não teria saído, nem
permanecido horas fora de casa.
No salão do café, passei por Cássia Lúcia e lágrimas jorravam de seus olhos.
— Sebastián, eu não tive culpa. Eu não tive culpa — sua voz subiu uma
oitava afetada pelo choro espesso.
Alguns hóspedes estavam perto e a consolavam. A cabeça dela havia se
alojado no abdômen de uma senhora, que acariciava o cabelo desgrenhado.
— Parece que Antonella entrou no mar para salvar a Cássia Lúcia e não
conseguiu sair — André informou.
— Onde ela está? — gritei em desespero e desci a rampa até a praia.
Os coqueiros travavam uma batalha com o vento para se sustentarem
inquebrantáveis assim como minhas emoções necessitavam se manter firmes
para ter o raciocínio equilibrado.
Fui acompanhando o dedo do André levando meus olhos para o lado.
Avistei dois salva-vidas e o Max agachados ao lado de um corpo inerte na faixa
estreita de areia. O mar havia engolido parte da orla, que se avolumava com a
enxurrada em sua nascente, descia pelas vielas e encontrava a água salgada em
fúria.
Chegando perto, percebi que um dos salva-vidas passava do método da
ressurreição cardiopulmonar para o boca a boca. Mal sinal.
No. No. No. Dios Mio!
Arremessei os joelhos na areia.
Não. Não podia ser.
O salva-vidas havia pressionado as narinas dela e jogava ar direto na boca
da minha namorada. Ela era a minha namorada. O meu amor. Era assim que
eu a desejava em minha vida.
— Amor. Antonella volte. Volte, amor.
O salva-vidas fez mais compressões no tórax dela e retornou com o
procedimento de atirar o ar direto na boca, a qual eu mentalizava que voltasse a
falar meu nome em breve. Eu precisava ouvir a voz da Antonella, suave e
acolhedora.
Parecia que os fôlegos de todos nós estavam em suspenso tanto quanto o
dela.
O peito da Antonella se expandiu. As narinas se moveram motivadas pelo
ato de respirar.
— Graças a Deus! — Max sentiu o mesmo alívio que todos nós ali e se
levantou, com as mãos unidas na nuca, olhando para o céu, a chuva escorrendo
por seu rosto.
Antonella tossiu e foi virada de lado. A água escoou de sua boca. Um
engasgo. Outra tosse. Outro engasgo. Ela passou a respirar e isso era o mais
importante para todos e para mim, em particular.
— Seria bom que um médico viesse vê-la — um dos rapazes sugeriu.
— Eu vou correr atrás disso — André se adiantou.
— Vamos tirá-la da chuva.
Os profissionais competentes a puseram numa prancha de salvamento e
fomos todos juntos para o hotel. Ao nos verem atarantados, as pessoas foram
logo abrindo espaço e Cássia Lúcia se colocou no chão ao lado de uma
Antonella com os olhos abertos em confusão.
— Antonella, fala comigo, por favor — a mulher chorava sem cessar. —
Ela me salvou. Ela me salvou. Sebastián, ela me salvou.
— Essa é a minha Antonella — falei com a voz embargada de emoção.
Meus olhos não se desviavam do tórax dela. Eu tinha medo de que ele
parasse de se mover a qualquer momento.
No meio do caos, um bombeiro paramédico surgiu se desvencilhando das
pessoas junto com André, as calças de ambos encharcadas até a altura dos
joelhos.
— Quem é você? — Antonella olhou para mim e perguntou.
Senti meu peito se afogar em desespero.
— Sou eu, amor. Sebastián.
— Ozzy, Ozzy… — ela chamou o beagle, seu amigo.
Olhei para o bombeiro. Era um senhor de meia idade. Então eu o vi retirar
um aparelho respirador de uma bolsa em sua mão e encaixar no rosto da
Antonella. O alívio chegou às minhas emoções. Ele devia ser experiente.
— Ela vai ficar bem. Essa confusão mental é normal após ficar minutos
sem respirar.
Deus ouviu as minhas preces.
— E, por favor, pessoal, não tentem salvar mais ninguém dando uma de
herói. Chamem as pessoas treinadas para tanto. Não se aventurem.
Eu me senti culpado por não deixar o panfleto explicativo à vista dos
hóspedes. Os bombeiros deixavam o material sempre, em todos os
estabelecimentos da vila, para nós distribuirmos.
— André, pegue a cartilha de primeiros socorros para todos, por favor.
Ele seguiu para o depósito no mesmo instante, abrindo espaço entre o
burburinho das pessoas.
— Nós vamos ter que levar a moça a um hospital para exames e
acompanhamento — o bombeiro informou.
— O problema é… Como? Lá fora está tudo alagado — perguntou Max.
— Nós vamos dar um jeito. Nem que seja a nado — respondi, convicto,
olhando de baixo para ele.
— A ambulância não consegue rodar na rua alagada — o bombeiro
observou, com o olhar nivelado no meu.
— Como é o nome do senhor?
— Tenente Júlio César.
— O senhor me ajuda a levar a minha namorada na prancha?
— Precisamos de mais dois homens, um em cada ponta. Os salva-vidas
precisam ficar observando a praia para ninguém entrar no mar.
— Certo.
— Precisa somente de mais um. Eu ajudo — Max se ofereceu.
Em seguida, um hóspede se prontificou.
Nem sei quantos minutos depois, cada um de nós segurou uma
extremidade da prancha, com Antonella atada às tiras.
Uma hóspede, gentilmente, retirou sua canga e cobriu o corpo da
Antonella, que murmurava frases aleatórias.
Vi Cássia Lúcia inclinando o corpo para frente. Sua mão trêmula alisou da
testa da Antonella no topo da cabeça.
— Vai dar tudo certo. Eu estou viva. Você também vai ficar bem.
O que estava acontecendo era algo inimaginável. Parecia de fato surreal ver
a minha namorada estirada em uma prancha de bombeiro. Sempre tão cheia de
vida…
Não sei descrever o tormento que acontecia dentro de mim.
Então equilibramos o peso de uma Antonella meio desligada do mundo.
Os olhos estavam abertos, mas as pupilas, um tanto quanto dilatadas para o
meu gosto. Ao sairmos do hotel, nós nos deparamos com a corrente de água
carregando todo tipo de objeto até o mar, na ruela de acesso à rua principal. O
barulho da chuva caindo era assustador e das telhas das casas num bate-bate
que mais parecia que um tornado havia chegado ao litoral.
— Precisamos atravessar a correnteza para seguir pela outra rua até o
hospital. Vocês aguentam? — inquiriu Júlio César ao chegarmos à esquina.
Naquele instante, a água batia até um pouco acima dos joelhos.
— É melhor irmos logo porque a água vai subir de nível — falei afobado.
— Então no um, dois, três vamos. Ok?
— Certo — Max respondeu com uma expressão concentrada.
— Preparados? — Ele olhou para além da água barrenta. — Um, dois, três.
Impusemos a nossa melhor força para mantermos a maca equilibrada e
caminhamos com dificuldade na diagonal de uma calçada a outra, pelo menos
nós tínhamos a noção do espaço que deveríamos trilhar.
Um pedaço de madeira veio na direção do rosto da Antonella, eu consegui
pará-lo com minha perna. Soprei ao sentir o joelho gritar por mim.
Uuuuuuuuuh. Pá. Pá. Pá. Uuuuuuuuh. Cabrum.
Eram os sons do inferno. Vento zunindo, telhas conversando entre si e raio
cortando o céu.
Mas nós nos mantivemos firmes, apesar da dificuldade, com uma força que
vinha não sei de onde; nesses momentos conseguimos nos superar.
— Falta pouco. Força rapazes. Força rapazes. Vamos. Vamos — Júlio César
clamou.
— Nós vamos nos superar. Força. Força — o hóspede bradou.
Um transformador da rede de distribuição de energia estourou sobre nossas
cabeças, repercutindo um som similar a uma bomba.
Quando chegamos ao hospital, uma equipe de enfermeiros veio ao nosso
socorro. Seu Júlio César havia se comunicado com a base e solicitado para que
nos aguardassem.
De repente as lâmpadas piscaram e perderam a vida.
— Faltou luz. Vamos torcer para o gerador funcionar — uma enfermeira
disse, apreensiva.
Meu coração não tinha mais batidas para dar. As pernas suplicavam para eu
me sentar. Meu corpo se largou em um banco da sala de atendimento inicial.

Passei a noite em claro, em vigília no hospital. A consciência da Antonella


foi voltando ao normal após algumas horas, para o alívio geral. Medicada,
fomos liberados para voltar para casa de manhã cedinho.
Calebe foi nos buscar em minha caminhonete. Somente com carro alto era
possível trafegar com menos dificuldade na lama deixada como marca do
dilúvio.
No caminho, vimos que as pessoas haviam iniciado a limpeza da vila. Meu
coração ficou bem apertado ao constatar o resultado catastrófico causado pela
tempestade do dia anterior.
Por onde trafegávamos, os lojistas estavam retirando o acúmulo de sujeira
das suas lojas. Fios de alta tensão estavam caídos. A energia elétrica se ausentara
da vila desde o dia anterior, mas a empresa competente havia disponibilizado
seus funcionários para os acertos urgentes e necessários. Além dos sinais de
redes móveis e Wi-Fi, que não estavam sendo captados na região.
No hotel, não tivemos problemas maiores, a água não o invadiu. O mar
chegou na beira do salão principal, mas não avançou pela parede de proteção
de aço, posta como resistência à força da natureza. Algumas telhas voaram, mas
estavam sendo reparadas.
Ainda sonolenta devido aos medicamentos, Antonella dormiu assim que
chegou em casa. Eu apaguei após uma hora. Não conseguia deixar de conferir a
respiração dela, colocando um dedo sob suas narinas diversas vezes. O
sentimento de perda iminente me fez chorar e chorar, sentado na cama ao lado
dela; revivi os momentos de sofrimento quando perdi minha mãe para o câncer
de mama.
“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça…”, cantei a música
costumeira com que sua avó a acalmava, mesmo que minha musa não estivesse
ouvindo.
Dos meus olhos, lágrimas choveram.
Após um tempo que não sei precisar ao certo, abri os olhos e me assustei.
Parecia que os acontecimentos das últimas horas ainda estavam vivos no
tempo. Tateei a cama ao acordar, zonzo de sono, à procura da Antonella. Não
sentir o calor do seu corpo em mim foi torturante.
Saí do quarto e a procurei na sala. Não a vi. Somente o material de colagem
e desenho estavam dando sopa na mesa. Seus traços no papel eram
impressionantes, ela precisava investir em seu talento. Em uma das folhas, o
Ozzy corria pela praia, em outra… Gargalhei ao ver quem era e suas falas. Lá
estava o Astolfo, todo vigoroso no poleiro em seu momento xingamento.
Meneei a cabeça, rindo demais.
Então ouvi a voz, que tanto rezei para que voltasse a entrar em meus
ouvidos como música estimulante, vinda do deck. Descartei o caderno de
desenho na mesa e fui à porta; escorei o ombro ali. Senti o alívio definir meu
estado de espírito. Meu corpo relaxou após extensas horas.
— O que você está fazendo? Não está fraca para sair da cama?
— Hum — ela deu um pulo para trás. — Ah. Estou ensinando umas
palavras novas ao Astolfo. Até eu ir embora, ele vai ouvi-las tantas vezes, que
será impossível não as repetir.
Contornei a piscina e parei ao seu lado.
— Eu posso saber que palavras são essas?
Ela inclinou a cabeça para o lado.
— Quando eu for embora, espero que ele próprio lhe conte. Isto é, se você
ficar com ele.
Enquanto Antonella estivesse em casa, ele teria um teto, era a única certeza
que eu tinha.
— Pare de falar que você vai embora, por favor.
Seus lábios se encolheram.
O sol não se manifestara nesse dia, ainda encoberto por nuvens, não mais
pesadas como as do dia anterior. Olhei para a praia e nenhuma pessoa
caminhava. Muitos estavam recolhidos nas pousadas. Outros tinham ido
embora da cidade assim que o dia amanheceu e a água baixou. O Aroma
Marinho não se esvaziou, mas seria provável que turistas reivindicassem por
cancelamentos de reservas futuras, alegando falta de estrutura na cidade.
Problema que eu e Calebe teríamos que decidir como resolver.
Ainda vestida com camisola, Antonella circulou meus ombros com seus
braços cobertos por um casaco. Cerrei os olhos para sentir seus dedos
acariciando minha nuca. Era um afrodisíaco e tanto, ela sabia como encontrar
o meu campo minado. Seus seios, em contato com meu peito, afoguearam meu
membro. Aliás, bastava um toque dela para eu ficar excitado.
— Tem alguém que acordou.
Abri os olhos e encontrei as íris douradas em chamas. Ela me olhava com
apetite, um jeito diferente de todas as outras vezes, onde a reticência
predominava. A pele arrepiada implorava por mais, mais do que construímos
como intimidade até aquele instante.
— Perto de você, ele quase nunca dorme.
— E o que o faz sossegar?
— Você, é claro.
O beijo que recebi não foi singelo. Cada toque reivindicava que eu não
fosse um gentleman naquele instante. Eu desejava mais, muito mais da
Antonella.
— Amor, você ainda está se recuperando.
Ela piscou algumas vezes.
— Você me chamou de amor?
— Não posso?
— Eu gostei de ouvir. Fala de novo — ela suplicou num tom meloso.
Joguei a cabeça para trás e ri.
Por algumas horas, senti falta desse jeito doce da Antonella de derramar
amor por onde passava, da sua graciosidade, de experimentar a realidade do
meu melhor sentimento se sedimentando em meu peito por ela, por nós dois,
como uma marca nova e que me libertava de todos os meus traumas e receios.
Com ela, eu iria para o espaço, para qualquer lugar do mundo, para reforçar o
amor incondicional.
— Amor, amor, amor. Está bom assim?
Ela deu um mínimo passo para trás e estendeu a mão para a minha.
— Vem.
Foi irreversível, arrebatador e real tomar consciência que ela estava pronta
para mim. As pequenas rugas de receio que eu vira em seu rosto das outras
vezes tinham desaparecido, dando espaço para a certeza em seu sorriso.
— Tem certeza?
— Absoluta. Estou pronta para você.
O principal músculo em meu peito disparou milhares de vezes seguidas.
O que eu queria ouvir, que fosse real, estava embebendo meus ouvidos do
mesmo modo como o amor por ela foi trabalhando gradualmente como uma
espécie de gotímetro preenchendo meu coração. A certeza de que eu pretendia
investir em um relacionamento, no qual eu me lançaria por inteiro, não era
nem de longe uma fera bravia que me impedia de ser feliz. A leveza tomou seu
lugar de direito em mim motivada pelo efeito Antonella, um vento suave que
foi me envolvendo com sua passagem.
Mas ela não seria volátil em minha vida. Eu daria a ela a prova vital de
todos os meus sentimentos.
Passei o braço pelas pernas da dona do meu coração e a tomei em meus
braços.

Antonella

No quarto, Sebastián me rodopiou em um braço e nossos torsos se


tocaram. Quando olhei para os olhos acinzentados, eu sabia o que ele queria,
esperava, que cobraria a minha promessa ainda inacabada. Do mesmo jeito,
meu corpo não rejeitaria seu apelo. O tesão que sentia por Sebastián era algo
incontestável.
— Eu estou completamente apaixonado por você.
Aquilo era verdade? Tipo verdade mesmo?
Meu coração pareceu se deslocar no peito. Era inegável a constatação de
que o meu amor havia se alojado no meu coração.
— Eu também estou completamente — olhei nos olhos, os mesmos que
me atraíram na primeira piscada — amando você, Sebastián.
Ele emitiu um gemido, uma mistura de deleite com surpresa. Eu sei. Nós
estávamos a níveis divergentes de sentimentos, era o que parecia.
A paixão é efêmera; um degrau a menos na escala do amor. Esse último é
duradouro. Mas negar o que girava em looping legítimo no meu coração,
turbinando os meus sentimentos, era negar a mim mesma. Eu passei a amar o
Sebastián mais do que nunca após ter a mais bela consciência de ele não ter
medido esforços para cuidar de mim. Eu me sentia sua princesa, a que ele
colocava em um pedestal. E ele poderia me chamar assim se quisesse. Mas a sua
maior prova de amor veio não com palavras e, sim, com atitudes.
Mantendo o olhar fixo no dele, retirei o casaco do corpo e o permiti
escorrer por meus braços. Depois a camisola, que se espalhou pelo chão,
cobrindo os meus pés.
Completamente nua diante de um rosto corado pelo desejo, eu expus meu
sentimento mais profundo, além da minha carne, na clara indicação que eu me
entregaria de corpo e alma, enfim.
CAPÍTULO 30
— Eu me sinto o homem mais sortudo do mundo.
O peito do Sebastián subia e descia sob a minha palma. Os olhos nublados
me pedindo autorização para eu ser tocada por suas mãos e lábios. Eu queria
mais dele, muito mais. Não pensei que fosse me sentir tão nervosa quanto no
dia do nosso primeiro beijo, ou no dia em que havíamos trocado carícias na
cama pela primeira vez. Eu estava mais, muito mais nervosa.
E um tanto ansiosa.
Fui com os dedos trêmulos ao cós da sua bermuda e estendi o elástico do
short do pijama o suficiente para tirar o pano no caminho das pernas cobertas
por pelos dourados. O dorso dos meus dedos arrastando desejo na pele
aquecida pela fome por me possuir incentivou que o membro entre seus
quadris endurecesse num sussurro legítimo para a minha libido aumentar.
Era o tesão que nos regia como um maestro a afinar os músicos.
Ao me livrar das barreiras existentes, envolvi minha mão na dureza do
Sebastián, embora minha pele sentisse a maciez que o revestia. Ele gemeu e
ergueu meu maxilar na intenção de que nossa sintonia se ligasse, a emoção se
fundisse, o nosso amor se completasse. E foi então que a minha parte mais
sensível foi tomada por sua umidade habitual, motivada pelo homem que havia
arrebatado o meu coração. Ela concentrou uma súplica explícita por tê-lo
dentro de mim.
Eu me sentia a mulher mais maravilhosa do mundo estando com ele.
Minhas sensações seriam eternizadas em minha memória.
Num ato instintivo, eu o incentivei com minha mão, excitando sua libido
num movimento de subida e descida que o fez pender a cabeça para trás e
soltar um murmúrio de prazer.
— Amor, vamos nos deitar, ou não vou conseguir chegar à cama — ele
exigiu, a voz rouca.
— Você gosta?
Ouvi sua resposta com mais um grunhido. Não me fiz de rogada e cobri
sua excitação com meus lábios. Passei a reproduzir os movimentos executados
por minha mão, sugando-o dentro da minha boca.
Os dedos afoitos se prenderam em meu cabelo. A boca soltou um rosnado
tão primitivo. Tão excitante.
— Vamos deitar — ele conseguiu falar.
Subi lentamente o corpo após sua súplica enquanto larguei beijos suaves
em todas as ondulações do seu abdômen num gesto de reverência à sua
musculatura. Não houve como evitar que o som gutural e fujão escapasse dos
meus lábios e se misturasse ao dele.
Quando estava mais perto da boca soltando ruídos de prazer, mordisquei o
queixo coberto pela barba rala. Ele me beijou sem compaixão, ato reflexivo do
que acontecia em seu corpo. Quente, molhado, desejoso, essa foi a nossa
principal troca de mensagens.
Ain. Eu não aguentava mais tanta luxúria. Explodiria em pedaços mínimos
ali mesmo com as mãos dele instigando os mamilos dos meus seios.
— Sebastián…
Ainda a dois passos da cama, ele massageou meu ponto frágil abaixo do
meu abdômen. Gemi, gemi, gemi em seus lábios, que não me liberaram por
nada. Ele me dava amostras do que eu receberia quando estivéssemos na
horizontal, na nossa entrega total.
Revirei os olhos quando ele foi abrindo o espaço, o mesmo que eu
pretendia que fosse preenchido sem demora.
— Você quer mais?
— Muito mais.
— Eu vou te dar tudo que deseja, minha gostosa.
— Até explodir?
— Juntos. Como tudo que fazemos.
Seus pés me comandaram a dar dois passos para trás, o espaço que nos
separava do lugar onde seria o nosso abismo. Lentamente, ele se deitou sobre o
meu corpo vulcanizado, seus lábios desbravaram meu pescoço enquanto uma
mão se prendeu em minha coxa. Como consequência, a minha cabeça inclinou
para um lado, expondo a pele onde a barba promovia o seu arrepiar.
Estava sendo muito melhor do que eu previra. Mais excitante. Um
momento único e especial. Nossas emoções estavam alinhadas e direcionadas
para um mesmo caminho.
Senti o calor do seu hálito em minha boca, a língua fazendo o alvoroço se
amplificar como uma onda entregando o prazer por todas as partes de mim. Eu
queria gritar e dizer a ele que estava prestes a explodir em uma sensação bruta e
irremediável, mas a voz não encontrou o tom.
Eu tive de impor um controle ao meu corpo. Arfei com o prazer que ele me
proporcionou e ergui uma coxa, assinalando a ele a necessidade de tê-lo em
mim.
— Você gosta que eu te toque aqui, não é?
— Sim — concordei, ofegante.
— Eu sei que gosta. Conheço todos os seus pontos de excitação. Sabe por
quê?
— Hã?
Eu não encontrava mais forças para falar.
— Porque eu gosto de dar prazer à mulher que amo.
Meu coração se perdeu com as palavras repentinas dele.
— Eu te amo, Antonella.
Ainda consegui dizer que o amava sobre os lábios me oferecendo um beijo
faminto.
Então ele circulou minhas pernas com seu braço e sustentou no alto. Os
dedos abandonaram o que faziam. Firmou a mão na cama e eu… Ah, Deus!
Eu sabia. Seria naquele momento que sentiríamos um ao outro em sua
completude.
— Mierda.
— A camisinha?
— Está na cômoda.
Num segundo, ele se ausentou do meu corpo. Nos três segundos seguintes,
diante do móvel, ele abriu o pacote metálico. Dois segundos depois, ele se
ajoelhou na cama e cobriu o membro rígido com os olhos fixados nos meus
por um tempo que parecia não findar.
— Você me quer?
— Quero você. Quero agora.
Meus cílios tremularam enquanto Sebastián foi se arrastando para o meu
íntimo; latejando de desejo, estremeci e não fui a única.
A atração mútua havia se transformado em um amor crescente, puro e…
arfante. Há três anos eu não era mais virgem, mas jamais havia sentido uma
emoção como a daquele instante.

Sebastián

Parecia que eu havia encontrado meu lar ao penetrar em Antonella. Fora


uma longa jornada travada com um destino incerto, que não me dava o
benefício de descobrir o amor. E, quando eu menos esperava, sem
planejamento prévio, sem ilusões anteriores, a possível mulher que dividiria
meus sonhos havia surgido, ensinando-me que tudo acontece no seu tempo.
Ela era minha. Eu estava nela, sentindo a maciez do seu sexo ensopado por
seu líquido excitado. E era eu quem estava dando o que ela desejava e merecia
como a mulher linda, suscetível e estimulante que era.
Movi um dedo ritmado em seu ponto mais sensível enquanto me
impulsionava profundamente nela. Uma, duas, milhares de vezes se fosse
preciso para atender o pedido dela, uma súplica ansiosa por ser tomada pelo
movimento pragmático e constante do meu membro, intercalado por mexidas
circulares que estimularam que o quadril dela fosse atraído pelo meu.
Ela arqueou as costas, os lábios se separaram ainda que estivessem unidos
nos meus. Friccionou seu baixo ventre em mim.
— Isso, amor — a rouquidão tomou a minha fala junto aos gemidos
abafados que saíam da boca, que passara a ser minha.
Ela me puxava, exigindo que eu comprimisse meu corpo ao dela ainda
mais, em uma busca frenética pela chegada do apogeu do nosso prazer.
Ela estava pronta para mim. Para nós dois. Para o nosso orgasmo em
harmonia.
Não tive tempo de beijar os mamilos que tanto me excitavam contra meu
peito, explorar sua cintura com minhas mãos, dar mordiscadas em seus
ombros, porque nós estávamos no caminho da explosão dos sentidos.
Ergui minhas mãos à nuca embebida pelo suor, trazendo o rosto dela para
mim. Aumentei a pressão dos meus lábios nos dela, me beneficiando e
oferecendo um beijo arrojado, alucinado, tanto quanto o impulso, arrebatador
e derradeiro do meu membro em Antonella.
— Vamos, amor? — sussurrei.
— Juntos, como você queria.
CAPÍTULO 31
Saí do banheiro e um cheiro bom me alcançou. Fui ao balcão da cozinha, onde
me sentei na banqueta com um cotovelo apoiado no granito. Antonella
preparava uma panqueca de banana com coco e aveia. Segundo ela, havia
aprendido algumas receitas com a Márcia. Aquela foi a primeira vez que a vi
acender a boca do fogão, na verdade.
— Como as coisas estão mudando por aqui.
Ela se apossou do pano de prato e bateu com ele no ar.
— Não zoa, amor.
Vi a possibilidade de acontecer um desastre iminente.
— Cuidado com a frigideira — alertei.
Com agilidade, ela voltou a segurar o cabo.
— Vai se acostumando comigo na cozinha. A próxima receita será o
Camarão no Abacaxi.
— Olha. Essa novidade eu quero ver e comer. O prato principal do
cardápio da cidade…
Assoviei.
— Eu vou superar o da Márcia. Você vai ver.
— Não duvido.
Ela apontou a colher de pau para mim.
— Um dia ainda vou conseguir cozinhar uma Paella pra você.
Gostei de ouvi-la fazendo planos futuros comigo.
— Está disposta mesmo, amor. Tenho certeza de que eu vou comer até o
último grão de arroz — sorridente, ela voltou a olhar a panela. — Mas por que
você resolveu fazer a panqueca? Não seria melhor nós partirmos para o jantar?
— Ainda temos que nos arrumar e alguém me deixou com uma baita
fome.
Vi o olho da Antonella piscar.
— Sempre às ordens, minha musa.
Enquanto mexia a mistura, ela me olhou de relance.
— Amor, eu gostei muito da iniciativa do hotel de receber os desabrigados
num jantar comunitário. Daqui a pouco vamos ajudar também?
— Eu falei com o pessoal que você ficaria repousando. Iríamos só mais
tarde.
— Ah, não, Sebastián. Nem pensar. Não perco a chance de participar disso
nunca. Estou bem.
Como ela passara a me conhecer como ninguém, fixou o olhar no meu
rosto e o apurou de canto a canto.
— Você está bem?
— Melhor do que nunca.
Trocamos sorrisos e olhares maliciosos.
Mas ela não estava equivocada em sua análise. Eu tinha um problema. Dos
grandes. Não sabia como falaria à Antonella sobre o real motivo de eu ter me
mudado para o Brasil. Isso estava me consumindo. O mais coerente seria que
ela soubesse de tudo por mim, preocupação genuína que me impulsionou a
iniciar o assunto.
— Amor, eu preciso conversar com você.
— Lá vem bomba. Quando as pessoas fazem essa introdução…
Eu tinha plena consciência de que seria uma bomba, sim. Que eu poderia
ser apontado como filho de um ladrão. Que eu poderia ser taxado como um.
Mas eu falaria tudo, mesmo sentindo receio de ser julgado. Mas não por ela.
Eu duvidava que Antonella me punisse por algo que não tive culpa.
— O nome do meu pai é Francisco Javier Munõz. Sou Sebastián Martinez
Munõz. Éééé — cocei o nariz. — Infelizmente, ele está preso na Espanha.
Com as sobrancelhas franzidas, fiquei esperando pela reação dela, o coração
em suspenso, uma friagem promovia arrepios na coluna provocada pelo
complexo de recordação, dor e vergonha.
Calmamente, Antonella passou a panqueca da frigideira para um prato e
veio para mim, onde existiam duas louças menores e um conjunto de talheres
arrumados no balcão. Salpicou canela por cima da mistura. Ela processava a
informação em sua cabeça. Meu coração gelou com a expectativa da reação
dela.
Como Antonella se deteve com as palavras e encarava meus olhos me
incentivando a continuar o que eu havia iniciado, reagi ao seu comando.
— Meu pai sempre foi um homem ambicioso. Quanto mais ele possuía,
mais ele queria. Não tinha limites. A grande surpresa para mim foi que
também não tinha escrúpulos — aquelas palavras ficaram entaladas na minha
garganta. — Dói dizer isso, mas a moral dele era baixa, tão baixa que acabou se
tornando o maior estelionatário de todos os tempos em meu país.
A boca dela fez um bico com os lábios semiabertos.
— Lamento, Sebastián. Eu… não sei o que dizer.
Alcancei a mão dela sobre a perna e a beijei com os olhos fechados.
Tomando coragem, olhei em seu rosto de volta.
— Ele montou um esquema milionário de pirâmide financeira.
— Sei como é. O cabeça do esquema atrai vários investidores com
promessas de dinheiro fácil se eles recrutarem mais pessoas para aderirem ao
“projeto” financeiro.
Ela fez aspas com os dedos e me surpreendeu por saber como funciona um
esquema de roubo. Se bem que o pai dela era empresário e esse tipo de assunto
deveria surgir em rodas de conversa. Talvez ele tivesse conhecimento de quem
era mi padre.
— E assim a pirâmide vai sendo formada.
— Isso mesmo. Quando ele completou uma grana muito alta com o golpe,
fugiu com o dinheiro, deixando todos os supostos investidores a ver navios,
como vocês brasileiros falam. Foi um choque descobrir que meu pai era ladrão.
Soube com a polícia batendo à nossa porta.
Antonella arrastou a mão de um olho à bochecha e murmurou “Meu
Deus”.
— Quando tudo desmoronou, o peso da responsabilidade se instalou em
minha vida muito cedo. Cuidar da minha mãe mui doente foi o que coube
para mim depois que ele fugiu para se livrar da cadeia. Todo o dinheiro que
estava no nome dele foi confiscado, bens e tudo mais. Meu pai destruiu a nossa
família emocionalmente mais do que fazia com sua indiferença afetiva.
— Por tudo que você falou sobre ele noutro dia, seu pai nunca os viu como
família. Desculpe dizer isso.
Eu me vi assentindo com a sinceridade dela e com a sua maturidade.
— Em tudo que eu tentava investir, não conseguia credibilidade. O peso
do sobrenome me acompanhou como uma ameaça invisível. Nossa família foi
rechaçada nos jornais de todos os lugares da Espanha.
Soprei o ar longamente.
— Vocês passaram necessidade?
— Minha avó tem posses. Muitas por sinal. O pai dela deixou um
complexo hoteleiro para ela administrar. Mas ao contrário do meu pai, ela é
rica e honesta.
— Não entendo como as pessoas não entendem que ter poder é passageiro.
— Si. O poder subiu à cabeça dele. Acredito que por minha mãe ser rica,
ele se casou com ela. Mas minha avó sempre foi esperta e continuou
administrando os negócios dela e do meu avô sem a interferência dele.
Dei uma pausa no relato da vida da minha família para puxar o ar para os
pulmões.
— Recebemos ameaças das pessoas lesadas por ele, nossas vidas se tornaram
um tormento.
— Ah. Muito triste ouvir seu martírio, Sebastián — ela acariciou meu
rosto. — E vocês continuaram morando na Espanha?
— Fomos para a Inglaterra durante um tempo. Depois que as coisas
esfriaram, voltamos, mas foi o que disse, eu não conseguia trabalhar, progredir.
Estudei engenharia civil e o meu diploma não valia de nada porque ninguém
confiava no filho de um ladrão.
— Então foi você que projetou o hotel?
— Si.
— Uau! Fez um trabalho e tanto.
— Obrigado, amor — arrastei de leve as costas dos dedos no rosto da
minha namorada. — Bom, é isso. Por isso eu entendo você ficar chateada com
a exposição nos jornais e na internet. Eu já passei por isso.
Antonella pulou da banqueta e abriu os meus joelhos. Ajeitou o corpo em
mim. Senti seus braços me acalentando ao circular meus ombros. A carícia na
minha nuca veio como de costume. Fechei os olhos. Antonella me fazia tão
bem.
— Lamento mesmo por tudo o que você passou — seus lábios colaram
suaves nos meus.
Gemi em agradecimento.
— Para mim, não mudou nada entre nós dois, tá bom? Você é o Sebastián
de sempre.
— É um alívio ouvir isso.
De fato, era excepcional.
— Você não se importa mesmo de namorar o filho de um estelionatário?
— Quem se importa? Eu namoro você, não seu pai.
— Eu senti na pele o julgamento sobre meu caráter.
— Sabe que eu gostei do seu pai?
Surpreso, mantive os lábios unidos. Ela manteve os olhos nos meus por um
momento.
— Se ele não tivesse feito tudo que fez, você não teria vindo parar no Brasil
e nós não teríamos nos conhecido.
Soltei um sorriso.
— Faz sentido.
— Ei! Espera aí? Você disse que eu e você… — ela inclinou a cabeça para o
lado, nossos narizes resvalaram —, você me pediu em namoro oficialmente,
Sebastián?
— Digamos que eu somente não havia pedido em voz alta. Você aceita me
namorar, senhorita Antonella?
Acirrei a pressão dos meus braços na cintura dela, exigindo uma resposta.
— Só se for agora.
Disparei uma risada.
Em seguida, encostei a minha testa na dela, grato por conhecê-la. As
inseguranças, o temor de colocar em voz alta meu passado, o receio de perdê-la,
tudo virou pó com uma conversa sincera.
— Amor, a panqueca vai esfriar.
— Vamos ver se você arrasa na cozinha, assim como em outras coisas.
— Vou tomar essa observação como um elogio.
Ela piscou.

Antonella

Uma hora depois, eu me surpreendi com o que vi no pátio interno do


hotel. Ou não tanto assim, já que Sebastián e as pessoas que o rodeavam eram
simpáticas e amorosas. Eu fui a prova viva de que a receptividade era uma
característica de todos eles.
Uma mesa grande havia sido arrumada de comprido e panelas fumegantes
estavam sobre descansos de madeira. Márcia, Giovana e Ariadne usavam
aventais e lenços na cabeça, servindo a fila. Calebe organizava a logística do
fluxo de pessoas enquanto André entregava os pratos e talheres descartáveis a
todos que ali entravam.
Dei um gritinho de animação.
— Amor, vou lá fora conversar com os moradores. Não saia daqui, tá bom?
— Pode deixar que eu não vou me jogar no mar.
Sebastián olhou feio para mim.
— Sem surpresas, Antonella.
— Ok.
Dei um beijo casto em seus lábios antes de ele fazer o que tinha que fazer.
— Onde encontro um kit desse para mim? — perguntei à Márcia,
chegando por trás dela e apontando para o avental. — Oi, meninas!
Concentradas no que faziam, elas somente sorriram.
— Não precisa ajudar, Nelinha. Você está bem?
Ela serviu uma concha de feijão sobre o arroz que a Ariadne havia colocado
no prato do senhor diante de nós.
— Hum, hum. Minha avó me ensinou que fazer o bem cura todas as
doenças e problemas. Então bora colocar as mãos na massa.
— Está bem. Na cozinha há uns aventais.
— Indo lá, agora.
Ao pisar com os dois pés no segundo lar da Márcia…
CAPÍTULO 32
...fui absorvida por um abraço.
— Meu Deus! Como é bom vê-la!
Fiquei paralisada.
Cássia Lúcia me largou e buscou minhas mãos.
— Eu estava louca de vontade de te encontrar. Antonella, você tem noção
do que fez? Salvou a minha vida depois de tudo...
— Olha, vamos apagar o passado, tá bom? Eu jamais deixaria acontecer
alguma coisa com você.
Andei até a mesa no centro da cozinha.
— Achei o que vim buscar.
Peguei a alça circular do avental, enfiei na cabeça e amarrei as pontas das
outras duas nas costas. Somente então notei que a Cássia Lúcia estava com um
avental, embora tivesse mantido seus Louboutin. Foi uma verdadeira surpresa
vê-la com disposição de prestar algum tipo de solidariedade a quem quer que
estivesse passando necessidade.
Fui tão transparente com a expressão em dúvida, que ela detectou a minha
checagem. Devo ter feito aquela coisa com as sobrancelhas de elevá-las porque
ela logo emendou um discurso.
— Eu ajudava minha mãe no bar da comunidade onde morei. Trabalhava
muito e não reclamava por isso — ela apontou para si. — Eu e o avental
éramos íntimos.
— Ah.
— Você pode não acreditar, mas eu era feliz naquela época. Depois de
conhecer pessoas de outro nível social, passei a sentir vergonha de quem eu era.
Até que fui descoberta por um olheiro e entrei no mundo das passarelas.
Primeiro como modelo profissional. Depois descobri que tinha talento para
desenho e fiz faculdade de moda. Então a carreira decolou.
— Estudar sempre é maravilhoso. Abre o leque de opções e a cabeça. Eu
estou pensando em fazer um curso de ilustração. Gosto muito de desenhar e —
estava destravando demais a língua para ela —, bom, é isso aí.
— Nem sei por que estou falando tudo isso. Aliás, sei, sim. Antonella, mil
desculpas pela forma como a tratei. É do fundo do coração.
— Você deveria pedir desculpas às pessoas que destratou, tipo a Ariadne.
Sua respiração ergueu os seios. Aquilo seria difícil para ela.
— Vou fazer isso, sim. Nem fiquei lá fora porque percebi que não fui bem
recebida.
Normal.
— Complicado.
— Antonella, você não tem noção da dimensão da sua ajuda. Resgatou-me
não somente do mar, mas da vala da soberba na qual me permiti afundar.
Quando você disse para eu me lembrar das minhas origens, me senti
humilhada, em vez de ter orgulho de onde vim. Isso significou desvalorizar
todo o esforço que minha mãe fez para me criar, para me colocar onde estou
no momento.
— Reconhecer o esforço alheio é importante mesmo.
— Muito obrigada por isso também. Ninguém jamais me pôs no meu
lugar como você. Uma moça bem mais nova do que eu e tão sábia.
Hesitante, olhei nos olhos dela em busca de um brilho de honestidade. O
que eu me questionava era o depois, quando a vida retomasse ao seu estado
normal. Será que ela se manteria fiel a esse discurso de quase morte?
— Não precisa agradecer, não. Tá tranquilo.
Peguei o lenço e o dobrei ao meio, formando um triângulo. Ganhar tempo
para me livrar do nosso contato mais estreito era o que eu pretendia. Minha
simpatia por ela ainda teria de ser trabalhada.
Uni as pontas com um nó abaixo do cabelo enquanto pensava que o
Sebastián havia dito que não se sentia bem mentindo, como fizemos para a
Cássia Lúcia em relação ao nosso namoro, no início. Eu me senti mal por isso
também.
Depois de um curto momento, Cássia Lúcia se recolheu no silêncio. Voltou
a encher os copos com suco. Pelo visto, sua tarefa era servir as pessoas do pátio
com a bebida.
Mantendo o semblante firme, mas aliviando a barra para ela, eu dinamizei
um novo assunto, não tão inédito, mas necessário se quiséssemos manter um
nível de civilidade entre nós.
— Eu queria te dizer algo, Cássia Lúcia. Nem sei como começar.
Seu olhar me encontrou outra vez.
— Naquele dia em que você foi à casa do Sebastián e me viu lá, nós ainda
não estávamos namorando. Quase. É, estávamos quase lá. E não nos
conhecemos pelo “Mais que um Match”.
— Não? Bom, não estavam namorando ainda, mas a química entre vocês
não passava em branco.
Contornei a mesa e encostei o quadril na madeira.
— Meu nome é Antonella Vivian Alencar Braga.
— Filha do magnata Aurélio Braga? Como a chamam mesmo?
— Uix. Infelizmente me chamam de Princesa da Celulose.
Ela correu um polegar em seu lábio inferior, a boca semiaberta indicava a
incredulidade.
— Como eu quis desenhar seu vestido de noiva…
— Ih, menina — abanei a mão. — Deixei tudo por conta da minha mãe.
Ela organizou o casamento com a minha sogra, corrigindo, ex-futura-sogra.
Parei por um instante para refletir. A falta de empolgação com os
preparativos já era um indício de que eu não estava feliz.
— Como eu não a reconheci?
— Deve ter sido o uniforme do hotel.
Envergonhada, ela abaixou a cabeça.
— Desculpe. Quero ficar numa boa com você. Por isso, preciso contar a
verdade. Mentira, quanto mais a gente fala, mais a gente se enrola. E o que é
errado vira uma verdade equivocada. Bem, a minha história com Sebastián
começou assim…
Mantive o semblante firme enquanto narrava tudinho para ela, desde a
igreja até aquele momento. Tim-tim por tim-tim.
Ouvir a minha própria voz foi como se eu atravessasse uma ponte que
dividia a sensação de impotência para o equilíbrio.
— Menina, você foi muito corajosa. Isso diz muito sobre você. Nelinha,
passei a admirá-la ainda mais.
— Desculpe, Cássia Lúcia, se nós mentimos pra você. O Sebastián não está
se sentido bem com isso, embora nós estejamos juntos mesmo.
— Imagina! Não precisa se desculpar. A culpa foi minha. Eu não agi bem
com ninguém deste hotel desde que pus os pés aqui. Sabe, eu me iludi com a
fama astronômica após ganhar o reality show — ela abriu um sorriso cúmplice.
— Mas vocês me ajudaram, sabia?
Olhei para ela sem entender.
— Fiquei curiosa para saber como o “Mais que um Match” funcionava e se
eu daria sorte como vocês supostamente tinham dado. Bom, conheci uma
pessoa, mas, com toda a catástrofe de ontem, remarcamos nosso primeiro
encontro.
Ah, a Luiza havia mencionado algo.
— Que bacana! É daqui?
— Sim. O pai do Ozzy.
— Ah! Amei! Vou torcer para que dê certo.
— Eu estou bem animada.
— Não sei se te contaram, acho que nem tive tempo de falar sobre isso,
mas foi o Ozzy quem te salvou.
Márcia entrou correndo pela porta e firmou as mãos na cintura.
— Ei! Vocês duas não vêm trabalhar? Tragam os sucos — ela puxou a
orelha bonito.
— Estamos indo — respondi.
— Não demorem.
Aquiescemos com ela.
— Retornando ao Ozzy. O que ele fez? — Cássia Lúcia não se aguentava
de curiosidade.
— Vou contando enquanto trabalhamos.
Surgimos na área e nos posicionamos após as pessoas passarem pelas outras
três que enchiam os pratos descartáveis com refeição.
— Eu voltei a viver conhecendo todos vocês — Cássia Lúcia disse
baixinho.
— Eu também — concordei com os olhos lacrimosos.

Duas horas após e mais de sessenta refeições servidas, joguei a carcaça no


sofá. Meus pés doíam, eu me sentia enfraquecida, porém feliz como nunca.
Sebastián se agachou diante de mim e abriu o fecho das sandálias. Tirou
uma por uma dos meus pés. Com as pontas dos dedos, ele iniciou uma
massagem formidável, no ponto certo para o relaxamento surgir.
— Isso é o paraíso.
— Você trabalhou muito, amor. Não deveria ter se esforçado tanto.
— Foi tão bom. Eu me senti útil como nunca. Minha avó ficaria orgulhosa
se estivesse aqui e me visse ajudando nesse projeto solidário. O que vocês
organizaram foi lindo demais.
— Amanhã será na pousada vizinha, a do dono do Ozzy. Vamos revezar até
a Prefeitura receber as verbas oficiais.
— Ah, nem te conto. Eu e a Cássia Lúcia conversamos.
— Ficaram amigas? Eu vi que vocês duas trabalhavam em equipe. Nada
como um dia após o outro.
— Nem tanto, mas estamos nos entendendo aos poucos. Não acredito em
mudanças repentinas drásticas de personalidade. Mas...
— Isso é bom.
Sebastián levantou e eu lamentei por não receber mais o alívio para os pés.
Ele deitou no sofá e pôs a cabeça em minhas pernas. Foi automático
afundar minha mão no cabelo macio no alto da cabeça.
O dorso da mão dele acariciou meu braço.
— Mas o que você ia dizer?
Quando eu ia contar sobre a novidade da minha conversa com a Cássia
Lúcia, meu celular pipocou mensagens de todos os aplicativos possíveis.
— Eita que o aparelho ressuscitou — falei.
— Sinal que o Wi-Fi voltou a funcionar.
Estiquei a mão para a mesa lateral quando o toque da chamada de ligação
disparou. Olhei sem acreditar para a tela.
— É o meu pai.
— Atende. Ele deve estar preocupado com você. É provável que a enchente
tenha sido televisionada.
— Não tinha pensado nisso.
Sebastián deu impulso nas pernas e se levantou. Chiou, colocando as mãos
nas coxas. Ele fez careta.
— Ainda estão doloridas de ontem.
Em seguida, achou o controle remoto e ligou a televisão. Deu três passos
para trás e voltou a se sentar ao meu lado.
Mal foi o tempo do meu dedo deslizar na tela…
— Antonella Vivian, minha filha, como você está? Sua mãe não para de
chorar, aflita, sem notícias suas.
“Chuva forte atinge a cidade de Jijoca, onde fica um dos paraísos nordestinos, a Vila de
Jericoacoara. Não houve mortes com a passagem da chuva de ontem, embora casas tenham
sido destelhadas com a força do vento…”
A repórter informava o quadro crítico do povoado enquanto imagens das
águas varrendo as ruelas eram mostradas.
— Eu estou bem, pai.
— Você está passando em todos os telejornais sendo carregada numa
prancha de bombeiro. Minha filha, não consigo chegar aí. Não há teto para
aeronaves sobrevoarem a região — a voz do meu pai era de genuína
preocupação. — Vou colocar no viva-voz.
Sebastián cutucou minha perna com o controle.
“É você”, ele balbuciou e mostrou a tela da televisão.
Fiquei assombrada com a cena. Ele, Max e dois outros homens me
carregavam na prancha com uma coragem absurda para atravessarem o fluxo
em declínio da água barrenta.
— Filha, você está mesmo bem? O que aconteceu para você ser carregada
daquele jeito? Eu vi nas imagens. As reportagens não informam quem é a
moça, mas eu a reconheci no mesmo instante — minha mãe intercalava a fala
com uma fungada.
A emoção que eu vinha sufocando desde que acordei no hospital, invadiu
meus olhos ao ouvir a voz da minha mãe. Precisei juntar todas as forças para
conseguir responder seu apelo por informação sem me desmanchar em
lágrimas.
— Mãe, eu estou bem. Ah, eu fui salvar uma senhora que se afogava e
acabei ficando no mar. Mas os salva-vidas conseguiram me retirar da água.
— Que imprudência Antonella Vivian. Você poderia — minha mãe
soprou ao telefone. — Nem quero falar em voz alta o que pensei.
— Amanhã, parece que vão liberar o espaço aéreo. Vou te buscar, minha
filha.
— Não, pai. Já disse que estou bem. Não quero que venha me buscar antes
do tempo. Daqui uma semana já estarei de volta. Tenho que trabalhar.
— Trabalhar…
— Não comece, pai.
— Quando chegar, conversamos. Vou deixar você se despedir da sua mãe.
— Você está bem mesmo? — minha mãe quis saber.
— Sim, mãe. Não se preocupe. Estou sendo cuidada por todos.
— Já está na hora de vir embora, menina.
Uma ova que eu iria.
— Depois passe os dados do seu voo. Vou mandar o motorista te buscar.
Sei que o dia da sua chegada é justo no do brunch na casa dos Sales — disse
minha mãe.
Claro, o motorista me buscaria. Não ela.
O amor da minha mãe sempre foi estranho. Ao mesmo tempo em que ela
se preocupava comigo, seus afazeres eram mais importantes do que me dar
atenção. Mas as cobranças para eu ser a filha perfeita e gabar meus feitos com
suas amigas, sempre existiam. E quanto mais essa carência de mãe se expandia
em meu entendimento, quando eu crescia, mais eu fazia coisas das quais ela
não se orgulhava. Tão diferente da minha avó, que estava sempre presente, sem
cobranças e doando amor.
— Combinado. Até, mãe.
Notando meu choro baixinho, Sebastián cercou meu corpo com seus
braços. Encostei a cabeça no seu peito, lugar onde eu ouvia a segurança bater
de forma ritmada sob meu ouvido. Percebi que aquele seria para sempre o meu
som preferido.
— Que bom que seus pais a procuraram. Vocês vão conseguir conversar e
colocar tudo em ordem quando você — ele pigarreou —, quando você voltar.
Meu olhar buscou o dele.
O que eu faria? Qual seria a minha escolha?
Razão ou coração?
Amor ou família?
Por que a vida coloca pessoas em nossos caminhos, das quais não queremos
nos separar, depois puxa o tapete sob nossos pés e nos impõe fazer escolhas
difíceis?
Com a habilidade de sempre, Sebastián leu meus pensamentos.
— Nós vamos dar um jeito, amor.
Como sempre, ele tentava retirar as dores que maltratavam meu coração.
Era como se Sebastián só ficasse feliz se eu estivesse confortável comigo mesma.
Como se a felicidade dele dependesse da minha plenitude de sentimentos. De
certa forma, não era mentira. Eu precisava estar inteira para ele, se quisesse que
nossa dupla desse certo.
Gostaria de me convencer de que iríamos conseguir manter o nosso
relacionamento, o único que eu vislumbrei em um futuro. Queria muito.
Então os lábios dele se encaixaram nos meus como um lembrete de que não
era para eu desistir de nós dois. E cada pontinho de angústia foi se dissipando
do coração, cada movimento macio da boca dele na minha era o combustível
que eu necessitava de esperança.

Sebastián

— Vó, está tudo bem. Eu estou falando a verdade.


— Nelinha, meu amor, não faça mais nada perigoso. Eu e a Heloísa quase
batemos as botas de tanto nervosismo sem notícias suas.
Sorri para a dona Vitória. Ela conversava com Antonella por chamada de
vídeo, quando entrei no deck.
— Ah, então você é o tão famoso Sebastián que a Helô se refere a cada
duas horas ou menos? Fonte dos suspiros da minha neta.
— Vó. Ai. Meu Deus.
— Siii. Eu sou o famoso Sebastián. Às suas ordens, dona Vitória.
Ela riu.
— Já gostei desse rapaz. Parece um lorde, Nelinha — ela direcionou o
olhar a mim. — Obrigada por cuidar bem da minha neta. Quando vier ao Rio,
venha me visitar.
— Convite aceito. Agora vou dar espaço para vocês conversarem mais.
Prazer em conhecê-la. Nos vemos em breve.
Acenei com a mão e um sorriso.
— O prazer foi todo meu, meu filho.
Eu me senti em casa, não que não estivesse no meu próprio espaço, mas era
como se eu já a conhecesse há décadas.
— Idiota! — Astolfo entrou na conversa.
— Fica quieto, Astolfo — Antonella resmungou.
— Quem é Astolfo?
— É um papagaio inconveniente. Não é, Astolfo?
— Ele tem o nome do filho de uma amiga.
Dei um beijo casto na bochecha da minha namorada, confisquei três
biscoitos do pacote que ela segurava e me virei para ir ao quarto.
— Sebastián…
Da porta, olhei para Antonella outra vez após jogar um dos biscoitos na
boca.
— Como é o nome completo do seu amigo?
Engoli antes de falar.
— Hum, acho que é Astolfo Ferreira Neto.
— É ele — a avó da Antonella confirmou.
— Pelamordedeus, vó. Não vai falar para a mãe dele que nós demos o nome
do filho dela ao bicho.
Ao passar pela sala, avistei o caderno de desenhos da Antonella. Perfeição
era a ilustração do Ozzy correndo na praia com o Astolfo ao lado. Era como se
eles fossem amigos e estivessem indo assistir ao pôr do sol na duna. Ao lado
estava o mar e o alaranjado do céu avançava e recuava nas cores rosadas.
Antonella precisava transformar suas obras de arte em algo que a projetasse
para o mundo. À medida que fui folheando as páginas, eu me surpreendia cada
vez mais com o talento dela. Até que encontrei… Dios! Eu vi o meu rosto
retratado com todos os detalhes possíveis da minha pele, olhos e boca e o hotel
ao fundo. O colar que meu avô me presenteou antes de morrer como amuleto
da sorte não faltou no desenho.
Arrastei o dedo de leve na folha e me assustei ao ouvir o chinelo dela
arrastando no chão da cozinha.
CAPÍTULO 33
Retornei com as folhas de volta para a primeira do caderno.
— Amor, você não pode desperdiçar tanto talento.
— Ah, eu desenho somente para me distrair. É um hobby — ela mexeu os
ombros como se não se importasse.
— Quando você pensar ou repensar, não sei ao certo o que quer fazer
quanto ao futuro, sugiro que encaixe sua habilidade em seus planos.
— Acredita que nunca pensei nisso?
— Que tal começar a valorizar seu trabalho?
Chegando a menos de um palmo de distância de mim, ela segurou o
colarinho da minha camisa.
— Agora eu só consigo pensar em uma única coisa.
— Hum? É provável que eu goste do que você está pensando.
— É que eu estou com um fetiche me azucrinando a vida desde que você
saiu de casa mais cedo.
— É mesmo? Eu posso saber qual é esse miserável que perturba a minha
namorada?
— Ah — os dedos finos desceram pelos botões, mas não os abriram. —
São esses diabinhos aqui. Eles não me deixaram em paz.
Eu a provoquei abrindo um botão mais alto na direção do pescoço.
— E se eu deixar você liberar cada um?
Um gemidinho me instigou a abrir outro.
— Se você continuar os perseguindo com seus dedos nervosos, eu não vou
ter mais cura.
— Hum, entendi.
Liberei mais um. A mão da Antonella voou para a minha.
— Eu faço o trabalho restante.
Antonella me atiçou até que eu não suportasse mais seus dedos me
despindo, roçando em minha pele e me deixando faminto por ela. Quando
suas carícias intencionais se perderam entre o cós da calça e meu abdômen,
meu corpo entrou no modo estado de urgência e alerta. Ouvi zumbidos nos
ouvidos, de tanto desejo que o sangue levava a cada parte do meu corpo.
Ela desceu o meu zíper. Eu subi o vestido que ela usava, espalmei as mãos
na bunda e a coloquei sobre a mesa. O que restava do meu controle foi para os
ares quando Antonella liberou seus seios do decote do vestido. Ela quis me
tocar, mas não permiti.
— Hoje vai ser sem preliminares? Você me quer agora?
— Muito…
— Mas vai ter que implorar — anunciei e suguei um mamilo com minha
boca sem compromisso, com suavidade.
A cabeça dela tombou para trás.
— Implora se você realmente me quer.
— Amor…
Enfiei um dedo no centro de prazer da minha musa. Ela estava tão pronta
para mim. Lambi o líquido que veio com meu gesto provocante, olhando nos
olhos estreitados.
Um gemido rasgou sua garganta.
— Implora.
— Quero agora. Agora.
No instante seguinte, eu não fui generoso com ela. Agarrei os seus quadris e
os trouxe para junto de mim. Enfim, encaixei o que ela tanto desejava no lugar
devido, impulsionando e tirando, uma, duas, três vezes.
— Você está me enlouquecendo, amor.
— Esse é o objetivo.
As pálpebras da minha namorada tremiam de prazer. Vê-la entregue a mim
foi o que faltava para que eu terminasse a tortura. Então, louca de prazer, ela
recebeu toda minha extensão dentro do seu corpo em um ritmo mais ousado,
aumentando a cada impulso alucinado entre gemidos mútuos.
— Você é minha?
— Total.
Em seguida, olhando no dourado dos olhos da Antonella, eu a beijei com
tanto ardor que pensei que iria esmagar seus lábios enquanto nossos quadris
trabalhavam, emitindo o som das batidas dos nossos corpos e corações
acelerados, completando a intensa fusão.
Eu a amava tanto.
Senti os seios dela no meu peito e foi impossível não incliná-la para trás.
Sentir Antonella em todas as partes do meu corpo era o que faltava para as
minhas defesas se quebrarem em um orgasmo profundo unido ao dela,
construindo mais um momento com o nosso amor.
Molinha em meus braços, a cabeça em meu peito, exausta, a respiração se
recuperando, eu quis saber:
— O feitiche foi saciado?
— Eu fiquei amarradona. Acho que você deveria usar mais camisas com
botões.
— Hum, acho que vou acrescentá-las ao meu guarda-roupa.
Sorrindo, dei um beijo em sua testa.
Antonella

A última semana estava passando tão rápido. Eu queria aproveitar todos os


segundos da melhor forma possível. Enquanto Sebastián recebia fornecedores
em seu escritório, fui caminhar na praia.
O suor vertia em meu corpo, ainda que o sol estivesse descendo do seu
pico. Creio que o Ozzy compactuava com a mesma sensação térmica que a
minha. Com a língua para fora, ele veio correndo para mim, a areia subia e se
espalhava ao redor das suas patas. Flexionei os joelhos para recebê-lo e me
desequilibrei para trás, ele pulou em mim, completando a tarefa de me
derrubar.
— Ozzy…
Recebi lambidas no rosto.
— Au, au!
— Eu também gosto muito de você, garoto.
Curtindo o carinho que ele me proporcionava, mexi a cabeça em vários
movimentos, o focinho gelado acariciava um lado do meu rosto.
Eu e Sebastián havíamos conversado muito sobre o nosso futuro, o nosso
namoro, mas nada havia ficado decidido cem por cento. O que eu sabia era
que, até o final do ano, seria difícil que eu retornasse à vila, pois abandonar os
meus alunos no meio do ano letivo estava fora de cogitação.
O mais certo era que eu enfrentaria várias pessoas, diversos olhares de
recriminação e fofocas sem fundamento, mas eu não permitiria que nada
abalasse meu amor por Sebastián.
— Ozzy, seu pai está te chamando, menino.
Ah, eu reconheci a voz.
CAPÍTULO 34
Abri os olhos. Os lábios da Cássia Lúcia planavam sorrindo sobre nós.
— Cássia, você ainda está por aqui? Pensei que tivesse voltado para o Sul.
Você saiu do hotel.
Ozzy deu uma trégua, então eu me ergui e bati as mãos na canga e em
algumas partes do corpo, a areia que havia grudado com o melado do suor me
incomodou.
— Vim procurar você para contar uma novidade. Lembra do “Mais que
um Match”?
— Hum! Tivemos evoluções no like?
— Sim, Nelinha. Eu e o Antônio estamos nos entendendo muito bem.
Jericoacoara fez bem para nós duas no quesito amor.
— Menina, não é?
Dividimos risos similares de felicidade e malícia.
O sol havia começado a baixar no horizonte. Eu tinha de me apressar se
quisesse chegar à Duna do Pôr do Sol a tempo para ver o astro rei executar a
sua mágica, com o meu amor.
— Agora tenho que ir. Marquei com Bastián na duna. Vamos marcar uma
saidinha para os casais interagirem.
— Gostei da ideia.
— Tá certo. Então vou falar com o Bastián e mando mensagem.
— Combinado.
— Ah, Nelinha, você sabe que quero muito presenteá-la. Já que você não
escolheu nada, eu posso lhe dar o que tenho em mente? — ela inquiriu e fez o
jeito afetado de erguer o queixo.
Quase brinquei com ela sugerindo que fosse a caixa de alfajor que ela deu
ao Sebastián naquele dia embaraçoso na casa dele. Mas…
Uma lâmpada se acendeu em meu cérebro.
— Pode ser para outra pessoa?
— Hum. Não entendi.
Cássia Lúcia ajeitou a canga de crochê na altura dos seios, apertando o nó
da lateral.
— Sabe a Luiza? A sobrinha da Márcia?
— Sei. Ela é uma moça muito educada.
— Então, ela vai casar. Talvez você possa criar para ela um vestido de noiva
de arrasar na passarela da igreja…
— Se é o seu pedido, faço com prazer. E peço para as costureiras do meu
ateliê confeccionarem.
— Puxa! Seria o máximo. Serviço completo.
Fiquei tão animada, que abracei Cássia Lúcia, meu rosto se perdeu nas
ondulações do cabelo loiro.
— Obrigada! Prooonto. Resolvemos o maior problema que ainda faltava
para esse casamento antes de eu ir embora. Sebastián cedeu o salão para a
recepção. E eu, hum, vou presenteá-la com um arsenal de lingeries para a lua
de mel.
— Entendi — os olhos dela se demonstraram apreensivos. — Você está
bem com isso? Com tudo? O seu retorno para o Rio?
Parei por um instante para refletir sobre aquele último quase um mês da
minha vida. Fora uma verdadeira loucura. Em um curto espaço de tempo eu
havia me perdido, me encontrado, perdido outra vez, para enfim me encontrar
de verdade. A gangorra de sentimentos contraditórios foi de uma intensidade
absurda.
— Vou sobreviver.
— Antonella, eu queria mais uma vez dizer que você foi fundamental para
eu voltar a ser o que era e não me perder em definitivo numa personalidade
fake. Aprendi que para ter sucesso, não é preciso se corromper.
— Fico feliz. Eu também já passei por esse processo. E não quero de jeito
nenhum me afogar nele outra vez.
— Nem me fale em afogar — Cássia Lúcia arredondou os olhos mais que o
sol no horizonte.
Depois abaixou os óculos Louis Vuitton do cabelo ao rosto de forma
teatral.
Ri. Embora ela tivesse caído na real quanto às suas atitudes soberbas, os
trejeitos se mantinham. Nada era perfeito. Ninguém muda de uma hora para
outra. Mesmo assim, eu preferia essa nova versão da Cássia Lúcia.
— Cássia, me perdoe, mas agora preciso ir, Sebastián está me esperando.
No instante seguinte, dobrei o corpo para frente e me despedi do Ozzy. Fui
acenando e andando meio de lado até que peguei o ritmo. Dinamizei as
passadas e me infiltrei na procissão de pessoas que subiam a duna. Fiquei com
o coração em polvorosa, fruto da corridinha para chegar na hora certa. Mas foi
tempo suficiente para vê-lo, meu amor, sentado com os braços sobre os joelhos,
a camisa aberta vacilava ao movimento do vento. Ele me esperava para
desfrutarmos unidos um dos últimos crepúsculos.
Sem alvoroço, pé ante pé, agachei e cobri seus olhos com minhas mãos.
— Quem é?
— A Musa de Jeri.
Sorrindo, estalei um beijo em seu rosto e me sentei na curva das suas
pernas e braços.
— Senti saudades — pude notar o peito dele largando uma angústia que
compactuava com a minha.
Saudade. Saudade. Saudade.
— Uma palavra tão brasileira. Ultimamente não sou muito fã dela —
revelei.
— Agora eu entendo o verdadeiro significado. Dói.
— Amor, vai dar certo — dessa vez, fui eu quem viu o lado positivo da
relação. — Nós já combinamos que você vai me ver no mês que vem, não é?
Olha só… — virei o rosto o suficiente para meus olhos serem vistos pelos dele.
— Quem diria que eu aprenderia a falar as frases motivacionais do Sebastián!
Ele sorriu sem vontade.
Nós vivíamos o nosso momento, embora em nosso entorno as conversas
das pessoas viessem de todos os lados.
— Estive pensando em ficar no Rio até o final do ano. Preciso acompanhar
a obra do hotel mais de perto — ele expôs seus planos.
— Sério? Jura? Ai, meu Deus! Você vai?
— Já me decidi. Confesso que a Márcia deu um empurrão.
— Santa Márcia!
Os braços do Sebastián se alojaram sob meus seios e me apertaram num
abraço, como se estivessem selando um pacto comigo.
— Olha, ouvi falar que se uma promessa for selada diante do pôr do sol e
não for cumprida, serão anos de azar.
— Quem disse isso?
— Acabei de instituir esse novo protocolo.
— Eu não vou ser louco de não cumprir, amor.
— Você é um homem inteligente.
— E apaixonado.
Foi o suficiente para os meus olhos orvalharem.
— Eu te amo, Sebastián.
Recebi a resposta com gestos corporais. Sebastián suspirou, seus braços
apertavam meu corpo contra o dele, o nariz absorvia o cheiro do meu cabelo.
Em contrapartida, minhas mãos pousaram entrelaçadas sobre as dele e se
juntaram em um abraço de dedos.
— Você sabia que “Quando a gente está triste demais, gosta do pôr do
sol…”?
— “Um dia eu vi o sol se pôr quarenta e quatro vezes!”.
— Hum, tem alguém que já leu O Pequeno Príncipe.
— Si. Várias.
— Sabia que no livro original em francês, Antoine de Saint-Exupéry
escreveu o número quarenta e três vezes e não quarenta e quatro, como na
versão atual? Parece que na primeira versão traduzida para o inglês, uma
tradutora alterou a quantidade para homenagear os quarenta e quatro anos de
vida do autor. Bom, são suposições.
— Interessante — ele fez uma pausa. — Amor, para mim, não importa a
quantidade de pores do sol que o Pequeno Príncipe viu para curar sua tristeza
em um único dia. Nenhum possui a beleza do que estamos vendo agora. Sabe
por quê?
— Porque ele é nosso?! — respondi meio vacilando.
Um suspiro longo encharcou meu ouvido.
— É o nosso momento.
Inclinei o rosto no ombro do Sebastián; ele aproximou seus lábios da
minha boca.
— Eu também te amo, Antonella, mais do que achei que fosse amar uma
mulher algum dia.
A emoção se instalou forte em meu coração; ela acabou influenciando na
sequência das batidas no peito. Era muita comoção a ser expelida. Então uma
lágrima se prontificou a ser a primeira a se esgueirar de um olho.
Suspiramos ao presenciar o ocaso mais singular de todos os dias em que
estivemos juntos.

Sebastián

À medida que os dias foram passando, a dor aumentava em meu peito.


Lutar contra a apatia e não desabar era a minha luta rotineira.
— O que você tem, Sebastián?
Eu conversava com a Márcia, que estava sentada à mesa do café da manhã.
— Acho que não vou conseguir passar por tudo de novo.
— Antonella?
— Si.
Ela me encarou com espanto.
CAPÍTULO 35
— Esse sempre foi o seu problema com a Mônica. Você a via como uma
passagem de tempo com começo, meio e fim pré-determinados em sua cabeça.
Você não tem que olhar para Antonella da mesma forma. Vocês se amam.
Balancei a cabeça tentando me livrar dos fantasmas.
— Você tem razão. Há a possibilidade de eu morar no Rio de Janeiro e
gerenciar o hotel. Ele vai ficar pronto no primeiro semestre do ano que vem.
— Mas não é isso que você quer.
Meu olhar viajou do rosto da Márcia para o infinito. No Rio também teria
mar. Eu estava transformando a partida da Antonella num drama, numa
sensação claustrofóbica desnecessária.
— Se for por ela, por nós dois juntos, eu moro, sim.
— Não é você que diz “deixe a vida dançar”? Então seja fiel às suas
palavras. Dance no ritmo que ela oferecer. As coisas vão se encaixando.
As palavras acalentadoras da Márcia afastaram as dores que ameaçavam
varrer minha felicidade como uma tormenta.
— Deixe a vida dançar.
Antonella: Quando eu penso que me esqueceram… Vem pra casa. Problemas.

Já com o coração ansioso, eu me levantei, carregando a chave comigo.


— Preciso ir, Márcia.
— Antonella?
— Quem poderia ser?
Márcia se levantou e levou a cadeira para perto da mesa, sorrindo.
— Ela movimenta a sua vida.
— Sempre.
Quando estava virando o corredor para ir à recepção, ouvi a Márcia
chamar.
— Sebastián, depois fala para ela vir me ajudar na cozinha.
— Claro.
Chegando em casa, encontrei Antonella transtornada. Ela andava de um
lado para o outro. Segurando uma revista, bufava sem parar, o cabelo ia e vinha
roçando suas costas.
— O que foi? Por que você está assim?
— Olha isso. Poxa. Quando acho que vou ter paz…
Assim que vi a manchete da revista, meus ombros inquietaram e toda
musculatura do corpo ficou tensa.
Inspirei e expirei o ar, ainda sem acreditar que havíamos virado capa de
revista. A foto registrava nosso momento, andando de mãos dadas, margeando
a água. Eu me recordo desse dia, nós havíamos praticado kitesurf e fomos
passear logo depois.
Ao pegar a revista da mão trêmula, as letras foram se agigantando diante
dos meus olhos. Parte de mim sentiu alívio, a outra parte, muita aversão.
Antonella Vivian Alencar Braga, filha do empresário Aurélio Alencar Braga, é vista na sua lua de
mel, porém, com o seu amante, filho do maior estelionatário espanhol de todos os tempos.
Uma outra parte, mais perspicaz que as primeiras, entendeu o que estava
acontecendo. Quem havia dado de bandeja aos repórteres a localização da
Antonella era óbvio para mim.
Nós nos olhamos por um tempo, cada um preso em seus pensamentos. Eu
precisava ter equilíbrio para não piorar a situação.
— Vem cá — ofereci um abraço a ela.
Seu corpo vibrou nervoso ao se recostar no meu. A cabeça da Antonella
encontrou seu ponto de apoio, meu peito.
— Nós estamos juntos nessa, ok?
— Eu não queria te envolver novamente em fofocas de jornais e revistas.
Você veio para o Brasil para fugir disso e eu…
Com um dedo, elevei o queixo miúdo, seus olhos suplicavam por
desculpas.
— Você ouviu o que eu falei? Nós estamos juntos. Não vou te deixar
sozinha, jamais. Vamos enfrentar tudo juntos. Sempre juntos. Preciso repetir
essa palavra mais vezes para você se acalmar?
— Certo. Juntos.
— Você acha que eu não sei as consequências do nosso relacionamento a
curto prazo? Se estou com você é porque te amo — arqueei as duas mãos no
rosto da mulher que a cada dia dava um significado maior à minha vida. —
Nós estamos juntos nessa.
— Essa é a nossa nova frase de impacto?
Sorri e encostei minha testa na dela, que se apresentava enrugada de
insegurança. Só cabia a mim trazê-la de volta ao equilíbrio.
— Si.
Então tive uma lembrança de como me senti no dia em que a conheci. Esse
sentimento de cuidado, de querer a todo custo incutir paz no coração da
minha musa veio com tudo, aflorando em minha pele. Eu precisava distrai-la.
— Já te disse pra você pensar em algo para fazer com todas essas
ilustrações. Não é possível que não sirvam para utilizar de alguma forma na
Educação. Algum plano futuro que te inspire, amor.
Como sempre, ela desconversou.
— Tcs. Quantas mil pessoas desenham papagaio e cachorro? Não há nada
de especial neles.
Traguei o ar bem fundo, inconformado.
— A Márcia está te chamando para ajudá-la na cozinha. Hoje é dia do
jantar comunitário para os desabrigados da enchente. O Prefeito conseguiu um
auxílio monetário com o Governo Federal e as obras de reconstrução e reparos
das casas vão iniciar na semana que vem.
Ela se jogou no sofá, prevendo o que eu diria a seguir.
— Hum, e quem será o engenheiro responsável pela reforma das casas?
Estiquei os lábios me sentindo culpado.
— Pois é. Não tive como me safar dessa.
— E quem disse que deveria se safar? Você gosta de ajudar.
— Gosto muito. Faço parte desta comunidade, entende? — ela fez sim
com a cabeça. — Mas, se não fosse por um detalhe, eu estaria mais satisfeito.
Os lábios rosados foram jogados para um canto do rosto.
— Tudo bem. Quanto tempo vai demorar para você me ver no Rio?
— Talvez dois meses? No máximo?
— Isso foi uma pergunta ou uma afirmação em formato de
questionamento?
— Hum.
— Tudo bem, amor. Eu suporto a saudade se for por uma boa causa como
essa — ela se aprumou em pé. — Agora vou para a minha tarefa do dia.
— Assim que se fala.
Passei o braço nos ombros dela e fomos nos distrair dos aborrecimentos,
cada um do seu modo.

— Sebastián, preciso falar urgente com você — Calebe disse logo que
expôs o rosto na porta do escritório.
— Entre.
— Problemas.
— Mais? Você já viu isso? — retirei a revista da gaveta e joguei sobre o
vidro da mesa.
No mesmo minuto, ele levou a capa com a minha foto e da Antonella para
perto dos seus olhos. Soprou o ar fazendo ruído.
— Agora eu entendi por que o pai dela está vindo para cá.
O sino com o nome “perigo iminente” trincou meu cérebro em alerta.
— O ricaço Aurélio Alencar Braga?
— O próprio. Tive que dar autorização para pouso da aeronave dele no
heliponto do hotel. Desculpe, mas como eu negaria?
Aquiesci com a decisão do Calebe. Eu me levantei e fui em direção à janela,
ao lado da porta. Separei dois filetes da cortina com dois dedos. Avistei
Antonella com um astral melhor do que o de três horas antes. Ela, a Giovana e
a Márcia ajeitavam a mesa comprida para o jantar coletivo, no pátio.
— Você já disse a ela que o pai está prestes a chegar?
— Preferi falar com você antes. O que vai fazer com a informação?
Tive alguns segundos para raciocinar.
— Deixe acontecer. Melhor deixar que seja surpresa. Quanto tempo temos?
— Menos que o tempo da viagem de Fortaleza a Jericoacoara.
— A fila já começou a se formar lá fora?
— Mande o pessoal entrar. Quem sabe no meio de tanta gente, eles
controlem os ânimos quando se virem.
— Boa. Vou falar para Márcia que vamos começar a organizar a entrada do
pessoal.
Meu sangue esfriou quando tive a certeza de que a hora para a chegada do
milionário se expirara. A qualquer instante ele surgiria no pátio com Calebe o
conduzindo para eu recepcioná-lo. Somente então resolvi sair da minha sala.
Fui me posicionar ao seu lado, nem que fosse para entregar os pirulitos que
ela havia comprado para dar às crianças como sobremesa. Mesmo que eu não a
alertasse sobre o pai, eu estaria com ela dando o meu apoio incondicional.
Estamos juntos nessa.
— Até que enfim saiu da toca, né, amor? — ela reclamou entregando-me o
pote de pirulitos. — Servicinho especial, entrega os pirulitos às crianças da fila.
— Eu entrego daqui mesmo quando aparecer alguma. Quero muito ficar
com você — olhei para ela do jeito que a fazia amolecer.
— Tudo bem. Em casa, eu vou te cobrar esse olhar mole. Isso não vai ficar
barato.
A todo instante, eu revezava o olhar do corredor que vinha da minha casa
para os assistidos que iam passando pela mesa e cumprimentando-os. Antonella
servia a carne do dia. Márcia, arroz e Giovana, feijão. O meu papel, cumpri
meio errado. Fui dando pirulito a todos que se aventuravam por ali.
Ela virou para mim.
— Meu Deus, Sebastián. Você acabou com todos os pirulitos. Quantos
você deu para cada um? E não foi somente para as crianças, né, amor?
Meneei a cabeça. Estreitei a boca e a contraí num sorriso camuflado.
— Ah, fui entregando…
— Vou ter que buscar mais. Você não tem outra coisa pra fazer não?
Um suspiro profundo e contrariado escapou dos lábios mais charmosos que
conheci. Meu desejo era beijá-los e não parar mais.
Quando eu ia dar um selinho na boca atraente da Antonella, fui
assombrado por um arrepio. O rosto dela ficou lânguido e seus lábios
entreabriram. Havia chegado o momento do enfrentamento.
— Meu pai está aqui — ela falou tão baixo que eu tive que fazer leitura
labial, embora não precisasse naquele instante.
Cerrei os olhos ao mesmo tempo em que não contive uma careta.
Em seguida, olhei sobre o ombro e encontrei um olhar escandalizado.
Também pudera, a princesinha estava com avental, lenço na cabeça e servia
marmita coletiva. Bom, para mim aquilo era o máximo, mas aposto o meu
pescoço em jogo que ele não compactuava com a nossa animação.
— Calma. Lembre-se de que nós estamos juntos nessa.
Ouvi um suspiro de alívio.
Antonella

Era mais que certo de que o meu pai havia lido as manchetes das revistas e
dos jornais sobre mim e o Sebastián, porque para ele despencar do Rio de
Janeiro para Jeri sem ter um motivo forte…
Mas eu não iria embora antes do prazo com o senhor Aurélio, como eu
havia informado a ele quando telefonou. Faltavam dois dias somente para eu
voltar para… não sei para onde iria. Casa da vó? Da Helô? Eu tinha decidido
morar sozinha, mas até conseguir fazer a logística funcionar.
Deus. Do. Céu.
Não me movi enquanto o meu pai vinha ao meu encontro.
Olhei de canto de olho para Sebastián. Como ele conseguia sorrir para uma
senhora ao entregar a sobremesa, eu não entendia, estando naquela situação de
desgaste emocional. Bom, talvez ele estivesse tranquilo porque não conhecia o
meu pai. Ainda.
Acompanhado do seu secretário particular, ele ordenou em um tom
mínimo:
— Antonella Vivian, vamos para casa.
CAPÍTULO 36
— O senhor não está vendo que estou trabalhando? —respondi na mesma
serenidade aparente.
Sorri para o próximo da fila e preenchi a marmita com carne de panela
enquanto ele permanecia me encarando, com aquele semblante de “Obedeça-
me agora, menina”.
Sentindo o peso do clima sobre nós, Sebastián virou o rosto e sugeriu:
— Vai ao meu escritório com o seu pai para conversar.
— Só se você for comigo. Quero que esteja junto.
— Tudo bem. Eu acompanho vocês.
Na sequência, Sebastián não se negou a topar com a minha súplica, uniu as
nossas mãos e me levou com ele para perto do meu pai, no lado oposto da
mesa. Calebe veio cobrir a nossa falta na entrega das marmitas.
Ofertando bandeira branca, Sebastián estendeu a mão para cumprimentar
meu pai.
— Senhor, é um prazer recebê-lo no meu hotel.
O pomo de Adão do senhor Aurélio se moveu uma única vez com tanta
transparência, que constatei que a conversa não seria fácil. Mas, como havia
previsto, ainda que meio reticente, lógico que ele aceitou a cordialidade. Meu
pai era um homem de educação incontestável.
Certo. Respirei fundo.
— Eu vou deixá-los à vontade para conversarem — Sebastián tentou se
esquivar do embate.
— Fica — respondi, determinada. — Pai, você pode pedir para o seu
assessor sair da sala? Essa será uma conversa íntima — o velho olhou para o
Sebastián.
Meu namorado e meu familiar se entreolharam. No instante seguinte, meu
pai deu o comando com a cabeça para seu puxa-saco escapulir dali. Assim
ficamos a sós. Sebastián indicou a cadeira para meu pai se sentar; ele negou,
mais uma atitude previsível do senhor poderoso.
— Pai, eu me vi sozinha depois que saí daquela igreja.
— Até hoje eu e a sua mãe não entendemos as razões que a levaram a
deixar que tudo chegasse a esse ponto. Passamos a maior vergonha das nossas
vidas. Você não acha que deveria ter terminado o noivado antes?
Claro, a imagem de boa família estava sempre em primeiro lugar.
— E o senhor entenderia se eu dissesse que eu não gostava do Horácio o
suficiente para me casar com ele? Minha mãe iria fazer o maior escarcéu do
mundo também. Para vocês, ser um bom partido se resume a posição social e
ter grana.
— Teria sido melhor, Antonella Vivian, se você tivesse resolvido isso antes
do casamento.
Abri os braços, indignada.
— Pai, até hoje eu vivi a minha vida numa sinuca de bico tremenda.
Queria agradar a vocês, mas tinha que ser com o que me era imposto. Vocês
nunca ouviram os meus argumentos, ou sentimentos, meus anseios. Vocês
ordenavam e pronto.
— Ordenávamos? Você sempre teve liberdade para fazer o que quisesse.
Esse foi o maior erro da sua educação.
— Será? Engraçado que eu sempre me senti sozinha enquanto família.
Você e a minha mãe nunca me incluíram em seus planos. A não ser que fosse
para mostrar ao mundo o que a Princesa da Celulose tinha de conforto. Bens
materiais não suprem o amor.
Ele me olhou, perplexo.
— Antonella, não acredito que estamos tendo uma conversa como esta na
frente de estranhos. Vamos embora agora.
Meu pai e Sebastián se entreolharam.
— Eu disse que seria melhor eu sair.
— Não, Sebastián. Você é o meu namorado.
— Há quanto tempo vocês estão juntos?
Meu pai havia dado crédito às reportagens, óbvio.
— Sério que o senhor está pensando que eu…
— Senhor, eu sei que as evidências são brutais quanto a nós dois. Acredite,
eu tenho o maior respeito por sua filha ou por qualquer outra pessoa. Jamais
me prestaria a destruir um relacionamento — Sebastián se empertigou. — Mas
eu entendo que o senhor tenha essa imagem quanto a mim — senti a quentura
do braço acalentador cruzar minhas costas. — Só que as minhas intenções com
sua filha são as melhores possíveis.
Do jeito que Sebastián conduziu a conversa, parecia que eu estava inserida
num romance de época. Até que estava sendo divertido. Retribuí o gestual do
Sebastián e nós nos entrelaçamos, mostrando que éramos de fato um casal.
— Como foi que vocês se conheceram tão rápido? Isso não faz sentido.
— Para o verdadeiro amor faz, sim, pai.
Ele soltou uma clássica gargalhada que me fazia tremer de desgosto.
— Ah, minha filha. Esse rapaz deve ser mais um capricho seu. Pegue as
suas coisas e vamos embora. Vamos acabar logo com isso.
— Já disse que não vou. Apenas no dia marcado da minha viagem.
— Antonella Vivian, a minha paciência está por um fio com você. Pare de
agir com mimo. Cresça. Você não se acha tão madura? Então está na hora de
colocar em prática. Você não enxerga as consequências dos seus atos para a
imagem das nossas empresas?
Descolei do abraço do Sebastián.
— Cansei de estar sempre posta em cheque por todos. Você, a minha mãe,
o Horácio, sociedade, repórteres… Aaah! Sabe o que o senhor ainda não
entendeu há mais de cinquenta anos? Vem aqui, por favor.
Grudei minha mão no braço dele. Meu pai se retraiu.
— Por favor, minha filha. Sem ceninhas.
Olhei fixo nos olhos verdes como a cor da água da Lagoa Azul, na primeira
vez em que estive lá.
— Vem, por favor.
Com relutância, ele me acompanhou até a porta e nós demos um passo
para a calçada do pátio. Seu secretário se colocou à disposição, ao lado.
— Está vendo aquelas pessoas ali? Agora a fila está terminando. Mas
muitos já passaram por aqui desde a enchente no vilarejo. Enquanto o senhor
estiver somente dentro do seu escritório e em nossa casa, não vai entender o
que seus funcionários necessitam. Enquanto o senhor estiver preso nas
dependências administrativas da fábrica, o senhor não criará empatia com os
seus funcionários.
Ele me olhou com as sobrancelhas arqueadas, surpreso com meu discurso
sincero. Apontei para a Márcia, a Giovanna e a Cássia Lúcia, essa última havia
chegado enquanto eu estava detida nas paredes do escritório do Sebastián.
— Aquelas outras pessoas, inclusive uma delas é famosa, não sei se o senhor
a reconhece da TV, mas elas estão ajudando não somente com o trabalho
voluntário, mas repare nos sorrisos de amor que elas dão para os que recebem a
doação. Foi sobre isso que sempre tentei conversar com o senhor, mas sem
sucesso. Quando resolvi ser professora na escola da vovó, quis sentir isso de
perto. Lamento que o senhor nunca tenha se aproximado da vó. Ela é honesta
e carinhosa como essas pessoas são. Lamento a mãe não ter uma ligação forte
com a minha avó como eu tenho.
O silêncio do meu pai estava me irritando horrores.
— E foram essas pessoas, a vó Vitória e aquele homem por quem me
apaixonei, que me fizeram me sentir em casa. Não numa casa física, mas num
lar com afeto. Agora o senhor entende por que preferi ficar aqui? Pai, mesmo
que o senhor e o Horácio tenham me deixado em uma situação de
vulnerabilidade para me provar que eu preciso de vocês, eu consegui superar
isso com a ajuda dessas pessoas. Aqui, eu estou me sentindo bem como nunca.
Eu vou voltar para o Rio, mas não sei se volto para a sua casa.
Eu o fitei nos olhos assim que viramos um de frente para o outro.
— Eu não estou dizendo que o senhor deve sair distribuindo sua fortuna
para os outros, afinal o trabalho foi árduo para conseguir ter o que a nossa
família tem e é merecido, desde a época do meu bisavô. Ter dinheiro não é mal
algum. Mas isso não significa que devemos fechar os olhos para as necessidades
alheias e deixar passar as oportunidades de ajudar, como essa que está
acontecendo. Pai, a vida nos testa a todo instante — expirei o ar, levando com
ele tudo que havia estado em meu peito durante anos, palavras que nunca
foram ditas antes.
Os lábios do meu pai se entreabriram, mas voltaram a se unirem. Ainda
pude notar que ele engoliu em seco.
— Quanto ao Sebastián. Não, nunca o vi antes de chegar aqui. Aliás, nós
nos conhecemos no avião e ele me ajudou em todas as dificuldades que passei.
Sou grata a ele por ter me recebido em sua casa enquanto não surgia uma vaga
em algum quarto. Ele se predispôs a sair do seu conforto para me deixar
usufruir sozinha. Sempre me respeitou. Sou grata pelo prato de comida que ele
me ofereceu. Pelo carinho que me entregou sem pedir nada em troca. Por tudo
isso aqui que o senhor está presenciando.
Girei a cabeça para mostrá-lo mais uma vez o ambiente fraternal
Meu pai soltou a língua que o gato deveria ter mordido, porque fiquei
surpresa por ele ter me escutado pela primeira vez até o fim. Eu esperava que o
meu discurso eloquente o tivesse sensibilizado. Contudo, quando ele iria se
pronunciar com alguma palavra, o Prefeito da cidade chegou e o reconheceu.
Ou talvez alguém o tivesse avisado que meu pai estava no hotel.
— Senhor Aurélio Alencar Braga. A que devemos a honra da sua visita à
nossa cidade?
O secretário do meu pai, esse eu ainda não conhecia, cumprimentou o
Prefeito e revelou o cargo dele antes que cometesse a gafe de não saber quem
ele era.
— Excelentíssimo Senhor Prefeito, o senhor Aurélio está de passagem pela
cidade.
Eles se cumprimentaram e, enfim, o meu pai reagiu.
— Vim ver como a minha filha está depois do que aconteceu na vila.
— A senhorita Antonella é sua filha? Moça educada, agradável. Ela está
sendo prestativa nessa fase difícil que estamos passando. O senhor deve se
sentir orgulhoso dela.
Meu pai me olhou nos olhos.
— Mais do que eu imaginava que pudesse me sentir.
— Aí está o jovem Sebastián — meu namorado surgiu na porta. — Eles
formam um casal invejável.
Pois é… O tal do bichinho da inveja. Ninguém me tirava da cabeça que
alguém da cidade havia vendido nossas fotos aos tabloides.
— Olá, senhor.
Na verdade, a chegada do Prefeito da cidade de Jijoca foi essencial para os
ânimos se acalmarem. Então meu pai não teve muita escolha e acompanhou o
político num tour pelo hotel e pela vila. Aquele click de câmera que tive a
impressão de ter ouvido no dia do Festapé não foi falso.
Quando me vi somente com Sebastián o alívio veio, mas eu segurei a
agitação das lágrimas nos meus olhos.
— Estou muito orgulhoso de você.
— Ai. Eu nem sei mais o que falei. As palavras foram saindo e saindo…
— Você se expressou com o coração, com seus sentimentos mais
profundos. Mandou bem demais, amor.
— Vamos ver as consequências desse meu enfrentamento.
— Tenho certeza de que você ganhou o respeito do seu pai.
Fui dominada pela certeza das palavras do Sebastián e o abracei, os olhos
persistiram em arder com a intensidade do momento e o corpo inteiro
ondulou em tremor. Ainda assim, o alívio por ter enfrentado a situação de
cabeça erguida me deu forças para superar o turbilhão que zanzava em mim.

Naquele dia, meu pai retornou do tour imposto pelo Prefeito, resolvido a
embarcar para Fortaleza, mesmo que fosse tarde da noite. Sebastián insistiu
para que eles se hospedassem no hotel, mas meu pai não aceitou.
“Eu a vejo em dois dias em casa, minha filha. Vamos conversar sobre tudo
o que aconteceu aqui”, meu pai disse no momento da despedida.

Quarenta e oito horas depois, chegou o dia derradeiro. Era o final da


minha estadia longa em Jeri. O momento em que a realidade batia em meu
coração, me provocando a romper a barreira do choro a cada roupa que
retirava da cômoda e guardava na mala.
Na noite anterior, o pessoal havia preparado uma despedida surpresa para
mim no refeitório.
Miguelzinho se sentou ao meu lado e ficou quieto, absorvendo a algazarra
do grupo. Nesse dia, o ruído não o incomodou e foi emocionante quando ele
espontaneamente segurou a minha mão por um tempo mínimo e fitou meus
olhos. Foram segundos que ficaram registrados em meu coração. Depois ele
voltou a mexer nas rodinhas do carrinho de plástico, elas estavam viradas de
cabeça para cima sobre suas pernas.
— A tia vai sentir saudade de você.
Miguel olhou aleatoriamente para o teto e piscou várias vezes. Parecia
processar as minhas palavras na mente. Com seu gesto, ele me fez pensar que
havia captado os meus sinceros sentimentos por ele. Ele sentiu, com certeza.
No instante seguinte, minha atenção decolou até o som de uma colher
retinindo num copo. Era Calebe. Acompanhei-o se levantar e dedicar sua
atenção a mim.
— Pessoal, um minuto da atenção de vocês.
— Discurso. Discurso — mais soltinho com o grupo, André bateu com as
mãos na mesa.
— Amor…— Giovana falou baixo, ao lado dele.
Pisquei para ela na indicação de que o deixasse se expressar.
Então Calebe retornou com a fala espontânea.
— Antonella. Hum. Não consigo deixar de me referir a você como
Nelinha, não é? Nós nos tornamos íntimos, então posso chamá-la dessa forma
— Calebe iniciara assim o discurso.
— Nem tanto. Menos aí, Calebe — Sebastián instigou todos a rirem e a
relaxarem.
— Bom, eu estou representando os que estão presentes, com muito
respeito — Calebe piscou para o chefe e todos se arrebentaram em risada.
— Sabe, moça, você trouxe alegria para as nossas vidas no tempo da sua
estadia. Trouxe amor puro e exemplo de simplicidade. Nós aprendemos a
admirá-la dia após dia. Mas, veja bem, isso não é uma despedida, porque você
namora o nosso chefe, então será um até breve — Calebe provocou o amigo.
— Ai dela se não voltar mais aqui — Giovana disse.
— Olha, essa guria trouxe o Astolfo para morar conosco, um papagaio
boca suja. Ah, falando nisso, o chefe mandou avisar que conseguiu a licença
para o bichano ficar em definitivo conosco — Calebe riu ao me ver erguer os
braços, dizer um “aê” eufórico e beijar o rosto do meu namorado logo depois.
— Você conseguiu, Antonella, remover a resistência do Sebastián quanto
ao “idiota de merda”. Cara, com quem o Astolfo aprendeu a falar assim? —
Calebe jogou a semente da discórdia.
— Não foi comigo — André se defendeu. — Deve ter sido com o Max.
— Não, não, não. Só pode ter sido com a Márcia — Max passou a bola da
brincadeira para ela.
— Acho que foi com a própria Nelinha — Márcia olhou para mim e
piscou.
— Até parece — respondi com uma cara fajuta de raiva.
— Não sei mais o que dizer. Alguém pode me ajudar? — Calebe falou,
rindo.
Sebastian se levantou da cadeira e mexeu no pingente do colar de couro.
Arranhou a garganta e decaiu o olhar para mim.
— Antonella me devolveu a alegria de viver — revelou num tom que todos
pudessem ouvir a sua declaração breve e tocante de amor.
Pegou a minha mão e a beijou enquanto meus olhos debulhavam em
lágrimas.
— À Nelinha! — como sempre, ele propôs um brinde, dessa vez com
copos de mate.
— À Nelinha!
— Ah, não! Cheguei atrasada? — Luiza lamentou e logo se colocou ao meu
lado.
O abraço de despedida foi inevitável.
— Só faltava você — eu a recebi com alegria.
— Obrigada pelas lingeries. Tia Márcia levou na loja para mim — ela
cochichou.
— Sei que elas vão ser muito bem aproveitadas — afirmei.
A balbúrdia retornou com todos falando ao mesmo tempo.
— Obrigada, obrigada.
A noite avançou alegre até que fui mirrando de tristeza, como uma planta
na secura. Segurei a onda até um determinado momento, mas, quando entrei
no quarto, as comportas se abriram em lágrimas de uma forma colossal, muito
maior do que durante na despedida com o pessoal.

Sebastián

O dia da despedida havia se tornado exponencialmente mais difícil do que


eu previra. Sua partida deixaria um vazio considerável na casa, tão silenciosa
antes de ela preencher todos os espaços.
— Amor, preciso ir. O Calebe está me esperando no heliponto — ela
anunciou, da sala.
Na varanda, encarando o mar, as minhas emoções cambaleavam dentro de
mim. Quando eu ouvi a voz suave falar o óbvio, meu coração se
descompensou.
Cerrei os olhos. Por mais que eu soubesse que estava tudo organizado entre
nós dois para o futuro próximo, foi normal que o receio de que, quando ela
retornasse à sua vida anterior, algo mudasse. Jericoacoara havia sido marcada
pelo casal que se formou. No Rio de Janeiro, a nossa história não havia
iniciado. Para mim, eu a olharia em todos os lugares por onde andasse. Para
ela, em sua cidade, essas memórias ainda não existiam.
Passei a mão pelo cabelo e respirei fundo. Curvei-me para beijar aquela
boca pela última vez.
Nossa noite havia sido de despedidas em vários ritmos sexuais. O mais
importante foi que eu guardara em meus sentidos os gostos e as sensações
afloradas motivados pelo corpo da Antonella.
— Assim que chegar à sua casa, dê notícias. Você não quer mesmo que eu a
acompanhe até o helicóptero?
— Ah, não. Prefiro ficar com a nossa última imagem aqui, em sua casa.
Contrariado, aquiesci com o último pedido dela, ainda que tenha dado um
longo suspiro.
— Então vou lá, hum, me despedir do Astolfo. Espera aqui, tá? Tenho uns
assuntos para tratar com ele.
— Um dia eu ainda vou entender a sintonia entre vocês dois.
Com os dedos limpando os olhos, minutos depois, Antonella regressou à
sala.
— Cuida bem dele, tá?
— Vou fazer o possível.
Sem saber o que dizer, preferi trazê-la para os meus braços e sentir pela
última vez os seios dela pressionando meu peito, a boca-coração me
beneficiando com uma entrega de promessa de um reencontro breve.
CAPÍTULO 37
Ao ouvir a porta se fechando, cobri o rosto com as mãos e abafei um desabafo
sonoro. Como Antonella me faria falta! Fui ao deck e enlacei as mãos na nuca.
Inclinei a cabeça para trás e pus para fora outro grito, sem mais barreiras o
trancafiando.
— Amo Tián.
Demorei a me conectar à realidade. Olhei ao redor com as sobrancelhas
mais caídas que as orelhas do Ozzi. Então compreendi quem falava comigo. A
voz aguda não deixava dúvidas.
— Astolfo?
— Amo Tián. Crrác crrác! Amo Tián.
A constatação do que Antonella tanto falava para o papagaio foi motivo das
minhas pernas pensarem em ceder. Mas eu me mantive firme e saí apressado
para a sala, os pés numa marcha afoita na tentativa de vê-la mais uma vez.
Passei pela porta exclusiva que saía no pátio do heliponto. Ao colocar os pés
fora do prédio, lá vinha ela. O cabelo longo não tinha vontade própria, ele
obedecia ao vento que corria livre.
— Eu te amo, Antonella. Eu te amo! — falei enquanto salpicava beijos na
face corada.
— Você não vai me esquecer, né?
— Quando piscar, estarei lá, com você.
Como sempre fazendo graça, ela bateu as pálpebras de verdade.
— Então você já pode vir comigo.
Arremessei a cabeça para trás, rindo.
— Em breve, estaremos juntos.
— Sempre juntos. Eu te amo, Sebastián.
Meu coração recebeu as palavras mágicas com alívio.
Não sei o que aconteceu. Parei por um instante. Como se meu avô
conversasse comigo, uma sugestão passou pela minha cabeça como prova de
amor para minha musa.
Minhas mãos receberam o comando do meu cérebro, induzindo-as a retirar
o colar do pescoço. Percebendo meu movimento, os olhos da Antonella se
cativaram pelo tempo em que eu passei o meu amuleto da sorte para ela.
Surpresa, ela ainda tentava assimilar meu gesto, quando falei:
— Esse foi o último conselho que meu avô me deu antes de falecer — ela
me encarou sem entender. — Olha o que está escrito no verso da medalha.
— Tenha fé — Antonella leu em voz alta. — Esse é o nosso novo mantra?
— Si. Sempre que estou triste, leio o conselho do meu avô, e não foram
poucas as vezes. O que ele quis dizer para mim é que eu deveria confiar na
vida, em mim, no meu potencial, em tudo. Mas, para isso, eu precisava ter a
mente voltada para acreditar que as coisas dariam certo, respeitando o tempo.
Nós vamos conseguir superar essa fase mais tumultuada…
— Com fé — ela completou e me abraçou. — Te amo tanto, que chega
doer.
— No. No. No. Nosso amor tem que nos fazer bem. Felizes — o choro
estava tentando rebobinar a motivação que eu fazia força para passar para
Antonella. Então preferi me despedir antes que estragasse o momento. —
Agora vai. Você não quer perder o voo.
A cabeça dela se movimentou no meu peito, concordando.
Nós nos separamos, relutantes. Ela deu um passo, mas sua mão não largava
a minha. Até que eu a vi entrar no helicóptero. Mas havia algo que estava
corroendo meu peito e eu precisava colocar esse sentimento para fora.
Passei no escritório e retirei uma pasta da gaveta. Respirei fundo e retornei
ao pátio.
— Onde você vai com tanta pressa? — Márcia perguntou assim que me
viu.
Eu estava distraído, ajeitando em meu cérebro o meu próximo passo, o que
faria com a pasta.
— Resolver aquele problema de uma vez por todas.
Ela entendeu a mensagem.
— Está em suas mãos fazer justiça, Sebastián. Não se sinta culpado.
— Em parte estou me sentindo mal, sim. Porque somente me encorajei a
agir quando fui afetado de forma direta. Mas eu tentei não ser o primeiro a
fazer maldade.
— Volto a dizer. Você não vai fazer maldade, vai agir com justiça. Agora vai
logo, antes que se arrependa. Eu conheço seu coração mole.
Balancei a cabeça com a certeza de que seria o mais certo seguir com meu
plano.
Menos de meia hora após, entrei na Prefeitura de Jijoca sem olhar para os
lados. Sei que não me comportei como de costume, mas era o reflexo da raiva
que eu sentia. Estava na hora de colocar um ponto final nas loucuras da
Celeste.
Parei em frente à secretária dela e pedi para ser anunciado. Como a
Secretária de Turismo não era ingênua, sabia o motivo que me fizera decidir
pela “visita”, ou a parte que a sua percepção alcançava.
Quando Celeste abriu a porta, quase duas horas depois, a surpresa a atingiu
em cheio, o rosto foi golpeado pela expectativa tensa da conversa. As coisas não
seriam muito fáceis para ela.
— Ah. Oi, Sebastián. Eu pensei que já tinha ido embora.
Expus a ela o meu melhor sorriso falso e apoiei a pasta que havia levado
entre um braço e a lateral do tórax, ela continha informações sigilosas.
— Claro que não. Sei que você é muito requisitada. Mas eu precisava falar
com você.
— Ah, sim. Então vamos entrar na sala.
Sentei-me diante da Secretária de Turismo. Pude ver o nervosismo saltando
em uma de suas pálpebras, uma tremura evidente.
— Eu estava de saída. O dia foi puxado. Mas a que devo a honra da sua
visita? — ela me tratou de um jeito mais formal a fim de criar uma barreira na
conversa.
— Eu vim avisar que você foi longe demais se intrometendo na minha vida
particular, principalmente por prejudicar a imagem da minha namorada, além
de colocar ideias erradas na cabeça dela. Pensa que eu não sei o que falou à
Antonella no restaurante?
— Ah, você vai acreditar em mentiras de uma garota turistinha? Outra
coisa, eu não tenho nada a ver com o que saiu nos jornais.
— Ah, não? Quem mais sabe sobre a identidade do meu pai nesta cidade?
Os lábios dela se contraíram ao passo que seus ombros se moveram. Mas
ela não se conteve em espalhar seu veneno com acusações ferinas.
— Talvez a Márcia ou o Calebe. Duvido que você não tenha contado a
eles. Ah, pode ter sido aquela famosinha que se hospedou em seu hotel. Eu a
ouvi outro dia falando para a Luiza que você conheceu a moça num site de
relacionamentos.
Não. Eu não me comoveria com as insinuações maldosas da Celeste. Meus
amigos fiéis não fariam algo assim para me prejudicar. A Cássia Lúcia? Só
rindo. Sim, a fama havia subido à cabeça, mas não era para tanto. Eu sabia que
ninguém mudava de uma hora para outra, mas daí a ser uma pessoa tão má
assim…
— Estou farto das suas tentativas de manipulação, Celeste. E já que você
jogou meu nome ao vento, eu vou fazer o que a minha consciência está me
aconselhando há um tempo, mesmo antes da sua maldade chegar ao nível que
chegou.
Ela abriu a boca para falar. Eu fiz sinal com a mão que seria a minha vez
após tantos anos sofrendo o assédio moral dela, além da mão boba no meu
corpo.
— Está vendo esta pasta? — os olhos da Celeste amplificaram o tamanho.
— Aqui contém um dossiê detalhado que recebi anonimamente de algum
inimigo seu sobre suas trapaças financeiras. Relatórios sobre licitações
indevidas, cujos ganhadores são amiguinhos seus, constam nos documentos.
Sabe, Celeste, eu não sou um homem que costuma ser vingativo, aliás, acho
que nunca agi dando o troco nas pessoas, mas você passou dos limites. E não se
trata de algo apenas pessoal, suas atitudes acarretam prejuízo para uma
comunidade inteira.
— Sebastián, isso é tudo mentira.
Sorri com a resposta previsível.
— Eu ouvi isso do meu pai e deu no que deu — falei sem piedade.
No mesmo instante, Celeste se levantou e veio para o meu lado. Outra
reação telegrafada aconteceria. As mãos inconvenientes pousaram nos meus
ombros e sua boca se juntou ao meu ouvido.
— Podemos resolver essas questões de outra forma, já que a sua
namoradinha foi embora.
Senti asco por suas palavras, pelos lábios tocando minha pele, pelas mãos
num movimento de persuasão ao apelo sexual nos meus ombros…
No mundo como um todo, o assédio é mais comentado e comovente
quando o desrespeito parte do homem para com a mulher. Mas eu era a prova
viva que o inverso também existe. Aquela mulher sempre causava complicações
para eu manter a licença do hotel funcionando, entre outras coisas ligadas à
área burocrática, aproveitando-se da sua condição política. Mas eu jamais me
corrompi por suas tentativas de intimidação. E não seria naquele momento que
minha moral sucumbiria a ela.
Eu me levantei como instinto de preservação.
— Terminamos o assunto por aqui, Celeste. Eu não vim negociar nada
com você. Vim apenas comunicar a minha intenção.
— Você não pode fazer isso comigo, a única pessoa…
Espalmei uma mão. Estava na hora de dar o basta naquela mulher. Olhei
para ela pela última vez e lhe dei as costas.
Respirei o mais longo possível e fui fazer o que me cabia.
Antonella

Eu me senti absurdamente decepcionada quando liguei o celular após sair


do confinamento do avião e constatei que ninguém havia enviado mensagem
de boas-vindas para mim. Na verdade, eu me senti péssima.
Concentrada demais na minha combustão de tristeza, pus os pés para fora
da área de desembarque, olhando para o chão e me sentindo nervosa. A mala
deu aquela guinada de sempre para o lado e eu tive de cessar meu caminhar
cabisbaixo. Mas ao olhar para frente identifiquei a vó Vitória e a Heloísa entre
as cabeças daqueles que aguardam alguém chegar.
Vó Vitória me apalpou nos braços e rosto, depois me abraçou apertado.
— Meu amorzinho, deixa eu ver se você está inteira mesmo.
— Ai dela se não estiver, dona Vitória.
Heloísa deu aquele sorriso fácil e habitual para mim, depois aguardou a sua
vez para me abraçar.
— Sua sortuda. Quero saber todos os detalhes desse seu namoro, até
mesmo os mais sórdidos — ela exigiu.
Fechei os olhos para sentir o carinho.
— Você sabe que não fui em busca de um novo amor. Mas aconteceu, né?
— Há. Há. Eu tenho um feeling para essas coisas. Sei lá — Heloísa abriu as
mãos antes unidas na frente do meu rosto. — Foi como ver a cena de uma
comédia romântica na tela da TV. Gente, as malas se esbarrando. Vocês dois se
estranhando.
Ela soltou um gritinho. Revirei os olhos.
— Ai, vó. É muito romantismo para uma pessoa.
— Dessa vez tenho que dar razão à Helô. Tudo conspirou a favor de vocês
dois.
— Não é, dona Vitória? Gente, vamos mandar essa história de amor para
um cineasta.
— Vóóó, me ajuda a sair de perto dessa maluca — supliquei ainda que
sorrisse.
— Maluca nada. Vamos fazer um curso de como redigir um roteiro de
filme.
— Vamos, meninas. Temos que atravessar a cidade até a Barra.
Saímos caminhando pelo saguão do aeroporto.
— Mas, voltando ao assunto filme e namoro. A Heloísa está com a razão…
Bem que eu senti saudades das maluquices açucaradas da Heloísa.
CAPÍTULO 38
Era como se um ano inteiro tivesse decorrido desde o dia em que eu havia
saído de casa vestida de noiva, mas eu estava novamente diante do portão e
teria de enfrentar tudo sozinha.
O motorista deixou minha avó e a Heloísa em suas casas. Eu e a Helô
havíamos combinado de fazer um lanche no apê dela, no dia seguinte, para
colocarmos todas as fofocas em dia.
Então o segurança do condomínio acionou o controle e deu acesso à
passagem do carro. Meu coração foi à boca e voltou ao lugar em questão de
segundos.
Hora da verdade. Bem tímida e receosa, eu me vi diante deles, sem saber o
que falar ou fazer. Mas eu não era a única. Dava para ver o desconforto nos
olhos dos dois. Foi meu pai quem tomou a dianteira para quebrar o clima
cheio de rachaduras, levantando-se do sofá.
— Chegou, enfim.
Sorri sem jeito e fechei a porta. Minha mãe se aproximou. Olhou nos meus
olhos por um tempinho. Isso me deixou nervosa. Parecia que várias frases
ensaiadas cruzavam sua mente e ela não sabia qual delas usar naquele
momento. Não era o hábito dela ter demonstrações gestuais de afeto.
— Minha filha…
Para minha surpresa, a dona Vivian me abraçou e eu correspondi ao
carinho.
— Mãe…
Ela chorou baixinho e me surpreendeu. Dona Vivian Laurinda Alencar
Braga não era de revelar emoções com tamanha intensidade, mas foi o
suficiente para eu liberar o restante das lágrimas.
— Mãe… — repeti.
— Eu a amo, Antonella Vivian. Como você pôde ter essa dúvida?
— Ah, mãe.
Segurando minha mão, ela me levou ao sofá maior. Meu pai se sentou em
uma poltrona à nossa diagonal.
— Aqui é o seu lar, minha filha, onde mora a nossa família. Não há outro
lugar para você ir agora que voltou.
— Mãe, podemos falar sobre isso em outro momento? Estou muito
cansada.
— Fale para mim, o que lhe aflige? Seu pai já deu alguns indícios de que
você não se sente amada por nós. Isso não é verdade. Tudo que fizemos sempre
foi pensando no seu futuro. Um futuro estável. Não queremos que você passe
apertos, como eu já vivi na minha infância.
— Já que a senhora está tocando no assunto. Bom, eu tenho algumas ideias
que vou tentar colocar em prática. Vim no avião pensando sobre isso.
— Isso inclui o rapaz? — minha mãe nem vacilou em perguntar.
— Sebastián? Também. Mas envolve mais com o que trabalhar, dar vida
aos meus sonhos. Não espere que eu vá assumir o seu lugar como dona desta
mansão no futuro. Eu quero mais para mim. Uma situação mais de acordo
com o que gosto e quero fazer.
Minha mãe respirou profundo.
— Nós iremos apoiar no que você decidir, Antonella — meu pai me
surpreendeu com sua afirmação. — Mas precisamos saber quais são esses
planos. Eu posso ajudar a conquistá-los.
Soprei o ar me encorajando.
— Pai, desta vez eu vou andar com as minhas próprias pernas. Eu vou
conseguir, assim como conquistei meu diploma de Pedagogia.
— Tenho certeza que sim. Você é uma moça determinada. Já deu provas
quanto a isso. Mas se precisar — ele ergueu os braços das laterais da poltrona
—, nós estamos aqui para ajudá-la. Se o plano for ampliar a escola da sua
avó…
— Obrigada, pai. Acho que a vovó não precisa disso. Ela não tem essa
ambição e não sou eu que vou forçá-la a nada que não queira. São outras coisas
que estou pensando fazer.
— Quanto ao Sebastián…
— Vivian, esse assunto fica para depois — meu pai cortou a fala da minha
mãe. — A Antonella precisa descansar. Você vai ficar em nossa casa, não é,
filha?
— Por enquanto, sim. Após o fim do ano letivo, nós conversamos.
Ouvi suspiros de alívio se unindo.
— Posso subir?
— E precisa perguntar, filha? — minha mãe perguntou, meio que me
dando uma bronca de leve.
Firmei as mãos nas pernas e me levantei. O celular emitiu o som do seu
toque. Arranquei-o do bolso da calça jeans. Meu coração se alegrou ao ver o
nome do meu amor na tela, apertei o botão lateral e deixei a chamada cair na
caixa postal.
— Pai, quando é o baile de aniversário da empresa?
Ele abriu um sorriso.
— Você vai?
— Claro. É importante para o senhor ter a família unida, não é?
— Mais do que tudo. Ver você ao nosso lado é o mais importante.
Toda família possui suas imperfeições. A minha não era diferente. Aos
poucos nós iríamos acertando as arestas criadas durante os anos. Mas se cada
um se prontificasse a ceder um pouco, tenho certeza de que as peças
encontrariam seus encaixes como num quebra-cabeça. Eu estava disposta a ser
uma filha mais presente, talvez a culpa do nosso afastamento tenha sido em
parte por minha conta e risco.
Dei um beijo no rosto de cada um deles e subi os inúmeros degraus da
escada, ansiosa para falar com o Sebastián.
— Amor, acabei de chegar.
— Onde você está?
— Vim para a casa dos meus pais. Achei melhor. O motorista foi me
buscar, claro. Não foram eles, pessoalmente, mas a vovó e a Helô estavam no
aeroporto…

Naquele mesmo dia, dei início ao meu plano profissional. Meu namorado
martelou tanto em minha cabeça sobre as ilustrações, que foi inevitável que
uma brilhante ideia surgisse em minha mente.
— As aventuras de Astolfo e Ozzy. Volume um e dois finalizados.
Distraída, dei um pulo na cadeira quando duas mãos tocaram meus
ombros.
— Pai, não faz isso, não. Meu Deus do Céu.
Desde a nossa conversa em Jeri, ele vinha fazendo de tudo para se
aproximar de mim. Minha mãe tinha um jeito menos meloso, mas puxava
assunto várias vezes, sem mencionar o nome do Sebastián.
— Desculpe, filha. Não foi a minha intenção. Posso ver?
— Você não vai rir?
— E por que eu faria isso? Quero muito saber o que você anda fazendo
recolhida no seu quarto.
De posse de todas as ilustrações, ele se sentou na poltrona ao lado da
bancada de estudos e ajeitou o laço do roupão no corpo. Eu preferia desenhar
no papel a usar um aplicativo próprio, meus traços ficavam mais soltos estando
livres da tecnologia.

À
À medida que seus dedos mudavam os papéis de mãos, o sorriso ia se
abrindo. Fiquei curiosa para saber o que ele estava achando do meu projeto
literário.
— São bons, pai?
— Bons? São maravilhosos. Como eu nunca soube que você tinha esse
dom?
Estreitei os lábios e preferi guardar a resposta óbvia para mim mesma.
— O que você pensa em fazer com este trabalho?
— Penso em publicar essas histórias e outras que estão borbulhando em
minha cabeça. A inspiração está vindo com tudo. Montar uma editora com
foco em histórias infantis. Depois trabalhar para ela crescer no mercado. Aí
quero muito criar um site onde os pais possam ler com seus filhos. Isso
estimula a interação da família e a leitura dos pequenos. Seguir por esse ramo.
Difundir a literatura infantil nas escolas. Tenho tantas ideias. Quero ganhar
dinheiro nesse ramo, mas fazer o trabalho social também.
Enquanto meus pensamentos vagavam e a boca expressava o que eu tinha
em mente, meus olhos passeavam pelas fotos que havia imprimido e pregado
no aramado na parede atrás do meu pai. Sebastián e Astolfo eram os que mais
estavam presentes no mural.
— Foi Sebastián quem me estimulou a finalmente encontrar um projeto de
vida associado aos livros, à literatura, à pedagogia, às crianças. Ah, posso
também bolar uns brinquedos educativos de papel.
— Hum, Sebastián.
Olhei de volta para o rosto dele. Meu pai estava louco para que eu tocasse
no assunto “casamento jogado para os ares e namorado novo”. Como eu
emudeci, ele voltou a falar:
— Pensei que você gostasse de lecionar.
— Eu gosto, pai. Mas quero ter meu tempo livre para tocar vários projetos
ao mesmo tempo. Amo os meus alunos, mas…
— Você se sente presa.
— Exatamente.
— Bom, se você permitir, eu posso ajudar você. Posso contratar uma
equipe de profissionais para o planejamento do seu sonho.
Fiz careta. Eu queria mesmo andar com minhas próprias pernas.
— Pelo menos pense no assunto. Começar o próprio negócio sem
investimento e um bom planejamento é realmente difícil. E eu posso
proporcionar esse estopim para você, filha. Dinheiro é para ser usado em causas
nobres. Não foi você que me ensinou isso?
Olhando nos olhos dele, sorri.
— Tá. Juro que vou pensar. Mas, se eu aceitar, nada de usar da sua
influência para me beneficiar.
— Combinado. Quando tiver decidido pelo que pretende realmente fazer,
me fala — ele se levantou e beijou minha testa. Colocou as ilustrações na mesa
com cuidado. — Estou orgulhoso da mulher que você está se tornando. O
homem que de fato tiver o seu amor será um sortudo.
— Meu coração já tem dono, pai.
Os olhos dele se livraram dos meus e se perderam nas fotos do mural.
— Deixa a poeira baixar mais. Tudo o que aconteceu está muito recente
para nós recebermos o Sebastián em nossa casa. Você sabe que sou amigo da
família do Horácio há muitos anos. Não vai pegar bem, por enquanto. Mas
uma hora eles vão ter que entender que você tem o direito de escolher a sua
felicidade.
— Obrigada, pai. Eu sei esperar. Nós só vamos poder nos encontrar daqui
a dois meses mesmo. Ele é o engenheiro responsável pelo trabalho de
recuperação das casas atingidas pela tempestade.
Com as mãos nos bolsos do roupão, ele analisava meus olhos. Era mais
certo que o senhor Aurélio ruminava em sua mente se namorar Sebastián não
seria fogo de palha. O tempo se encarregaria de provar que eu o amava.
— Boa noite, minha filha. Amanhã tenho que viajar para Brasília. Quer
vir?
— Não, pai, recomecei no trabalho hoje.
Ele sorriu e saiu. Peguei o celular e liguei para o Sebastián, torcendo para
ele estar acordado.
— Como foi o seu dia, amor?
— Sentindo saudade de você — ele nem titubeou para responder.
— Eu também. O meu primeiro dia de trabalho foi legal com as crianças,
mas os adultos são chatos. Quer dizer, alguns são. Por onde andava na escola,
tipo no refeitório ou na sala dos professores, tive que aturar olhares curiosos,
ou de repreensão, ou desdém.
Girei a cadeira e fui à cama.
— Não liga, não. Isso vai passar. O tempo cura tudo.
— Espero que sim. Você não vai acreditar. Descobri o meu projeto de vida,
a conversa vai ser longa, amor. Está com tempo?
— Só se for por chamada de vídeo para matar a saudade.
— Chantagista. Eu estava pensando em te chamar para um bate-papo no
“Mais que um Match” — zoei.
— Você não iria conseguir me achar. Desativei a conta. Não precisei do
aplicativo para encontrar a mulher perfeita para mim — ele falou num tom
sério.
Por essa eu não esperava. Que fofo! Eu também faria o mesmo. Não fazia
sentido algum manter o meu perfil.
— Hum. Amor, olha, eu nunca mais mexi no aplicativo. Foi somente
naquele dia em que conversamos, tá? Vou dar baixa no meu perfil também.
— Faça o que achar melhor.
Nossa! Se fosse o Horácio metido nessa situação, seria um Deus nos acuda
se eu permanecesse com a conta no “Mais que um Match” ativa nem que fosse
por mais alguns segundos.
— Já está decidido. Vou desativar. Agora se prepara aí. Vou te chamar.

Sebastián
Não estava sendo fácil me manter distante da Antonella. Há um mês nós
nos conectávamos impreterivelmente às nove da noite. Conversávamos sobre
diversos assuntos, sobre os progressos nas inspirações para a coleção dos livros
infantis que ela estava escrevendo e ilustrando. Eu estava orgulhoso dela.
— Então, amor. O baile de aniversário da empresa será na próxima sexta.
Pena que você não vai poder vir — ela protestou com um biquinho.
Segurei o canudo e beberiquei a água de coco.
— Infelizmente, não, amor. Mas falta pouco para eu passar um tempo aí
— mudei de assunto. — Ah, alguém quer falar com você.
— Quem?
Larguei o coco na mesa e direcionei o celular para a gaiola.
— Astolfo, fala — imitei o som de um papagaio falando. — Não me
decepcione, cara.
Enfim, ele respondeu:
— Tián. Einha. Amo.
— Não foi bem isso que treinamos, garoto. Fala outra vez.
— Tián. Einha. Amo.
Voltei a olhar a tela. Antonella ria de quicar na cama.
— Bom, eu tentei, né? Não tenho o seu talento para adestrar animais.
— Eu entendi, amor. “Sebastián ama Nelinha”.
— Tián. Amo. Tián. Einha. Merda. Tián. Idiota — Astolfo desandou a
falar.
— Dios Mio! Agora como vou dormir com esse tagarela falando todo o
repertório?
Pensei que Antonella fosse explodir de tanto rir. E eu, idem.
Aproximei o rosto da tela e dei um suspiro longo.
— Você faz falta aqui…
CAPÍTULO 39
Cochilei por mais de duas horas ao som da televisão. O dia não havia sido fácil.
Meio zonzo, conferi a hora no celular.
Mierda!
Rapidamente chequei se havia alguma mensagem dela.
Nelinha: Sebastián, você tá aí? Hoje vou dormir mais cedo. Amanhã teremos reunião com os pais dos
alunos. Preciso estar bem para encarar essa.

Nelinha: Amor, boa noite! Amanhã nos falamos.

Eu: Amor, desculpe. Dormi. Você ainda está aí?

Os três pontinhos não surgiram na tela em poucos instantes, como de


costume.
Um tanto frustrado e me sentindo culpado por ter falhado com ela, o que
me restou foi ir para a cama e apagar outra vez.


No dia seguinte, no horário em que eu tinha em mente que ela estaria livre,
preferi ligar e ouvir a voz que me acalmava a qualquer hora do dia.
Descansei os pés sobre a mesa de centro e, no celular, cliquei em favoritos
para selecionar o nome dela.
— Oi, amor. Espera aí — a voz um pouco distante conversava com algum
aluno. Era o horário do intervalo da aula. — Desculpe. Meu aluno me
chamou. Senti tantas saudades ontem.
— Eu também. Pelo visto, nós dois estávamos mortos de cansados. Dormi
bem cedo e você também. Como foi a reunião de pais?
Ouvi o som da bufada dela.
— No geral, foi tranquila.
— Hum. Eu preciso contar algo para você.
— Solta a bomba.
— Sobre as nossas fotos nos tabloides. Foi a Celeste. Ela me chantageou
durante muitos anos sobre não revelar a minha origem aos moradores da vila,
alegando que não seria bom para o meu negócio. Em troca, ela desejava algo a
mais de mim.
— Safada. Miserável. Estava escrito nos olhos dela que era uma cobra.
— Bom, como não conseguiu o que queria, ela fez o que você já sabe. Foi
bom ter acontecido porque me livrei dos assédios dela de uma vez por todas.
— Olha, nem sei o que faço se der de cara com essa pessoa.
— Já disse. Não vai fazer nada. Além disso, eu a denunciei por
improbidade administrativa e peculato.
— Que isso? Sério? Mas isso não é perigoso?
— Perigoso era ela continuar se aproveitando do cargo na Prefeitura para
roubar. Há um tempo eu desconfiava das armações da Celeste, mas não tinha
como provar. Recentemente, consegui provas suficientes para incriminá-la. Já
era hora de dar um basta nas armações dela.
— Amor, mas… — o silêncio aflito veio como eu previra. — Ai. Fiquei
preocupada. E se ela fizer alguma coisa contra você, já que a denunciou?
— Fisicamente? Não. É pouco provável que ela chegue a esse ponto de
loucura. Não se preocupe. Mesmo assim, tomei algumas precauções. Ela nem
está mais na região. Assim que ficou sabendo por mim que eu tinha provas
contra ela, pediu exoneração do cargo e sumiu. Ela pode até ter escapado de
um inquérito administrativo, mas não de um penal.
— Cuidado, tá?
— Fique tranquila, amor. Mas como estão os preparativos para o baile?
— Não estou tão animada para ir. Você não vem.
— Sua presença é necessária. Agora que seus pais estão tentando ficar mais
presentes, você também precisa ceder.
Ouvi o sinal do término do intervalo soando na escola.
— Preciso ir, Sebastián. Mais tarde ligo...

Quatro dias foi o tempo que transcorreu após a conversa com Antonella.
Seria um momento especial. Por mais que eu não quisesse sentir o frio na
barriga, ele atacou meu equilíbrio, foi inevitável não ser pego de surpresa por
uma sensação perturbadora. Entrar em território ainda não conhecido, não era
nada agradável.
Necesito respirar.
Mas eu não esperava por algo. No dia, fiquei sem ação quando vi o
envelope. Inacreditável foi a palavra que passou em minha cabeça. Acreditem,
mas há pouco menos de três semanas eu havia recebido o convite para o baile
da empresa do senhor Aurélio, com um cartão anexo, escrito de próprio punho
por ele.

Sebastián,
Contamos com a sua presença no baile da nossa empresa.
Será uma boa oportunidade para a nossa família conhecê-lo melhor.
Aurélio Alencar Braga.
Eu me imaginei sendo recebido por ele e sua esposa. Depois dançando com
Antonella sob muitos olhares atentos. Permitindo-me ser fotografado após
tantos anos distantes das perseguições da imprensa. Que flashs retornariam a
espocar diante dos meus olhos e voltaria a ficar em evidência. Senti-me
estranho imaginando todas essas cenas futuras.
Por um bom tempo, no escritório, foquei no recebido e tive dúvidas se iria
ao baile.
Márcia surgiu nesse instante de indecisão, ela havia ido mostrar dois tipos
de cardápios montados para eu receber uns empresários num jantar. Ao notar a
minha fisionomia num misto de dúvida e incredulidade, ela parou diante de
mim e me questionou o que estava acontecendo. Empurrei com os dedos o
papel timbrado até o outro lado da mesa.
Diferente de mim, ela foi enfática com seu conselho e pegou logo no meu
ponto fraco.
— Você não pode deixar de proporcionar essa felicidade à Antonella.
De repente eu me vi querendo passar por esse momento e assumir de vez o
que havia ficado somente idealizado nas nossas conversas noturnas. Mas…
decidi que faria surpresa à minha namorada.
Poucos minutos após a conversa com a Márcia, autorizei que Calebe
confirmasse a minha presença e a dele como segundo convidado, apesar de
todos os protestos do mundo, rabugento, falando que não queria desentocar de
Jericoacoara. Ainda instruí a ele que conversasse com a secretária do meu
“sogro” para que guardassem sigilo à Antonella sobre a minha ida ao Rio de
Janeiro.
Então, no hall do salão social, sob um lustre de cristal estupendo, conferi se
a gravata borboleta estava em ordem. Atrasei minha saída do hotel por causa
daquele pedaço de pano inconveniente. Tive de usar o artifício de assistir a um
tutorial para me relembrar de como faria para deixá-la perfeita. Por Antonella,
eu me sujeitaria a qualquer coisa, até mesmo usar um black tie. Esse tipo de
traje me remetia ao passado nada agradável junto ao meu pai.
Estava na hora de manter os complexos no lugar longínquo de onde nunca
deveriam ter saído.
Vida nueva!
— Não acredito que você me convenceu a vir a esse baile — reclamou
Calebe, chateado por ter que usar a gravata, assim como eu. — Desde que fui
morar na praia, nunca mais me obriguei a colocar nada parecido com isso.
— Vai ser bom para você recordar os velhos tempos das festas corporativas
que frequentou.
Ele me olhou de lado.
Minutos depois, uma mulher vestindo roupa social azul-marinho veio nos
recepcionar. Informamos nossos nomes e ela nos conduziu ao salão principal.
Ouvimos a recepcionista falar por cima do ombro.
— Os senhores vão se acomodar na mesa do senhor Aurélio.
— Era de se esperar — Calebe tentou me acalmar.
Eu tinha total noção da realidade e que iria conhecer a mãe da Antonella e
rever o pai após a situação constrangedora no hotel. Até então estava tranquilo,
mas quando o momento deu as caras…
No meio do caminho, fomos abordados por uma moça loira, um pouco
mais baixa que a minha namorada.
— Não posso acreditar que estou conhecendo o Sebastián em carne e osso.
— Você só pode ser a Heloísa — eu a identifiquei pela cor dos olhos azuis
e o rosto de boneca.
— A própria. Olha só...
Natural que ela tenha me avaliado de cima a baixo. As duas eram melhores
amigas e a curiosidade deveria ser grande para ver como eu era de perto.
— Será uma surpresa e tanto para a Nelinha. Ela não sabia que você vinha.
— No. É surpresa mesmo.
— Sebastián, ela vai surtar de felicidade — Heloísa se ateve à moça. —
Pode deixar que eu conduzo os senhores à mesa do anfitrião.
Com um aceno de cabeça, a recepcionista se afastou.
— E você é o…
— Oh. Desculpe a minha falta de educação — direcionei o olhar dela para
o meu amigo. — Heloísa, esse é o Calebe.
— Ah, sim. A Antonella mencionou seu nome milhares de vezes também.
Como de costume para os cariocas, Heloísa cumprimentou Calebe com
um beijo em cada lado do rosto. Sorte a dele que a barba camuflou em parte a
vermelhidão que assolou sua pele.
— Então vamos?
Assim que ela virou, Calebe não conteve seu olhar na silhueta azul-vivo da
loira. Ele percorreu todo o decote que se aventurava em um v pronunciado até
a base das costas.
— Valeu a pena vir? — provoquei.
Ele respondeu com um fragmento de frase.
— Ô.
Olhei para o chão e ri.
— Preparado para conhecer a sogra, Sebastián?
— Assim você me assusta — falei, rindo.
— Olha aí, Calebe. Será que seu amigo vai desistir?
— É mais fácil eu sair correndo do que ele — Calebe entrou na zoação,
embora tenha me defendido.
Ela riu sem muito esforço.
— Essa cena eu gostaria de presenciar. Um homem desse tamanho com
medo da senhora Vivian.
Calebe olhou no rosto de Heloísa por um tempo e eu me senti sobrando ao
lado dos dois.
— Eu não costumo fugir de mulheres, ainda mais se forem bonitas.
Pega desprevenida, ela ficou sem resposta. Demorou um bom tempo
processando a indireta, nitidamente estudando o rosto do Calebe.
Ela sorriu mais contida.
Por fim, ouvi um pigarro sobre o som instrumental tocado pelos músicos
no palco antes de falar:
— Não se preocupem. Ela é uma mulher muito educada. Um pouco calada
apenas. Assusta num primeiro contato, mas depois a gente se acostuma com o
jeito dela.
— Observadora? — perguntei.
— Também.
No espaço de mais duas mesas redondas adiante, nos encontramos com os
pais da Antonella. Seu Alencar se levantou assim que nos viu, seguido por dona
Vivian.
— Sebastián Martinez Munõz — ele estendeu a mão para um
cumprimento saudável, enfim. — Bom tê-lo conosco. Chegou a tempo de
dançar a valsa com a minha filha. Ela estava aqui há pouco. Onde ela foi,
Vivian?
— Antonella disse que iria ao toalete, Aurélio.
— Agradeço o convite, senhor — busquei a mãe da Antonella com os
olhos. Era incrível a semelhança dela com a filha. — Senhora Vivian.
Como Heloísa adiantou, a minha “sogra” era mais retida em suas atitudes,
então balançou minimamente a cabeça e soltou um sorriso discreto.
— Vamos deixar a formalidade de lado. Não precisa nos chamar de senhor
e senhora — o pai da Antonella pediu.
Sorri, concordando. Foi custoso apresentar o Calebe aos dois. Meu amigo
se distraía em outro mundo que talvez fosse preenchido somente por Heloísa.
Há muito tempo eu não o via embasbacado por uma mulher.
Já com taças de champagne às mãos, logo a conversa entrou no ritmo
empresarial. Seu Alencar se interessou em saber sobre o hotel e o trabalho
administrativo. Dona Vivian foi abordada por outras duas senhoras e se
limitou a dar atenção a elas.
— Meu lorde. Você veio!
— Senhora Vitória. É um prazer conhecê-la pessoalmente.
— Pode me chamar de vó, meu filho — ela me abraçou com tanto carinho
que me senti acolhido de fato por ela.
— Você está procurando por sua namorada?
— Desde que cheguei.
— Um mensageiro me contou que a viu indo à varanda.
Pisquei para ela.
— Ah, meu lorde. Não gaste seu charme comigo — nós rimos. — Agora
vá e busque a minha neta para uma dança.
Não pude evitar de obedecê-la. Era o que eu mais queria.
No instante em que entrei na área externa, minhas pernas fraquejaram.
Antonella estava um encanto em um vestido rosa claro longo de um ombro,
floral, meio esvoaçante. O cabelo preso formava rolinhos pendendo até os
ombros.
O que eu não contava era ver o que meus olhos registraram. O ex-noivo da
Antonella chegava por detrás dela, quase que de forma clandestina. Fiquei
como espectador, sem saber o que fazer com as mãos, se as enfiava nos bolsos e
camuflava a tremura ou as fechava em punho.
Observei os dois por um tempo considerável. O rosto da Antonella estava
quase todo na sombra da noite. Mas eu consegui identificar os braços se
movimentando para abraçarem o próprio corpo. Ela estava se sentindo
pressionada.

Antonella

O ar me faltou no salão. Estava muito próximo de eu ter um ataque de


pânico. Eu morria por dentro a cada segundo. A varanda coberta foi o lugar
escolhido para o meu escape furtivo.
Horácio havia chegado sem os pais, era a primeira vez que eu o via após o
nosso encontro inesperado no aeroporto. E todas as atenções se voltaram para
mim em questão de segundos. Para nós dois. Para nossas reações. Mantive a
postura serena, firme, e camuflei meu desespero interno. Meus pais estavam
longe e não presenciaram nosso encontro. Senti-me desprotegida.
Após risos inibidos e olhares críticos negativos, escapuli para a varanda,
para o meu bem.
Respirei o ar mais leve, ainda que meu peito temesse que ele me
encontrasse no meu esconderijo. Mas fugir o resto da vida do confronto com
Horácio não seria a melhor opção. Se eu quisesse assumir Sebastián de uma vez
por todas para o mundo, pelo menos que o passado estivesse resolvido. E a
coragem onde havia parado?
Eu não queria virar uma página da minha história de vida escrita como se
ele não existisse. Não era bem isso que eu tinha em mente. Horácio havia sido
importante e não seria apagado com uma borracha, como fazemos em um
escrito à lápis. Só que eu me sentiria mais livre com a minha consciência para
viver o novo amor.
Na penumbra da noite, eu tentava me camuflar em um canto, longe da
atenção de todos. E era bom me distanciar da plateia. Ah, como eu queria ter a
segurança dos braços do Sebastián me envolvendo, seu peito se oferecendo para
que eu ficasse à vontade, seu amor a me acalentar de todos os males.
O que eu não contava era que...
— Antonella.
CAPÍTULO 40
Liberei meus braços cruzados do próprio corpo. Virei-me para o meu ex-noivo.
O tecido leve do vestido floral flutuou nas minhas pernas.
— Horácio…
Somente quando o vi longe de todos é que percebi o quanto ele mantinha a
mágoa em seus olhos. Muito mais que no último dia em que nos vimos.
— Eu vim aqui somente para saber como você pôde ser tão dissimulada
comigo.
— Olha, eu sabia que você me julgaria, assim como os jornais. Mas,
acredite, eu…
— Eu a vi com o tal do espanhol no aeroporto. Vocês haviam planejado
tudo pelas minhas costas. As reportagens somente confirmaram o que eu
suspeitei, Antonella.
— Não — balancei a cabeça em negativa, me defendendo. — Eu não o
conhecia antes do nosso…
— Ah, corta essa. Você me traiu. Não vou perdoá-la nunca. Nem a mim,
por amá-la — com rispidez, ele confessou.
Meu coração partiu. Ele ainda me amava.
— Horácio, eu espero mesmo que você me perdoe por não ter sido honesta
com você sobre os meus sentimentos. Por ter deixado o nosso relacionamento
chegar tão longe. Eu me culpo de verdade por tudo o que minha covardia
acarretou, mas, acredite, eu fui fiel a você até o último segundo em que
estivemos juntos. Nunca, jamais traí você.
— Espero que você não se arrependa da sua escolha, Antonella Vivian. É
isso mesmo que você quer?
— Não vou me arrepender. O que desejo mesmo, Horácio, é que você seja
feliz, acompanhado ou não.
Ele abriu a boca para falar alguma coisa, mas desistiu no meio do caminho.
— Eu… — ele respirou o mais profundo que pôde.
Era uma despedida, eu tinha noção do quanto estava sendo difícil para ele.
— Resolvi dar um tempo do Brasil e fazer o mestrado nos Estados Unidos.
— Isso é bom. Muito bom, Horácio. Fico feliz que tenha decidido
finalmente estudar no exterior, como sempre quis.
— Era para você ir comigo, mas…
— Um dia nós vamos conseguir ser amigos?
— Um dia, quem sabe.
Com as mãos nos bolsos, parecia que Horácio se controlava. Percebi que
queria me abraçar, ou beijar, ou as duas ações simultâneas, ele se segurou na
postura fiel de manter uma certa distância de um toque mais íntimo.
Seria melhor assim.
Os olhos dele garoaram; os meus seguiram a sugestão e se umedeceram. Foi
difícil vê-lo virar as costas, saber que seu perdão ainda não tinha sido dado.
Mas ele fez o que era o certo. Por um tempo, seria melhor para sua
reestruturação seguir seu caminho para bem longe de mim. De certa maneira,
meu coração sentiu o alívio imediato por ter sido sincera em definitivo com
ele.
Foi uma libertação.
As mãos levitaram até a mureta da sacada, meu olhar zanzou pela imagem
da praia da Barra. O salão de festas ficava de frente para o mar. Sempre o mar.
E o infinito ao alcance dos meus olhos.
Então permiti que um suspiro partisse do meu peito direto para o vento,
talvez ele o levasse até Sebastián.
— Eu te amo tanto, Sebastián.
Ao dizer isso, minha cintura sentiu as mãos que as cingiram durante um
tempo que eu não gostaria que tivesse acabado. E elas estavam de volta a
provocar o frisson conhecido em todas as partes do meu corpo.
Sorri. Sorri e sorri. Em seguida, minha pele do pescoço captou um beijo
saudoso.
Em questão de segundos, eu estava nos braços que eu tanto sonhara no
último mês.
— Você veio...
— Você está linda.
Os olhos cristalinos se moveram para o alto da minha cabeça e se fixaram
na tiara com pedras no tom pastel das flores do vestido. Circulei os ombros do
meu amor com meus braços.
— Falaram para mim que uma princesa estaria aqui.
— E você a encontrou?
— Não somente uma princesa. Encontrei o meu amor. Eu te amo,
Antonella.
Retirei o colar de couro e medalha prata do sutiã onde o havia guardado.
Eu queria senti-lo junto comigo durante o baile.
Os olhos dele se surpreenderam.
— Você o trouxe? Por quê?
— Eu tive fé que um milagre pudesse acontecer e você fosse aparecer.
— Funcionou.
— Seu avô nos ajudou.
Meus lábios, que estavam semiabertos, não foram capazes de fazer qualquer
outra coisa que não recepcionar o beijo do meu grande amor.

Sebastián
Fomos para o salão no instante em que ouvimos o pai da Antonella iniciar
um discurso. Adentramos sob os olhares atentos de muitos.
Senhor Aurélio iniciou sua explanação curta dizendo que ele supunha ser o
dono da verdade, devido aos cabelos brancos, mas que uma jovem em especial
o alertara de que ele tinha muito a aprender, em especial com ela. Agradeceu à
filha por mostrar a ele o verdadeiro significado do amor, por ter resgatado nele
os princípios que o avô e o pai o ensinaram sobre família e convívio social. Que
ele dedicava o baile a ela.
Não houve quem não se emocionasse.
Antonella subiu ao palco e o abraço que eles trocaram foi comovente,
sincero, entre um pai e filha que finalmente se conciliaram em comunhão de
intenções. Dona Vivian se juntou a eles bastante tocada pela energia do
momento.
O sax do grupo de jazz acompanhado pela bateria e o violoncelo
introduziram a música, a nossa música, a minha e da minha musa, a que
afirmava o nosso amor: Garota de Ipanema.
— Agora é a hora, amigo. Vá buscar sua namorada para uma dança. Seja
feliz — Calebe embarcou na vibração da emoção.
— Aproveita para dar início à sua história também — mostrei Heloísa com
o nariz para ele.
Somente obtive o riso discreto costumeiro em resposta. Não precisei me
mover. O pai da Antonella foi ao meu encontro e ofereceu a mão da sua filha
para que eu a conduzisse à pista de dança.
Ela fingiu pensar se aceitaria e as pessoas que estavam ao nosso redor
acharam graça. Ela era uma moça-mulher-diabinha-princesa-musa graciosa.
Como previsto, flashs vieram de todos os cantos.
EPÍLOGO
Antonella Vivian Alencar Braga assume o romance com o milionário
Sebastián Martinez Munõz em baile do Grupo Alencar. O casal dançou
a valsa tradicional do evento sob as vistas de mais de duzentos
convidados.
A mais nova escritora, Antonella Vivian Alencar Braga, lança o seu
primeiro livro infantil em livraria carioca, com o pseudônimo Nelinha
Alencar.

O primeiro livro infantil de Nelinha Alencar é best-seller no Brasil no selo


de uma editora de grande porte. Com uma escrita fluida e ilustrações
próprias, o papagaio Astolfo e o cachorro Ozzy estão no topo dos
queridinhos das crianças.

A autora best-seller Nelinha Alencar é pedida em casamento pelo


hoteleiro Sebastián Martinez Munõz em uma reunião singela para
cinquenta convidados em seu mais novo hotel, na Barra da Tijuca.

Nelinha Alencar é vista praticando kitesurf em Jericoacoara, no litoral


cearense, com o noivo Sebastián Martinez Munõz. A data do futuro
enlace ainda não foi marcada pelo casal.
Aproximadamente cinco meses após o baile da empresa do pai da
Antonella, eu, ela e os tabloides, enfim, fizemos as pazes. Nós nos dividimos
entre Jericoacoara e o Rio de Janeiro após o término do ano letivo na escola da
dona Vitória.
O hotel havia sido inaugurado e a temporada de verão na cidade carioca
fora trabalhosa o suficiente para decidirmos passar o Carnaval em Jeri, longe do
tumulto da cidade grande, embora a vila ficasse lotada nessa época do ano.
Mi abuela nos visitou na inauguração do sexto hotel do Grupo de
Hotelaria Martinez. Eram quatro na Europa e dois no Brasil.
A interação entre ela e dona Vitória aconteceu no primeiro encontro. As
duas se tornaram amigas e passaram a trocar mensagens e ideias para o futuro
dos netos e… bisnetos.
Da porta de casa, eu a vi trabalhando.
— Amor, sua família está chegando. Olha, eles não vão poder reclamar de
nada, separei os melhores quartos, com as melhores vistas da praia. Um para os
seus pais. O outro para a sua avó com a Heloísa.
Minha noiva havia encontrado de fato o seu talento. Ela estava de vento em
popa em suas criações para as próximas publicações, para a estruturação do seu
empreendimento: uma editora de livros voltados para a educação infantil. Ela
aceitara ajuda do pai para o planejamento dos seus negócios e um suporte
financeiro que ela frisou milhares de vezes que seria como empréstimo e ela o
pagaria de volta.
A cabeça dela fervilhava ideias, incluindo um site social onde famílias
pudessem ler histórias infantis curtas e inéditas sem ter de pagar por elas.
Minha noiva estava feliz. Então era somente isso que importava para mim.
— Opa! Vamos recebê-los no heliponto. É a primeira vez deles aqui.
Gostaria de que tudo saísse perfeito.
Ela se levantou, o vestido fez um movimento de subir e descer das pernas,
prendendo a atenção dos meus olhos.
Encontrei-a no meio da sala.
— Acho que temos um tempo de alguns minutos para brincarmos um
pouco.
Recebi um tapinha no ombro.
— Você é insaciável, amor.
Prendi minha noiva em meus braços.
— Sempre.
— Mas segura sua onda. Vamos logo, antes que eles cheguem.
Soltei um gemido, frustrado, enquanto a via se afastar.
— Será que vamos conseguir unir Calebe e Heloísa dessa vez? Caramba, os
dois estão muito devagar nesse processo de paquera.
— Quase parando — concordei com ela.
— Vai ser bom para ela conhecer o Miguelzinho pessoalmente.
— Está sendo um passo de cada vez, como disse Calebe.
— Bem de tartaruga, né, amor?
— Diferente de nós dois.
Passei o braço nos ombros dela e atravessamos a porta particular para o
heliponto. Em questão de minutos a família Alencar pousou no meu hotel.
Sorri para as hélices desfazendo o movimento e beijei o topo da cabeça de uma
Antonella eufórica.
Meu coração vibrava felicidade na mesma medida.
Com eles, encontrei o meu lar.

FIM.
AGRA ECIME TO
D N S

Quando fui convidada pela AllBook para publicar uma nova história, eu surtei
de felicidade, mas igualmente de receio. Que responsabilidade escrever um
enredo cujo personagem principal seria um espanhol e com o Fabián Castro
sendo capa!
“E agora? Que história criar?” foi o que pensei após o momento de euforia.
O que eu tinha certeza era que seria uma comédia romântica. Então eu a
escrevi como se as cenas de um filme se desenrolassem diante de mim.
Confesso que mal coloquei o ponto final, fiquei com saudades dos
momentos em que me diverti enquanto idealizava as cenas hilárias, assim como
eu me emocionei na mesma intensidade com o amor em construção do casal
Sebastián e Antonella.
A principal fonte de inspiração para criar o enredo foi uma viagem que eu e
a minha família fizemos certa vez para Jericoacara, no litoral do Ceará.
Obrigada a todos vocês, leitores, que se aventuraram junto comigo no meu
novo romance.
E à editora AllBook por me lançar esse desafio muito prazeroso.
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