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(Colli, Giorgio. La sapienza greca III Heráclito 14 [A 63] p.71, Clem. Alexandrino,
Miscelâneas 2, 17, 4 - Adelphi Edizioni, 4ª ed; – trad. nossa; Milão, Itália: 2010)
Escutando abismos
Aqui sentada fiquei por muito tempo, pensando, num esforço para
entender o que Nietzsche queria dizer com aqueles estranhos sonhos e
discursos, no Assim falou Zarathustra. Lendo e relendo, tentei decifrar as
relações que haveria entre eles, na esperança de chegar a interpretações que
fizessem algum sentido. Foi nessa infrutífera condição que senti que, algumas
vezes, para despertar é preciso entrar naquele estado que habitualmente
experimentamos nos sonhos, no qual as categorias típicas do pensamento
racional não funcionam. Desmembrados do nosso ego, lá estamos, nos
sonhos, ao mesmo tempo como atores e como expectadores de improváveis
ações e de extravagantes combinações de imagens, falas e emoções. Percebi,
nesse sedentário exercício de pensar, que para enxergar melhor todas as
coisas à volta, é preciso mover-se, subir e descer montanhas, como fazia o
próprio Zarathustra. Se possível, avançar na direção daqueles “todos e
ninguém” aos quais se destina esse livro - tão sagrado quanto profano - com o
qual, à maneira do discurso sobre a “Virtude que doa”, Nietzsche nos
presenteou:
“Digam-me: como alcançou o ouro o valor mais elevado? Por não ser comum,
nem útil, e porque reluz de suave esplendor; sempre se doa a si mesmo.
Apenas como reflexo da virtude mais nobre, o ouro alcançou o mais nobre
valor. Semelhante ao ouro, reluz o olhar daquele que doa. O esplendor do ouro sela a
paz entre o sol e a lua.
Incomum é a virtude mais nobre e não útil, ela reluz de suave esplendor: uma
virtude que doa é a virtude mais nobre.”
(Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzasche, Friedrich, [Livro I, 1, p.88-89]; trad.
nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
(Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche, Friedrich [Livro III, 1-2, p.263-264]; trad.
nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
O mito que deu origem ao culto eleusino a que se refere Giorgio Colli, é
o da deusa grega da agricultura e das colheitas, responsável pelas estações do
ano e pela fertilidade da terra - Deméter – que com Zeus teve uma filha –
Perséfone -, cuja beleza encantou muitos deuses, que queriam desposá-la.
Mas Deméter nunca cedeu a filha em casamento até que, impaciente, o deus
Hades a raptou e fez dela sua rainha no mundo subterrâneo. Deusa das ervas,
dos frutos e das flores, Perséfone mergulhou então nas sombras, tornando-se
também a deusa do mundo inferior. Inconsolável, Deméter saiu vagando à
procura da filha e, para vingar-se dos deuses que a traíram, descuidou da
fertilidade da terra, que se tornou estéril. Disfarçada de anciã e mortal, ao
chegar a Elêusis foi acolhida pela família real, como nutriz do príncipe herdeiro.
Enquanto isso, no mundo dos mortos, Perséfone parou de comer e foi
definhando até que o sagaz deus Hermes conseguiu resgatá-la do mundo
inferior para a superfície, devolvendo-a à mãe. O reencontro fez florescer outra
vez os campos, reavivou as colheitas e encerrou o ciclo de fome. Para evitar
conflitos, Zeus estabeleceu um acordo com Hades: Perséfone passaria metade
do ano na superfície, com sua mãe, e a outra metade no mundo subterrâneo,
com seu marido. Ao se dar conta disso, Deméter decretou que, nos seis meses
em que a filha estivesse no mundo inferior, o frio tomaria conta da terra, que
hibernaria sem mais florescer. Surgiram então o outono e o inverno. Só quando
Perséfone voltasse dos subterrâneos sombrios para o mundo da luz, a terra
voltaria à fertilidade e à fartura. E nasceram daí a primavera e o verão.
A esse ponto, faço uma pausa contemplativa para uma digressão: o que
poderia compor a paisagem para além dessa montanha do mito?... Muitas
coisas pode sugerir o drama que inaugura os Mistérios em Elêusis, mas uma
delas prefigura-se especialmente oportuna e paralela ao percurso onírico que
estamos trilhando. Vejamos. A deusa Perséfone, cuja belíssima aparência
resplandece na superfície do mundo dos vivos, acordados e conscientes, é a
mesma que depois mergulha nas profundezas do hades, o mundo dos mortos,
das coisas soterradas e esquecidas - um mundo subterrâneo e inconsciente.
Esse movimento é recorrente e infinito; é ele que garante o retorno à fertilidade,
à colheita e à saciedade. A vida e o novo só podem desabrochar se esse
mergulho da deusa acontecer periodicamente, fazendo secar e morrer aquilo
que já envelheceu na superfície. A obscuridade do mundo subterrâneo é
descanso necessário após o excesso de claridade do mundo da aparência.
Morte e vida alternam-se num movimento que, porque sempre se repete,
eternamente cria. Assim como a paisagem que se contempla além da
montanha é contínuo movimento, eterno devir. E o próprio Zarathustra se
move, alternando-se entre dois estados, entre dois mundos. Entre o claro e o
escuro, o silêncio e o discurso; entre o recolhimento solitário em sua caverna e
o júbilo da doação em meio aos homens; entre o sono profundo, “como um
morto”, e o alegre despertar em companhia do sol e dos animais.
Por outro lado, o mistério proposto no mito - que também faz lembrar
aquele “pensamento abismal” de Zarathustra que anuncia a “doutrina do eterno
retorno” - requer dos homens uma percepção “incomum” para ser vislumbrado.
Isso nos leva (ou mais uma vez nos desvia) em direção a outra metáfora. A
iniciação depende de uma elevação da consciência do iniciante que, enquanto
estiver na escuridão do mundo dos mortos, precisa se preparar e adquirir a
visão das coisas ocultas para, finalmente apto à revelação daquilo que é
indizível, erguer-se, iluminado, ao mundo dos vivos e ao brilho das aparências.
Uma experiência extática que nos ritos eleusinos é preparada pela longa e
exaustiva peregrinação até Elêusis, pelos cantos e danças, pelas
dramatizações do mito fundador, pelo transe coletivo e, talvez, também pelo
kykeón, que ajudaria a desobstruir a percepção do iniciante, predispondo-o à
manifestação dos mistérios da divindade. Analogamente, os discursos e os
sonhos do Zarathustra, assim como Nietzsche os narrou, podem ajudar a
liberar o leitor das amarras que o aprisionam num sistema de pensamento
edificado por uma racionalidade lógica, dedutiva, abrindo enfim a sua
(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
“O corpo é a grande razão, uma pluralidade com um único sentido, uma guerra
e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento do teu corpo é também a tua pequena razão, irmão, aquela que
você chama “espírito”, um pequeno instrumento e um brinquedo da tua grande razão.”
(Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche, Friedrich [Livro I Os discursos de
Zarathustra, p.34]; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
(Colli, Giorgio. La sapienza greca III Heráclito 14[A 20] p.35; in Hipólito, Confutação 9,9; in Plutarco, Sobre a
geração da alma no Timeu 27; trad. nossa; Adelphi Edizioni, 4ª ed; Milão, Italia: 2010)
“Segundo Aristóteles julgava, os que se iniciam nos mistérios não têm que
aprender algo (mathein ti) mas, antes, têm que ser afetados (pathein) e têm que estar
numa certa disposição (diatethênai), nomeadamente após se tornarem capazes.”
(Obras completas de Aristóteles / in Fragmentos das obras perdidas, Fragmentos dos diálogos e obras
exortativas, I. Diálogos Fr.1-110 / Díon Crisóstomo, Orationes XII [33] pág 62)
“Caso se queira tentar uma prova disso tudo por via indireta, pode-se examinar
o conteúdo racional do Assim falou Zarathustra. Despojando-o de cada imagem e de
cada magia, reencontraremos precisamente as mesmas teses, os mesmos juízos que
encontramos em outras obras de Nietzsche: avaliações sobre o presente e sobre o
passado, sobre a religião e sobre a moral, até mesmo uma idêntica doutrina sobre os
afetos e sobre as paixões. Apenas a teoria do além-do-homem não a encontraremos
nos outros escritos de Nietzsche, e é natural, já que o além-do-homem não é uma
doutrina, mas um mito. Quando se pretende expressar em termos racionais o além-do-
homem, espreme-se pouco entre os dedos, algo de inconsistente, aliás, algo que soa
ridículo. Ao nos defrontarmos com um mito de Platão, nós modernos o interpretamos
como uma exemplificação, uma transposição alegórica, uma supérflua, redundante
invasão em uma esfera pseudo-filosófica. Mas, muito diferente disso, o mito é a
comunicação direta do pensador, diante da qual todo o resto se torna uma tortuosa
divagação. Os Gregos nos apresentam muitas fábulas sérias, narram a história dos
deuses e do mundo: Hesíodo e Parmênides, Píndaro e Platão, Ésquilo e Heráclito nos
contam como realmente são as coisas ao nosso redor, quando vistas por um olhar
mais penetrante. As imagens das suas fantasias nos mostram as filigranas da
realidade. E, ainda mais que Platão, a figura do além-do-homem faz lembrar os mitos
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
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órficos, nos quais se alude a um conteúdo abstrato muito intrincado, cuja comunicação
é, porém, filtrada por um denso e palpável episódio mítico, somente através do qual se
é guiado em direção ao emaranhado racional. Quanto ao mais do conteúdo doutrinal,
nu e cru, de Assim falou Zarathustra, os juízos sobre a cultura, sobre o Estado, sobre a
moral, são os mesmos que se encontram nas outras obras de Nietzsche, e da mesma
forma no que tange os juízos sobre a ciência, a arte, a razão (“em cada coisa apenas
isto é impossível: racionalidade!”). Mas nos outros escritos de Nietzsche qual é o
resultado final ao qual conduz essa análise cética, essa cisão da fé e das convicções?
A essência corrosiva, destrutiva da razão acaba por levar a melhor sobre a aspiração
afirmativa de Nietzsche. O teorizar generalizado sobre a decadência, o diagnóstico e a
condenação do niilismo moderno contagiam o próprio autor: no final das contas,
apercebe-se ele próprio de ser um niilista e um decadente. Tal é a cativante fatalidade
que a forma expressiva impõe à vontade do pensador.”
(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
Espírito grego por excelência, Nietzsche volta seu olhar penetrante para
os mais de dois mil anos construíram a tradição e sabe como ninguém quanto
a racionalidade socrática condicionou o pensamento Ocidental. Portanto, para
falar ao seu tempo e ao porvir, bem sabia que sua mensagem precisaria estar
cifrada, travestida numa linguagem desviante daquela legada pela filosofia. Por
isso, assim como se fazia com os atores das tragédias clássicas na
antiguidade, o filósofo colocou em seu Zarathustra uma máscara oriental,
persa, garantindo o distanciamento necessário à não classificação especulativa
dessa obra. E essa é uma das grandezas filosóficas e artísticas desse livro -
tanto o autor quanto o protagonista flutuam numa zona indistinta, onírica, que
não se deixa aprisionar:
mais fecunda – não é outra coisa que um reflexo daquele conhecimento sobre os
homens. O valor mais elevado da vida no conhecimento, e a reabsorção de cada ação
no conhecimento: disto, apenas os Gregos foram modelo.”
(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
(Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche, Friedrich [Livro II, O adivinho, p.164] -
trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)
como trovões, e ele tentou abri-la, sem sucesso. Foi quando uma estrondosa
ventania, assobiando, escancarou os batentes e jogou-lhe um negro caixão,
que se rompeu “vomitando risadas em mil formas”. Entre “caretas infantis,
anjos, corujas, palhaços e borboletas gigantes, algo riu e zombou e sibilou”.
Zarathustra, então, gritou horrorizado, acordando com seu próprio grito.
Contou o sonho aos discípulos que velavam a seu redor e, não sabendo
ainda como interpretá-lo, silenciou. O discípulo predileto, porém, precipitou-se
numa interpretação. Ao final dela, Zarathustra, ainda com um olhar distante,
“como alguém que volta para casa, após ter ficado por muito tempo em terra
estrangeira, olhava seus discípulos e examinava com atenção seus rostos; e
ainda não os reconhecia”. Mas quando o colocaram em pé, “seu olho
repentinamente se transformou”. Compreendeu tudo que acontecera e,
acariciando a barba, disse que tudo mais poderia esperar e que deveriam fazer
logo uma boa refeição! Com duas falas irônicas sobre “comer para se
penitenciar pelos sonhos ruins” e sobre “mostrar ao adivinho um mar no qual
ele pudesse se afogar”, Zarathustra encerra o episódio balançando a cabeça
enquanto observa longamente o discípulo que pouco antes arriscara interpretar
seu sonho.
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Referências bibliográficas:
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Così parlò Zarathustra, un libro per tutti e per
nessuno; trad. Mazzino Montinari; 14ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 1989.
__________, Friedrich W. / Umano troppo umano, vol. I-II; ed. italiana por Giorgio Colli
e Mazzino Montinari; trad. Sossio Giametta; 11ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 2013.
__________, Friedrich W. Frammenti Postumi, vol. I-IV; ed. italiana: Giorgio Colli e
Mazzino Montinari; trad. G.Colli e Chiara Colli Staude; Milano, Italia: Adelphi, 1989.
COLLI, Giorgio. Nota Introduttiva di Giorgio Colli, in Così parlò Zarathustra; 14ª ed.,
Milano, Italia: Adelphi, 1989.
______, Giorgio. La sapienza greca I - Dioniso, Apollo, Eleusi, Orfeo, Museo, Iperborei,
Enigma – 4ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 1990.
______, Giorgio. La sapienza greca III - Eraclito - 4ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 2010.
ESCHILO. Le tragedie; trad. Carlo Carena; 1ª ed.; Torino, Italia: Einaudi, 1980.
HOMERO. Odisseia; trad. Trajano Vieira; 1ª ed., São Paulo: Editora 34, 2013.
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; trad., coord. Alfredo Bosi; trad. novos
textos, Ivone Castilho Benedetti, 5ªed. rev. e ampl.; S.Paulo, SP: Martins Fontes, 2007.