Você está na página 1de 17

1

Dos paradoxos no Zarathustra:


sonhos que despertam

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


Faculdade de Comunicação e Filosofia
Pós-Graduação em Filosofia / Doutorado
RA 00065177 - Chiara Ancona Lopez

São Paulo, Junho 2018

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez
2

“Aquele que não espera o inesperado não o descobrirá,


porque é inacessível à busca, e a ele não conduz nenhum caminho.”

(Colli, Giorgio. La sapienza greca III Heráclito 14 [A 63] p.71, Clem. Alexandrino,
Miscelâneas 2, 17, 4 - Adelphi Edizioni, 4ª ed; – trad. nossa; Milão, Itália: 2010)

Dos paradoxos no Zarathustra:


sonhos que despertam

Escutando abismos

Aqui sentada fiquei por muito tempo, pensando, num esforço para
entender o que Nietzsche queria dizer com aqueles estranhos sonhos e
discursos, no Assim falou Zarathustra. Lendo e relendo, tentei decifrar as
relações que haveria entre eles, na esperança de chegar a interpretações que
fizessem algum sentido. Foi nessa infrutífera condição que senti que, algumas
vezes, para despertar é preciso entrar naquele estado que habitualmente
experimentamos nos sonhos, no qual as categorias típicas do pensamento
racional não funcionam. Desmembrados do nosso ego, lá estamos, nos
sonhos, ao mesmo tempo como atores e como expectadores de improváveis
ações e de extravagantes combinações de imagens, falas e emoções. Percebi,
nesse sedentário exercício de pensar, que para enxergar melhor todas as
coisas à volta, é preciso mover-se, subir e descer montanhas, como fazia o
próprio Zarathustra. Se possível, avançar na direção daqueles “todos e
ninguém” aos quais se destina esse livro - tão sagrado quanto profano - com o
qual, à maneira do discurso sobre a “Virtude que doa”, Nietzsche nos
presenteou:

“Digam-me: como alcançou o ouro o valor mais elevado? Por não ser comum,
nem útil, e porque reluz de suave esplendor; sempre se doa a si mesmo.
Apenas como reflexo da virtude mais nobre, o ouro alcançou o mais nobre
valor. Semelhante ao ouro, reluz o olhar daquele que doa. O esplendor do ouro sela a
paz entre o sol e a lua.
Incomum é a virtude mais nobre e não útil, ela reluz de suave esplendor: uma
virtude que doa é a virtude mais nobre.”

(Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzasche, Friedrich, [Livro I, 1, p.88-89]; trad.
nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez
3

Mover-se, então, mas não por trilhas já percorridas. Há que explorar


territórios desconhecidos, seguindo o faro ou os apelos da intuição. Ter a
coragem de entrar em labirintos, perceber ali esquecimentos e instintos
adormecidos pelos cantos, confundir ideias e sensações. Ir até a borda dos
abismos e olhar dentro deles, escutá-los. Espreitar os sentidos e experimentar
o que aprisionam as palavras. Vagar na densidade dos sonhos à mercê do
imprevisível, mas sem perder a lucidez – ao contrário, aguçando-a. Sobretudo,
esquecer o tempo e entrar num não-tempo no qual a racionalidade socrática
tão sedimentada despoja-se dos condicionamentos de causalidade, identidade
e não contradição, não podendo mais operar logicamente e restando-lhe,
apenas, a possibilidade da experiência de contemplação.

Foi assim, aos poucos e embalada por essa consciência da


profundidade inconsciente que inspira o profeta no texto do filósofo, que eu me
perdi em divagações. Deixei-me ir e, na tentativa de me aproximar do enigma
desse livro, desviei da filosofia e me abri ao que havia antes dela: a experiência
sapiencial grega, a natureza mística do pensamento, os míticos deuses e seus
mistérios – enfim, tudo aquilo que escapa à lógica. Nada de errado nesse
desvio se lembrarmos que um dia, para se tornar aquilo que é, a filosofia
também precisou desviar e destacar-se da sabedoria para, a partir dessa
traição inaugural, construir uma racionalidade própria, um sistema de
pensamento coerente e seguro. Modelo de racionalidade que, daí em diante,
orientou nossa forma sensata de explicar o mundo. Assim, movendo-me entre
abismos e montanhas, parei de querer enquadrar nos mecanismos dessa
racionalidade estável aquilo que esse livro oferece. E, à maneira do próprio
Zarathustra no episódio de “O convalescente”, também mergulhei num “sono
profundo” - e nele fiquei longamente, “como um morto”:

“Eu Zarathustra, o advogado da vida, o advogado da dor, o advogado do


círculo – eu chamo a ti, o mais abismal dos meus pensamentos!
Salve! Você vem – eu te ouço! Meu abismo fala, minha profundidade extrema
eu a reverti em luz!
Salve! Vem! Aqui está minha mão – - ah! larga! ah! ah! – - Nojo, nojo, nojo – -
ai de mim!
Tão logo pronunciou essas palavras, Zarathustra desabou no chão como um
morto e assim permaneceu longamente, como um morto.”

(Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche, Friedrich [Livro III, 1-2, p.263-264]; trad.
nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

Em estado semelhante, “como um morto” me abandonei e perambulei


por um hades imaginário, entre sombras e luminescências como aquelas do
ouro, que “sempre se doa a si mesmo”, à mercê do errático desenho de um
sonho. Mas, ao acordar, logo voltei a outro sono, o da razão. O sonhado,
então, como costuma acontecer, esvaiu-se na “minha profundidade extrema” e
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
4

do sonho trago comigo muito pouco. Apenas um resto de imagens e


impressões. Quem sabe, porém, esse resíduo seja o bastante para que eu me
arrisque a traçar algumas metáforas sobre as insólitas relações que
experimentei. Vejamos.

O κυκεών (kykeón) como metáfora do Zarathustra

O kykeón (κυκεών, derivado de κυκάω, que significa agitar, mesclar)


consistia numa mistura de ingredientes para preparo de uma bebida consumida
no mundo grego. Feito à base de cevada triturada, à qual acrescentavam-se
água e ervas aromáticas, é mencionado em vários relatos. Na Ilíada, incluem à
mistura queijo de cabra ralado. Na Odisseia, Circe adiciona aos componentes
básicos uma poção de mel e de ervas mágicas. No hino homérico dedicado a
Deméter, a deusa recusa vinho tinto e pede que lhe sirvam um kykeón feito de
cevada triturada, água e hortelã. Nos Mistérios Eleusinos, que perduraram na
Grécia por dois milênios, o kykeón era a bebida sagrada servida nos ritos de
iniciação. Na literatura que estuda esses ritos, a bebida foi muitas vezes
considerada narcótica, supondo-se que o ópio fosse uma das ervas da mistura.
A esse propósito é curioso notar que, na arte grega, a representação da deusa
Deméter, que inaugurou a celebração dos Mistérios, é com frequência
associada à papoula, planta da qual se extrai o ópio. Outros pesquisadores
presumem o kykeón como bebida alcoólica. Nesse sentido, talvez seja lícito
supor que, com a fermentação da cevada – principal ingrediente da fusão –, a
bebida adquirisse certo teor alcoólico, o bastante para provocar alguma
alteração na percepção daqueles que a consumiam.

O núcleo mais importante desses ritos era mantido em absoluto segredo


entre os iniciados e o objetivo do culto era o de conduzir o participante a uma
visão mística codificada por simbolismos e mitologias. Na tentativa de explicar
o inexplicável (a visão mística), alguns pesquisadores acham que esse estado
era induzido principalmente por substâncias presentes na bebida sacramental,
justamente o kykeón. Num livro de 1978, The Road to Eleusis: Unveiling the
Secret of the Mysteries, um botânico, um químico e um historiador - os
pesquisadores R.Gordon Wasson, Albert Hofmann e Carl A.P. Ruck -, propõem
um fungo parasita (o ergot, que produz derivados do ácido lisérgico), frequente
em plantas selvagens ou cultivadas, como chave psicofarmacológica do
kykeón. Segundo o estudo, os Gregos já conheceriam técnicas para extrair
uma poção alucinógena e não tóxica desse fungo. A hipótese é que a cevada
usada na mistura eleusina fosse justamente a que estava contaminada pelo
ergot. Os autores consideram provável que os iniciados nos ritos fossem
mantidos alheios a esse “Segredo dos Segredos” e que esse conhecimento
fosse transmitido apenas aos sacerdotes (hierofantes), cuja rígida seleção –
escolhidos somente entre os membros de duas famílias de elite - teria
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
5

contribuído para manter o sigilo. Defendem a ideia de que na antiguidade, em


especial no contexto da religião experiencial, o uso de substâncias capazes de
alterar a percepção era importante para a reconciliação entre os mundos
humano e natural. Esses estudos científicos são relevantes e necessários, até
porque relacionam conhecimentos de áreas distintas, confrontando resultados
e lançando hipóteses interessantes, mas, à distância de quase três milênios e
diante de um segredo cuidadosamente protegido desde a sua origem, não se
pode chegar a certeza alguma. Dito assim, esse limite soa bastante incômodo
a nossos ouvidos e a nossas mentes condicionadas a pensar sempre em
termos causais e a explicar cientificamente os fenômenos. Mas, gostando ou
não, com essa incógnita teremos que conviver.

Sintomática é essa dificuldade em ouvir coisas que não gostaríamos,


principalmente se considerarmos que a disposição daquele que escuta ou lê
um fragmento sapiencial ou um pensamento filosófico, é determinante da
maneira com que se absorve o discurso. No caso do Zarathustra, ela é mais
que isso: é uma aptidão essencial, pois, se o leitor não se abrir a esse livro de
um modo não usual, “não comum” e “não útil”, como quem está diante do raro
“ouro de valor mais elevado”, jamais alcançará aquele patamar de consciência
- mais elevado também - que lhe permitiria compreender o alcance do valioso
presente que nos fez Nietzsche. Na Nota Introduttiva ao Zarathustra, o filósofo
italiano Giorgio Colli, responsável pela primeira edição crítica das Obras
Completas de Friedrich Nietzsche na Alemanha, Itália, França e Japão, fala
desse indispensável ânimo propenso à entrega e à escuta incomum, para os
que se aventuram a ler o Zarathustra. Com uma curiosa analogia entre o papel
que se supõe teria o kykeón nos ritos iniciáticos da antiguidade e o efeito
provocado pela narrativa do Zarathustra em seu leitor, Colli prepara-nos para
atravessar a ponte que se eleva à nossa frente. Vale a pena percorrermos essa
belíssima Nota que, mais que ao texto, introduz ao phátos (πατός) do mais
enigmático livro de Nietzsche:

“Eu bebi o kykéon” dizia o iniciado aos mistérios de Elêusis, declarando-se


assim digno da visão suprema. Mistura de cevada triturada, água e hortelã, o kykeón é
a bebida que revigora Deméter em sua busca pela filha raptada, e no ritual eleusino
alude, portanto, a uma sintonia com a deusa, à assimilação de uma multiplicidade
fragmentada na unidade divina. Mas também é chamado kykeón o filtro com o qual
Circe tenta enfeitiçar Ulisses, para fazer com que ele se perca: só que aqui, aos seus
ingredientes foram adicionados vinho, mel e especiarias mágicas. Para nós modernos,
acostumados a bebidas muito precisamente formuladas e, no fim das contas, não muito
perturbadoras, ao menos no que diz respeito à alma, o Assim falou Zarathustra
apresenta-se verdadeiramente como um kikeón, e quem decide se será o de Deméter
ou o de Circe, é a natureza íntima daquele que bebe. A analogia pode ser aprofundada,
pois o livro de Nietzsche é realmente um aglomerado de minúsculas partículas,
afogadas no mel do mito de Zarathustra. Durante anos Nietzsche elaborou, descarnou
as suas sentenças, os seus aforismas lampejantes que nasciam como preparação de
uma obra suprema; pacientemente recolheu a sua cevada triturada, reagrupando-a
sucessivamente numa e noutra ordem, variando-a, juntando a ela o novo e
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
6

descartando o velho, até que, nos brevíssimos e intermitentes períodos de “inspiração”,


ele conseguiu fundir toda aquela multiplicidade de semelhanças e de sentenças na
magia de uma história fabulosa e contínua. Esse nascimento da obra deveria causar
medo: diante dela é melhor a cautela ou o abandono? A segunda resposta, além de
refletir a sugestão eleusina, parece ser a aconselhada pela - ainda que enigmática -
palavra de Heráclito: “o kikeón se desagrega, se não for agitado.”

(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

Uma iniciação ao πατός (phátos), no Zarathustra

O mito que deu origem ao culto eleusino a que se refere Giorgio Colli, é
o da deusa grega da agricultura e das colheitas, responsável pelas estações do
ano e pela fertilidade da terra - Deméter – que com Zeus teve uma filha –
Perséfone -, cuja beleza encantou muitos deuses, que queriam desposá-la.
Mas Deméter nunca cedeu a filha em casamento até que, impaciente, o deus
Hades a raptou e fez dela sua rainha no mundo subterrâneo. Deusa das ervas,
dos frutos e das flores, Perséfone mergulhou então nas sombras, tornando-se
também a deusa do mundo inferior. Inconsolável, Deméter saiu vagando à
procura da filha e, para vingar-se dos deuses que a traíram, descuidou da
fertilidade da terra, que se tornou estéril. Disfarçada de anciã e mortal, ao
chegar a Elêusis foi acolhida pela família real, como nutriz do príncipe herdeiro.
Enquanto isso, no mundo dos mortos, Perséfone parou de comer e foi
definhando até que o sagaz deus Hermes conseguiu resgatá-la do mundo
inferior para a superfície, devolvendo-a à mãe. O reencontro fez florescer outra
vez os campos, reavivou as colheitas e encerrou o ciclo de fome. Para evitar
conflitos, Zeus estabeleceu um acordo com Hades: Perséfone passaria metade
do ano na superfície, com sua mãe, e a outra metade no mundo subterrâneo,
com seu marido. Ao se dar conta disso, Deméter decretou que, nos seis meses
em que a filha estivesse no mundo inferior, o frio tomaria conta da terra, que
hibernaria sem mais florescer. Surgiram então o outono e o inverno. Só quando
Perséfone voltasse dos subterrâneos sombrios para o mundo da luz, a terra
voltaria à fertilidade e à fartura. E nasceram daí a primavera e o verão.

Não por acaso, essa mesma sazonalidade se dava na celebração dos


Mistérios Eleusinos. Os ritos a eles dedicados eram realizados em dois
momentos distintos do ano. Como qualquer outra pessoa que quisesse integrar
a celebração, o aprendiz à iniciação primeiro deveria participar dos Pequenos
Mistérios, durante o Antesteriòn (Ἀνθεστηριών), oitavo mês no calendário da
antiga Grécia, entre fevereiro e março, no qual celebravam-se as festas em
honra a Dioniso, ligadas ao prazer do vinho e à passagem do final do inverno
ao começo da primavera. Com isso, o principiante ascendia um grau na sua
iniciação. Seis meses depois, entre setembro e outubro, mês de Boedromiòn
(Βοηδρομιών) e da passagem para o outono, que começava, justamente, com
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
7

os dias destinados a honrar os mortos, o iniciante poderia participar, enfim, dos


Grandes Mistérios, cujos rituais aconteciam em Elêusis - cidade à qual os
milhares de participantes chegavam após peregrinação de cerca 30 km desde
Atenas. Era no decorrer desse extenso culto dedicado aos Grandes Mistérios
que os iniciantes, segundo alguns relatos, consumiam o kykeón.

A esse ponto, faço uma pausa contemplativa para uma digressão: o que
poderia compor a paisagem para além dessa montanha do mito?... Muitas
coisas pode sugerir o drama que inaugura os Mistérios em Elêusis, mas uma
delas prefigura-se especialmente oportuna e paralela ao percurso onírico que
estamos trilhando. Vejamos. A deusa Perséfone, cuja belíssima aparência
resplandece na superfície do mundo dos vivos, acordados e conscientes, é a
mesma que depois mergulha nas profundezas do hades, o mundo dos mortos,
das coisas soterradas e esquecidas - um mundo subterrâneo e inconsciente.
Esse movimento é recorrente e infinito; é ele que garante o retorno à fertilidade,
à colheita e à saciedade. A vida e o novo só podem desabrochar se esse
mergulho da deusa acontecer periodicamente, fazendo secar e morrer aquilo
que já envelheceu na superfície. A obscuridade do mundo subterrâneo é
descanso necessário após o excesso de claridade do mundo da aparência.
Morte e vida alternam-se num movimento que, porque sempre se repete,
eternamente cria. Assim como a paisagem que se contempla além da
montanha é contínuo movimento, eterno devir. E o próprio Zarathustra se
move, alternando-se entre dois estados, entre dois mundos. Entre o claro e o
escuro, o silêncio e o discurso; entre o recolhimento solitário em sua caverna e
o júbilo da doação em meio aos homens; entre o sono profundo, “como um
morto”, e o alegre despertar em companhia do sol e dos animais.

Por outro lado, o mistério proposto no mito - que também faz lembrar
aquele “pensamento abismal” de Zarathustra que anuncia a “doutrina do eterno
retorno” - requer dos homens uma percepção “incomum” para ser vislumbrado.
Isso nos leva (ou mais uma vez nos desvia) em direção a outra metáfora. A
iniciação depende de uma elevação da consciência do iniciante que, enquanto
estiver na escuridão do mundo dos mortos, precisa se preparar e adquirir a
visão das coisas ocultas para, finalmente apto à revelação daquilo que é
indizível, erguer-se, iluminado, ao mundo dos vivos e ao brilho das aparências.
Uma experiência extática que nos ritos eleusinos é preparada pela longa e
exaustiva peregrinação até Elêusis, pelos cantos e danças, pelas
dramatizações do mito fundador, pelo transe coletivo e, talvez, também pelo
kykeón, que ajudaria a desobstruir a percepção do iniciante, predispondo-o à
manifestação dos mistérios da divindade. Analogamente, os discursos e os
sonhos do Zarathustra, assim como Nietzsche os narrou, podem ajudar a
liberar o leitor das amarras que o aprisionam num sistema de pensamento
edificado por uma racionalidade lógica, dedutiva, abrindo enfim a sua

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez
8

percepção ao oculto no próprio homem e ao mistério do “além-do-homem”, da


morte e da vida, da natureza e do cosmos.

Colli, que estudou profundamente a sabedoria grega tanto quanto o


pensamento de Nietzsche, consegue detectar a trama sutil que o filósofo teceu
para dar à sua narrativa esse caráter iniciático que faz do Zarathustra,
efetivamente, “um livro para todos e para ninguém”:

“Enfrentar o problema de Assim falou Zarathustra com uma especulação


diagnóstica não é, no entanto, impertinente. Que este livro age como uma droga, é um
dado de fato, mais ou menos generalizado, que os seus adversários pretenderiam
contestar, mentindo a si mesmos. Mas a cevada triturada que forma o tecido molecular
da obra não é outra coisa que um misturar-se de conhecimentos intuitivos em estado
nascente, e o mel da narração no qual esse material é agitado só faz aumentar a
potência imediata de comunicação. Por outro lado, se não agitamos o kikeón, o que
acontece? Com a sua desagregação, não apenas desaparece o poder de exaltar, mas
precipita-se esterilmente o seu conteúdo racional, num sedimento inerte no qual é
obliterado o prodígio da comunicação. Tentou-se com frequência e com grande
seriedade manter o Assim falou Zarathustra sob a lente de uma sombria consideração
científica, mas esse procedimento é, aqui, absurdo, improdutivo - é exatamente aquilo
que não se deve fazer. Tomemos o exemplo mais evidente. Ao se tratar este livro como
elaboração de uma teoria do além-do-homem, tentando talvez esboçar
sistematicamente essa doutrina, entendida como edificação racional, através de nexos
com outras teses de Nietzsche, decerto se poderá conseguir, neste caso, inventar um
alvo fácil para uma demolição baseada no bom senso, mas, com a mesma certeza,
seguramente se estará promovendo aí um afastamento de milhares de milhas em
relação a este livro. Não é que Nietzsche tenha pretendido dizer-nos que, assim como
o macaco se tornou homem, também o homem se tornará o além-do-homem. Apontar
a artificialidade dessa passagem não é uma observação irônica nem profunda.
Nietzsche não se pode manejar assim tão grosseiramente.”

(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

A interpretação convencional, portanto, não funciona – ou funciona muito


mal - com o Assim falou Zarathustra. A análise meramente racionalista, que vai
em busca de um sistema conceitual coerente, limitará a potência
transfiguradora que Nietzsche imprimiu a esta obra. Como parece sugerir
Giorgio Colli, trata-se aqui de, através de um abandono isento e lúcido à
narrativa, liberar-se dos padrões tradicionais de interpretação para chegar a
uma experiência direta de contemplação daquilo que o filósofo quis dizer,
transmitir, mostrar. Não se trata, em absoluto, de provocar no leitor um
entorpecimento hipnótico, roubando-lhe a capacidade de pensar por si mesmo
para que, então, se deixe levar por psicodélicas alucinações. Principalmente,
não se trata de uma apologia à irracionalidade – é um equívoco ler Nietzsche
assim. Muito pelo contrário, algo bem mais sutil é o que move o texto: como
efeito dessa narrativa, o estado de consciência que se quer provocar no

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez
9

indivíduo é o de lucidez ampliada e especialmente receptiva, capaz de uma


compreensão mais abrangente do que aquela na qual o indivíduo opera
quando usa apenas a racionalidade científica. O próprio Zarathustra, no seu
discurso “Dos desprezadores do corpo”, parece indicar qual seria essa nobre e
“grande razão” à qual é preciso recorrer:

“O corpo é a grande razão, uma pluralidade com um único sentido, uma guerra
e uma paz, um rebanho e um pastor.
Instrumento do teu corpo é também a tua pequena razão, irmão, aquela que
você chama “espírito”, um pequeno instrumento e um brinquedo da tua grande razão.”

(Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche, Friedrich [Livro I Os discursos de
Zarathustra, p.34]; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

Volto a contemplar a paisagem que me circunda neste passeio singular.


Perco-me noutra digressão e percebo como as coisas ficaram distantes do
corpo. Não apenas a “verdade”, tão procurada, mas tudo ficou longe. Ao
desacreditar de seus limites e acreditar que podia ser um deus graças à sua
inteligência e racionalidade bem estruturada, o homem foi se afastando da
terra, da natureza, dos outros homens e de si próprio. Apostou que dominaria e
conheceria tudo só por seu intelecto e ignorou o resto, dos sentidos à
imaginação, das paixões ao instinto, do corpo ao espelho. Sim, aquele mesmo
espelho do deus Dioniso, que poderia proporcionar ao homem a contemplação
de si mesmo, o mergulho no seu hades, nos seus subterrâneos.

O excessivo enaltecer a razão entorpeceu o corpo e os sentidos,


colocando-os à margem, na filosofia, ignorando que só a pluralidade do corpo é
capaz de unificar sensibilidade e inteligência e proporcionar uma relação mais
intuitiva com o mundo, com a natureza, com o conhecimento, com a própria
filosofia. Uma relação outra vez direta, despida de mediação. Isso agora é algo
que ficou esquecido e distante no tempo. Trilhamos um caminho diferente, que
nos aproximou de algumas coisas e nos afastou de outras. Ganhamos e
perdemos. Mas, principalmente, nos perdemos. E este é o ponto problemático,
é por isso que o conhecimento que Zarathustra vem doar aos homens com seu
canto é tão importante. É também por isso que é tão difícil compreendê-lo.
Porém, aqueles que forem afetados serão transformados. E estes, quando
transformados, transformarão. Isso basta para que tudo volte, para que vida se
afirme por si mesma, para que a terra se renove com o mel que continua a
jorrar desse canto. Nietzsche já sabia, ao dar forma a esse livro, o quanto era
difícil passar a sua mensagem. Ele próprio estava contaminado pelos padrões
de pensamento da filosofia que tanto criticou. Mas Nietzsche tinha a seu favor
a lucidez de quem nunca jogou fora seu espelho de Dioniso – uma vantagem e
ao mesmo tempo uma condenação. Nele, o filósofo enxerga a sua própria
decadência e reconhece em si mesmo o niilismo. É essa consciência que o
leva para fora dos padrões da tradição, e para além de si mesmo. É isso que
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
10

lhe permite fazer cantar e dançar o Zarathustra, num discurso filosófico


impertinente e indispensável. Na sequência de sua introdução, Giorgio Colli
fala sobre o efeito produzido por essa escolha inusitada, em conteúdo e forma,
feita por Nietzsche:

“Deixemos de lado, portanto, os módulos positivistas: todavia também não é


suficiente constatar que essa bebida é mágica. Qual é o efeito positivo desse filtro? O
pathos que está nas raízes de Assim falou Zarathustra é aquele de um iluminado por
um conhecimento supremo, mas a expressão em que esse pathos se anuncia não se
destina a transmitir a centelha daquele conhecimento, mas apenas a comunicar o
reflexo de uma visão mais alta da vida, e portanto a agir sobre os homens com a
sedução daquela imagem. A grandeza de Zarathustra está no seu conhecer, mas do
seu conhecimento jorra uma fonte, o seu canto, que sacia os homens, e os recupera
para uma vida transfigurada, redescoberta como riqueza terrestre de alegria. Ainda
uma vez aparece aqui a comparação com o evento eleusino: todos os cidadãos, sem
distinção de classes, podem entrar no cortejo sagrado que de Atenas se move em
direção a Elêusis, mas poucos apenas serão os iniciados à visão em que culmina o
ritual mistérico. Da visão desses poucos, todos os cidadãos de Atenas extraem para si
a justificação mais elevada da vida. Esse parece querer ser o efeito do filtro, e pode-se
acreditar que assim já foi para muitos, mesmo que disso eles não tenham clareza. Sob
essa luz, Assim falou Zarathustra impõe-se como modelo inédito de uma vida
ascendente, na qual a alegria, mesmo através das angústias e dos pesadelos
horrendos da existência, prevalece sobre a dor, e a leveza prevalece sobre o peso; na
qual os sofrimentos, as sórdidas mesquinharias, as insuficiências são resgatadas por
uma esperança mais elevada, que nasce da revelação de que aquela alegria, aquela
dança, são uma realidade uma vez já vivida por um homem. A força catártica da
doutrina do eterno retorno está na segurança de que, com base nela, cada gesto
exaltado, cada sentimento vitorioso de Zarathustra está destinado a voltar eternamente,
e talvez já na existência daqueles que recebem o ensinamento.”

(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

Um efeito é o mínimo que pode esperar quem se aventura nessa obra.


Haverá qualidades e intensidades diferentes, o impacto nunca será o mesmo
para todos, como provavelmente também ocorria com os efeitos do kykéon.
Nos rituais eleusinos, cada iniciado reagia de acordo com a própria
sensibilidade, que poderia ir da resistência à temporária perda da dimensão
egóica até o imediato abandono à experiência de iniciação. Da mesma forma,
pode-se dizer que aqueles que são afetados pelo canto do Zarathustra
vislumbrarão uma possibilidade inaudita de alegria, de afirmação e de
transformação da existência, sem dela nada expurgar, nem mesmo o
sofrimento. Esses, para sempre perseguirão o efeito daquele filtro que é o
canto profético de Zarathustra e, a cada vez que o escutarem, dançarão à
maneira dos sufis orientais que, para estabelecer comunhão direta com o
divino, cantam e rodopiam sem parar, até alcançar o transe místico que os
aproxima do deus.

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez
11

O daímôn (δαίμων) grego de Zarathustra

Os pensadores gregos arcaicos certamente participaram das


celebrações aos Mistérios. Além disso, operavam numa sintonia tal que lhes
permitia unificar a multiplicidade do cosmos e da natureza em densos
aforismas, cantos e poemas que hoje, após mais de dois milênios de mediação
cultural imposta pela tradição filosófica, soam bastante enigmáticos, muitas
vezes incompreensíveis. Um fragmento de Heráclito pode ilustrar essa enorme
diferença existente entre a forma de enunciar usada pelos sábios arcaicos e
forma assumida depois pelos filósofos que os sucederam:

“A trama que se esconde é mais forte que aquela que se manifesta.”

(Colli, Giorgio. La sapienza greca III Heráclito 14[A 20] p.35; in Hipólito, Confutação 9,9; in Plutarco, Sobre a
geração da alma no Timeu 27; trad. nossa; Adelphi Edizioni, 4ª ed; Milão, Italia: 2010)

Apenas isso. E isso já diz muito - ou tudo. Nada de cuidadosas


argumentações que justifiquem o pensamento. Nada de premissas para
sustentar a tese. Nada de definições e conclusões. O sábio, quando “fala”, já
“viu” e sabe que não poderia transmitir a experiência com fundamentações e
exposições teóricas. Assim, o que ele faz é refletir naquilo que diz ou que
escreve os efeitos da sua experiência. Esse reflexo reverbera, como aquelas
ondulações que são provocadas pela pedra que cai verticalmente na água
parada. Quando atinge sensibilidades aptas a captá-lo, ele pode repercutir e
multiplicar o efeito naqueles que o recebem, transformando-os e de algum
modo “iniciando-os” à jornada que leva à sabedoria.

Ainda que operem de modo diferente, já pavimentando outro caminho


para o pensamento ocidental, os primeiros grandes filósofos gregos, como
Platão e Aristóteles, também conheceram “de dentro” as celebrações
eleusinas. Para Aristóteles, por exemplo, aqueles que passam pela iniciação
não devem esperar aprender algo mas experimentar emoções, evidentemente
após se tornarem aptos a isso:

“Segundo Aristóteles julgava, os que se iniciam nos mistérios não têm que
aprender algo (mathein ti) mas, antes, têm que ser afetados (pathein) e têm que estar
numa certa disposição (diatethênai), nomeadamente após se tornarem capazes.”

(Obras completas de Aristóteles / in Fragmentos das obras perdidas, Fragmentos dos diálogos e obras
exortativas, I. Diálogos Fr.1-110 / Díon Crisóstomo, Orationes XII [33] pág 62)

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez
12

Pesquisador, tradutor e professor de filosofia antiga por mais de trinta


anos na Universidade de Pisa, Giorgio Colli, além dos importantes estudos,
traduções e escritos sobre os órficos, sobre Elêusis e, principalmente sobre a
sabedoria grega e sobre Niestzsche, percebia as nuances e o diálogo
subterrâneo entre Nietzsche e os gregos. Afinal, da dedicação aos antigos,
Colli chegou a Nietzsche para, com ele, voltar outra vez aos antigos, renovado
por aquele olhar que, de pés bem fincados no presente do séc XIX, para falar
sobre ele penetrava na profundeza da sabedoria arcaica e de lá disparava suas
flechas, atirando “extemporâneas” perspectivas em direção a seu próprio
tempo e ao porvir. Ao nos darmos conta desses percursos pouco
convencionais, fica mais fácil imaginar por que Nietzsche foi tão mal
interpretado, tão usado, manipulado e demonizado até meados do séc XX.
Ciente da sua intempestividade desde a prematura cátedra em filologia clássica
na Universidade de Basileia, aos 24 anos, até seus últimos escritos, Nietzsche
perseguiu e elaborou cuidadosamente a forma com que transcreveria os
lampejos filosóficos que tinha, buscando neles preservar sempre o frescor da
intuição, o colorido dos sonhos. Voltou as costas para as formas da tradição e
foi severo com toda filosofia e com todos os filósofos, a começar por si mesmo.
Porém, inevitavelmente inserido no contexto histórico, não pode deixar de
reconhecer em si mesmo os sintomas da decadência que denunciava. De
modo que o seu Assim falou Zarathustra surge efetivamente como um “canto”
filosófico: poético, profético, enigmático, inclassificável. Sob a camada de
alusões e metáforas, toda a densidade do pensamento de Nietzsche permeia a
narrativa. Mas a verdade é que uma coisa não existe sem a outra, a forma é
conteúdo e o conteúdo está na própria forma escolhida pelo filósofo. Por isso,
uma leitura clássica, que pretenda extrair raciocínios formais desse livro, será
necessariamente empobrecedora:

“Caso se queira tentar uma prova disso tudo por via indireta, pode-se examinar
o conteúdo racional do Assim falou Zarathustra. Despojando-o de cada imagem e de
cada magia, reencontraremos precisamente as mesmas teses, os mesmos juízos que
encontramos em outras obras de Nietzsche: avaliações sobre o presente e sobre o
passado, sobre a religião e sobre a moral, até mesmo uma idêntica doutrina sobre os
afetos e sobre as paixões. Apenas a teoria do além-do-homem não a encontraremos
nos outros escritos de Nietzsche, e é natural, já que o além-do-homem não é uma
doutrina, mas um mito. Quando se pretende expressar em termos racionais o além-do-
homem, espreme-se pouco entre os dedos, algo de inconsistente, aliás, algo que soa
ridículo. Ao nos defrontarmos com um mito de Platão, nós modernos o interpretamos
como uma exemplificação, uma transposição alegórica, uma supérflua, redundante
invasão em uma esfera pseudo-filosófica. Mas, muito diferente disso, o mito é a
comunicação direta do pensador, diante da qual todo o resto se torna uma tortuosa
divagação. Os Gregos nos apresentam muitas fábulas sérias, narram a história dos
deuses e do mundo: Hesíodo e Parmênides, Píndaro e Platão, Ésquilo e Heráclito nos
contam como realmente são as coisas ao nosso redor, quando vistas por um olhar
mais penetrante. As imagens das suas fantasias nos mostram as filigranas da
realidade. E, ainda mais que Platão, a figura do além-do-homem faz lembrar os mitos
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
13

órficos, nos quais se alude a um conteúdo abstrato muito intrincado, cuja comunicação
é, porém, filtrada por um denso e palpável episódio mítico, somente através do qual se
é guiado em direção ao emaranhado racional. Quanto ao mais do conteúdo doutrinal,
nu e cru, de Assim falou Zarathustra, os juízos sobre a cultura, sobre o Estado, sobre a
moral, são os mesmos que se encontram nas outras obras de Nietzsche, e da mesma
forma no que tange os juízos sobre a ciência, a arte, a razão (“em cada coisa apenas
isto é impossível: racionalidade!”). Mas nos outros escritos de Nietzsche qual é o
resultado final ao qual conduz essa análise cética, essa cisão da fé e das convicções?
A essência corrosiva, destrutiva da razão acaba por levar a melhor sobre a aspiração
afirmativa de Nietzsche. O teorizar generalizado sobre a decadência, o diagnóstico e a
condenação do niilismo moderno contagiam o próprio autor: no final das contas,
apercebe-se ele próprio de ser um niilista e um decadente. Tal é a cativante fatalidade
que a forma expressiva impõe à vontade do pensador.”

(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

Espírito grego por excelência, Nietzsche volta seu olhar penetrante para
os mais de dois mil anos construíram a tradição e sabe como ninguém quanto
a racionalidade socrática condicionou o pensamento Ocidental. Portanto, para
falar ao seu tempo e ao porvir, bem sabia que sua mensagem precisaria estar
cifrada, travestida numa linguagem desviante daquela legada pela filosofia. Por
isso, assim como se fazia com os atores das tragédias clássicas na
antiguidade, o filósofo colocou em seu Zarathustra uma máscara oriental,
persa, garantindo o distanciamento necessário à não classificação especulativa
dessa obra. E essa é uma das grandezas filosóficas e artísticas desse livro -
tanto o autor quanto o protagonista flutuam numa zona indistinta, onírica, que
não se deixa aprisionar:

“Antitética é a forma de Assim falou Zarathustra e antitética a sua potência de


comunicação. Aquilo que aqui se afirmou para o além-do-homem vale para a inteira
obra, que nos oferece o mito de Zarathustra. Mas a imagem de uma vida ascendente,
triunfante, fora suscitada em Nietzsche pelo modelo da Grécia antiga. É a já
mencionada forma expressiva que o impele a escolher o cenário persa, ao invés do
grego. A apresentação deste último não poderia evitar ser conceitual, porque ligada à
esfera histórica e aos seus esquemas. Dizer: isto já foi assim, significa um
rebaixamento, uma comunicação mediata, exangue, distante da vida. No mito, o
passado deve estar presente, enquanto a Grécia não pode ser imaginada como
presente, porque muito conhecida, abstratamente conhecida, por demais verificável,
sufocada pelos esquemas da tradição. O pathos da narração se extingue pelo “assim já
foi”, e é acentuado pelo “assim será”. Nietzsche quis cuidadosamente esconder que o
modelo do seu Zarathustra é grego; usou símbolos historicamente antitéticos, orientais,
persas e bíblicos. Mas o original grego dessa tradução oriental não é difícil de
descobrir, e não apenas pelas referências intuitivas ou explícitas, como as ilhas dos
Bem-Aventurados e a doutrina do eterno retorno. Os temas éticos e especulativos são
uma alusão contínua nessa direção, para ouvidos afiados: a amizade, o acaso e a
necessidade, a crueldade, a arrogância desmesurada, a naturalidade entrelaçada à
beleza. E, enfim, o símbolo culminante, o caráter mais elevado da obra: Zarathustra é o
homem que assimilou o conhecimento mistérico, e a sua ação – a mais benigna e a
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
14

mais fecunda – não é outra coisa que um reflexo daquele conhecimento sobre os
homens. O valor mais elevado da vida no conhecimento, e a reabsorção de cada ação
no conhecimento: disto, apenas os Gregos foram modelo.”

(Colli, Giorgio. Nota Introduttiva a Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche,
Friedrich; trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

Dos sonhos e das interpretações

Até aqui, preparamos e lentamente bebemos a nossa mistura. Agora,


talvez possamos contemplar um dos sonhos do Zarathustra, enquanto ainda
impregnados pelos ingredientes da fusão. Vejamos.

No episódio O adivinho, após escutar os vaticínios, Zarathustra sente-se


atingido “no coração”, triste e cansado como “como aqueles dos quais falara o
adivinho”; sofria, angustiado pela impressão de que se aproximava um “longo
crepúsculo” que colocaria em risco a sua “luz”. Com o coração entristecido,
caminhou calado por três dias, sem comer nem beber. Finalmente, “caiu num
sono profundo”.

Aqui também, como acontece no episódio de O convalescente, pelo qual


já passamos, chama a atenção o fato que, não raro, esses momentos de
preocupação e desassossego provoquem em Zarathustra esse mergulho num
“sono profundo”. É significativo também que o despertar do sono e dos sonhos
em geral ocasione em Zarathustra uma outra transformação que, deixando
para trás a dor e a tristeza que o haviam mortificado, transmite a segurança de
um vigor alerta, que observa com mais agudeza as coisas que vê e que escuta.
Avançar na síntese do episódio pode nos auxiliar a perceber essa
transformação. O sono que o colheu, trouxe consigo um sonho:
“Um enigma é, para mim, este sonho; seu sentido oculta-se prisioneiro em si
mesmo, não voa alto com asas livres.”

(Così parlò Zarathustra. Un libro per tutti e per nessuno. Nietzsche, Friedrich [Livro II, O adivinho, p.164] -
trad. nossa; Adelphi Edizioni s.p.a. – 14ª ed.; Milano, Italia 1989)

Tendo renunciado à vida, ele se tornara o guardião noturno de sepulcros


“na solitária montanha rochosa da morte”. Cercado de caixões, respirava “o
odor de eternidade que virou pó” e sua alma também, como pó, “jazia
entorpecida”. Envolvido na noite, na solidão e no silêncio mortal, levava
consigo chaves enferrujadas e com elas podia abrir estridentes portas, cujo
ruído dos batentes lembrava o grito maligno dos corvos. Mas o mais
assustador era o silêncio perverso. Três batidas na porta ressoaram então,
Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam
Chiara Ancona Lopez
15

como trovões, e ele tentou abri-la, sem sucesso. Foi quando uma estrondosa
ventania, assobiando, escancarou os batentes e jogou-lhe um negro caixão,
que se rompeu “vomitando risadas em mil formas”. Entre “caretas infantis,
anjos, corujas, palhaços e borboletas gigantes, algo riu e zombou e sibilou”.
Zarathustra, então, gritou horrorizado, acordando com seu próprio grito.

Contou o sonho aos discípulos que velavam a seu redor e, não sabendo
ainda como interpretá-lo, silenciou. O discípulo predileto, porém, precipitou-se
numa interpretação. Ao final dela, Zarathustra, ainda com um olhar distante,
“como alguém que volta para casa, após ter ficado por muito tempo em terra
estrangeira, olhava seus discípulos e examinava com atenção seus rostos; e
ainda não os reconhecia”. Mas quando o colocaram em pé, “seu olho
repentinamente se transformou”. Compreendeu tudo que acontecera e,
acariciando a barba, disse que tudo mais poderia esperar e que deveriam fazer
logo uma boa refeição! Com duas falas irônicas sobre “comer para se
penitenciar pelos sonhos ruins” e sobre “mostrar ao adivinho um mar no qual
ele pudesse se afogar”, Zarathustra encerra o episódio balançando a cabeça
enquanto observa longamente o discípulo que pouco antes arriscara interpretar
seu sonho.

A partir desse relato, se quisermos, mais uma vez poderemos


estabelecer relações com a Grécia antiga e com o mito de Deméter e
Perséfone, que também mergulha no escuro mundo dos mortos, onde vai
definhando; mas, ao mesmo tempo, onde poderá finalmente conhecer o lado
sombrio e assustador da existência. E, por que não, o lado escuro de si
mesma, em mais uma associação ao espelho de Dioniso e à descoberta do
que há de pior em cada indivíduo, ainda que este seja belo. O confronto e o
encontro com a verdade sobre si mesmo, a unificação dos opostos. Ao
enxergar-se de outras perspectivas, o homem, como Zarathustra no enigmático
sonho, ficará exposto à ventania que escancara batentes e lança caixões que
se rompem, “vomitando risadas em mil formas”. A seu modo, no mito,
Perséfone experimenta seu lado assustador ao espelhar-se no mundo inferior e
depois “desperta” das sombras da morte para, ao retornar para o mundo dos
vivos, também transformá-lo e fazê-lo reluzir, como faz Zarathustra com “sua
luz”.

Se quisermos ir além, poderemos até mesmo imaginar relações com as


narrativas do cristianismo, aproximando o arquétipo do “discípulo predileto” que
se precipita para oferecer ao mestre uma interpretação estimulante do sonho
obscuro, à figura ambígua de outro discípulo, Judas, que no episódio bíblico da
última ceia também se precipita, e vai beijar o Cristo antes da traição fatal. São
todas associações que conduzem a diferentes visões e interpretações e que
abrem perspectivas. Inútil será pretender escolher a certa e a errada. São
todas possíveis porque o próprio Zarathustra, mesmo depois que “seu olho

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez
16

repentinamente se transformou” e que ele compreendeu “tudo o que


acontecera”, não nos explica o enigma do sonho. Deixa-o em aberto.

Além da repetição da série de estados que vão da ‘inquietude, abandono


ao sono, sonho’ a um ‘despertar transformado’ em alguns episódios, este
capítulo do adivinho é especialmente ilustrativo da calculada “mistura” com a
qual Nietzsche trabalha no Zarathustra. De fato, “Antitética é a forma de Assim
falou Zarathustra e antitética a sua potência de comunicação”, como diz Giorgio
Colli na introdução. Dar-se conta dessa forma e das várias contradições ‘que
se agregam na mistura’ de Nietzsche é passo importante para entrarmos na
narrativa desse livro “aptos”, talvez, a sermos afetados pelas suas
reverberações. Este episódio e o sonho que ele contém são um bom exemplo
da alquimia que percorre a obra. Nela, o filósofo reúne com maestria a
multiplicidade do seu pensamento estético, histórico, cultural, ético, religioso,
psicológico; das insinuações codificadas do adivinho às antagônicas reações
de Zarathustra, antes e depois do sonho; das alusões que encerram certos
elementos simbólicos ao uso de referências da cultura e da religião. A
profundidade cultural de Nietzsche emerge de insólitas imagens criadas na
narrativa. Sua filosofia nunca se fecha, nunca se assegura num sistema. Ao
contrário, escorre sempre, como o mel, numa expressão poética aberta e
vulnerável às mais diversas interpretações. É o que efetivamente acontece e,
mais uma vez, este sonho é um exemplo. Assim como o discípulo deu sua
interpretação, cada um de nós provavelmente o dará a sua. No fim, a
impressão que fica é que Zarathustra escutará todas elas e observará apenas,
sem emitir julgamento, enquanto acaricia, lentamente, a sua barba.

________________________

Referências bibliográficas:

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Così parlò Zarathustra, un libro per tutti e per
nessuno; trad. Mazzino Montinari; 14ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 1989.

__________, Friedrich W. / Umano troppo umano, vol. I-II; ed. italiana por Giorgio Colli
e Mazzino Montinari; trad. Sossio Giametta; 11ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 2013.

__________, Friedrich W. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo;


tradução J.Guinsburg; São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

__________, Friedrich W. Frammenti Postumi, vol. I-IV; ed. italiana: Giorgio Colli e
Mazzino Montinari; trad. G.Colli e Chiara Colli Staude; Milano, Italia: Adelphi, 1989.

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez
17

COLLI, Giorgio. Nota Introduttiva di Giorgio Colli, in Così parlò Zarathustra; 14ª ed.,
Milano, Italia: Adelphi, 1989.

______, Giorgio. La sapienza greca I - Dioniso, Apollo, Eleusi, Orfeo, Museo, Iperborei,
Enigma – 4ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 1990.

______, Giorgio. La sapienza greca III - Eraclito - 4ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 2010.

______, Giorgio. Apollineo e Dionisiaco. 2ª ed., Milano, Italia: Adelphi, 2011.

ARISTÓTELES. Fragmentos dos diálogos e obras exortativas, Obras completas I.


Diálogos Fr.1-110/Díon Crisóstomo, Orationes XII[33]p.62; trad Antonio de Castro
Caeiro; 1ª ed; Lisboa, Portugal: Impr. Nacional, Centro Filosofia Univ. de Lisboa, 2014.

SAMORINI, G. Un contributo alla discussione dell'etnobotanica dei Misteri Eleusini; rivista


Eleusis. Piante e Composti Psiocoattivi; Rovereto-Italia; edit. Museo Civico Rovereto, 2000.

TONELLI, Angelo. Eleusis e Orfismo – I Misteri e la tradizione iniziatica grega ;


traduzione e cura di Angelo Tonelli; 1ª ed., Milano, Italia: Feltrinelli Editore, 2015.

ESCHILO. Le tragedie; trad. Carlo Carena; 1ª ed.; Torino, Italia: Einaudi, 1980.

HOMERO. Odisseia; trad. Trajano Vieira; 1ª ed., São Paulo: Editora 34, 2013.

MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche: sua Filosofia dos Antagonismos e os


Antagonismos de sua Filosofia; trad. Clademir Araldi; São Paulo: Editora Unifesp,
2009.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; trad., coord. Alfredo Bosi; trad. novos
textos, Ivone Castilho Benedetti, 5ªed. rev. e ampl.; S.Paulo, SP: Martins Fontes, 2007.

Dos paradoxos no Zarathustra, de Nietzsche: sonhos que despertam


Chiara Ancona Lopez

Você também pode gostar